Jornal Sem Terra edição 309

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www.mst.org.br ANO XXIX– Nº 309 – JANEIRO 2011 Os desafios para a luta em tempo de descenso Página 10 REALIDADE BRASILEIRA Busca por terra e o papel do Brasil no agronegócio mundial Entrevista – páginas 4 e 5 HORÁCIO MARTINS Fotos do livro “O Rio São Francisco e as Águas no Sertão”, de João Zinclar Páginas 8 e 9 ESPECIAL

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www.ms t . o rg . b r ANO XXIX– Nº 309 – JANEIRO 2011

Os desafios para

a luta em tempo

de descenso

Página 10

REALIDADE BRASILEIRA

Busca por terra e o

papel do Brasil no

agronegócio mundial

Entrevista – páginas 4 e 5

HORÁCIO MARTINSFotos do livro

“O Rio São Francisco e

as Águas no Sertão”,

de João Zinclar

Páginas 8 e 9

ESPECIAL

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2 JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

EDITORIAL Precisamos avançar na construção de nosso projeto, através dos nossos assentamentos

Palavra do leitor FRASE DO MÊS

DIREÇÃO NACIONAL DO MST

Edição: Joana Tavares.Revisão: Marina Tavares e Vanessa Ramos.Edição de imagens: Marina Tavares.Projeto gráfico e diagramação: Eliel Almeida.Assinaturas: Mary Cardoso da Silva. Impressão: TaigaGráfica e Editora. Tiragem: 10 mil exemplares.Endereço: Al. Barão de Limeira, 1232 – CEP 01202-002São Paulo/SP – Tel/fax: (11) 2131-0840. Correio eletrônico:[email protected]. Página na internet: www.mst.org.br

Manga (MG).Livro “O SãoFrancisco e aságuas no sertão”.

Foto: João Zinclar

PARA A MAIORIA da população, o go-verno Lula terminou com uma marca deavanços sociais. Conquistas como o au-mento de renda, o acesso às universidadese os direitos trabalhistas não foram conces-sões do governo, mas resultado de décadasde mobilizações e reivindicações dos tra-balhadores, que agora encontraram umcampo progressista para que pudessem serrealizadas. Porém, na agricultura, o gover-no e o ano de 2010 terminaram com ofortalecimento do agronegócio e a paralisiana Reforma Agrária.

Os assentamentos foram concen-trados na região norte – muitas vezes emáreas sem infra-estrutura e longe doscentros comerciais - enquanto o acesso apolíticas públicas, como o Pronaf, esteveconcentrado, para agricultura camponesaem geral, no sul do país. E, ainda assim,

apenas para aqueles que conseguiramsobreviver aos juros e o endividamento.

Já para o agreonegócio, apesar da criseeconômica internacional, o capital de-monstrou rápida capacidade de se recuperar,através da concentração – como na fusãodas empresas de celulose, frigoríficos eagroindústrias - e dos auxílios recebidos dosgovernos e fundos internacionais. Ascontradições deste modelo – como odesmatamento na Amazônia para o avançoda pecuária e da soja, o trabalho escravo eo uso intensivo de agrotóxicos – jádespertam a atenção de parte da sociedade,mas ainda não ganham corpo suficientepara barrar este projeto ou conscientizar oconjunto da população.

Esta é uma das nossas principais tarefaspara o próximo período: construir ações quedesmascarem as consequências econômi-cas, ambientais e sociais do agronegócio.

Todos envolvidos

Contrapor este modelo significa tam-bém que precisamos avançar na constru-ção de nosso projeto, através dos nossosassentamentos. É na vida cotidiana epolítica dos assentamentos que podemosinfluenciar o entorno das nossas áreas,

ajudando a politizar demandas sociais eorganizar a população do interior do país.Isto exige também a organização da pro-dução em vista da soberania alimentar,do auto-sustento e na implementaçãode um modelo agroecológico.

Porém, a organização produtiva nãopode ser apenas um processo econômico.Pelo contrário, na medida em que tra-balhamos com apenas uma grande linhaprodutiva (o arroz, leite, milho, por exem-plo), excluímos parte do assentamentoque não está inserido nestas cadeiasprodutivas, principalmente os jovens eas mulheres. Portanto, organizar a pro-dução não é organizar uma única linha,mas construir um processo que envolvao conjunto das famílias assentadas, vi-sando à implantação das agroindústrias.

Neste processo, devemos envolvertambém a juventude. Só conseguiremosmanter nossos filhos e filhas no campona medida em que possamos garantir oacesso à educação, à tecnologia, mastambém à renda. E, combinado com isso,a formação política que permita consti-tuir novas gerações de socialistas.

Por fim, olhar para as nossas demandasinternas – a organização dos assentamentos

e das nossas famílias – não significa quedevemos nos isolar do restante da classe.Pelo contrário, permanece como desafio aconstrução de alianças e mobilizações comos movimentos camponeses organizadosna Via Campesina, com os assalariadosrurais e também com os trabalhadoresurbanos. Exercitar a solidariedade decontribuir e entender as lutas destes setoresacumula não apenas para o fortalecimentodestas categorias, mas para o conjunto daReforma Agrária. Só conseguiremos im-plementar uma Reforma Agrária Popularse ela for alicerçada nesta aliança entre ospobres do campo e da cidade.

Boa luta para todos nós!

É preciso desmascarar o agronegócio

SaudadesVisitei o Acampamento de Santa Ma-

ria da Conquista do MST, em Itapeti-ninga (SP), com outros alunos de colégiosda capital paulista e estou até agoracomovida pela visita. Vou voltar ano quevem ao acampamento, e espero que osencontre do outro lado da cerca (comoum colega meu já disse). Desejo toda sorte

do mundo a vocês, e queria que soubessemque fiz um post no meu blog sobre avisita. Já estou com saudades! Com amor,

GABRIELA SAKATA

Nós aderimosSou da cidade de Reginópolis (SP),

e nós aderimos à luta do MST. Estamosmuito felizes em poder conhecer melhor

esta linda causa,em prol da conquistada terra... Parabéns ao site,é bemexplicativo quanto à luta!!!

VILMA CUSTÓDIO

Apoio sempreOlá, companheiros e companheiras

do MST, sou de Fortaleza Ceará, e apoiotodas as ações. Sempre que estão acam-pados estou lá apoiando.

AURELIO ARAUJO

Mande sua mensagem parao Jornal Sem Terra

Sua participação é muito importante. As correspondênciaspodem ser enviadas para [email protected] ou para a AlamedaBarão de Limeira, 1232, Campos Elíseos, São Paulo/SP, CEP01202-002. As opiniões expressas na seção “Palavra doleitor” não refletem, necessariamente, as opiniões do Jornalsobre os temas abordados. A equipe do JST pode,eventualmente, ter de editar as cartas recebidas.

“Eu estouconvencido -não porque euprefira assim,mas porque ahistória mostra pra gente - quenenhum país desenvolvidodeixou de fazer, em algummomento de sua história, aReforma Agrária. A contribuiçãoque o MST tem dado é muito,muito grande, porque é justamenteorganizar a força de pressão quepermita um avanço nesse sentido[da Reforma Agrária].”

FERNANDO MORAIS

Escritor

Esta é uma das principais tarefaspara o próximo período: construirações que desmascarem asconsequências econômicas,ambientais e sociais do agronegócio

Exercitar a solidariedadede contribuir com as lutasde outros setores acumulanão apenas para ofortalecimento destascategorias, mas para oconjunto da Reforma Agrária

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3JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

ESTUDO Solução adotada pelos Estados gera aprofundamento das contradições

LEDA PAULANI

PROFESSORA DA FACULDADE

DE ECONOMIA DA USP

A CRISE FINANCEIRA mundial doúltimo trimestre de 2008 parece terdesaparecido como por encanto. Depoisde comparada, por sua gravidade e ex-tensão, à grande crise dos anos 30 doséculo passado, sai de cena quase des-percebidamente, como se tivesse sido um“alarme falso”, um pequeno problemaprecipitadamente levado ao status dehecatombe. Como interpretar esse mo-vimento? Monumental equívoco porparte daqueles que interpretaram o fenô-meno como sendo um desastre de gran-des proporções, ou, ao contrário, a apa-rência de que tudo volta aos eixos é efeti-vamente apenas uma aparência, enco-brindo uma situação de vulnerabilidadee graves desequilíbrios no plano da eco-nomia mundial? Se analisarmos, doponto de vista do longo prazo, o quevem se passando com o processo comoum todo de acumulação de capital,concluiremos que a última hipótese ébem mais plausível.

Primeiro, convém deixar claro quea crise não começou em setembro de2008. Começou muito antes, algumasdécadas antes. Segundo, a crise não foiproduzida pelo mercado imobiliárioamericano, ainda que tenha sidorevelada aí a ponta do iceberg, masproduzida por causas estruturais.

Origens da crise

Na realidade, o capitalismo, desde ofinal dos anos 1960, viu agravar-se umprocesso que alguns economistasmarxistas denominam sobreacumulaçãode capital, ou seja, o fato de existiremdeterminados períodos em que háexcesso de capital para as possibilidadesdisponíveis de aplicação produtivalucrativa. Quando isso acontece,diversos expedientes entram em cenapara contornar o obstáculo. Um dosmais acionados é a busca de valorizaçãofinanceira, ou seja, de acumular capitalpor meio de empréstimos e aquisiçãode ativos financeiros. Na maior partedos casos, tal busca implica tambémvalorização fictícia, aquela valorizaçãoque aparece por obra e graça da mera

Cadê a crise?circulação do capital, da compra e vendade ativos, fictícios ou não.

Ora, foi exatamente isso que co-meçou a ocorrer à larga há cerca de qua-tro décadas, depois de quase 30 anos decrescimento acelerado da economiamundial. Para complicar, essa buscadesenfreada de valorização financeiracombinou-se com as transformações nosistema monetário internacional. Essastransformações resultaram na reafirma-ção do dólar americano como dinheiromundial, mas agora sem o lastro doouro, que caracterizara sua função demoeda número um no sistema anterior(o sistema de Bretton Woods, acordadono pós-guerra).

O elo entre um e outro fenômenofortaleceu-se com a vitória do ideárioneoliberal. Um mundo de fronteirasfinanceiras livres e de direitos dos credoresem primeiro lugar, mas, ao mesmo tempo,de políticas monetárias rígidas e de duroscontroles dos gastos dos Estados nacionais,levou a inflação mundial, que resultariada plena liberdade concedida à políticamonetária americana (com a desvinculaçãoentre dólar e ouro), a saltar para a esferados estoques de riqueza, acrescentando ànatural valorização dos ativos financeiros,então em curso, o combustível monetáriosem o qual não poderia ir muito longe.

Resultado: crescimento ímpar da ri-queza financeira, crescimento que a fezmultiplicar-se por 15 nas últimas trêsdécadas, enquanto o PIB mundial cresceunão mais que quatro vezes no mesmo pe-ríodo. Ao mesmo tempo, tal crescimentoexponencial da riqueza financeira é pon-tuado pela contínua formação de bolhasde ativos, que provocam fortes crisesquando estouram. O último episódio teveexatamente esse formato, o estouro da

padece, ainda por cima, as consequên-cias da aplicação do referido remédio,como o testemunham as duras situaçõesvividas por alguns Estados nacionais,com destaque para os mais frágeis dazona do euro.

O que sobra para o Brasil

Os países emergentes, como o Bra-sil, vêm sofrendo do mal contrário,mas não menos perigoso, expresso nacontínua valorização de suas moedas.Por aqui, as consequências dessa si-tuação já despontaram há algum tem-po, com o desestímulo à produção na-cional e o retrocesso do país à condi-ção de exportador de commodities ebens de baixo valor agregado. Eis ooutro lado da moeda de o país ter setornado potência financeira emer-gente e plataforma internacional devalorização financeira.

A irresolução e o agravamento dodescompasso existente no plano mundialtornam, portanto, ainda mais temerária apersistência no país da política de jurosreais superlativos que experimentamos hámais de 15 anos, política injustificável einexplicável sob qualquer outro critério,que não o dos interesses por ela direta-mente beneficiados.

Acordo firmado por 45 países em1944, que colocava o dólar como moedade referência mundial, tendo o outrocomo lastro. Para regular o acordo,foram criados o Fundo MonetárioInternacional (FMI) e o Banco Mundial.

bolha do mercado imobiliário americano,que havia fomentado a formação de umasérie de outras, mundo afora, numprocesso patrocinado pela assim chamadaglobalização financeira.

Remédio ou veneno?

Vale dizer, o excesso de liquidez mun-dial num mundo patrulhado pelos impe-rativos neoliberais é o responsável maiorpela crise. E qual o remédio adotado?Uma cavalar dose de liquidez aplicadapelos Estados nacionais... coisa da ordemde trilhões de dólares! Sem contar osUS$ 600 bilhões recentemente anuncia-dos pelo governo americano. Mas, se deimediato isso parece minorar os efeitosprimeiros e mais agudos da crise, no médioprazo só faz aumentar o descompasso queestá em sua origem. Haja contradição!

Assim, não só a crise não terminou,como vivemos hoje num mundo aindamais vulnerável e desequilibrado, que

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4 JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

Agronegócio submete o país às estratégias das grandes empresasENTREVISTA

JOANA TAVARES

SETOR DE COMUNICAÇÃO

JST – Como se explica o aumentoda busca por terras em todoo mundo e quais as consequências nocontrole estrangeiro sobreas terras agricultáveis?

HC – O Incra estima que 4,34 milhõesde hectares em todo o Brasil já estejamem mãos de capitalistas de outros países.Essa é uma estatística modesta devido àcamuflagem que a concepção vigente de‘empresa nacional’ proporciona, aotolerar servilmente na sua composiçãosocietária a participação de mais 90% decapital estrangeiro. O que motiva a apro-priação privada de terras agricultáveispelas empresas transnacionais é a pos-sibilidade efetiva de poucas dessas empre-sas exercerem o controle mundial sobrea oferta, comercialização e beneficia-mento de alimentos e agrocombustíveis,além de se afirmarem como um impériosetorial sobre um setor fundamental da

vida dos povos. A apropriação privadadas terras agricultáveis passou a ser consi-derada pelas agências multilaterais BancoMundial, FAO, UNCTAD e FIDA comoinvestimentos agrícolas para o ‘desenvol-vimento econômico nacional’. Para aco-bertar essa ocupação neocolonial das ter-ras agricultáveis no mundo, foi elabora-do, pelas agências acima citadas, um Có-digo de Conduta, apresentado em abrilde 2010 em Washington, capital dosEstados Unidos, durante a conferênciaanual de terras do Banco Mundial. O có-digo objetiva a legitimação do mercadomundial de terras agricultáveis pelasgrandes empresas transnacionais privadase estatais. E como o recurso terra é limi-tado, o seu controle pela apropriação pri-vada e ou pelo arrendamento das terrasagricultáveis em todo o mundo se tornouprioridade geopolítica estratégica doagronegócio internacional. O Brasil é opaís que possui o maior estoque de terrasagricultáveis, um clima favorável à pro-dução agrícola e governos entreguistas.

Essa conjugação de fatores tem facilitadoa aquisição de terras por estrangeiros econtribuído decisivamente para a nega-ção da soberania alimentar e a nacional,submetendo os destinos do país àsestratégias de negócios das grandesempresas nacionais e transnacionais.

JST – Calcula-se que o agronegóciotenha recebido cerca de R$ 90 bilhõesde crédito para gerar um PIB de R$120 bi em 2010. Como se explica essapouca produtividade?

HC – A regra na lógica do agronegócioé a reprodução dos interesses privadosna agricultura a partir de recursos públi-cos, na sua maior parte a fundos politi-camente perdidos para o contribuintebrasileiro. Isso inclui não apenas o créditorural subsidiado e constantemente renego-ciado como as renúncias fiscais, reduçãode alíquotas e isenções de impostos. Sobessa lógica, ser grande empresário doagronegócio não é difícil, ainda que suaslideranças apregoem ideologicamente o

livre mercado, a concorrência e a ausênciado Estado na condução dos seus negó-cios. Não fazem mais do que sempre fize-ram as classes dominantes no campo des-de o período do Brasil colonial: falarcontra a presença do Estado na economiae usufruir dele o máximo possível,sempre em detrimento da maioria dapopulação. Nessas condições se explica,mesmo sendo imoral, que o agronegócioreceba cerca de R$ 90 bilhões de créditopara gerar um PIB de R$ 120, de umtotal do PIB agrícola de R$ 160 bilhões.Não é de se estranhar, portanto, que oBrasil seja o terceiro país na lista deprioridades nos planos de investimentosno exterior das grandes empresastransnacionais.

JST – Por que se favorece oagronegócio quando a pequenaagricultura produz mais alimentos parao mercado interno?

HC – O agronegócio se constitui numafração importante da classe dominante

O Brasil é uma economiaagrícola subalternaNesta entrevista ao Jornal Sem

Terra, o engenheiro agrônomo e

cientista social Horácio

Martins de Carvalho faz uma

profunda análise sobre a

organização do agronegócio no

mundo hoje e o lugar do Brasil

nesse cenário. País com o maior

estoque de terras agricultáveis,

clima favorável à produção e

governos entreguistas, o Brasil se

configura, segundo Horácio, como

o terceiro país na lista de

prioridades dos planos de

investimentos das grandes

empresas transnacionais, que

controlam os mercados de

alimentos e agroenergia.

Inter

net

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5JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

no país: se apropriou privadamente damaior parte do território rural. A ‘moder-nização e a artificialização’ da agricultu-ra, iniciada na década de 1950, tornou aburguesia agrária no Brasil forte compra-dora de produtos (insumos agrícolas,máquinas) de outras frações da burgue-sia. E os principais fornecedores dessesinsumos têm sido as empresas trans-nacionais do ramo da indústria químicacomo a Bayer, Basf, Aventis, Dow, Mon-santo e Syngenta. Os camponeses produ-zem mais alimentos do que o agronegó-cio, representam 84,4% do total de esta-belecimentos rurais do país e defendema soberania alimentar e popular. No en-tanto, não faz parte da concepção demundo hegemônica no Brasil a propostasocial de soberania alimentar e, menosainda, de soberania popular. É mais fácilpara os governos e para as empresas doagronegócio garantirem a segurançaalimentar (não a soberania alimentar) pe-la importação de alimentos do que desti-nar recursos públicos para a melhoria daprodução e da produtividade dos campo-neses. Essa tendência se consolida quandoos alimentos básicos como arroz, feijão,mandioca e leite, entre outros, se consti-tuem em mercadorias, com preços defi-nidos nos mercados. Esses produtos,outrora produzidos predominantementepelos camponeses, passam a se constituir,também, em objeto de cobiça do agrone-gócio pelas margens de lucro que podeme poderão obter nas condições oligopo-listas, tanto no mercado nacional comointernacional. Ora, como poderia o go-verno liberal brasileiro deixar de forneceracesso facilitado aos recursos públicospara o agronegócio se este é um dos elosfundamentais da cadeia de interesses docomplexo mundial da indústria química,de alimentos e de agroenergia? E se noano de 2010 o Brasil passou a ser o maiorconsumidor de agrotóxicos do mundo?

JST – Quais os principais impactosdo elevado consumo de agrotóxicos?Por que o Brasil se sujeita a aceitarvenenos em sua agriculturaproibidos em outros países?

HC – Os principais impactos do elevadouso de agrotóxicos são a contaminação edegradação do meio ambiente, o compro-metimento da saúde dos trabalhadoresrurais e dos camponeses e a redução dabiodiversidade. Esses impactos resultamde um modelo tecnológico onde somenteo lucro comanda a lógica da produção.E não é o Brasil que se sujeita a aceitar

venenos para a sua agricultura proibidosem outros países. São parcelas do empre-sariado do agronegócio que, movidospor uma constante ganância incontida,buscam as formas mais infames de obtertais produtos. Os cinco cultivos que maisconsumiram agrotóxicos em 2008 foramsoja, milho, cana-de-açúcar, algodão ecitros, representando 87,21% do totalcomercializado no país nesse ano. E essescultivos são os de maior presença no ValorBruto da Produção (VBP) agrícola nacio-nal. As sementes híbridas e os organis-mos geneticamente modificados (OGMs)são os principais responsáveis pela de-manda de agrotóxicos. As grandes em-presas transnacionais como a Dupont,Aventis, AstraZenec e Monsanto têm nosOGMs parte importante de suas estra-tégias comerciais para vender agrotóxi-cos. As maiores empresas produtoresdesses venenos são Syngenta, Bayer,Monsanto, Basf, Dow, DuPont eNufarm, as quais lucraram nos seusnegócios mundiais em 2008 cerca de40 bilhões de dólares.

JST – Qual o papel daagricultura brasileira no jogo deforças internacional?

HC – A estrutura da produção agrope-cuária e florestal dos médios e grandesestabelecimentos rurais no Brasil semprese moldou de forma a atender aos in-teresses da burguesia agroexportadora,assim como à demanda mundial de pro-dutos do setor primário. E essa tendênciase torna cada vez mais acentuada na me-dida direta que as grandes empresastransnacionais dominam a oferta internade sementes, insumos, máquinas e aagroindustrialização, assim como o

comércio internacional de commodities.Isso significa que essas empresas trans-nacionais possuem o controle estratégicoda produção agropecuária e florestal nopaís. Essa situação é agravada pela inci-piente agregação de valor aos produtosda produção agropecuária e florestal quesão exportados. A agricultura brasileirase reafirma na divisão internacional daprodução social como produtora de maté-rias-primas para a agroindústria. A partirda racionalidade do agronegócio, se con-firma como um ramo da indústria. Por-tanto, uma economia agrícola subalterna.

JST – Segundo o anuário doagronegócio referente a 2010, osativos das 50 maiores empresasatingiram R$ 189 bilhões. Como seexplica o poder do capital financeirosobre a agricultura e qual aperspectiva para 2011?

HC – A agricultura do agronegócio, aose tornar efetivamente um ramo da in-dústria, proporcionou condições maisefetivas para o domínio dos grandes con-glomerados de empresas transnacionaisda indústria química sobre a produçãode alimentos, fibras e a agroenergia. Aoligopolização desses mercados foi umaconsequência esperada sob a concepçãoneoliberal de sociedade. A terra, a águadoce, as florestas, o litoral, enfim, osrecursos naturais, amplo senso, tornaram-se mercadorias, portanto, objeto de lucroe de negociação nas bolsas. Vivenciamos,há algumas décadas, uma transiçãofundamental na economia mundialprovocada pela hegemonia do capitalfinanceiro: todas as dimensões da vidase tornaram mercadoria e o lucro, a únicareferência na gestão das sociedades.

JST – Quais são as perspectivaspolíticas para o próximo período emrelação à agricultura?

HC – A não ser que os movimentossociais e sindicais populares no camposuperem o abestalhamento a que foramreduzidos devido aos processos já crô-nicos de reivindicação, protesto e depen-dência financeira dos governos, tudo levaa crer que a expansão capitalista nocampo, com a consequente concentraçãoe centralização da renda e da riqueza, iráse ampliar. A luta de classes se tornou“luta com classe”. A desagregação docampesinato e dos pequenos e médiosprodutores rurais se dará sob diversasmaneiras, desde aquelas tradicionaismovidas pela truculência física eeconômica da criadagem do grandecapital, até a cooptação pelos contratosde produção com as agroindústrias. Aproliferação dos contratos de produção

com amplas parcelas do campesinatoevidencia que as empresas capitalistasdesejam controlar não apenas os recur-sos naturais e, em especial, a terra, mastambém a oferta dos produtos que com-põem a dieta básica da população. Acorrelação de forças para a adoção e im-plantação de políticas públicas que se-jam favoráveis à soberania alimentar ébastante desfavorável no contexto atualdevido, em especial, às disposições go-vernamentais favoráveis ao agronegócioe ao capital transnacional. Porém, será anatureza imperialista da transferência detecnologia agropecuária por setores go-vernamentais do país, em consonânciacom os interesses das empresas transna-cionais de insumos agrícolas e das agên-cias multilaterais, que marcará a presençaindesejável do Brasil nos países do He-misfério Sul. A Via Campesina do Brasile o MST poderão marcar presença nãoapenas pela sua militância crítica, mas,sobretudo, se forem capazes de concreti-zar uma aliança social popular no campo,munida tanto de uma crítica social radicalao projeto capitalista hegemônico, comode uma proposta para um novo marcocivilizatório no campo.Empresas transnacionais possuem o controle estratégico da produção agropecuária e florestal no país

“Como o recurso terra é limitado, oseu controle pela apropriação

privada em todo o mundo se tornouprioridade geopolítica estratégica do

agronegócio internacional”

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6 JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

ESTADOS Jovens camponeses concluem curso de Licenciatura em Letras na UFPA

JOÃO MÁRCIO ZONTA

SETOR DE COMUNICAÇÃO

TAPIRI, na língua tupi-guarani significa “casa defesta” ou “casa de reunião”.O nome não poderia ser

mais apropriado ao espaço físico, quelembra uma grande oca indígena,construído numa área central daUniversidade Federal do Pará (UFPA),campus I, de Marabá.

É nesse espaço representativo daUFPA que aconteceram as noites culturaisda Semana Amazônica de CulturaBrasileira e Reforma Agrária, promovidapelo MST, entre os dias 29 novembro e2 dezembro, que terminou com a festade formatura dos alunos e alunas do cursode Licenciatura em Letras.

O curso, promovido numa parceriainédita entre o Incra, Pronera, UFPAe MST, proporcionou a formação de37 jovens camponeses numa universi-dade pública. A turma formada foibatizada como Patativa do Assaré.

Maria Raimunda, Dirigente Esta-dual do MST, ressaltou a importância

do curso ao longo da semana, que paraela “representou a mesma emoção decortar a cerca do latifúndio”. E, emo-cionada, no dia da formatura, disse:“Essa semana foi marcada por um mo-mento histórico, quando jovens campo-neses ocuparam um espaço universi-tário para discutir literatura, culturabrasileira e identidade camponesa”.

Acesso às letras marca a semana cultural no Pará

Trinta e sete trabalhadores rurais celebram formatura em univerdade pública

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Um pano preto gigante tomou partedo Tapiri com letras coloridas queformaram a frase, “Democratizando aTerra e as Letras”.

O formando Antônio de JesusPereira acrescentou ao discurso deMaria Raimunda a seguinte frase: “aliteratura é importante para termos umaleitura crítica de mundo”.

Já a professora Ana Laura, queministrou aulas no curso, completou:“a literatura é um direito do cidadão,assim como o direito de comer, demorar, de ter seu pedaço de terra”.

Ornamentações também deixaram oTapiri com características amazônicas ecamponesas ainda mais fortes. Perto deseu pequeno e aconchegante palco foi espa-lhado o buriti, fruto típico da região, juntoa pequenos barcos de madeira, que repre-sentaram a abundância de água dos enor-mes rios do Pará e da Amazônia. Alémdisso, painéis de artesanato pregados naparede retrataram a educação no campo.

No auditório e nas salas da univer-sidade aconteceram as apresentações detrabalho de parte dos formandos, alémdas oficinas de teatro, músicas, artesplásticas, agitação e propaganda, alémde exibição de filmes.

Houve ainda uma apresentação deteatro, encenado pelos jovens assenta-dos e acampados do MST, resultadodas oficinas da semana. Muito jovenstiveram seus talentos revelados e cons-truíram a idéia de formar um coletivode teatro para o MST no Pará.

João Pedro Stedile recebe

homenagem da Câmara

O militante Sem Terra João Pedro Stedile recebeu a me-dalha “Mérito Legislativo”, que é concedida a personalidades,brasileiras ou estrangeiras, que realizaram ou realizam serviçode relevância para a sociedade. A solenidade aconteceu noSalão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, em de-zembro de 2010.

Mesmo sendo considerada a ‘casa do povo’, são raras asvezes que um trabalhador é reconhecido por sua luta eorganização em busca de justiça social. Ainda mais se estetrabalhador for um camponês. A indicação partiu do deputadofederal Brizola Neto (PDT/RJ), líder da bancada do seu partidona Câmara, como uma forma de trazer à reflexão a luta pelaterra e o uso que vem sendo feito dela.

COLETIVO DE COMUNICAÇÃO DO MST - RJ

ENTRE OS DIAS 9 e 10 de dezembro,o MST montou uma Feira da ReformaAgrária no centro do Rio de Janeiro. A

Feira contou com produtos vindos de diversosassentamentos do estado, como queijos, doces,geléias, frutas, verduras, hortaliças, arroz, pro-dutos fitoterápicos, dentre outros. O evento con-tou ainda com barracas de outras organizações ecampanhas, como a tenda da campanha “OPetróleo Tem que Ser Nosso!”.

Para Marcelo Durão, da Coordenação Na-cional do MST, a Feira tem o caráter de levar àcidade alimentos saudáveis, mostrando à popu-lação urbana como a Reforma Agrária dá certo.“Alguns produtos podem ser adquiridos porquem passar pela Feira. O que sobrar é para serdistribuído, principalmente, para as famílias deocupações urbanas na cidade, no dia 10 dedezembro, que é o dia Internacional dos DireitosHumanos”, afirma.

Na noite do dia 9 de dezembro foi organizadaa Noite Cultural da Reforma Agrária comdiversas atrações, dentre elas a Banda Caramuelade Forró. Já no dia 10 de dezembro, dia inter-

nacional dos Direitos Humanos, um ato foi orga-nizado para o encerramento da Feira.

O Ato Público pelo Direito Humano à Ali-mentação e pela Reforma Agrária contra as Mu-danças Climáticas contou com a participação devários militantes de organizações sociais, par-lamentares e sindicatos. Ao final do ato, umagrande roda de ciranda celebrou o encerramentoda Feira da Reforma Agrária e a confraternizaçãoentre o MST e as diversas organizações queapoiaram o evento.

MST monta Feira no Rio de Janeiro

Produtos demonstram como a Reforma Agrária dá certo

João Pedro foi uma das 32 pessoasque receberam a medalha

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7JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

ESTADOS Publicidade favorável à Reforma Agrária deve ser veiculada em março

DA PÁGINA DO MST

UMA DECISÃO do Minis-tério Público de Pernam-buco obrigou a Associaçãodos Oficiais, Subtenentes e

Sargentos da Polícia Militar/Corpo deBombeiros Militar de Pernambuco(AOSS) e a empresa de outdoorsStampa a veicularem 21 outdoors commensagens de promoção e defesa dosdireitos humanos e da Reforma Agrá-ria, no final de 2010.

A arte das novas peças publicitáriasdeverá ser definida pelo MST eaprovada pelo Ministério Público.

A agora denominada Associação dosMilitares de Pernambuco (AME) teveainda que publicar retratações públicas aoMST no Diário Oficial, no jornal internoda Polícia Militar e na página da internetda associação. A contrapropaganda deveser veiculada a partir de março deste ano.

O pedido foi apresentado pela orga-

nização de direitos humanos Terra deDireitos, pelo Movimento Nacional deDireitos Humanos (MNDH), pela Co-missão Pastoral da Terra (CPT) e peloMST por danos morais e direito de respostacontra a AOSS, em virtude da “campanha

Polícia de Pernambuco é condenadapor outdoors contra MST

Associação dos Militares distribuiu propaganda contra os Sem Terra, em 2006

publicitária” contra o MST, realizada pelaAssociação em 2006. No período doacontecimento, a AOSS distribuiu nasprincipais vias públicas do Recife e nasrodovias de Pernambuco outdoors ejornais, além de propagandas nos horários

nobres das rádios e televisões, peças comconteúdos difamatórios e preconceituososcontra os Sem Terra.

Nos outdoors, veiculava-se a seguin-te mensagem: “Sem Terra: sem lei, semrespeito e sem qualquer limite. Comoisso tudo vai parar?”

A campanha tinha o claro objetivo decriminalizar o MST e seus militantes edeslegitimar a luta pela Reforma Agráriados trabalhadores e trabalhadoras rurais,incitando a sociedade e os próprios policiaismilitares à violência contra os Sem Terra.

À época da campanha, o presidente daAOSS era o atual deputado estadual MajorAlberto Jorge do Nascimento Feitosa, queassinou pessoalmente os materiais dacampanha junto com a associação.

O Ministério Público considerou acampanha um abuso aos direitos humanose um desrespeito aos princípios constitu-cionais de liberdade de reivindicação e deassociação e, acima de tudo, uma ofensaà dignidade da pessoa humana.

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ivo M

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RAFAEL SORIANO

SETOR DE COMUNICAÇÃO

O ESTADO DE Alagoas é destaqueno país pela concentração deterras e pela miséria repartida com

o povo. Dos mais de 3 milhões de alagoanos,aproximadamente 1 milhão e 300 mil estãoem situação de insegurança alimentar – dadosda Pesquisa Nacional por Amostra deDomicílios (PNAD/IBGE). Neste cenário, o MSTtem lutado para levar milhares de famíliascamponesas a outro patamar de segurançaalimentar, educação e sociabilidade. Aocontribuir para um desenvolvimento local comacesso à habitação, escolarização, geraçãode renda, o Movimento cumpre um papel quetraz benefícios para o campo e a cidade, poisfixa o homem e a mulher do campo em seusterritórios e impede, consequentemente, oinchaço e a favelização urbana.

No mês de novembro, milhares de famíliasorganizadas no MST se mobilizaram para cobrardo poder público políticas de justiça social eestruturação das áreas de Reforma Agrária.

No dia 10 de novembro, 12 prefeituras foramocupadas pelos trabalhadores rurais na intençãode gerar uma agenda positiva com as adminis-trações municipais. Na passagem do Dia Estadualde Luta contra Violência e Impunidade no Campoe na Cidade, em 29 de novembro, a capital Maceiófoi “avermelhada” num grito por justiça e pelapunição dos assassinos de Jaelson Melquíades,líder Sem Terra morto há 5 anos nesta data.

Com uma pauta extensa que vai desde aregularização do transporte escolar àconstrução de pontes e praças, as famíliasnegociaram medidas a serem tomadas pelopoder público de cada município. Os municípiosreceberam reivindicações como o uso da águado Canal do Sertão, a construção de 13 escolas,sete postos de saúde e o escoamento daprodução dos assentamentos e acampamentos.Como consequência das mobilizações, umareunião com a Associação dos MunicípiosAlagoanos (AMA) foi realizada, e prefeitos eagricultores acordaram pela criação deprojetos para resolução das demandas.

Após uma grande caminhada pelas ruas deAtalaia, em 29 de novembro, o MST ergueu um

acampamento com mais de 1.500 camponesesna Praça dos Martírios, onde fica o palácio Repú-blica dos Palmares, do governo do Estado. Umgrande ato atravessou as ruas do Centro até oTribunal de Justiça para sensibilizar a populaçãoe o poder público sobre as mortes detrabalhadores Sem Terra em Alagoas.

Após as mobilizações, o MST sentou à mesacom o Governo do Estado e garantiu a realização

de audiências setoriais com órgãos do Estado,como Secretarias de Agricultura, Educação,Departamento de Estradas e Rodagens eoutros para o aprofundamento de demandasespecíficas, que serão acompanhadas peloGabinete Civil. Ainda, o presidente do Institutode Terras de Alagoas (Iteral) se comprometeua liberar para assentamento de famílias asáreas do antigo banco Produban.

Novembro de lutas por justiça social e soberania popular

Trabalhadores ocupam 12 prefeituras e cobram ações concretas

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ESPECIAL Livro fotográfico registra lutas em defesa do rio e dos povos

98 JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

De 2005 a 2010, o fotógrafo João Zinclar percorreu oito

estados brasileiros (MG, BA, PE, Al, SE, PB, RN e CE),

acompanhando o trajeto do Velho Chico e das populações

ribeirinhas. Na apresentação do livro “O

Rio São Francisco e as águas do sertão”, a

socióloga Renata Belzunces dos Santos

escreve: “Não é um livro diletante, é um

livro militante e lindo”. Militante já na

primeira palavra do fotógrafo, que escreve:

“Este livro é uma obra coletiva”. São várias

pessoas que escreveram textos, que

abriram as suas casas e histórias, que contribuíram para

contar e registrar a luta contra a transposição, pelo acesso à

água e terra e por sua forma de vida.

O Rio São Franciscoe as águas no sertão

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10 JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

“Temos que olhar para essa realidade não para nos acomodar, mas para nos preparar”REALIDADE BRASILEIRA

JOANA TAVARES

SETOR DE COMUNICAÇÃO

JST: Como você avalia o período atualpara a luta do MST?

Gilmar Mauro – O MST cresceumuito, principalmente no final dos anos80 e começo de 90, com o tema daReforma Agrária como uma alternativade trabalho. Havia uma quantidade grandede pessoas interessadas e, por isso, as lutasforam intensas. A partir da entrada dogoverno Lula, há um processo decrescimento econômico e de geração deempregos. Então, muitos trabalhadoresque tinham interesse na Reforma Agrária,hoje estão empregados. E a pequenaagricultura tem dificuldade de competircom a grande agricultura, com aagricultura de escala. Evidentemente, hásituações de assentamentos bemdesenvolvidos, mas há também as-sentamentos precarizados, onde faltamcondições básicas para a produção. O fatoé que no último período há umadiminuição no número de ocupações. Nãoporque o MST tenha perdido capacidadede organizar, de fazer trabalho de base,mas porque efetivamente uma parcela dostrabalhadores já não quer mais a terra e aReforma Agrária como alternativa,encontra outras formas de conseguir seutrabalho. Portanto, o primeiro tema queteremos que debater muito no MST é queuma Reforma Agrária numa lógicadistributiva, produtivista, perde espaço.

Como colocar a necessidade daReforma Agrária hoje?

GM – Temos o desafio de ressignificar aReforma Agrária. Se a sociedade brasileira

e mundial quiser um modelo que use osrecursos naturais – a água, o solo, a bio-diversidade, os minerais – para fazer oque está fazendo hoje, o agronegócioresolve a situação e não precisa mais deReforma Agrária. Outra pergunta queprecisa ser feita é se a sociedade quercontinuar consumindo produtos cheios deagrotóxicos e agroquímicos. Agora, se asociedade quer comer outro tipo de comidae dar outro uso ao solo e aos recursosnaturais, então a Reforma Agrária passa aser uma das coisas mais modernas naatualidade. Mas ela não depende mais doMST, depende da sociedade brasileira.Temos que fazer esse debate: que tipo demodelo de agricultura, que tipo de comidae que tipo de paradigma tecnológico vamosquerer. Dependendo do resultado dessedebate, a Reforma Agrária vai estar ounão no centro das atenções. Conjuntural-mente, ela está fora. A campanhapresidencial não pautou, o governo nãopauta, a imprensa não pauta, o Estado nãopauta, nós temos pouca força para pautar.Mas ela é moderna porque coloca o temanuma perspectiva de mudança do modeloagrícola, da forma de produzir.

Você diz que uma ferramenta de lutadeve seguir as necessidades de suabase. Quais são as necessidades dabase do MST hoje?

GM – Um movimento que não respondeàs necessidades de sua base perde o sentidode ser. Temos que lutar para que em nossosassentamentos haja uma elevação daprodução, da produtividade, avançar naconstrução de agroindústrias, de qualifi-cação técnica. Precisamos resolver o pro-blema da habitação, garantir abastecimento

de água para todos. Temos ainda anecessidade de conjugar a luta concretacom a localidade, com as cidades, conju-gar a luta econômica com participaçãopolítica nos municípios, construir o poderlocal, criar germes do poder popular.Temos que continuar avançando junto àsfamílias que querem ocupar terra econquistar assentamentos. Outra grandetarefa é no âmbito da educação, paraavançarmos em todas as frentes deelevação do nível de conhecimento.Avançar na formação política e ideoló-gica é uma grande responsabilidade.

A massificação segue como desafiocentral para o MST?

GM – Segue, porque ainda há genteinteressada na Reforma Agrária desse tipo.E nós não podemos abandonar isso.Mesmo por decreto, a ocupação nunca vaiterminar enquanto houver gente dispostaa lutar por Reforma Agrária. Uma táticatermina se perder o sentido de ser para aclasse. E a ocupação ainda tem sentidopara a classe, não só para a organização.

Como avançar na luta nos próximos anos?GM – Temos que estabelecer uma guerrade posição, nas palavras do Gramsci. Es-tabelecer onde queremos investir. Acre-dito não ser um tempo de lutas massivas.É um tempo de refluxo, não só no Brasil.Uma organização tem que olhar para essarealidade não para se acomodar, mas parase preparar para o futuro. É evidente quecrises vão vir. E crise não é sinônimo deavanço. São janelas que se abrem, quepodemos aproveitar, mas que podem pro-vocar o retrocesso, como vimos com ofascismo e o nazismo. Se tivéssemos uma

crise gravíssima na economia hoje, nãoteríamos instrumentos e capacidade organi-zativa para aproveitar essa janela e levar aluta para outro patamar. A pergunta é: ondequeremos estar quando a crise atingir nossopaís? Se estivermos bem posicionados,acho que a janela da crise abrirá possibili-dades de avançarmos. Se estivermos comohoje, estamos fritos, porque não teremoscapacidade efetivamente de projetar novoscenários de luta.

Quais as perspectivas para o governoque se inicia?

GM – O governo Dilma será umacontinuidade do governo Lula, não tenhodúvidas disso. Uma intervenção forte doEstado na economia, mas principalmenteatravés da parceria público-privada. Lulafez programas de amortecimento da lutade classes, e creio que Dilma irá darcontinuidade a esse processo. Podemos teralguns avanços nas áreas sociais, masevidentemente nos marcos do de-senvolvimento capitalista. Esse processoindica que não teremos sobressaltos nosprimeiros anos de governo, nem naeconomia, nem na política.

Qual o papel da esquerda nesse momento?GM – É um tempo de reflexão, deamadurecimento da esquerda, tempo debalanço. A nossa pressa não apressa ahistória. Ou temos a capacidade de dialo-gar com o conjunto da classe trabalhadorae a revolução ser um projeto da classe,ou ela não se sustenta. Nós sozinhos nãovamos a lugar nenhum. Se o conjuntoda classe não avançar, dificilmente vamosavançar, seja na Reforma Agrária ou emqualquer tipo de mudanças.

O descenso e a luta do MSTNovo ano, novo governo. Período de crise ou de cres-

cimento? Teremos avanços ou retrocessos nas lutas?

Qual a perspectiva para a luta pela Reforma Agrária?

Haverá mais ocupações de terra ou mais lutas por

infra-estrutura nos assentamentos? O que fazer e o

que esperar dos próximos quatro anos? Confira abaixo

a entrevista com Gilmar Mauro, da Coordenação

Nacional do MST, sobre os desafios que se colocam

para a classe trabalhadora e para o Movimento.

Felip

e Ca

nova

Reforma Agrária deve ser debatida pela sociedade para se ressignificar

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11JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

Política de segurança pública depende da garantia de direitos à população pobreREALIDADE BRASILEIRA

MARCELO FREIXO

PROFESSOR DE HISTÓRIA, DEPUTADO ESTADUAL,

PRESIDENTE DA COMISSÃO DE DEFESA DOS

DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DA ALERJ E

PRESIDIU A CPI DAS MILÍCIAS

A REALIDADE VENCEU o maniqueís-mo no debate sobre segurança pública. Emtempos pós-Tropa de Elite 2 não há espaçomais para o mito do embate incessanteentre mocinhos e bandidos como via deconquista da paz — numa frente de lutatão infindável quanto ineficaz. Não con-vencem mais ninguém as farsas midiáticaspara tentar transformar a segurança públicaem entretenimento, em grandioso épicobélico no qual os inimigos a serem elimina-dos são jovens, quase todos negros, pobres,analfabetos, favelados. Após mais de duasdécadas desse bangue-bangue sem vence-dores, parece que aprendemos, enfim, quesegurança pública depende, sobretudo, dagarantia de direitos à população.

Milícia, contrabando de armas, narco-tráfico... Tudo isso é máfia, crime organi-zado. O mesmo não se podedizer do varejo das drogas nasfavelas do Rio de Janeiro. Ocrime não se organiza, afinal,onde vigora a miséria. Aestruturação das máfias ocorreonde existe dinheiro e poder, ouseja, dentro do próprio Estado.Já foi mais do que desvendada,em cadeia nacional, a teia quesustenta a relação entre crime,política e polícia.

Reveladora, por exemplo,de como funciona essa teia noRio de Janeiro, houve recenteoperação coordenada pela Dele-gacia de Repressão ao Crime Organizado(Draco), da Polícia Civil, contra certa mi-lícia da Baixada Fluminense. Houve, emdezembro, a prisão, entre os envolvidos,de dois vereadores, um destes, ex-policialmilitar; de vários policiais militares; deum policial civil; de um fuzileiro naval;de um sargento do Exército. Um “gram-po” revelou que era essa milícia quefornecia armas e munição ao varejo dotráfico do Complexo do Alemão, na ZonaNorte do Rio. Os dois vereadores presosjá haviam sido indiciados pela CPI dasMilícias, em 2008.

Nessa conjuntura política e social, apopulação pobre enfrenta uma dupla opres-

são. O Estado não garante os seus direitose, nesse vácuo, o crime a explora com oobjetivo exclusivo do lucro. Especialmente

homens negros, jovens e mora-dores de favelas se tornam mão-de-obra barata e descartável docrime e morrem às dúzias ouvão presos antes de completar amaioridade ou ao menos o En-sino Fundamental. Nas comuni-dades, a maioria honesta e tra-balhadora é sujeita à violência ea extorsões como, por exemplo,taxas de segurança cobradasjustamente por quem ameaça asua vida. E essas pessoas aindase vêem sem alternativa de aces-so a serviços básicos como trans-porte coletivo e fornecimento de

gás doméstico, a não ser àqueles exploradospelas máfias locais.

Solução?

Como solução presumida contra aviolência, prender ou matar jovens pobresempregados no varejo do tráfico tem sidoa ação recorrente do Estado desde meadosda década de 1980. A média histórica,desde 2002, é de mil mortes em confrontocom a polícia por ano. Já em relação àsmilícias, o Estado, se não promove o con-fronto direto e o extermínio do adversáriomais recente, tem realizado cada vez maisprisões. Mas as prisões acontecem só depois

de 2008, a partir do trabalho consolidadoao fim de uma CPI. Houve apenas cincoprisões de milicianos em 2006. Em 2007,24. A partir de 2008, mais de 500 prisões.Seria preciso, no entanto, muito mais parase enfrentar com eficácia máfias operadaspor agentes públicos no controle deterritórios e com projeto de poder, tudovoltado para produção de lucro, sejafinanceiro ou político-eleitoral, para amanutenção e a ampliação dos seusnegócios criminosos.

Após um ano e meio de espera atéque a Assembléia Legislativa do Estadodo Rio de Janeiro (Alerj) autorizasse ainstalação da CPI – realizada em 2008,só depois que uma equipe do jornal “ODia” foi torturada em cárcere privado naFavela do Batan, na Zona Oeste — aindasequer se vislumbra a vontade políticapara tornar realidade a maioria de 58propostas então apresentadas para oenfrentamento das milícias. Tais propos-tas integram, além do indiciamento de225 envolvidos nessas máfias, o relatóriofinal da CPI, de 282 páginas, que foientregue, ao longo dos últimos dois anos,às autoridades do Legislativo, do Execu-tivo e do Judiciário, na esfera municipal,na estadual e na federal, a partidos polí-ticos e a organizações da sociedade civil.

Não é possível garantir segurançapública só com ações policiais contra ovarejo do tráfico de drogas e com prisõesde milicianos. Só a prisão dos seus líderes

não impede o avanço do poder armadodo crime, em lucro e na conquista de no-vos territórios. Para promover a seguran-ça pública, o Estado precisa fazer muitomais do que livrar as favelas do controledo varejo do tráfico ou da milícia. O Es-tado tem de tomar das milícias as suasfontes de lucro, como o transporte alter-nativo, a venda de gás, gatonet, entre ou-tras. E investigar a origem das armas edas drogas para impedir que cheguem aoscriminosos onde quer que estejam. Noseu recente discurso de posse, o novo mi-nistro da Justiça, José Eduardo Cardozo,reconheceu essa necessidade de priorizaro patrulhamento das nossas fronteirasaéreas, marítimas e terrestres.

Polícia

Além disso, polícia, num Estado de-mocrático de direito, é força que precisaser contratada, valorizada e preparadapara proteger vidas e não a morte. Apolícia do Rio ainda é a que mais matae também a que mais morre em todo o

mundo. E segurança pública não é casosó para a polícia. O próprio secretáriode Segurança Pública do Rio, MarianoBeltrame, já admitiu que o bangue-bangue nunca promoverá, de fato, paze cidadania. Eis uma lição que, ao quetudo indica, pelo menos já foi assimiladapela sociedade e pelo Estado.

As pessoas que vivem nas favelas nãorepresentam o inimigo a ser eliminado.Pelo contrário, essa população é credorado Estado, um devedor histórico depolíticas públicas de qualidade comoeducação, saúde, habitação, transporte,lazer e segurança. O inimigo real é acorrupção que corrói o Estado por dentropara garantir, em vez dos direitos dos seuscidadãos, o projeto de poder das máfias,do crime organizado. Falta vencer esseinimigo, pois, sem garantia de direitos, nãohá segurança pública, não há democracia.

Bangue-bangue sem vencedores

“Tropa de Elite 2 –o inimigo agora éoutro” foiassistido por 11milhões depessoas no Brasil.O filme, dirigidopor José Padilha,continua a históriado capitãoNascimento e docombate aotráfico de drogasno Rio de Janeiro.

Confrontos com a polícia causam cerca de mil mortes por ano, no RJ

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As pessoas que vivem nasfavelas não representam oinimigo a ser eliminado. Pelocontrário, essa população écredora do Estado, um devedorhistórico de políticas públicas

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12 JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

Para o “capitalismo verde”, não houve fracassos nas conferênciasINTERNACIONAL

LUIZ ZARREF

ENGENHEIRO FLORESTAL, MILITANTE DO

MST E PESQUISADOR DO GRUPO “MODOS DE

PRODUÇÃO E ANTAGONISMOS SOCIAIS”

EM 1992 foi realizada, no Rio de Ja-neiro, a mais importante reunião da ONUsobre o meio ambiente: a Eco 92. Entremuitas discussões e poucos acordos, (aotodo 172 países estiveram presentes), cria-ram-se três conferências que deveriam re-solver problemas ambientais mundiais: aConferência sobre Diversidade Biológica,a Conferência sobre Desertificação e a Con-ferência sobre as Mudanças Climáticas.

Ao longo dos últimos 19 anos, cadaconferência seguiu seu cronograma de ati-vidades. Entretanto, com exceção da Con-ferência Sobre Desertificação, as outrasduas estão sob forte investida do capitalinternacional. O que se vê é o lobby dasgrandes multinacionais em busca da garan-tia de acesso ilimitado à biodiversidade,por um lado, e de falsas soluções para osproblemas climáticos, por outro. Poucose discute de fato sobre meio ambiente ehumanidade. Os assuntos da pauta sãofundos financeiros, patentes e novastecnologias de altíssimo custo.

Em outubro de 2010 ocorreu, noJapão, a 10ª Conferência da DiversidadeBiológica. O ponto central da discussãoforam os estudos de Economia dosEcossistemas e Biodiversidade (TEEB é

A luta contra as falsas soluções ambientaiscom esse novo mecanismo. Não importase estão desmatando em outro local, seutilizam quantidades absurdas de venenosagrícolas, se possuem trabalho escravo ouse aumentam a concentração da terra. OREDD aparece como uma etapa maisavançada das fracassadas bolsas decarbono. Atualmente o carbono é acommoditie que mais cresce em todo omundo. Nos últimos três anos o mercadoespeculativo sobre o carbono mobilizoucerca de 300 bilhões de dólares.

Como se vê, são equivocadas as análi-ses que apontam para o fracasso das con-ferências ambientais da última década. Aocontrário, elas foram um sucesso para ocapitalismo mundial. Além de não impe-direm a produção destrutiva do capitalis-mo tradicional, essas conferências estãoconstruindo as bases de uma nova frente deexpansão deste modo de produção: o capita-lismo verde. E o grande desfecho de todoesse processo se dará na Rio+20, a conferên-cia da ONU sobre meio ambiente, 20 anosdepois da Eco 92, que ocorrerá novamenteno Rio de Janeiro, em maio de 2012.

Mobilizações

Mas, ao mesmo tempo em que o capitalinternacional se mobiliza para tornar a na-tureza em um grande negócio, os movi-mentos sociais e diversas organizações detodo o planeta estão também se organizan-do para defender os direitos da Mãe Terrae da humanidade. Grandes mobilizaçõese importantes enfrentamentos vêm ocor-rendo ao longo dos últimos anos, denun-ciando os males das falsas soluções e de-monstrando as soluções que os povos detodos os lugares do mundo têm para en-frentar os problemas ambientais criadospelo modo de produção capitalista.

Em abril de 2010 ocorreu, em Cocha-bamba, na Bolívia, a Cumbre Mundial delos Pueblos sobre los Derechos de la MadreTierra, onde mais de 35 mil pessoas detodos os continentes denunciaram o sistemacapitalista como causador dos problemasambientais do mundo e apontaram a neces-sidade de se garantir os direitos da MãeTerra. A Cumbre chegou ao final com umposicionamento firme de que apenas ospovos do mundo podem decidir sobre asmelhores formas de combater as mudançasclimáticas, e que as grandes transnacionaisdevem estar totalmente fora deste debate.

Com a intenção de se contrapor ao avanço docapital internacional, a Cumbre de Cochabambalançou uma chamada para a Consulta Global sobreos Direitos da Mãe Terra. Será um grande plebiscitomundial, que dirá que a Terra e a humanidadeestão em primeiro lugar, não o lucro e a ganânciados capitalistas. Será também um processo deformação, em que os povos de todos os continentespoderão compreender o que está sendo discutidonas Conferências da ONU e como o capitalismoverde está chegando em suas comunidades. Seráum processo de denúncia, enfrentamento,resistência e intercâmbio de experiências.A Via Campesina Internacional assumiu, juntocom inúmeras outras organizações, a tarefa deconcretizar a Consulta Global. Durante o processoda Consulta, trabalharemos a soberania ali-mentar energética e hídrica, a agroecologia e acooperação como soluções que a agricultura

camponesa possui para os problemas am-bientais criados pelo capitalismo.A Consulta Global sobre os Direitos da MãeTerra será o principal contraponto à grandeconferência do capitalismo verde que serealizará na Cúpula Rio+20. Será a voz dospovos do mundo contra as articulações dastransnacionais e das nações imperialistas. Seráum momento decisivo para o futuro do planeta,que caso continue à mercê das falsas soluções,terá um colapso em breve. É um momento deunidade entre as diversas organizações docampo e da cidade, no Brasil e no mundo, paraque as formas solidárias de produção ecomercialização, feitas em relação profundacom a natureza, sejam assumidas comoverdadeiras soluções para a situação crítica naqual a humanidade e o planeta foram colocadospelo devastador sistema capitalista.

Conferência Mundial dos Povos chamasociedade para plebiscito mundial

Consulta Global sobre os Direitos da Mãe Terra

a sigla em inglês), que tem como idéiaprincipal quantificar o valor financeiro deplantas, animais e ecossistemas. Umartifício para dar mais segurança ao grandecapital, que busca na biodiversidade novaspossibilidades de acumulação capitalista,tendo como principais representantes asempresas farmacêuticas e as empresas desementes e agrotóxicos.

Conferência de Cancún

Pouco depois, em dezembro, ocorreua 16º Conferência das MudançasClimáticas, no México. Apesar dosesforços da Bolívia para que as negociaçõescaminhassem para a verdadeira solução doproblema climático, a conferência se

preocupou novamente com as falsassoluções do capitalismo para a humanidadee para a Terra. Os resultados finais daconferência foram a criação de um fundointernacional para adaptação às mudançasclimáticas, do qual o Banco Mundial étesoureiro, e a definição final sobre oREDD – mecanismos de Redução dasEmissões de gases de efeito estufa porDesmatamento e Degradação.

Com o REDD, latifundiários desmata-dores podem dizer que vão reduzir aintensidade de seu desmatamento históricoe assim receberão recursos financeiros poressa possível redução futura. Além disto,os latifundiários que fizerem sistemasprodutivos que não reviram o solo, comoo plantio direto, também poderão lucrar

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13JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

Amílcar Cabral defendia a união de Guiné e Cabo Verde e construção de uma nação forte e livreLUTADORES DO POVO

ANA CHÃ

COLETIVO DE CULTURA

PARA A MAIORIA dos brasileiros ebrasileiras, a África ainda é um continentequase totalmente desconhecido.

Com o desafio de saber mais sobre essaparte do mundo, que tem tanta relação comnossa história e nossa atualidade, fomos atrásde conhecer um pouco sobre Amílcar Ca-bral, lutador e poeta revolucionário africano.

Amílcar Lopes da Costa Cabral é filhode cabo-verdianos emigrados na Guiné,onde nasceu, na cidade de Bafatá, emsetembro de 1924, e onde viveu até 1932,período em que regressa a Cabo Verde nacompanhia de sua família.

Cabo Verde é um arquipélago cons-tituído por dez ilhas, situado a cerca de500 km do continente africano. As ilhaseram desabitadas até a chegada dosportugueses. O povoamento foi feito porportugueses e comerciantes europeus,bem como por homens negros escra-vizados trazidos da costa africana. Essamistura levou à formação de uma so-ciedade crioula e mestiça que, apesar dealguma atividade comercial, se dedicavaprincipalmente ao trabalho agrícola. Éneste contexto de mestiçagem e cabo–verdianidade, sobre a qual mais tardeteorizou, que Amílcar passou a infân-cia e adolescência, recebendo do paium exemplo de consciência e atuação,e da mãe, um exemplo de ternura,proteção e trabalho.

Poeta e militante

Desde cedo começou a escreverpoesia. Neste período, desenvolveuconsciência das péssimas condições devida do povo cabo-verdiano, o queinfluenciou não só sua poesia, mas seumodo de ver o mundo e sua ação política.

Em 1945 foi para Lisboa estudar agro-nomia, e fez importantes contatos comgrupos políticos e culturais, aprofundandoseu conhecimento sobre o sistemacolonizador e o reconhecimento da suaprópria situação enquanto sujeito

colonizado. Isso desenvolveu nele umanecessidade vital: regressar à África.

Voltou já como agrônomo. Na Guinée Angola teve contato mais profundo coma África Negra que tanto tinha discutidoem Portugal, e com a verdadeira situaçãodos povos sob domínio colonial, as-sumindo para si a tarefa de conscientiza-ção das massas populares.

Participou em 1959, na Guiné, comoprincipal impulsionador, da criação naclandestinidade do Partido Africano daIndependência/União dos Povos da Guinée Cabo Verde (PAIGC), instrumento polí-tico e cultural que tinha o objetivo deguiar o povo para a independência duran-te a luta de libertação e garantir a constru-ção de um Estado-nação, durante e apóssua reconquista. Em 1962, começou aecoar com força um grito de revolta. De-sencadeia-se a luta armada de libertaçãonacional da Guiné e de Cabo Verde.

Cabral assimilou a teoria marxista-leninista mas, ao mesmo tempo, adaptoupara a realidade africana. Apoiado na teo-ria pan-africanista, que defendia que a soli-dariedade deveria nortear o relacionamen-to entre as nações africanas para a cons-trução de uma sociedade mais justa e igua-litária, e na história comum da Guiné eCabo Verde, Amílcar Cabral defendia aunião dos dois países, como uma estratégiafundamental para a construção de umagrande nação que pudesse abrir caminhopara uma África forte e independente, do

O político que queria ser poeta

CABO VERDECapitalPopulação

Idiomas:

Data independência(de Portugal):Regime:

Praiaaproximadamente 500mil habitantesPortuguês e Crioulocabo-verdiano5 de julho de 1975

República democráticaunitária parlamentarista

GUINÉ-BISSAUCapitalPopulação

Idiomas

Data independência(de Portugal)

Regime

Bissauaproximadamente 1,5milhões de habitantesPortuguês e Criouloda Guiné-BissauProclamada 24 desetembro de 1973;reconhecida 10 desetembro de 1974República

ponto de vista político, econômico e cultu-ral, integrada na história mundial.

Para “o político que queria ser poeta”,como disse alguém, a cultura assumia umpapel central no processo de luta de liberta-ção nacional, sendo o motor da história. Acultura para ele retratava o nível de cons-ciência e do desenvolvimento do pensa-mento do homem colonizado, que tinhacomo objetivo reconquistar a sua persona-

lidade histórica e a independência. Daí,um dos elementos centrais do seu pensa-mento ter sido a idéia de formação de umHomem Novo e a luta por uma libertaçãofísica, mas, principalmente, uma libertaçãointelectual e psicológica do homem negro-africano de conceitos, comportamentos evalores impostos pelo sistema colonizador.

Infelizmente, em 20 de janeiro de1973, seus projetos foram interrompidoscom seu assassinato em Conacri. Após amorte de Cabral, a luta armada se intensifi-cou. A independência da Guiné-Bissau foiproclamada em 24 de setembro de 1973 ereconhecida por Portugal em 10 setembrode 1974. Cabo Verde se tornou indepen-dente em 5 de julho de 1975.

Grito de RevoltaQuem é que não se lembra

Daquele grito que parecia trovão?!– É que ontem

Soltei meu grito de revolta.Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais

longínquos da Terra,Atravessou os mares e os oceanos,

Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,Não respeitou fronteirasE fez vibrar meu peito...

Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,

Confraternizou todos os HomensE transformou a Vida...

... Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,

Que não transpôs o Mundo,O Mundo que sou eu!

Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,

Muito longe,Na minha garganta!

Na garganta de todos os Homens

Lisboa, 1946Sobre os países

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14 JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

Como seus personagens, escritor viveu sempre à margemLITERATURA

JOAQUIN PIÑERO

COLETIVO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

AFONSO HENRIQUES de Lima Bar-reto nasceu no dia 13 de maio de 1881 nacidade do Rio de Janeiro e faleceu em 1ºde janeiro de 1922. Mulato, de origemhumilde, sofreu na pele os preconceitosde um país racista e escravocrata quemesmo depois da assinatura da lei Áureanão se viu sua aplicação na prática. Diziaele: “Mas como ainda estamos longe deser livres! Como ainda nos enleamos nasteias dos preceitos, das regras e das leis!”.Perdeu a mãe aos 6 anos de idade e aos 20anos teve que largar a faculdade paracuidar da família após seu pai enlouquecer.

Dono de uma ironia e um humor áci-do, elementos fundamentais para alimen-tar sua crítica feroz sobre a sociedadebrasileira, Lima Barreto é consideradopor muitos como o pioneiro do romancemoderno, tanto pela sua inquietaçãodiante da realidade do Brasil e suaindignação ante as injustiças sociais, comoforjador de uma nova forma linguística.

Escreveu crônicas, folhetim, contos,romances, sátiras, críticas literárias ememórias. Seus livros não tiveram muitosucesso na época de sua publicação, e aAcademia Brasileira de Letras mais deuma vez lhe fechou as portas. Como seuspersonagens, Lima Barreto viveu sempreà margem. À margem dos escritores de

O homem que

sabia javanês

EM UMA confeitaria, certavez, ao meu amigo Castro, contavaeu as partidas que havia pregadoàs convicções e às respeitabilidades,para poder viver.

Houve mesmo, uma dada oca-sião, quando estive em Manaus,em que fui obrigado a escondera minha qualidade de bacharel,para mais confiança obter dosclientes, que afluíam ao meu es-critório de feiticeiro e adivinho.Contava eu isso.

O meu amigo ouvia-me calado,embevecido, gostando daquele meuGil Blas vivido, até que, em umapausa da conversa, ao esgotarmosos copos, observou a esmo:

— Tens levado uma vida bemengraçada, Castelo!

— Só assim se pode viver...Isto de uma ocupação única: sairde casa a certas horas, voltar aoutras, aborrece, não achas? Nãosei como me tenho agüentado lá,no consulado!

— Cansa-se; mas, não é dissoque me admiro. O que me admira,é que tenhas corrido tantasaventuras aqui, neste Brasil imbecile burocrático.

— Qual! Aqui mesmo, meucaro Castro, se podem arranjarbelas páginas de vida. Imagina tuque eu já fui professor de javanês!

— Quando? Aqui, depois quevoltaste do consulado?

— Não; antes. E, por sinal, fuinomeado cônsul por isso.

— Conta lá como foi. Bebesmais cerveja?

— Bebo.Mandamos buscar mais outra

garrafa, enchemos os copos, econtinuei...

*Publicado no livro “O homem quesabia Javanês e outros contos”.O livro pode ser lido em:http:/ /www.educacional.com.br/classicos/obras/o_homem_que _sabia_javan%C3%AAs_e_outros_contos.pdf)

O texto surgiu como um romance defolhetim em edições semanais, em 1911.Quatro anos depois, foi publicado em livro.

Capitulo IV – DesastrosasConsequências de um Requerimento

Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro,funcionário público, certo de que a línguaportuguesa é emprestada ao Brasil, certotambém de que, por esse fato o falar e o

Lima Barreto: um rebelde com causa

escrever em geral, sobretudo no campo dasletras, se vêem na humilhante contingênciade sofrer continuamente censuras ásperasdos proprietários da língua, sabendo, além,que, dentro de nosso país, os autores e osescritores com especialidade os gramáticos,não se entendem no tocante à correçãogramatical, vendo-se, diariamente, surgirazedas polêmicas entre os mais profundosestudiosos do nosso idioma – usando odireito que lhe confere a constituição, vempedir que o Congresso Nacional decrete otupi-guarani como língua oficial e nacionaldo povo brasileiro.

O suplicante, deixando de parte osargumentos históricos que militam em favorde suas idéias, pede vênia para lembrarque a língua é a mais alta manifestação dainteligência de um povo, é a sua criaçãomais viva e original; e, portanto, aemancipação política do país requer comocomplemento e consequência a suaemancipação idiomática.

Demais, senhores congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima, aglutinante,é verdade, mas a que o polissintetismo dámúltiplas feições de riqueza, é a únicacapaz de traduzir as nossas belezas, de

sua época, da maneira de viver do período,das futilidades das elites, da hipocrisiados políticos. Procurava encontrarconsolo na bebida e foi esta, justamente,que destruiu sua vida. Por diversas vezes,esteve internado em um manicômio.Sobre essa situação declarou: “De mimpara mim, tenho a certeza que não soulouco, mas devido ao álcool, misturadocom toda a espécie de apreensões de queas dificuldades da minha vida material,há seis anos, me assoberbam, de quandoem quando dou sinais de loucura: delírio.”

Entretanto, a força de suas idéias eos temas de seus escritos continuamatualíssimos: a corrupção, a guerra, apobreza, a miséria, as enchentes, asituação dos negros no Brasil, o nacio-nalismo, a crítica ferrenha aos governosincompetentes, a loucura. Enfim, comotodo gênio, sempre esteve à frente deseu tempo. Muitos de seus contos e ro-mances foram adaptados para o cinema,novelas, minisséries, peças teatrais,tornando-o cada dia mais presente entreos grandes da literatura brasileira.

pôr-nos em relação com a nossa naturezae adaptar-se perfeitamente aos nossosórgãos vocais e cerebrais, por ser criaçãode povos que aqui viveram e ainda vivem,portanto possuidores de organizaçãofisiológica e psicológica para quetendemos, evitando-se dessas formas asestéreis controvérsias gramaticais, oriundasde uma difícil adaptação de uma língua deoutra região à nossa organização cerebrale ao nosso aparelho vocal – controvérsiasque tanto empecem o progresso de nossacultura literária, científica e filosófica.

Seguro de que a sabedoria doslegisladores saberá encontrar meios pararealizar semelhante medida e cônscio deque a Câmara e o Senado pesarão o seualcance e utilidade

P. e E. Deferimento.Assinado e devidamente estampilhado,

este requerimento do major foi, durantedias, assunto de todas as palestras.Publicado em todos os jornais comcomentários facetos, não havia quem nãofizesse uma pilhéria sobre ele, quem nãoensaiasse um espírito à custa dalembrança do Quaresma.

Triste fim de Policarpo Quaresma

Page 14: Jornal Sem Terra edição 309

15JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011

Para não esquecerJaneiro

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Marx e Engels jamais se colocarama tarefa de pensar sistematicamente aarte (isto é, de elaborar uma teoriaestética sistemática). Contudo, as obrasfundacionais do materialismo históricooferecem elementos para a constituiçãode uma estética embasada nas concep-ções teórico-metodológicas dos doisautores. Essa foi a hipótese de trabalhode dois intelectuais comunistas, que ti-veram as questões literárias e artísticascomo preocupação central de suaprodução teórica: o russo Mikhail

Cultura, arte e literatura

Lifschitz e o húngaro György Lukács.“Cultura, arte e literatura: textos es-

colhidos” tem como base os resultadosiniciais da pesquisa de textos marxianosrealizada por Lifschitz no então InstitutoMarx-Engels-Lenin da extinta UniãoSoviética. O presente livro é constituídopor uma seleção dos principais textoscontidos na antologia organizada porLifschitz.(Leandro Konder)

Veja mais no site da Editora:www.expressaopopular.com.br

“A felicidade consiste naconsciência do dever cumprido”

(Luiz Carlos Prestes)

“É preciso sonhar,mas com a

condição de crerem nosso sonho,de observar com

atenção a vida real,de confrontar aobservação com

nosso sonho,de realizar

escrupulosamentenossas fantasias.Sonhos, acredite

neles.”

Vladimir IlitchUlianov Lênin

1 Revolução Cubana, 1959. Uma dasprimeiras medidas tomadas pelosrevolucionários foi a Reforma Agrária.

1 Independência da RepúblicaNegra do Haiti, 1804.

3 Nascimento de Luiz CarlosPrestes, 1898.

4 Morre o cartunista Henfil, 1988.

6 Fundação do Partido ComunistaArgentino, 1918, primeiro nocontinente americano.

6 Nicarágua é invadida pelos EstadosUnidos, 1926, na tentativa decombater Augusto Sandino. Em,1933, os americanos retiram-se dopaís e instalam o ditador AnastácioSomoza no poder.

9 Greve dos tipógrafos de três jornaisno Rio de Janeiro, 1858, consideradaa primeira greve no Brasil.

13 Morre o historiador marxista NélsonWerneck Sodré, 1999.

15 Nasce Martin Luther King, 1929.

15 Assassinato de Rosa Luxemburgo eKarl Liebknecht, 1919.

21 Realizado o I Encontro Nacionaldos Trabalhadores Rurais Sem Terra,em Cascavel, 1984.

21 Morre Vladimir IlitchUlianov Lênin, 1924.

25 Realizado o I Fórum SocialMundial, 2001.

25 Criado o Jornal Brasil de Fato, 2003.

28 Nasce José Martí, grande mártir daIndependência de Cuba em relaçãoà Espanha, 1853.

29 Realizado o I Congresso do MST, 1985.

30 Criada a bandeira do MST, 1987.

Page 15: Jornal Sem Terra edição 309

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