Julio Cesar Moreira - Filosofia e Teurgia no De Mysteriis ... Cesar... · da Teurgia contra todas...
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
JULIO CESAR MOREIRA
Filosofia e Teurgia no De Mysteriis de Jmblico:
Um estudo dos Livros I, II e III
MESTRADO EM FILOSOFIA
So Paulo
2013
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
JULIO CESAR MOREIRA
Filosofia e Teurgia no De Mysteriis de Jmblico:
Um estudo dos Livros I, II e III
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertao apresentada Banca Examinadora
como exigncia parcial para obteno do ttulo de
Mestre em Filosofia pela Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo, sob a orientao da Profa.
Dra. Rachel Gazolla de Andrade.
So Paulo
2013
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Banca examinadora
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AGRADECIMENTOS
Fundamentalmente minha famlia, em especial meus pais, por todo suporte,
compreenso, e amor.
No tenho como deixar de destacar o apoio de meus amigos e de minha companheira,
que entre tantas coisas, aturaram horas de conversas com Jmblico. Obrigado pela
generosidade, ateno e carinho.
PUC-SP, instituio que possibilitou a concretizao deste trabalho, e que me
proporcionou inestimveis encontros e elos de amizade. Ao Coordenador do Curso, Prof.
Edlcio Gonalves de Souza, e a todos os funcionrios do Programa, quem sempre me deram
o suporte necessrio, aliviando-me ao mximo dos fardos burocrticos. s agncias de
fomento, Capes e CNPq, pelo financiamento parcial da pesquisa.
Aos professores Marcelo Perine, Antonio Jos Romera Valverde, Silvia Saviano
Sampaio, Jeanne-Marie Gagnebin, Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, Maria Constana
Peres Pissarra, que ao longo do curso, e com suas vastas bagagens de conhecimento e suas
didticas nicas e exemplares, contriburam de forma valiosssima minha formao.
Em especial Rachel Gazzola, que me acolheu sob sua orientao e acima de tudo
depositou sua confiana e interesse nos meus esforos. Em sua sapincia conduziu-me em
uma iniciao na preciosa sabedoria da Filosofia Antiga. Obrigado pela ateno, companhia,
parceria, exemplo, e apoio.
Em meu corao jazem tantas outras pessoas, eventos e fatores que gostaria de
destacar, porm agradecer a tudo e a todos que foram imprescindveis para a elaborao deste
trabalho uma tarefa impossvel. Misteriosas so as Moiras para ns que em nossa
parcialidade somos incapazes de apreender e pontuar tudo aquilo que determina nossas
trajetrias. Sinto-me, portanto, apenas um instrumento dentre tudo o que fez este trabalho
possvel. Reverencio, enfim, a Jmblico e a toda a Tradio, que perpetuou o saber por
geraes e geraes, e humildemente peo licena para oferecer esta mnima contribuio.
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RESUMO
MOREIRA, Julio Cesar. Filosofia e Teurgia em Jmblico De Mysteriis: Um estudo dos
Livros I, II e III. 2013. 140f. Dissertao de Mestrado Pontifcia Universidade Catlica de
So Paulo, So Paulo, 2013.
Teurgia, a ao dos deuses durante os atos ritualsticos, uma prtica incorporada, na
Antiguidade tardia, pela escola filosfica de Jmblico como uma techn que conduz , ento
considerada, experincia ltima da Filosofia tornar-se como os deuses (homiosis tho) ,
influenciou e determinou o rumo de todo o Neoplatonismo subsequente, at o fim da
Academia antiga. Na obra De Mysteriis, que h muito vem sendo considerada irracional,
Jmblico, sob o pseudnimo de um sacerdote egpcio, estrutura os fundamentos filosficos da
arte tergica, abordando temas como: orculos, possesses, sonhos profticos, manifestaes
divinas em geral. A presente dissertao visa a uma reviso e releitura da obra embasada nas
recentes publicaes dos recolhidos fragmentos filosficos do autor, bem como decorrentes
estudos acadmicos. Por meio de um cuidadoso desembaraar dos fios de sua narrativa
analisam-se os trs primeiros Livros da obra, erigindo os fundamentos filosficos das
manifestaes divinas e da eficcia do ritual. Expe-se, assim, a argumentao referente a arte
tergica, evidenciando um inovador, complexo e sincrtico sistema, muito bem elaborado em
uma alta erudio filosfica de sua poca. Conclui-se a revisada leitura dos trs primeiros
Livros e seus fundamentos filosficos da Teurgia, de forma a justificar a redeno do status
depreciado da obra, apontando, ainda, uma nova avaliao e reposicionamento de Jmblico
como autor, na histria da filosofia, elemento-chave de toda uma tradio de fundamentos
filosficos sobre revelaes msticas, em diversas correntes filosficas posteriores de herana
neoplatnica, at o fim da Renascena.
Palavras-chave: Neoplatonismo, Teurgia, ritual, smbolo, ochema, phantasa.
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ABSTRACT
MOREIRA, Julio Cesar. Philosophy and Theurgy in Iamblichus De Mysteriis: A study on the
Books I, II and III. 2013. 140f. Thesis (Master Degree) Pontifcia Universidade Catlica de
So Paulo, So Paulo, 2013.
Theurgy, the action of the gods during the ritual acts, a practice incorporated, in late
Antiquity, by the philosophical school of Iamblichus as a techn which conducts to,
considered at that time, the ultimate experience of Philosophy become like the gods
(homiosis tho) , had influenced and determined the course of the entire Neoplatonism until
the end of the ancient Academy. In the work De Mysteriis, which has long been considered
irrational, Iamblichus, under the pseudonym of an Egyptian priest, structures the
philosophical foundations of the theurgic art, covering topics such as: oracles, possessions,
prophetic dreams, divine manifestations in general. The present dissertation aims at a
reassessment and rereading of the work based on recent publications of the authors collected
philosophical fragments, as well as academic studies derived from them. Through a careful
disentangling of the threads of his narrative, an analysis of the first three Books of the work is
made, erecting the philosophical foundations of divine manifestations and of the efficacy of
the ritual. It exposes thus the argumentation regarding the theurgic art, demonstrating an
innovative, complex and syncretic system, nicely elaborated in a high philosophical erudition
of his time. It concludes the revised reading of the first three Books and their philosophical
foundations of Theurgy, in order to justify the redemption of the depreciated status of the
work, pointing also to a new appraisal and repositioning of Iamblichus as a key-element
author, in the history of philosophy, to the whole tradition of philosophical foundations of
mystical revelations in various later philosophical currents of neoplatonic heritage, until the
end of the Renaissance.
Keywords: Neoplatonism, Theurgy, ritual, symbol, ochema, phantasa.
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SUMRIO
INTRODUO 8
1 JMBLICO E SEU CONTEXTO 13
1.1 O Neoplatonismo e Jmblico 19
1.2 As Contribuies de Jmblico 22
1.3 Porfrio Contra Jmblico 28
1.4 Influncias Posteriores 36
2 DE MYSTERIIS LIVRO I O HUMANO, O DIVINO E A TEURGIA 38
2.1 Gnosis do Divino 41
2.2 Os Gneros Superiores e o Bem 45
2.3 A Teurgia e a Purificao da Alma 51
2.4 O Nos na Metafsica de Jmblico 57
2.5 Symbola-Synthemata 60
3 DE MYSTERIIS LIVRO II AS MANIFESTAES DIVINAS 70
3.1 A Hierarquia Divina 71
3.1.1 Os deuses 71
3.1.2 Os arcanjos e os anjos 73
3.1.3 Os arcontes 75
3.1.4 Os damones e os heris 77
3.1.5 As almas 80
3.2 82
4 DE MYSTERIIS LIVRO III O OCHEMA, A PHANTASA E AS
ADIVINHAES 87
4.1 O Ochema: Veculo Etreo e Luminoso da Alma 87
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4.2 O Ochema no De Mysteriis: a Phantasa e a Adivinhao 95
4.3 O Descenso da Alma, o Veculo da Alma, e a Teorizao da Teurgia 98
4.4 As Adivinhaes 104
4.4.1 Os sonhos 110
4.4.2 As possesses divinas 112
4.4.2.1 Ekstsis e mana 116
4.4.3 Os orculos 119
4.4.4 Prticas privadas 122
CONCLUSO 125
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 134
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INTRODUO
A presente dissertao tem como foco temtico o filsofo Jmblico (240-325 D.C) e
sua obra De Mysteriis. O estudo de um autor que por muito encontra-se distante das
tendncias predominantes nas correntes acadmicas no deixa de ser um desafio em diversos
aspectos. A pouca importncia acadmica que se tem dado a esse filsofo apresenta, de
imediato, a escassez de bibliografia acessvel. Isso, de fato, percebe-se refletido nas
referncias bibliogrficas deste trabalho, que quase em sua totalidade de literatura
estrangeira, uma vez que a literatura nacional relativa a ele, e com algum aprofundamento
significativo, nfima, seno inexistente. Isso faz deste trabalho, provavelmente, a primeira
investigao nacional detalhada do pensamento de Jmblico.
Intrigante torna-se tal ostracismo, uma vez que, ao estudar de perto o neoplatonismo
antigo, encontra-se um apreo e estima elevadssimos pelo Filsofo, a ponto dele ser deificado
por seus pupilos e neoplatonistas sucessores, que o nomearam divino Jmblico1. O
Imperador e filsofo Juliano (331-362 D.C.), chega a equipar-lo a Plato2. Pode-se at surgir
a tentao de um olhar banal para tais atribuies, mas, como sabido, fala-se de uma poca
de rigor e fervor intelectual intensos, o que ser visto neste trabalho.
Jmblico foi um estudioso de vasta e influente bibliografia e rigor acadmico, no
entanto, teve a maioria de suas obras perdidas com o decorrer da histria, fazendo do De
Mysteriis, sua nica obra completa a chegar at os tempos atuais. A obra enquadra-se no estilo
epistolar, sendo uma carta resposta de Jmblico a uma srie de questionamentos, dvidas e
dificuldades, referentes aos princpios da Teurgia, aplicados em sua escola, formuladas por
Porfrio em sua Carta a Anebo. A necessidade de se entender os motivos que originaram esse
debate, hoje visto como um marco de um novo rumo para a escola neoplatnica, apresenta-se, 1 Para um recolhimento de diversas declaraes de Jmblico como theios ver: ZELLER. Eduard. Die
Philosophie der Griechen. Hildesheim: Georg Olms, 1963, v.3:2, p.378-79, n. 2 apud SHAW, 1995, p.26, n.13. 2 JULIANO, Oratio IV.
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obviamente, fundamental para essa dissertao. O De Mysteriis visa estabelecer as estruturas
da Teurgia contra todas as objees levantadas por Porfrio, que se mantm numa postura
ctica em relao aos rituais e prticas clticas caractersticas do sculo terceiro, dando nfase
a uma disciplina filosfica exclusivamente intelectual como meio para a ascese da alma.
Porfrio impe calorosas objees a serem esclarecidas de forma extensiva por Jmblico, que
pautou suas respostas num enorme rigor filosfico. A obra precisou, ento, ser uma resposta
elaborada a uma crtica que visava diminuir a Teurgia a meras manipulaes e charlatania.
inegvel que Jmblico incluiu inovadoras vises no estudo acadmico da filosofia que
herdara, e certamente foi um filsofo notvel, a ponto de causar tamanha admirao em
grandiosos intelectuais da antiguidade tardia. Surge-nos, ento, a questo: sendo Jmblico um
personagem to influente, por que ele mal citado nos estudos da filosofia antiga?
Veremos, desse modo, que, com a marginalizao do pensamento pago e a sucessiva
perda das obras de Jmblico, seu pensamento acabou, igualmente, marginalizado, tendo
sobrevivido nas mos de poucos grandes pensadores admiradores de seu trabalho como
Marsilio Ficino e Thomas Taylor. Ainda assim, Jmblico foi superficialmente associado a
uma relao depreciativa com a magia e supersties irracionais. Apenas na modernidade sua
importncia foi resgatada. Aps as crticas de E.R. Dodds, que, apesar de depreciativas,
resultaram num estudo de crucial relevncia para uma nova gerao de estudos na filosofia de
Jmblico, nos principais meios acadmicos, comearam aos poucos a aparecer publicaes
com foco na sua doutrina tergica fora desse contexto depreciativo. Tais estudos recentes
trouxeram tona a base filosfica no contexto neoplatnico em que este trabalho se
enquadrava, desvelando a importncia e influncia do pensamento de Jmblico.
O objetivo da dissertao define-se a partir desse desdobramento. Consiste em
investigar e delinear a argumentao filosfica que fundamenta a Teurgia, e avali-la tal como
apresentada no De Mysteriis, tendo como foco principal a metafsica no contexto da tradio
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neoplatnica e, principalmente, dentro da compreenso da filosofia de Jmblico. Para tanto,
sero analisados de perto os livros I, II e III do De Mysteriis por entendermos que neles esto
contidos os fundamentos de sua argumentao em relao Teurgia, todavia, no
delimitando-os como suficientes para a completa compreenso de tudo o que ali h. Tem-se,
portanto, a necessidade do auxlio dos muitos fragmentos de seu pensamento filosfico,
recolhidos e publicados recentemente, bem como valiosas investigaes acadmicas atuais,
para a completa apreenso de sua argumentao nesses trs primeiros livros.
O captulo primeiro dedicado contextualizao histrico-filosfica de Jmblico,
no tendo como objetivo o levantamento exaustivo de tal conhecimento, alis impossvel, mas
levantar e fornecer alguns valiosos e fundamentais pontos de insero e de referncia para
situar-se, na medida do possvel, em tal momento. Inicia-se, portanto, um breve sobrevoo pelo
contexto histrico da poca, destacando fatores determinantes ao pensamento de Jmblico,
passando pela sua participao na escola neoplatnica e seus decorrentes desenvolvimentos
(1.1;1.2;1.4), para depois investigar o contexto em que se fez a obra de nosso estudo, o De
Mysteriis (1.3). Tal estudo preliminar visa apropriada adequao para o empreendimento de
uma atenta e cautelosa avaliao da obra em questo, que segue como um segundo momento
do trabalho.
O captulo segundo, inicialmente, estrutura o enquadramento do gnero literrio da
obra e avalia o mtodo e organizao empregados na sua elaborao. Tais tpicos tm sido
muito bem explorados como objeto de estudo acadmico, dentre os estudiosos de Jmblico,
sendo assim, elabora-se um recolhimento dos mais importantes e influentes estudos a fim de
edificar uma efetiva deliberao e avaliao crtica do assunto. Segue, ento, uma rigorosa
anlise das pontuais refutaes elaboradas por Jmblico, que parte da problemtica sobre os
limites do homem ao tratar do conhecimento dos deuses, e do que ele denomina como os
gneros superiores, o que leva a elucidao da concepo de Jmblico sobre o termo gnosis
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(2.1). Decorre, ento, em 2.2, a necessidade de melhor entender o que Jmblico chama de os
gneros superiores ( ), momento no qual os fragmentos de seu tratado De
Anima comeam a servir de valioso suporte de estudo. Duas noes tomam importncia: a de
pthos (2.3), e a relao da alma com o Nos (2.5). Ao final do Livro I destacam-se dois
termos, frequentemente utilizados ao longo de toda a obra, symbolon e synthema, e um
detalhado estudo elaborado de modo a elucidar a compreenso de ambos, os quais revelam-
se determinantes delineao dos argumentos de Jmblico em sua defesa da eficcia da
ritualstica na Teurgia. Conclui-se assim esse segundo captulo e a anlise do Livro I.
O captulo terceiro aborda o segundo Livro do De Mysteriis. De imediato destaca-se o
fato do Livro se tratar de uma objetiva descrio dos aspectos e caractersticas das
manifestaes divinas, que, portanto, necessita de pouca elucidao filosfica. Jmblico,
todavia, ordena suas descries de modo, aparentemente, disperso. Decide-se, ento, pela
organizao e anlise da manifestao de cada ordem divina dentro da hierarquia divina,
agrupando os respectivos aspectos e caractersticas de cada manifestao (3.1), para que se
tenha uma melhor apreenso e visualizao das ilustraes descritas de cada ordem divina. O
captulo encerra destacando a definio de Jmblico da Teurgia como uma , atentando s
suas determinantes implicaes para o enlace da Filosofia e da Teurgia (3.2).
O quarto captulo finaliza o estudo dos trs primeiros Livros do De Mysteriis. Comea
por uma detalhada composio e anlise das doutrinas de Jmblico sobre o ochema da alma
(4.1). Devido ao seu intrnseco enlace, subsequentemente, discorre a respeito da noo de
phantasa (4.2). Posiciona, assim, a ntima relao de ambas as doutrinas na teorizao da
Teurgia (4.3). Em uma anlise da exposio, feita pelo filsofo, no trato a respeito das
adivinhaes que compe o Livro III verifica-se a aplicao ontolgica e metafsica do
uso das noes abordadas nos tpicos anteriores para o embasamento de sua argumentao da
teorizao da Teurgia (4.4). Encerra-se, com isso, a anlise dos trs primeiros Livros do De
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Mysteriis e o levantamento dos fundamentos de sua argumentao em relao Teurgia, neles
contidos.
Uma completa reconstruo da filosofia de Jmblico, obviamente, est fora do escopo
da dissertao; delimita-se, todavia, no levantamento e compreenso dos principais elementos
de seu pensamento filosfico que sustentam a sua defesa da arte tergica, erigindo o
embasamento para uma nova apreciao do pensamento do filsofo, e, se possvel, promover
uma porta de acesso aos Mistrios de Jmblico.
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1 JMBLICO E SEU CONTEXTO
Jmblico tradicionalmente culpado por desviar o curso reflexivo do Neoplatonismo:
de uma filosofia racional de Plotino e Porfrio, para uma prtica irracional e mgica
denominada Teurgia. A depreciao do pensamento desse filsofo em muito se deve ao fato
da perda da maioria de seus textos, o que certamente faz da principal obra que restou, o De
Mysteriis, numa primeira avaliao fora de contexto, um escrito de confuso sentido filosfico
e cheio de imaginao mstica.
Felizmente, recentemente, tal cenrio tem mudado, e muitos fragmentos de seu
pensamento foram recolhidos e publicados permitindo uma melhor compreenso por parte dos
estudiosos. Isso implicou em novos desenvolvimentos nos principais meios acadmicos, ao
repensar a filosofia que sustenta toda a argumentao contida no De Mysteriis. Est claro que
por detrs das argumentaes de Jmblico existe uma doutrina bem fundamentada e elaborada
dentro do contexto filosfico de sua poca.
Parece necessrio, antes de tudo, compreender a poca em que escreveu Jmblico para
melhor adentrar em seu texto3. Viveu entre 240-325 D.C.4, em meio ao perodo que
E.R.Dodds batizou como a Era da Ansiedade5, por identificar nela um cenrio psicolgico
semelhante aos tempos modernos. Esse perodo se concentra da ascenso de Marco Aurlio,
em 169 D.C., at a converso de Constantino, por volta 330 D.C. O sc. III D.C.
normalmente definido como a poca da crise do Imprio Romano. A maioria dos reinados
foram curtos, conturbados politicamente e terminaram em assassinatos. O imprio sofreu
fortes crises internas e externas, com problemas inclusive de sobrevivncia, dadas as presses
3 Para um apanhado histrico da poca consultar os livros de Histria: Gibbon (1989); Rmondon (1967). 4 No se sabe ao certo a data de nascimento ou morte de Jmblico, contudo, investigaes acadmicas
modernas remetem aproximadamente aos anos 240-325 D.C. (CLARKE; DILLON; HERSHBELL , 2004, p.XVIII).
5 Em seu livro, Pagan and Christian in an Age of Anxiety (1965), Dodds conta que emprestou esse termo de W. H. Auden, que o utilizou para se referir aos tempos atuais.
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constantes dos brbaros, sendo que os exrcitos, continuamente em batalha, j tinham, como
todo o povo, falta de provises. Foi certamente uma era opressiva para aqueles que nela
viveram. Dodds (1965) apresenta um cenrio de pessimismo, tanto para os cristos quanto
para os pagos, embora seus estudos demonstrem como as mais extremas expresses desse
pessimismo se deram com as automortificaes crists e na depreciao da materialidade pelo
pensamento gnstico.
O que tenho mostrado neste captulo que o desprezo condio humana e
o dio ao corpo eram uma doena endmica em toda a cultura do perodo;
enquanto suas mais extremas manifestaes so principalmente Crists e
Gnsticas, seus sintomas aparecem de forma mais amena nas educaes
pags e puramente Helnicas. (DODDS, 1965, p.35).
A crise do Imprio teve incio no sc. II D.C., durante os reinados de Marco Aurlio e
Cmodo (161-192 D.C.), como apontamos anteriormente, quando o equilbrio cvico que
permitiu a Pax romana comea a romper-se. Surgem, ento, dificuldades internas em todos os
segmentos (poltico, econmico, religioso e moral) e externamente as fronteiras se encontram
em constantes ataques das tropas brbaras. A crise atinge seu clmax no sc. III D.C. durante
o reinado de Maximino Trcio (235-284 D.C.), e as presses brbaras e a debilidade romana
aumentam junto a fortes dificuldades internas. Em 256 D.C., durante a sua juventude,
Jmblico testemunhou as tropas persas pilharem sua cidade, Chalcis, junto a todo o norte da
Sria. Sucessivas invases seguiram-se at os anos 296-298 D.C., e as ltimas operaes
militares pem fim, provisoriamente, s ameaas exteriores e s agitaes internas, que
culminaram com a luta contra os carpos no Danbio, a guerra persa, a reconquista da
Bretanha, a pacificao da frica e a represso da revolta de Domiciano no Egito. As
fronteiras do Imprio conheceriam segurana por um tero de sculo.
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Mais do que histria, o que interessa apontar que o Imprio romano do sc.III D.C.
apresenta-se como uma grande mistura cultural e intelectual em funo dos prprios
percalos. Na poca em que viveu Plotino, por exemplo (205-270 D.C.), a cidade de
Alexandria devia ter aproximadamente um milho de habitantes. Herdada de um passado
egpcio, continuadora da filosofia grega e romana, tornara-se polo da especulao intelectual
de diversas correntes: gregas, romanas, judaicas, pags, gnsticas, crists e orientais. Uma
poca de encontros e debates abertos entre diversas culturas e correntes de pensamentos,
apresentando uma integrao cultural e intelectual singular na histria, tendo apenas a era
moderna retomado semelhantes integraes e discusses abertas entre povos e culturas, fato
que se destaca como outro fator de similitude aos dias atuais, alm daquele levantado por
Dodds.
Destaca-se, ainda, uma fundamental herana da escola neoplatnica oriunda de uma
radical transformao no estudo da filosofia ocorrida no incio do sculo primeiro, aps a
vitria romana de 87 D.C., quando Sila fecha as quatro escolas filosficas de Atenas
(platnica, aristotlica, epicurista e estoica). A transformao ocorre no mtodo de estudo e
aprendizagem da filosofia, uma mudana devida busca do correto sentido de noes
ambguas dos textos clssicos, da qual surge a forte influncia pitagrica, um fator decisivo
na histria do platonismo. A abordagem aos textos torna-se fundamentalmente exegtica,
cursos filosficos tornam-se primariamente comentrios sobre os textos, e a influncia
pitagrica do aspecto secreto sobrepe-se aos textos platnicos. Na tradio pitagrica o
segredo transmitido oralmente atravs de symbola ou ainigmata, isto , smbolos ou
enigmas, (...) que podem ser interpretados em dois nveis: um para o iniciado e outro para o
no-iniciado (NADAFF, 2007, p.66). Por definio um enigma um elemento do discurso
ou uma afirmao que possui um significado ambguo ou obscuro na forma de uma descrio
ou uma definio, e cujo sentido tem de ser descoberto. Desse modo, expressar-se atravs de
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enigmas implica a formulao de uma profunda doutrina numa linguagem incompreensvel ao
no-iniciado.
Os pitagricos eram tambm chamados de ainigmata, isto ,enigmas. Por
definio, um enigma um elemento do discurso ou declarao gerando uma
ambiguidade ou sentido obscuro na forma de uma descrio ou definio, e
cujo sentido deve ser descoberto. (BRISSON, 2004, p.58)
A interpretao de mitos passa por uma semelhante evoluo, claramente expressa na
novidade que se tem no termo tcnico designado interpretao de mitos. At ento hyponoia
era o termo utilizado para designar a interpretao de mitos . Este termo deixa de ser utilizado
a partir do sc I D.C. dando espao a um novo termo, allegoria, uma evoluo registrada por
Plutarco:
Alguns comentadores forosamente distorcem estas histrias pelo que eles
normalmente era chamado de significados mais profundos (
), mas so chamados hoje em dia de interpretaes alegricas
( ). (PLUTARCO, Moralia 19e, apud BRISSON, 2004, p.58)
A partir deste marco histrico mito e filosofia estabelecem uma ntima relao entre si
e tambm junto aos mistrios. Sob essa perspectiva, filosofia, profecia, mistrios e poesia
expressam uma mesma verdade oriunda diretamente dos deuses. E justamente por ser
transmitida diretamente dos deuses esta verdade era codificada por poetas como Homero e
Hesiodo, e filsofos como Plato e Pitgoras, a fim de evitar a ampla divulgao e mant-la
exclusiva a um pequeno nmero de seres humanos capazes de pensar como deuses.
Filo de Alexandria (fl. 40d.C.), famoso filsofo judeu, em suas abordagens alegricas
iniciou a identificao dos mitos aos mistrios. Em sua abordagem os poetas no eram mais
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precursores do Estoicismo, mas telogos genunos, que tinham reservado a revelao da
verdade garantindo-a a um pequeno grupo de iniciados, que somente eles poderiam entender a
verdadeira mensagem dos textos, seu significado oculto. Filo percebe essas cincias como
subordinadas filosofia, mas uma vez que a filosofia deve ser considerada subordinada
sabedoria, ou seja, a palavra de Deus conforme revelada por Moiss, ento filosofia torna-se
subordinada teologia (HADOT, 2002, p.255-256).
O filsofo e bigrafo Plutarco de Queroneia (fl. 100 D.C.) seguiu um caminho
semelhante, mas acreditava que sua abordagem pudesse ser aplicada a todos os mitos sendo
eles gregos ou no. De fato, ele presumiu que sendo o conhecimento secreto, uma
caracterstica tanto da filosofia quanto da religio, e sendo o Egito o bero da civilizao e o
local onde tal conhecimento secreto propagou-se, os sbios gregos, incluindo Homero,
Hesodo, Plato e Pitgoras, devem necessariamente ter visitado o Egito e convivido com os
sacerdotes que por sua vez os iniciaram aos mais profundos segredos (a interpretao de
mitos). Para Plutarco mitos e ritos devem ser encarados como smbolos ou enigmas. Ele
pode ento ser considerado como representando uma transio entre o tipo estoico e o tipo
Neoplatnico de alegoria (BRISSON, 2004, p.64). Ter uma iniciao a esta sabedoria
enigmtica faz com que a razo filosfica deva ser aplicada como uma mistagogia. Todas as
iniciaes envolvem a morte de uma antiga vida para o renascimento em uma nova. Em
Plutarco essa verdade se aplica filosofia, que envolve, num certo sentido, uma morte no
reino das opinies para que, graas razo, haja um renascimento no reino imaterial. Deste
ponto de vista, iniciao e filosofia nos permitem transcender as aparncias e alcanar a
verdadeira realidade relatada pelos mitos. (BRISSON, 2004, p.70)
Ainda, outro fator de grande relevncia herdada pela escola neoplatnica que se
sobressai a sua tendncia sincretista, em meio a toda aquela integrao cultural e intelectual,
cujas origens rastreiam-se poca de Numnio de Apamea, um influente personagem
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neopitagrico, denominado por Guthrie (1917) como o pai do neoplatonismo, que por volta
de 150 D.C., no limitando suas teorias Grcia, expressa a ideia aparentemente inovadora de
que uma nica, absoluta e imutvel verdade foi revelada e ento transmitida na Grcia por
vrios personagens (entre eles Homero, Pitgoras e Plato), e em outros lugares como o Egito,
Prsia e entre os Judeus. Tal pensamento foi de fundamental importncia para a histria da
filosofia, e principalmente para a doutrina Neoplatnica, mas normalmente ignorado.
Conforme ressalta Brisson: Ele estabeleceu conexes entre as doutrinas de Plato e
Pitgoras, e tambm entre as sabedorias Judaicas, Persas, Indianas e Egpcias (BRISSON,
2004, p.74).
Filsofos: Sobre esse assunto ele ter de ensinar e interpretar na melhor
tradio Platnica, e fundi-la aos ensinamentos de Pitgoras. Desse modo, mas
somente at onde eles concordem com Plato, ele ter de citar as religies das
naes famosas, sendo estes os mistrios, ensinamentos e conceitos dos
Brmanes, Hebreus, Magos, e Egpcios. (NUMNIO, fr. 9a)
Jmblico encontra-se em meio a um singular caldeiro intelectual e cultural, cujos
ingredientes so impossveis de identificar em sua totalidade, no entanto, os pontos levantados
acima apresentam-se cruciais e intrnsecos ao pensamento e viso de mundo do filsofo,
como veremos. Contudo, toda a efervescncia intelectual da poca foi apenas o prenncio do
fim dessa cultura. Aps enfrentar aproximadamente trs sculos de perseguies pelos
Imperadores romanos, a hostilidade aos cristos em Roma terminou com as reformas do
Imperador Constantino em 313 D.C, como se sabe, sendo o responsvel por legalizar o
cristianismo em todo o imprio precedendo, dessa forma, a queda da hegemonia do Imprio e
da cultura dita pag nas mos da Igreja.
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1.1 O Neoplatonismo e Jmblico6
O Neoplatonismo uma denominao cunhada por acadmicos da modernidade,
utilizada para se referir escola que se seguiu Academia no sc.III D.C., at o fechamento
da escola de Atenas, que ocorreu em funo do decreto de Justiniano, em 529 D.C. Os
neoplatnicos no se consideravam modificadores da filosofia de Plato, mas fiis intrpretes
dos dilogos do mestre. Os escritos de Aristteles possuem um papel importante no
desenvolvimento do pensamento dos neoplatnicos, que viam nessa reflexo plena harmonia
com a Academia, sendo, ento, comum o uso de terminologias e argumentos aristotlicos para
exprimir o platonismo.
Aristteles e os comentadores aristotlicos j eram parte do curriculum da
escola de Plotino em Roma, e a integrao de Aristteles nos ensinamentos
neoplatnicos tornaram-nos mais sistemticos com Porfrio e Jmblico. Na
poca de Proclo, o corpus aristotlico era tido como propedutico a Plato.
(OMEARA, 2003, p.62)
John Dillon e Lloyd Gerson (2004) apresentam uma sntese de alguns princpios gerais
que compreendem e determinam o neoplatonismo. O primeiro princpio se baseia na distino
entre o mundo sensvel e o inteligvel, no sendo tal distino pensada como dicotomia, pois o
sensvel no pode ser privado do inteligvel. O segundo, que o mundo inteligvel uma
hierarquia ordenada pela ideia de que o simples anterior ao mais complexo, o que resulta,
acima de tudo, na existncia de um primeiro princpio hierrquico absolutamente simples.
Outro princpio seria o reconhecimento do princpio do Intelecto, necessrio tanto para
suportar a articulada complexidade do mundo inteligvel, quanto para explicar a condio da
sua presena no mundo sensvel. O Intelecto seria o princpio da vida e do pensamento. Por
6 Para uma viso geral sobre o Neoplatonismo ver: Whittaker (1918); Blumenthal (1993); Dillon e Gerson (2004).
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ltimo, o princpio da Alma, que Dillon define como princpio da vida no-intelectual, pelo
fato de as coisas com alma desejarem, de alguma forma, obter algo alm delas mesmas,
incluindo estados psquicos; e que, em geral, para os neoplatnicos, esse desejo seria, em
ltima instncia, o retorno ao primeiro princpio:
Ver o esforo horizontal das almas incorporadas aqui embaixo como
realmente um reflexo de um esforo vertical do retorno ao mundo
inteligvel, que acima, uma das mais distintas caractersticas do
Neoplatonismo. Esta a chave para o entendimento da psicologia moral e
at mesmo esttica dos Neoplatonistas. (DILLON; GERSON, 2004, p.XXII.)
A maioria dos acadmicos concordam, hoje, que o primeiro expoente do neoplatonismo
tenha sido o egpcio Plotino (205-270 D.C.). Estudando os princpios apresentados acima em
Plotino, talvez seja possvel compreender algo do que Jmblico tambm pensava. Por mais de
dez anos, Plotino estudou em Alexandria sob a orientao de seu mestre Ammonius Saccas, e
aps esse aprendizado alistou-se numa expedio militar para a Prsia (225-244 D.C), situou-
se em Roma que se tornara o centro de um influente crculo de intelectuais. Permaneceu em
Roma at o final de sua vida. No publicou nada e, at onde se sabe, as Enadas so
constitudas de vrios ensaios e notas de aulas que foram compiladas, editadas e publicadas
postumamente por seu aluno Porfrio.
Os dois mais influentes alunos de Plotino foram Porfrio e Amelius. Porfrio comps
diversos trabalhos dos quais, fora as Enadas e a biografia de Plotino, a maioria dos tratados
filosficos s existem hoje em forma de fragmentos. Apesar de nenhum trabalho de Amelius
ter sobrevivido, sabe-se que ele comps comentrios das aulas de Plotino, uma defesa de
Plotino, uma polmica contra o Gnosticismo e diversos comentrios dos dilogos Platnicos.
O prximo grande personagem da escola Neoplatnica foi Jmblico (240-325 D.C.).
Pouco se sabe sobre sua vida com preciso, e muito do que foi recolhido deve-se sua
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biografia documentada por Eunpio7, escrita ao final do sc IV D.C.. Eunpio o descreve
como procedente de uma famlia rica, ilustre e afortunada, tendo nascido em Chalcis (atual
Qinnesrin), na cidade de Coele (Sria). O fato de a famlia ter preservado o nome semtico8
indica a ideia de uma descendncia nobre, e aponta para a relao com uma linhagem real de
sacerdotes-reis de Emesa. (CLARKE; DILLON; HERSHBELL, 2004, p.XIX). Essa
descendncia parece confirmar-se pela atitude de Jmblico que, pelo menos em uma ocasio,
se auto intitula "o mais antigo dos sacerdotes" (De Anima, 37,7-8).
Pela sua biografia, tem-se o relato de dois professores atuantes em sua vida: o primeiro
seria Anatolius, presumivelmente o filsofo aristotlico que mais tarde tornou-se Bispo de
Laodicea9; em seguida, Jmblico teria sido pupilo do prprio Porfrio a quem, segundo
Eunpio, no foi em nada inferior, exceto na estrutura e poder de composio textual. Para
Eunpio, o estilo literrio de Jmblico no tinha a mesma beleza e lucidez que a de Porfrio;
no que ele falhasse na clareza, nem que tivesse uma gramtica incorreta, mas simplesmente
no atraa a ateno do leitor. Ele , ento, comparado ao que Plato disse de Xencrates, que
este no teria se sacrificado s Graas de Hermes.
No h certeza de quando esses contatos ocorreram, mas especula-se que tenham sido
em Roma, entre aproximadamente 270-280 D.C. (CLARKE; DILLON; HERSHBELL, 2004,
p.XXI). Com isso, parece provvel que ele tenha deixado Porfrio muito antes deste ter
falecido, e retornado Sria (provavelmente por volta de 290 D.C.) para montar sua prpria
escola, no em sua cidade natal, mas em Apamea, cidade que j era famosa nos crculos
filosficos por ter sido a terra natal do neopitagrico Numnio. L ele orientou um circulo de
pupilos que inclua Sopater, um nobre local, que aparentemente o proveu materialmente, e
enquanto o Imperador Licnio governou o Oeste (308-324 D.C.), a escola prosperou.
7 EUNPIO, Vit. Soph., p.363-377. 8 Yamliku, o nome original de Jmblico siraco ou aramaico, significando ele rei ou que ele reine!
(CLARKE; DILLON; HERSHBELL , 2004, p.XIX, n.22) 9 P. Athanassiadi, (1995, p. 244;246); J. Dillon, (1987, p. 866-867); Dalsgaard Larsen (1975, p. 4).
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Eunpio o descreve como genial e socialmente acessvel, convivendo como uma famlia
com seus numerosos discpulos. Apesar de ser creditado como capaz de intuies e
habilidades sobrenaturais, Eunpio ressalta com grande nfase a hesitao de Jmblico a esse
respeito. Certa vez, um boato espalhou-se entre seus discpulos: que durante suas oraes ele
levitava e seu corpo sofria uma transfigurao. Com isso, seus discpulos foram question-lo
sobre essas habilidades, e mesmo Jmblico no sendo muito propenso a dar risadas (segundo
Eunpio) ele caiu em gargalhadas ao escutar a histria e disse: "Aquele que os iludiu era um
gozador; mas os fatos so diferentes. No futuro, todavia, vocs ho de estar presentes em tudo
o que ocorre. (EUNPIO, Vit. Soph., p.367)
A biografia segue relatando algumas maravilhas que foram ditas a respeito de Jmblico,
mas Eunpio claramente menciona que nenhum de seus discpulos deixou esses eventos
registrados. Eunpio mesmo informa que as escreve com certa hesitao.
1.2 As Contribuies de Jmblico
Muito amplo e complexo foram as contribuies e desenvolvimentos do filsofo solo
este ainda carente de pesquisa e reconhecimentos , mas dentre muitas coisas, sabido que
Jmblico sistematizou metodolgica e filosoficamente o Platonismo que herdou e articulou
um curriculum educacional que comeou com uma grade de estudos pitagricos, antes de
proceder ao estudo dos textos platnicos e aristotlicos (FINAMORE; DILLON, 2002, p.6-7).
Porm, apenas restaram registros relativos grade referente aos platnicos, que comeam por
Alcebades 1 e terminam com Timeu e Parmnides (OMEARA, 2003, p.62-65). Toda a
grade de estudos estava profundamente relacionada a uma metodologia exegtica inovadora,
onde os alunos eram iniciados numa tradio de sabedoria transformativa10.
10 A esse respeito ver Athanassiadi (2002).
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O primeiro ciclo elevava os estudantes, atravs da escala de virtudes e de
cincias, ao mais alto nvel, virtude teortica e cincia; o segundo ciclo diz
respeito somente aos mais altos nveis, as cincias teorticas da fsica e
especialmente teologia. (OMEARA, 2003, p.62-63)
Uma completa participao nos ensinamentos envolvia no apenas os estudos e leitura
dos textos, mas tambm complementaridade entre razo e revelao. Como nota Edwards
(2000):
Um dilogo deve ser abordado, no como uma eterna conversao, mas
como uma transao pessoal entre o autor e o leitor; se o ltimo estiver
propriamente equipado para sua leitura compenetrada, o texto sozinho ir
tanto refletir quanto moldar a alma interior. (EDWARDS, 2000, p.XLI)
Com isso, a leitura de Plato, e de todos os textos clssicos, era conduzida mais
sistematicamente do que por Plotino, e sua metodologia exegtica transcendia, em escopo e
profundidade, o mtodo filolgico de Porfrio. Essa metodologia foi adotada por todo o
Neoplatonismo posterior. Athanassiadi sintetiza esse cenrio nas seguintes palavras:
...suas selees dos dilogos Platnicos tornaram-se, como se fossem, o
Velho Testamento do Helenismo, com os Orculos Caldeus funcionando
como o Novo Testamento da nova f... Vendo a si mesmo como o pedagogo
da humanidade em assuntos espirituais, ele detalhadamente mapeou um
caminho na verdade, o caminho para a perfeio, com todos os seus
marcos prticos e teorticos. Ele estabeleceu dessa forma um cnone de
textos, que permaneceram inalterados por toda a antiguidade tardia, e
propagou o uso de comentrios estruturados como o nico mtodo de
pesquisa e ensino para esse currculo. (ATHANASSIADI, 2002, p.276-277)
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Se Jmblico foi reconhecido e estimado ainda em vida, bem mais o foi aps sua morte
no tempo do Imperador Juliano (331363 D.C.) que o reputou possuidor de uma genialidade
igual de Plato11 , apesar disso, pouco se desfruta dessa genialidade, pois a maioria de suas
obras perderam-se. Sabe-se que ele foi um autor prolfico, e tem-se conhecimento de que uma
de suas principais produes foi um trabalho enciclopdico sobre a filosofia pitagrica,
compilada em uma sequncia de nove, possivelmente dez volumes. Dessas obras, quatro
ainda subsistem, comeando por De vita pythagorica, seguida por Protrepticus, o tratado De
communi mathematica scientia, e In Nicomachi arithmeticam introductionem, um comentrio
sobre a obra do neopitagrico Nicomachus.12 Restaram, tambm, fragmentos do tratado De
Anima13 e fragmentos de uma srie de cartas filosficas14, ambos preservados nas
compilaes de Joannes Stobaeus.
Fora isso, h considerveis evidncias de que havia comentrios de obras de Plato e
Aristteles, mas s restaram fragmentos15: algo sobre o Alcibades, Fedro, Timeu e
Parmnides de Plato, preservado em comentrios de Proclus, bem como o comentrio sobre
o Organon de Aristteles (categorias), preservado por Simplcius. Tambm h registros de
que Jmblico escreveu comentrios sobre Orculos Caldeus, e uma Teologia Platnica, mas
esto perdidos16.
11 JULIANO, Oratio IV. 12 De vita pythagorica e o Protrepticus, foram recentemente editados, traduzidos e comentados por: Des
Places edio de Protrepticus (1989) e On the Pythagorean Way of Life por Dillon e Hershbell (1991). De communi mathematica scientia e In Nicomachi arithmeticam introductionem, foram recentemente reconstrudos em detalhes por Dominic OMeara em Pythagoras Revived (1989)
13 Edio mais recente feita por John Finamore (2002). Como o prprio Finamore aponta, uma vez que essa compilao foi feita para seu filho Septimius Stobaeus as passagens preservadas so as que envolvem mais as diversas teorias de vrios filsofos do que as que poderiam ter ilustrado a doutrina de Jmblico. Assim, podemos encontrar mais doxografia do que a psicologia de Jmblico, embora ainda perspasse um pouco de sua prpria doutrina (FINAMORE; DILLON, 2002, p.13).
14 Recentemente publicadas por John M. Dillon e Wolfgang Polleichtner, Iamblichus of Chalcis: The Letters, 2009.
15 Publicados por Dillon (1973: somente Plato) e por Dalsgaard Larsen (1972: Plato e Aristteles). 16 Para uma listagem completa do que conhecido como obras realizadas por Jmblico ver a excelente
elaborao de Dillon (1973, p.18-25), que recolheu minusciosamente todas as referncias de obras de Jmblico e as reuniu em uma proposta cronolgica de trs estgios na vida de Jmblico.
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Para ns, a obra mais relevante do pensamento de Jmblico, que sobreviveu at os dias
atuais, o De Mysteriis, uma abreviao do ttulo cunhado por Marsilio Ficino em 1497: De
Mysteriis Aegyptiorum, Chaldaeorum, Assyriorum. O ttulo original da obra A Resposta do
Mestre Abammon carta de Porfrio para Anebo, e as solues s dificuldades contidas nela
(
).
Apesar de no ser to atrativo quanto o ttulo atribudo por Ficino, o original reflete
melhor o assunto de que trata a obra. Nela, Jmblico escreve com a autoridade de um
sacerdote da sabedoria egpcia, sob o nome de Abammon, e com isso procede para sanar as
dvidas e dificuldades referentes aos princpios da Teurgia aplicadas em sua Escola,
formuladas por Porfrio em sua Carta para Anebo17.
Em suas respostas, Jmblico pretende esclarecer ao seu crtico interlocutor a verdadeira
natureza das interaes entre os mundos divino e humano encontradas nos cultos gregos
tradicionais (atravs de rituais, sacramentos, oraes e profecias) e na arte tergica. Com isso,
ele lida com problemas tais como: (Livro I) o conhecimento e a classificao dos seres
divinos; (Livro II) as diferenas entre almas, damones, heris, arcontes, anjos, arcanjos e
deuses; (Livro III) adivinhaes; (Livro IV) o problema do mal; (Livro V e VI) sacrifcios;
(Livro VII e VIII) simbolismo e teologia egpcia; (Livro IX) o damon pessoal; (Livro X) a
unio com os deuses atravs da Teurgia.
O resultado dessa obra foi bem definido por Shaw (1995): Jmblico revelou a ntegra
conexo entre os rituais de cultos de devoo e as disciplinas da paidia filosfica (SHAW,
1995, p.2). Com suas extensas respostas s questes de Porfrio, Jmblico criou uma estrutura
filosfica para a tradio pag e mudou o curso do Platonismo.
17 A identidade de Anebo no conhecida, mas supostamente seria um sacerdote egpcio pupilo de Jmblico, que por sua vez adota o pseudnimo egpcio Abammon para responder a carta. Sobre esse assunto ver Clarke; Dillon e Hershbell (2004, p.XXVII-XXXVII); Shaw (1995, p.7-8); Clarke (2001, p.8-9).
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O De Mysteriis e a Teurgia de Jmblico tornaram-se a fundamentao para a
renascena e continuidade das comunidades platnicas at o fechamento da
Academia de Atenas por Justiniano, em 529 D.C. e posteriormente - para os
Platonistas em exlio na fronteira da cidade de Harran onde o Platonismo
de Jmblico por fim passou para as mos rabes prosperando at o dcimo
sculo. (SHAW, 1995, p.8)
Com a marginalizao do pensamento pago e a perda das principais obras de Jmblico,
seu pensamento ficou por muito tempo esquecido, sobrevivendo nas mos de poucos grandes
pensadores, admiradores de seu trabalho, como Marsilio Ficino e Thomas Taylor. De certa
forma, esse histrico contribuiu fortemente para a antipatia gerada pelos acadmicos e
estudiosos da filosofia antiga em relao a Jmblico, principalmente Teurgia, em at pelo
menos meados do sc. XX. Charles Bigg definiu as doutrinas de Jmblico como um
Pitagorismo enlouquecido (BIGG, 1895, p.302). O Cambridge Dictionary of Philosophy
define Teurgia como sendo realmente apenas magia com uma roupagem filosfica (AUDI,
1999, p.605).
Esta viso da Teurgia parece ter atingido seu pice nas mos de E.R. Dodds, que acabou
por se tornar um dos mais influentes crticos de Jmblico ou da Teurgia. Dodds caracterizou o
De Mysteriis como: um manifesto ao irracionalismo, uma assero ao caminho da salvao
encontrada no na razo, mas no ritual. No seu livro The Greeks and the Irrational18 E. R.
Dodds declara:
A ltima metade do sculo presenciou um extraordinrio avano em nosso
conhecimento sobre as crenas e prticas mgicas da antiguidade tardia. Mas
em comparao com este progresso uma vertente especial de magia
conhecida como Teurgia tem sido relativamente negligenciada, e ainda
encontra-se imperfeitamente compreendida. (DODDS, 1951, p.283)
18 Ver Appendix II Theurgy.
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O trabalho de Dodds foi de grande importncia, pois ele admite uma opinio mal
formada do senso comum em relao Teurgia. Na sua edio de Proclo Elements of
Theology (1933) ele afirma que a importncia histrica de Jmblico foi pobremente
reconhecida devido ao fato de seus principais tratados metafsicos estarem perdidos, e sua
viso ter que ser reconstruda baseada no que Dodds chamou de semi-filosfico De
Mysteriis (DODDS, 1933, p.XIX). Porm, logo na prxima sentena de sua obra que Dodds
expe sua viso depreciativa de Jmblico:
Mistagogo e taumaturgo ele era, e de qualidade intelectual
imensuravelmente inferior a um Poseidnio ou a um Plotino, sua
contribuio final moldando o Neoplatonismo precariamente inferior a
deles (DODDS,1933, p.XIX)
Para Dodds, Jmblico representa a corrupo do sistema filosfico desenvolvido de
modo disciplinado e espiritual por Plotino19, consequentemente, uma corrupo da filosofia de
Plato. Isso fica claro em sua declarao:
Como mgica vulgar normalmente o ltimo recurso do pessoalmente
desesperado, daqueles os quais homem e Deus falharam da mesma forma,
assim a Teurgia torna-se o refgio de uma inteligncia desesperada...
(DODDS, 1951, p. 228)
Este intrprete procura demonstrar que a Teurgia no mais que uma mgica vulgar
com pretenses religiosas, tendo como premissas bsicas a capacidade humana de controlar
poderes csmicos e entidades divinas, e adquirir experincias transcendentais por meio do uso
da magia cerimonial. Seu objetivo principal seria tanto profecias obtidas atravs do uso de
instrumentos mgicos, quanto a obteno de orculos atravs de um mdium.
19 Ver excelente trabalho de Wayne Hankey em Re-evaluating E. R. Dodds Platonism (2007).
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Apesar das crticas, o trabalho de Dodds foi de enorme relevncia para uma nova
gerao de estudos da filosofia de Jmblico, e subseqentemente, nos principais meios
acadmicos, comearam a aparecer publicaes com foco na Teurgia fora desse contexto
depreciativo. Estudos recentes trouxeram tona a base filosfica, no contexto neoplatnico,
deste trabalho, desvelando a grande importncia e influncia que teve esse pensamento20.
Como veremos a seguir, j em sua poca tal desavena foi o ponto chave para a elaborao do
De Mysteriis.
1.3 Porfrio Contra Jmblico
O De Mysteriis busca estabelecer as estruturas da Teurgia contra todas as objees
levantadas por Porfrio, que se mantm numa postura ctica em relao aos rituais e prticas
clticas caractersticas do sculo terceiro, dando nfase a uma disciplina filosfica
exclusivamente notica, como meio para a ascese da alma. O fato de Porfrio impor to
calorosas objees ao egpcio Anebo expressa bem sua posio contrria s prticas
ritualsticas de Jmblico, misturando-se num contexto intelectual especfico. Dada a natureza
e o tom do ataque, a resposta de Jmblico, sob o pseudnimo de Abammon o mestre
() que clama que Anebo um mero pupilo () , demonstra de imediato
uma manobra coerente, sugerindo sua inteno de impor e defender toda a tradio ritualstica
da sabedoria egpcia.
Jmblico no se v como um inovador, mas como o defensor de uma tradio, fato
reforado pela adoo da antiga prtica de uso de pseudnimo como meio para reforar o
prestgio, por remeter a uma fonte de sabedoria tradicional. De fato, possvel argumentar
que um dos postulados centrais do De Mysteriis claramente defender a fuso intelectual21,
20 A esse respeito ver: CLARKE; DILLON; HERSHBELL , 2004, p.XXVI. 21 Tradio sincretista caracterstica do Neoplatonismo, como vimos.
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primariamente de uma sabedoria dita egpcia com a grega apoiando-se tambm em outras
fontes orientais, especialmente a dos Caldeus/Assrios22, sendo que a sabedoria egpcia,
genealogicamente, a fonte primordial das outras. O incio do livro de Jmblico bem
explcito quanto a isso, ao comentar que as perguntas de Porfrio seriam respondidas,
algumas, diz ele, com base nas tradies dos sbios da Caldeia; outras tero suas solues
derivadas dos ensinamentos dos profetas do Egito; e outras, novamente, tero relaes com as
especulaes dos filsofos (De Mysteriis, I.1.4,10-12). Mas, logo a seguir, refora como
fonte de toda a sabedoria o Egito, afirmando que uma derivao da sabedoria egpcia grega
foi o que os sbios gregos sempre fizeram:
Pois no seria correto para Plato, e Demcrito, e Eudxo, e muitos outros
dos Helenos da Antiguidade, terem permitido a instruo adequada pelos
escribas de seu tempo, mas para voc, na sua poca, que tem os mesmos
propsitos que eles, falha em orientao nas mos daqueles que so
aclamados professores do pblico agora. (De Mysteriis, I.1.2,83,4).
Para Jmblico o Egito foi a principal fonte da sabedoria grega, e sabe-se que Pitgoras
e Plato, antes dele, realmente edificaram seus ensinamentos por l. Desse modo, no
possvel dissociar a sabedoria egpcia do conjunto de prticas que ela abrange, seguindo-se
que tais prticas refletem tal sabedoria e que a ela intrnseca, seus mritos devem, ento, ser
defendidos contra as acusaes de ser mera magia infundada e manipulao barata. Como
coloca Jmblico, direcionando-se contra as acusaes de Porfrio de que tais prticas egpcias
representam a mais culposa submisso charlatanice:
Muito melhor entender isso: que, uma vez que os Egpcios foram os primeiros
a serem concedidos participao com os deuses, os deuses, quando invocados,
regozijam nos ritos dos Egpcios. No , ento, que todas as coisas so
22 No De Mysteriis os termos so sinnimos (cf. CLARKE; DILLON; HERSHBELL , 2004 , p.9, n. 12).
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truques de feitiaria. Pois como poderiam as coisas mais especiais ligadas aos
deuses, que nos une a eles, e que possuem poderes plenos e iguais aos deles,
serem falsificaes imaginrias, quando nenhum trabalho sagrado pode
acontecer sem eles? (De Mysteriis, VII.5.258,28).
Sob tal entendimento, Porfrio, com a sua resistncia s prticas ritualsticas como
forma de auxlio ascenso da alma, que corta toda a tradio transmitida pelos antigos
sbios egpcios. nesse contexto que Jmblico ironicamente se dirige a Porfrio como se ele
fosse um pupilo procurando aprender de um escriba egpcio, assim como em outra passagem
Abammon tambm intitula-se sacerdote egpcio. Nesse posicionamento estratgico de
terminologias como escriba e sacerdote, Jmblico est claramente comunicando sua inteno
de alinhar-se no s a um sistema de revelao, mediado por escribas e sacerdotes, mas com
uma distinta fuso helenstica-egpcia que, como dissemos, uma caracterstica sinalizada no
De Mysteriis.
Com a defesa da ideia de tal tradio, consequentemente, sugerido que foram os
pensadores como Porfrio que perderam a trilha das fontes de seus prprios conhecimentos, e
com isso perderam os meios de alcanar o objetivo ltimo da filosofia. A Teurgia apresenta-
se, ento, como um conjunto de compreenses e tcnicas cruciais para que essa experincia
ltima se d. A abordagem apropriada para a ascenso da alma no podia ser meramente a
disciplina teortica de Porfrio; era, ao invs, a Teurgia, cujos fins Jmblico insistentemente
reivindica serem fundamentalmente os mesmos da filosofia:
Mas agora, voc disse, no a mais alta finalidade da arte hiertica ascender
ao Uno, que supremo mestre de toda a multiplicidade (de divindades), e de
acordo com isso, ao mesmo tempo faz corte a todas as outras essncias e
princpios? De fato , responderei; mas isso no se d exceto em uma fase
muito tardia e a muitos poucos indivduos. (De Mysteriis, V.22.230,12231,2).
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Nesse trecho destacam-se vrios pontos importantes, mas o crucial o sucinto
argumento de que os rituais sagrados tm como funo auxiliar a ascenso da alma sua fonte
divina, proposta equivalente ao objetivo ltimo da filosofia neoplatnica. Conforme Clarke
(2001) aponta, Jmblico insiste em descrever essa realidade em termos transcendentes, mais
precisamente como sobrenatural ( , ), enquanto a falha da qual ele
parece constantemente ser acusado de que seu pensamento est muito confinado ao mundo
fsico da magia e ritos naturais tangveis, julgamento o qual Jmblico considera uma
interpretao no mnimo confusa. Por exemplo, no incio do Livro IX, irritado com o que ele
descreve como sendo uma tendncia de Porfrio em arrastar para baixo o tipo mais perfeito
de devoo ao mero nvel humano, Jmblico distingue, com cuidado, o que considera serem
explicaes que funcionam mais universalmente, transcendendo o reino da natureza (
) daquelas que operam em um nvel individual, seguindo a natureza (
). Uma abordagem tergica apropriada invoca princpios causais superiores, enquanto
uma abordagem mais mecnica recorre aos ciclos visveis do reino da gerao (De
Mysteriis, IX.1.273,19. Cf., tambm, CLARKE; DILLON; HERSHBELL , 2004, p.XXVII.).
Porfrio, por esse entendimento, falha nesse sentido ao avaliar essa distino.
Em outra passagem, numa discusso a respeito da forma adequada de arte da
adivinhao, Jmblico insiste em que tais artes operam de forma livre do reino sensvel:
impolutas e sacerdotais, e verdadeiramente divinas..., em si completamente removidas de
tudo, supernatural e eternamente pr-existentes (De Mysteriis, III.31.178.13179.1). Ora, a
persistente aplicao de Jmblico dos termos , , claramente um
modo de formar um enlace, pelo lgos, entre a atividade tergica e a atividade dos deuses.
Assim, v-se Jmblico procura de uma forma apta, se no a apreender, pelo menos a apontar
para o indizvel. Tais termos denotam o divino no De Mysteriis e, por extenso, a atividade
tergica em Jmblico. A aplicao estratgica de tal linguagem fundamental e necessria
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para definir a atividade ritualstica dos teurgos como completamente diferente da atividade
dos mgicos e outros charlates23. Tal preocupao sempre solicitada de Jmblico, uma vez
que as objees impostas por Porfrio na sua Carta para Anebo tendem a convergir para a
distino entre o natural e o supernatural, que Jmblico busca manter, porm engendrada de
forma inovadora.
O De Mysteriis foi elaborado em resposta a uma crtica que visava diminuir a Teurgia
a meras manipulaes. O histrico do ceticismo de Porfrio em relao eficcia dos cultos
est expresso de maneira clara no seu trabalho Sobre a Abstinncia de Comida Animal. Neste
trabalho, aonde pode-se apreender as razes de sua oposio Teurgia, ele toma a posio que
todo culto material deve ser descartado ao relacionar-se com o deus mais elevado, uma vez
que o comprometimento com a materialidade pode apenas impedir a mente de abordar os
deuses no-materiais:
Ao deus que a tudo governa no devemos oferecer nada perceptvel aos
sentidos, degenerado pelas chamas, ou em palavras. Pois no h nada material
que seja ao mesmo tempo impuro e imaterial. Ento, nem mesmo palavras
(lgos) expressas em discursos so apropriadas a ele, nem mesmo palavras
internalizadas, quando elas tenham sido contaminadas pelas paixes da alma.
Mas devemos vener-lo em puro silncio e com pensamentos puros a seu
respeito. (PORFRIO, De Abst., 2.34.2)
Tal viso deixa suspeita a magia, a profecia, os sacrifcios, de fato qualquer atividade
cltica envolvendo interao com o mundo material. Para Porfrio as prticas intelectuais
so as facilitadoras da ascese da alma, e prescreve, desse modo, que sejam feitos sacrifcios de
coisas inanimadas para as divindades inferiores compostas de corpo e alma, tais como as
23 Cf. De Mysteriis X.3.289,1-2, onde Jmblico distingue entre uma clarividncia tergica legtima de uma
que funcione meramente no reino csmico, apoiando-se nas falsas noes de que neste possa haver algo de genuno, perfeito, e eternamente bom.... que implantado por natureza nos reinos da gerao.
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estrelas (PORFRIO, De Abst., 2.37.3). Ele expe tambm o senso comum relacionado s
ordens mais baixas de damones, e com determinao rejeita o sacrifcio de sangue a eles e
outras divindades, atribuindo a origem de tais prticas a equvocos praticados pelos prprios
damones, que exigiram os vapores dos sacrifcios para o seu sustento. Tais seres so na
verdade malignos, e o poder acima deles caracterizado como impostor/enganador. O
verdadeiro filsofo no ter nada a fazer com tais prticas, e ir evit-las, e a outras atividades
rituais se em favor de um caminho de culto livre para o divino. Porfrio culmina seu
argumento com a clebre frase: em todo respeito, o filsofo o salvador de si mesmo
(PORFRIO, De Abst., 2.36; 4243; 49.). Mais adiante, ele argumenta que a verdadeira
santidade, o fim que a apropriao (oikeisis) ao divino, est disponvel, principalmente,
para aqueles que evitam envolvimento excessivo nas expresses materiais de piedade; isso
pertence ao homem
...que luta para se abster das paixes da alma assim como ele abstm-se
daquelas comidas que excitam as paixes, aqueles que se alimentam da
sabedoria sobre os deuses e tornam-se como eles () pelo correto
pensar sobre o divino; um homem santificado pelo sacrifcio intelectual (
), que aborda o deus em roupas brancas, verdadeiramente liberto das
paixes () na alma e com um corpo que luz e no pesa com os
fluidos de outras criaturas ou com paixes da alma (PORFRIO, De Abst.,
2.45.2; 4).
A melhor oferenda que pode ser feita aos deuses, argumenta Porfrio, um intelecto
(nos) puro e uma alma no afetada pelas paixes (apaths) (PORFRIO, De Abst., 2.61.1).
Contudo, em uma passagem de sua Carta para Marcella, ele no aparenta firmeza sobre tal
ponto de vista a respeito dos cultos, l Porfrio argumenta sobre o mrito de honrar os deuses
de acordo com a tradio ancestral, e diz: quando os altares dos deuses so servidos eles
no fazem mal, quando negligenciados eles no conferem benefcios (PORFRIO, Marc., 18,
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34
34). Apesar de no ir alm, fica explcito uma certa dvida e temor pela danao por tal
fraco louvor de acordo com as vias tradicionais.
Numa passagem de seu De Regressu Animae, preservado, e ao mesmo tempo,
ridicularizado por Agostinho (AGOSTINHO, De Civ. D., 10.9.), v-se de modo mais evidente
Porfrio lidar de forma direta com a disputa do problema exposto pela Teurgia: Porfrio
tambm pensou hesitantemente e numa discusso quase que envergonhadamente prometeu
uma certa quasi-purificao da alma atravs da Teurgia, mas negou que esta arte possa
oferecer, a qualquer um que seja, retorno a Deus. Agostinho, observando as mesmas
distines preservadas por Porfrio, sugere que o ltimo titubeia entre os vcios da
curiosidade de sacrilgio e a profisso da filosofia. Algumas vezes, alerta contra a Teurgia
como enganosa e perigosa; outras vezes ele diz ser til para limpar parte da alma, no a
parte intelectual da alma, diz ele que apreende a verdade dos inteligveis, mas, ao invs,
somente a parte pneumtica, que recebe as imagens das coisas corpreas. Os ritos tergicos
podem preparar a parte inferior da alma para a recepo de espritos e anjos e para ver os
deuses, mas como Porfrio garante, eles no fornecem purificao para a parte mais elevada
da alma, permitindo que ela seja adequada para ver seu Deus e para perceber o que realmente
existe. Mesmo essa concesso torna-se nula pelo ltimo comentrio de Porfrio, como
Agostinho se delicia em apontar. Esse mnimo reconhecimento da purificao da alma inferior
torna-se vazio quando Porfrio garante que, mesmo sem a purificao da parte pneumtica,
a alma intelectual pode, todavia, escapar por si mesma (PORFRIO, De Regressu Animae,
fr. 2, 19, 2128). Sob tal construo, a Teurgia simplesmente desnecessria.
Nesse quadro de crticas a arte defendida por Jmblico, ainda quando Porfrio se
dispe a fazer concesses para a tradio, tende a manter uma diferenciao dualista afiada
entre o material e o transcendente, de forma a confirmar as prticas intelectuais como
facilitadoras da ascese da alma, e colocar em cheque rituais que envolvem manipulao das
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35
paixes ou qualquer tipo de apelos vulgares. Plotino, o mestre de Porfrio, pouco disse sobre o
assunto. Na Vida de Plotino escrita pelo discpulo, ele explicitamente descrito como averso
ao ritual, como na passagem onde dito que ele havia recusado um convite feito por um
estudante para presenciar sacrifcios. Eles devem vir mim; no eu a eles (PORFRIO, Vita
Plotini, 10.3536). Por outro lado, parece ter acolhido a crena amplamente difundida de uma
afinidade csmica, a mtua conectividade entre todos os nveis de realidade, noo platnica
de uma hierarquia divina decrescente unida com crena pitagrica de uma phila ou
symptheia csmica. E sob tal ponto de vista, os sacrifcios e rituais tambm tm sua eficcia,
na medida em que eles, assim como todas as coisas, esto encadeados com os reinos
superiores. Ento, apesar de demonstrar averso ao culto tradicional e s supersties comuns,
Plotino sustenta o axioma de que todas as coisas esto de alguma forma conectadas:
Se a riqueza de um homem vem de rduo labor, da lavoura, por exemplo, a
causa deve ser referida ao fazendeiro, com a ajuda do ambiente. Se ele
encontra um tesouro, devemos dizer que algo do Todo cooperou; sendo assim,
indicado [nos cus]; pois todas as coisas, sem exceo, esto conectadas
umas com as outras... que todos os acontecimentos formam uma unidade e
so, como se fossem, tranados juntos, nos casos dos indivduos tambm
como todos, significado por uma das Fates, como elas so chamadas.
(Enadas, II.3.14; 15).
Por mais que o pensamento do mestre de Porfrio, Plotino, seja devotado a um
princpio da busca individual e disciplina como chave para a ascese da alma, ao invs da
ritualstica sem o exerccio da reflexo, pode-se notar que a atividade religiosa no excluda
de sua viso de mundo. Porm, no caso de Porfrio, certo ter mais evidncias sobre a sua
posio em relao a tais assuntos. possvel que a prpria indefinio de Porfrio sobre o
lugar dos rituais religiosos, ou da magia, na vida do filsofo, territrios os quais as antigas
crenas sempre compartilharam, levaram-no a uma srie de mudanas de julgamento pelo
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36
curso de sua carreira. Tal ansiedade pode ter at mesmo estimulado a querela com seu antigo
aluno Jmblico, resultando na Carta para Anebo e na extensiva resposta de Jmblico. Na
Carta para Anebo, Porfrio est plenamente comprometido para uma afiada discrdia da
Teurgia e para a afirmao da primazia da filosofia intelectual sobre o culto. Na carta, no h
traos de sua anterior disposio em garantir ao menos alguma posio para a Teurgia, como
um conjunto de prticas que possa purificar a alma inferior.
Estas so as preocupaes centrais na disputa intelectual sobre a Teurgia. Em essncia,
abrangem questes sobre a natureza da materialidade, onde a matria em si deve ser vista
como boa ou m, como um obstculo para a ascese da alma ou como um veculo que pode
contribuir para sua purificao. Para os cultos tradicionais, como Jmblico entendeu, tudo
depende dessa questo. Como vimos, o humor intelectual da poca tendia para uma rejeio
dualista da materialidade, e muito do material endossado por Jmblico pode ser visto como
afim a alguma prtica duvidosa. A grande tarefa com que Jmblico se deparou foi a de
defender o seu sistema contra as acusaes de que praticava mera magia revestida de
intelectualidade, ou um punhado de supersties sem uma linhagem filosfica. No ambiente
acadmico rigoroso da cultura intelectual do sc. III D.C., caracterizado pela insistncia na
exclusividade da disciplina intelectual como verdadeiro caminho para a libertao da alma,
Jmblico teria tido compreensveis dificuldades para defender o seu projeto.
1.4 Influncias Posteriores
Apesar das crticas enfrentadas na sua poca, a filosofia de Jmblico foi de grande
influncia aps sua morte. Shaw (1995) enfatiza como os ensinamentos de Jmblico
conquistaram a escola Neoplatnica do sc IV D.C., resultando no que ele nomeou de
platonizao da religio popular. Seus ensinamentos deram legitimidade filosfica para os
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rituais politestas e inspiraram o Imperador Juliano (331-363 D.C.), culminando com a
tentativa de reviver as religies pags, em 361 D.C., aps Constantino converter o mundo
romano ao cristianismo. Apesar do paganismo ter sido completamente subjugado pelo
cristianismo, Shaw sugere que:
...a Igreja, com sua encorporao eclesistica da hierarquia divina, suas
iniciaes, e sua crena na salvao atravs de atos sacramentais, pode ter
cumprido o programa tergico de Jmblico de um modo nunca
concretamente pensado pelos Platonista (SHAW, 1995, p. 241).
Sabe-se, hoje, que sua influncia no se limitou ao mundo pago. Jmblico deixou um
legado oculto no mundo cristo, e no sc. VI D.C., um cristo srio escreveu diversos
trabalhos filosficos falsificando a autoria desses livros como sendo de um pequeno
personagem do Novo Testamento, de nome Dionsio, o Areopagita. Esse pseudo-Dionsio
combinou o cristianismo com muito da filosofia defendida e estabelecida por Jmblico24.
Com o sistema sacramental de Dionsio, vemos a liturgia composta por elementos bsicos da
Igreja Oriental, descrita de acordo com a fenomenologia da Teurgia (WEAR; DILLON,
2007, p. 110).
Os escritos de pseudo-Dionsio foram cruciais para moldar o mundo cristo, tanto no
Oriente quanto no Ocidente, onde foram traduzidos para o latim pelo telogo irlands
Erigena. Ironicamente, o sbio que inspirou a reanimao da religio pag acabou por
contribuir, em muito, com religio crist do futuro, por meio de seu intrprete annimo.
J na Renascena, onze sculos aps a morte de Jmblico, uma cpia do que hoje a
sua principal obra caiu nas mos de Marsilio Ficino, que, conforme j falado, cunhou o nome
De Mysteriis, desempenhando um papel influente na fascinao da poca pela espiritualidade
antiga, tendo forte participao durante a revivificao dos estudos do pensamento politesta.
24 A esse respeito consultar Wear e Dillon (2007).
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2 DE MYSTERIIS LIVRO I O HUMANO, O DIVINO E A TEURGIA
Escrito sob o pseudnimo de um sacerdote egpcio chamado Abammon, como uma
resposta Carta de Porfrio para Anebo, o ttulo original da obra De Mysteriis, conforme j
mencionado, de fato: A Resposta do Mestre Abammom Carta de Porfrio para Anebo, e
as Solues para as Questes nela contidas. O ttulo original j estabelece a obra, de forma
categrica, dentro do gnero filosfico de Problemas e Solues25. Elaborado de forma
epistolar, ele essencialmente uma srie de respostas para um conjunto de problemas
() propostos por Porfrio sobre a natureza dos deuses e os modos apropriados de cultos
a eles.
Como abordado no captulo anterior, o dilogo filosfico entre Porfrio e Jmblico tem
sido, de forma predominante, caracterizado pelos acadmicos como um hostil
desentendimento entre um Porfrio ctico e um Jmblico apologtico26. Todavia, antes de
proceder citando as questes postuladas por Porfrio e elaborando suas pontuais respostas,
Jmblico formula um significativo prlogo. Essa introduo pessoal nos d a oportunidade de
examinar, de perto, os seus propsitos e objetivos conforme declarados pelo prprio autor.
Ao iniciar uma viso geral do Prlogo (De Myst., I.1-2), primeiramente, Jmblico, nas
suas palavras de abertura, situa sua obra sob a divina patronagem de Hermes, que descrito
como o deus que o lder do discurso (), e a seguir aponta para si um status de
exegeta e de seu texto como um elo da corrente do deus Hermes, a quem, nos diz Jmblico,
todas as obras advindas da sabedoria so escritas e dedicadas (I.1.2,1-7). Logo a seguir, ele se
25 O gnero literrio de problemas e solues foi bastante comum na tradio platnica tardia e, de
modo geral, estende-se, anteriormente, ao comeo do perodo helenstico e alm. Porfrio mesmo comps nesse gnero as Questes sobre Homero (Homerika ztmata) e Coleo de Questes sobre Retrica (Synagg tn rhtorikn ztmatn), assim como um livro de Questes Variadas (Symmikta ztmata), muitas das quais abordavam tpicos filosficos. Mais tarde, Damscio (o ltimo expoente da Academia) comps um trabalho de Problemas e Solues (aporiai kai lyseis) sobre os Primeiros Princpios. Cf. CLARKE; DILLON; HERSHBELL, 2003, XLVIII.
26 CLARKE, 2001, p.7; CLARKE; DILLON; HERSHBELL, 2003, p.XXII; SHAW, 1995, p.13-15. J Athanassiadi (1993, p. 119; 1995, p. 245), alega que Jmblico um paciente e amvel respondedor.
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39
posiciona de forma especfica na tradio egpcia, alinhando-se ao status de um sacerdote
egpcio e lembrando-nos de que toda a tradio grega, como a de Pitgoras, Demcrito e
Plato, derivaram sua sabedoria do Egito (I.1.2,8-3,2)27.
a partir desse texto, em I.1.3,15, que Jmblico comea a delinear seu caminho
investigativo, declarando que separar e esclarecer todos os problemas colocados,
especificando-os e examinando as teorias que sustentam cada um deles (De Myst. I.1.3,15-4,4;
cf.I.5.15,1-2). Antecipando a necessidade de separar em quatro ramificaes os assuntos
distintos dos temas que esto sendo discutidos nas questes de Porfrio, Jmblico explicita
como ir organizar o seu desenvolvimento, ademais, usado desde Aristteles que ele conhecia
bem e se assentou:
Primeiramente, diz que alguns dos assuntos esto confusos ou misturados e necessitam
ser separados e discernidos do restante (I.1.4,6-7); outros assuntos, relativos Causa Divina
(assuntos teolgicos), so facilmente discernveis como tais (I.1.4,6-7); tm-se, tambm,
assuntos contraditrios que devem ser examinados (I.1.4,7-8)28; finalmente, assuntos que
precisaro de uma exposio de todo o sistema tergico. De fato, a Teurgia toma o foco
principal de Jmblico nessa obra, no apenas por, obviamente, tratar-se do seu interesse, mas
dentre as questes de Porfrio, as que dizem respeito a esse tpico so certamente as
investidas mais polmicas de sua Epstola, e, como tais, merecem as mais completas
respostas.
Cremer (1969, p.7) e Clarke (2001, p.9-10) identificam essas quatro divises de
assuntos na avaliao de Jmblico assuntos que esto confusos e misturados, assuntos
teolgicos, assuntos contraditrios e assuntos tergicos , mas Smith (1993, p. 74-75)
27 Cf. tambm De Myst. VII.5.258,2-5; VIII.5.268,3-6; On the Pythagorean Way of Life 29.158 -
31.198; FOWDEN, 1986, p.186-87. Para um recolhimento de citaes da antiguidade relativas a essa tradio desses mestres visitando o Egito ver CLARKE; DILLON; HERSHBELL, 2003, p5, n.5.
28 Como nota Clarke (2001 p.09), muito da epstola de Porfrio baseia-se em apontar essas inconsistncias, seguindo uma tradio de polmica filosfica que visa atacar os outros pelos seus argumentos contraditrios. Um exemplo dessa tradio seria a obra de Plutarco, Das contradies dos estoicos (De stoicorum repugnaniis).
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40
identifica apenas trs divises ideais, sendo essas: filosofia, Teurgia, e teologia. Ele
argumenta que so essas as divises listadas por Jmblico no De Myst. I.2.6,5-11 e,
novamente nesse texto (I.2.7,2-6), elas ressoam por ele todo, o que de fato ocorre. No entanto,
ele ignora completamente a primeira linha (I.1.4,5-9) que trata da classe de itens que sero
descartados na discusso, e uma categoria de avaliao to importante para o propsito de
Jmblico como as outras trs categorias de valor genuno, pois ele rejeitar muitas das
questes de Porfrio como sendo parte desse conjunto errneo e sem significado. Antes de
entrar na sua exposio, o filsofo adverte que sua abordagem ser necessariamente ecltica, e
seus esclarecimentos extensos (I.1.4,10-11). Cita quatro autoridades para as quais as pessoas
devem se dirigir a fim de se doutrinarem sobre tais assuntos, recomendando os trs primeiros:
os homens sbios da Caldia, os profetas egpcios e as teorias dos filsofos (I.1.4,10-5,8).
Contrrio a estes, Jmblico menciona tambm que algumas pessoas confiam em argumentos
infundados ou meras suposies (I.1.5,1-4). Novamente, aqui, refere-se ao que consiste em
falsos argumentos ou de pouca importncia, e que devem ser colocados fora da discusso
(como nota Clarke 2001 p.10). Jmblico d algumas indicaes do que cada uma dessas
fontes tem para nos oferecer. Em I.2.5,9-14, explicar seu entendimento sobre as ancestrais
doutrinas dos Assrios (i.e. os Caldeus29), advindas de inumerveis escritos da antiguidade e
outros encontrados no que ele relata como um corpus limitado ( )30.
Aqui, ele relaciona a sabedoria dos Caldeus com a totalidade do conhecimento das coisas
divinas (I.2.5,14), ou seja, a teologia, mas no que essa relao seja exclusiva, pois como
nota Clarke (2001 p.17, nota 55), muito das suas doutrinas tergicas esto relacionadas com
as ideias dos Caldeus. As questes filosficas, diz Jmblico, sero discutidas de acordo com
a antiga stelae de Hermes, na qual Plato antes de ns, e Pitgoras tambm, dedicaram
29 Conforme j mencionado, no De Mysteriis os termos so sinnimos. Ver nota 20 cap.1. 30 Des Places na sua edio do De Mysteriis (1996, p.40, nota **) assume estes
como sendo o Corpus Hermeticum, mas interessante a nota de Clarke; Dillon e Hershbell (2003, p.9, n.13) que observa o fato de Jmblico ainda estar se referindo aos Caldeus.
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41
estudos cuidadosos para o estabelecimento de suas filosofias (I.2.6,1), insistindo no fato de
que os filsofos gregos aprenderam sua sabedoria dos egpcios. A respeito das questes
inapropriadas, essas devem ser assim estabelecidas demonstrando de forma harmoniosa os
seus absurdos (I.2.6,2-4). interessante notar que ele nos diz que as noes comuns (
)31 devem ser discutidas de forma clara (De Myst., I.2.6,5-7).
Quanto aos atos divinos, ou seja, a Teurgia32, sero expostos na medida do possvel
em palavras, pois, lidando com o discurso, ele concorda de forma relutante que tal abordagem
inadequada (discursiva) servir, a exemplo de Plato e seus eikn lgos do Timeu. Ele diz que
indicar os sinais () pelos quais Porfrio poder reconhecer a verdadeira Teurgia,
quando participar dela.
Reitera, ento, que responder as questes de Porfrio de acordo com os trs genunos
ramos de conhecimentos, ou seja: teologicamente, teurgicamente, filosoficamente, sendo que
esta ltima diviso ele subdivide em Metafsica e tica (I.2.7,4-6). Sem mais delongas, ele se
direciona s questes de Porfrio.
2.1 Gnosis do Divino
Inicialmente, Jmblico faz uma importante ressalva a um apontamento aparentemente
inocente de Porfrio, de que os deuses existem:
31 teve uma variedade de significados nos textos filosficos da Grcia Antiga;
particularmente no Estoicismo, teve um importante papel na sua teoria de conhecimento e cognio, designando as noes comuns (ver GAZZOLA, 1999, p.97-100), conceitos produzidos espontaneamente sem nenhum pensamento reflexivo ou formao metdica de nossa parte, certas noes universais, que formam a base para a posterior reflexo e formao metdica de conceitos (). Mas seu significado aqui parece bastante particular, referindo-se a opinies comuns a maioria das pessoas, portanto um senso comum (para uma discusso mais profundidade a esse respeito ver nota ad. loc. em De Myst. I.2.6,5-7 (CLARKE; DILLON; HERSHBELL, 2003, p. 9, n.16); tambm Clarke (2001 p.11; 17, n.58), que, nesse sentido estrito de senso comum, reconhece o recorrente uso do termo na literatura neoplatnica referido com uma conotao negativa).
32 Aqui, sigo Clarke (2001 p.11) e Saffrey (1973, p. 284 apud CLARKE, 2001 p.11) ao categorizarem essa seo como Teurgia, contrrio a Smith (1993, p.74), que acredita se tratar de Teologia.
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42
Voc diz, primeiramente, que concede a existncia dos deuses: mas esta no
a maneira correta de se colocar. Pois um conhecimento inato (
) dos deuses coexiste com a nossa natureza, e superior a todo
julgamento e escolha, e existe anterior razo e demonstrao. Do comeo,
ele estabelecido com o desejo () essencial da alma pelo Bem. (De
Myst., I.3.7,128.1)
Jmblico no admite que aos deuses seja concedido ou no a existncia - para iniciar a
discusso -, pois eles precedem toda a nossa capacidade racional e, sendo assim, as divindades
no podem ser conhecidas como se conhece algum objeto do pensamento. No possvel
conhecer os deuses atravs da razo argumentativa, pois no se trata de um conhecimento
discursivo. Segundo ele, na alma coexiste, na sua prpria essncia, um conhecimento inato,
ou conatural ( ), dos deuses. Note-se, na continuao da passagem anterior,
que essa gnosis discutida por Jmblico no uma gnosis no sentido usual da palavra, isto ,
do conhecimento que se tem a partir de um exerccio. Ele explica:
De fato, para falar a verdade, o contato que temos com o divino no pode ser
tomado como conhecimento. Afinal, conhecimento separado [de seu objeto]
por algum grau de alteridade. Mas, anterior a este conhecimento, que conhece
outro como sendo em si outro, h uma conexo unitria com os deuses que
natural . No devemos aceitar, ento, que se trata de algo que
possamos garantir ou no garantir, nem mesmo admiti-lo como ambguo (pois
ele permanece sempre uniforme em atualidade). (De Myst., I.3.8,39)
O conhecimento dos deuses uma presena inefvel na alma ao qual est subordinada,
mais um motivo para que ele venha a favorecer o ritual propiciador de sinais, como se ver,
uma vez que no h lgos para tais assuntos, mas sinais:
...ento, deixe tambm a alma humana unir-se a eles em conhecimento nos
mesmos termos [i.e. pela sua cognio inata dos deuses], no empregando
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43
conjectura, ou opinio, ou alguma forma de raciocnio silogstico. (De Myst.,
I.3.9,8-11 )
Apreende-se os seres superiores em uma cognio uniforme, uma vez que aos
primeiros princpios no se admite a contrariedade apanhada no discurso que mergulha no
reino da gerao. Nosso raciocnio parte do plano da realidade temporal e no adequada
para perseguir as coisas eternas, atemporais (I.3.9,11-12).
O conhecimento dos deuses de uma natureza completamente diferente, e est
vastamente removido de todo procedimento antittico..., por toda a eternidade
coexiste na alma em plena uniformidade. (De Myst., I.3.10,4-7)
Tal contato est afastado do conhecimento argumentativo, mas, prximo da atrao
inata como indica a palavra ephsei da passagem I.3.7,128.1, citada acima , um contato
estabelecido por natureza, e a prpria existncia da alma depende dele, pois estamos
envolvidos pela presena divina, alm disso, estamos preenchidos por ela, sendo de nossa
essncia tal conhecer diferenciado porque no discursivo (I.3.8,11-13). Esse conhecimento
essencial no permite alteridade, uno em si mesmo, e , diz ele, uma presena
indizvel/inefvel, ...princpios () da razo e vida (I.3.9,5). Jmblico, portanto, no
aceita que aos deuses seja concedido ou no a existncia porque, exatamente, so eles
mesmos os fundamentos da nossa existncia, logo, so apriorsticos a qualquer tentativa de
demonstr-los que venhamos a ter.
Embora negue que o raciocnio seja o meio adequado para alcanar o divino, tambm
nos diz que a alma se une aos deuses por um tipo muito especfico de noesis: ...por puras e
inocentes intuies ( ) que so recebidas da eternidade desses
mesmos deuses (I.3.9,12-13). Como nota G. Shaw a respeito:
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44
A referncia de Jmblico a noesis, gnosis, ou eidesis para descrever o contato
com os deuses no deve ser confundida com os modos humanos de
entendimento. Estes termos foram usados como metforas para descrever o
contato pr-essencial da alma com os deuses, e Jmblico sempre os qualifica
como inatos (emphytos), naturais (symphytos), uniformes (monoeides), ou
puros (katharos), a fim de distingui-los do modo humano de entendimento.
(SHAW, 1995, p.120-121)33
Assim sendo, uma doao dos deuses que tenhamos deles o entendimento deles
mesmo, uma vez que a noesis dos deuses no comporta alteridade, diferente do modo como se
d o conhecimento humano que depende dela, as puras intuies ( )
necessariamente transcendem o lgos no sentido de discurso racional. Noesis no , de fato,
conceitualizvel, a gnosis dos deuses anterior hipstase da alma, e enquanto arch do ser
da alma ela pr-essencial, como foi dito, e inacessvel compreenso comum. Embora a
alma no possa ter lgos suficiente sobre os deuses, todavia atrada para eles pelo
impulso/desejo (ephesis) e gnosis naturais ou inatos.
33 Note-se que o valor axiolgico do emprego de physis ao utilizar os termos symphytos e emphytos
marcante para melhor entender a presena divina em ns. Sua noo de physis pressupe o cosmos ao modo neoplatnico, onde todas as coisas, inteligveis e sensveis, em todos os planos, participam do Bem. Tem-se, desse modo, a matria como divina, assim como o resto do cosmos; Deus produz a matria de uma ciso da materialidade com a substancialidade (De Myst., VIII.3.265,6-10). No somente a matria foi criada pelo divino, mas a sua expresso mais distante, como sensvel, dominada pelo princpio supremo:
E desse modo, pela coisa mais elevada mais baixa, a doutrina egpcia referente aos princpios () comea do Uno e procede multiplicidade, e sucessivamente os muitos so governados pelo Uno; e em todo lugar a natureza indefinida regida por uma certa medida definida e pelas causas uniformes mais elevadas de todas as coisas. (De Myst., VIII.3.264,14-265,6)
O retrato de Jmblico sobre a materialidade claramente positiva, e Shaw (1995, p.29) afirma ainda que
essa referncia feita doutrina egpcia tem a inteno de atribuir autoridade a esse ponto de vista. Esse um ponto de partida fundamental para uma diferenciao das suas prprias ideias em relao de seus predecessores neoplatnicos. Embora Plotino tenha dito que a matria inteligvel era divina e essencialmente boa (Enadas, II.4,5), ele condenou a matria sensvel como a causa de todos os males, e mal em si (Enadas, I.8,3). Apesar de designaes hierrquicas como nveis, planos, lotes, o De Mysteriis elabora um ordem csmica interconectada onde ambos, o ser e o vir-a-ser, participam do Bem. Como num nico organismo vivo, todos os seres compartilham de uma nica e comum causalidade, o Bem. A inspirao , sem dvida, platnica. Para um estudo detalhado sobre a divindade da matria em Jmblico consultar Shaw, 1995, p.1-45.
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45
Jmblico cuidadoso ao incluir tambm os gneros superiores nesse tipo de cognio,
contextualizando, com isso, a alma humana no mais baixo grau da hierarquia divina. Segue
sua colocao sobre os gneros superiores.
2.2 Os Gneros Superiores e o Bem
Parece-nos necessrio entender o que Jmblico chama de os gneros superiores
( )34. Na sua obra De Anima, esses gneros compreendem os deuses, anjos,
damones e heris (De An., p. 378, 3-4 e p. 45