Júnia Ferreira Furtado - SciELO...
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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros FURTADO, JF., org., FERREIRA, GF. Erário mineral [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. 821 p. Mineiriana collection. Clássicos series. ISBN 85-85930-41-1. Vol. 1 e 2. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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III - Erário mineral tratado II: das obstruções
Júnia Ferreira Furtado
T R A T A D O I I
CAPÍTULO I Das obstruções
1. As obstruções nestas Minas têm dado grande cuidado aos
professores, por ser este clima muito conducente a elas, assim para
os brancos como para os pretos ainda que para estes com maior razão,
por andarem pela maior parte sempre met idos dentro da água,
principalmente os que são mineiros; e, também, porque os humores
deles estão mais arraigados e infiltrados nas partes onde se formam
do que em outros quaisquer achaques, pela qual razão são mui
dilatadas em sua cura; e como eu tenho curado muitas de outro modo
que os mais professores e do que os autores ensinam, pela razão e a
exper iência me terem ensinado, como se verá no discurso deste
tratado, exporei o meu método curativo; cada um seguirá o que melhor
lhe parecer.
2. São muito diferentes as partes que podem padecer obstruções,
mas não tratarei senão de três, por serem as mais comuns 1 e as mais
principais: as do fígado, as do baço e as do mesentério, e apenas não
farei pouco, pela ocupação com que de presente me acho mo não
permitir. Isto assim suposto, darei princípio pela do fígado, por ser a
mais perigosa, de que tenho visto morrer a muitos hidrópicos sem
remédio por causa dela.
• · • » » • Φ β · » » • » • » f O » • » » · « i »
CAPÍTULO II Da obstrução do figado, seus sinais e sua cura
1. A obstrução do fígado se conhecerá estando o doente em jejum, e,
deitado de costas com os pés encolhidos, se lhe carregará brandamente com
os dedos de ambas as mãos da parte direita, naquele vão que medeia entre
as costelas mendosas e o estômago, junto das costelas, ou da arca, como diz
o povo, e, achando-se naquela parte dureza e dor, não teremos dúvida que o
fígado está obstruto, e, segundo a maior ou menor dureza, assim também
será a obstrução maior ou menor, de sorte que, se a dureza for grande, haverá
menos dor, e, se for pequena, será a dor maior; havendo grande dor e menos
dureza, será mais curável e, se houver pouca dor e a dureza for grande, será
mais dificultosa a sua cura, e, sendo a dureza grande e sem nenhuma dor,
será incurável e se reputará por obstrução cirrosa; e, se o cansaço for muito
quando andar e tiver dificuldade na respiração, os pés e pernas inchados, e
o rosto magro, fora do seu natural, e as maxilas, ou maçãs do rosto, vermelhas,
pela maior parte vêm a morrer hidrópicos, falando até de todo se sufocarem.
2. Nota. Que, algumas vezes, sucede haver grande inflamação no fígado
que os doentes não podem consentir que se lhe ponha a mão, como já vi;
estas tais inflamações sempre são perigosas, sem embargo que uma, que
sucedeu a um escravo meu, não teve perigo, porque como os pretos são
dotados de natureza mais forte e robusta que os brancos, resistem mais a
todas as enfermidades; e, ainda que pareça, é perigosa e mortal, sempre se
lhe devem aplicar os remédios, porque em tal estado estará a natureza que
os receba e livre do perigo; e sempre será bom conselho que o doente faça
seu testamento e receba os sacramentos, o que se deve praticar em todas as
doenças que prometerem qualquer perigo.
Como se curará esta obstrução
3. A primeira coisa que se deve fazer ao doente é dar-lhe um vomitório
de tártaro emético, de cinco até seis grãos de peso, sendo bom, e, se for mais
inferior, serão sete até oito, para evacuar as cruezas da primeira região, que,
obstrução cirrosa
vomitório
sem esta evacuação, serão infrutíferos os mais remédios. Depois que tiver
tomado este, descansará o doente o dia seguinte, para vermos se ainda tem
necessidade de tomar outro, o que se conhecerá porque haverá amargores
de boca, ou pouca vontade de comer, ou o estômago estará duro, ou cheio
como empanzinado; e sendo que tenha estes sinais ou parte deles, tomará
outro, mas sempre com advertência que sejam antes mais pequenos que
maiores, para não causarem ânsias, nem grande trabalho ao doente, e,
também, para que não fique prostrado de forças, porque quem faz uma
jornada comprida a fará mais seguramente indo devagar que indo depressa;
e, outrossim, é de advertir que, quando a primeira região está bem limpa e
evacuada, aproveitam e obram melhor os mais remédios que depois se lhe
aplicam, mais segura e breve a cura. E, como nestas Minas não faltam nunca
cruezas nos estômagos, por isso mais convenientes serão os vomitórios.
4. Evacuada a primeira região com um vomitório, se obrar bem, ou
com dois, obrando pouco com o primeiro ou havendo necessidade de
segundo, nestes termos tomará o enfermo por cinco ou seis dias contínuos,
de manhã, em jejum e de tarde, antes do Sol posto, seis onças por cada vez,
do remédio seguinte. Tomem uma raiz pequena de capeba e duas, ou três,
de salsa das hortas, conforme forem que não seja a salsa espigada, e as raízes
de um pé de artemija e uma raiz de funcho, e, se estas não forem também
espigadas, será melhor; as folhas e o tronco se cortem por junto das raízes e
se lancem fora, as raízes se lavem e, limpas, se metam em uma panela, ou
tacho, bem areado com três frascos de água comum, que ferva até ficar em
frasco e meio, e, coada esta água, se lhe lançará meia libra, ou meio arrátel,
de açúcar, e com ele torne a ferver e a purificar ao fogo, até que fique em um
frasco, e, coado outra vez, se guarde; e dele irá tomando o doente, como
tenho dito, e sempre morno; e, assim que o doente tomar as bebidas e fora
delas, fará exercício moderado, porque é uma grande circunstância para o
remédio obrar melhor, digerir o que comer e abrir os poros para transpirarem
as fuligens e alguns humores; e assim continuará até acabar o dito frasco.
Sendo em Portugal e querendo-se mandar fazer na botica, se fará o
medicamento com os seguintes simples. Raiz de salsa das hortas, de
funcho, de artemija, de grama, de aipo e de borragens, de cada uma
remédio desobstruente
exercício
duas onças; folhas de agrimônia, de douradinha, de borragens e de
hissopo, de cada uma meia onça. Ferva tudo em duas canadas de água
comum, até ficar em uma, e, coado, se lhe ajunte meia libra de açúcar,
com que ferverá até diminuir meio quartilho, e, coado outra vez, se
lhe ajunte, de oximel, duas onças, e se guarde para o uso.
O oximel que mando misturar é grande remédio para abrir e
incidir, sendo veículo para melhor obrarem os mais, e facilita o curso,
que nesta queixa é de grande utilidade andar a natureza lúbrica. Não
ponho aqui os caracteres das onças e libras para serem entendidos de
quem os ignora, por ser aqui o seu próprio lugar.
Para fomenta r a obs t rução , é ma rav i l hoso o l en imen to
seguinte: sumos de folhas de salsa fresca, de funcho, de aipo; sumos
de raiz de salsa e de lírio, de cada um duas onças; sumo de cebola
branca quatro onças; banha de porco sem sal quatro onças; óleo de
lírio, o que baste para fazer lenimento brando, fervendo os sumos até
se lhes consumir a umidade. S.A.
Nesta mesma forma receitei estes dois remédios para curar
uma obstrução nesta Cidade do Porto ao mui reverendo padre Manuel
João de Carvalho, que a trouxe das Minas no fígado, repetindo várias
vezes a bebida acima, tomando primeiro de tudo dois vomitórios e
purgando-se todas as vezes que acabava de beber uma receita, fazendo
dois e três jatos cada dia em que tomava o desobstruente, por virtude
do oximel e pelo medicamento das ervas ser laxativo, com que, ao
compasso que ia tomando as bebidas, tomava também as purgas no
fim delas, e, fomentando a parte com o sobredito lenimento, se ia
achando cada vez melhor e veio a sarar de todo, como é bem notório
nesta parte da cidade das hortas e ferradores, andando sempre de pé
com os desobstruentes.
5. Nota que, como a raiz de capeba é quente, se o doente for de natureza
cálida, ou se não lance no cozimento ou, se se lançar, seja em pouca quantidade,
2 S.A. - Abreviação latina de secundun arten, "conforme, de acordo com a arte".
mas, como é muito desobstruente, sempre será conveniente ajuntar-se
alguma, porque, ainda que pareça se não devem ajuntar medicamentos
quentes na obstrução do fígado, eu sempre os ajuntei com bom sucesso, sem
se esquentarem os doentes, porque as mais raízes são temperadas e temperam
esta; e demais, como os humores que têm feito a obstrução são de sua natureza
mais frios que quentes, não se esquentam os enfermos com facilidade; nem
mandei nunca sangrar nesta doença, nem aconselho tal se faça.
6. Nota mais. A salsa, a capeba, a artemija e o funcho que atrás digo
não sejam espigadas é porque, estando com semente, têm posto toda a sua
força nela, por cuja causa ficam as raízes mais endurecidas e fracas, ou, para
melhor dizer, com pouca virtude; e para o remédio obrar melhor, o doente
aproveitar o tempo e alcançar o fim que pretende, não hão de ter semente e,
se for possível, nem flor ou grelo. Mas no caso que seja em Portugal, ou em
parte aonde não hajam todas as ditas raízes, se podem ajuntar ao cozimento
raiz de espargos, raiz de gilbarbeira, ou douradinha, ainda que estas são
mais fracas que as outras, por virem de Portugal e passarem a linha, onde
todas as coisas degeneram.
7. Acabado o dito frasco que acima fica referido, se purgará o doente
com uma oitava de pós comaquinos verdadeiros, porque, se acharem
algumas cruezas ainda no estômago, as lançarão pela boca, por serem também
vomitórios, e, não as achando, farão a sua obra por curso, lançando os
humores da obstrução que estão diluídos ou brandos com os desobstruentes
que já tem tomado.
8. Tendo o doente tomado esta dita purga, poderá já usar da fomentação
seguinte: derreta-se ao fogo enxúndia de galinha com banha de porco sem sal,
de cada uma partes iguais, e, quanto mais velhas forem, melhor será; com este
medicamento fomentem toda a região do fígado, estando morno, e, por cima
da fomentação, se lhe ponha folha de capeba, passada primeiro pelo fogo, ou,
em sua falta, folhas de almeirão silvestre, a que o povo chama fumo-bravo,
ou folhas de almeirão verdadeiro, e, em falta de tudo, papel, e a parte bem
» » » » » » » » « I » f » » · » •
pós cornaquinos
fomentação
coberta do ar; e se algum achar que este remédio é fraco, por não levar muitos
símplices, eu lhes digo que é excelente e que sempre me sucedeu bem com
ele; ou fomentem a parte com ungüento desopilativo de fumos, que se
mandará buscar à botica, ou se fará em casa pela receita que se achará no
tratado da miscelânea; e por cima a dita folha, ou papel.
9. Melhor que todos os outros remédios é o seguinte, de que tenho
usado infinitas vezes com bom sucesso, o qual é invento meu, porque,
ao compasso que se vão tomando os desobstruentes e purgas, vai
fazendo melhor o seu efeito, e, por conseqüência, ajuda a abreviar a
cura em menos tempo, desfazendo este por fora, os desobstruentes por
dentro e as purgas lançando-os fora, o qual se faz do modo seguinte:
10. Pise-se uma boa mão cheia de folhas de picão, ou, por outro nome,
carrapicho, que é uma erva de pouca altura e tem na ponta dos botões de
sua semente uma espiga, ou arestas, que, depois de secas, se pegam muito
aos vestidos de quem passa por junto dela, e duas ou três cebolas brancas,
conforme forem, quatro onças de banha de porco sem sal, tudo pisado de per
se, e depois se torne a pisar junto, que fique uma boa massa, a qual se lançará
em um tacho pequeno com quatro onças de óleo de lírio, ou, em sua falta, de
óleo rosado; e, quando seja em parte onde não haja nenhum destes, será de
azeite doce; ferverá tudo a fogo brando, até que se consumam os sumos, o
que se conhecerá tirando dele e lançando-o no fogo, não espirrará; e depois
se coe por pano ralo e se guarde para o uso, com que se fomentará todas as
noites ao recolher na cama com um bocado deste remédio morno, e, por
cima, o que fica dito, resguardando-se muito do ar.
11. No tempo que se vai usando destas fomentações, irá o doente
tomando pela boca outro desobstruente, feito na forma que fica referido, e,
neste mesmo tempo, como este remédio não é purgativo e só desobstruente,
tomará o doente todos os dias à noite ajuda purgativa, ou ao menos um dia
e outro não, para irem aliviando a natureza, e fazendo sempre exercício,
como já disse, o que recomendo muito, por ser de grandíssimo proveito.
12. Acabado o dito frasco, se o doente tiver sinais de humores frios, o
que se conhecerá pelos que ficam apontados no volume 1, nas páginas 249,
256 e 257, se purgará com uma oitava, ou três quartos, de resina de batata,
r eméd io e x c e l e n t e para
f o m e n t a r , invento do a u t o r
purga de resina
com segurança e sem receio, para purgar universalmente todo o corpo, e,
depois dela, um ou dois dias, poderá tornar a continuar com outro frasco de
medicamento desobstruente, feito como fica dito, e tomando as ajudas
purgativas. Mas, se o doente for de compleição branda e tiver receio de tomar
a dita purga que atrás fica referida, de pós comaquinos, ou esta acima de
resina, poderá tomar outra mais branda, como são os trociscos de Fioravanto
na forma seguinte. Em cinco onças de cozimento de chicória ou de almeirão,
se lance oitava e meia dos ditos trociscos feitos em pó com duas onças de
conserva pérsica, ou, em seu lugar, onça e meia de maná; tudo desfeito e
coado, se dê morno ao doente em jejum, que é uma purga muito perfeita,
suposto branda, mas advirto que sendo robusto e tendo sinais de humores
frios, que quase sempre assim há de ser, principalmente depois de ter tomado
um ou dois vomitórios e um ou dois frascos do dito medicamento e
continuado as fomentações; e sendo assim, são as purgas de pós comaquinos
e as de resina de batata singularíssimas, o que experimentará o doente e o
professor que lhe assistir, sendo de mais ou menos peso, segundo as forças e
a idade, por uma ou mais vezes interpoladas, conforme os sinais que o doente
tiver, porque, tendo alguns de ter algumas cóleras no estômago, são os pós
comaquinos admiráveis pelo grande efeito que fazem nestas obstruções,
purgando por uma e outra via os humores prejudiciais; e tendo sinais de
abundância de humores frios, são as de resina muito excelentes, porque,
além de serem purgas universais, purgam e arrancam valorosamente os
humores de que se formam todas as obstruções.
13. Também se pode usar das pílulas 4 mesentéricas de Lemeri, mas eu
tenho-as por fracas e de pouco proveito, ou, para melhor dizer, obram mui
devagar e fazem a cura mui dilatada, porque, suposto elas sejam
desobstruentes, é massa ou simples que vem de Portugal com a sua virtude
muito diminuta quando cá chegam, fora o tempo que cá estarão nas boticas;
e como cá pela maior parte os doentes querem medicamentos que façam cursar
muito, mandam-lhe os professores ajuntar diagrídio, e a força dele é que fazem
purga de trociscos, de f ioravanto
purgas de pós cornaquinos e de resina
cursar muito, mas não fazem desobstruir, que é o primeiro intento e muito
principal, porque, usando os medicamentos purgantes sem que os humores
estejam diluídos e preparados, não só se não curarão as obstruções, mas se
acrescentarão mais e as queixas do enfermo se aumentarão, de sorte que o
porão em miserável estado; e por isto é que eu digo que se usem primeiro os
desobstruentes e depois os purgantes para os lançar fora, e não preparar e
purgar ao mesmo tempo com um mesmo medicamento; mas não entram
nesta conta um ou dois vomitórios no princípio, porque estes não carecem
de preparação antecedente, salvo se for uma ajuda.
14. Tomada a purga que parecer mais conveniente, conforme for o sujeito
e as forças o permitirem, se tornará a fazer outro frasco de medicamento
desobstruente na mesma forma que está dito, e, acabado, se tornará a purgar,
e assim, nesta mesma forma, se irá procedendo na cura preparando os
humores, e, depois de preparados e adelgaçados, purgá-los pelo modo que
fica dito, usando das mesmas fomentações e ajudas. O regimento que o doente
há de guardar no comer e beber será o seguinte. No tempo que tomar as
purgas, comerá galinha, como se não ignora, e fora delas, em todo o mais,
comerá vaca assada ou cozida, depois de seca no forno, ainda que não fique
muito apertada, que será melhor no forno que em moquém; também poderá
comer em algumas ocasiões ovos quentes, somente com pão ou farinha, e
não assados ou cozidos que fiquem duros e menos frios; também poderá
comer migas, franga assada, veado e aves do monte; a água que há de beber
será cozida com um molho de raízes de sapé, que é muito melhor que grama,
o qual não falta nestas Minas e em todo o Brasil.
15. Por ter visto a alguns professores curarem doentes desta enfermidade
sem lhes mandarem fazer exercício, e morrerem, ainda que não fosse por esta
causa, como eu pela experiência e razão tenho visto que o exercício é muito
preciso nesta obstrução e em todas as mais, por isso torno a recomendá-lo,
pois com ele se aumenta o calor, consomem as cruezas, abrem os poros, e lhe
facilita a transpiração e o suor, resolve os flatos, fortalece os nervos, promove
a circulação do sangue e outros proveitos essencialmente necessários para a
cura desta e das mais obstruções; e os mesmos proveitos faz nas hidropisias,
que muitas procedem desta obstrução, como tenho visto e se verá nas
regimento e água que
há de beber
proveitos do exercício
observações que adiante escreverei, as quais folgará de ver o curioso; nem me
parece seja possível curarem-se obstruções sem exercício. O doente se não
molhe, nem traga os pés úmidos, que lhe será de grande dano.
16. Sendo esta obstrução em mulher, se lhe darão os vomitórios
necessários e os mesmos medicamentos desobstruentes; porém, no que toca
a purgar, se purgarão com purga de rom, feita em pó de fresco e em
quantidade de meia até uma oitava, conforme as forças e a idade, ou também
segundo a preparação que se houver feito com os desobstruentes, porque,
se for de poucos dias, será menos o peso da purga, e será dada ou desfeita
em um bocado do mesmo cozimento, tépido somente, ou se lançará em uma
gema-de-ovo, assim fria dentro da sua casca, e mexida, porque assim se
tomam com mais facilidade; e não só são boas estas purgas para se curar
obstruções nas mulheres, senão também que são excelentes para promover
o sangue mensal dos seus meses, de que tenho usado muitas vezes com feliz
sucesso, principalmente quando lhe não vem a sua conjunção por causa de
alguma obstrução, como quase sempre é certo; e promovendo-se os meses
às mulheres, mais brevemente saram da obstrução. Em quem tenho usado
das purgas de rom mais vezes é em mulheres pretas com bom sucesso, e
sempre usei do rom que está em pedra, porque, estando em pó, perde muito
a sua virtude. Destas mesmas purgas tenho usado muitas vezes em homens
que tinham paralisias, estupores ou ramo de ar; e também faz promover o
sangue mensal e alimpar a madre o seguinte: duas partes do sumo de artemija
e uma de sumo de arruda com uns pós de açúcar, de tudo uma onça até onça
e meia para cada vez, morno, em jejum e de tarde, se quiserem, lançando-lhe
umas pingas de água ao pisar e também o cozimento acima referido.
17. Esta obstrução é de mais perigo que nenhuma das outras, por
estar em membro muito principal, e, como assim seja, se deve tratar
dela com todo o cuidado no princípio, se o doente der parte a tempo,
e não se despreze, porque, ainda que são perigosas, eu tenho curado
muitas e algumas delas já em ruins termos; nem se faça pouco caso
dos remédios que aplico na consideração de serem fracos, que, antes,
eu lhes chamo muito valentes por estarem no seu natural e obrarem
com toda a sua virtude.
sendo em mulher
paralisia ou ramo de ar
Se o doente estiver esquentado, que se fará
1. Muitas vezes acontece, e é mui ordinário nestas obstruções sendo
antigas, haver grande calor, e, sucedendo assim, se não dará o vomitório
que digo no princípio deste tratado, senão depois que o tal calor estiver
temperado, salvo se houverem bastantes sinais de enchimento de estômago,
que, neste caso, se dará e será em diminuta quantidade; e depois dele se
temperará o doente se estiver esquentado com grande calor, o que se fará
com banhos de água morna em canoa, que fique só a cabeça de fora, no qual
banho estará enquanto a água estiver tépida, sendo em tempo quente e
estando o sol alto; e não sendo com estas condições, se não devem tomar, e,
nesse caso, se refrescará o doente com frangos feitos na forma seguinte: Limpo
um franganito de pena e suas entranhas, se porá a cozer em uma panela de
barro com folhas de chicória e de almeirão, ou de borragens, em quanto
baste de água comum, que ferva e se coza bem para ficar em cinco ou seis
onças de cozimento, que o doente tomará morno em jejum todos os dias sem
mais coisa alguma; destes frangos usará, até se achar mais temperado e sem
os calores que antes deles sentia, os quais me parecem mais convenientes
que os banhos; cada um escolherá o que melhor lhe parecer, advertindo que
os frangos não só me parecem mais convenientes para temperar e refrigerar
os calores, senão também que em menos dias hão de fazer o seu efeito, do
que os banhos, porque estes, não sendo tomados em grande número, como
de sessenta até cem, não poderão fazer efeito, além de se não poderem tomar
em todo o tempo; e, achando-se temperado, ainda que não seja de todo,
poderá tomar o vomitório, se antes o não tiver tomado, e, não obrando bem
ou havendo sinais que prognostiquem haver ainda enchimento no estômago,
poderá tomar segundo e depois continuar com os mais medicamentos
desobstruentes pela ordem que fica referida, ou se refrescará com algumas
emulsões.
2. Digo que, ainda que não fique de todo refrescado, se continue
a cura, porque, como o corpo está cheio de humores, não será fácil
achar-se fresco de todo; e, tanto que o corpo se descarregar e ficar
aliviado, terá a natureza aqueles inimigos menos e não terá já quem a
calores em
obst ruções
banhos
de canoa
frangos
o numero de banhos há de
se r grande
causa por que os c a l o r e s s e
não podem a c a b a r de t i r a r
com r eméd ios f r e s c o s
oprima tanto, e com os remédios desobstruentes se desobstruirão as vias
e canais para o sangue e mais l íquidos se c i rcularem melhor e,
conseqüentemente, melhorará dos calores, como se verá na obstrução
de Domingos Francisco de Oliveira que adiante escreverei; e não se use
de soros em corpos cheios de humores, porque nada hão de obrar, como
tenho visto e pelas razões acima apontadas.
3. Segundo as observações que tenho feito, assim nos meus
doentes, como nos dos mais professores, médicos e cirurgiões, tenho
achado com toda a certeza ser mais conveniente dar aos doentes os
medicamentos preparantes e desobstruentes simples, quero dizer, sem
nada purgativo, por discurso de seis dias, pouco mais ou menos, e,
depois dos seis dias, tomar a purga, tornar a preparar outros seis dias
e tornar a purgar , e ass im enquanto for necessá r io , porque os
preparantes ou desobstruentes preparam e desobstruem, ou abrandam
os humores que estão duros e coagulados na obstrução e abrem os
caminhos, vias ou canais para os purgantes acharem os caminhos
abertos e os humores brandos, para melhor fazerem o seu efeito e lançá-
los fora com menos moléstia e mais alívio do enfermo, porque, deste
modo, são as curas de menos duração; o que não pode suceder
misturando purgantes com os preparantes, porque obram muito pouco
na doença, a meu parecer, salvo melhor juízo, e também porque os
preparantes, misturados com purgantes, estes agravam e dão fadiga à
natureza, pelos humores de que se formam as obstruções serem crassos
e viscosos e por estarem infiltrados, coagulados e endurecidos, não
podem os purgantes fazerem a sua operação; e, demais que, quem aplica
os preparantes com purgantes, alguns lhe mandam ajuntar diagrídio
para esporear os purgantes e, por força dele, é que os doentes fazem
boa obra por curso, mas não na enfermidade, porque é fazê-los obrar
por força; e, nesta forma, são eternas as curas, o que assim tenho visto
fazer a médicos e cirurgiões, e não faltará nestas Minas quem tenha
notícia, com toda a certeza, de serem estas curas de anos; e, pelo
contrário, também há de haver alguém ainda vivo que tenha notícia,
ou que tenha experimentado em si mesmo o contrário, tomando
causa por que algumas curas são eternas
medicamentos pelo meu método, o que mais claramente se verá nas
observações, onde nomearei alguns doentes, os quais servirão de
testemunhas, se vivos forem; aliás, vizinhos ou parentes.
4. Digo o que tenho visto e o que entendo para bem dos enfermos, e
não obrigo, nem violento o querer alheio; suposto isto, passo a tratar das
observações desta obstrução no capítulo seguinte.
CAPÍTULO III De observações em obstruções do figado
OBSERVAÇÃO I Do capitão Manuel Dias Leite
1. A primeira observação que fiz foi na Vila Real do Sabará, em o
capitão Manuel Dias Leite, o qual me chamou para o curar de uma
obstrução que tinha no fígado, não grande, e, seguindo o método
curativo que atrás fica referido, ficou quase são, e como não tinha queixa
que lhe desse moléstia, não quis mais cura, sem embargo que eu lhe
dizia não estava são, por lhe achar ainda alguma dureza; passados
tempos, tornou a crescer a obstrução, como assim havia de suceder;
chamou médico para lhe assistir, mas não sei em que estado estava a
obstrução, nem sei que remédios tomou; sei, sim, que lhe cresceu, de
sorte que, ouvindo dizer que estava perigoso, o fui ver de curioso, e o
achei meio assentado e meio deitado para poder tomar a respiração,
que de outra sorte se sufocava; e assim esteve algum tempo, até que,
da mesma sorte, veio a morrer hidrópico, sufocando-se-lhe a respiração
pela compressão que o fígado fez ao bofe com a sua inflamação ou
inchação e falando claramente em seu juízo perfeito até o último
instante, com o corpo bastantemente inchado, principalmente o ventre,
sem que o dito médico que lhe assistia lhe pudesse valer. Ε desta mesma sorte morrem todos aqueles que se não curam no princípio até ficarem
sãos ou aqueles a quem se não aplicam os remédios mais genuínos a
seu tempo.
OBSERVAÇÃO II
Do sargento-mor Gaspar de Brito Soares
1. No ano de 1719 me mandou chamar o coronel Francisco do
Amaral Coutinho para ver ao dito sargento-mor Gaspar de Brito Soares,
seu cunhado, morador em Ribeirão Abaixo, na freguesia de Bom Jesus
do Furquim, e, por longe donde eu morava, pernoitei em casa do dito
enfermo para o apalpar pela manhã em jejum, por me dizer cansava muito
quando andava e tinha a respiração cansada, de sorte que, quando subia
alguma subida, lhe era preciso parar e descansar; e, apalpando-o, lhe
achei uma grande obstrução no fígado.
2. Depois de o ver, lhe perguntei em presença do dito coronel, seu
cunhado, se queria lhe falasse a verdade do que entendia, à vista do que
lhe disse tinha uma grande obstrução no fígado, membro muito principal,
e que, se lhe não acudisse logo, mudando-se para a Vila do Carmo ou
para a do Ouro Preto, onde havia médicos, corria a sua vida grande
perigo de morrer hidrópico, como tinha visto morrer a outros nas Minas,
e que, naquela paragem que era o seu engenho, chamado da Barra, mui
distante, se não podia curar como convinha, por ficar longe de todo o
necessário; ao que respondeu não podia mudar-se, porque lhe ficava a
sua fazenda ao desamparo; entre outras razões me despedi, dizendo lhe
não podia assistir.
3. Passado algum tempo, como viu que as queixas iam em
crescimento, como sem dúvida haviam de ir, mandou chamar um médico
de boa nota, o qual lhe deu uns pós para ir tomando em sua casa, dizendo
que eram específicos, os quais tomou sem efeito algum; daí a duas
semanas, pouco mais ou menos, mandou chamar a um cirurgião, o qual
lhe disse que a sua doença não tinha perigo, e, dizendo-lhe o enfermo
que eu lhe tinha dado o prognóstico de morte, respondeu que fosse para
a Vila do Carmo, que ele lhe prometia assistir-lhe e restituí-lo a sua casa
são, fazendo-lhe companhia e passando pela minha, por morar em
caminho, para saber se morrera ou estava são.
4. Passados poucos dias com o bom prognóstico, se resolveu ir
para a dita vila, e, indo eu dela para minha casa, o encontrei em
companhia do sargento-mor José Cardoso Homem e do capi tão
Francisco do Rego Barros, aonde me apeei para lhe falar e ver o estado
em que ia, o qual vi meio assentado e meio deitado em uma rede em
que ia, que assim lhe era preciso para poder tomar a respiração, e,
dando-me algumas palavras, vi que as não podia pronunciar sem
grandes fal tas e que se es tava sufocando; dei - lhe a lgumas de
consolação e que, já que não tratara da saúde do corpo a tempo,
tratasse da saúde da alma e do seu testamento, enquanto Deus lho
dava. Chegou à dita vila de noite, porque recomendei aos ditos dois
companhe i ros não permi t i ssem que o doente apanhasse sol no
caminho, porque tinha grande perigo com ele de morrer sufocado
dentro da rede em que ia, sem ninguém saber da tal morte; chegou na
dita noite à dita vila, onde morreu sufocado daí a vinte dias, pouco
mais ou menos.
OBSERVAÇÃO III
De uma obstrução no figado em André Rodrigues Lima
1. No ano de 1722 veio a esta minha fazenda de São Miguel do
Bom Ret i ro de I t aco lomi , f regues ia da Vi la do C a r m o , André
Rodrigues Lima, morador no arraial da Passagem, freguesia da mesma
vila, a pedir-me o curasse, e, pernoitando em minha casa, lhe apalpei
o ventre em jejum e lhe achei uma obstrução no fígado muito grande,
que lhe causava bastante cansaço quando andava, e tinha o rosto
desfeito e as maxilas, ou maçãs dele, vermelhas mais do natural, os
pés inchados pela parte de cima e os tornozelos alguma coisa; à vista
de tantas e tão grandes queixas, estava desconfiado de remédio, mas
como sabia que eu t inha curado alguns achaques a que outros
professores não tinham dado remédio, me pediu que - pois tinha
muita experiência das Minas - lhe acudisse e valesse em tão grande
aflição; e dizendo-lhe que tinha a minha lavra a que acudir, lhe não
podia fazer assistência, que chamasse médico ou outro cirurgião, que
não faltavam nas duas vilas vizinhas, a do Carmo e a do Ouro Preto,
além de outros arraiais, onde não faltava quem lhe assistisse melhor
do que eu, por lhe ficarem todos mais vizinhos e eu lhe ficava distante
duas léguas e meia; ao que respondeu que ele viria em pessoa, a
cavalo, se pudesse, ou em rede, a minha casa, ou mandaria informação
para lhe ordenar o que havia de fazer; e que, quando eu pudesse ir
vê-lo algum dia, seria grande favor além da satisfação, e, quando não
pudesse ou não t ivesse algum negócio para aquela par te , teria
paciência só com as informações, e que assim se contentava. À vista
disto, lhe ordenei fosse para sua casa e tomasse um vomitório de
tártaro emético e depois disto me avisasse da obra, e como obrou bem,
lhe mandei um frasco cheio do remédio desobstruente, na forma que
fica dito, e, depois de acabado o dito frasco, lhe ordenei tomasse uma
purga de pós cornaquinos verdadeiros de uma oitava de peso, para
que, se tivesse algumas cruezas ainda no estômago, as alimpasse, para
que os mais remédios que havia de tomar daí por diante obrassem
melhor; o que assim sucedeu, porque obrou por uma e outra via
admiravelmente.
2. Depois que me deu este aviso, lhe mandei outro frasco de
medicamento desobstruente, e, depois que o acabou, o mandei purgar
com uma oitava de resina de batata e, finalmente, assim foi tomando
daí por diante medicamentos desobstruentes e purgas de resina em
menos quantidade, recomendando-lhe muito a cautela no uso venéreo
e mais coisas prejudiciais, e que, no tempo que tomasse o medicamento
d e s o b s t r u e n t e , f i zesse e x e r c í c i o m o d e r a d o , com que s a rou
radicalmente, e, até o dia de hoje, que vão perto de dez anos, nunca
mais se queixou da tal enfermidade, como ele mesmo dirá, pois ainda
é vivo e morador ainda no mesmo arraial.
3. Em escravos meus tenho curado algumas destas obstruções
pelo mesmo modo, e sempre sararam, como também a outros pretos
e brancos para quem fui chamado, que, por haver muitos anos, me
não lembram os nomes.
Observação de umas cameras contínuas que não obedeceram
senão depois que lhe curei uma obstrução que tinha no figado
4. No ano de 1720 fui chamado para curar um bom escravo de
Miguel Dias de Sousa, morador nas Lavras Novas, distrito da Vila do
Ouro Preto, o qual tinha umas câmeras contínuas, de dia e de noite, havia
perto de um ano, e, dizendo-me o dito seu senhor que tinha gasto muito
com boticas, médicos e cirurgiões, e até remédios de curiosos, sem terem
os tais cursos diminuição alguma, lhe respondi que não aplicava remédio
sem lhe apalpar o ventre no outro dia, estando em jejum, para ver se
tinha alguma obstrução, como presumia, por ter visto em outras ocasiões
cursos e algumas outras doenças que não sararam, senão ao depois que
se lhe curavam obstruções que tinham; e, com efeito, me não enganei,
porque, apalpando-o no outro dia, lhe achei uma obstrução no fígado e
levando-o para minha casa por ficar distante da sua e me pedir que, já
que eu lhe conhecia a causa da doença, lhe havia de fazer mercê curá-lo,
porque seria mais fácil a mim que a quem não tivesse experiência ou
conhecimento da tal causa.
Foi, com efeito, e, curando-o na forma que fica referida, dando-lhe, por
fim, algumas purgas de ruibarbo e, ultimamente, os pós de poalha, ou por
outro nome pacacoanha, uma só vez, como se diz no tratado sétimo, cap. 17,
núm. 7, sarou radicalmente, sem nunca mais lhe tornarem os tais cursos; e é
de advertir que estava já resolvido a mandá-lo curar ao Rio de Janeiro, por
lhe dizerem que nas Minas não havia de sarar.
Notícia de vários enfermos que perderam a vida por causa da mesma obstrução
1. Na Vila Real do Sabará morreu um guarda-mor de datas de terras
minerais hidrópico de uma obstrução no fígado, sufocado da respiração.
Na dita vila, onde chamam o Arraial Velho, morreu um vendilhão, ou
taverneiro, por nome João Pereira, de uma obstrução no fígado, hidrópico
e sufocado da respiração. No rio de São Francisco morreu Pascoal Ferreira
Ferro, hidrópico de uma obstrução no fígado e sufocado da respiração.
Na Vila do Carmo morreu um homem chamado Brás Martins da mesma
enfermidade. Na dita Vila do Sabará morreram mais dois homens da
mesma enfermidade e do mesmo modo. No distrito da Vila do Ouro
Preto, no arraial chamado o Corgo Seco, morreu um clérigo de tal
enfermidade e do mesmo modo. Em Ribeirão Abaixo, distrito da Vila do
Carmo, morreu Agostinho Monteiro da mesma enfermidade. No dito
Ribeirão Abaixo morreu um homem de estimação, da mesma enfermidade.
2. Por não parecer ladainha e por não enfadar aos leitores, não
aponto mais; estes bastarão para se saber que é mui freqüente esta
enfermidade nestas Minas, e, à vista das observações que ficam referidas,
poderão ter remédio, acudindo-lhes a tempo, antes que a obstrução do
fígado se faça grande e passe à hidropisia, porque, ao depois, o seu
remédio será a sepultura.
3. Ainda que para algumas pessoas pareça indecência o que agora
direi, para outras que se quiserem aproveitar será de grande utilidade,
e, por isso e não por outro mot ivo (que só Deus é verdade i ra
testemunha do meu zelo para com o próximo), digo que a maior parte
destas obs t ruções procederam de beberem aguardente de cana
continuadamente e com excesso, pois desta bebida continuada se
formam, e, depois delas formadas, passam a hidropisias, e destas se
s e g u e a m o r t e . Ε os que a não c o n t i n u a m com e x c e s s o não
experimentam obstruções, sendo trabalhadores, mas nunca terão boas
cores, nem boa vontade de comer e experimentarão muita secura; e,
quanto mais bebem dela, mais sede experimentam, porque parece que
uma está chamando pela outra, principalmente os que estão já tão
casados com ela que, ou ela há de estar em casa ou eles; e o pior é que
dizem os afeiçoados a ela que é maravilhosa para todos os achaques,
dizendo dela milagres, porque a não podem largar; e se algum o faz,
ou por vergonha de se ver desprezado ou porque se acaba de persuadir
que é tão prejudicial à vida, à saúde e à bolsa, vendo morrer a tantos,
a outros com o juízo perdido e a outros pobres logo tornam ao tal vício,
até que, ultimamente, perdem a vida, depois de ficarem pobres.
4. Se me fora lícito nomear a muitos que hoje vivem, assim como
falei em alguns que já faleceram, acabariam todos de se desenganarem
do que é esta bebida, e, ainda que alguns têm notícia e conhecimento de
algumas pessoas que perderam a vida por respeito dela, nem por isso se
desenganam, assim como os viciosos de outros vícios, ainda que se vejam
a espelhos muitos claros. Queira Deus acabem de conhecer que, não só
estraga a saúde e tira a vida, senão também o crédito e a fazenda, ficando
trêmulos de mãos, pés e cabeça, descorados, e outras muitas misérias,
enquanto não acabam.
5. Os escravos não podem ter número, porque, como todos são os
que a bebem, são infinitos os que morrem sem que seus senhores saibam
a causa, sendo que não morrem por outra. Falo como testemunha de
vista, e como tal advirto aos senhores deles que, quando algum lhe
adoecer, examinem bem se será procedido da tal bebida, para que se
lhe não faça a cura errada e morra sem sacramentos, que será o pior,
sobretudo.
CAPÍTULO IV Da obstrução do baço e do mesentério, seus sinais e sua cura
1. A obstrução do baço se conhece estando o doente em jejum, e,
deitado de costas com os pés encolhidos, se lhe carregará com os dedos
brandamente da parte esquerda naquele vão que medeia entre o
estômago e as costelas mendosas, junto às ditas costelas, inclinando para
a dita parte esquerda; e, se naquela parte se achar dureza e dor, será
certo estar o baço obstruído, ou mais, ou menos.
2. A obstrução do mesentério se conhece estando o doente em jejum
e, posto na dita forma, se lhe carregará com os dedos brandamente em
cima do embigo e sua circunferência, carregando mais e menos ,
mandando que o doente tome a respiração em si, nem muito, nem pouco,
em forma que a dita parte fique branda e não dura, porque, desta sorte,
razões da ponderação
se perceberá melhor com os dedos se tem dureza e se é grande ou pequena;
e também se verá se naquela parte tem alguma palpitação fora do natural,
porque a natural é a mesma que tem as artérias nas mais partes do corpo,
e a preternatural é indício certo de haver obstrução na artéria celíaca e
seus ramos, e nas veias meseraicas ou mesentéricas; e, segundo a maior
ou menor palpitação fora do natural, com a maior ou menor dureza, ou
no mesmo embigo e sua circunferência, ou para alguma parte dele, assim
será a obstrução maior ou menor.
3. Nota. Que a maior ou menor palpitação não é tanto perigosa, como
a maior dureza, principalmente sendo a dureza sem dor, carregando-lhe
que, se assim for, se pode reputar por obstrução cirrosa, como também na
do fígado ou na do embigo, ou em algum lado dele, e, como tal, dificultosa
de curar, por não ser fácil obedecer aos remédios e por estarem os humores
muito coagulados, duros, frios e inobedientes aos remédios, que pelo tempo
adiante vêm a matar ao enfermo, principalmente não obedecendo nada, mas,
antes, indo a mais; sendo assim, ainda que se entenda é perigosa e que não
obedecerá, sempre se lhe devem aplicar os remédios, recomendando muito
que faça o exercício que puder e trate da obstrução com mais cuidado, antes
que as vias ou canais se obstruam de todo e, de todo, pare a circulação do
sangue e mais líquidos naquela parte e lhe comece a inchar todo o ventre e
os pés; pois, tanto que se põem nestes termos, não podem os doentes fazer
nenhum exercício, nem os remédios obram nada, por acharem os canais
impedidos, por cuja causa vêm a morrer, como tenho visto morrer muitos,
de que apontarei algumas observações.
CAPÍTULO V De como se deve curar a obstrução do baço e do mesentério
1. Conhecidas estas obstruções pelos sinais que ficam apontados,
se curarão não do mesmo modo que a do fígado, mas com a diferença
seguinte: o cozimento desobstruente se fará das mesmas raízes que
ficam ditas, acrescentando-se mais da raiz de capeba, sem receio,
porque nestas obstruções não podemos temer que a tal raiz, por
obstrução cirrosa
o e x e r c í c i o é α melhor âncora para salvar os obstrutos
quente, faça calor ou esquente o enfermo, como na do fígado; além
disto, o cozimento se poderá purificar ao fogo com mel de pau ou
lançado todas as vezes que o doente tomar a mezinha depois de
quente, lançando-lhe duas ou três colheres em cada porção, que será
de seis onças, mexendo com uma colher muito bem, e se tome quente,
duas vezes ao dia, em jejum e antes do sol posto um bom pedaço.
Este dito mel se lançará em lugar de açúcar, pois nestas obstruções
lhe leva muito grande vantagem; e, em falta dele , servirá o de
Portugal, sendo do melhor, tomando primeiro que tudo os vomitôrios
que forem necessários.
2. Os vomitórios de tártaro se devem aplicar nestas obstruções assim e
da mesma forma que tenho dito na do fígado, e alguns mais interpolados no
meio dos desobstruentes, havendo alguns sinais, ainda que poucos, de haver
enchimento no estômago, porque nunca os obstrutos fazem bons cozimentos;
e, no mais, se observará o mesmo método em preparar e purgar como fica
referido, com tal condição que as purgas devem ser mais fortes e mais
próprias para arrancar os humores frios de que estas se formam, como são
as de resina de batata e de pós cornaquinos verdadeiros, as quais se darão
em mais ou menos quantidade, respeitando o humor que estiver preparado,
a idade do enfermo, o temperamento dele, as forças e a necessidade ou
grandeza do mal, que a tudo se deve atender com muita aplicação e cuidado.
3. A maior quantidade a que se pode estender o peso das purgas
de resina é uma oitava, e também se podem dar de meia e de três
quartos, quando o doente estiver com poucos dias desobstruente; as
de pós cornaquinos se devem procurar que sejam dos verdadeiros, e
o peso a que se pode estender é de uma oitava até oitava e meia; e são
estas purgas maravilhosas em todas as obstruções.
4. Nota. Que algumas vezes acontece, principalmente sendo estas
obstruções antigas, esquentarem-se os doentes, como é terem alguma febre
e tanto calor nas costas que, dizem eles, podem assar ovos nelas, e com ânsia
no ventre; ao que muitos professores tenho visto aplicar soros de leite,
frangos, tisanas etc., parecendo-lhes que estes calores provêm de causa quente;
e, na minha opinião, é engano, porque não procedem senão da mesma causa
purgas na obstrução do
baço devem s e r mais f o r t e s
que na do fígado
peso das purgas de r e s ina e de
pós cornaquinos
engano de calores
fria de que procedem as obstruções, e a razão é por estarem os canais obstrutos
e não ter passagem livre, assim, a circulação do sangue, como as dos mais
líquidos; e daqui se levantam vapores, que causam a dita febre e os ditos
calores que tanto afligem alguns enfermos, e, por estarem estagnados e
encrassados os humores frios naqueles vasos de que procedem os tais calores
preternaturais, estes se desvanecem não com os ditos soros, frangos ou
tisanas, que estes acrescentarão mais causa pela natureza fria e úmida de
que constam, mas sim se remediarão com os desobstruentes que ficam
referidos, e, logo, com purga de resina, para diminuir a maior carga de
humores que são a causa, porque, diminuída ela, já o doente ficará com mais
alívio, como a mim me tem sucedido e adiante mostrarei nas observações; e,
se alguém tiver receio de purgar neste caso e quiser temperar o doente, sendo
os calores demasiados, o poderá fazer com os frangos que ficam ditos na
obstrução do fígado, ou com algumas emulsões, e, de nenhum modo, com
soros de leite, ainda que sejam medicados, nem com tisanas ou banhos de
canoa, ou de água corrente, de que muitos têm usado com pouco ou nenhum
fruto, pois, desta sorte, estarão a curar as obstruções um ano e dois, e sem
nunca sararem.
5. Se o doente tomar os ditos frangos, advirto que não sejam
continuados por muito tempo, salvo se for de natureza seca, que, neste
caso, os continuará por mais algum, para se temperar e umedecer, que
em naturezas ressecadas é preciso, e, depois que se achar mais
temperado e úmido, então se purgará com a dita purga de resina em
diminuta quantidade, para não fatigar ao enfermo; e, descansando um
ou dois dias, se continuarão os desobstruentes, ou se purgará com meia
oitava de pós comaquinos verdadeiros, ou ad summum três quartos, e
assim se irá prosseguindo a cura, como tenho dito; e também se poderá
umedecer e nutrir com leite bebido, assim que sair do animal, sendo
vaca, cabra ou burra.
6. Depois que o doente estiver purgado uma ou duas vezes, poderá
beber de ordinário água cozida com raízes de capeba, que, por ser amargosa,
não será muito cozida a primeira; e, depois que já estiver costumado a bebê-
la, se cozerá mais, de sorte que fique alambreada, e, ainda que o doente a
frangos e emulsões
um ano e dois, sem nunca sararem
n a t u r e z a s e c a ou r e s s e c a d a
água de raiz de capeba para beber de ordinário
ache amargosa, tenha paciência, pela grande utilidade que se lhe segue, e não a
beba com açúcar, se de algum modo puder passar sem ele, porque logo se
acostumará, pois com ele será de menos proveito.
7. Se a obstrução for grande, ou o doente quiser sarar mais
brevemente, pode lançar na água de capeba, quando a quiser beber, cinco
ou seis pingas de espírito de ferrugem, ou de cocleária para cada vez,
pois é singular descoagulante, ou, em sua falta, as ditas pingas de tintura
Martis, que, sendo a dita água de capeba admirável para ver circular o
sangue e mais líquidos, podendo o doente bebê-la com o dito espírito,
será um grande remédio desobstruente; e não havendo a raiz de capeba
por não ser parte aonde a haja, poderá o doente beber água cozida com
raízes de sapé, um molho para cada um dos cozimentos, e, na falta desta,
será cozida com raízes de espargos e grama com algum dos ditos
espíritos; mas a de capeba leva a palma a todas e depois dela a de sapé,
e muito mais por estarem no seu natural.
8. Estando o doente já purgado uma ou duas vezes, poderá usar da
fomentação que fica dita na obstrução do fígado, acrescentando-lhe meia
cabeça de alho ou alguns dentes, conforme forem as mais coisas; e, feito
o ungüento, se fomentará a obstrução do baço ou do mesentério, todos
os dias à noite, pondo-lhe por cima uma folha de capeba passada pelo
fogo, ou de papel; e se a dureza for grande, será melhor que tudo um
pedaço de baço de boi ou de vaca, rachado ao meio e posto quente ao
fogo; e, se for aonde não haja o picão, se faça o ungüento com as mais
coisas de cebolas brancas, banha de porco, alhos, que agora acrescento,
e alguns dos óleos que ficam ditos na dita obstrução, ou, em sua falta,
com azeite doce, que o tal ungüento é o de que comumente tenho usado
com admirável sucesso; porque, ao compasso que os desobstruentes e
purgas vão obrando, vai esta fomentação desfazendo a dureza e a
palpitação, sendo no embigo; e, nos dias em que tomar os desobstruentes,
tomará ajudas purgativas das que ficam ditas no volume 1, página 253,
todos os dias à noite, ou ao menos um dia e outro não.
9. No tempo que o doente tomar os desobstruentes, fará bom exercício,
não sendo, porém, com demasia, mas sempre será maior o desta obstrução
espírito de ferrugem e
tintura martis
fomentação
ajudas purgativas
que o da do fígado; e advirtam todos que se não cansem, nem gastem o
tempo ou dinheiro em quererem curar obstruções, sejam em qualquer parte
que forem, sem o doente fazer exercício, pois faz os proveitos que se diz e
outros muitos, ou use da receita na miscelânea.
10. Achando-se o doente já sem queixa alguma, se o cirurgião achar
que tem ainda alguma relíquia das queixas, se não empenhará a discutir
todas as ditas relíquias, salvo se o doente as quiser acabar de extinguir,
porque, no caso que não queira ou não possa, a natureza as poderá acabar
de consumir, sendo, porém, ajudada de bom regimento e exercício, e
bebendo água, de ordinário cozida com raiz de capeba ou, por outro
nome no Rio de Janeiro, pariparoba, que, desta sorte, poderão esperar
com bom fundamento que as relíquias se acabem e fique o doente seguro;
e podem beber a tal água pelo tempo que quiserem, ainda que seja sem
regimento, tomando algumas ajudas por dias interpolados, para que a
natureza se vá costumando ao natural.
11. Eu conheci um homem, morador no Sabará, por nome Manuel
Gomes Soares, e por apelido o Paciência, que, indo eu a sua casa, pedi água
para beber, e, trazendo o portador um copo dela alambreada, lhe disse seu
senhor fosse buscar outra, que aquela era particularmente sua; e disse então
que aquela água era cozida com raízes de capeba e que a ela devia grandes
obrigações, porque, curando-o o licenciado João da Rosa, húngaro, de uma
obstrução e de uma oftalmia mui grande em ambos os olhos, lhe aconselhara,
por fim, que fosse bebendo daquela água o mais tempo que pudesse, para
ficar de todo são; e que havia já dois anos que a bebia, pela grande afeição
com que lhe ficara e que nunca bebera de outra, e por isto o vi disposto,
gordo e bem rosado.
12. Depois que o doente acabar de tomar os medicamentos, observará
os preceitos seguintes, por espaço de dois meses ou ao menos por
cinqüenta dias, bebendo sempre a dita água: não molhará o corpo, nem
trará os pés úmidos, nem enxugará camisa no corpo por nenhum caso,
se a suar, que não será mau, tirando-a logo; não comerá coisas crassas
ou de ruim digestão, nem coisa frias e úmidas, nem frutos ou frutas da
não s e gas te tempo, nem dinheiro em curar obs t ruções sem exercício
exemplo
p r e c e i t o s que devem guardar invio lavelmente os e n f e r m o s d e s t a e n f e r m i d a d e
terra, salvo, por necessidade, alguma banana de São Tomé assada; fuja
de andar em jejum e de mulher, porque lhe fará gravíssimos danos.
13. Por este modo curativo se dará fim a estas curas em dois até
três meses, e, quando a causa seja muito antiga ou as obstruções sejam
muito grandes, tendo o doente bom regimento, poderão chegar quando
muito a quatro, e não a um ano e a dois, como tenho visto a bons
professores; mas estes usam de desobstruentes mis turados com
purgantes e eu nunca tal usei, nem usarei, nem aconselho tal se use,
porque os desobstruentes purgativos agravam sendo fortes e, sendo
brandos, ainda que causem menos gravação, também não têm fortaleza
para fazerem destacar os humores de que elas se formam, por serem
de sua natureza pegajosos e frios; e muito mais não sendo com boa
preparação neles, o que digo pela experiência assim me ter ensinado,
pois, aonde esta fala, emudecem todas as autoridades; e, demais, que
os autores que até agora escreveram não sabiam deste clima das Minas,
nem esta matéria de obstruções se acha muito adiantada neles.
14. Do que tenho visto e observado nelas, apontarei algumas
observações para melhor clareza e luz dos principiantes, quanto o tempo
mo permitir, ainda que falto deste e do mais que em si têm os escritores, o
que tudo a mim me falta; e não sou de parecer se use pílulas de aço, por
ter visto delas ruins sucessos a alguns, e a outros muito pouco proveito,
ainda que o aço seja bem preparado, nem tal remédio usei nunca, por
saber que os que ficam referidos são mais seguros.
Advertência muito necessária
1. Antes que dê princípio às observações, quero advertir que, das
raízes de capeba de que falo é da verdadeira, e desta há grande cópia em
Ribeirão Abaixo, comarca da Vila do Carmo, no Gama, na Guarapiranga
e em toda a comarca da Vila Real do Sabará, e em algumas partes mais, e
é tão singular esta raiz que tem as virtudes seguintes:
2. Não sei que haja raiz mais desobstruente, nem mais vulnerária,
nem que mais promova a circulação do sangue e mais líquidos, nem
tempo que poderá levar
e s t a cu ra
um ano e dois
aonde f a l a a e x p e r i ê n c i a ,
emudecem as a u t o r i d a d e s
que mais purifique os humores, liquidando-os e desfazendo apostemas
internos; e, sendo cozida com um bocado de raiz de butua, ainda
melhor os desfará, que também há nestas Minas grande abundância,
e a mais preta é a melhor, por cuja causa é admirável bebida nas
quedas, por grandes que sejam, e desfaz também os inchaços ou
contusões por fora do corpo, sendo fomentados por algum espaço de
tempo com água bem quente deste cozimento, com uma pouca de
a g u a r d e n t e do R e i n o , e pondo- lhe panos m o l h a d o s as v e z e s
necessárias, que tudo isto me tem ensinado a experiência que dela
tenho e das mais ervas e raízes de que falo neste volume. As folhas
têm diferente virtude, porque são adstringentes e se dá o seu sumo
com grande aprove i tamento aos que dei tam sangue pela boca ,
adoçado com uns pós de açúcar em pouca quantidade.
3. Vejam agora os que costumam receitar para as boticas tudo
quanto lhes é necessário para curar os seus doentes, sem atenderem a
gastos, principalmente dos pobres, e muitas vezes baldados, com
quanta maior razão e virtude obrarão os que estão no seu clima e
natural com toda a sua força e vigor? Se obrarão melhor estes ou os
que vêm das bot icas de Por tugal , passando a l inha, onde tudo
degenera, depois às boticas dos povoados desta América e delas as
destas Minas, onde, em umas e outras, estarão anos e anos? Julguem
os afeiçoados destes e pouco curiosos dos outros, quanta diferença
irá, se será como de vivo a pintado; nem estes poderão negar que há
muitos remédios, assim vegetáveis, como raízes, minerais e animais,
a quem n o s s o S e n h o r deu v i r t udes e x c e l e n t e s ( u m a s , que j á
descobriram, outras, que se vão descobrindo e se descobrirão ainda)
para remédio de muitas enfermidades que eram trabalhosas de curar
e hoje fáceis, como se não pode negar e se verá em muitas partes deste
volume.
4. Advirto mais que, se houver algum enfermo desobstrução que não
possa tomar, ou por medo ou por fraqueza, alguma das purgas de resina ou
de pós cornaquinos, poderá tomar alguma mais branda, interpolada, como
são os trociscos de Fioravanto, na forma que fica dito na obstrução do fígado,
d e s f a z a p o s t e m a s i n t e r n o s i n f a l i ve lmen te , e s t a n d o no princípio
t ambém d e s f a z a p o s t e m a s e x t e r n o s e c o n t u s õ e s
sangue pela boca
s e por medo ou por fraqueza não puder tomar purgas fo r t e s , tomará t rociscos de fioravanto
ou outra semelhante, como a cada um lhe parecer melhor; mas sempre devem
propender para as que ficam ditas, se quiserem sarar mais breve e
seguramente, porque só os medicamentos vigorosos arrancam e lançam fora
maravilhosamente os humores frios às postas, que metem medo, e os brandos
não têm fortaleza que façam isto, ainda que se esporeiem com diagrídio,
que, na minha opinião, não é o melhor. O contrário disto é engano e diga
cada um o que quiser.
5. Pelo modo que fica referido, tenho curado infinitas obstruções
sempre com bom sucesso, e também tenho curado bastantes no baço
e no mesentério com os remédios seguintes; mas era em escravos ou
homens robustos.
6. U m a de ra iz de capeba , sendo grande , ou duas , sendo
pequenas, se cozam em dois frascos de água até ficar em um e meio,
para o que se lançará o frasco e meio na vasilha em que há de ferver;
estando com as raízes dentro, se lhe meterá um pau e se lhe porá uma
marca pela medida da água, e depois se lhe lançará o meio frasco,
que há de diminuir, e ferverá até ficar na dita medida, ou menos
alguma coisa; estando assim, se tirem as raízes, e, no dito cozimento,
se lance uma onça de batata em roda e outra de jalapa, também em
roda; tudo pisado que fique grosso, se ponha a ferver em tacho bem
limpo, ou panela vidrada, que será melhor, até que se gaste a terça
parte; então, se lhe lancem duas oitavas de sene, com que dê uma
leve fervura, e, tirado do fogo, se coe e torne a ele a purificar com
sete ou oito onças de mel de pau, dando algumas fervuras, e, sendo
necessário coado, se coe e guarde para o uso. Estando o cozimento de
todo feito, se poderá guardar, e, quando o doente quiser tomar a sua
porção, então se poderá lançar até duas colheres do dito mel, estando
a dita porção quente para se mexer e beber.
7. Bem sei que quem entender da farmacêutica que há de condenar
o mandar ferver a batata e jalapa, por serem resinosas, de que se não
pode extrair a resina por este meio, que é a virtude purgativa, mas a
mim me parece que, como são simples mucilaginosos, se lhe extrai a
tal virtude e será bastante para ficar purgativo, quando se lhe não extrai
as purgas fo r t e s lançam
os humores frios às postas
a v i r tude muci laginosa s e e x t r a i no
coz imen to para f i c a r purgat ivo
da resinosa alguma parte; mas o que posso afirmar é que o tenho feito
muitas vezes e que faz purgar muito bem, produzindo grandes efeitos,
e o vi usar a um médico em muitos enfermos, o qual o tinha em segredo
para curar os opilados que eram robustos, e é, sem dúvida, grande
remédio, porque leva a água de capeba e o mel de pau, que ambos são
grandes desobstruentes; e, no caso que não haja batata, se fará o
cozimento com a jalapa e o sene somente.
8. Deste remédio se dará ao doente, pela manhã em jejum e de
tarde antes do sol posto, de duas onças até três, morno, o que se
executará conforme a obra que fizer, porque, se obrar bem, tomará
em jejum somente, e, se quiser tomar duas vezes cada dia, será menos
quantidade, e assim se continuará até acabar o cozimento; e querendo-
se fazer mais, se fará pelo mesmo modo, que, com este remédio,
lançará o doente frialdades em grande quantidade; pode andar de pé
fazendo seu exercício, mas não se molhará, nem andará por lugares
úmidos, e, se suar a camisa, será obrigado a tirá-la logo; beberá de
ordinário água cozida com raiz de capeba, e não será muito cozida,
porque, tanto esta água como o dito remédio são quentes e não convém
que o sejam muito; e, ainda que o doente sinta algum calor, veja se
pode passar tomando banhos por baixo, sem largar o tal remédio, pois
daí lhe resulta muito proveito; mas não podendo passar, continuando
o remédio e bebendo a tal água, largue-a e beba água comum morna,
e a outra a poderá beber fria a toda a hora, se a beber.
9. Também tenho curado algumas obstruções destas com urina
de menino macho, sendo fresca e não antiga, ou de homem sadio
misturada com mel de pau, a saber: três partes de urina e uma de
mel, tudo bem misturado e quente se tome pela manhã em jejum e de
tarde, em quantidade de três até quatro onças por cada vez, bebendo
também água cozida com raiz de capeba, e fazendo exercíc io e
tomando ajudas purgativas, ou todos os dias, ou um dia e outro não,
por este remédio não ser purgativo. Estes dois remédios acima são
remédios de pobres, ou também se poderá fazer outro de pouco custo,
que eu tenho feito muitas vezes com bom sucesso, e é o seguinte: água
α água de capeba e o mel de pau são grandes d e s o b s t r u e n t e s
urina com mel de pau c u r a opilados
remédios de pobres
de raiz de capeba bem cozida se lhe lance, de mel de pau, duas ou
três colheres em quatro ou cinco onças do tal cozimento quente, e,
mexido, se tome pela ordem acima; e advirto que todos os doentes
que tomarem remédios purgantes, ainda que sejam ajudas, tenham
mui to cuidado de tomarem seus banhos por ba ixo , depois que
acabarem de purgar, e também todos os que se sentirem com dores
de c a b e ç a ou m o i m e n t o do c o r p o , por não c a í r e m na g rave
enfermidade a que chamam corrupção-do-bicho, tão perigosa e tão
fácil de curar, como se verá no seu tratado. Ε o mais a respeito destas obstruções se verá em algumas observações que adiante escreverei,
aonde se alcançará alguma doutrina e circunstâncias que atrás não
disse. A urina acima há de ser fresca e não de muitas horas.
Para curar obstruções em mulheres efazer-lhe vir a sua conjunção,
quero escrever as observações seguintes
Observação em uma boa escrava do alferes João Rodrigues Cortez
10. Morava este alferes na Vila Real do Sabará, em o arraial do
capitão João de Sousa Neto, e tinha a dita escrava com febre contínua,
dores muito grandes no embigo e por todo o ventre, e fastio grande, e
estava muito magra e seca; chamou um médico, o qual lhe assistiu e
deu variedade de remédios sem proveito e, por fim, lhe aplicou tomasse
banhos de água fria em canoa, metendo todo o corpo nela, ficando só a
cabeça de fora, para temperar e refrescar aquele grande incêndio de
febre e umedecer a secura e magreza que tinha no corpo; e, tendo medo
de lhe aplicar os tais banhos, me chamou, e, vendo a doente em jejum,
apalpando-lhe o ventre, lhe achei uma obstrução no mesentério muito
boa, e alguma no baço, tendo no embigo e sua circunferência uma
grande palpitação; nestes termos, entendi que a febre, as dores, fastio
e magreza lhe procediam das tais obstruções , e muito mais me
certifiquei, perguntando se lhe vinha a sua conjunção, e, dizendo-me
que não, tratei da obstrução dando-lhe um vomitório pequeno, com
a água de c a p e b a com mel de pau
cura opi lados
quem t o m a r r e m é d i o s
pu rgan t e s , no fim de l e s t o m e
banhos
que obrou bem, e, dando-lhe os desobstruentes e purgas de rom, como
fica referido no número 16 deste livro, se lhe extinguiu a febre e todas
as mais queixas, ficando inteiramente sã e vindo-lhe a conjunção
direitamente. É verdade que, como quando tomou uma purga de meia
oitava de rom, pisado de fresco, lhe deram tanta água fria que fez uma
obra extraordinária, e estava expirando se a não visito no mesmo dia
de manhã e lhe acudo com confortantes ao estômago, de marmelada,
vinho e pós de canela, e, pela boca, colheres de caldo-de-galinha
temperado com pós de pedra-bazar e umas pingas de vinho; e os
emplastos do es tômago, estando frios, os renovava, com que se
suspendeu a operação e ficou livre de todas as queixas em poucos dias.
Outra observação fiz em uma preta de um sapateiro por nome Hilário
Simões, morador na dita vila, no arraial da Igreja Velha, a qual, estando
como quem tinha o juízo perdido, com dores insuportáveis por lhe não vir a
conjunção, lhe dei um frasco do medicamento desobstruente e uma purga
de rom, com o que lhe veio o sangue e ficou sã.
Nesta enferma houve uma grande dúvida, porque, passando um médico,
o chamou o senhor da escrava, e a mandava sangrar três ou quatro vezes
cada dia, por ver os grandes terremotos que com as dores fazia, e que, se
assim o não fizessem, morria; e, chegando eu depois, respondi que, se a
sangrassem, teria uma doença dilatada, quando não fosse perigosa, e, se se
não sangrasse e se curasse por meu voto, lhe faria vir a conjunção sem
sangrias, o que disse por ter experimentado o remédio desobstruente que
fica referido em outras muitas enfermas com bom sucesso. E, estando o tal
Hilário Simões irresoluto no que faria, se seguiria a minha opinião ou a do
médico, se resolveu, em conclusão, em seguir a minha.
Fiz logo um frasco do remédio desobstruente que fica dito na cura das
obstruções do fígado no número 4 e, tomando-o pela manhã e tarde, se lhe
foram diminuindo as dores e o sangue lhe veio ao terceiro dia; e tanto que se
lhe acabou o mênstruo, que não correu muito, passados alguns dias lhe dei
uma purga de rom e ficou sã, bebendo ambas estas enfermas água, de
ordinário cozida com raízes de capeba, que, para desembaraçar o sangue
mensal, tem particular virtude.
CAPÍTULO VI De observações nas obstruções do baço e do mesentério
Observação I De uma hidropisia em um religioso de São Francisco, de que
escapou milagrosamente, não bebendo água de nenhuma qualidade no discurso de quarenta dias, comendo seco e urinando muito
1. Na Vila Real do Sabará, em casa de Antônio Gomes, marido de uma
mulher que cozia pão, moradores no arraial do capitão João de Sousa Neto,
estava um religioso de São Francisco por seu hóspede, de idade, pouco mais
ou menos, de 25 anos, ao qual não sei por que causa começou a inchar o
ventre e a ressecar-se-lhe a câmera, de tal modo que nem com ajudas, nem
sem elas podia evacuar coisa alguma. Chamaram-me para o ver e ao
licenciado João da Rosa, húngaro, e lhe achamos alguma obstrução no baço
e no mesentério, sem embargo que mal se podia perceber pela grande
inchação com que estava. Aplicamos-lhe algumas ajudas brandas, por dizer
que tinha usado das fortes, e com elas não obrou nada; aplicamos-lhe outras
mais fortes, metendo no cozimento folhas de sene e depois azeite-de-mamona,
por ser purgativo e laxante, e também óleos de amêndoas doces, com as
quais obrava coisa mui pouca, e o que saía eram umas bolinhas redondas,
duras e requeimadas; tomou alguns xaropes laxantes, tomou purgas e
apózemos desobstruentes; com tudo isto fazia muito limitada obra por curso
e na enfermidade se não via melhora alguma, antes, cada vez, ia crescendo
mais a inchação, pela muita água que bebia, ainda que algumas vezes, dizia
ele, que a bebia cozida com raiz de capeba, mas o mais do tempo a bebia da
fonte, por estar já de todo desconfiado de remédio, não podendo obrar senão
com puros gritos, coisa mui limitada e duríssima. Nesta consternação não
havia remédio, senão o da morte, no que estava conforme e desenganado,
tendo o ventre tão crescido e disforme que, andando de pé muito devagar,
parecia um monstro, metendo medo a quem o via; e para se saber cabalmente
o que seria esta inchação, desfez o seu cordão, e, pondo-o singelo no ventre,
o atava pelas pontas. Neste último aperto, como o dito húngaro lhe não
cordão franciscano
desfeito pelas pontas
assistia havia muitos tempos, e eu passava todos os dias pela sua porta a ver
outros doentes, o via também a ele lastimosamente, ao qual fui aconselhando
que ainda tinha um remédio e que era o mais equivalente para aquela
enfermidade que quantos tinha o mundo, e que, se o pusesse por obra, poderia
nosso Senhor dar-lhe saúde com muitos anos de vida, e rompendo no
remédio, que era não beber água pouca, nem muita, por discurso de trinta
ou quarenta dias, e que tudo quanto comesse havia de ser assado; respondeu
que mais depressa acabaria os dias de sua vida, que bem poucos seriam, ao
que acudi, dizendo que o primeiro dia, o segundo e até o terceiro, que
experimentaria grande secura e vontade de beber, a qual sempre teve grande,
mas que, passado o terceiro, não sentiria a falta de água e urinaria bem, e
comeria o comer seco, assim pão, como biscoito, carne, galinha, frango, etc,
com boa vontade. Levou-me esta diligência alguns dias para o convencer,
dizendo-lhe que, visto estar em tão manifesto perigo, experimentasse o que
eu lhe dizia e veria se era certo; ultimamente, ajudado do dono da casa e de
outras pessoas, acabei com ele a fazer a tal experiência, recomendando-lhe
muito não fraqueasse na tal empresa, e foi caso prodigioso, porque tudo
quanto lhe disse experimentou.
2. Nos primeiros dois dias experimentou grande necessidade de
água, mas como tinha quem o confortava e vigiava por ordem minha,
custou-lhe muito; ao terceiro dia, já lhe custou menos, porque até a este
lhe concedi que comesse galinha cozida e bebesse o seu caldo ao jantar
somente, e os mais comeres, tudo seco; ao quarto, começou a comer seco,
almoço, jantar e ceia, e neste dia já experimentou menos sede, urinando
muito bem; ao quinto, já pouco lhe lembrava o beber água; ao sexto,
nada. Em um deles começou a cursar e, daí por diante, comendo sempre
seco, carne de vaca, galinha, frango e franga com biscoito bem seco,
começou a ver melhoras, abaixando-se-lhe o ventre e fazendo melhor
exercício, de tal modo que, ao compasso que iam passando os dias, iam
as melhoras em aumento, até que, no discurso de quarenta dias, ficou de
todo são e com o corpo em sua forma natural; e tanto que eu o vi neste
termos, lhe disse que despejasse as Minas, e assim o executou.
Observação II De uma obstrução no mesentério
1. Na Vila Real do Sabará curei a um molecão de Manuel da Silva
Gramacho, no ano de 1712, de uma obstrução no mesentério, não muito
grande, mas fazia-o cansar constantemente, porque todo o corpo, ou seus
canais, tinha bem obstrutos, o que se manifestava pelos olhos e língua, porque
tudo tinha bastantemente branco, por cuja causa não servia bem a seu senhor,
sendo que era bom escravo; e, pedindo-me o dito seu senhor que lhe aplicasse
algum remédio de pobre, porque lhe era muito necessário para vender a sua
hortaliça, de que vivia, e que havia de andar na rua, lhe ordenei bebesse
todos os dias da sua própria urina, por não haver outro na casa mais sadio,
misturada com mel de pau, duas vezes cada dia, sempre morna, e bebesse
água cozida com raiz de capeba e tomasse algumas ajudas purgativas; assim
o executou, fazendo exercício, comendo carne assada e farinha seca, com os
quais remédios, pelo discurso de dois meses, pouco mais ou menos, veio a
sarar sem purga, nem mais coisa alguma, de que o dito seu senhor, por muitas
vezes, me deu o agradecimento de cura tão barata.
2. A outras muitas pessoas curei com este mesmo remédio, de
quem me não lembram os nomes, porque se têm passado muitos anos.
Do remédio de batata e jalapa que fica dito pudera escrever muitas
observações, se me lembrassem também os nomes das pessoas, mas
só digo que lhe chamava remédio particular, o qual era buscado de
muitas pessoas pela facilidade com que curava; da obra que fazia, do
pouco que custava, andando de pé, se admiravam as gentes.
Observação III De uma obstrução no mesentério e na artéria ilíaca,
ou celíaca, em Domingos Francisco de Oliveira
1. No ano de 1729, morando eu nesta minha fazenda de São Miguel
do Bom Retiro, de Itacolomi, veio ter comigo Domingos Francisco de
Oliveira, morador meu vizinho rio abaixo no seu engenho, e me disse
que, havia perto de dois anos, se andava curando de uma obstrução;
que, no princípio da cura, chamara um médico e que alguns meses lhe
assistira na Vila do Carmo, para onde ele dito se tinha mudado,
deixando a sua casa para melhor ser assistido, porque se achava com
grandes calores, aonde tomara vários remédios frescos, e que não tivera
com eles melhora alguma, antes se achara mais esquentado; e, como
era de pouca paciência, se mudara para o arraial da Passagem e chamara
outro médico, o qual lhe assistira dois meses, pouco mais ou menos,
refrescando-o pelos grandes calores com que se achava e, não sentindo
melhoras, chamara uma castelhana curadeira, ou, para melhor dizer,
comedeira, com quem ajustara dar-lhe, por cada dia, uma oitava de
ouro ficando são, a qual lhe tinha assistido perto de dois meses e não
achara melhora alguma com as suas mezinhas, antes com pioras; e, como
tinha gasto muito ouro e padecido gravíssimas moléstias, me pediu o
curasse e lhe pedisse da cura o que quisesse, pois não queria que outro
cirurgião ou médico o curasse mais; ao que respondi que, à vista de tão
bons professores lhe terem assistido por tantos tempos, pouco poderia
eu fazer, ou nada; e instando com toda a força, dizendo que não reparava
em ouro, lhe disse que viesse no outro dia, em jejum, para o apalpar, e
que veríamos o estado em que estava a obstrução, e, se na minha mão
estivesse o remédio, lho daria.
2. Veio no segundo dia e lhe achei uma grande obstrução no mesentério
e com grande palpitação nas suas veias e na artéria ilíaca, e também tinha
alguma obstrução no baço, e me disse tinha tão grandes calores pelos lombos
que bem podia neles assar ovos, tendo também alguma febre; e dizendo-lhe
a enfermidade que tinha, me disse que, ficando são, daria uma libra de ouro,
ou, por outro nome, um arrátel, ao que não pus dúvida, sendo os
medicamentos da botica e os mais que eu não tivesse, à sua custa, no que
ficamos ajustados e entrei a curá-lo na forma seguinte:
3. Não fazendo caso dos calores, lhe dei um vomitório de tártaro
emético de seis grãos de peso, com que fez muito boa operação, por uma e
por outra via; e, descansando um dia, começou a tomar o medicamento
desobstruente que fica dito na cura destas obstruções; e, depois que tomou
um frasco dele, lhe dei uma purga solutiva de resina de batata com uma
oitava de peso, por estar com forças e em boa idade, com a qual fez uma
copiosa obra; e, descansando dois dias, se achou com menos calores, por
estar a natureza com menos carga de humores, os quais calores eram a maior
queixa que o atormentava; e, por isso, eu dizia que estes tais se não curavam
com leites, banhos ou tisanas, mas sim com preparar os humores e lançá-los
fora, pois são a causa material dos tais calores preternaturais. No fim dos
ditos dois dias tornou a continuar outro frasco do medicamento
desobstruente, que cada um lhe durava seis dias, e no fim dele o tornei a
purgar com outro vomitório do mesmo tártaro, por ter sinais de ter algum
enchimento ainda no estômago, com que fez boa obra e ficou com melhoras
nos calores, que antecedentemente experimentava; e, descansando dois dias,
tornou a tomar meio frasco do medicamento desobstruente, e, acabado, o
purguei com três quartos de peso de resina, com que fez boa obra; e, depois
disto, o mandei descansar alguns dias para lhe ver a obstrução em jejum, a
qual achei muito diminuída, com menos dureza e menos palpitação. Foi
continuando do mesmo modo, desobstruindo e purgando, com o que ia
passando com grandes alívios, advertindo que, depois que tomou o primeiro
vomitório e deu princípio a tomar os primeiros desobstruentes, lhe mandei
beber água pouco cozida com raiz de capeba; e, depois que tomou a segunda
purga de resina e se achou melhor dos calores e mais descarregado do corpo,
lhe ordenei mandasse cozer a água de capeba mais e lhe fiz em minha casa a
fomentação que fica referida, para ele usar dela em sua casa, fomentando o
embigo e sua circunferência e a região do baço, todos os dias à noite, com ela
quente; e lhe ordenei mais que, no tempo que tomasse os desobstruentes,
tomasse também ajudas purgativas, um dia e outro não.
4. Na dita forma foi continuando com gosto de ambos e admiração de
muitos, por ele publicar as muitas melhoras que tinha alcançado; e,
imaginando eu que o tinha quase são, me mandou chamar um dia, dizendo
que lhe fosse acudir, porque estava para morrer, ao que respondi por um
escrito que, visto fazer desmanchos, o não curava mais, e, tornando a repetir
o aviso dizendo estava com o corpo todo inchado e que, sem dúvida, morria
se lhe não acudisse, fui vê-lo e o achei inchado desde a cara até os pés, de tal
calores s e não
curavam com
leites, banhos,
frangos ou tisanas
inchação de todo o corpo
e bolsa dos tes t ículos
modo que a camisa lhe não chegava no pescoço, o peito fazia cova onde se
lhe carregava com o dedo, o ventre bem crescido, a bolsa dos testículos
bastantemente inchada e luzente e, finalmente, as pernas e os pés muito bem
inchados, cedendo ao tato, ou fazendo cova, carregando-lhe; andava de pé,
mas mui devagar, porque a bolsa dos testículos lho impedia, andando com
as pernas abertas; o peso que sentia em todo o corpo e o susto com que
estava lhe faziam a enfermidade maior e mais perigosa; e, sem embargo que
nunca quis confessar a desordem que fizera, fiquei certo em que tinha feito
desmancho grande e com excesso.
5. Nestes termos dispus que logo tomasse uma oitava de pós
comaquinos, por me persuadir que ainda tinha enchimento no estômago e
em todo o corpo dos mais humores, com que fez uma extraordinária obra,
assim pela boca vomitando cóleras e venenos que a ele o pôs em admiração,
como por baixo frialdades aos pedaços e outros humores. Depois desta
grande descarga, ficou quase desinchado de todo e, no outro dia, lhe mandei
tomar umas pingas de espírito de ferrugem, lançadas na água que havia de
beber a toda a hora que quisesse, a qual havia de ser cozida, primeiro com
raiz de capeba e de salsa das hortas; e, descansando dois ou três dias, lhe
mandei tomar outra purga dos mesmos pós comaquinos, com que fez boa
obra, mas não tanta, e ficou de todo desinchado.
6. Nota. O primeiro vomitório que lhe mandei tomar foi para tirar as
cruezas da primeira região, que sempre nestas Minas abundam, pelos
mantimentos se converterem nelas pela maior parte, e, muito principalmente,
nos obstrutos, que, quase tudo quanto comem, se lhe converte em cruezas
no estômago; e com os desobstruentes preparava e diluía, ou descoagulava,
os humores, e com as purgas os lançava fora, uma e tantas vezes quantas
eram necessárias; e, desta sorte, cada dia a natureza se ia achando mais
aliviada e os calores diminuídos, pela circulação do sangue e mais líquidos
se acharem mais desembaraçados; e o inchar-lhe o corpo não só teve por
causa o desvario que teve no uso venéreo, (que depois me chegou a notícia)
como por estarem os humores muito adelgaçados com os preparantes e
pouca descarga para respeitar à grandíssima abundância deles, que tinha
adquirido em perto de dois anos que estava com esta queixa, convertendo-
pos comaquinos para o corpo todo inchado
espírito de ferrugem na água, para beber
os obstrutos , pela maior parte, tudo quanto comem se lhe converte em cruezas
se-lhe o que comia em cruezas, sem tomar mais remédios que os frescos e
algumas purguinhas brandas (respeitando os calores) aplicadas pelos dois
médicos que lhe assistiram, temendo-se que as fortes exasperassem os tais
calores. E, pela dita extraordinária obra que fez com a oitava de pós
cornaquinos, se verificou a grande abundância que ainda tinha de humores,
tendo tomado as outras purgas que ficam ditas. Depois que tomou a segunda
purga dos ditos pós cornaquinos, ficou com o corpo em sua forma natural, e,
daí por diante, lhe ordenei não bebesse de outra água, senão da que fosse
cozida com raiz de capeba e de salsa das hortas, e que, ao tempo que a quisesse
beber assim fria, lhe lançasse umas pingas de espírito de ferrugem, com a
qual urinava mais do natural, por serem as ditas raízes diuréticas e com o
espírito diuréticas e descoagulantes. Assim foi continuando e tomando
algumas ajudas purgativas para irem evacuando a natureza e regular melhor
os remédios, continuando sempre com a fomentação que fica dita no volume
1, página 300.
7. Daí a alguns dias lhe apalpei as obstruções em jejum e lhas achei
quase de todo extintas; foi continuando com a dita bebida por espaço
de vinte dias, pouco mais ou menos, ajudas e fomentações; e, passados
eles, tomou uma purga de resina de três quartos de peso, para acabar
de alimpar o corpo dos humores que estivessem diluídos e preparados,
com que ficou de todo sem cansaço, sem calores e sem queixa alguma
até o dia de hoje, tendo-se já passado três anos.
8. Das obstruções do baço e do mesentério não tenho que tratar
mais, por me não dilatar; e, quem as curar pelo modo que tenho exposto,
não poderá deixar de alcançar bons sucessos, mediante a graça divina,
como eu há tantos anos tenho alcançado, não sendo estas curas de tanta
despesa, nem de tanto tempo, como sendo curadas por outros meios,
como outros professores as curam.
9. Quem se achar em parte onde não hajam as raízes que deixo
referidas, poderá fazer o cozimento das seguintes: raízes de grama, de
funcho, de salsa, de aipo, de borragens, de alcaçus, folhas de agrimônia,
de douradinha, de avenca, de borragens, de orégãos, de nêveda, de
hissopo, todas, ou parte delas.
raízes diuréticas
10. A purga também poderá ser do modo seguinte; suposto branda,
repetir-se-á mais vezes. Recipe. No que baste do cozimento acima, altere
de sene oitava e meia, e se infunda, de agárico trociscado de fresco
meia oitava, e, coado, solte de xarope de Nicolau onça e meia, xarope
Pérsico uma onça, aromatizado com grãos, cinco de canela fina, faça-se
bebida.
Um cirurgião lanceta um bulbo de um paciente. (Gravura em madeira, anônima)