Jose Jorge de Carvalho-Usos e Abusos Da Antropologia Em Um Contexto de Tensao Racial (2005)

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    USOS E ABUSOS DA ANTROPOLOGIA EM UM CONTEXTO DE

    TENSO RACIAL: O CASO DAS COTAS PARA NEGROS NA UNB

    J os J orge de CarvalhoUniversidade de Braslia Brasil

    Entro neste debate na condio de autor, junto com Rita Segato, do

    texto da proposta de cotas para negros e ndios aprovada na UnB em 2003.No escondo que o assunto toca-me diretamente e justamente por issodecidi tentar contribuir para uma ampliao do contexto em que surgiram osfatos mencionados por Maio e Santos e aprofundar as discusses sobre asvinculaes (negativas e positivas) da nossa rede de antroplogos com a lutacontra o racismo, dentro do qual concebo o esforo das cotas para negrosnas universidades brasileiras.

    Meu ponto de partida de que no h nenhum acadmico que se possadizer neutro nessa discusso. No limite, todos os comentadores convidados

    devero em algum momento se posicionar a favor ou contra aimplementao de cotas em cada uma das suas universidades. Essadiscusso, portanto, que fraseamos de acadmica, uma outra forma deexpressar posies polticas e ticas, sobretudo no que se refere manuteno ou transformao das desigualdades e discriminaes raciais nonosso meio universitrio.

    Alerto ainda para uma dimenso poltica muito delicada da presentediscusso: trata-se de um colquio intramuros e claramente racializado. Dalista dos 25 nomes constantes da carta-convite que recebi no dia 21 de

    janeiro de 2005, identifiquei uma sociloga (negra) e uma historiadora(branca). Dos 23 antroplogos(as) convidados(as), apenas um negro, eafricano, tendo chegado ao Brasil j adulto. Ou seja, este debate sobre ascotas na UnB no um debate com os antroplogos negros, sejam eles afavor ou contra as cotas. Por qu? Porque h um nmero mnimo deantroplogos negros brasileiros no nosso meio. A presente discusso estsendo desenvolvida neste vcuo racial, agravado pela endogamia disciplinarprpria da antropologia no Brasil (no campo da Educao, por exemplo, este

    debate j poderia ser minimamente multidisciplinar e multirracial). Insisto em

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    que tenhamos presente esse vcuo racial a cada vez que emitamos algumaopinio sobre cotas nas universidades.

    Detecto um erro factual que julgo inadmissvel em uma histria aindato recente. Faziam parte da mesa do Conselho de Ensino, Pesquisa eExtenso (Cepe) do dia 6 de junho de 2003 as seguintes pessoas: TimothyMulholand, Matilde Ribeiro, Petronilha Silva, Jos Jorge de Carvalho e Drisdos Santos Faria, e no Dione Moura, conforme o afirmam os autores. Foiinclusive Dris Faria, naquele momento decana de Extenso da UnB, queindicou os nomes de Renato Hilrio e Dione Moura, respectivamente parapresidente e relatora da Comisso do Cepe. O texto de Seabra citado pelosautores nem sequer menciona a composio da mesa. No sei de ondesurgiu esse equvoco, que julgo bastante grave, por retirar Dris Faria do seupapel histrico como uma das condutoras do evento final de aprovao dascotas na UnB.

    No compreendo por que os autores acham inusitada a presena daministra Matilde Ribeiro na seo do Cepe. No ela a ministra daSecretaria Especial de Polticas para Promoo de Igualdade Racial? E onosso mundo acadmico no escandalosamente desigual do ponto de vistaracial? Nada mais adequado, portanto, que ela tenha contribudo com a luta

    pela igualdade racial dentro da UnB. Se alguma universidade pblica lutassepela aprovao de uma lei que protegesse o meio ambiente, no seriaadequado que a ministra Marina Silva participasse do debate final da matriaa ser votada pelos acadmicos? Temo que o adjetivo inusitada denuncieum incmodo diante da presso que as nossas torres de marfim vmsofrendo ultimamente para que promovamos a integrao racial no nossomeio, qual sempre resistimos. Que fique claro, porm, que a presena daministra Matilde Ribeiro no foi nenhuma ingerncia externa no espaoacadmico da UnB: ela esteve presente naquela reunio do conselho porque

    foi convidada pelo antroplogo autor do texto da proposta.Para quem se declara interessado no envolvimento da antropologia na

    dinmica de processos contemporneos, a histria das cotas na UnB cheia de interesse e lamento que os autores tenham simplificadoexcessivamente o relato do processo. Alm disso, desviaram a suaespecificidade, sugerindo que o processo da UnB foi caudatrio do queocorreu no Brasil a partir de 2001, sobretudo aps a Conferncia de Durban.Ocorre que a luta pelas cotas na UnB no surgiu em 2001 ou 2002, na pocaem que, segundo suas palavras, diversas universidades pblicas, tanto

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    estaduais como federais comearam a discutir o assunto. A proposta decotas na UnB data de 1999, e surgiu em um contexto que no pode ser

    suprimido, porque diz respeito exatamente a esse envolvimento daantropologia, em um grau de destaque que no existiu nos casos da Uerj,da Uneb, e nenhuma outra universidade pblica que tenha aprovado as cotasat agora (com exceo da UFBA, onde antroplogos tambm participaramdo processo).

    Indo um pouco mais longe, quando os autores falam do maiordestaque da lei de cotas da Uerj, estabelecida pela Assemblia Legislativado Estado do Rio de Janeiro (Alerj) no final de 2001, cabe lembrar aqui damatria extensa que o Jornal Nacional, da TV Globo, fez sobre nossaproposta de cotas, em agosto de 2001, em que fui entrevistado, juntamentecom um professor negro e dois estudantes negros. J naquele momentoassociada aos movimentos preparatrios finais para Durban, possvel quea luta pelas cotas na UnB, ao ganhar visibilidade nacional, tenha influenciadoo interesse posterior do ento deputado estadual Jos Amorim de propor ascotas para a Uerj. Um histrico minucioso do processo de cotas na UnB,e que dialoga inclusive com Maio e Ventura, acaba de ser escrito porSiqueira (2004).

    A crtica s fotos no vestibular toma a implantao das cotas na UnBpelo final e acredito que no compreenderemos bem o tal uso daantropologia se no tivermos um quadro mnimo do processo de lutadesenvolvido no interior da universidade. A apresentao de uma propostade cotas para negros na UnB em 1999 foi uma resposta poltica que RitaSegato e eu demos a um caso de conflito racial ocorrido no Departamentode Antropologia da UnB, conhecido j nacionalmente como Caso Ari, quediz respeito a Arivaldo Lima Alves, o primeiro aluno negro a entrar no nossodoutorado aps 20 anos de existncia do programa. Logo no primeiro

    semestre do curso foi reprovado em uma matria obrigatria emcircunstncias inaceitveis e a reprovao colocou-o na iminncia de perderimediatamente o curso de doutorado. Arivaldo Alves lutou mais de dois anospor uma reviso justa de sua nota. E aps um processo de extremo desgaste(dele e tambm nosso: Rita Segato era coordenadora da Ps-Graduao efoi demitida sumariamente do cargo ao posicionar-se do lado de ArivaldoAlves; eu era seu orientador e sofri hostilidade por defend-lo diante damaioria esmagadora dos colegas) conseguiu levar o seu caso at o Cepe daUnB, que reconheceu a injustia cometida e forou o Departamento de

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    Antropologia a mudar a sua nota e aprov-lo na disciplina, o que lhe permitiupermanecer no programa e terminar o doutorado. Ele mesmo j publicou

    uma descrio e uma teorizao sobre sua experincia na UnB (Alves,2001). Outras leituras do caso j foram oferecidas por Carvalho (2002),Santos (2003), Pereira (2004) e Siqueira (2004). Eu o contei pessoalmentea Marco Chor Maio, em uma amigvel conversa que tivemos na reunio daAnpocs de 2000, quando a luta pelas cotas j estava em pleno vapor e atenso do Caso Ari, altssima.

    O Caso Ari assim chamado justamente pela hostilidade aberta queele sofreu dentro do Departamento de Antropologia da UnB e por sua lutapor justia ao longo de quase seis anos. Foi no auge dessa luta pela revisoda nota de Arivaldo Alves que decidimos, em 1999, propor cotas para negrosna UnB. Naquele ano, nenhuma discusso especfica sobre Durban nostinha ainda alcanado e o Seminrio sobre Multiculturalismo e Racismo, de1996, no motivava mais do que discusses acadmicas (no sentido dealheias s demandas dos movimentos sociais) no nosso meio, por razes queMaio e Santos explicam muito bem. Angustiados diante da dificuldade deresolver o problema da reprovao da nota de Arivaldo Alves e indignadoscom a postura de hostilidade injustificada da maioria dos membros do

    colegiado do departamento para com o nosso primeiro (e brilhante)doutorando negro, o pensamento que nos motivou a redigir a proposta decotas foi o seguinte: se to difcil manter um nico aluno negro na UnB,vamos propor um sistema de cotas, para que pelo menos alguns negrospermaneam. Obviamente, a proposta cresceu porque incorporou diversosoutros atores, brancos e negros, o que levou construo de um debate daquesto racial na esfera pblica, que ainda hoje raro no meio universitriobrasileiro.

    As duas sees de pauta nica mais longas da histria do Cepe da UnB

    foram justamente a deciso final do Caso Ari e a votao das cotas. As duashistrias esto diretamente vinculadas, a ponto de que, durante o debate finalpara a votao das cotas, o conselheiro Nielsen de Paula Pires invocou oCaso Ari como exemplo de uma deciso marcante e corajosa daquelemesmo conselho. Alm disso, a mesma polarizao de posies dosantroplogos frente ao Caso Ari se reproduziu na luta pelas cotas paranegros, o que levou Rita Segato e eu a sempre deixarmos clara a autoria daproposta, que em nenhum momento foi formulada pela Antropologia da UnB,como colegiado, e sim por dois antroplogos da instituio. Maio e Santos

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    citam inmeras matrias jornalsticas sobre cotas raciais, na UnB e emoutros lugares. Pena que no tenham citado o Caso Ari, difundido nos

    jornais, tanto por mim, que o vinculei luta pelas cotas, quanto pelo prprioArivaldo Lima Alves, que mereceu matria de uma pgina inteira doCorreio Braziliense (Alves, 2003; Carvalho 2003a, 2003b).

    Gostaria de mostrar uma conexo ainda mais clara entre o Caso Ari eos dois pontos centrais do presente debate: o vestibular de cotas da UnB ea comunidade de antroplogos brasileiros. Ocorre que o Caso Ari atravessoutrs presidncias da ABA, justamente durante todos os anos em que lutamospelas cotas na UnB. No segundo semestre de 1998, Arivaldo Alves escreveuuma longa carta presidncia da ABA solicitando apoio diante das injustiasque sofria no nosso programa, mas sua carta foi engavetada e ele jamaisobteve resposta. Dois anos mais tarde, a reunio da ABA de 2000 foirealizada justamente na UnB, e o ento vice-presidente da ABA desde 1998foi feito presidente naquela reunio. Naquele momento, Arivaldo Alvescontinuava enfrentando as hostilidades do programa enquanto se esforavapor terminar o seu doutorado, e a luta pelas cotas continuava intensa noscorredores da universidade. J em 2002, o quadro tornou-se ainda maisexplcito no trinmio ABA-cotas-Caso Ari: a presidncia da ABA veio para

    o Departamento de Antropologia da UnB. Assim como a presidncia daABA mudou trs vezes durante o Caso Ari, a carta de Ari presidncia daABA mudou de gaveta trs vezes. Todavia, na terceira vez formou-se umaconjuntura ainda mais hostil para o nosso primeiro doutorando negro: houveuma acumulao de cargos da presidncia da nossa associao nacional deantroplogos com a da coordenao do Programa de Ps-Graduao deAntropologia da UnB. No dia em que a presidncia da ABA decidirdesengavetar a carta de Arivaldo Alves, quem sabe poderemos finalmentediscutir novos usos da antropologia, sempre em parceria com os

    estudantes e professores negros, em um clima de confiana mtua esolidariedade.

    Maio e Santos citam um comentrio do ento presidente da ABA em2004, crtico das fotos na UnB, e outro da Comisso de Relaes tnicase Raciais (Crer) da ABA em 2004, igualmente crtica das fotos.Impressiona-me que os dois autores sejam capazes de construir seusargumentos em cima desses posicionamentos, como se se tratassem dereflexes de acadmicos neutros (como engenheiros falando de estruturasde concreto), que opinam apenas em nome da cincia antropolgica.

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    Como se eles no estivessem respondendo a posies que ocupam ouocupavam dentro de uma rede disciplinar fechadssima, homogeneizante e,

    nesses ltimos anos, tensionada em sua cpula pelo abafamento de umconflito racial sucedido em um dos principais programas de Ps-Graduaoda rea no pas, e justamente de onde surgiu uma proposta de cotas paranegros firmada pelos antroplogos que apoiavam o aluno negro. precisosaber o papel que essas pessoas jogaram e ainda jogam na dinmica dasrelaes raciais no interior da nossa rede de antroplogos para interpretarpor que disseram o que disseram (e por que ainda dizem ou no dizem)sobre as fotos/cotas.

    Ao invs de tentar compreender a dinmica da antropologia, sugiro quefaamos uma reflexo sobre a atuao dos antroplogos em seusenvolvimentos histricos concretos. este precisamente o eixo central domeu comentrio: tentar compreender os vnculos de membros da cpula daantropologia brasileira com o processo de cotas na UnB (mediados, emvrios casos, pela reao corporativa provocada pelo Caso Ari) e do qualsurgiu, no final do processo, a opo pelas fotos, justamente quando osantroplogos proponentes deixaram de participar do processo deimplementao. Dou alguns exemplos.

    Em primeiro lugar, seria interessante fazer uma reflexo sobre asvicissitudes do engavetamento da carta de Arivaldo Lima Alves,contrastando esse fato lastimvel com a auto-imagem de superioridademoral e compromisso anti-racista com que a associao se apresenta,nacional e internacionalmente, e que me parece inclusive ter se intensificadonos ltimos anos, aps o Caso Ari.

    Quanto Comisso de Relaes tnicas e Raciais (Crer) de 2004, suavinculao com o Caso Ari tambm ntima. Na verdade, essa comisso foi

    instalada na reunio da ABA de Gramado, em 2002, a pedido de dois ex-professores de Arivaldo Lima Alves, conscientes do seu drama na UnB. Aproposta de criao dessa comisso foi uma tentativa tmida de politizar aquesto racial no interior da associao (o que infelizmente no ocorreu). Dequalquer maneira, so vrios os membros da Crer que tm ou tiveramgrande familiaridade com o Caso Ari. possvel interpretar a visvelindeciso e paralisia poltica da comisso (por um lado critica as fotos semse dizer abertamente contra o processo; e por outro sustenta que ainda notem uma posio formada sobre as cotas para negros nas universidades)

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    como resultado da ambivalncia da relao institucional de alguns de seusmembros (por exemplo, os ex-professores de Arivaldo Alves) com a ento

    presidncia da ABA, a qual, como dito anteriormente, estava relacionadapelo negativo com o Caso Ari e com as cotas na UnB.

    Na mesma linha de uma poltica da neutralidade nas cincias sociais,quando Maio e Santos discutem a questo do antroplogo como perito, opressuposto de que existe um grupo l fora (seja tnico, racial, degnero, movimento social, etc.) e a discusso de se ns, antroplogos,devemos ou no falar por ele, isto , como nos envolvemos em umademanda que se encontra em outro espao social ou poltico (terras, sade,direito de explorao de recursos, etc.). Mas essa no a situao das cotaspara negros. As cotas incidem sobre o nosso universo, onde mantemosnossos privilgios de brancos, e o que est em questo decidir se vamosfinalmente aceitar dividi-los com os negros ou se vamos permanecercontrolando o acesso a 99% dos recursos de que dispem as nossasinstituies acadmicas.

    Senti falta ainda, no relato de Maio e Santos, da meno explcita a umgrupo de atores crucial para a compreenso do processo da UnB, inclusiveda opo pelas fotos: o coletivo de estudantes negros chamado EnegreSer,

    mencionado inmeras vezes nas matrias sobre a UnB. Como se no tivessebastado o Caso Ari, houve um segundo incidente de discriminao racial naUnB no segundo semestre de 2001, quando um grupo de estudantes negrosfoi hostilizado pelos seguranas de uma festa dos estudantes... por incrvelque parea, da Antropologia! Aps uma fase de confronto e intenso debateentre os dois grupos e dos estudantes discriminados com a Administrao dauniversidade, esses estudantes negros se constituram como um grupo eexigiram da reitoria uma reparao do ato de racismo que sofreram emforma de um Frum para discusso da questo racial na universidade. O

    EnegreSer engajou-se na luta pelas cotas desde o momento de suaformao, interveio com declaraes decisivas na reunio de votao doCepe, participou da Comisso de Implementao como convidado e foitambm um ator poltico na legitimao do atual modelo das fotos. Suaparticipao na proposta de cotas, como processo poltico, exigecomplexificar a discusso dos autores, ao insistir no carter racialmenteposicionado de todos os envolvidos, e introduzir o protagonismo negro, noapenas fora, enquanto movimento social, mas tambm como ator dentrodas universidades.

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    Enfim, a questo primeira no saber se um de ns defende aautoclassificao e o outro a heteroclassificao, como se estivssemos

    optando entre duas teorias igualmente abstratas. A questo saber seaceitamos fazer parte da luta anti-racista. E, em caso positivo, at ondeestamos dispostos a chegar para enfrentar o racismo constitutivo de nossomeio. Declaraes institucionais de antroplogos devem ser contrastadassempre com as posies concretas que tomam, no somente nos espaospblicos, mas tambm em seus meios acadmicos especficos. Quem somosns, antroplogos brasileiros? Por que estamos indignados com os critriosde definio racial? Ser porque no queremos que nossa brancura socialseja finalmente exposta e os inmeros benefcios dela advindos finalmentequestionados? E se somos brancos, que posio tomamos sobre a inclusodos negros e dos ndios no nosso meio altamente privilegiado?

    Para finalizar, respeito o esforo acadmico de Maio e Santos e seupropsito sincero de contribuir com o processo de cotas da UnB ao abrir odebate. Ainda acredito, contudo, que poderiam ter aberto esse debate aindamais e admitir-se mais francamente como sujeitos posicionados. Porexemplo, eles repetem vrias vezes a expresso tribunal racial, de repdios fotos na UnB, atribuindo-a a um editorial da Folha de So Paulo.

    Cobertos, porm, por seu discurso de neutralidade acadmica, omitem doleitor o fato de que eles tambm escreveram, em jornais, dois textosvirulentos contra o processo da UnB, inclusive incorporando a mesmaexpresso tribunal racial na sua postura negativa. Nada contra que otenham escrito, mas no deveriam omiti-los e sim assumir abertamente a suaposio contrria, ao invs de escudar-se por trs da virulncia de outrosautores contrrios s fotos/cotas.

    Finalizo com um breve comentrio sobre as fotos, tema central destedebate. Como Maio e Santos, sou contrrio s fotos e minha razo por

    discordar delas no cientfica, mas poltica: as fotos despolitizam oposicionamento do sujeito ao transferir a responsabilidade de assumir suacondio racial para a comisso. O que espero da autodeclarao que elase generalize especularmente, de modo a alcanar no somente oscandidatos ao vestibular pelas cotas, mas tambm a ns, acadmicosbrancos que nunca nos assumimos como tais. No momento em queaceitarmos, sem subterfgios, que o Museu Nacional, a Fiocruz, a UFRJ, aUSP, a Unicamp, a UFRGS, a UFMG, a UnB esto entre as instituiesacadmicas mais segregadas racialmente do mundo (por exclurem quase

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    inteiramente os representantes do contingente dos negros, que somam 45%da populao do nosso pas), talvez possamos refazer nosso olhar

    acostumado a naturalizar esse escndalo e passemos a nos sentir menosneutros ao criticar critrios de identificao de negros para, pela primeiravez em nosso pas, benefici-los. Quem sabe, no momento em que tivermostodos que nos autodeclarar brancos e assumir as conseqncias dessadeclarao, possamos passar da discusso das fotos para uma outra, queconsidero muito mais urgente: a de por que a UnB j abriu cotas paranegros, a partir de um posicionamento aberto de dois antroplogos brancos,enquanto os antroplogos brancos do Museu Nacional, da Fiocruz, da UFRJ,

    da USP, da Unicamp, da UFRGS, da UFMG ainda continuam calados dianteda segregao racial de que participam.

    Referncias

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    SIQUEIRA, Carlos Henrique Romo O processo de implementao dasaes afirmativas na Universidade de Braslia (1999-2004). O Pblico e o

    Privado : Revista Acadmica do Mestrado em Polticas Pblicas eSociedade, Fortaleza: UECE, v. 2, n. 2, 2004.