Jesus Cristo Nunca Existiu Livro de Emilio Bossi

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* EMÍLIO BOSSI *

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JESUS CRISTOJESUS CRISTO NUNCA EXISTIUNUNCA EXISTIU

* * ** * *PPUBLICADOUBLICADO ORIGINALMENTEORIGINALMENTE COMCOM OO

PSEUDÔNIMOPSEUDÔNIMO “M “M ILESBOILESBO””

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* EMÍLIO BOSSI *

* * ** * *JESUS CRISTOJESUS CRISTO

NUNCA EXISTIUNUNCA EXISTIU

* * ** * *PPUBLICADOUBLICADO ORIGINALMENTEORIGINALMENTE COMCOM OO

PSEUDÔNIMOPSEUDÔNIMO “M “M ILESBOILESBO””

* * ** * *(T(TRADUÇÃORADUÇÃO DEDE A A UGUSTOUGUSTO DEDE C C ASTROASTRO – 1900) – 1900)

EE DITORADITORA J JOÃOOÃO C C ARNEIROARNEIRO - L - L ISBOAISBOA

(T(TRADUÇÃORADUÇÃO DEDE T THOMAZHOMAZ DADA F F ONSECAONSECA – 1909) – 1909) AA LMANACHLMANACH E E NCYCLOPEDICONCYCLOPEDICO I ILUSTRADOLUSTRADO - L - L ISBOAISBOA

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EMÍLIO BOSSI(1870 - 1920)

Estátua em Bruzella - Suíça

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TEMA

“De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a história não nos conservou documento algum, prova alguma, demonstração alguma”.

Assim começa um dos ensaios mais polêmicos e surpreendentes dos anos 1900. O advogado Emí-lio Bossi desmonta minuciosamente, ponto a pon-to, com extrema habilidade e rigor, qualquer vaga ideia que a nossa cultura possa ter a respeito de um personagem chamado Jesus Cristo.

Seria ele filho de Deus? Este não é um argu-mento de pesquisa histórica e, consequentemente, nem deste ensaio.

Viveu ele realmente, ainda que somente como pessoa física?

Bossi declara um categórico NÃO demostrando taxativamente, com provas e mais provas, que não há nenhum traço de evidência ou sequer sombra de suspeita da possível existência deste homem chamado Jesus.

Este ensaio mordaz de 1900 (Raramente reim-presso) é uma viagem através dos mecanismos meméticos da evolução cultural; mostra como as religiões mais primitivas e os rituais mais antigos evoluíram para o que hoje se chama "verdade re-velada".

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SUMÁRIOTEMA...........................................................................................................................................5PERFIL DO AUTOR..................................................................................................................7INTRODUÇÃO............................................................................................................................9PRIMEIRA PARTE – CRISTO NA HISTÓRIA...................................................................14CAPÍTULO I..................................................................................................................................O SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO.......................15CAPÍTULO II................................................................................................................................AS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO.......................21CAPÍTULO III................................................................................................................................PROVAS HISTÓRICAS CONTRA A EXISTÊNCIA DE CRISTO....................................27CAPÍTULO IV................................................................................................................................JESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA..................................................................33SEGUNDA PARTE – CRISTO NA NÉVOA.........................................................................42CAPÍTULO I.................................................................................................................................A BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA..........................................................................43CAPÍTULO II.................................................................................................................................JESUS CRISTO É PESSOA ABSOLUTAMENTE SOBRENATURAL...............................49CAPÍTULO III...............................................................................................................................A PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE......................57CAPÍTULO IV...............................................................................................................................CRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO TESTAMENTO..........................................................................................................................64CAPÍTULO V................................................................................................................................CONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO............................77CAPÍTULO VI................................................................................................................................ABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO.......................................84CAPÍTULO VII.............................................................................................................................A MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA..................................................................................92TERCEIRA PARTE – CRISTO NA MITOLOGIA............................................................105CAPÍTULO I.................................................................................................................................CRISTO ANTES DE CRISTO..............................................................................................106CAPÍTULO II................................................................................................................................A MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL..............................115CAPÍTULO III...............................................................................................................................ORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES............................................124CAPÍTULO IV...............................................................................................................................CRISTO É UM MITO SOLAR............................................................................................130QUARTA PARTE – FORMAÇÃO IMPESSOAL DO CRISTIANISMO ........................139CAPÍTULO I.................................................................................................................................A MORAL CRISTÃ SEM CRISTO.....................................................................................140CAPÍTULO II................................................................................................................................A DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO...............................................................................152CAPÍTULO III...............................................................................................................................O CULTO CRISTÃO SEM CRISTO...................................................................................160CAPÍTULO IV...............................................................................................................................FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO.........................................................167CAPÍTULO V................................................................................................................................COMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO..............................................178CONCLUSÃO.........................................................................................................................191

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PERFIL DO AUTOR

Emilio Bossi nasceu em Bru-zella (cidade do Cantão suíço de Ticino) em 31 de dezembro de 1870, filho de um arquiteto, Francisco, e de Emilia Contesta-bile.

Iniciou seus estudos no Liceu de Lugano e bacharelou-se em direito na cidade de Genebra.

Empreendeu carreira no jorna-lismo e ganhou fama como um grande polemista com o pseudô-nimo de Milesbo.

Foi adversário inflexível do clericalismo e defensor acérrimo da italianidade de Ticino. Travou duras batalhas contra os "mena-torroni" (desonestos) da vida pú-blica.

Colaborou com o jornal "O Dever" desde 1891 e foi seu di-retor em 1920 e editor de 1896 a 1902. De 1915 a 1920 dirigiu A Gazeta Ticinense. Foi diretor do semanário Nova Vida em 1893 e fundou o jornal Ideia Moderna em 1895. Em 1906 fundou e edi-tou A Ação, órgão do Extrema Radical.

Foi deputado do Grande Con-selho (1905-1910, 1914-1920), do Conselho Nacional (1914-1920) e do Conselho dos Esta-dos (1920). Como tal, dirigiu o

Departamento do Interior (1910-14). De 1905 a 1910, ocupou o cargo de juiz de instrução substi-tuto.

Liberal radical, foi com Ro-meo Manzoni, o flagelo impla-cável da política "oportunista" e das "transações" de Rinaldo Si-men.

Em 1897 foi um dos fundado-res da União Social Radical Tici-nense, uma associação que, além das reformas sociais defendia, propugnava a escola neutra e a separação entre Igreja e Estado.

Com Manzoni foi o líder ca-rismático da Extrema Radical, fundada em 1902 após uma vio-lenta polêmica com a corrente de Simen.

Em seguida à sua entrada no Conselho de Estado, Bossi foi forçado a se adequar à lógica das negociações. Em consequência, a Radical Extrema desaparece como grupo autônomo.

Morreu 27 de novembro de 1920, em Lugano.

Jesus Cristo Nunca Existiu foi publicado simultaneamente em 1904 em Milão (Milan Editorial da Companhia) e em Bellinzona, Suíça (El. elm. Colombi e C.).

Também em Milão foi reedita-7

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do em 1905 e 1906.Revê a luz em 1951 em Bolo-

nha, pela Lida, com um apêndice de Andre Lorulot. Finalmente, em 1976, se encontra publicado em Ragusa pela La Fiaccola.

Não se conhece outras edi-ções.

Bibliografia1899 - Sobre a Separação Entre o Estado e a Igreja.1900 - Jesus Cristo Nunca Exis-tiu1909 - A Clerezia e a Liberdade1916 - Vinte Meses de História Suíça

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INTRODUÇÃO

Uma nova primavera agita a vida humana: é a primavera da idade positiva, que se inaugura sob um duplo aspecto.

De um lado, o aspecto moral, que jaz sob uma forte camada de gelo e trevas invernais. As novas ideias, fecundadas pelo saber po-sitivo, encontram obstáculo fatal ao seu desenvolvimento no con-junto das falsos conceitos forma-dos pela educação religiosa, que sobrevive na forma inercial, como muito bem diz Haeckel, e está em contraste com tudo que à ciência vem descobrindo, con-traste que se manifesta nas Men-tiras Convencionais da Nossa Civilização descritas por Max Nordau, e no Século Hipócrita, descrito por Mantegazza.

E de outro lado, no campo da ciência positiva, que demoliu e desfez para sempre a bagagem da superstição, do dogma e do apriorismo escolástico, para fe-cundar com a potente energia do progresso material as veias do corpo social, o pensamento liber-tado, a autonomia da razão hu-mana, a ciência positiva armada do método experimental.

O que é verdade aqui é erro ali; é bem aqui, o que é mal ali; o

que é relativo e progressivo aqui, continua absoluto, necessário e imóvel ali; o que constitui aqui a base do progresso e do conheci-mento, ali está excluído, porque é a fé que reina soberana; o que aqui alenta os ânimos para o pro-gresso e a liberdade, ali está es-magado, porque é a autoridade que domina.

Já é tempo de restabelecer a unidade do mundo moral e do mundo material, do pensamento e da ação, do ideal e da realida-de, porque a vida é una, e as leis que governam o mundo físico e o mundo moral são idênticas. Bas-ta, para isso, aplicar à ciência moral, ainda na infância, os mé-todos que fizeram triunfar a ciên-cia positiva, isto é, a liberdade na investigação, o experimentalis-mo como instrumento e o racio-nalismo como sistema.

É preciso desconsiderar todas as crenças tradicionais e abando-ná-las ao seu destino, conservan-do somente as que resistam à crí-tica; aquelas que, apenas com a experiência e o exame, traba-lhem na construção de um novo edifício moral, com atividade e voz cada vez mais intensa e fe-bril, e que deve coroar o soberbo, o esplêndido e imortal edifício

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das descobertas positivas de útil aplicação que a ciência vem le-vantando, para que, da união desses dois monumentos, nasça um novo templo: o Templo da Humanidade.

Animados por essas ideias, di-recionamos esta nossa modestís-sima obra ao exame dos dois mil anos de crença em Jesus Cristo, partindo do ponto em que já che-garam a crítica histórica, a exe-gese bíblica, a ciência mitológica e a teoria da evolução aplicada à investigação das origens naturais do Cristianismo. Deste exame, empreendido unicamente por amor à Verdade e sem qualquer inclinação teológica ou antiteoló-gica, conclui-se que Cristo nunca existiu.

A crítica histórica já tinha no-tado o silêncio da História sobre Cristo, e assinalava como suspei-tas as passagens dos poucos his-toriadores profanos daquele tem-po sobre a sua existência históri-ca, enquanto que a exegese bíbli-ca já tinha reduzido o Antigo Testamento a uma obra apócrifa composta pela casta dos sacerdo-tes para edificação dos fieis. Ou-tro tanto vinha fazendo a respeito do Novo Testamento, ratificando muito pouco do que se quer fazer passar por histórico.

Por outro lado, a ciência mito-

lógica, ajudada pela filosofia, pela arqueologia e pelas desco-bertas dos viajantes, tinha afir-mado que as lendas, os mitos, as narrações e os preceitos do Anti-go e do Novo Testamento não são mais do que variações feitas sobre as lendas, mitos, narrações e preceitos da mesma natureza, anteriores ao Cristianismo, so-bretudo da China, Judeia, Pérsia, Mesopotâmia e do Egito.

Estas investigações e esta crí-tica, para não citar as primeiras seitas heréticas nem os protestos da filosofia pagã, especialmente de Celso, que, em parte, abala-ram a Igreja Triunfante, começa-ram com a Renascença italiana, continuaram com a Reforma e chegaram ao seu apogeu na França com os filósofos do sécu-lo XVII e na Alemanha com os críticos e os sábios do século XIX.

O estudo acerca do Cristianis-mo tinha chegado a este ponto quando a Inglaterra aperfeiçoou e estabeleceu cientificamente, com Darwin e Spencer, a Teoria da Evolução, que, levando em conta a evidência das leis da Na-tureza, do pensamento e da histó-ria, se apresentava como o gran-de argumento, a lanterna mágica que explica e interpreta o curso das relações humanas e nos faz

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compreender o progressivo de-senvolvimento das instituições e da sociedade. E mesmo quando não tinha ainda sido reduzida a sistema científico, a Teoria da Evolução foi aplicada com muita antecedência por Vico, Leibnitz e Condorcet, à historia em geral, e, especialmente por Tindall, ao próprio Cristianismo.

Tindall, há dois séculos no seu Cristianismo Antigo Como o Mundo, tinha precedido já os mais avançados entre os moder-nos, demonstrando que o Cristia-nismo não era produto de nenhu-ma revelação, mas apenas o re-sultado necessário da influência de um conjunto indecifrável de fatores diversos na determinação da essência, extensão e eficácia do sistema religioso cristão; que este era consequência dos fatos que o precederam e do ambiente em que nasceu, quando a huma-nidade estava ainda subjugada em suas dores, juízos, aspirações e esperanças mais ou menos qui-méricas; que ele, enfim, desapa-receria, quando todas as circuns-tâncias a que devia a existência fossem totalmente transforma-das.

Porém, só quando a Teoria da Evolução dominou efetivamente no campo da natureza, é que conseguiu vencer a tradicional e

fetichista veneração ao Sagrado entre os Sagrados, ao Cristianis-mo. Foi então que os espíritos positivos, não podendo mais ad-mitir nada de sobrenatural na ci-ência moral, como tampouco se admitiu nas ciências físicas, se dedicaram a explicar natural-mente a origem e o desenvolvi-mento do Cristianismo. Esta foi a obra primordial de Ernesto Ha-vet.

O resultado da crítica históri-ca, bíblica e mitológica, e o da aplicação da teoria da evolução ao Cristianismo, foi reduzir-se ou inutilizar-se a pessoa de Cristo, enquanto, pelos fins do século XVIII, Dupuis e Volney, funda-mentados na teologia comparada e na explicação solar do mito dos Deuses Redentores, negavam com poderosas razões, revelado-ras de uma grande cultura, a existência humana de Cristo.

Essas razões, porém, não fo-ram aceitas pela crítica, não por-que não fossem justas, mas por-que esta não estava ainda sufici-entemente amadurecida. O mes-mo sucede com os mitólogos que vieram, depois, com todas as provas, acumuladas, da identida-de mitológica de Cristo com Cristna, Buda, Mitra, Horus, etc., ou seja, com os Deuses Redento-res da antiguidade. Esses mitólo-

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gos não ousaram negar em abso-luto a pessoa de um Jesus he-breu, contentando-se uns com ro-deá-lo com um engrandecimento lendário e uma divinização mito-lógica, e outros com ambas. E como nesse exame todos parti-ram de um ou vários pontos de vista parciais e unilaterais, em vez de se apoiarem e completa-rem reciprocamente, destruíram a obra comum, criticando-se uns aos outros nos pontos controver-sos, e acabando por se elimina-rem mutuamente.

Enquanto que a interpretação evolucionista baste para explicar a origem e a formação do Cristi-anismo, com o aditamento das preciosas informações postas à sua disposição pela mitologia comparada, a presença de Jesus continua como um último obstá-culo à completa explicação do cristianismo segundo o método científico, mesmo que excluindo a sua presença e considerando que a crítica bíblica e histórica tenham reduzido as fontes da crença em Jesus à sua mais ínfi-ma expressão.

Posto isto, os últimos mistéri-os, únicos pontos obscuros que permanecem sem explicação no cristianismo - e não são poucos - são os que derivam da pretendida existência do Cristo.

Como conciliar, dada a sua existência, a missão de conservar o mosaísmo, que ele se atribui - ainda que o mosaísmo fosse apó-crifo, bastava que Jesus acredi-tasse nele para que se arrogasse tal missão - com a missão opos-ta, de o destruir, o que, por outro lado, se lhe atribui?

Como explicar o fato de Jesus, nascido e criado entre hebreus, filho de um obscuro artista, igno-rando a literatura grega, segundo atestam mesmo os seus pretendi-dos discípulos, conhecer os li-vros de Platão, conforme o pre-tende Celso, em resposta a igual pergunta de Orígenes, que, por outro lado, não pensa sequer em conciliar o fato da ignorância he-lênica de Cristo com o fato de ele, no quarto Evangelho especi-almente, falar como um discípu-lo de Platão, como se fosse um Fílon?

Ernesto Renan, o grande ro-mancista de Cristo porém, infun-damentado, perante a observação de Celso, não responde melhor do que Orígenes: Reconhecemos no cristianismo - diz ele - uma obra excessivamente complexa para que possa ser trabalho de um só homem. Acreditamos, pelo contrário, que nela tenha cola-borado a humanidade inteira... Jesus ignorava o nome de Buda,

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de Zoroastro, de Platão. Não leu nenhum livro grego, nenhum su-tra búdico, e, não obstante, reu-nia em si mais de um elemento, que, sem que ele próprio o sus-peitasse, procedia do budismo, do parsismo e da sabedoria gre-ga - intervenções que se realiza-vam por canais secretos, por es-sas simpatias existentes entre as diversas partes da humanidade.

Quando homens do valor e da inteligência de Renan se veem obrigados, ante a incompatibili-dade de Jesus com a explicação do Cristianismo, a recorrer aos citados argumentos só cabíveis num faquir hindu, num astrólogo medieval ou num médium do es-piritismo ilusionista, e quando se pensa no amor infinito que Re-nan põe no seu personagem, é permitido duvidar de que a pes-soa de Cristo seja histórica.

Esta dúvida que em nós surge, em virtude da absoluta impossi-bilidade de se explicar satisfato-riamente o Cristianismo e os pró-prios Evangelhos, sem lhes tirar a pessoa de Cristo - desde que não se creia na sua divindade, pois à fé nada pode parecer estra-nho ou impossível - reforça a suspeita que nos levou a exami-nar de perto a questão da existên-cia histórica do Cristo e a con-

cluir pela sua negativa.Tal é o fruto da presente obra

que oferecemos a público sem nenhuma pretensão literária, com o único fim de contribuir para di-vulgar o racionalismo entre o povo em lugar de fazer uma obra de grande erudição. Além disso, este livro não vem dizer nada de novo. É apenas um trabalho de síntese, de integração e de lógi-ca, no qual organizamos os resul-tados obtidos pela crítica e pela erudição.

E, assim, como os resultados de uma ciência ou, de uma deter-minada ordem do investigações completam os resultados obtidos por outra ciência ou por outra or-dem de investigações, aqui tam-bém, do concurso dos diversos elementos da verdade, surge a conclusão lógica de que Cristo nunca existiu.

Esta conclusão é, por outro lado, o ponto de partida necessá-rio para os futuros progressos da ciência, neste campo.

Seja qual for o juízo emitido sobre o presente trabalho, tenha-se sempre em conta que é obra de um profano que se propôs aplicar o bom senso natural à crí-tica do Cristianismo.

Emílio Bossi - Milesbo

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Primeira Parte

Cristo na História

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CAPÍTULO IO SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO

De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a história não nos conservou documento algum, prova alguma, demonstração al-guma. Cristo nada escreveu1.

É certo que Sócrates também nada escreveu, limitando- se ao ensino oral. Mas, entre o Cristo e Sócrates, há três diferenças ca-pitais: a primeira consiste no fato de Sócrates não ensinar nada que não fosse racional, hu-mana, ao passo que Cristo pouco tem de humano, e esse pouco ainda misturado com muita coisa milagrosa; a segunda diferença deduz-se da circunstância de Só-crates ter passado à história só como personagem natural, en-quanto Cristo nasceu e foi co-nhecido apenas como pessoa so-brenatural; a terceira, enfim, ba-seia-se em Sócrates ter por discí-pulos pessoas históricas, cuja 1 A pretensa carta ao rei Abgaro provou-se que foi uma piedosa fraude. Orígenes e Santo Agostinho, para não irmos mais longe, excluem-na, declarando, por um modo formal, que Cristo nunca escreve-ra coisa alguma. Além disso, a própria Igreja em tal ponto concorda, pois não a inclui entre os documentos canônicos, como teria feito, se, porventura, ela ti-vesse alguma aparência de autenticida-de. O mesmo pode dizer-se da carta de Pilatos a Tibério.

existência é notória, como Xeno-fonte, Aristipo, Euclides, Fédon, Ésquilo e o divino Platão, ao passo que, dos discípulos de Cristo nenhum é conhecido, a não ser se dermos crédito a do-cumentos de pura fé, totalmente suspeitos.

De sorte que, pelo fato de Só-crates nada escrever, não se pode concluir que ele não existiu, ao passo que é permitido admitir le-gitimamente, pelo menos a título de probabilidade, que Cristo, que teria vivido cinco séculos mais tarde, nada deixou escrito. Cristo não só nada escreveu, como ne-nhuma linha foi escrita a seu res-peito.

Sem levar em conta a Bíblia que, além de não dar nenhuma prova sobre a personalidade real do Cristo, ainda demonstra o contrário. Dos muitos autores profanos que foram contemporâ-neos de Cristo, nenhum nos dei-xou o menor vestígio acerca dele.

Os únicos autores leigos que lhe mencionaram o nome – Flá-vio Josefo,Tácito, Suetônio e Plínio – ou foram interpolados e falsificados, como aconteceu aos

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dois primeiros, ou, como os dois restantes, falaram de Cristo ape-nas etimologicamente para de-signarem seus seguidores e a su-perstição que tomou o seu nome. Escreveram muito tempo depois, sem o terem conhecido, sem da-rem provas da sua existência, e em termos tais que só servem para comprovar que ele nunca existiu.

Ernesto Renan, o mais célebre dos cristólogos, que cometeu o erro de fazer da Vida de Jesus uma biografia quando não passa de uma engenhosa lenda, vê-se obrigado a reconhecer o silêncio da história em volta do seu he-rói. Ele escreve que os países gregos e romanos nunca ouvi-ram falar de Cristo. Mesmo com os movimentos sediciosos pro-vocados pela sua doutrina e as perseguições de que foram alvo os seus discípulos, ainda assim o seu nome não aparece nos auto-res profanos durante o primeiro século depois da sua morte, se-quer indiretamente.

No judaísmo, Jesus não dei-xou impressão duradoura. Fílon, que morreu no ano 50, nada sabe acerca dele. Josefo, nascido no ano 37 e que escreveu até fins do primeiro século, narra a sua con-denação em algumas linhas2 en 2 Que o próprio Renan anota para adver-

passant e, ao enumerar as seitas do seu tempo, não cita a dos cristãos.

A Mishná, diz ainda Renan, nada fala sobre a nova doutrina; os personagens dos dois Gema-ros, como se qualifica o funda-dor do Cristianismo, não nos le-vam além do quarto ou quinto século3.

Um escritor hebreu, Justo de Tiberíades, que narrou a história dos hebreus desde Moisés até fins do ano 50 da era cristã, não cita sequer o nome de Cristo, se-gundo atesta Fócio.

Juvenal, que fustigou com a sátira as crenças do seu tempo, fala extensamente dos hebreus, mas não dedica uma única pala-vra aos cristãos como se eles não existissem4.

Plutarco, nascido 50 anos de-pois de Cristo, historiador emi-nente e consciencioso, que de-certo não poderia ignorar a exis-tência de Cristo e dos seus pro-dígios, nem uma só vez alude, em suas numerosas obras, quer ao chefe da nova fé, quer a seus

tir que a passagem de Josefo foi alterada por mão cristã. Porque, só alterada? Como veremos, foi interpolada.3Renan, Vida de Jesus, vol. IV, cap. XX-VIII4Stefanoni, Dicionário Filosófico, a voz de Jesus

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discípulos. Cesare Cantù, a quem a cren-

ça mais cega e indigna de um historiador vedou os olhos, mis-tura fatos históricos com as in-venções mais absurdas do cristi-anismo. Desiludido da sua fé pelo silêncio de Plutarco, conso-la-se dizendo que Plutarco é sin-cero na crença das suas divinda-des e que por isso, em nenhuma das obras que escreveu sobre moral se refere aos cristãos5.

Sêneca, que por seus escritos cheios de máximas perfeitamen-te cristãs faz duvidar se foi cris-tão ou teve relações com os dis-cípulos de Cristo, no seu livro sobre as crenças, extraviado ou destruído, dado a conhecer por Santo Agostinho, não diz uma única palavra acerca de Cristo, e, falando dos cristãos, aparecidos já em muitos pontos da terra, não os distingue dos hebreus, a quem chama de um povo abomi-nável6.

Mas sobretudo expressivo e decisivo é o silencio de Fílon acerca de Cristo.

Fílon, que contaria de 25 a 30 anos, quando apareceu Cristo, e

5C. Cantù, História Universal, Época VI, Parte II6Ernest Havet, O Cristianismo e suas Origens. O Helenismo, tomo II, Ch. XIV

que morreu alguns anos depois deste, nada sabe ou diz acerca dele.

Como escritor distintíssimo que foi, ocupou-se especialmen-te de estudos sobre filosofia e re-ligião, e, por certo, não esquece-ria Cristo, seu compatriota de origem, se Cristo realmente ti-vesse aparecido sobre a face da terra e levado a cabo uma tão grande revolução do espírito hu-mano.

Uma circunstância de grande relevo torna mais eloquente o si-lêncio de Fílon em torno de Cristo: é que todos os ensina-mentos de Fílon podem passar por cristãos, de tal sorte que Ha-vet não hesitou em chamar a Fí-lon um verdadeiro Padre da Igre-ja.

Por outro lado, Fílon se preo-cupou especialmente em conju-gar o judaísmo com o helenismo tomando do Antigo Testamento as partes mais edificantes, de-pois de distinguir o sentido ale-górico do literal, enxertando na árvore da religião hebraica o misticismo dos neoplatônicos alexandrinos. Deste modo, che-gou a formar uma doutrina pla-tônica do Verbo ou Logos, que tem muita afinidade com a do IV Evangelho, na qual o Logos é precisamente o Cristo. Pois bem:

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não é isto uma grande revelação?

Fílon, que vive no tempo de Cristo, que já é célebre antes do nascimento dele, e que morre ainda alguns anos depois; Fílon, que realiza com o Judaísmo a mesma transformação, heleniza-ção e platonização idêntica à que os Evangelhos promovem, so-bretudo o IV; Fílon, que fala do Logos ou do Verbo do mesmo modo que o IV Evangelho, por-que não cita Cristo uma única vez sequer em suas numerosas obras?

Porventura, não prova este fato eloquentíssimo que Cristo nunca foi pessoa histórica e real, mas sim pura invenção ou cria-ção mitológica e metafísica, para o que contribuiu mais do que ninguém o próprio Fílon, que es-creveu, como se fosse um cris-tão, sem saber nada de tal nome, que fala do Verbo sem conhecer o Cristo, e que ensina a mesma doutrina atribuída Cristo?

Se Fílon pôde falar do Verbo e escrever como se fosse um cris-tão, antes de Cristo, sem nada saber e nada dizer acerca dele, não indica isto que o Cristianis-mo se elaborou sem Jesus e por obra precisamente e principal-mente do mesmo Fílon, que não diz uma única palavra acerca da

pessoa humana, da existência material e histórica de Cristo?

Em suma: se Cristo um dia existiu, como explicar a incom-preensível anomalia de que Fílon não fale dele?

Por outro lado, Fílon, o Platão hebreu, alexandrino, contem-porâneo de Cristo fala de todos os acontecimentos e de todos os personagens principais do seu tempo e do seu país, sem esque-cer Pilatos. Conhece e descreve os essênios estabelecidos junto de Jerusalém nas ribeiras do Jor-dão. Foi como delegado a Roma para defender os hebreus no rei-nado de Calígula, o que faz su-por nele um profundo conhece-dor das coisas e nomes da sua terra. Se Cristo tivesse existido, Fílon certamente ver-se-ia obri-gado a, no mínimo, a referir-se a ele.

O silêncio de todos os escrito-res contemporâneos acerca de Cristo tem sido, nestes últimos tempos, objeto da mais atenta consideração por parte da verda-de histórica, embora alguns es-critores liberais tenham-no avali-ado de maneira leviana e super-ficial.

Salvador explica o fenômeno apoiando-se em débil vestígio deixado em Jerusalém pelo filho

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de Maria7. O próprio Stefanoni não pode explicar o fenômeno sem reduzir o nascimento de Cristo e toda a sua vida a pro-porções demasiadamente mes-quinhas, circunscritas aos limites de uma ocorrência comum8. Mas esta explicação é inadequada.

Nós não conhecemos mais do que um único Jesus: o dos Evan-gelhos e dos Atos dos Apóstolos. Este personagem não deixou ne-nhum vestígio em Jerusalém, contra o que pretende Salvador; sua vida não foi mesquinha, em oposição ao que supõe Stefano-ni, ao contrário, a vida de Cristo, segundo a Bíblia, foi de tal for-ma rumorosa e extraordinária que nenhum outro Ser Humano viveu algo semelhante.

Jesus deu causa a alvoroços públicos, a prisão, a um proces-so, a um drama judicial seguido de morte trágica. Realizou prodí-gios maravilhosos, desde a visita dos anjos até as estrelas que marchavam para indicar o lugar do seu nascimento aos soberanos vindos da Ásia expressamente para o visitar; desde a degolação dos inocentes às discussões que

7J. Salvador, Jesus Cristo e sua Doutri-na, tomo I, livro II.8Luigi Stefanoni, lugar mencionado também na Histótia Crítica das Superstições, Vol II , Cap. I.

sustentou aos doze anos com os doutores; desde a multiplicação do número e a transformação da natureza dos elementos à cura dos enfermos e à ressurreição dos mortos; desde. a dominação dos elementos às trevas e terre-motos, que assinalaram a sua morte até à sua própria ressurrei-ção.

Ora, perante um personagem tão extraordinário e aconteci-mentos tais que atrairia a aten-ção das pessoas mais indiferen-tes e excitaria a curiosidade dos cronistas, analistas e historiógra-fos, o silêncio da história é abso-lutamente inexplicável. Inveros-símil e singularíssimo, como acertadamente notou Dide9. Este silêncio constitui, por irrespon-dível, uma grande presunção contra a existência histórica e real de Cristo. Outros elementos críticos nos provam que só a ine-xistência de Cristo pode explicar o silêncio da história em volta dele, e que, por sua vez, este si-lêncio demonstra aquela não existência.

O mesmo silêncio da História acerca de Jesus revela-se tam-bém a respeito dos apóstolos, so-bre os quais não existem outros documentos senão os eclesiásti-

9A. Dide, O fim das Religiões, Paris, Flamarion, pag. 55.

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cos, destituídos de todo o valor provativo, pois que nô-los apre-sentam, não como homens natu-rais, mas como personagens so-brenaturais, ou pelo menos, tau-maturgos, o que vem a dar na mesma10.

Os únicos fatos históricos que se atribuem aos apóstolos, tais como a viagem de S. Pedro a Roma e as suas disputas com Si-mão Mago, o encontro de S. Pe-dro com Jesus e o famoso Quo vadis, Domine?, morte de S. Pe-dro e outros fatos, são narrados exclusivamente em livros decla-

10 Emilio Ferriére, no seu excelente livro Os apóstolos demonstra a impossibili-dade de S. Pedro ter estado em Roma, impossibilidade esta confirmada pelo si-lêncio dos mais antigos escritores da Igreja, até á segunda metade do século IV. Porém, o autor comete o equívoco de tomar como fonte histórica os Atos dos Apóstolos, escolhendo as poucas notas que estes nos deixaram, como se fossem notícias verdadeiras. A simples consideração de que nada do que nar-ram os Atos está conforme com qual-quer dos autores profanos deveria bastar para nos pôr em guarda a respeito desta fonte, que não pertence de modo algum à Bíblia porque, até na compilação dos livros canônicos da Bíblia, a Igreja teve o astucioso cuidado de se descartar de todos os documentos que falavam de Cristo, Maria ou dos Apóstolos que pu-dessem ser facilmente impugnados pela crítica histórica, evitando, assim, o peri-go de se pô-lo a descoberto desde o seu princípio.

rados apócrifos pela própria Igreja. Outro tanto pode afirmar-se de José e de Maria, progenito-res de Cristo, e bem assim de seus irmãos e de toda a sua famí-lia.

Todas estas circunstâncias au-mentam a significação do silên-cio da história em volta de Cris-to, circunstâncias que adquirem maior valor quando se vê que Cristo, Maria e os Apóstolos são puras criações místicas.

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CAPÍTULO IIAS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO

Os únicos autores profanos que falaram de Cristo reputados como testemunhas da sua exis-tência foram Tácito, Suetônio e o historiador hebreu Josefo.

Vamos, pois, examinar um a um estes testemunhos para ver-mos que, não só não constituem prova da existência de Cristo, como também são novas de-monstrações do contrário.

De todos os historiadores cita-dos, o único que poderia ter va-lor de prova pela sua qualidade de historiador hebreu é Josefo, ainda que tenha vivido e escrito muitos anos depois do período que se considera como sendo o da vida de Cristo.

Josefo fala de Cristo apenas casualmente nestas poucas li-nhas: Naquele mesmo tempo, nasceu Jesus, homem sábio, se é que pode se chamar de homem pois realizou obras admiráveis, ensinando aqueles que queriam inspirar-se na Verdade. Não só foi seguido por muitos hebreus, como também por alguns gre-gos. Era o Cristo. E, tendo sido denunciado a Pilatos pelos prin-cipais da nossa nação, este fê-lo crucificar. Os seus partidários

não o abandonaram nem mesmo depois de morto. Vivo e ressusci-tado, reapareceu no terceiro dia da sua morte como o haviam predito os santos profetas, e rea-lizou muitas outras coisas mila-grosas. A sociedade cristã que ainda hoje subsiste, tomou dele o seu nome11.

Salvador, Renan, Stefanoni e vários outros escritores nada di-zem acerca da possibilidade de terem sido alteradas as palavras de Josefo, o que se compreende em autores que, embora não creiam na divindade de Jesus, abrigam em si a crença nesse Cristo Homem, mais ou menos extraordinário, do qual se origi-nou o Cristianismo.

Porém, uma análise criteriosa levará à convicção de que a pas-sagem de Josefo relativa a Jesus foi interpolada. O texto está per-dido no meio de um capítulo, sem conexão alguma com o as-sunto que o precede e o que lhe sucede, intercalado nos relatos de um castigo militar infligido ao populacho de Jerusalém e dos amores de uma matrona romana

11Josefo, Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, cap. III

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com um cavalheiro que obtém os seus favores fazendo-se passar por uma personificação do Deus Anúbis.

Além do mais, estes dois eventos históricos são relacio-nados entre si. Estão interligados porque o historiador, ao relatar o segundo, chama-lhe de outro acidente deplorável, donde se depreende que esse outro aci-dente deplorável só pode estar relacionado com o primeiro, do motim popular e a consequente repressão.

A passagem intercalada entre esses dois acontecimentos não pode ser atribuída a Josefo por-que rompe bruscamente o fio da narração, e o autor revela-se, em toda a sua obra, mestre na arte de colocar cada coisa em seu lu-gar12.

Além disso, na referida passa-gem, Josefo fala de Cristo como o faria um bom cristão, pois con-sidera-o um ser sobrenatural e relaciona-o com as predições dos profetas.

Como pôde Josefo empregar semelhante linguagem, isto é, acreditar na divindade de Cristo sem ser cristão e continuando hebreu? É tanta a evidência que até o erudito padre Gillet se vê 12 A. Peyrat, História elementar e críti-ca de Jesus. Conclusão.

obrigado a reconhecer que Jose-fo não pôde falar daquele modo, como o faria um cristão, e que, por conseguinte, deve ser consi-derado apócrifo e intercalado o texto referido13

Além disso, constitui-se em prova direta e definitiva desta in-terpolação o fato de S. Justino, S. Cypriano, Tertuliano e Oríge-nes, em suas numerosas e arden-tes polêmicas contra os hebreus e pagãos, não citarem esta passa-gem de Josefo.

Orígenes declara que Josefo não reconhecia Cristo14 na pes-soa de Jesus, o que não diria se o personagem citado por Josefo fosse conhecido no seu tempo.

Em suma: por consenso de to-dos os críticos sensatos e compe-tentes, esta passagem de Josefo foi julgada interpolada por uma piedosa fraude dos cristãos pri-mitivos.

Cita-se, ainda, outra passagem de Josefo (Livr. XX, cap. 9), na qual, falando na condenação de Thiago, acrescenta: Irmão de Je-sus, chamado o Cristo. Aqui Jo-sefo se contradiz porque fala de Cristo como de um homem qual-quer, demonstrando que não crê 13 Larroque, Exame crítico das doutri-nas da religião cristã. Prim. Part. cap. IV.14Contra Celso, livro 1, § 47.

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na sua divindade, ao passo que noutro lugar mostra acreditar nela.

Esta contradição se esclarece ao se considerar interpolada ou desfigurada a passagem anterior-mente relatada.

Mas, na realidade, não há cri-tério fixo para aceitar a primazia de uma ou de outra das duas pas-sagens contraditórias, de forma que, não só uma exclui a outra, como as duas se excluem mutua-mente. Apenas que na última, a interpolação foi feita com maior astúcia do que na primeira, pois nela Josefo fala como hebreu que era, o que se explica por ser anterior à primeira, já que existia no tempo de Orígenes e exigiu maior prudência.

A última passagem não é e não pode ser considerada autên-tica pela simples, óbvia e inde-clinável razão de que, se Josefo houvesse tido efetivamente notí-cias de Jesus, chamado o Cristo, não teria deixado de se explanar muito mais sobre a sua vida, tra-tando-se de um homem que to-mara uma parte tão grande, tão notável, tão extraordinária, tão original e culminante na história do seu país. Se alguma dúvida ainda restou sobre a prova defi-nitiva de que a passagem de Jo-sefo acerca de Jesus foi interpo-

lada, nada mais nos resta do que ler Fócio, que declara formal-mente que nenhum hebreu ja-mais falou de Cristo.

Vejamos, agora, Tácito.A passagem deste historiador,

que pode apresentar-se como testemunho a favor da existência de Jesus, é a seguinte:

Nero, sem grande alarde, sub-meteu a processo e a penas anormais aqueles que o vulgo chamava cristãos, por causa do ódio que lhes votava por suas feitiçarias. Quem lhes deu o nome foi Cristo, a quem Pôncio Pilatos, no reinado de Tibério, condenou ao suplício. Apenas reprimida, esta perniciosa su-perstição (o cristianismo) fez novamente das suas. Não na Ju-deia, de onde provinha todo o mal, mas na própria Roma, para onde afluíam de toda a parte os sectários, cometendo as ações mais audaciosas e vergonhosas. Por testemunho dos que os puni-am e pela opinião pública geral, (os cristãos) eram incendiários e professavam ódio extremo ao gênero humano15.

Nunca se cometeu uma falsifi-cação mais evidente em detri-mento do grande historiador ro-mano, falsificação esta que se

15Tácito, Anais, livro 15, § 44.23

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estende a todo o texto. Enquanto Tácito afirma que o

vulgo chamava assim aos cris-tãos porque eram odiados por suas feitiçarias, o falsificador fá-lo contradizer-se nas linhas que logo se seguem, e nas quais pre-tende que os cristãos procediam de Cristo.

Tal contradição é impossível num escritor da envergadura de Tácito, e resulta da interpolação das palavras que se referem a Cristo, porque a etimologia dada por Tácito ao nome dos cristãos é somente a que corresponde à sua opinião favorável dos cris-tãos, expressamente posta e mantida em todo o trecho em que ele fala dos mesmos16.

16 Nota da segunda edição. “quos per flagitia invisos vulgus Christianos ap-pellabat”. (que, odiados por seus cri-mes, eram popularmente conhecidos como cristãos). Os nossos anticríticos caíram sobre a tradução desta passagem de Tácito com tanta disposição quanto é certo terem a insânia de crer que, enfra-quecido assim o nosso argumento, fica-va comprometida a seriedade do livro. À falta de melhor juízo, pensaram que, atacando este argumento, feriam o pró-prio calcanhar de Aquiles. Pois bem: queremos deixar na dúvida a questão de saber se Tácito quis dar ao nome dos cristãos a origem da aversão que inspi-ravam com suas feitiçarias. Queremos admitir que não haja relação alguma eti-mológica, pelo menos aparente, entre o homem e o assunto. Mas, nesse caso,

Outra circunstância, que prova a interpolação, encontra-se na passagem do mesmo Tácito, oportunamente revelada por Ga-neval17 e onde o eminente histo-riador romano (Liv. II, § 85) diz que foram expulsos de Roma os hebreus e os egípcios, que for-mavam uma única superstição. Neste ponto, é evidente que Tá-cito não faz proceder da Judeia os cristãos, mas do Egito, destru-indo assim a pretendida origem etimológica dos cristãos de Cris-to, origem essa que o obriga a defender na passagem que vimos de examinar. deparamos sempre com o motivo pelo qual Tácito colocou naquela passagem o per flagitia invisos, que não teria, em tal caso, relação alguma com o resto do texto, ao passo que estaria em seu lugar na filípica que dedica, mais à frente, aos cristãos. Pelo contrário, este trecho esta-ria perfeitamente no seu lugar, mesmo como está porque tem relação com o trecho seguinte, em que Tácito fala dos cristãos, admitindo nós a interpolação do período intermédio em que se faz di-zer a Tácito que o nome de Cristãos vem de Cristo. Mas, deixemos na dúvi-da essa questão etimológica: resultaria daí que Tácito deu testemunho histórico de Cristo? De modo algum. Ainda nesta hipótese, não teria feito mais que citar o que os cristãos diziam, especialmente nos tribunais, para dar a conhecer a pre-tendida origem histórica da sua supersti-ção.

17 Ganeval, Luiz – Jesus, perante a história, nunca existiu. Cap. IV – Gene-bra. Livraria Veresoff etc... 1874

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De maneira que os que falsifi-caram esta passagem esquece-ram-se de falsificar aquela onde Tácito ignora Cristo, absoluta-mente, e onde afirma, como em seu lugar demonstraremos, que o Cristianismo não procede de Cristo, mas sim da fusão do he-braísmo, do orientalismo e do helenismo, realizada no Egito.

Mesmo que não se quisesse admitir esta fraude, o testemu-nho de Tácito não provaria de modo algum a existência de Cristo, visto que ele o cita unica-mente para dar a origem etimo-lógica do nome dos cristãos.

Não se pode admitir que Táci-to tenha escrito acerca de Cristo da forma enganosa com que o fi-zeram escrever, pois se Cristo ti-vesse realmente existido, saben-do-o ou conhecendo-o, o histori-ador teria falado certamente muito mais a respeito dele, nun-ca limitando-se a falar de um ho-mem extraordinário, em poucas palavras, ditas a correr e entre incidentes ocasionais18 .

18 Alfredo Taglialatela, no Rinnovamen-to di Roma de 23 de julho de 1904, n. 30, faz saber que Hochart sustentou a interpolação de Tácito com muito mais veemência do que nós o fizemos. Igno-ramos a crítica de Hochart e lamenta-mos muito. Mas somos gratos ao sr. Ta-glialatela, pela, sua informação, que vem a confirmar que não estamos fora

A passagem de Suetônio é ainda mais breve e mais contra-ditória.

Roma – diz ele, falando do reinado de Cláudio – expulsou os judeus que, instigados por Cresto, promoviam contínuos tu-multos19.

Ponhamos de lado a diferença entre Cresto e Cristo20 para ana-lisarmos a dificuldade a que dá origem a pessoa aludida por Su-etônio.

Se era Cristo, como acreditar que tenha sido expulso de Roma onde nunca esteve? E, se esteve em Roma, como podia ele viver ainda no tempo de Cláudio, se Tácito nos diz que foi crucifica-do no reinado de Tibério, que precedera o de Calígula e este o de Cláudio? Em vista disto, for-çoso é reconhecer que os dois testemunhos, de Tácito e Suetô-

do caminho e que outros, mais compe-tentes do que nós, têm apoiado a inter-polação de Tácito. 19Suetônio, Vida de Cláudio, cap. 25. 20 Esta questão etimológica não é tão desprezível assim, como Larroque e ou-tros consideraram. Ganeval pretende que o nome de Cristo,empregado pelos cristãos nos séculos I e II em Roma, e nos livros sybillinos no Egito seja uma derivação do nome de Cresto, aplicado a Serápis, Bom e Agathos. Ainda, se-gundo ele, Cristo é uma pura e simples transformação do Deus morto e ressus-citado do Egito.

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nio, a respeito de Cristo, se ex-cluem e se eliminam mutuamen-te.

O testemunho de Plínio, o Moço, então é quase estranho ao debate. Numa carta enviada a Trajano, fala em Cristo21, não como pessoa de quem se preten-de demonstrar existência histó-ria, mas como divindade simbo-lizadora da adoração dos cris-tãos. Pela mesma razão, teria aludido a Brahma, falando dos brahmanes, para indicar o objeto do seu culto, sem com isto que-rer demonstrar a existência de Brahma. Em suma: Plínio falou de Cristo só etimologicamente, sem emitir opinião alguma sobre a sua existência.

Portanto, fora os testemunhos de Suetônio e de Plínio por im-pertinentes à questão, e demons-trada a falsificação do que se atribui a Josefo e a Tácito, o que fica das pretendidas provas his-tóricas da existência de Cristo?

Nada, absolutamente: apenas a prova do contrário. Teriam sido necessárias as falsificações para provar a existência de Cris-to se esta fosse real?

As falsificações só foram fei-21 Todos comigo invocaram os Deuses e ofereceram incenso e vinho à tua ima-gem, maldizendo o Cristo. (Plinio Epist. 97, liv. X.

tas para ocultar verdade. E como as falsificações deviam ter sido praticadas para fazer crer na existência de Cristo, temos de deduzir, logicamente, que ele nunca existiu, pois não seria ne-cessário falsificar a história para nos provarem a sua existência.

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CAPÍTULO IIIPROVAS HISTÓRICAS CONTRA A EXISTÊNCIA DE CRISTO

A história não só ignora Cris-to, não só prova que os autores profanos que dele falaram foram neste ponto falsificados, mas até, existem outras provas históricas que demonstram a sua não exis-tência.

Chamamos de históricas a es-tas provas porque são fatos verí-dicos, certos e positivos, porque são testemunhos concretos e vá-lidos de escritores e de determi-nadas escolas, ao passo que as provas que apresentaremos a se-guir, ainda que valiosas, não têm o mesmo valor histórico por se-rem deduções exegéticas da bí-blia e da mitologia comparada, extraídas de documentos própri-os da fé cristã e da história das crenças humanas.

Ganeval reuniu grande núme-ro dessas provas na sua obra Je-sus, Perante a História, Nunca Existiu, excelente pela sua convicção e séria pelo seu propósito, obra que merecia melhor sorte apesar das suas repetições provenientes da falta de sistematização e da unilateralidade da tese que vê em Cristo uma transformação pura e simples de Serápis, tese que po-derá ser justa mas, por falta de documentação suficiente, pode

não ser correta mas somente pro-vável, muito provável, mesmo porque, Serápis é certamente o deus que tem mais analogias com Cristo.

No nosso entender, Ganeval não desenvolveu adequadamente a sua tese. Foi infeliz ao lhe in-troduzir elementos análogos aos da mitologia dos outros povos orientais. Deveria ter percebido que, apesar de certas expressões simbólicas referentes à cópula, como Serápis, Cristo não é tanto a encarnação alegórica do Phal-lus como o é do Sol.

Entretanto, façamos-lhe a de-vida justiça, reconhecendo que descobriu a verdade da lenda de Cristo e dos relatos da história, quando é certo que, antes dele, só Dupuis e Volney abordaram a tese da mitologia comparada. Entretanto, as provas se acumu-lam, e os recentes trabalhos con-vergem todos para a demonstra-ção definitiva desta verdade.

As provas históricas contra a existência de Cristo provém dos hebreus, dos pagãos e até de al-guns cristãos primitivos e padres da Igreja. Parecerá estranho, mas é assim, como veremos.

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O hebreu alexandrino Fílon, no seu livro sobre os terapeutas, relata que estes viviam como verdadeiros cristãos, que abando-naram bens e família para se de-dicarem ao ascetismo, que ti-nham livros religiosos e seguiam as máximas de seus pais.

Eusébio, na sua História, (liv. II, cap. X e XVII) confirma isso afirmando que os livros de que fala Fílon eram os Evangelhos e os escritos dos Apóstolos, e de-clara que os terapeutas citados por Fílon são os cristãos solitári-os.22

O que se conclui destes docu-mentos é que o cristianismo é muito anterior a Fílon. Portanto, se os Evangelhos e os escritos dos Apóstolos já existiam antes de Fílon, e se Fílon nasceu 25 ou 30 anos antes de Cristo, vê-se logo que a existência dos cristãos é anterior a Cristo.

E isto se confirma pelo fato dos judeus e egípcios, que for-mavam uma única superstição – os cristãos, no dizer de Tácito – terem sido expulsos de Roma 22 Alfred Maury, no estudo da história do começo do cristianismo contido em seu livro Crenças e Lendas da Antiguidade, chama isso de uma má interpretação de Eusébio. Mas não explica as razões. Enquanto que ele próprio, algumas linhas antes, cita Filon entre aqueles que têm servido de guia para Eusebio.

duas vezes no tempo de Augusto e uma terceira no tempo de Tibé-rio, no ano 19 da nossa era.

Estas expulsões desmentem implicitamente a existência de Jesus, pois tiveram lugar antes de se falar do nome cristão, referin-do-se evidentemente à supersti-ção judaico egípcia - que se con-funde com o cristianismo - nas-cido da fusão do judaísmo com o orientalismo egípcio, com vestí-gios muito próximos do neopla-tonismo alexandrino 23.

Outro padre da Igreja, S. Epifânio, confirma as palavras de Fílon e de Eusébio. Segundo ele, os terapeutas do Egito cita-dos por Fílon, que habitavam junto do lago Mareótides, são os cristãos24 que tinham o seu Evan-gelho e os seus Apóstolos.

Fílon falou dos cristãos, como sendo muito anteriores a si pró-prio, atribuindo-lhes um Evange-lho e vários Apóstolos.

Isto exclui absolutamente a existência de Cristo, pois este te-ria nascido quando Fílon já con-23 Não é exagero dizer que não existia ainda a palavra cristão quando já existia a superstição judaico cristã. De fato, o cristianismo existiu algum tempo antes do seu nome. Este só foi elaborado e cri-ado muito depois, pelo processo de dife-renciação.24S. Epifânio, Cont. er., p.120. In Gane-val.

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tava 25 a 30 anos, e Fílon não poderia esquecê-lo já que se ocu-pava dos cristãos.

Além disso, sabe-se que os Evangelhos atuais não aparece-ram senão muito tempo depois de Cristo, de modo que não pode ser a eles que Fílon alude falando dos livros (os Evangelhos, se-gundo Eusébio) e dos terapeutas (os cristãos, segundo Epifânio). O testemunho de Fílon contra a existência de Cristo é tanto mais formidável quanto o mesmo Fí-lon contribuiu intensamente para a formação do cristianismo25.

Fócio opina que é dele que procede a linguagem histórica da Escritura. Ainda mais: Fílon es-crevera um tratado, um verdadei-ro Evangelho acerca do Deus Bom (Serápis) – livro que foi destruído – e cujas alegorias de-viam ser tão semelhantes às dos 25 Nota da segunda edição. Parece haver aqui uma contradição, visto termos afir-mado que o Cristianismo é anterior a Fí-lon, e dizermos mais adiante que foi ele o seu principal fundador. Se entender-mos que a multiplicidade de crenças que formam uma doutrina, uma fé, um siste-ma complexo de dogmas, máximas e ri-tos é produto da colaboração de varias gerações, de vários séculos e de muitos sábios, até que encontre o seu precípuo expositor, este tem direito a ser conside-rado o seu fundador. Assim, pode dizer-se que Marx é o fundador do socialismo, embora. este já existisse séculos antes, em vias de formação.

Evangelhos que logo se atribuí-ram a Cristo.

Não faltou também um falsifi-cador cristão que ousou dizer a Orígenes que, no seu Evangelho sobre o Deus Bom, Fílon falara de Jesus sem escrever o seu nome 26.

E se este Evangelho de Fílon acerca do Deus Serápis, Evange-lho um século anterior ao dos cristãos, era essencialmente se-melhante aos que depois vieram a ser os Evangelhos cristãos, fi-camos na dúvida sobre se ele quis fazer crer, falando de Será-pis, o Deus morto e ressuscitado do Egito, que se referira a Cristo (ainda que o falsificador diga: sem o nomeá-lo).

Logo, temos de reconhecer que Fílon foi um dos fundadores dessa crença que depois se con-verteu em cristianismo, que es-creveu um Evangelho mais tarde atribuído a Jesus, que Fílon não 26 Eis a passagem de Orígenes interpola-da: "No livro III de sua obra Sobre o Deus Bom, Filon escreve um episódio alegórico sobre Jesus, ainda que não citando seu nome” (Contra Celso). Ga-neval demonstra que o nome de Jesus foi interpolado na obra de Orígenes. Se Fílon tivesse escrito sobre Jesus, citaria a ele e não a Ágatos, que era o deus Se-rápis. A falsificação é tanto mais eviden-te quanto é certo que Fílon e Orígenes nem conheceram nem nunca falaram de Jesus.

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conheceu e nem citou em seus trabalhos.

Posto isto, o silêncio de Fílon acerca de Jesus não só prova que este nunca existiu, como autoriza e legitima a hipótese – que no desenvolver deste trabalho será corroborada por outras provas27 – de que Fílon foi o principal fun-dador do cristianismo.

Os seus copiadores não fize-ram mais do que introduzir o nome de Jesus em lugar do de Serápis, substituindo o Deus Bom dos egípcios por outro Deus morto e ressuscitado, que é Je-sus28.

Em qualquer dos casos, fica evidente que Fílon escreveu um Evangelho sobre Serápis, o qual logo pôde adaptar-se a Jesus, donde, segundo Fócio, se deriva-ram os Evangelhos posteriores. É igualmente certo que Fílon des-creveu os Terapeutas como mui-to anteriores a Cristo, tendo já os 27Veja-se, Parte IV, Cap. II.28 Um eloquente testemunho citado por Ganeval para denunciar a origem egíp-cia dos Evangelhos está nas alegorias do jumento e dos porcos. Especialmente deve se notar a parábola do filho pródi-go, que se faz guardador de porcos, e o milagre dos demônios arrojados dos possessos para os porcos. Tanto um como o outro destes episódios estão to-talmente deslocados na Judeia, mas não no Egito, onde o porco era a imagem da dissolução e símbolo do demônio.

seus Evangelhos e os seus Após-tolos; que estes Terapeutas eram os cristãos primitivos, e segundo Eusébio e Epifânio, existiram muito antes de Cristo e, enfim, que o mesmo Cristo nunca exis-tiu.

Pondo de lado as inúmeras provas que Fílon nos fornece29, vejamos as que nos dão cristãos autênticos e de valor perante a Igreja – S. Clemente Alexandri-no e Orígenes – cujos testemu-nhos são tanto mais concluden-tes, quanto é certo terem contri-buído poderosamente para a di-fusão do cristianismo.

S. Clemente Alexandrino e Orígenes, este último falecido no ano 254, negam a encarnação, e, por conseguinte, a existência de Cristo.

Assim se depreende da análise feita pelo patriarca Fócio que, fa-lando do livro das Disputas de S.

29 Dide, na obra já citada, põe em desta-que um diálogo com Trifon, de Justino mártir, no qual o hebreu Trifon nega a existência e a aparição de Cristo sobre a terra, dizendo: se Jesus nasceu, em al-gum ponto da terra, esse ponto é com-pletamente desconhecido. Faz notar que Celso, cuja obra foi destruída, não nega a existência de Cristo. Celso, porém, que viveu no século II não cuidou de tal as-sunto, visto que a sua tese era outra, e que esta se limitou a refutar o cristianis-mo, valendo-se para isso dos próprios li-vros da nova religião.

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Clemente, afirma que nele o au-tor declarara que Logos, o Verbo, nunca encarnara (p. 286, in Ga-neval, c. II e III) e, analisando os quatro livros dos Princípios, de Orígenes, mostra-nos que este falava de Cristo segundo a lenda e que, a respeito da encarnação do Salvador, opinava que o mes-mo Espírito se encontrava em Moisés, nos profetas e nos após-tolos, o que leva Fócio a declarar escandalizado que neste livro Orígenes escreveu muitas blasfê-mias30.

A nós só importa constatar que a forma pela qual se exprimem S. Clemente e Orígenes, falando do Verbo, do Cresto e do Salva-dor, exclui absolutamente a exis-tência de Cristo, pois nenhum deles assim falaria se Cristo ti-vesse sido um homem real e ver-dadeiro. E nem nós poderíamos pormenorizar mais, visto que es-ses livros foram todos destruí-dos.

Ganeval cita ainda os testemu-nhos de S. Irineu, Papias e S. Justino, o primeiro dos quais afirma que o Deus cristão não é homem nem mulher; o segundo cita fragmentos do antigo Evan-gelho egípcio, e o último, falan-do do Logos (Cristo), afirma que é uma emanação de Deus produ-30Fócio, in Ganeval

zida como as projeções dos raios do Sol.

Como se vê, as três opiniões concordam em negar a existência de Cristo. E trata-se de santos e teólogos célebres, insuspeitos de aversão contra o cristianismo, do qual foram os principais e mais autorizados propagadores.

Cita ainda Ganeval, apoiando-se em Fócio, as opiniões de Eunomius, Agápio, Carmim, Eu-lógio e outros cristãos primiti-vos, que todos eles formaram do Cresto um conceito que exclui a sua existência material e corpó-rea.

E finalmente lembra o juízo do S. Epifânio acerca das mais antigas seitas heréticas dos Mar-cinitas, Valentinianos, Gnósticos, Simonianos, Saturnilianos, Basi-lidianos, Nicolasianos e outros, dos quais deduz que o Deus Re-dentor dos cristãos é Horus, filho da Trindade egípcia, convertido mais tarde em Serápis.

A estas seitas mencionadas por Ganeval, que negavam a existên-cia do Verbo, deve juntar-se es-pecialmente a dos Docetistas, impugnadores da realidade de Cristo, que Salvador31 refuta no livro Jesus Cristo E A Sua Doutrina, citando o quarto Evan-31 Salvador, Jesus Cristo E A Sua Doutrina, livro II, cap. II.

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gelho que destaca o golpe de lan-ça que fez manar sangue e água do corpo de Cristo, e que isto provaria a sua realidade.

A existência desta seita é par-ticularmente importante, porque no dizer de S. Jerônimo32, foi contemporânea dos Apóstolos.

E, caso não fosse bastante o que já foi dito, tínhamos Cerinto, Cerdon, Taciano, e os Ebionitas, todos eles impugnadores da exis-tência de Cristo, e, sobretudo, Saturnino, que segundo o abade Pluquet, viveu nos tempos e nas paragens onde Cristo realizou os seus milagres, apesar de ter-lhe negado, ele também, um corpo natural.

A negação da existência de Cristo por parte dos primeiros heréticos, alguns dos quais vive-ram no tempo e no lugar onde te-riam residido Cristo e os Apósto-los, é prova histórica evidente de que eles nunca existiram. Um testemunho valiosíssimo, apre-sentado também por Ganeval, é o do imperador Adriano que tendo feito uma viagem a Alexandria no ano 131 declarou que o Deus dos cristãos era Serápis e que os devotos de Serápis eram aqueles a quem chamavam bispos dos cristãos. Sua opinião está de 32 Contra os luciferianos, cap. 8, in Es-tefânio, Dicionário Filosófico.

acordo com todos os documentos conhecidos daquela época.

Época em que não existiam ainda os atuais Evangelhos, em que Tácito nos revela que os he-breus e os egípcios formavam uma única superstição, em que Fílon tinha já escrito sobre o Deus Serápis, de tal fôrma que facilitava a qualquer falsificador cristão o ensejo de fazer crer que se referia a Cristo, e em que ha-via já falado acerca dos cristãos primitivos – os Terapeutas – se-gundo a confissão de Eusébio e Epifânio, apresentando-os como muito anteriores a ele, que por sua vez, era anterior a Cristo.

Época em que, segundo S. Epifânio e Fócio, muitas seitas cristãs continuavam adorando a Horus como Deus Redentor, Fi-lho da Trindade egípcia. Época em que S. Clemente de Alexan-dria e Orígenes escreveram ne-gando Jesus e falando de Cristo – nesse tempo Cresto, segundo a lenda – tudo isto por confissão do próprio Fócio33.

33 Ganeval cita, entre as provas Históri-cas contra a existência de Cristo, a lin-guagem de S. Paulo e daquele apóstolo Apolo chamado também Cresto, que nos Atos dos Apóstolos prega o cristianismo sem ser cristão. Provas graves, sem dú-vida, por emanarem dos próprios docu-mentos da fé, e de que falaremos, quan-do tratarmos da Bíblia.

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CAPÍTULO IVJESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA

Não só a história permanece muda a respeito da pessoa de Cristo; não só se demonstrou que os autores históricos que dele falam foram nesse ponto falsificados; não só existem pro-vas históricas contra a existência de Cristo, mas até se prova que a História nunca o conheceu, não podendo sequer conservar-nos a sua fisionomia humana.

Cristo não é pessoa histórica; é Deus, somente Deus, mais ou menos antropomorfizado. A pró-pria etimologia nos indica: Jesus significa Salvador, Cristo signi-fica Ungido.

Na própria Bíblia e no Antigo Testamento, o nome de Messias ou de Cristo aplica-se a certos reis pagãos: a Cyro, segundo Isaías (XLV, 1) e ao rei de Tyro, segundo Ezequiel (XXVIII, 14). Aplica-se, também, a todo o povo e a todos os seus membros, como se vê nos Salmos.

Jesus Cristo quer dizer, pois: O que foi ungido Salvador.

A própria etimologia demons-tra que se não trata de uma pes-soa histórica.

Em que ano, nasceu Cristo? Difícil e tenebrosa questão!

Quase todos os que dela têm se ocupado concordam em que o seu nascimento não coincide com a era vulgar.

Durante os primeiros seis sé-culos, depois da sua pretendida existência, um monge, Dionísio o Pequeno, não alude à era cris-tã, fixando o seu princípio, ou seja o nascimento de Cristo, no ano 753 da fundação de Roma, data julgada errada em pelo me-nos 6 anos, ainda que este erro não possa ser facilmente de-monstrado. E é compreensível: nada é mais difícil de ser de-monstrado do que aquilo que não existe. Calvisio e Moestlin contam até 132 variantes e Fa-brício cerca de 200.

Nada há que demonstre exata-mente o dia do seu nascimento. Uns falam em 6 ou 10 de janei-ro; outros dizem 19 ou 20 de abril, 20 ou 25 de março, e al-guns optam por dias e meses in-teiramente diversos. No Oriente celebrou-se o nascimento de 1o a 8 de janeiro e no Ocidente, no dia 6 do mesmo mês.

João Crisóstomo, no ano 375, falava em 25 de dezembro como um uso introduzido no Oriente.

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Em Roma, fixou-se o nasci-mento de Cristo em 25 de de-zembro. Isto antes do ano 354, segundo se vê num calendário de Bucer, daquela época34.

Estas mudanças de datas fo-ram interpretadas no sentido de querer a Igreja colocar o nasci-mento do novo Deus em relação com os dos Deuses Salvadores e especialmente com o do Deus Invicto, ou seja Mitra, que em Roma se solenizava com grande pompa, espetáculos e luminárias no dia 25 de dezembro, tendo os cristãos conferido ao seu Cristo os atributos místicos daquele deus Sol, cuja ressurreição os pagãos celebravam.

Esta hipótese não excluiria a existência de Cristo, mas deporia muito em favor da sua diviniza-ção. Não obstante, fica destruída pelo fato de estar em relação com outras tantas datas mitoló-gicas: por exemplo, a festa do achado de Osíris, que tinha lugar a 6 de janeiro (Creuzer, Symbo-lik und Mithologie).

Por aqui se vê que a formação do mito foi laboriosa e longa, pois a Igreja primitiva fez todo o possível para colocar o nasci-mento de Cristo além do solstí-cio do inverno, a fim de afastar 34Bianchi-Giovini, Crítica do Evan-gelho, livro II.

toda a suspeita de um novo mito em nada diferente do dos Deuses Redentores que nasciam somen-te em 25 de dezembro.

E não só se ignora o dia e ano em que Cristo nasceu, como também o lugar onde nasceu.

Segundo algumas profecias, deviam ser em Nazaré, e, segun-do outras, em Belém, visto que devia descender de Davi. O se-gundo e o quarto evangelistas nada dizem a tal respeito. O pri-meiro e o terceiro, se bem que falem dele, todavia contradizem-se, visto que um faz de Belém a sua residência habitual, ao passo que o último, só por casualidade, numa narração de viagem inve-rossímil e impossível, o faz pas-sar por Belém. Além disso, fa-lam do assunto, relacionando-o com as profecias, o que lhes tira todo o interesse e seriedade his-tórica, convertendo-se em fontes suspeitas pela sua preocupação apologética que os desqualifica perante a crítica.

Mas, a História, que não co-nhece o nascimento de Cristo, nem a data e nem o local, tam-bém desconhece em absoluto a sua vida, a sua morte e todas as demais circunstâncias que, se-gundo os Evangelhos, acompa-nharam uma e outra.

Assim também a famosa de-34

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golação dos inocentes, a não me-nos famosa Estrela dos Magos e os próprios Magos, a morte trá-gica do Cristo e os terremotos e trevas que a acompanharam que, apesar de serem acontecimentos de excepcional importância, nem sequer foram notados pelos con-temporâneos, nem ainda por aqueles que deviam ter sido tes-temunhas oculares dos mesmos fatos.

O silêncio da história sobre tais acontecimentos supõe algum motivo mais grave e significati-vo que um simples desconheci-mento histórico: supõe a invali-dação da veracidade dos únicos livros que narram tais coisas, isto é, dos Evangelhos.

Mas, há mais: Cristo, ainda que relatado pelos Evangelhos, nunca realizou qualquer ato pe-queno ou grande, desses que to-dos os Homens fazem durante a vida. Por exemplo: não tomou parte na Política do seu país e do seu tempo; nem uma única vez foi importunado pela justiça ape-sar da sua vida de vagabundo; não levou a cabo ato ou sacrifí-cio algum do culto.

Nenhum dos homens históri-cos, como Pilatos, Hannaz, Cai-faz e outros, que deviam ter tido relações com Jesus, deixou al-gum vestígio dessas pretendidas

relações.35

Enfim, não há uma única notí-cia acerca da sua pessoa física.

Cristo foi alto ou baixo? Bar-bado ou imberbe? Moreno ou loiro? Feio ou formoso? Nin-guém o disse, jamais, de um modo fixo e positivo, porque ninguém nunca o viu.

Tertuliano o descreve como feio, conforme uma profecia de Isaías, estando nesse ponto de acordo com a Igreja do Oriente. Santo Agostinho, porém, e com ele a Igreja Latina, querem que Jesus tenha sido formoso. Estas duas opiniões foram a origem das diversas imagens de Cristo, barbado ou imberbe. As disputas

35 Anatole France, em sua pequena obra prima O Procurador da Judeia, imagi-na, ao tempo de Vitélio, um encontro às margens do golfo de Baia entre Lélio Lâmia, patrício romano exilado por Ti-bério, e Pôncio Pilatos. Lâmia pergun-tou a Pôncio, a quem conhecera em Je-rusalém quando era procurador na Ju-deia, se ele se lembrava de um tauma-turgo da Galileia chamado Jesus. “Pon-tius Pilatus fronça les sourcils et porta la main à son front comme quelqu'un qui cherche dans sa mémoire. Puis, après quelques instants de silence: Jésus? murmu-t-il, Jésus de Nazareth? Je ne me rappelle pas”... "Pôncio Pilatos franziu as sobrancelhas e levou a mão à fronte como alguém que busca em sua memória. Então, após alguns instantes de silêncio, murmurou: Jesus? Jesus de Nazaré? Não me recordo” ...

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duraram até ao século XVII, de-pois do que, prevaleceu o mode-lo atual de Cristo com cabeleira espessa e barba farta.

O sudário, que deveria ser um retrato da face de Cristo, pois foi estampado pelo contato direto com o seu rosto, representa-o de barba abundante. O sudário, po-rém, não é documento fidedigno, ou porque existem outros igual-mente autênticos, ou porque os evangelistas não estão de acordo sobre este ponto, e mesmo por-que há estátuas e afrescos de Cristo em que ele aparece, até fins do ano 326, completamente imberbe.

Por isso, o escritor Moy, que tratou este assunto com muito interesse e consciência, conclui, e com razão: Desde que se quei-ra tocar em alguma coisa real na vida de Jesus, não se encon-tra mais do que contradição e incoerência. Se porém, alguma coisa há de indiscutível é essa do aspecto físico de Jesus... Para nós, a ausência total de in-formações precisas sobre sua aparência é uma prova certa de que ninguém jamais o viu36.

E, se ninguém o viu, claro está que ele nunca existiu.

Tudo o que se pretende saber

36 Moy, Adoradores do Sol.

de Cristo, e não é pouco, provém das fontes cristãs, isto é, dos Evangelhos que não só não nos fornecem prova alguma da exis-tência histórica de Cristo, como até nos confirmam a sua não existência.

Do tudo o que anteriormente se disse deduz-se que nada, ab-solutamente nada se sabe do Cristo Homem por meio da His-tória, que é a única fonte incon-testável em que devemos acredi-tar, sempre confirmada pelos monumentos arqueológicos.

Neste ponto, os que escreve-ram sobre a Vida de Jesus fra-cassaram inteiramente. Apenas um ou dois, como Strauss e Re-nan, conseguiram salvar o seu nome, graças ao seu talento e en-genho.

Os cristólogos, ou não fizeram mais do que escrever romances, como Renan, ou se fizeram tra-balhos sérios, foi apenas na parte crítica, como Strauss. Estes pu-deram salvar um fragmento, um traço da pessoa histórica de Cris-to sem que, todavia, critério al-gum de demarcação os fizesse separar o real do fantástico, e sem perceberem que essa preten-dida realidade tinha o mesmo as-pecto evangélico de tudo quanto eles reconheceram antes como fantástico.

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Por conseguinte, não perdere-mos mais tempo com os cristólo-gos e nem com os críticos que, embora eliminando uma ou ou-tra parte do Novo Testamento, pretendem conservar a pessoa histórica de Cristo.

O nosso trabalho consistirá, pois, cingindo-nos à lógica, e indo até as últimas consequênci-as, em refutar indiretamente o sistema ilógico dos cristólogos.

Antes, porém, de prosseguir, recolhamos algumas das con-clusões a que chegaram os críti-cos mais autorizados, que tenta-ram a impossível tarefa de escre-ver a vida de Jesus.

Strauss, depois de ter dito que tudo pode admitir-se como pro-vável na vida de Cristo – coisa impossível, como veremos – conclui sua obra colossal sobre a Vida de Jesus: dizendo – Mas esta verossimilhança, vizinha da certeza (tão pouco deixou de subsistente, da história de Jesus, e mesmo esse pouco se reduz a uma verossimilhança vizinha da certeza) não vai até muito lon-ge... Poucas coisas são devida-mente averiguadas e mesmo aquelas a que de preferência se aferra a ortodoxia – as milagro-sas e sobre humanas – nunca aconteceram. A pretensão de que a salvação dos homens de-

pende da fé em coisas, das quais uma parte é absolutamente fictí-cia, a outra incerta e somente uma parte mínima verdadeira (e veremos ainda que essa parte mínima não existe) essa preten-são, dizia, é tão absurda que hoje nem vale a pena refutá-la37.

Poucas páginas antes, o mes-mo Strauss dizia: Há quem não o queira ouvir nem acreditar, mas todo aquele que se ocupar sincera e seriamente deste as-sunto saberá tão bem como nós que na História, poucos grandes homens há sobre os quais este-jamos tão mal informados como a respeito de Jesus38.

Ernesto Havet, confrontando a certeza que se tem da existência de Sócrates com a incerteza da existência de Cristo, diz: Sócra-tes é uma pessoa real, Cristo é um personagem ideal. Conhece-mos Sócrates por Xenofonte e Platão, que o conheceram e es-creveram sobre ele, na própria Atenas, entre os atenienses com os quais vivera, e logo após a sua morte. Ver-se-á pelo contrá-rio, que todos os que falaram de Jesus não o conheceram (Havet poderia ter acrescentado que 37 Strauss, Nouvelle vie de Jésus , trad. franc. de Nefftzer e Dolfuss, v. 2, p. 418 e 419. 38 Strauss, Nouvelle vie de Jésus , trad. franc., v. 2, p. 415 e 416.

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nem mesmo estes foram conhe-cidos...), dirigindo-se a homens que ainda o conheciam menos; que escreveram meio século de-pois (esta versão é a ortodoxa, porém, nada garante que os Evangelhos não sejam muito posteriores à data fixada pela tradição) em países que não eram o seu e em língua que não era a sua. Esses não escreveram mais que uma lenda: Jesus é um personagem que não tem histó-ria, não tem biografia. Não se fala de seu aspecto nem se indi-ca a sua idade. Sem dúvida que não era casado, porquanto per-tença àqueles que se faziam eu-nucos para reino dos céus, o que não tiveram o cuidado de nos fazer saber em termos bem ex-plícitos. Nada se diz acerca dos seus costumes nem dos detalhes da sua vida. Dele só se contam as suas aparições, em sua boca só se põem oráculos. Tudo o mais fica envolto em trevas, tre-vas que são precisamente a substância das coisas divinas... Numa palavra, os que os falam de Sócrates são testemunhas; os que nos falam de Jesus não o conhecem, imaginam-no39.

Miron nos, diz, nada conhece-mos da vida de Jesus. Os redato-

39 Ernest Havet, Le Christianisme et ses origines, tom. I, p. 166-168.

res dos Evangelhos e os primei-ros autores eclesiásticos, reco-lhendo as tradições correntes na comunidade cristã, poderiam adquirir algum fragmento da verdade; porém, como assegu-rá-lo ante tantos elementos mi-tológicos e legendários? Uma vida de Jesus é, por conseguin-te, impossível40 .

Enfim, Renan, o próprio autor da Vida de Jesus, mesmo sob a impressão de fantasia do seu ro-mance e depois de reconhecer que há bem pouco o que dizer da vida de Cristo, acrescenta: Jesus foi realmente um homem celesti-al e original, ou um sectário he-breu parecido com João Batista? Queremos acreditar que o personagem real oferece em si algum traço do persona-gem ideal. A nossa admiração não desapareceria, ainda mes-mo quando a ciência nada pu-desse dizer de certo e chegasse forçosamente às negações. Quem sabe se Jesus aparece à nossa vista disfarçado com hu-manas fraquezas somente por-que o vemos de muito longe, através da névoa da lenda? Quem sabe se aparece na histó-ria como o único homem irre-preensível só porque faltam os

40 Miron, Jésus réduit à sa juste valeur, Genève, 1864, p. XIII.

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meios para o criticar? Ai de mim! Creio, com sinceridade que, se o tocássemos, como no caso de Sócrates, encontraría-mos também a seus pés um pou-co do lodo terrestre. Quem sabe se, neste caso, como nas demais criações do espírito humano, o admirável, o divino, o celestial não seriam reivindicados com iguais e legítimos direitos pela humanidade? Em geral, a boa crítica deve desconfiar dos indi-víduos, evitando entregar-se a eles. Quem cria é a massa, por-que a massa possui, num grau de espontaneidade eminente-mente superior, os instintos mo-rais da natureza humana. A be-leza de Beatriz pertence a Dante e não a Beatriz; a beleza de Cristna corresponde ao gênio hindu e não a Cristna, assim como a beleza de Jesus e de Ma-ria é obra do cristianismo e não de Jesus e de Maria41.

Renan não precisava ter dado mais do que um passo para es-clarecer a sua dúvida. De Cristo só se disse bem porque, como afirma Havet, não foi pessoa his-tórica, mas ideal. Mais adiante veremos que Renan foi bem su-cedido ao revelar uma intuição admirável: atribuir o tipo do ho-

41 La liberté de discussion , tomo III, p. 468-469.

mem ideal, personificado em Cristo, à humanidade e não a Cristo, visto ser um ideal huma-no a criação e personificação do mesmo. Este ideal, porém, não se encontra na Bíblia, onde de-veria estar, se Cristo tivesse existido. Pelo contrário, se Cris-to aparece em nossa cultura, ino-cente e limpo de toda a mancha, não é por obra da Bíblia nem de Cristo, criação humana, impes-soal, coletiva, mas pela fantasia da coletividade e do espírito dogmático dos que o criaram42.

Das palavras de Renan deduz-se, além disso, outra consequên-cia, que ninguém ainda notou. Se a beleza de Cristo é criação do espírito humano, como clara-mente ele o deixa compreender, também a sua própria pessoa, pela mesma lógica e pelo mesmo critério, poderia ser, como efeti-vamente é, uma criação do espí-rito humano.

Dide, no seu louvável livro acerca do fim das religiões, aten-

42Aqueles que, tirando de Cristo a quali-dade sobrenatural que nele é tudo, pre-tendem conservá-lo ainda como pessoa humana, fato absolutamente incom-preensível, não só o expõem a um ames-quinhamento histórico, como o levam a absorver pechas que o tornariam indig-no. Nós, se lhe executamos os funerais, salvamo-lo ao menos da crítica huma-nista fazendo-o subir da terra ao céu.

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do-se às tentativas de Channing e dos unitários que negam abso-lutamente todo o caráter sobre-natural a Cristo, mas se obsti-nam em considerá-lo como ho-mem, exclama: Mas quem é este Cristo? De que Cristo se trata? Onde se encontra? Sucede com ele o mesmo que com todos os entes legendários: quanto mais se procura, menos se encontra. A tentativa de lançar à historia e arrancar das trevas da teolo-gia uma personalidade que, até a idade de trinta anos, é absolu-tamente desconhecida, e que de-pois dessa idade só nos aparece em milagres, ora absurdos, ora ridículos, é uma pretensão tão difícil que, à priori, pode se di-zer impossível43.

E, mais adiante, o mesmo au-tor, falando da Vida de Jesus, do padre Didon, faz ver que este au-tor ortodoxo, para escrever a bi-ografia de Jesus, se vê constran-gido a preencher com hipóteses a enorme lacuna da vida do seu Deus, provocando, desse modo aos seus leitores esta reflexão: Então, quase nada se sabe sobre a vida de Cristo? Pergunta que também se fez um dos mais no-táveis leitores do livro do padre Didon, o líder socialista francês,

43 Dide, La fin des religions, p. 316.

Jean Jaurés44. E assim, podería-mos continuar aduzindo citações da mesma natureza, até encher pelo menos todo um volume; po-rém, é melhor repetir com Virgí-lio: ab uno disce onmes – por umas coisas tiramos as outras (Em bom português: Uma coisa pucha outra).

Não podemos,contudo, esque-cer Labanca, cuja obra – Jesus Cristo – tem o mérito de reunir todos os resultados até agora ob-tidos pela crítica a propósito des-te assunto. Labanca impugna a possibilidade de uma biografia científica de Jesus, quer pelas múltiplas questões contra a au-tenticidade de todos os pontos dos Evangelhos, quer pela evi-dência que se observa na falta de um fim qualquer biográfico, mas simplesmente de propaganda. A respeito da vida de Jesus, Laban-ca, omitindo o sobrenatural, ob-serva que nada mais fica do que um resíduo pequeníssimo, quase reduzido a zero45.44 Jean Jaurès, L'action socialiste , p. 122. 45 Labanca queria se colocar entre os que clamaram pelo fracasso da interpretação lógica do mito de Strauss, mas, adverte Dide, a Vida de Jesus de Strauss, é e continua sendo o livro mais completo, o mais arguto e o mais consistente dentre todos os que foram publicados sobre o mesmo tema que, sem ele não existiria ... E ao mesmo

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Breve demonstraremos que nem mesmo esse resíduo peque-níssimo fica, e que, se alguma coisa resta de Cristo, mesmo na própria Bíblia, é a prova de que jamais existiu um homem que se chamasse Jesus Cristo. Entretan-to, fechemos esta primeira parte, com a confissão dos próprios cristólogos: Cristo não é pessoa histórica46.

tempo, acrescentamos nós, a interpretação mitológica de Strauss será a única parte duradoura de sua obra. 46 O último momento da crítica alemã foi marcada pelo livro de Harnack: A Essência do Cristianismo. Mas, além dele não dizer nada de essencialmente novo, comete o erro de fazer uso da apologia e da teologia em seu trabalho, o que tira a objetividade histórica e raci-onalista necessárias numa obra séria de crítica. T. Armani, ocupando-se do livro de Harnac, publicou um opúsculo pela Cooperativa Tipográfica Parmense, no qual distingue com perspicácia, a pessoa de Cristo da sua personalidade preexis-tente nas profecias, o que seria suficien-te para explicar o cristianismo sem a pessoa mais ou menos histórica de Cris-to.

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Segunda Parte

Cristo na Névoa*

*(As edições antigas citam “nebbia”; as mais recentes, “bibbia”.)

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CAPÍTULO IA BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA

Demonstramos que Cristo não é pessoa histórica, porque a His-tória, a verdadeira, não o conhe-ce nem dele fala.

Vamos demonstrar, agora, que a própria Bíblia, única fonte que dele nos fala, nada prova a seu favor, antes confirma a nossa tese. Cristo nunca existiu!

Para o nosso propósito, não é preciso refazer a crítica bíblica nem repetir os profundos e in-vencíveis argumentos de um Strauss e de toda a rica constela-ção de teólogos e de sábios, ver-dadeiros especialistas na maté-ria!

Bastar-nos-á fazer coisa diver-sa de uma inútil repetição, de-monstrar que o exame, mesmo superficial, da Bíblia ou só do Novo Testamento, que se ocupa de Jesus, não descobre a fisiono-mia de um homem, mas sim de um Deus.

Não nos ocuparemos do Deus: esse abandonamos aos piedosos cuidados dos seus ministros ca-tólicos, que o crucificaram e nele martelam a toda a hora. Abandonamo-lo aos cuidados dos seus ministros protestantes que, para o salvarem das ruínas

que transtornaram o Olimpo, o despojam dos atributos divinos para o conservarem ao menos como homem – um homem qua-se divino que justifique o culto que lhe tributa a Humanidade.

Iremos mais além do que os críticos que nos precederam, não porque tenhamos mais talentos, mas porque a lógica tem, antes que a crítica, as suas justas con-sequências e conclusões a fim de que a verdade triunfe e brilhe.

E, se bem que seja pequeníssi-ma a parte do Cristo histórico que quiseram salvar depois de terem destruído a rica cultura mitológica e lendária47, demons-traremos que Cristo não podia ter existido, porque a sua exis-tência seria a negação da própria humanidade.

Por conseguinte, dos Evange-

47 Para uns, Cristo foi pessoa histórica, mas ampliada até as proporções de len-da. Para outros, a lenda foi substituida por uma pessoa mitológica justaposta à pessoa histórica. Para nós, ele é inteira-mente mítico. A propósito, lenda e mito são coisas diferentes. A lenda tem sem-pre um fundamento verdadeiro e huma-no, mas exagerado até ao inverossímil, ao sobrenatural. O mito, pelo contrário, não tem origem em fatos verdadeiros: é apenas criado pela imaginação humana.

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lhos, dos Atos e das Epístolas dos Apóstolos escolheremos apenas o que nos for preciso para demonstrar a inconsistência histórica de Cristo. Deveríamos talvez começar por pesar a auto-ridade do Novo Testamento, para ver qual valor de prova tem a respeito das coisas que narra. Veremos porém que a Bíblia, an-tes de provar o que nos conta, a si própria deve provar.

Não é nosso objetivo recom-pilar do princípio ao fim tudo quanto a crítica histórica tem es-tabelecido a respeito da autenti-cidade dos referidos livros sa-grados do cristianismo.

Quanto ao Antigo Testamento, basta observar que é tão pouco verídico e autorizado que tornou legítima a hipótese de ter sido alguns século anterior à época assinalada para o aparecimento do cristianismo.

Maurice Vernès, numa antevi-são genial e muito convincente assegura que aquilo que os livros do Antigo Testamento narram são, em geral, de feitura sacerdo-tal e profética, sem caráter al-gum histórico, mas apenas sim-bólico e teológico48.

Se tal é o resultado da exegese bíblica, pelo que respeita ao An-48 Maurice Vernès, Les résultats de l'e-xégèse biblique, Paris, Leroux, 1890.

tigo Testamento, lógico é que tal consequência se aplique também ao Novo Testamento, pois este, do princípio ao fim se apoia na-quele.

Estamos convencidos de que a crítica chegará um dia a confir-mar esta hipótese, porque é den-tre todas, a mais racional.

Por agora, basta saber que o edifício bíblico se fundamenta todo em terreno duvidoso, incer-to e vago.

De qualquer dos modos, a crí-tica já demonstrou o Novo Testa-mento não apresenta os requisi-tos necessários para autenticar a veracidade do que diz.

Todos os livros do Novo Tes-tamento são anônimos. Cingin-do-nos aos Evangelhos, as pala-vras precedidas pelas frases con-sagradas, segundo Mateus, se-gundo Marcos, etc., não só não provam que foram realmente dos Apóstolos ali citados, mas até indicam que foram redigidos por outros.

Ignora-se, em absoluto, a épo-ca precisa em que os Evangelhos foram escritos. A referência mais antiga que temos sobre este pon-to é de Papias, bispo de Yerápo-lis, que se supunha martirizado no tempo de Marco Aurélio (161 - 180). O seu livro, porém, não

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chegou até nós49 De seu testemu-nho relativo a Marcos e a Ma-teus, conserva-se apenas alguns fragmentos em Irineu e Eusébio, que demonstram não se referir aos atuais Evangelhos.

Os testemunhos dos Evange-lhos, que datam do III e IV sécu-lo, que fé podem eles merecer?

O que é indiscutível, é que ne-nhum dos Evangelhos foi escrito no tempo em que Jesus Cristo viveu; e que nunca se tiveram à mão os pretendidos originais, mas sim e apenas, cópias dos mesmos e cópias das cópias.

Quem nos garante, pois, que tais originais tenham existido? Tudo são trevas nos dois primei-ros séculos do cristianismo.

Maury, em presença de uma tão grave circunstância, emite duas opiniões: a primeira diz que os cristãos primitivos escreve-ram muito pouco; a segunda, que os documentos escritos na-quele tempo se perderam, por uma deplorável fatalidade. E supõe mais verossímil esta se-gunda hipótese. E nós também

49 Seria casualidade? Seria estratégia? Ganeval insiste tratar-se de uma das muitas fraudes habitualmente usadas na formação do cristianismo, de acordo com a sua hipótese a que Pápias aludiu referindo-se às origens egípcias do cris-tianismo

E como sabemos que as seitas nasceram com o cristianismo, que todas elas se esforçavam para que prevalecessem os seus respectivos pontos de vista, e que, desde o século II, as obras abundam e com elas as falsifica-ções mais audaciosas50, é lógico supor-se que todas aquelas que andaram errantes até se perde-rem, representaram opiniões contrárias às que mais tarde triunfaram no concílio de Niceia (325) e que, convertida em sobe-ranas e despóticas, fizeram desa-parecer os documentos contrári-os. De sorte que os documentos cristãos que prevaleceram em Niceia têm autoridade desde o IV e quando muito desde o III século.

É evidente que, se não a pre-judicassem, a Igreja não teria destruído os livros nos quais se consignavam as controvérsias das seitas primitivas e que tão bom serviço podiam prestar à crítica, quando já Celso no II sé-culo se vangloriava de haver re-futado o cristianismo, servindo-se unicamente dos próprios li-vros cristãos.

Em tudo vemos, neste ponto,

50 Não é injúria que se faz, é confis-são do próprio S. Jerônimo. Veja-se Peyrat na sua História Elementar E Crítica De Jesus.

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o anonimato e a falta de certeza, principais características dos li-vros do Novo Testamento, que bastariam para lhes tirar toda a autoridade.

Mas, há mais. Os Evangelhos atuais não foram escolhidos pela Igreja com critério que revelasse maior autoridade nesses que em outros muitos Evangelhos que então andavam em voga: destes foram escolhidos quatro ao aca-so, diz Santo Irineu, porque qua-tro eram as regiões do mundo e quatro os ventos.

E não é tudo. Antes do concí-lio de Niceia, a Igreja e os pró-prios Santos Padres serviam-se indiferentemente dos Evange-lhos, que mais tarde foram de-clarados apócrifos, porque era igual a autoridade de todos.

E mais ainda. A Igreja conser-vou muitas lendas que se encon-tram apenas nos Evangelhos apócrifos.

No Novo Testamento acham-se mesmo passagens que se refe-rem a lendas contidas unicamen-te nos referidos Evangelhos apó-crifos.

Resumindo: anonimato, incer-teza nos originais, seleção ao acaso e falta de critério na pre-tensa autenticidade conferida pela Igreja aos Evangelhos atu-

ais – eis aí ao que se reduz a au-toridade do Novo Testamento!

Como se tudo isto fosse pou-co, outras circunstâncias a dimi-nuem ainda mais. Entre elas, as numerosas alterações a que esti-veram sujeitos os Evangelhos atuais, devido à inépcia dos co-pistas, e especialmente à falsifi-cação das diversas seitas. Isto nos explica, como diz Baur, a manifesta contradição das dou-trinas englobadas no Novo Tes-tamento, em luta contínua entre si.

Temos, por outro lado, a di-versidade dos exemplares sobre os quais se fez a tradução do Novo Testamento em língua lati-na – diversidade tão grande e tão grave, que S. Jerônimo temia passar por falsário ao constituir-se em árbitro para escolher entre a profusão de tantos e tão diver-sos exemplares dispersos pelo mundo. E declarava ter-se visto obrigado a acrescentar, trocar e corrigir.51

Juntemos ainda a demonstra-ção feita já pela crítica, relativa à falta específica de autenticidade em não poucas partes do Novo Testamento.

O último argumento contra a validade dos livros do Novo Tes-

51Praef. In Evang. Ad Damas.46

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tamento está no fato das irrepa-ráveis contradições e das dis-cordâncias numerosíssimas que ainda hoje contém, para não fa-lar nos seus erros, na sua imora-lidade e absurda puerilidade, apesar de a Igreja ter declarado que foram inspirados, palavra por palavra, pelo Espírito Santo!

Isto posto, pode, acaso, uma pessoa séria, não obcecada pela fé, admitir, não já a autenticida-de, mas ao menos a veracidade e seriedade do Novo Testamento como argumento de prova acerca do que ele narra?

Stefanoni, contudo opina que a crítica os deve ter em conta, ao menos porque representam tradi-ções dos tempos em que foram produzidos, porém admite que, sobre a base de tais livros não se pode reconstituir a vida nem a doutrina de Jesus sem se escreva um romance, enquanto declara que os escritos revelados não po-dem fazer fé na história, nem esta pode, em nossos dias, expli-car com verdadeiro critério os primeiros rudimentos da origem da nossa idade. Observamos, pelo que a nós se refere, que em primeiro lugar, este não é mais que um dos muitos argumentos que concorrem em favor da nos-sa tese e, em segundo lugar, que nos achamos em face de uma

matéria tão excepcional que, as-sim como na crítica normal po-deria optar-se pelo partido mais sensato, isto é, pela dúvida, na questão que debatemos é preciso ir até ao fundo, até a negação de tudo quanto afirmam e impõem como divino, livros que, tais como os Evangelhos, são desti-tuídos do todo o fundamento.

Além disso, os Evangelhos são um milagre contínuo, tanto na ordem física, como na ordem moral, e, tratando-se de coisa so-brenatural, parece lógico que concorram provas pelo menos tão certas autênticas como as que acompanham os fatos co-muns. Porém, nada disso aconte-ce e, em parte alguma deles sur-ge a menor prova.

E, ao passo que estes livros do Novo Testamento nada demons-tram do que afirmam, na história profana não ha um único sinal, um único documento que apoie ou venha em auxílio dessas nar-rações evangélicas.

Em tais circunstâncias, quem não verá que tudo quanto ali se conta é filho da imaginação, para não dizer da impostura sacerdo-tal, e que nada, absolutamente nada, pode salvar-se do que por tantos séculos nos impuseram por modo extraordinário e sem autoridade alguma?

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Não censuremos os críticos positivos e os autores que nos precederam e nos desbravaram o terreno, por não terem chegado à conclusão a que nós chegamos: o preconceito duas vezes mile-nar que tem maltratado nossas mentes, arrastando-as para esse erro com tal força inercial que nem os mais destemidos pude-ram se libertar dele de um só golpe. Aqui, mais do que em ne-nhum outro campo, comprova-se que natura non facit saltus (a natureza não dá saltos).

Não devemos, porém, negar à critica o direito de chegar a con-clusões que não são mais do que consequências necessárias das próprias premissas.

Portanto, se o fato de serem clandestinos os livros do Novo Testamento não pode bastar, por si só, para legitimar a conclusão da não existência de Cristo, a crítica deve, dada a natureza teo-lógica e sobrenatural dos referi-dos livros, ter muita cautela no aceitar qualquer parte, por míni-ma que seja, do que neles se conta.

Em todo o caso, o certo e in-discutível é que a Bíblia, em lu-gar de servir de prova do que re-lata, tem necessidade de com-provar-se a si própria. Esta afir-mação está, de resto, reforçada

com a autoridade de Santo Agos-tinho, que, discutindo com Os Maniqueus, faz esta confissão capital: Não acreditaria nos Evangelhos se a isso não me vis-se obrigado pela autoridade da Igreja52.

52 Citação da Peyrat, História E Crítica Elementar De Jesus, pag. 70, 3a edição, Paris, Levy Frères, 1864.

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CAPÍTULO IIJESUS CRISTO É PESSOA ABSOLUTAMENTE SOBRENATURAL

Os milagres de Cristo – eis a pedra de toque de todos os teólo-gos. Se Cristo existiu realmente, se foi pessoa humana, como se explicam esses milagres?

Ainda que hoje os milagres, contanto que não sejam fenôme-nos psicológicos, e a maior parte dos de Cristo não o são nem po-dem sê-lo, se negam facilmen-te53.

Ora, na vida de Jesus, tudo são milagres, a ponto de o não conhecermos senão através do milagre. A este respeito, os teó-logos e críticos, especialmente os da sábia Alemanha, começa-ram a fazer distinção entre os três primeiros Evangelhos, cha-mados sinópticos, e o quarto, de João.

Dizem que este último fala de Cristo, como Platão falou do Lo-gos, deduzindo-se daí que a con-cepção de Cristo, segundo o quarto Evangelho, é puramente metafísica. De modo que se che-gou a supor tal Evangelho como uma tentativa feita, muito tempo depois dos três primeiros, a fim 53 Gaetano Negri, com sua pena magistral, corta fundo na questão dos milagres. Veja sua Crise Religiosa, pp 77-83, Milão, Dumolard, 1878.

de salvar a divindade de Cristo, da crítica dos pagãos, divindade comprometida com as incongru-ências dos Evangelhos Sinópti-cos em certas passagens em que o elemento humano sobrepuja o divino.

Assim, abandonaram à crítica o quarto Evangelho, agarrando-se aos três primeiros para salva-rem ao menos o homem.

Esta tentativa não é mais do que uma concessão que, desde logo, se viu ser de mau gosto, pois que se encaminha a um fim mais teológico do que à primeira vista parecia. O protestantismo liberal e o racionalismo espiritu-alista viram a tempo o perigo da crítica naturalista, isto é, viram que, caídos os milagres, caída estava toda a concepção divina de Cristo, visto serem os mila-gres a única prova da sua exis-tência.

Eis como se explica a tentati-va de despojar Cristo da divinda-de e dos milagres para poder sal-vá-lo como homem. Salvar a Cristo como homem é o mesmo que salvar o cristianismo, como disse Hartman, pois que, admi-tindo que Cristo haja realmente

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existido, o cristianismo deve proceder dele. E esta seria a pro-va do cristianismo, como cristia-nismo seria a prova de Cristo. Um salvaria o outro.

Na verdade, que homem po-deria criar toda uma nova civili-zação, a não ser que fosse, em todos os aspectos um homem ex-traordinário?

Lançado o divino pela porta afora, ei-lo que entraria renova-do pela janela a fim de envolver com a sua auréola a loira cabeça tradicional do Nazareno.

Assim o compreendeu Renan que, no seu sentimentalismo místico e transcendental pôs a Bíblia à prova para dela arrancar uma biografia fantástica de Je-sus, que é um verdadeiro roman-ce, e ainda que ele tenha fugido da teologia, restituindo Cristo à humanidade, no fundo não faz mais do que prolongar a vida do cristianismo.

De sorte que, em vez da exco-munhão e do vitupério dos cren-tes, merecia ser colocado entre os Padres da Igreja. O sobrena-tural e divino, que na Bíblia ro-deia Jesus em meio dos milagres e que atualmente se reduzem a nada assim como Cristo e o Cristianismo, foram restituídos a Cristo pelo grande professor da Sourbonne, fazendo dele um

personagem real e histórico, de uma grandeza sobre-humana.

Para Renan, Cristo não é já o Deus que desce à terra para se fazer homem, mas simplesmente um homem que da terra sobe ao céu para se endeusar. Em cada passagem do seu romance, apa-rece esta metamorfose do ho-mem em Deus. As suas próprias palavras - chamado por Deus - indicam claramente.

Se Cristo, segundo Renan, al-cança o ideal da humanidade, que importa que seja a conse-quência direta de Deus, à manei-ra de uma encarnação, ou que seja um enviado extraordinário de Deus, um homem tão elevado que até do céu abre as suas por-tas à humanidade ?

Com as concepções dos teólo-gos, Cristo-Deus não podia viver nem reinar nesta idade positiva, mas Renan fez mais e melhor que todos eles: tentou salvar Cristo como homem. Mas salvar o homem, e um homem de tal natureza, era salvar cristianismo, era personalizar a adoração da Humanidade por um homem ide-al, era manter o culto da humani-dade pelo Cristo, quer descendo do céu à terra, quer subindo da terra ao céu .

“Fazer do Cristo um sábio, fora de todas as proporções que

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a história fornece, não será isso, de algum modo, substituir um milagre por outro?54”

Camilie Mauclair, em uma correspondência de Paris para o jornal italiano Avanti, em 7 de setembro de 1903, escrevia o se-guinte, que confirma a nossa tese: “Renan intentou prestar à Igreja um serviço capital. Creio que o teria pensado de antemão, e só pela estupidez crassa da mesma Igreja, esse serviço não foi agradecido ao escritor.

Não considero a Vida de Je-sus, de Renan, uma obra perfei-ta. Creio mesmo que não é gran-de coisa. Mas, seja corno for, é impossível concluir pela não re-velação, e portanto, pela não di-vindade de um homem sublime.

Qual foi, de resto, o intento do escritor? Destruir o dogma, é certo, mas conservar a moral evangélica, que ele considerava a melhor e a mais conforme com a evolução social de um século em que a ciência, segundo a ex-pressão do seu amigo Berthelot, aspira à direção material e mo-ral da sociedade.

Qual era o serviço que Renan pretendia prestar à Igreja Cató-lica? Convencê-la de que devia abandonar o dogma divino, con-

54Vacherot, A Religião, pag. 100.

siderando-o um simples simbo-lismo, e separar os Testamentos, conservando só a moral cristã, para não andar mais em choque constantes com o espírito cientí-fico, apresentando-se, no mun-do, como sendo a depositária de uma moral de justiça.

Não se tratava de um suicídio da Igreja, nem de urna negação pública da revelação que equi-valesse a uma bancarrota. Tra-tava-se apenas de uma transfor-mação hábil, que permitiria a Igreja o esquivar-se a um confli-to direto com, a ciência.

Para esta inteligente transfor-mação, Renan apresentava a fórmula conveniente, com a sua fina inteligência, astuta e insi-nuante. Estava embebido do ca-tolicismo e era um conciliador, infinitamente diplomático entre o dogma e a crítica.

Certamente, Renan esperava que a Igreja aceitasse esta solu-ção elegante do problema de an-tinomia entre a ciência e a Fé. Toda a vida deplorou que não o quisessem compreender.

Se a Igreja a tivesse o aceito, teria adquirido uma força enor-me. Teria podido conservar as suas cerimônias, com um sorri-so significativo, como quem lhes não desse senão o mero valor histórico e alegórico.

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Teria podido aceitar a ciência e ficar com a moral publica.. E, assim, que grandeza para a mo-ral de Cristo, de quem os mo-dernos anarquistas se dizem continuadores, se se tivesse ad-mitido realmente o seu martírio de homem, desembaraçando o catolicismo de toda o estorvo ju-daico do Antigo Testamento e de toda a insustentável metafísica dos livros sagrados.

A Igreja inimiga de Cristo, a Igreja politiqueira não com-preendeu a ocasião que Renan lhe oferecia. No seu empenho de repelir todos os escritores que podiam servi-la com fé e enge-nhosidade como Lammenais, Vil-liers de l'Isle-Adam, Ernesto Hello, Barbey d'Eurevilly e Ver-laine, a Igreja repeliu também Renan. Preferiu as banais ima-gens policrômicas às obras pri-mas da arte religiosa.

A Vida de Jesus colocava-a em um dilema difícil, em urna escabrosa encruzilhada: a Igre-ja negou-se a caminhar pela senda do futuro encerrando-se no dogmatismo. Perdeu, assim, o último ensejo que teve de se modernizar.

E. Gustave Tery, no Ação, de 6 de agosto de 1903, depois de citar várias passagens de Renan nas quais ele demonstra sua

grande veneração por Jesus, dis-se o seguinte: Para dizer a ver-dade, se a Igreja não tivesse co-metido a imprudência de protes-tar com uma indignação ultra-jante, e este foi um erro fatal, a piedosa exegese de Renan pode-ria servir prodigiosamente aos interesses do cristianismo. O ve-tusto poeta soube polir a velha imagem do Nazareno, escureci-da e manchada por dezoito sé-culos de ignorância, erros e mentiras, além de livrá-la dos ritos e catecismos, das fórmulas e teologia. Ele lavou Jesus das injúrias e sujeiras católicas; E num lance genial, fez o homem sem diminui-lo, uma vez que já o tinha engrandecido como ente sobrenatural. Ao escrever A Vida de Jesus Renan devolveu-lhe a vida e o fez descer uma se-gunda vez sobre terra ...

O protestantismo liberal, que pretendeu seguir o mesmo cami-nho, não faz obra de destruição, mas sim de conservação religio-sa.

Faz o mesmo que o aeronauta, quando arroja o lastro da nacela para que esta não caia e o arraste em sua queda.

Só que esses salvadores do Cristo Homem não estão de acordo com a lógica, nem com a verdade histórica,.

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Não estão com a lógica por-que, como justamente observa Vacherot, a ultima fórmula à qual se agarrou o protestantismo liberal, e nós acrescentaremos o racionalismo espiritualista, é a supressão da personalidade his-tórica de Cristo e de tudo quanto dele se conhece, porque é a úni-ca que não pode ser demonstrada nem pela filosofia, nem pela crí-tica moderna55.

Não estão de acordo com a verdade histórica, porque o Cris-to da Bíblia, de toda a Bíblia, é uma pessoa inteiramente sobre-natural.

O próprio Strauss, o maior dos críticos desta escola, vê-se obrigado a reconhecer que, a in-trusão do princípio sobrenatural e a concepção dogmática do Cristo tornam impossível uma biografia de Jesus. Procurou eli-minar todo o sobrenatural da vida de Jesus, sacrificando o Cristo dogmático para salvar o Cristo histórico, partindo do conceito de que, se os antigos encontraram digno do homem não considerar como estranho à humanidade tudo quanto é hu-mano, a divisa dos modernos deve ser eliminar como estranho tudo o que não é humano e natu-ral.55 Obr. cit., pp. 382-383.

Não repetiu o erro de quebrar a cabeça e violentar o bom senso para explicar racionalmente os milagres de Cristo, irremediavel-mente condenados pela ciência, limitando-se simplesmente a eli-miná-los da parte histórica, con-siderando-os como mitos justa-postos, não contrários, porém, à pessoa histórica de Cristo, para conservar, este à humanidade e à história.

Isto, porém, era faltar aberta-mente à logica e à verdade histó-rica, como o próprio Strauss confessa, sem disso dar conta, ao deixar escapar da sua escrita es-tas palavras, que dizem mais do que um livro inteiro: - Sob este ponto de vista, pode se dizer que a ideia de uma Vida ou de uma Biografia de Jesus foi a fatali-dade de toda a teologia moder-na. Esta continha em gérmen todo o destino e a contradição que lhe pressagiava o resultado negativo. Ela era a ratoeira em que a teologia do nosso tempo tinha necessariamente de cair e perder-se56.

Esta fatalidade da teologia - devida, como vimos, à preocupa-ção de salvar o cristianismo, à qual ele mesmo se mostrou obe-diente, não o salvou da contradi-ção e do resultado negativo. Ain-56 Op.cit., tom. I, p. 4.

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da que a única base para falar de Cristo esteja nos Evangelhos e estes, além de serem uma base suspeita por emanarem da fé, quando não das imposturas sa-cerdotais, nos representam Cris-to apenas como pessoa sobrena-tural.

Além disso, se vão despojar parte do Evangelho do seu cará-ter histórico para o converter em puro mito, porque não aplicar e estender então o mesmo critério à interpretação de todo o livro?

Como distinguir o que deve se tomar ao pé da letra, do que deve ser tomado no sentido figu-rado?

O real, nesse caso, torna-se in-sustentável, e o livro perde todo o seu valor histórico57 porque, quem quer raciocinar sem pre-conceitos e de boa fé vê-se obri-gado a reconhecer que os Evan-gelhos só nos mostram Cristo pelo sobrenatural. E, em Cristo, tudo é sobrenatural: milagres e potência milagrosa, a sua própria pessoa, a sua missão e ainda a natureza e o propósito dos livros que dele falam.

Os Evangelhos sinópticos e o quarto Evangelho não são de na-tureza diferente senão no seu grau maior ou menor. Se nos si-57 Mirou, Jesus Reduzido Ao Seu Justo Valor, pag. 233.

nópticos está mais afirmado o elemento humano de Cristo, este elemento não é menos fabuloso do que os seus milagres porque não se referem a um homem de-terminado mas ao Redentor, a um determinado Redentor. A pessoa de Cristo, nos primeiros, é a mesma que nos dão os livros hindus sagrados falando de Cristna e de Buda, os persas de Mitra, os egípcios de Horus e mais tarde de Serápis.

Há sempre, em todos eles, um Redentor.

A única diferença entre os Evangelhos sinópticos e o de João está em que a concepção de Cristo nos três primeiros é uma cópia mais genuína dos Deuses Redentores das religiões orien-tais, onde o elemento antropo-morfo é mais engenhoso, en-quanto que o quarto Evangelho se ressente da influência dogmá-tica e metafísica do helenismo, antes do neoplatonismo alexan-drino.

Mas, tanto nos sinópticos cor-no em João, Cristo é sobrenatu-ral, não já por seus milagres, mas também pela sua mesma es-sência.

Assim como Cristo, também Maria, sua mãe é sobrenatural e está, portanto, fora da Humani-dade, pois o concebeu de modo

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milagroso e o deu à luz, ficando sempre virgem. Têm querido ver nos dogmas, relativos à mariola-tria, superstições católicas. E de fato, assim é.

O catolicismo - dizemos de uma vez para sempre - não fez mais do que desenvolver logica-mente o Cristianismo, inclusos, claro está, os autos de fé. A vir-gindade de Maria não é tão es-tranha ao cristianismo como a sua concepção milagrosa.

Maria é a mãe de um Deus, e a mãe de um Deus não pode ser manchada com as fraquezas da natureza humana. Não podia, portanto, ficar grávida de Cristo, por obra de um homem, assim como não podia morrer. As ou-tras virgens, mães dos Deuses Redentores, tinham-na já prece-dido e prefigurado. O sobrenatu-ralismo de Maria confirma, por sua vez, o sobrenaturalismo do Cristo.

Todos os Evangelhos dão a conhecer um Cristo, e esse Cris-to é um Deus, mais antropomor-fo nos sinópticos, menos antro-pomorfo em João.

Não é licito escolher dos Evangelhos apenas a parte mila-grosa, para reduzir à sua mais ín-fima expressão a parte que con-tém os elementos humanos e bi-ográficos.

Não! Em Cristo nada há de humano, excetuando o seu antro-pomorfismo, que não é próprio dele mas de todos os Deuses Re-dentores.

Em todos os Evangelhos, Cristo não só faz milagres, mas ele próprio é um milagre.

Nasce por milagre e morre para poder realizar o último mi-lagre, ressuscitando.

Veio ao mundo para salvar os homens: a sua missão é sobrena-tural. Assim, e não de outra ma-neira, falam de Jesus os Evange-lhos. Estes não só se não pres-tam à biografia, como reconhece Strauss, mas nem sequer à elimi-nação do elemento sobrenatural, que cerca a divina pessoa de Cristo.

Cristo não é uma pessoa indi-vidual; é uma encarnação divina. Todos os seus feitos são dogmá-ticos. Todas as suas palavras ti-nham já sido escritas antes dele as pronunciar. Não podemos ex-plicar humanamente o sobrena-tural dos Evangelhos, coisa ab-solutamente impossível, nem eli-miná-lo, coisa não menos impos-sível, sem eliminar os próprios Evangelhos, o próprio Cristo e até o cristianismo.

Limitar-nos-emos, apenas, a reconhecer a existência deste so-

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brenatural, inseparável da pessoa do Redentor.

Isto basta para a nossa tese.Cristo pertence ao céu. E ao

céu o restituímos.Se Cristo, porém, é pessoa ab-

solutamente sobrenatural, se é Deus, claro está que não é, não foi, nem pode ser homem, evi-dentemente.

Não nos ocuparemos, pois, dos seus milagres, nem sequer para os enviar à mitologia.

Faremos alguma coisa mais do que até agora se tem feito:de-monstraremos que nada de hu-mano se pode referir a Cristo.

E demonstrá-lo-emos com, a própria Bíblia na mão.

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CAPÍTULO IIIA PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE

O que deveria ter aberto os olhosaos mais precavidos, e de-monstrar a todo o mundo a enor-me mistificação de que a huma-nidade tem sido vítima, durante vinte séculos, julgando que Cris-to realmente existiu, é a lingua-gem que emprega a Bíblia, fa-lando do seu protagonista.

A Bíblia, esta Bíblia, que é o único livro que fala de Cristo, pode pretender fazer-nos crer que Jesus tenha existido como homem, nem mais nem menos que os demais homens? De ne-nhum modo!

A vida, o pensamento, a ação, a palavra, a doutrina de Cristo, não existem sequer nos Evange-lhos, a não ser enquanto são pre-ditos pelos profetas, previstos pelo Antigo Testamento e prega-dos pela lei antiga.

Nem um gesto, nem um dito, nem um fato de Cristo se narra nos Evangelhos, que não estejam em relação com a Escritura.

De maneira que as próprias palavras dos Evangelhos o di-zem, com uma ingenuidade ex-tremamente infantil que Cristo fez isto porque tal profeta o pre-disse; Cristo fez aquilo para que

se cumprisse a Escritura.A começar pelo seu nascimen-

to milagroso. Os Evangelhos di-zem-nos que tal acontecimento teve lugar em virtude das pala-vras do profeta (Mat. I, 22).

Se nasce em Belém, é porque está também escrito pelo profeta (Mat. II, 5).

Se foge para o Egito, é porque se cumprem as palavras do pro-feta: Chamei meu filho para o Egito. (Mat. II, 14).

Se Herodes ordena a degola-ção dos inocentes, é para que se cumpram as palavras do profeta Jeremias (Mat. II, 17).

Se volta à Galileia e vive em Nazaré, é para que se cumpram as profecias, segundo as quais devia chamar-se Nazareno: (Mat. II, 23).

Se Jesus encontra em seu ca-minho a João Batista, é porque o profeta Isaías o havia predito. (Mat. III, 3).

Se o diabo o tenta, e se Jesus vence a tentação, é porque as Es-crituras o haviam predito. Do mesmo modo, o diálogo entre Satanás e Cristo se funda nas próprias palavras dos livros do

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Antigo Testamento (Mat. IV, I-10).

Se Jesus vai a Cafarnaum, é para cumprir uma profecia de Isaías (Mat. IV, 14).

Se prega que não façamos aos outros o que não queremos que nos façam , é porque assim esta escrito na lei e nos profetas (Mat. IV, 12).

Se cura os endemoninhados, é em cumprimento do que lhe diz o profeta Isaías (Mat. VII, 17).

Se fala de João Batista, é para dizer que é aquele de quem está escrito: É Elias que devia vir (Mat. XI, 10, 14) .

Se cura as multidões e lhes proíbe que o divulguem, cum-pre-se o que predisse o profeta Isaías (Mat. XII, 17).

Se tem de permanecer sepul-tado três dias, é porque Jonas esteve três dias no ventre da ba-leia (Mat. XII, 40).

Se fala em forma de parábolas para não ser compreendido, cumpre-se a profecia de Isaías (Mat. XIII, 14).

Se manda buscar um jumento e um jumentinho, fá-lo para cumprir o que lhe, diz o profeta (Mat. XXI, 4).

Quando Jesus está a ponto de ser preso no horto de Getsemani, recusa-se a que o defendam, di-

zendo: Como poderiam cumprir-se as Escrituras, que dizem ser conveniente que assim suceda? (Mat. XXVI, 54).

Jesus diz que não foi preso pelas multidões quando se senta-va junto delas para ensinar no templo, a fim de se cumprirem as Escrituras (Mat. XXVI, 56).

Se Judas o atraiçoa e recebe em paga trinta dinheiros, é para que se cumpra o que disse o profeta (Mat. XXVII, 9).

Se, após crucificado, os solda-dos dividem a túnica, isso suce-de em cumprimento do que pre-dissera o profeta (Mat. XXVII, 35).

Se manda comprar uma espa-da, é para que se cumpra tam-bém a profecia, segundo a qual seria confundido com os malfei-tores (Luc. XXII, 36, 37).

Cingindo-nos aos seus Após-tolos, Jesus demonstra que tudo o que lhe sucede é por que con-vém que todas as coisas escritas acerca dele na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos sejam cumpridas. E acrescenta: Como também era mister que o Cristo padecesse e ressuscitasse dentre os mortos ao terceiro dia. (Luc. XXIV, 44, 46) .

Até na Cruz, se Jesus pede de beber, é para que se cumpra a

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Escritura (João. XIX, 27) .E, bebido que foi o vinagre,

disse: Tudo se cumpriu. E só en-tão, quando viu que nele se ti-nha realizado a Escritura, incli-nou a cabeça e entregou o espí-rito (João. XIX, 30).

Enfim, se não lhe quebram as pernas na mesma cruz, e se lhe abrem o peito com a lança, é, disse João, em cumprimento da Escritura (João. XIX, 32 – 37).

E basta de exemplos, que não são os únicos em que os Evange-lhos obrigam a fazer e dizer a Cristo apenas o que estava escri-to no Antigo Testamento.

Mais adiante, demonstraremos que tudo é símbolo em Cristo, ainda mesmo que os Evangelhos o não digam explicitamente, e ainda que não citem as respecti-vas passagens do Antigo Testa-mento, e que não veio ao mundo e não procedeu senão para exe-cutar o plano teológico precon-cebido no Antigo Testamento.

Neste ponto da nossa obra, apenas quisemos deduzir da lin-guagem dos Evangelistas a con-fissão de uma circunstância ca-pitalíssima: Cristo não disse nem foi ele próprio mais do que aqui-lo mesmo que Escritura ordenou que fosse e que fizesse.

Não nos dirá nada esta cir-

cunstância essencialíssima ?Não significará isto, clara-

mente, que Cristo nunca existiu, tendo-o inventado os Evange-lhos para cumprimento das Es-crituras?

Pode-se volver e revolver a questão, mas a única conclusão plausível a que se chega é a que nós acabamos de indicar.

Despojai Cristo da sua reali-dade histórica, e tereis explicada a questão das profecias: deixai-a subsistente, e a questão das pro-fecias será humanamente insolú-vel.

Pois bem: como hoje é sim-plesmente absurdo pensar que possam existir profetas e profe-cias e que possam realizar-se ponto por ponto, minuciosamen-te e a distância como devia ter ocorrido com Cristo, havemos de concluir que: ou as profecias foram inventadas, ou Cristo foi inventado para o relacionarem com as profecias.

Estando a primeira hipótese desmentida pela história e pela circunstância indeclinável de que, em tal caso, as profecias e a sua realização não tivessem dei-xado nada a desejar, resta-nos somente a segunda, a de que Cristo foi inventado para a reali-zação em si das profecias, hipó-

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tese que resolve toda a dificulda-de inerente a tal assunto, porque nos fornece a chave para expli-car o fato de tantas profecias se-rem sofísticas a fim de poderem aplicar-se a Jesus, pois não esta-vam devidamente relacionadas para se conciliarem numa só pessoa.

A mesma hipótese explica o fato, que tantos trabalhos custou aos críticos, das faltas e inexati-dões de não poucas profecias, cuja realização os Evangelhos anunciaram pois pode acontecer que existissem ao princípio e logo fossem extraviadas nas nu-merosas vicissitudes da Bíblia, ou antes fossem alteradas de-pois. Fora disso, bastaria que houvesse sido essa a crença dos evangelistas, quer dizer, que ti-vessem acreditado que as referi-das profecias, imaginárias ou exatas, existiram e foram tal qual eles pensavam, para justifi-car o seu trabalho de adaptação a Cristo de tão decantadas profeci-as.

Esta solução elimina também radicalmente uma série de outros absurdos encontrados na Bíblia, devido a este plano armado para aplicar Cristo às profecias, por-que demonstra que a causa de tantas discordâncias e de tantos contrassensos se fundamenta no

fato dos evangelistas, preocupa-dos em escrever acerca de um Cristo imaginário, estudarem so-mente a forma de o pôr em har-monia com as exigências dog-máticas do assunto, descuidando de adaptá-lo à circunstância da narração e do meio ambiente.

Os positivistas e os racionalis-tas, não podendo aceitar a pre-tensão teológica de que Cristo fosse Deus, e que, portanto, a sua vida tivesse sido profetizada por homens inspirados pela von-tade divina, mas, não chegando a negar a existência humana de Cristo, esbarravam ainda com o insuperável obstáculo de expli-car esse Jesus-Homem, sem o concurso das causas sobrenatu-rais que negavam. Ante este pro-blema tão heterogêneo, tiveram de submeter os seus neurônios a verdadeiras torturas, como acon-teceu com Míron, ou de realizar um tours de force, como aconte-ceu com Larroque, ou ainda de serem ilógicos, como aconteceu com Salvador, Strauss e Havet, explicando complicadamente uma parte do problema sob o ponto de vista da concepção simbólica e dogmática, e aban-donando a outra ao caos em que se envolveu a pessoa humana de Cristo.

Não se atrevendo a saltar o 60

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fosso, caíram nos contrassensos da própria Bíblia ao passar da te-ologia para o naturalismo,.

Por exemplo: Renan vê nas profecias de Isaías um raio do olhar de Jesus58 e pensa que este se julgava o espelho no qual todo o espírito profético de Isra-el tinha lido o futuro59. Só em um ponto adverte que nas últi-mas palavras de Jesus se nota a intenção de manifestar clara-mente o cumprimento das profe-cias60.

Nem vale a pena discutir a hi-pótese de que Cristo acomodasse a sua própria vida às prédicas e se exaltasse a ponto de realizar o profetismo hebraico. Não só concorre contra semelhante hi-pótese o fato, já por outros nota-do, de que, para proceder assim, Cristo deveria ter vivido com o Antigo Testamento na mão, mas também a circunstância da sua adaptação às profecias começar com o seu nascimento e não aca-bar senão com a sua morte.

Fica excluído completamente neste caso, qualquer fenômeno de autossugestão, tanto mais que se trata de uma vida em absoluto milagrosa, o que nunca deverá

58Vita di Gesù , vol. I, c. IV, trad. it. di De Boni, Milano, Daelli, 1863. 59 Id., vol. I, c. XVI. 60 Id., vol. IV, c. XXV.

se esquecer. Salvador combate a opinião

dos filósofos, que fazem de Cris-to um reformador religioso e so-cial, dizendo que, para que esta opinião fosse fundada, seria pre-ciso que a sua morte fosse unia consequência involuntário e qua-se acidental dos seus esforços, enquanto que esta formava, pelo contrário, o seu princípio e o seu fim confessados, os quais ele procurava com ardor, em um in-teresse dogmático e místico.

Salvador esteve aqui verda-deiramente inspirado e poderia ter conhecido toda a verdade se não perdesse o caminho que se-guia, terminando no lugar co-mum de que a vontade de mor-rer, firme em Cristo, provinha de uma ordem de convicções e de um entusiasmo conforme com as ideias da sua época e com a in-terpretação oriental dos livros sagrados dos hebreus.

Já vimos contra que obstácu-los vão bater este lugar comum. Mas permanece de pé a preciosa confissão de Salvador, que segue imediatamente, depois da passa-gem citada, e onde diz que, a não ser pela morte que deseja-va, nada ficaria de Cristo, por-que nem os seus dogmas nem a sua moral são frutos da sua ins-piração.

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Não há termo médio: ou acei-tamos a revelação, em conjunto, ou repelimos a natureza humana do Cristo, entregando-o inteira-mente à teologia. Esta está no seu papel, quando diz que as profecias provam a existência de Cristo, o qual se converte, em virtude desta afirmativa, em uma personificação mais ou menos completa daquelas.

Assim o compreendeu Scherer sem que por isso chegasse à con-sequência lógica que o fato supõe, quando escreve que Jesus nem é um filósofo, nem o funda-dor de uma nova religião, mas sim o Messias; que a chave da vida de Jesus é o cumprimento das profecias messiânicas; e que esta ideia messiânica é o centro dos fatos evangélicos, a razão de ser histórica de Jesus61.

Cristo, portanto, não veio ao mundo senão para cumprir as profecias, e, como isto não é uma ação humana, equivale a di-zer que Cristo veio ao mundo apenas como um símbolo, isto é, que Cristo nunca existiu.

Hoje não precisamos mais negar que o Antigo Testamento revela o Cristo. O sobrenatural já nos não preocupa.

61Mélanges d'histoire religieuse. La vie de Jésus, pp. 99 e seg. (in Vacherot, La Religion ).

Este testemunho da missão de Cristo com relação às profecias é a própria razão de ser de Cristo pois, caso contrário, este já não seria o Messias que os crentes pretendem, por não corresponder exatamente aos vaticínios.

Realmente, esta maneira de ser de Jesus - assim o diz Dide, com exata ponderação dos tex-tos, ainda que não chegue a con-sequências lógicas - torna o mes-mo Jesus e os seus apóstolos in-diferentes á Humanidade.

Quando lemos com imparcial atenção o Novo Testamento, não podemos deixar de reconhecer que o sistema narrativo dos es-critores apostólicos exclui todo o interesse e toda a emoção. A vida de Jesus e as aventuras dos Apóstolos desenrolam-se como se fossem uma cena teatral, em que tudo está apontado, previsto e indicado, antecipadamente. Não é a Humanidade vivendo, pensando, sofrendo, agitando-se.

Se Cristo e os seus realizam isto ou aquilo, executam este ou aquele ato, é porque era preciso que se cumprisse esta ou aquela profecia62.

Por isso, temos de escolher, definitivamente: Ou Cristo exis-tiu, e então é Deus, ou não é 62A. Dide, La fin des religions, p. 370, Paris, Flammarion, 1902

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Deus, e então nunca existiu, por-que o Cristo da Bíblia é o único Cristo conhecido, e porque na própria Bíblia ele não é mais do que um personagem sobrenatural e simbólico. Impõe-nos a lógica que o aceitemos tal qual ele é na Bíblia, isto é, como Deus, a não ser que se ponha de parte, sem mais considerações, a sua pre-tendida realidade histórica, da qual não se escapa.

Quando se reconhece que Je-sus era o Messias e que não tem nenhum outro caráter, não se pode humanizá-lo conservando a humanidade e deixando que a di-vindade se volatilize: um Messi-as profetizado e um Deus Re-dentor não é e não pode ser um homem.

Não é licito dividir-lhe a sua natureza em divina e humana e reduzir à expressão mais simples a sua figura humana para o sal-var do exílio a que os Deuses, hoje mais do que nunca, estão confinados, segundo afirmou o grande profetizador de Epicuro. Do contrário, violentaríamos o bom senso, atentando contra ele, e atormentaríamos nossa mente sem resultado algum, por maior que fosse o valor de quem tal fi-zesse, como sucedeu com Strauss. E nós, atacando cada vez de mais perto os Evange-

lhos, em breve veremos que, do naufrágio de Cristo nada de hu-mano pôde se salvar. Veremos que não é possível escrever a bi-ografia de Cristo, que ele não pode ter biografia, já que não teve existência humana. É claro que não seguiremos passo a pas-so a narração bíblica e nem a li-nha dos doutos especialistas na matéria.

Reuniremos alguns dos ele-mentos essenciais que concor-rem para que qualquer existência humana seja real e vital, elemen-tos esses que faltam a Cristo de modo tão contraditório e absur-do que excluem toda a possibili-dade de ter existido um homem em tais condições pela contradição que não o permite.

No entanto, completaremos a demonstração de que Cristo está na Bíblia, apesar desta o não di-zer explicitamente, apenas como sendo um personagem puramen-te e completamente simbólico, elaborado com os dados submi-nistrados pelo Antigo Testamen-to: verdadeiro ídolo, combinação de materiais preexistentes nas tradições e nos textos religiosos do hebraísmo, modificado e ali-mentado com a concepção mito-lógica do Oriente como se fora um mosaico.

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CAPÍTULO IVCRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO

TESTAMENTO

Do exame bíblico que em-preendemos, resultará que Cristo é um mito, como já resulta, im-plicitamente, a demonstração de que é estranho à história. Este resultado, porém, mais evidente se torna na parte que consagrare-mos à mitologia. Aqui em pleno campo bíblico, provaremos que o mito Cristo foi adaptado, mais ou menos felizmente, das alego-rias do Antigo Testamento.

O próprio Evangelho, como acabamos de ver no capítulo pre-cedente, oferece-nos, a esse res-peito, uma prova evidente, com a linguagem simbólica que em-prega para pôr em relação as pa-lavras e os feitos de Cristo com o Antigo Testamento.

Vamos ver agora que, mesmo que os Evangelhos não digam com toda a clareza, nada há ne-les, e portanto em Cristo, que não seja decalcado do Antigo Testamento.

Até a denominação de Evan-gelhos é tirada de lá, precisa-mente de uma palavra do profeta Isaías, traduzida em grego63. A sua significação de boa nova é

63Salvador, op. cit., lib. II.

também simbólica, porque alude à realização das esperanças do Israel.

O numero dos livros do Novo Testamento, junto ao dos livros do Antigo forma segundo afirma seriamente Cantu, sem atentar à consequência, o número místico de setenta e dois64.

Jesus nasce de uma virgem, porque este caso se encontra já em Isaías (VII, 14), e é prenunci-ado por Isaac, José e Sansão. O anjo Gabriel é já conhecido no Antigo Testamento.

Cristo nasce em Belém, por-que isso foi profetizado por Mi-queias (V, 2) em virtude de ter sido aquela terra o berço de Davi.

As genealogias atribuídas a Jesus são inteiramente simbóli-cas. Não reproduziremos aqui a demonstração de Strauss, mas para ela remetemos os leitores que queiram se informar. (Nova Vida de Jesus, vol. II, pag. 8 e seg.).

O anjo, que aparece aos pasto-res, anunciando-lhes o nasci-mento do Salvador é tirado de 64 C. Cantu Hist. Univ. Ep. VI, cap. 33.

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Isaías (IX, 2 e VII, 14).A divina sabedoria, o Verbo

divino que se encarna em Jesus, encontra-se nos Provérbios e em Siraco. As próprias palavras dos Evangelhos são tiradas destes li-vros do Antigo Testamento (Strauss, obr. cit. II. 53 e seg.)

A estrela, que dirige os Reis Magos, vindos para adorar Je-sus, corresponde à estrela alegó-rica, mencionada nos livros de Moisés (Num. XXIV, 17.)

Os Reis ou Magos que vêm da Ásia, trazendo ouro e incenso, a glorificar o Eterno, encontram-se também em Isaías (LX, 1-6).

A degolação dos inocentes, absolutamente fantástica, foi imaginada para justificar a fuga da Sagrada Família para o Egito, lendo-se no profeta Oseias que o menino Jesus devia ser chamado por Deus ao Egito (XI-1) e por outro lado, a fim de que se veri-ficasse a profecia de Jeremias sobre o pranto de Raquel, pelo assassínio de seus filhos (Jer. XXX11-15, 16, 4, 10, 28).

A presença de Jesus no tem-plo, a cena de Simeão e Ana e a circuncisão têm por objeto de-monstrar o cumprimento das leis de Jeová em Cristo e a profecia de Simeão, segundo a qual a oposição dos hebreus contra

Cristo fazia parte do plano divi-no (Strauss, ob. cit. 84, 85): Je-sus de volta do Egito, habitou em Nazaré, para que pudesse chamar-se o Nazareno, conforme tinham vaticinado os profetas.

A cena do menino Jesus, dis-putando no templo com os dou-tores, foi criada por analogia com Moisés e Samuel, assim como o restante da adolescência de Jesus. A propósito das pala-vras deste a sua mãe, ditadas pelo coração, Strauss observa outra reminiscência do Antigo Testamento, como a do cap. II, v. 19 de Lucas; o mesmo fizera Ja-cob com José (Strauss, obr. cit. Pag. 90 e seg.).

João Batista foi criado segun-do as profecias de Malaquias (III,1,5, 18 e IV, 2, 5) e de Isaías (XL, 1,10, 27, 31 e XLI, 1).

A anunciação e o nascimento do precursor, João Batista, foi copiado do Antigo Testamento (Strauss, obr. cit. vol. II pag. 43).

A natureza simbólica de Cris-to provém também de João Ba-tista, que o apresenta como um cordeiro que assume os pecados do mundo65 e afirma que Jesus, vindo depois dele, existia já an-tes dele (João, I, 29, 26, 15, 30).

Já vimos que a história das

65Isaia LIII, 4 e seg. 65

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tentações de Jesus remete expli-citamente ao Antigo Testamento. Também o número de dias (40), que Jesus passou no deserto era tradicional e sagrado entre os he-breus. Assim: o dilúvio durou 40 dias; empregaram-se 40 dias para embalsamar o corpo de Ja-cob; Moisés viveu 40 anos na corte de Faraó, 40 anos no deser-to de Madian e 40 anos gover-nou o povo de Israel; os ninivi-tas jejuaram 40 dias e os hebreus andaram 40 anos errantes no de-serto; Moisés e Elias tinham je-juado 40 dias. Além disso, Elias tinha viajado pelo espaço e o Es-pírito transportara Ezequiel de um ponto para outro. Temos, portanto, que à maneira deles, obrigaram Jesus a jejuar 40 dias; como a Abraão, fizeram-no ten-tar no deserto e, como a Elias e a Ezequiel, obrigaram-no a andar pelo espaço.

Abandonado Jesus em Naza-ré, ei-lo que parte para Cafar-naum, a fim de cumprir o anun-ciado pelo profeta (Mat. IV, 13, 14) e (Luc. IV, 23, 31).

Cafarnaum ficava na Galileia, cuja região o evangelista descre-ve com as mesmas palavras do profeta Isaías: Como um país que jazia nas trevas (Mat. IV, 16).

Quando os Evangelistas nos

dizem que Jesus escolheu doze apóstolos não fazem mais do que cumprir à risca o consignado no livro dos Números (I, 4,16), cor-respondendo os doze apóstolos às cabeças das doze tribos.

E quando atribuem aos doze apóstolos outros 72 discípulos, não fazem senão copiar a sele-ção de 72 homens, feita por Moisés entre os anciãos do povo.

O modo por que os apóstolos seguem Jesus imediatamente e sem o conhecerem é por demais simbólico, e a sua significação explica-se desde logo. O mesmo numero de 153 peixes, tirados milagrosamente da água pelos apóstolos, pode entender-se, se-gundo S. Jerônimo, em relação com as 153 espécies de peixes que então conhecidas, e signifi-ca, segundo este padre da Igreja, que todas as classes de homens são pescados para a sua salva-ção66.

O nome de Pedro, dado ao chefe dos Apóstolos, simboliza-va no hebraísmo a fé inabalável e indestrutível, tanto que Moisés havia feito da pedra o sinal ale-górico de Jeová67.

A mesma ideia simbólica, re-66Com. in Ezequiel, 47. 67Deut. XXXII, 4, 15, 18, 30, 31. Samu-el e II Reis XXII, 2, 3; XXIII, 3.

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presentada pelas chaves confia-das ao chefe dos Apóstolos, se encontra no Antigo Testamen-to68.

Finalmente, a companhia de pessoas de má fama que rodeiam Jesus para escândalo dos Escri-bas e Fariseus, (Marc. II, 16) foi copiada da figura de Davi que ti-nha se colocado à frente de uma turba de 400 desgraçados (I Reis, cap. XXII, 2).

Os milagres de Cristo fazem parte do programa profético: Então, serão abertos os olhos aos cegos e abertos os ouvidos dos surdo. Então, o coxo69 salta-rá como um cervo e a língua dos mudos cantará70.

É verdade que em Isaías não figuram as narrações dos lepro-sos nem as ressurreições dos mortos, mas esses dois gêneros de milagres acham-se nas lendas dos profetas. Eliseu curara um leproso, e junto com Elias, res-suscitam um morto cada um71. O 68 .. “et dabo clavem domus David super humerum ejus: et aperiet et non erit qui claudiat, et claudet, et non erit qui aperi-et” (Isaia XXII, 22). Porei sobre o seu ombro a chave da casa de Davi; ele a abrirá e ninguém a fechará, ele a fe-chará e ninguém a abrirá. 69A figura dos coxos que saltam, repete-se literalmente nos Atos dos Apóstolos (III, 7 e seg.)70Isaia XXXV, 5 ss.71 I dos Reis, XVII, 17; II dos Reis, IV,

mesmo Jesus cita a cura de Naa-mã, realizada por Eliseu (Lucas IV, 27). A cura da mão dissecada é tirada literalmente do Antigo Testamento (Livro 1 dos Reis, XIII, 4 e seg.).

A piscina de Betesda, que a História não conhece, com os seus cinco pórticos, simboliza os cinco livros de Moisés.

A cena do endemoninhado que, não podendo ser curado pe-los Discípulos, melhora nas mãos de Jesus72, é igual a cena de Geazi, servo de Eliseu,73 que não tinha sabido fazer voltar à vida o filho de Sumanita, ressus-citando-o o próprio Elias.

Em ambos estes casos, Strauss faz notar a diferença de poder, que existia entre os Discípulos e o Mestre.

A cura do filho do Centurião, realizada por Jesus à distância74, é parecida com a cura de Naamã, operada também de longe por Eliseu: o Messias não podia ser inferior em poder ao profeta do

10 e seg. As palavras de Jesus após res-suscitar o rapaz de Nain, são reprodução textual do Antigo Testamento, quando Elias ressuscita o filho da viúva de Sa-reta.72Mat. XVII, 14-29; Mar. IX, 14-29; Luca XI, 37-43. 73II Re IV, 8 ss. 29-37. 74Mat. VIII, 5-13; Luca VII, 1-40; Giov. IV, 46-54.

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Antigo Testamento.Jesus acalmando os ventos e

as ondas é uma imitação de Jeo-vá ordenando ao Mar Vermelho que se afaste para dar passagem ao Povo Escolhido.

Melhor ainda: Hengstenberg achou uma outra figura idêntica à de Jesus que também acalma a tempestade para salvar os Após-tolos que corriam perigo na sua barca. Trata-se do Salmo CVII (v. 25, 28-30). Jesus que cami-nha sobre as águas imita Jeová, que no Antigo Testamento está poeticamente representado, via-jando sobre elas75. Pedro, que pretendendo andar sobre as águas está prestes a se afogar, merecendo de Cristo o famoso - Homem de pouca fé, porque du-vidaste? - sendo por ele salvo, revela a mais perfeita semelhan-ça com outro episódio do Antigo Testamento onde se diz, na Epís-tola aos Hebreus (XI, 29), que se os israelitas passaram o Mar Vermelho, foi por terem fé, ao passo que os egípcios se afoga-ram.

O milagre da multiplicação dos pães e dos peixes é decalca-do igualmente sobre o Antigo Testamento por uma parte, quan-do se refere ao maná que os he-75Isaia XLIII, 16; Salmos LXXVII, 20; Giob. IX, 8.

breus recebem no deserto e por outra, no que diz respeito aos milagres, perfeitamente análo-gos, de Elias e de Eliseu76.

O milagre da transformação da água em vinho tem seus pre-cedentes no Antigo Testamento: Moisés fizera brotar água da ro-cha e transformara em sangue toda a água do Egito. Se em Je-sus a água se muda em vinho e não em sangue, é porque no An-tigo Testamento aquele é o sím-bolo deste e ainda do próprio sangue expiatório do Messias.

A maldição da figueira que não produzia frutos precoces é tirada de Oséas77 e de Miqueias.

A cena da Samaritana, junto do poço, é uma imitação poética das cenas de Jacó e Raquel, de Eleazar e Rebeca na fonte.

Nem mesmo a cena dos ven-dilhões expulsos do templo é original: Jesus não faz senão transportar duas sentenças do Antigo Testamento, uma de Jere-mias (VII, 11) que diz que o templo não se há de converter em covil de bandidos, e outra de Isaías (LVI, 7) em que se chama ao templo casa de oração.

A cena da transfiguração é co-

76Salmo CVII, 4-9; I Re XVII, 7 ss.; II Re XXXVIII, 42-44. 77IX, 10.

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piada do Antigo Testamento. Moisés subira ao Monte Sinai, levando consigo, além dos 72 anciãos, Aarão, Nadab e Abim; uma nuvem cobre a montanha durante seis dias, e por fim, no sétimo, Jeová aparece em meio da nuvem e chama Moisés, a quem chegam os resplendores da divina auréola. De volta da mon-tanha, encontra o povo adorando o bezerro de ouro e encoleriza-se. Jesus sobe também a uma montanha anônima em compa-nhia de três pessoas, que são por assim dizer, o comitê diretor dos Apóstolos; lá torna- se resplan-decente como Moisés; a mesma nuvem luminosa entra em cena. Descendo do monte Jesus en-contra o jovem possesso, que os seus discípulos não puderam cu-rar, e o seu primeiro sentimento é de cólera pela impotência con-tra o demônio.

Com Jesus no monte, compa-ram-se Moisés e Elias: o primei-ro para tornar mais evidente a relação que vai do primeiro ao segundo salvador; o segundo em virtude da profecia de Malaqui-as, segundo a qual Elias deveria voltar em pessoa antes do Messi-as, uma vez que a sua substituição por João Batista deixaria uma lacuna. .

Tanto no Sinai como na mon-

tanha da transfiguração, quem fala é a nuvem; no Êxodo é o mandato de Moisés; no Evange-lho, segundo o sentido modifica-do, é testemunho de Deus aos discípulos acerca de Jesus. Mais ainda: estas palavras estão copia-das do Antigo Testamento,78 aca-bando a frase com o mesmo vo-cábulo que serve de conclusão à passagem do Deuteronômio, onde o legislador promete a Isra-el um profeta semelhante a si próprio, dizendo-lhe: Escutai-o79.

A entrada de Jesus em Jerusa-lém foi adaptada às profecias de Isaías80 e de Zacarias81.

E para que a adaptação a este último fosse literal, o evangelista fez viajar Jesus ao mesmo tempo sobre uma burra e um jumenti-nho, no curto espaço que vai de Betfagia a Jerusalém. Tendo sido mal interpretada a passagem do profeta e havendo-se repetido duas vezes a palavra jumento, o 78 Is. XLII, 1; Salmo II, 7.79 Matt. XVII, 5. 80 LXII, 11.81 Zac. IX, 9. - Salvador, citando textual-mente uma passagem de Zacarias na qual a entrada de Cristo em Jerusalém é antecipada e minuciosamente descrita, astutamente observa que todas as ima-gens relativas à sua entrada em Jerusa-lém não custaram nada para a imagina-ção da tão grande e rica nova escola (a cristã).

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evangelista julga que o referido fragmento se deve entender como se os jumentos fossem dois.

A traição de Judas foi adapta-da do episódio da traição de cer-to comensal de Davi, e a decla-ração de Jesus, durante a ceia, corresponde a idêntica revelação do rei salmista82.

As palavras Sou eu que o quarto evangelista, mais teológi-co do que os sinópticos, põe na boca de Jesus no momento em que este avança para os soldados que o vêm prender - palavras que os fazem cair por terra - são as mesmas que pronunciou Jeo-vá, e, por conseguinte, copiados do Antigo Testamento83.

A prisão de Cristo como de-linquente são relacionadas pelos próprios evangelistas Marcos e Mateus com as predições dos profetas. A fuga dos Apóstolos equivale ao cumprimento da profecia de Zacarias84.

Se Jesus não responde à per-gunta do sumo sacerdote, relati-va ao depoimento das testemu-nhas, é para que se veja nele o cordeiro conduzido ao suplício sem lamentações, em cumpri-mento literal da profecia de Isaí-82Salmo XLI, 10.83Deuter. XXXII, 39; Isaia XLIII, 10 ss. 84 XIII, 7.

as85.Quando porém, lhe perguntam

se ele é o Messias, já se não cala, proclamando que o é, para que se realize aqui o Antigo Testa-mento86.

Os ultrajes e maus tratos infli-gidos a Jesus, foram previsto ex-pressamente por Isaías87

Os trinta dinheiros da traição de Judas e o seu gesto de atirá-los fora no Templo são tomados à letra do oráculo de Zacarias88.

A compra do campo de san-gue com os dinheiros da traição, o remorso e o arrependimento de Judas, a sua morte prematura e o gênero dessa morte, a anasarca e a cegueira, tudo isso se encontra em vários textos do Antigo Tes-tamento89.

Todo o plano, e até mesmo os detalhes da história da crucifica-ção foram copiados pelos evan-gelistas do capitulo LIII de Isaí-as e dos Salmos XXII e LXIX. Além disso, João preocupado a mostrar em como Jesus é o ver-dadeiro Cordeiro, acrescenta o hissope, que no Êxodo90 se em-prega no sacrifício do cordeiro

85LIII, 7. 86Salmo CX, 1; Daniele VII, 13. 87L, 6.88XI, 13. 89 Strauss, op. cit., II, XC. 90 Êxodo, XII – 21, 22.

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pascal.Se Cristo escolhe a Páscoa

para ser crucificado, é porque a sua missão é exatamente a do cordeiro pascal, sacrificando-se na dita época para salvar a hu-manidade do pecado original.

Seja-nos permitido lastimar aqui a grande soma de energia empregada por todos aqueles que, querendo defender a exis-tência humana de Cristo, quebra-ram a cabeça para explicar aqui-lo que se vê ser totalmente inad-missível, a não ser que despojas-sem Cristo de toda a realidade histórica, isto é, a mudança do dia do seu sacrifício, como se esse dia fosse histórico e não simbólico, e ainda como se tal mudança houvesse tido outro fim que não fosse o de mudar o dia da Páscoa hebraica, assim como já tinham mudado o sím-bolo, substituindo o cordeiro material pelo cordeiro simbóli-co.

Os dois ladrões entre os quais Jesus é crucificado relacionam-se, segundo o próprio Marcos, com a profecia de Isaías91.

Mateus e Marcos põem na boca de Jesus as palavras: - Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? No Salmo XXII,

91 Isaías (LIII - 12).

versículo 2, lê-se textualmente: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

As palavras Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem, são postas na boca de Jesus para realizar o que Isaías tinha dito do enviado de Deus, que colocado entre malfeitores e carregado com os pecados de todos, supor-ta ainda o peso da sua iniquida-de92.

O profeta Zacarias dissera que os habitantes de Jerusalém veri-am Jeová trespassado por uma lança. Dali a necessidade de ferir Jesus com a lança, para que, quando ele regressasse às nuvens do céu, fosse possível ver-lhe a ferida (Daniel, VII, 13).

Mas Jesus não era só aquele a quem feriram. Era também o cordeiro de Deus, e, precisamen-te, o cordeiro pascal, de quem se tinha escrito: Não se quebrará nenhum dos seus ossos. Daqui também a necessidade de não lhe quebrarem as pernas, como aos dois ladrões.

Isaías dissera que o servo de Jeová morreria entre ricos e mal-feitores93.

Quanto aos malfeitores, lá es-tão os dois ladrões, que os evan-

92 Isaías (LIII - 12).93 Isaias, LIII, 9.

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gelistas fazem morrer a seu lado; quanto aos ricos, fizeram com que o rico José de Arimateia en-terrasse Jesus. Isaías dissera também: Que fazes aqui? Para que fizeste abrir aqui um sepul-cro para ti? Porque se abriu um sepulcro num lugar alto, desig-nando uma morada na pedra?94. Isto é o que o evangelista faz di-zer a Jesus junto ao sepulcro de José de Arimateia, aberto na ro-cha.

Jesus ressuscita porque isso está previsto no Salmo XVI (9 ss.) e em Isaías (LIII, 10-12).

Finalmente, sobe ao céu onde está sentado à direita de Deus, em cumprimento do versículo 1 do salmo CX: O Senhor diz ao meu Senhor: senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como um escabelo a teus pés.

Se quiséssemos continuar em citações, reconstituiríamos, pon-to por ponto, o Novo Testamento sobre o Velho. Para o nosso fim, porém, bastam os pontos capi-tais. Acrescentaremos, no entan-to, que a festa do Pentecostes esta tomada à letra do Antigo Testamento (Deut. XVI, 9-11; Num. XXVIII, 26). A luta de Pe-dro e Paulo contra Simão o Mago tem seu motivo simbólico 94 Isaias, XXII, 16.

na luta de Moisés contra os tau-maturgos egípcios. Salvador prova que o Apocalipse é uma pura cópia dos profetas, princi-palmente de Ezequiel e Daniel.

Os evangelistas falam de Je-sus, dando-lhe três denomina-ções sobrenaturais ou metafóri-ca, além de Cristo e Messias, Fi-lho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus. Pois bem: tudo isso não faz mais que confirmar o seu caráter simbólico. Filho e descendente de Davi, devia ser o Messias, segundo a teologia he-braica. A expressão - Filho de Deus - já era usada no Antigo Testamento para designar, não tanto ao povo de Israel95 , mas aos reis do mesmo, como Davi e Salomão96 e aos seus mais dig-nos sucessores97.

A expressão Filho do Homem se encontra em Ezequiel, que lhe dá a significação de homem hon-rado com as mais altas revela-ções de Deus98 e em Daniel, onde significa, precisamente, o Messias que virá nas nuvens do céu, segundo se lê em Mateus (XXIV, 30, XXVI, 64).99

95 Ezequiel IV, 22; Oséas XI,1; Salmo LXXX, 16.96 II Salmo VII,14, Sal. 89, 27).97 Salmo II, 7.98 II, 1, 3, 6, 8; III, 1, 3, 4, 10, 17, etc.99 VII, 13

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Não há, pois, nos Evangelhos, nada que já não estivesse no An-tigo Testamento: nada há de novo debaixo do Sol, como dizia Salomão.

Todos as designações de Cris-to tinham já sido usados no Anti-go Testamento, mais ou menos metaforicamente, enquanto que no Novo Testamento adquiriram o carácter sobrenatural próprio de um mito.

Para aqueles que acreditam que Cristo era um homem a difi-culdade é insolúvel, porque, queiramos ou não, Cristo está fa-lando apenas de si mesmo como o Messias que havia de vir, mes-mo nos sinóticos e precisamente nessa passagem de Mateus (XXII, 41). A única solução raci-onal é que Strauss dá: Jesus quis mostrar a superioridade de Davi, do qual era descendente de acor-do com a carne ou a lei, enquan-to procedia de Deus como espíri-to.

Essa dificuldade sempre foi o tropeço da cristologia que queria o impossível: Fazer de Cristo um ser humano inconsistente com as leis da natureza e da história.

Assim sendo, surge a seguinte pergunta: Qual das alegorias aplicadas a Cristo no Antigo Testamento e nos próprios Evan-gelhos era verdadeira

A pergunta não é sem sentido porque, mesmo no caso de ne-nhuma das duas ser verdadeira, haveria um meio de se sustentar a tese de que Cristo poderia ter existido, pois se os evangelistas lhe aplicassem por equívoco ale-gorias indevidas, ainda assim, nada disso se oporia à realidade da existência de Jesus.

Por outras palavras: mesmo quando se objetasse que Cristo não foi mal imaginado para ser mal adaptado às pretendidas ale-gorias do Antigo Testamento, que então não seriam alegorias, estas foram mal imaginadas para serem mal adaptadas a este per-sonagem que, não obstante, não deixaria de ser histórico.

Enfim! Já não precisamos de cansar-nos muito para demons-trar que efetivamente as alegori-as do Antigo Testamento prece-deram a Cristo, se não cronolo-gicamente, pelo menos na men-talidade daquele meio em que ele foi criado.

Porque, ainda mesmo que o Antigo Testamento, nas passa-gens de onde saiu a concepção do Cristo, não contivesse verda-deiras alegorias mas unicamente expressões poéticas, imagens e figuras retóricas, coloridas com a ardente fantasia oriental dos profetas, isto não desmentiria o

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fato indiscutível de que os he-breus tinham costume, desde tempos imemoriais, de explicar o Antigo Testamento por meio de alegorias, antes que em suas mentes nascesse a ideia do Cris-to. Em breve, faremos esta de-monstração, que pertence à His-tória100.

Notemos que Fílon - que não foi colocado entre os padres da Igreja por não ter falado no Cris-to, e a quem destruíram os livros porque demonstravam que o cristianismo nasceu sem Jesus - Fílon tinha já posto em alegoria o Antigo Testamento.

Fócio, como já vimos101, opina que a linguagem alegórica da Escritura procede do próprio Fí-lon.

A nós, basta saber que o méto-do de interpretar o Antigo Testa-mento estava já em uso entre os hebreus alexandrinos102, antes da

100 Ernest Havet, O Cristianismo E Suas Origens - O Judaísmo, tomo III, 421 ss., Paris, Lèvy, 1878. 101 Primeira parte, cap. III102 Não é irrelevante a circunstância de que os simbolistas Hebreus fossem ale-xandrinos. Porque esta condição explica perfeitamente a passagem da doutrina, da moral e do culto do Antigo Testa-mento, que no judaísmo é fechado e na-cionalista, para o cristianismo do Novo Testamento, que é um judaísmo mais suave e espiritualizado por influência do helenismo e, sobretudo, da filosofia ne-

época assinalada à vida de Cris-to. Basta que essa fosse a ideia e o espírito dominante daquela época para aplicar a adaptação do mito do novo Redentor, ima-ginado pelo exemplo dos outros Deuses Redentores, às alegorias que se encontravam ou se julga-va encontrar no Antigo Testa-mento.

E que tais foram a ideia e o espírito dominante naquela épo-ca - o que deu nascimento ao Cristianismo, entenda-se - isso confirma-se, de um modo que não admite réplica, com os pri-meiros padres da Igreja, princi-palmente com os que nasceram e viveram no mesmo ambiente de Fílon, do qual foram verdadeiros discípulos. Entre eles contam-se Clemente d'Alexandria103 e Orí-genes104 que, como vimos,105 são discípulos e seguidores de Fílon, até mesmo na negação da exis-tência histórica de Cristo.

Mas para o provar, não preci-samos sair da Bíblia. S. Paulo atribui constantemente um duplo sentido à Escritura106, acompa-nhando as opiniões de Santo

oplatônica, que inspirou a famosa Esco-la alexandrina103 Havet, op. cit., III, pp. 433-434. 104 Peyrat, op. cit., pp. 183 ss.105 Parte I, c. III. 106 I Cor., IX, 9; X, 1 e ss.; Gal. IV, 21 ss.; Col. II, 16, 17; Eb. VIII, 5; IX, 1 ss.; X, 1.

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Ambrósio, Santo Agostinho e S. Gregório107.

Além disso, a interpretação alegórica foi obra dos mesmos hebreus, do tempo em que a ideia de Cristo tomou corpo.

Tem-se querido ver, nos qua-dros proféticos, apenas a ima-gem de um Messias régio e guerreiro, que devia fazer renas-cer o esplendor do reinado de Davi, quando é precisamente o contrário. Porque o verdadeiro plano da paixão de Cristo, está precisamente na imagem famosa de Isaías108. Uma imagem não exclui a outra; os hebreus porém acabaram por confundi-las. As provas dolorosas do cativeiro de Babilônia e a dos romanos, aca-baram por lhes levar a persuasão de que a época sonhadora de uma nova glória de Davi se afas-tava cada vez mais, e só então convieram que as dolorosas pro-vas de Cristo (personificação de Israel) e a sua própria morte (Daniel, IX,26) não eram outra coisa mais do que o caminho para chegar à gloria, colocada mais tarde no outro mundo.

De modo que a ideia da res-surreição, estranha primeiramen-te ao judaísmo, confunde-se logo com os povos orientais, encon-107 Peyrat, op. cit., pp. 184-188.108 Isaias LII, 13 ss.

trando o seu apogeu no Antigo Testamento109, ao se adaptar ao mito do Redentor, que morre e ressuscita. Este é, como demons-tramos com os próprios Evange-lhos, o plano dos cristãos: adap-tar o novo mito às profecias do Antigo Testamento.

Todas as crenças do Evange-lho, como tão justamente obser-va Havet, foram, portanto, so-nhos hebraicos, antes de serem dogmas cristãos. Mais certa e precisa é ainda a proposição in-versa, isto é, que não foi o Anti-go Testamento que preparou o Novo, mas sim este que se adap-tou àquele. Está explicado como puderam existir profetas e um Messias vaticinado.

Não pode ser doutra maneira, a não ser que admitamos o so-brenatural, mas, nesse caso, a fi-losofia não tinha mais a fazer do que retirar-se.

Se Cristo foi adaptado ao An-tigo Testamento, nada fez nem disse que não estivesse já escrito na lei; se a sua própria vinda e a sua morte tiveram lugar em tudo, segundo as profecias; se os evangelhos faltaram a este plano preconcebido, tanto antes do seu nascimento como antes da sua morte, excluindo toda a possibi-lidade de autossugestão em Cris-109 S. Paulo, I Corintios , XV, 4 ss.

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to; se enfim, Cristo nada fez que não fosse sobrenatural ou prede-terminado, mística e teologica-mente, quem se atreverá a sus-tentar ainda que ele foi pessoa real e histórica, um homem, um ser limitado e terrestre?

Não, Cristo não foi um ho-mem. Foi um Deus.

Cristo não existiu, não viveu

vida própria. Foi apenas uma cri-ação teológica, dogmática e mi-tológica.

Tal é o testemunho da Bíblia, única fonte que nos fala de Cris-to, e que, em lugar de nos sub-ministrar as provas da sua exis-tência, apenas é uma demonstra-ção constante da sua inexistên-cia.

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CAPÍTULO VCONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO

Mateus e Lucas dão a Jesus duas genealogias diversas110. De-vendo Jesus nascer, segundo muitas profecias, da estirpe de Davi, Mateus pretende demons-trar que se cumpre o vaticínio, fazendo descender José, pai de Jesus, da linha de Davi. Por ou-tro lado, porém, o mesmo Ma-teus afirma que Jesus fora con-cebido por obra do Espírito San-to111. Parece, pois, que se Jesus foi concebido desse modo, não podia descender de Davi, ao pas-so que, descendendo de Davi, por via de José, não podia de modo nenhum ser concebido por obra do Espírito Santo.

Quanto ao ano em que Jesus nasceu, há contradição formal entre Mateus e Lucas, os únicos evangelistas que dele falam. Confrontando as circunstâncias históricas com que os dois rela-cionam o nascimento de Jesus, depreende-se de um modo in-controverso que o Cristo de Ma-teus devia ter pelo menos 11 anos quando veio ao mundo o Cristo de Lucas112.

110 Mat. I, 1-17; Lucas III, 23-38. 111 Mat. I,20-23.112 Ferrière, Paganismo dos hebreus, apêndice nº 2. Quanto ao erro histórico

Em Mateus, José e Maria par-tem de Belém sem irem a Jerusa-lém e fogem para o Egito preci-pitadamente depois da adoração dos Magos, para salvarem Jesus da degolação dos inocentes, or-denada por Herodes113 Pelo con-trário, em Lucas, José e Maria vão publicamente ao templo de Jerusalém, onde tem lugar a cena de Simão e Ana, e depois, em vez da fuga para o Egito, voltam tranquilamente para Nazaré114 É assim que a narração de Lucas não só contradiz materialmente a de Mateus, mas até exclui, im-plicitamente, a famosa degola-ção dos inocentes, narrada por aquele. O fato de levarem Jesus ao templo de Jerusalém, onde é publicamente reconhecido por Simão como o Messias não se harmoniza, em ponto algum, não digo já com a fuga para o Egito, mas ainda mesmo com a matan-ça dos inocentes, pois que, em tal caso, Herodes teria podido apoderar-se dele, sem tocar em um cabelo de nenhum outro me-nino.

de Lucas sobre o censo do Cirino, vid. Strauss, obr. Cit. II. 48.113 Mat. II, 13, 16.114 Lucas, II, 22, 39.

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A infância de Jesus é comple-tamente ignorada por Marcos e João, a quem só põem em cena aos trinta anos, fazendo-o, por assim dizer, cair do céu nas mar-gens do rio Jordão, onde recebe o batismo pelas mãos de João Batista. Mateus, depois de o fa-zer nascer milagrosamente, fugir para o Egito e regressar a Nazaré nunca mais fala dele, até á idade de trinta anos. Só Lucas fala da discussão que Jesus aos 12 anos de idade teve no Templo com os doutores da lei115. Lucas, narran-do este episódio cai em contradi-ção consigo mesmo, porque diz que os pais de Jesus, tendo-lhe perguntado quando o encontra-ram no Templo, por que os aban-donara, e ele lhes respondera que fora para ocupar-se das coi-sas de seu Pai, não o compreen-deram. É absurdo que os pais de Jesus não compreendessem a resposta, desde que, segundo o mesmo Lucas, Jesus tinha nasci-do milagrosamente como, tam-bém, pelo mesmo motivo, se não deviam inquietar com o extravio de Jesus.

Cingindo-nos agora aos três Evangelhos sinópticos, vemos que Jesus começa e continua a sua missão na Galileia, e só para a realizar, só para cumprir o ob-

115 Lucas, II, 41-50.

jetivo das suas pregações é que vai a Jerusalém, onde é quase in-teiramente desconhecido, a pon-to dos habitantes perguntarem uns aos outros quem ele era. Já o quarto Evangelho o faz viver quase só na Judeia mas ir várias vezes a Jerusalém, onde realiza os principais atos da sua vida.

Segundo João116, João Batista declara formalmente não conhe-cer Jesus quando este se lhe apresenta para receber o batis-mo. Mas segundo Lucas117, João Batista conhecia Jesus desde o ventre de sua mãe Isabel, onde saltou de prazer quando Maria a visitou. E, segundo Mateus118, tanto Batista conhecia Jesus quando o batizou, que até recu-sou fazê-1o, a princípio, cedendo apenas às repetidas instâncias de Jesus. Entretanto, Batista, que segundo todos os evangelistas, se dera a conhecer como precur-sor de Jesus, batizando-o com o concurso da pomba celestial e da voz do Eterno, reconhecendo-lhe explicitamente o caráter de Mes-sias119, não se faz cristão e conti-nua a pregar por conta própria. Depois, quando é preso e encar-cerado, envia da prisão a Jesus 116 João, I. 33.117 Lucas, I, 41-44.118 Mateus, III,14.119 Mat, III-13-17; Marc. I-7-11; Luc.III-16, 21, 22; João, I, 29-34.

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dois dos seus discípulos, encar-regando-os de lhe perguntarem: És tu, porventura, o que há de vir, ou temos ainda de esperar por outro?120. Jesus declara que João batista é o profeta Elias121, mas este mesmo João Batista de-clara que não é tal o profeta Eli-as122.

As tentações de Satanás con-tra Jesus não vêm mencionadas no quarto Evangelho, que as ex-cluiu sistematicamente, encade-ando os novos detalhes da vida de Jesus - desde o batismo até ao primeiro milagre - com as mais rigorosas indicações do tempo (ao segundo dia, ao terceiro dia, etc.) de modo que não passaria por alto os quarenta dias que ele permaneceu no deserto e as res-pectivas tentações. Igualmente João, que era o discípulo amado de Cristo e que, portanto, não podia ignorar os detalhes da vida dele, nada nos diz acerca das coisas praticadas pelo Mestre com os endemoninhados.

Demonstrado está assim que, excetuando o quarto evangelista os outros três se contradizem a cada a linha, quer relatando a história das tentações quer con-tando os exorcismos de Jesus.

120 Mat. X, 2-3.121 Mat. XI-14.122 João I-21.

Da citação dessas contradi-ções, como em geral de tudo o que se refere aos milagres, fare-mos graça para nossos leitores, por que não é necessária sequer para nossa demonstração.

Lucas faz-nos saber que os sa-maritanos acolheram Jesus com hostilidade e que João, que o acompanhava, vendo isto, se en-colerizou sobremaneira123. Por sua vez, o mesmo João, que esta-va com Jesus e que tanto se re-voltou com a ação dos samarita-nos, no seu Evangelho conta que quando Jesus passou por Sama-ria os samaritanos lhe fizeram uma excelente recepção, pedin-do-lhe que ficasse com eles e proclamando-o Salvador do Mundo124.

Sobre o episódio da mulher que unge Cristo, todos os evan-gelistas relatam o caso diversa-mente, sendo portanto, contradi-tórios125.

Quanto à ultima ceia, que constituiu um fato capitalíssimo para o cristianismo porque nela teria Jesus instituído o mistério da Eucaristia, nem mesmo aí os Evangelhos se harmonizam. Os três primeiros colocam a última

123 Lucas, IX-51-56124 João, IV-9, 39-42125 Mat. XXVI, 2-13 Marcos, XIV, 1-9; Luc. VII, 36-40; João XII, 1-8.

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ceia no dia de Páscoa126, enquan-to João a coloca antes da Pás-coa127. Além disso, os primeiros fazem Jesus instituir nesta ceia o mistério da Eucaristia128 ao passo que João, absorto pela ideia eu-carística (CapítuloVI) narra a úl-tima ceia com inúmeros porme-nores, mas sem dizer uma única palavra acerca dessa mesma ideia eucarística, sendo ele de resto, o único que teria valor tes-temunhal, pois assistiu a ela des-de o princípio.

Repitamos aqui, pois vale a pena, que essa contradição, na qual muita tinta tem sido gasta inutilmente pelos estudiosos, não pode ser explicada exceto pela nossa dedução na qual, Cristo sendo um mito, e exata-mente o mito do cordeiro pascal qui tollit peccata mundi é ele mesmo o alimento da ceia pas-cal.

Só que nos três Evangelhos Sinópticos, mais antropomórfi-cos, ele precisa dizê-lo explicita-mente, enquanto que no quarto, ao invés da instituição do sacra-mento ser feita pela boca do Ag-nus Dei, o mistério se cumpre

126 Mat. XXVI, 17-20; Marc, XIV, 12-8; Luc. XXII, 7-15.127 João XIII, 1.128 Matt. XXVI, 26-28; Marco XIV, 22-24; Luca XXII, 19-21.

pelo seu próprio sacrifício. Estas contradições dos Evan-

gelhos mais uma vez confirmam o nosso modo de ver, pois só considerando Cristo como um mito, precisamente o mito do Cordeiro Pascal, qui toilit peca-ta mundi, se pode resolver esta complicação.

Durante a última noite, passa-da no horto de Getsemani, Jesus afastou-se dos seus discípulos, a pouca distância, segundo os si-nópticos. Os discípulos dormi-am, Jesus levou consigo apenas Cefas e os dois filhos de Zebe-deu. Chegado ali, Cristo cai por terra, com o rosto unido ao chão, e assim ora por largo tempo, per-manecendo triste até à morte e conformando-se, enfim, com a vontade divina129.

Pela sua parte, o quarto evan-gelista, que deveria ser a teste-munha íntima desse episódio tão comovedor, nada diz a tal respei-to, apesar das minúcias com que relata os episódios dessa noite. Além disso, enquanto os três pri-meiros nos apresentam Jesus no Monte das Oliveiras, em estado de profundo abatimento, a ponto de suar sangue130, o quarto põe

129 Matt. XXVI, 36 ss.; Marco XIV, 32 ss.; Luca XII, 39 ss. 130 Matt. XXVI, 36-39; Marco XIV, 32-36; Luca XXII, 41-44.

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na boca de Jesus discursos chei-os de tranquilidade131; e ao passo que nos primeiros evangelistas o beijo de Judas denuncia Jesus aos seus inimigos,132 no quarto é o próprio Jesus que vai ao en-contro dos seus inimigos, com tranquilidade e segurança, dizen-do aos soldados que o rodeiam: Eu sou o Cristo133!

Passemos por alto as contradi-ções relativas à hora em que Je-sus foi julgado pelos sacerdotes na presença do povo, ao seu in-terrogatório, ao momento em que é maltratado e injuriado, ao episódio da devolução de Pilatos para Herodes só conhecida por Lucas, ao depoimento das teste-munhas, ao Cirineu, que João não cita, à beberagem dada a Je-sus, à altivez dos dois ladrões, à inscrição colocada na cruz (dife-rente em cada um dos quatro evangelistas), à exclamação e palavras ditas antes de morrer, ao golpe de lança no peito, à quebra das pernas, ao embalsa-mamento, à natureza do sepulcro e ao tempo em que esteve sepul-tado, contradições estas de deta-lhes, mas tão numerosas, que preciso se torna citá-las sumaria-

131 João, Cap. 14, 15, 16, 17 e 18. 132 Matt. XXVI, 47-50; Marco XIV, 43-46; Luca XXII, 47. 133 João, XVIII, 2-8.

mente. Repararemos apenas nas con-

tradições mais graves que acom-panharam a sua morte.

Segundo Mateus (XXVII, 45) Marcos (XV, 33) e Lucas (XXI-II, 44) desde a hora sexta até àquela em que, Jesus devia ter exalado o último suspiro, isto é, do meio dia às três da tarde, toda a terra se cobriu de trevas. Além disso, segundo Marcos (XV, 25) Jesus teria sido crucificado, à hora terceira do dia, ou fosse às nove.

Pelo seu lado, João (XIX, 14) diz que, à hora sexta, ou fosse ao meio dia, não só Jesus não esta-va ainda na cruz, mas nem mes-mo o tinham ainda condenado à morte. A essa hora, Pilatos mos-trava-o aos hebreus, dizendo: Eis aqui o vosso Rei.

Pois bem: se no dizer dos pri-meiros, desde o meio dia até às três, toda a terra se cobriu de tre-vas, ao passo que, segundo João, precisamente neste tempo, tive-ram lugar a saída para o Gólgota e a crucificação, devemos con-cluir que João faz desenrolar to-dos os sucessos na mais densa escuridão, circunstância esta que não o impede de ver tudo o que se vai passando, assim como su-cedia aos demais espectadores.

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As contradições, que se se-guem à ressurreição não nos prenderão muito a atenção, por-que saem do campo da razão para entrarem no do sobrenatu-ral, que é por outro lado, um dos critérios de condenação da vera-cidade da Bíblia.

Pelo contrário, interessam-nos sobremaneira as contradições que a mesma Bíblia põe na boca e no procedimento de Cristo, en-quanto fala e procede como ho-mem.

Na célebre sentença, em que glorifica a pobreza, Jesus fala, na opinião de Lucas, dos pobres, em sentido concreto, ou seja da-queles que sofrem materialmente fome e, sede134, ao passo que, se-gundo Mateus, falava indistinta-mente dos pobres de espírito e dos que têm fome e sede justi-ça135.

Quanto aos publicanos, Jesus os trata ora com afeto136, ora com ódio e desprezo137.

Acerca das boas obras, Cristo diz ao mesmo tempo que de-vem138 e não devem139 ser conhe-134 Lucas, VI, 20 ss. 135 Mateus, V, 3-10. 136 Matt. XVIII, 17. 137 Mat. IX, 10-12; XI, 19; Marcos II, 15-17; Lucas V, 29-31; VI, 34; XVIII, 9-14; XIX, 2-10.138 Matt. V, 16. 139 Matt. VII, 1, 2.

cidas pelos homens. Em conformidade com o pri-

meiro modo de ver, ordena ao endemoninhado de Gheraseni, curado por ele, que divulgue o milagre140 e de acordo com o se-gundo ponto de vista recusa ter-minantemente fazer milagres, in-sulta quem lhes pedem141 e orde-na àqueles a quem cura e aos que assistem, que não divulguem nada142 .

No que diz respeito ao uso da força física, da resistência, em suma, da violência, Cristo não só as recomenda como as pratica143, e ainda aconselha o seu empre-go144.

Quem não é por mim é contra mim, diz Cristo em Mateus145 e em Lucas146. Em Marcos, porém, diz: Quem não é contra nós, co-nosco está147. A contradição não pode ser mais grave.

Segundo Mateus148 Marcos149

140 Marco V, 19. 141 Matt. XIII, 28-41; XVI, 1-4;Marco VIII, 11-12; Luca, XXIII, 7-9.142 Matt. VIII, 2-4; IX, 27-30; XIII, 15; XVIII, 9; Marco I, 40-44; VIII, 22-26; IX, 8; Luca IX, 36.143 Lucas XXII, 36; João, II, 15. 144 Mat. V, 39; XXVI, 52. 145 Mateus XI, 30. 146 Lucas X, 23. 147 Marcos IX, 38, 39, 40. 148 Mateus V, 25; VIII, 49.149 Marcos I, 44.

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e Lucas150 Jesus ordena os sacri-fícios, mas em parte alguma da Bíblia se vê que ele tome parte em qualquer desses sacrifícios.

A principal, a mais irrespondí-vel das contradições, é a que se refere á missão de Cristo. Se-gundo Mateus151, Jesus diz que não veio para abolir a lei nem os profetas, e segundo Lucas152 diz que, tanto estes como aquela, ti-veram já o Seu tempo!

À vista de tão extraordinárias contradições, quem se atreverá a dizer que Cristo seja um perso-nagem histórico e real? Mesmo sem levar em conta o anterior-mente exposto?

Quem não vê aí a mão criado-ra das diversas escolas metafísi-cas e teológicas, denunciadas pela diversidade de planos e de doutrinas na composição de um mesmo mito?

150 Lucas V, 14. 151 Mateus, V, 17, 18, 19.152 Lucas, XVI, 16.

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CAPÍTULO VIABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO

Fiéis ao nosso propósito de não nos ocuparmos do elemento sobrenatural contido na Bíblia, não faremos caso dos muitos ab-surdos ali disseminados no que se refere a Cristo-Deus e tauma-turgo

Se quiséssemos sair do nosso tema, pouco nos custaria fazer ver o absurdo da religião cristã, examinada em seus delírios so-brenaturais.

Falta revelar o principal, onde se prova que esta religião é ex-clusivamente teológica e não obra de um homem histórico.

Eis as concepções fundamen-tais sobre as quais se funda o cristianismo: Um Deus proíbe ao primeiro casal humano que coma do fruto que lhes daria a conhecer o bem e o mal. Eles porém desobedecem e são casti-gados, embora nenhuma culpa tenham, visto que antes de co-merem esse fruto não sabiam distinguir entre o bem e o mal.

Contudo, Deus não só castiga os autores do fato, inocentes, como se vê, mas todos os seus descendentes, que em nada fo-ram participantes desse mesmo fato.

Para salvar a Humanidade dessa pretendida falta, Deus re-corre a outra vítima, sendo certo que, para isso, bastaria um ato simples da sua vontade. Esta ví-tima, também inocente, é o seu próprio Filho, o qual, se era Deus, não podia morrer, e se era homem, não podia ressuscitar.

Enfim, para cúmulo de imora-lidade, para que esse Deus fosse morto, faltava quem o matasse. Assim, obrigando um povo a um deicídio, Deus condena este povo à infâmia, tanto mais ime-recida, quanto era uma necessi-dade determinada pelo próprio Deus a fim de realizar o seu pla-no.

E toda esta série de imoralida-des para salvar, não a Humani-dade inteira, mas apenas aqueles que vierem ao mundo depois de Cristo, e ainda destes, só uma pequena parcela, pois que o mundo, passados vinte séculos, ainda é bem pouco cristão.

E mesmo dos que são cristãos, só se salva uma pequeníssima parte, aqueles predestinados por Deus, como se ouve todos os dias pela voz autorizada da Igre-ja.

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Isto tudo demonstra incontes-tavelmente que Cristo é, sim, uma invenção dos teólogos.

Queremos averiguar, serena e conscienciosamente, se existiu o homem chamado Cristo, e para isso, nos cingiremos à Bíblia apenas enquanto fala humana-mente, ou antes, naturalmente, pondo em destaque os absurdos acerca de Cristo-Homem, e ain-da dentre esses, analisaremos apenas os mais salientes.

Comecemos pela forma como os apóstolos seguem a Jesus, forma que é de todo o ponto, in-verossímil.

Segundo Mateus153 e Mar-cos154, quando Jesus convida aos que desde logo são seus discípu-los para que o sigam, estes aban-donam imediatamente o ofício e a família sem refletirem, sem lhe pedirem a menor explicação, sem saberem quem era Jesus, ig-norando enfim, o que viria a ser deles.

Aqui, a Bíblia quer evidente-mente revelar a importância da vocação, cuja explicação será muito teológica, mas tira ao fato toda a importância e verossimi-lhança humana.

Em Mateus, como vimos no

153 Mateus, IV, 18-22.154 Marcos, I, 16-20.

capítulo precedente, Jesus decla-ra que não veio para abolir a lei de Moisés, mas sim para cum-pri-la. Ora, que valor pôde ter semelhante declaração e, por conseguinte, toda a obra de Je-sus, se hoje é certo e sabido que os livros atribuídos a Moisés são apócrifos?

No capitulo XII de João, Jesus fala à multidão, que o recebe em triunfo, em gritos de Hosana, proclamando-o rei de Israel (V, 13), atestando que ressuscitou Lázaro (V, 17) e julgando-o filho de um anjo (V, 29). Pois bem: apesar do que essa multidão, num entusiasmo que tocava as raias da loucura fez, disse e viu, muito mais do que o suficiente não só para crer em Jesus mas também para se converter, ape-sar disso, o evangelista diz que essa multidão não só não se con-venceu (V, 37) como assim que o Mestre terminou de falar, foi embora se esconder. (V, 36).

Larroque, perante tamanho absurdo, diz que não se pode ex-plicar senão como uma distração do narrador. Esta é uma das pro-vas mais apreciadas do caráter simbólico e de nenhum modo histórico, que a própria Bíblia atribui a Cristo. Por isso, imedia-tamente depois, o Evangelista explica os motivos de tal estra-

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nheza, dizendo que esses fatos (V. 38) aconteceram para que se cumprisse a palavra do profeta Isaías, que dissera: Senhor, quem acreditou no que disse-mos? A quem foi revelado o bra-ço do Senhor? (V. 39) Por isso não podiam crer, porque outra vez dissera Isaías: (V. 40) Ce-gou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos e não enten-dam com o coração, e se con-vertam e eu os sare. (V. 41) Isto disse Isaías...

Tudo isto confirma que a Bí-blia faz proceder Jesus só para cumprir o prescrito no Antigo Testamento. Ora, deste modo, que ninguém me venha com afir-mação de que os livros bíblicos são narrações históricas.

Segundo Mateus155 quando Je-sus entrou em Jerusalém, a mul-tidão procedeu como se o conhe-cesse e venerou-o como se tra-tasse-se de um grande persona-gem, correndo ao seu encontro, festejando-o, adornando as ruas com bandeiras e palmas e excla-mando: Hosana ao filho de Davi! Bendito seja o que vem em nome do Senhor! E aos que perguntavam quem era, respon-dia a multidão: Este é Jesus, o Profeta de Nazaré, de Galileia. 155 Mateus, XXI-8, 11.

E foi assim que ele pôde reali-zar, sem que ninguém o estor-vasse, a façanha da expulsão dos vendilhões do templo.

Pois bem: segundo Mateus e os outros evangelistas sinópti-cos, Jerusalém não conhecia ainda então Jesus. Será preciso repetir aqui novamente, que esta contradição absurda não se ex-plica senão recorrendo à necessi-dade de cumprir-se uma profecia (neste caso, a de Zacarias) que impunha ao evangelista a obriga-ção de dizer que Jesus fora aco-lhido pelos habitantes de Jerusa-lém com extraordinárias mani-festações de alegria, sem reparar que isto comprometia ou invali-dava a sua narração? Será preci-so concluir, de novo, que é aber-tamente simbólico o sentido da narração bíblica?

Segundo os quatro evangelis-tas, da prisão de Jesus à sua res-surreição, compreendendo neste espaço de tempo o processo e a devolução de Herodes a Pilatos, a saída para o Calvário, a cruci-ficação, a morte, o enterro e o tempo que permaneceu sepulta-do (três dias, embora incomple-tos) não se passaram mais que três dias incompletos!

É isto possível? Respondam os que tenham um pouco de bom senso.

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A parte da Bíblia referente a Pilatos é simplesmente impossí-vel e inexplicável, a não ser que se admita a nossa tese. Pilatos estava convencido da inocência de Jesus e até intentou salvá-lo156, apesar de abandoná-lo aos judeus, depois de consentir os ultrajes dos soldados no Pretório e de o haver preterido a um pri-sioneiro da pior fama.

Como explicar uma tão grave incoerência ?

João faz supor que Pilatos te-meu um castigo de César por não ter condenado à morte quem, proclamando-se Rei dos Judeus, devia necessariamente passar por sedicioso. Mas, neste caso, não se explicaria a sua consideração por Jesus, tanto mais que era um governador pre-varicador e tirano, segundo o testemunho do contemporâneo Fílon. Outros supõem que esta narrativa fora inventada quando o cristianismo se infiltrava no mundo romano, pela necessida-de de agradar a Pilatos e de lan-çar sobre os Judeus toda a res-ponsabilidade da parte odiosa da lenda.

Mas, se por um lado, a res-ponsabilidade dos judeus estava predestinada pelo profetismo, por outro não se pode explicar a 156 Luc. XXIII; João, XIX.

atribuída a Pilatos pela Bíblia, senão recorrendo á invenção da morte de Jesus. Só assim o ab-surdo em questão se explica sa-tisfatória e racionalmente, pois para condenar e crucificar publi-camente a Jesus era preciso a aquiescência de uma autoridade competente.

Mas, como atribuir a este ma-gistrado a responsabilidade pela condenação de um inocente? Daí a necessidade, para os evangelis-tas, de não fazer depender direta-mente de Pilatos a responsabili-dade de um ato odioso, que sem ele, não poderia acontecer

Haveria nos Evangelhos ab-surdos que seriam imorais, ou se querem, imoralidades que seriam absurdas, porque ofuscam e mancham sem necessidade o ca-ráter de Cristo, se não fosse evi-dente a sua razão de ser e a sua origem simbólica e mitológica. Citemos, por exemplo, o conse-lho dado por Jesus aos seus companheiros para que fugissem ante os seus inimigos (Mateus, XXIV, 16, 17 Lucas, XXI, 20), no que ele imita a Jeremias. A ordem, dada por Jesus aos seus apóstolos para que não saúdem a ninguém quando viajar (Lucas, X, 4) é copiada, grosseiramente da que Eliseu deu ao seu servo, por determinados motivos que

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não existiam aqui. E o conselho, consignado no capítulo XIV de Lucas, dado por Jesus aos co-mensais para que não se colo-quem nos primeiros lugares a fim de que o dono da casa os não faça passar aos últimos, e para que, pelo contrário, se colo-quem nestes, a fim de que aquele os brinde com os primeiros são lições de hipocrisia e de orgulho citadas para dar cumprimento a esta máxima do Antigo Testa-mento: Aquele, que se exalta será humilhado e o que se humi-lha será exaltado. (Job, 22, 29; Sal. 18, 27; Prov. 29, 23; 35, 67).

Cristo falava em parábolas, para que não o entendessem os que o ouviam, dirigindo-as não só aos inimigos e aos predestina-dos, mas também, e em mais de uma ocasião, aos seus discípu-los157. Este seria o maior absur-do, porque os mais instruídos fi-cariam desorientados, incapazes de compreender a razão porque se expressava de tal modo, se não lhe explicassem os próprios evangelistas, advertindo que Cristo o fazia para cumprir a profecia de Isaías, segundo a qual ouviriam e não entenderi-am, olhariam e não veriam158.

Isto explica realmente o senti-

157 Marco IV, 13, 18; VIII, 17, 18.158 Marco IV, 13, 18; VIII, 17, 18.

do simbólico dos processos de Cristo, dignos de um desequili-brado, mas por outro lado, de-monstra a Bíblia que Cristo não é pessoa real que procedesse na-turalmente; pelo contrário, é um ser fantástico, um verdadeiro fantoche que se move só quando e como o controlador quer.

Não se diga, por favor, que faltamos ao respeito a um objeto de grande veneração, pois mui-tas outras palavras bem mais du-ras teremos de empregar para definir semelhante maneira de proceder, zombando do mundo, se não fosse por nossa interpre-tação simbólica e mitológica que desculpa de tais ações o objeto da adoração dos cristãos, de-monstrando que não foram co-metidas por ele, que nunca exis-tiu, mas inventadas por aqueles que o criaram, impelidos pela necessidade de cumprir um pla-no teológico.

No versículo 35 do capítulo XXIII de Mateus, Jesus censura os hebreus por terem derramado o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem mataram en-tre o templo e o altar: a crítica demonstrou que não existiu qualquer personagem com tal nome e em tais circunstâncias. Só existiu um Zacarias, filho de Baruch, que se encontrava em

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idênticas circunstâncias ao cita-do por Jesus, menos a diferença do nome do pai, que é Baruch em lugar de Baraquias, diferença de resto fácil de explicar.

Mas o caso é que o assassina-to deste Zacarias foi cometido no ano 67 da nossa era, segundo o historiador Josefo, isto é, mui-to tempo depois da época em que os cristãos colocam Jesus.

De sorte que, ou este falou por falar ou se referiu, como tendo-se já realizado, a um sucesso que deveria ocorrer muito tempo de-pois dele. O primeiro termo do dilema resolve já a questão, e o segundo demonstra que os Evan-gelhos foram escritos muito tem-po depois da época assinalada a Cristo, e que os seus autores não foram muito escrupulosos em respeitar a verdade histórica, an-tes muito pelo contrário, criaram o mito, pondo-lhe na boca pala-vras absurdas, sem se darem conta do que estas deveriam, numa época de menos credulida-de, denunciar as suas imposturas e invenções.

Uma das figuras bíblicas que demonstra a inconsistência his-tórica da narrativa é a de Nico-demos. Este rico fariseu, mem-bro do Sinédrio, descrito pela Bíblia como pessoa de bons cos-tumes e boa fé, que vai procurar

Jesus de noite159, que tem com ele uma entrevista, que mais tar-de defende Cristo das acusações dos seus correligionários160 e que, morto Cristo, praticou pie-dosas curas sobre o cadáver do mestre161, este Nicodemos não se fez cristão.

De modo que se torna a dar o caso de João Batista (que tam-bém não se fez cristão).

Mas, o golpe de misericórdia na própria Bíblia, para literal-mente destruir, aniquilar e dissi-par em absoluto a pretendida existência de Cristo é dado - quem o diria! - por dois dos seus discípulos: Apolo e S. Paulo.

Apolo! Quem é este Apolo? – indagaria Dom Abbondio (perso-nagem do romance Os Noivos, de Alessandro Manzoni) - que não figura no número dos após-tolos?

A própria Bíblia o vai dizer. Leiamos pois o capítulo XVIII dos Atos dos Apóstolos:

- 24. E veio a Éfeso um Ju-deu de nome Apolo, natural de Alexandria, homem eloquente e muito douto nas Escrituras.

- 25. Era instruído no cami-nho do Senhor, falava com fer-

159 João III,1.160 João VII, 50 ss.161 João XIX, 39.

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vor de espírito e ensinava com diligência sobre Jesus, tendo so-mente conhecimento do batismo de João.

- 28. Porque, com grande veemência, convencia publica-mente os judeus, mostrando-lhes, pelas Escrituras, que Jesus era o Cristo.

Não é estranho que um judeu falasse para converter os outros ao cristianismo, enquanto pela sua parte, se conservava judeu?

E, como se isto ainda fosse pouco, a Epístola I aos Coríntios diz-nos que este Apolo era igua-lado a ninguém menos do que a Cristo.162.

Vejamos S. Paulo. Este após-tolo, próximo já do final da sua carreira, depois de ter exercitado o seu apostolado Cristão, com-parece perante o rei Agripa, de-clara-se Fariseu e sustenta que a seita dos Fariseus é a mais seve-ra do que a sua religião163.

Por consequência, S. Paulo não fala de Cristo como de uma personalidade histórica, mas como de uma tese teológica164. Para ele, Jesus é um ser misteri-oso, sem pai, sem mãe, sem ge-nealogia, que se mostra aos ho-162 Epístola I aos Coríntios, I, 12; III,4 - 5 .163 Atos, XXVI, 5164 Dide, op.cit., p. 93.

mens como encarnação de uma divindade, para cumprir um grande sacrifício expiatório.

Mas, como se realizou esta encarnação? O apóstolo não o diz. Não fala nunca dos parentes de Jesus, nem sequer de Maria. Não nos diz quando veio ao mundo, o que fez e como o fez, quando e como foi crucifica-do165...

Mas, há mais. Segundo os Atos dos Apóstolos (XXXVIII, 15 e ss.), quando Paulo e os seus companheiros chegaram a Paz-zuoli tiveram uma boa acolhida da parte dos seus irmãos ali esta-belecidos, saindo muitos outros a recebê-los em todo o percurso, de Pazzuoli a Roma. Chegado a esta capital, Paulo convocou os principais judeus que lá viviam, para, diante deles, se justificar da acusação que lhe faziam, de ter ofendido em Jerusalém o povo e os ritos dos padres.

E, na Epístola aos Romanos (1-8), Paulo escreve que a fé dos cristãos de Roma tinha adquirido grande fama em todo o mundo, e promete encerrar-se em seu seio depois de cumprida a sua missão de ir a Espanha saudar um gran-de número de filiados.

Como explicar-se o fato da-

165 Peyrat, op. cit., p. 338. 90

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queles hebreus da Itália, tão ínti-mos de Paulo - fato relativo às justificações da sua própria fé hebraica - e a crença do mesmo apóstolo acerca da sua obrigação de se justificar perante eles?

E como explicar o fato inegá-vel segundo o próprio Paulo, da difusão do cristianismo por todo o mundo, cuja pregação Paulo apenas começava agora?

Evidentemente, não há expli-cação possível, a não ser que ad-mitamos que a narrativa dos Atos dos Apóstolos e da Epístola aos Romanos é uma fábula, ou que os cristãos existiam já muito antes da época assinalada a Cris-to. Ou seja: que o cristianismo já era um fato muito tempo antes de Cristo, sem necessidade dele.

A primeira hipótese não será admitida pelos cristãos. Por isso, deverão admitir forçosamente a segunda, como nós a aceitamos, porque concorre para demonstrar a nossa tese adaptando-se perfei-tamente aos resultados da crítica, como já vimos em Eusébio, que admite serem cristãos os tera-peutas do Egito de que Fílon já tinha falado, e como vimos em Tácito, que faz dos hebreus e dos egípcios uma única supersti-ção, e como veremos ainda ao ocuparmo-nos das doutrinas de

Fílon, dos Essênios e dos Tera-peutas.

Naturalmente, só nos baseare-mos nestas incongruências da Bíblia em razão da sua flagrante evidência para deduzirmos uma conclusão forçosa, de maior im-portância do que a que os textos consentem.

Por outras palavras: estes ab-surdos, inconcebíveis em um li-vro que se propõe proclamar a existência de Cristo bastam só por si, para nos persuadirem do contrário.

Estes fatos adquirem um valor excepcional porque provam o contrário do que a Bíblia se propõe a provar, ou pelo menos, invalidam o que ela pretende fa-zer crer, sem que possam passar por exceções, pois originam-se da própria Bíblia e nela se apoi-am.

Isolados, estes fatos talvez tenham pouca credibilidade, mas, no entanto, não podem ser ignorados diante do acúmulo de outros elementos de prova que temos e daqueles que ainda aduziremos contra a existência de Cristo.

Como se vê, a mesma Bíblia, proporciona ajuda e apôio à nossa demonstração.

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CAPÍTULO VIIA MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM

HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA

A Bíblia fornece-nos uma pro-va ainda maior que todas as adu-zidas até agora contra a existên-cia de Cristo. Esta prova está precisamente na sua moral. Essa moral, que os apologistas ergue-ram até aos céus e agora a crítica vai ponto a ponto destruindo, ao desfazer as ilusões criadas em torno da lenda e da idealidade humana - essa moral é a prova mais firme e segura de que Cris-to não existiu, porque a moral que os Evangelhos lhe atribuem não pode ser obra de um ho-mem, mas apenas a de uma teo-logia determinada, porque é ex-cessivamente sectária e irrealizá-vel para que pudesse ser ensina-da e praticada por um homem. É completamente oposta às preo-cupações teológicas e metafísi-cas de uma seita.

Há, por certo, máximas real-mente morais o boas nos Evan-gelhos, mas que não podem en-tusiasmar um espírito positivo, por místico que seja, se bem que esta parte boa da moral cristã, sem a qual o cristianismo não te-ria podido desenvolver-se não é cristã - como mais adiante vere-mos.

As máximas - não faças a ou-trem o que não queres que te fa-çam e faze aos outros o que de-sejas que te façam - não são uma criação de Cristo ou dos Evange-lhos porque preexistiam já no Antigo Testamento, onde esta-vam desde a moral metafísica das religiões orientais, principal-mente da búdica e da zêndica ou persa.

Suprimindo todas estas máxi-mas que não pertencem ao cristi-anismo e são, além disso, prova contrária à existência de Cristo, o resto da moral evangélica é condenável sem remissão, e se-ria bastante para execrar o ho-mem que a criasse, se fosse obra de um só homem. E vemos a Humanidade, que cresceu nas doces ilusões de que o Cristo fora a personificação de todas as perfeições humanas, concentran-do nele toda a idealidade...

A Humanidade, tornada adul-ta, deve reconhecer que, na sua adolescência, foi vítima de uma enorme mistificação.

Os que neste ponto se encon-tram da verdade verão porque motivo determinados cristãos da

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nossa época, como Tolstoi e cer-tos reformadores alucinados pela lenda, julgando-se talvez conti-nuadores de Cristo se regozijam em manter as antigas ilusões, opostas a toda a evidência, a todo o conhecimento sereno e crítico do assunto.

Um dos fenômenos mais ex-traordinários da nossa época, rico de ensinamento é o fato de apelarem para Cristo, tanto os revolucionários como os déspo-tas. E têm razão uns e outros.

Algumas vezes, Cristo prega a resignação. São Paulo chega a proibir que se reclame e faça justiça (I-Cor. VI-7) e declara que, emanando de Deus todo o poder, serão por ele condenados todos os que oponham resistên-cia (Rom. XIII, 1-2). Isto é para os déspotas.

Para os revolucionários e para os próprios anarquistas, Cristo não só exalta a pobreza, mas até considera o governo como um abuso, e todo o magistrado como um natural inimigo dos homens e de Deus (Mat. X, 17 e 18 Lu-cas XIII, 11).

Não é porventura, edificante essa duplicidade do cristianis-mo? Não serão ingênuos os que baseiam as suas esperanças e os seus privilégios numa moral tão absolutamente contraditória?

Não se verá que semelhante mo-ral não pode ser obra de um só homem ?

Mas, nem as classes dominan-tes, nem a casta sacerdotal, que além da ilusão, tem interesse em perpetuar a mistificação de 2 mil anos - nem elas sequer poderiam impedir que a luz da razão ofus-que a moral evangélica...

Poucos séculos há que esta luz começou a brotar das inteligên-cias e, a não ser pelo receio que há em dizer à Humanidade ver-dades tão amargas, de a privar tão bruscamente de uma ilusão que, por isso constitui uma gran-de força moral - na hora presente a crítica já teria, não só arrojado dos altares este último ídolo, mas até o teria já precipitado na Geena.

O que, porém, até hoje se não fez, faz-se, deve fazer-se agora, porque a Verdade não reconhece compromissos nem fraquezas humanas e porque a lógica não se sente satisfeita se não chega até as últimas consequências. A ciência, de resto, não tem que se preocupar com consequências.

Pois bem: enquanto a crítica trabalhe na demolição do ídolo cristão e das ilusões de uma mo-ral superior, que o torna respeitá-vel mesmo a alguns incrédulos, e enquanto destrua o velho erro

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de acreditar na existência de Cristo, mudando em execração a veneração, tantas vezes secular, da Humanidade, por este ideal de perfeição por ela mesma cria-do - nós, pelo contrário, poupe-mos à Humanidade a dor de lhe destruirmos o objeto da sua mai-or veneração, demonstrando-lhe que os defeitos da moral cristã não são imputados àquele Cristo, que nunca existiu, mas sim à te-ologia que o criou.

E entenda-se bem que, em nós não influem preocupações de ne-nhuma índole estranha à verda-de: nem a finalista daquele que crê, nem a utilitária do nosso sis-tema.

Nada diremos da primeira, porque não nos compete, e acer-ca da segunda, advertiremos que queremos aproveitar para a nos-sa tese os defeitos desumanos da moral cristã que entram a fazer parte do nosso quadro, atraídos pela força irresistível da Verda-de.

Os defeitos da moral cristã são tão evidentes que muitos ca-tólicos eruditos, não podendo negá-los e não querendo decidir-se a abandonar a fé, colocam-nos entre as provas da divindade desta religião, raciocinando como o hebreu Abraão que, ten-do visto em Roma as torpezas da

corte pontifícia se fez cristão di-zendo que se esta religião pôde triunfar e subsistir, apesar de tanta corrupção é porque tinha a proteção do céu.

Citemos, como exemplo, Ni-colau Tomásio, que disse: Solda-dos pagãos, contratistas gerais, mulheres a quem o mundo cha-ma perdidas, um homem que mente e atraiçoa o seu amigo, outro que protege os que se de-dicam a lapidar inocentes. Eis os eleitos de Cristo! Esses que-rem que a história dos seus pro-dígios e das suas virtudes regis-tre entre os antepassados do Salvador do mundo um fornica-dor, uma meretriz, uma adúltera, um rei traidor e homicida. Estes pensamentos humilham o espíri-to mas abrem o coração à seve-ridade para nós mesmos e à ca-ridade para com o próximo166.

Se os Evangelhos abundam em máximas desumanas, tantas e de tal calibre que, um homem real desta terra não teria ousado concebê-las e muito menos pre-gá-las sem ir para um manicô-mio ou cárcere, não é evidente que tal circunstância depõe con-tra o caráter histórico daquele homem e a favor da sua criação puramente mitológica, simbólica

166 Nicolau Tomásio Roma e o Mundo, seç. V, cap. XVI.

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e sobretudo teológica? Especial-mente se essa circunstância entra coerentemente num processo de provas análogas que se confir-mam umas às outras?

Vamos, porém a fatos, para nós mais eloquentes.

A moral evangélica, tiradas al-gumas máximas boas que não são suas pode dividir-se em duas grandes categorias: a das máxi-mas irrealizáveis ou desuma-nas e a das máximas sectárias. E não se diga que tais máximas sejam puramente virtuais, por-que tanto as humanas são sectá-rias, como as sectárias são desu-manas, pois umas e outras têm por fundamento comum o cará-ter teológico, que denuncia a sua origem impessoal e a sua forma-ção sistemática e eclesiástica.

Comecemos pelas máximas irrealizáveis ou desumanas

Em Mateus167 Cristo discorre deste modo: Não julgueis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas sim a es-pada. Vim trazer a discórdia do filho contra o pai, da filha con-tra a mãe, da nora contra a so-gra. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, e quem ama seu filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim.

167 Mateus, X, 34-37.

Em Lucas168 exprime-se as-sim: se alguém vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus ir-mãos e irmãos e até a sua pró-pria vida, não pode ser meu dis-cípulo.

Em Mateus169 (VIII, 21-22) a alguém que lhe pedira autoriza-ção para sepultar seu pai Jesus diz-lhe: Segue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortos.

Em Lucas170 lê-se - Eis aqui um que diz: Seguir-te-ei, senhor, mas primeiro, deixa-me ir dispôr do que tenho em minha casa.- Jesus lhe disse: Quem põe a mão no arado e olha para trás, não é digno do reino de Deus.

Em Mateus171 Jesus aconselha os seus discípulos a praticarem a castração voluntária, para que se façam dignos do reino dos céus.

Quem não odeia a sua pró-pria vida, não pode salvar-se, diz Jesus em Lucas172.

E em João173: Quem amar a sua vida, perde-la-á, e quem a odiar neste mundo, conserva-la-á na vida eterna.

Jesus aconselha também a que 168 Lucas, XIV, 26. 169 Mateus, VIII, 21-22.170 Lucas, IX, 61- 62.171 Mateus, XIX, 12.172 Lucas, XIV, 26.173 João, XII, 25.

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não trabalhem; a que se não pre-ocupem com a comida, com a bebida, com os vestuários; a que não pensem no dia de amanhã: que imitem as aves do céu, que não trabalham e os lírios do campo, que não se cansam nem fiam174. Prefere Maria, que troca os labores domésticos pelo asce-tismo, a Marta que por si só, há de realizar todos os trabalhos da casa175.

Quer que o homem viva na mais absoluta pobreza, na indi-gência mais miserável: Em Lu-cas,176 diz ele: Nenhum de vós que não renuncie a quanto tenha pode ser meu discípulo.

A própria dignidade humana não lhe merece a mais insignifi-cante consideração. Em Ma-teus177 ele diz: Não resistas ao mal. E se alguém te ferir na face direita, apresenta-lhe a outra. E aquele que quiser demandar-te em juízo e tirar-te a túnica, dei-xa-lhe também a capa. E ao que te obrigar a ir carregando mil passos, vai com ele outros dois mil a mais.

Não é mister grande engenho nem muita eloquência para pro-var que esta moral não é realizá-

174 Mateus, VI, 24-34.175 Lucas, X, 39-42.176 Lucas, XIV, 33.177 Mateus, V, 39 - 4.

vel, por desumana, isto é por contrária às leis biológicas e so-ciológicas, incompatível com a conservação e progresso da es-pécie humana. Basta expô-la que por si própria se condena.

Passemos agora às máximas sectárias da moral evangélica.

O amor pregado pelos Evan-gelhos não se dirige a todos os homens, mas apenas aos he-breus. Jesus ordena aos seus dis-cípulos que preguem o seu Ver-bo unicamente aos hebreus, e proíbe-os de entrarem na cidade dos gentios e dos samaritanos178. Diz que os doze apóstolos se sentarão em doze tronos para julgarem as doze tribos de Isra-el179. Portanto, a sua missão limi-ta-se única e exclusivamente aos hebreus: é um mesquinho nacio-nalista!

Tanto assim é, que ele próprio responde à Cananeia, que lhe pe-dia a cura de sua filha: que fora enviado só para Israel. Acrescen-tando não ser justo tirar o pão aos filhos para o deitar aos cães180. E, quando em João181 pronuncia a sua última prece, de-clara que pede só pelos que nele creem.

178 Mateus, X, 5-7.179 Mateus, XIX-28.180 Mateus, XV, 22- 26.181 João, XVII, 9-20.

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Mais imoral e não menos sec-tário ainda é o dogma da predes-tinação. Ninguém pode vir a mim - diz Cristo - se o Pai, que me enviou, não o trouxer182. Por isso, declara que adotará a pará-bola com os que não forem seus discípulos, para que não com-preendam as suas palavras e não possam se salvar183.

Este dogma imoral, ou sectá-rio, se assim querem, foi posto de propósito na parábola do dono de casa, que representa Deus, o qual chama, ele, próprio, a diversas horas os operários da sua vinha, pagando-lhes depois a todos por igual. E aos que censu-ram a sua parcialidade, respon-de, em Mateus:184 Não terei eu direito de fazer do que é meu o que entender? Os últimos serão os primeiros e os primeiros os últimos; por isso, muitos serão os chamados e poucos os elei-tos.

E sempre, deste modo, e se-gundo esta preocupação teológi-ca, ensina que todo aquele que se exalta será humilhado e o que se humilha será exaltado185; que àquele que tem ser-lhe-á dado e terá em abundância, e àquele

182 João, VI, 44.183 Lucas, VIII, 10.184 Mateus, XX, 1-6.185 Lucas, XIV, 11.

que não tem, até o que não tem lhe será tirado186 que mandou ceifar os que não lavraram, fa-zendo-lhes desfrutar do que ou-tros lavraram187; que dos pobres será o reino dos céus, sem outro mérito mais do que a sua pobre-za, ainda que sejam vagabundos; que os ricos serão castigados, só por suas riquezas, embora sejam bons188. A mesma inspiração é reconhecida pelas parábolas do convidado castigado sem cul-pa189 e do filho pródigo190. O dogma da predestinação encon-tra-se, pois, na Bíblia, erigido em verdadeira doutrina de S. Paulo191 e se constitui num retro-cesso em relação ao politeísmo greco-romano, que punha a justi-ça e a Humanidade acima dos próprios deuses, quando eles não respeitavam as leis da natureza e da consciência.

O caráter, a origem, o próprio fim teológico da moral evangéli-ca estão comprometidos pela cir-

186 Mateus, XIII, 12; Marcos IV, 25; Lu-cas VIII, 18. 187 João, IV, 38.188 Lucas VI, 20; XVIII, 25; Mateus, XIX, 24, 25 e 26; Marcos X, 25. 189 Mateus, XXII, 8-13. 190 Lucas, XV.191 Gal. II, 16-21; III, 10-25; I Tim. I, 9; Rom. III, 14-16; VIII, 29-30; IX, 11-12, 47 ss.; XI, 6; Ef. II, 5, 8, 9; II Cor. IV, 3, 4; II Tes. II, 10-12; I Tim. II, 25; I, 9; Filip . II, 13.

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cunstância desta moral se basear, não nas boas obras, mas exclusi-vamente na crença e no culto.

Ensinava Cristo, além disso, que: Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado192.

Esta máxima está em relação com a outra, onde Jesus diz aos discípulos que os que não escu-tarem suas palavras serão trata-dos no Dia de Juízo mais seve-ramente do que os habitantes de Sodoma e Gomorra193.

Donde se deduz que, para a moral evangélica, são preferíveis os delinquentes vulgares, con-tanto que sejam crentes, aos in-crédulos, ainda que sejam honra-dos.

Esta moral só pode ser teoló-gica. Está relacionada com a moral de todo o Antigo Testa-mento, que como já demonstra-mos, é obra quase exclusivamen-

192 Marcos, XVI, 16. Em outros lugares Cristo prega a moral independente do culto. Esta é outra das inúmeras contra-dições irreconciliáveis, que provam que ele não é pessoa real, mas um objeto de especulações da mais disparatada das escolas teológicas. Veremos ainda, no tempo oportuno, que Cristo ou melhor, o Evangelho, não era original, uma vez que essa doutrina era proveniente do profetismo.193 Mateu, X, 13-15; Marcos, VI, 8; Lu-cas, IX, 3.

te teológica194 e em, muitos luga-res cita a máxima referida, trans-tornando toda a ordem moral e baseando esta nas práticas do culto e nas crenças.

Muitos são os exemplos do Antigo Testamento que podemos aduzir. Limitar-nos-emos a citar a instituição do bode expiatório (Levítico, XVI) e a da água de purificação.

Em geral, todo o espírito, que anima a Bíblia, se baseia na mo-ral religiosa. A Bíblia não mede o mérito ou demérito das pesso-as, sob o ponto de vista das boas ou más ações, mas apenas se-gundo a sua devoção.

Aqui temos, entre muitos ou-tros, o exemplo de Achab. Nos capítulos que lhe são consagra-dos no Antigo Testamento, este rei de Israel é acusado de ímpio e tratado com a maior aspereza, apesar de não ter cometido as iniquidades de Davi e de Salo-mão, tão injustamente exaltadas pela Bíblia. Pelo contrário, Achab é um bom rei, humanitá-rio, generoso, magnânimo. Mas poupou a vida ao rei da Síria, Benadad, que não acreditava no Deus da Bíblia, e por isso con-quistou o ódio da casta sacerdo-tal.

194 Vernès, op. cit.98

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Temos porém, Davi e Salo-mão que cometeram toda a espé-cie de iniquidades, mas favore-ceram a casta sacerdotal: logo a Bíblia os elevou até às nuvens.

Mais ainda: Ehu, o infame Ehu, era dado à leitura dos sa-cerdotes. Bastou isso para que a Bíblia o enaltecesse.

Veremos ainda mais tarde, dois imperadores, Juliano e Constantino: o primeiro foi um modelo de virtudes, mas nada quis com o cristianismo. Foi o bastante para passar à história com um nome infamante. O se-gundo, que foi um miserável, as-sassinando a própria família, é enaltecido pela Igreja, só por tê-la favorecido.

Mas o coroamento deste siste-ma é a eternidade das penas pre-gada pelo manso cordeiro de Na-zaré (Mateus, XXV, 41-46; XVI-II, 8) e o aturar ao inimigo nesta vida: não vos vingueis do vosso inimigo, mas dai lugar à ira; porque, fazendo isto, amontoa-rás brasas vivas sobre a sua ca-beça. (Epístola aos Romanos XII, 20).

Mas onde sobretudo se mani-festa o caráter sectário, teológico e verdadeiramente sacerdotal da moral evangélica é na instigação às perseguições religiosas. Não só com o famoso compelle in-

trare, Cristo, ou antes, os que es-creveram com a máscara do seu nome, proclamaram a legitimi-dade da perseguição religiosa195.

Até os Evangelhos propria-mente ditos são a pura expressão da evidência absoluta em prol desta perseguição. No capítulo XIX de Lucas, versículo 27, Je-sus põe na boca de um dos per-sonagens das suas parábolas, que é ele próprio, as seguintes pala-vras: E quanto àqueles meus ini-migos que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e tira-lhes a vida na minha presença.

Segundo Mateus196 e Lucas197, Jesus disse que todos os que não estavam com ele, estavam contra ele, palavras estas que querem significar, necessariamente, que o cristão deve ter por inimigo aquele que não é cristão.

No capítulo VII de Mateus, Jesus adverte os seus discípulos de que se guardem dos falsos profetas, que são semelhantes às arvores que dão maus. Frutos. E acrescenta que toda a árvore que não der bom fruto, deve ser cor-tada e arremessada ao fogo198.

No capítulo XV de João, Jesus 195 Lucas, XIV, 16-24.196 Mateus, XII, 30. 197 Lucas, XI-23.198 Mateus, 15-19

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diz, textualmente: Eu sou a ver-dadeira videira, e meu pai é o lavrador. Toda a vara que não der fruto em mim, ele a tirará.. . Eu sou a videira, vós outros as varas. O que não permanecer em mim, será arremessado fora, como a vara; e secará, e será enfeixado e atirado ao fogo, e arderá.

S. Paulo, repetindo a doutrina dos provérbios (XXIV, 17, 18; XXV 21-22) aconselha que se dê de comer ao inimigo que tenha fome e de beber ao que tenha sede, para amontoar sobre a sua cabeça carvões acesos, isto é, para que Deus o possa castigar infinitamente199. (Epístola aos Romanos XII, 20).

As máximas da moral evangé-lica explicam-se perfeitamente sob o ponto de vista teológico, isto é, da intolerância irmanada com o preconceito religioso. A Igreja Católica encoleriza-se contra os que lhe recriminam as suas perseguições religiosas e autos de fé, porque o fundamen-to destes encontra-se na própria moral evangélica. É na Bíblia que se encontram as primeiras execuções e apologias da into-lerância, com o auto de fé reali-zado por S. Paulo em Éfeso, onde queimou, grande numero 199 Epístola aos Romanos XII, 20.

de livros, cujo valor, segundo os Atos dos Apóstolos, se elevava a 50000 dinheiros de prata200. E o apóstolo João testemunha que o que se revolta e não permanece na doutrina de Cristo não pos-sui a Deus, e quem o não segue, não deve ser recebido em casa e nem sequer saudado201.

Por fim, é ainda o mesmo Cristo dos Evangelhos que leva a cabo a instituição da excomu-nhão, colocando entre o número de adversários da igreja aqueles que com ela não se confor-mam202. Aqui, Jesus, falando da Igreja, delata a fábula, porque a Igreja não podia ainda existir no seu tempo, pois que só devia ter vindo depois dele e por ele. Da-qui se depreende que os Evange-lhos foram escritos quando a Igreja estava já constituída, pon-do-se na boca de Jesus o que ele não pudera ter o dito, inventan-do-se, por isso, sem o menor es-crúpulo.

Em tese geral, pode afirmar-se que o Antigo Testamento não é mais do que a escola das perse-guições religiosas. Citemos, como exemplo, as perseguições seguintes Moisés faz exterminar por ordem de Deus 24.000 israe-

200 Atos, XIX, 19201 João, II, Ep. 9, 10, 11.202 Mateus, XVIII, 17.

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litas, que tinham sacrificado pe-rante o Deus Baalpeor, e ordena a carnificina de todos os moabi-tas, incluindo mulheres e crian-ças, só porque tinham induzido os israelitas à apostasia.

Bastava o fato de alguém ex-citar a que se adorassem deuses estranhos para ser castigado com a morte. E o excitador devia ser morto, precisamente, por seu pai, por seu irmão, por sua espo-sa ou por um seu amigo.

O livro dos Judeus não é mais do que uma alternativa perpétua de apostasias por parte dos he-breus e de horríveis castigos por parte do Deus bíblico.

Elias manda exterminar 850 profetas de Baal. O profeta Eli-seu ordena atrozes perseguições religiosas. Josias é bom visto por Deus, em razão das suas perse-guições ferozes contra os outros cultos.

Nos Salmos, as perseguições religiosas são exaltadas, invoca-das e abençoadas por Deus. Jere-mias pede o extermínio dos infi-éis. Outro tanto se lê em Isaías. O Eclesiastes é do mesmo pare-cer. Nos Macabeus, o sumo pon-tífice Mattatias estrangula um herege sobre um altar.

De tudo isto se vê que a Igreja Católica imitou bem os exem-

plos de violência e de intolerân-cia da Bíblia. Fazendo-se perse-guidora e inquisitorial seguiu apenas a Bíblia judaico cristã tanto nas palavras quanto no es-pírito.

Pregando a intolerância e a perseguição religiosas, Cristo, ou antes, a casta sacerdotal que o inventou, não faz mais do que manter a tradição do Antigo Tes-tamento, onde as excitações ao ódio teológico e às perseguições dos incrédulos, encontram se a cada passo.

Mas, ao mesmo tempo, dei-xou a descoberto a origem mera-mente teológica do mito que deu lugar a Cristo, por mais que seja próprio da casta sacerdotal minar as máximas fundamentais da moral humana para impor o do-mínio daquela sobre esta, anima-da pelo preconceito religioso, ar-vorando-se única e exclusiva de-positária da verdade absoluta. A origem teológica da moral evangélica se evidencia ainda em outra passagem importante dos livros do Antigo Testamento: a constante preocupação da Bí-blia a favor dos privilégios da casta sacerdotal da qual ela é, por assim dizer, a carta magna, a lei fundamental. Para se convencer, basta ler os exemplos muito persuasivos da

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Bíblia em favor desses privilégios sacerdotais: Levítico (VI, 26, 29; VIII, 31; X, 13, 14; XXV, 23; XXVII, 30-32) e sobretudo, Números, XVIII. Tendo os filisteus tomado a Arca do Senhor, o deus da Bíblia ma-ta-os como quem mata moscas, pelo que eles resolvem devolvê-la aos israelitas. Durante a via-gem, a Arca Santa faz um parada entre os betsamitas, que a rece-bem com alegria e holocaustos. Mas, em meio desta adoração, o deus da Bíblia faz morrer 50.070 pessoas, simplesmente porque se tinham atrevido a guardar a Arca (I Reis, VI, 13, 15, 19). Uza é fulminado só porque ousou se-gurá-la para não que ela não ca-ísse (Paral. XIII, 9, 10). Estes e outros exemplos, como o de Samuel que destrona o rei Saul demonstram bem que a Bí-blia não é, de modo algum, uma obra histórica, mas apenas uma obra teológica da casta sacerdo-tal e que as teocracias da Idade Média são seus frutos genuínos.

As ações que os Evangelhos atribuem a Cristo respondem também, em parte, ao espírito sectário da teologia, e, por outra, à preocupação constante da vida pós-terrena que torturava cons-tantemente o pensamento dos seus inventores.

Recusa-se Cristo a receber sua mãe e seus irmãos, que tinham ido procurá-lo, dizendo que os seus únicos parentes são os seus discípulos203.

Quando, aos doze anos, dei-xou a casa de seus pais, estes, fartos de pesquisas e cheios de vivas inquietações, encontram-no, ao cabo de três dias, em Je-rusalém, e Jesus responde seca-mente às doces advertências de-les: Por que me procurais?204

Quando nas bodas de Canaã, sua mãe lhe observa que os co-mensais já não têm vinho, res-ponde brutalmente: O que há de comum entre mim e ti, mulher?205.

Quando seus irmãos o convi-dam a ir a Jerusalém, pela Festa do Tabernáculo, diz que não, mas apenas eles partem, logo parte também, às ocultas206.

Em muitos casos, entretém-se, enganando os que lhe falam, fa-lando ele, por sua parte, para não ser compreendido207

Outras vezes, atribui a si pró-prio uma missão obscurantista208

203 Mateus, XII, 46-50; Marcos II, 31-35; VIII, 20-21. 204 Lucas, II, 41-49205 João II, 1-10.206 João,VII-2-10.207 João, II-21 III, IV, VI.208 João, IX-39.

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Outras, enfim, insulta sem ra-zão alguma, os escribas e fari-seus209, porque se fazem batizar embora reconheça que são parti-dários da lei de Moisés, aconse-lhando que se faça tudo o que ela ensina210. Declara que estes estão irremissivelmente conde-nados ao inferno, a fim de que todo o sangue inocente derrama-do sobre a terra, desde Abel a Zacarias caia sobre eles211, sus-tentando assim a doutrina da re-versão de penas, condenadas pe-los próprios profetas212.

Quando Pedro teve notícia do fim que levava Jesus, fez voto de que tal não sucedesse. Porém, Jesus o apostrofou, chamando-lhe Satanás213.

Na parábola do mordomo infi-el, aprova o furto (Luc. XVI,1-9), apoiando-se S. Irineu no ver-sículo 9 do capitulo XVI de Lu-cas, para justificar aos Israelitas, que no Antigo Testamento, por conselho do Deus da Bíblia e de Moisés (Êxodo III, 21-22) ti-nham roubado aos egípcios os seus vasos de ouro e prata e suas vestimentas.209 Mateus, III-7.210 Mateus, XXIII, 2,3.211 Mateus, XXIII, 13-36.212 Jeremias. XXXI, 29-30; Ezechiel XVIII, 19-20.213 Mateus, XVI, 22, 23; Marcos VIII, 32-33.

Falando pacificamente ao povo, encoleriza-se de improvi-so, chamando hipócritas aos ou-vintes, sem que motivo algum justifique tal mudança de senti-mentos214.

Faz-se manter pelas mulheres dos outros215

Cerca-se de gente faminta216 e vagueia com os seus discípulos sem respeitar a propriedades alheias217

Faz atirar ao mar uma manada de porcos, sem pensar no prejuí-zo causado aos seus donos218. Ordena aos apóstolos que não saúdem ninguém quando em via-gem219.

Ele prega, em suma, o egoís-mo220, a hipocrisia e a vaidade221.

Poderíamos continuar indefi-nidamente, demonstrando que o caráter e a doutrina moral de Cristo são sempre conforme a Bíblia, coisa bem diversa daque-le ideal de perfeição que a Hu-manidade formou.

Mas, para que continuar?

214 Lucas, XII, 56. 215 Lucas VIII, 1-3.216 Marcos II, 16.217 Marcos II, 23. 218 Mateus VIII, 28-34; Marcos V, 1-20; Lucas VIII, 26-39. 219 Lucas X, 4.220 Lucas XIV, 12-14.221 Lucas XIV, 10.

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Basta-nos ter provado que a moral de Cristo não é, não pode ser a moral de um homem, mas sim a de uma seita teológica ou precisamente, da casta sacerdo-

tal preocupada, não com a Hu-manidade e com a realidade da vida, mas sim de preferência, com o interesse da Igreja e com a salvação da alma.

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Terceira Parte

Cristo na Mitologia

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CAPÍTULO ICRISTO ANTES DE CRISTO

Se Cristo nunca existiu, como e por que foi inventado ou ima-ginado? A esta pergunta respon-derá o presente capítulo do nos-so trabalho, onde exporemos uma nova e luminosa prova con-tra a existência humana, real e objetiva de Cristo.

Além disso, se demonstrar-mos que outros personagens análogos, senão idênticos a Cris-to, o precederam na história das ideias humanas ou nos tempos dos conceitos representativos. Se provarmos que os predecessores de Cristo, os mesmos que deram a este todos os elementos da sua vida, do seu pensamento e da sua missão não foram mais do que simples mitos, teremos de-monstrado também que Cristo não é apenas uma cópia, mas um mito igual, de onde se concluirá logo que nunca existiu, a não ser na imaginação daqueles que têm acreditado nele.

Começaremos por passar uma rápida vista sobre a vida e mila-gres dos Deuses Redentores, que precederam Cristo e da qual veio o mito cristão, pois Cristo não é mais que a repetição do mesmo tema.

A antiga Índia teve mais de um Deus Redentor. Porque nessa região, onde o maravilhoso e o sobrenatural têm a sua origem, o Deus Redentor Vischnú encar-nou nove vezes, tomando forma humana para redimir a Humani-dade do pecado original.

Para o nosso trabalho só é in-teressante a oitava e nona avatar ou encarnação de Vischnú, que na oitava assume a pessoa de Cristna e na nona se encarna como Buda.

Cristna, o Redentor hindu, nasce de uma virgem, a virgem Devanaguy, e a sua vinda está vaticinada nos livros sagrados hindus (Atharva, Vedangas, Ve-danta).

O mesmo Vischnú, o Deus bom e conservador aparece a Lakmi, mãe da virgem Devana-guy, para lhe revelar os futuros destinos daquela que estava para nascer e para lhe indicar o nome que devia impor à mãe do Re-dentor, recomendando-lhe, final-mente, que não una sua futura fi-lha em matrimônio com pessoa alguma, atendendo a que se de-viam cumprir os desígnios de

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Deus222. Isto teve lugar uns 3500 anos antes da era vulgar e no pa-lácio do rajá de Madura, peque-na província da Índia oriental.

A menina recebe ao nascer o nome de Devanaguy, conforme o que estava escrito. O rajá teve um sonho em que se viu expulso do trono pelo filho que nasceria de Devanaguy. Por esta razão, o tirano de Madura faz encerrar Devanaguy numa torre e soldar a porta para evitar toda a possibili-dade de fuga, colocando ainda um valente guarda à vista da pri-são.

Tudo porém foi inútil. A pro-fecia de Poulastya, não podia ser impedida: E o espírito divino de Vischnú atravessou as paredes para se unir a sua amada. Certa noite, enquanto a virgem orava, uma celeste música veio de im-proviso deleitar os seus ouvidos, iluminou-se a prisão e Vischnú apareceu diante dela com todo o esplendor da sua divina majesta-de. Devanaguy foi ofuscada pelo

222 No poema hindu Maha Bhárata en-contra-se outra anunciação, que parece ter servido do modelo à do Batista, tão semelhante ela é. A deusa solar Sâvitri deu um filho a Asvapatis, piedoso rei de Masdras, velho e sem prole que se lamentava de não ter descendência e se entregara por 18 anos a contínuas peni-tências e frequentes exercícios de pieda-de.

espírito de Deus que queria en-carnar-se, e concebeu.

Na noite do parto e enquanto o recém-nascido exalava os pri-meiros vagidos, um vento fortís-simo desmoronou o muro da pri-são e a Virgem foi transportada com o filho, por um mensageiro de Vischnú, à uma cabana de pastores pertencente a Nanda. O recém-nascido foi chamado Cristna.

Quando os pastores souberam do depósito que tinha-lhes sido confiado prostraram-se diante do filho da Virgem e adoraram-no.

O tirano de Madura, sabedor do parto e da fuga de Devanaguy encolerizou-se em extremo e or-denou uma matança geral de to-dos os meninos, nascidos nos seus Estados durante a noite em que Cristna tinha vindo ao mun-do.

Um pelotão de soldados sai imediatamente para o aprisco de Nanda, mas Cristna escapa mila-grosamente daquele ameaça.

São quase inenarráveis os epi-sódios dos primeiros anos de Cristna, que saia sempre vitorio-so dos perigos e ciladas que lhe armavam os que queriam a sua morte, fossem homens ou dia-bos.

Aos dezesseis anos, Cristna

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abandona os seus parentes e co-meça a percorrer a Índia, pre-gando a sua doutrina.

É o tempo dos seus grandes milagres: ressuscita mortos, cura leprosos, restitui a audição aos surdos e a vista aos cegos.

Proclama-se a segunda pessoa da Trindade, isto é, Vischnú, descido à terra para salvar o ho-mem do pecado original.

Os povos acudiam em massa avidamente para o ver e ouvir os seus ensinamentos, adorando-o como a um Deus e dizendo: Este é realmente o Redentor prometi-do a nossos pais.

A sua moral é pura, elevada e completamente altruísta.

Rodeia-se de discípulos que devem continuar a sua obra.

Ensina por meio de parábolas.Um dia, em que o tirano de

Madura enviara muitos soldados contra ele e seus discípulos, es-tes, tomados de pânico, quise-ram fugir, especialmente Ardju-na, chefe dos discípulos, que pa-recia abalado na sua fé.

Cristna, que estava orando perto, ouvindo os seus lamentos foi ter com eles, repreenden-do-os pela sua pouca fé, apare-cendo-lhes com todo o esplendor da divina majestade e com o ros-to de tal modo iluminado que

nem os discípulos puderam re-sistir a tanta luz.

Em seguida a esta transfigura-ção, os discípulos chamaram-lhe Jezeus, que quer dizer nascido da pura essência divina.

De outra vez em que se en-contrava com os discípulos, acercaram-se dele duas mulheres da pior condição que lhe derra-maram perfumes sobre a cabeça e o adoraram.

Quando Cristna compreendeu que tinha chegado a hora de abandonar a terra e voltar ao seio de quem o tinha enviado sepa-rou-se dos discípulos proibindo-lhes que o seguissem e, transpor-tando-se às margens do Ganges mergulhou no rio sagrado.

Em seguida ajoelhou-se, e orando esperou a morte. Nesta posição foi atingido por uma fle-cha e pregado a uma árvore.

O que o matou foi condenado a vaguear eternamente sobre a terra.

Quando se espalhou a notícia da morte do Redentor, os seus discípulos correram a recolher os sagrados despojos; estes porém, tinham já desaparecido, porque ele ressuscitara e subira ao céu.

A nona encarnação de Visch-nú é aquela em que aparece

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como Buda223. Foi revelada em sonhos à sua mãe a grandeza do filho e o ascendente que teria so-bre todos os seus semelhantes.

Escolhe, para nela nascer, uma casta principesca, assim como Cristo escolheu a de Davi, e desce à terra. Isto acontecia 628 anos antes de Cristo.

Por ocasião do seu nascimen-to, sucedem coisas maravilho-sas: uma luz deslumbrante ilu-minou dezesseis mil mundos, os cegos viram, falaram os mudos, andaram os paralíticos, os prisio-neiros recuperaram a liberdade; uma doce brisa refrescou e ani-mou a terra, mananciais fres-quíssimos rebentaram do seu seio, as florestas abriram-se em corolas multicores e dos céus choveram lírios de aromas ine-briantes.

De suas altíssimas moradas, saíram espíritos para vigiar o pa-lácio onde devia nascer a criatu-ra e desviar dele e de sua mãe todos os males.

Tão logo nasceu, pôs-se de pé, e diante dos espíritos e dos ho-223 Ao nascer, foi chamado de Guatama, nome da tribo a que pertencia sua famí-lia; Sâkya-Muni, o mentor espiritual dos Sâkya; Siddârtha, nome imposto por seu pai e significa Aquele no qual se cumpriram os desejos, e, posteriormen-te, Budda, que significa O iluminado, palavra derivada do radical budh (saber)

mens maravilhados, aparece no céu uma estrela brilhante, aco-dem reis a adorá-lo, e da terra, surge a famosa árvore Bo, sob cuja sombra deveria transfor-mar-se em Buda: Aquela árvore tem as folhas continuamente em movimento, com o que se quer significar o estremecimento co-memorativo da sagrada cena de que foram testemunho, à seme-lhança do que dizem os sírios, acerca das folhas da trêmula, que incessantemente se agitam em memória da crucificação de Cristo, de cuja árvore se diz ter sido feita a cruz.

Entre os que cheios de gozo vão visitar a maravilhosa criatu-ra, fala-se principalmente de um velho, muito semelhante ao nos-so Simeão, que em troca da sua vida devota recebeu o dom das profecias. E, embora o seu espí-rito se alegrasse pelo futuro re-servado a esse menino, não po-dia deixar de chorar pensando que, em virtude dos seus anos não poderia assistir aos triunfos dele.

A mãe de Buda chama-se Maya ou Maïa, e concebera-o de um modo maravilhoso, fora de toda a relação conjugal.

Quando morreu, foi por suas virtudes, recebida no céu, onde habitam os Nat.

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Buda era belo e dotado de ex-traordinária inteligência, maravi-lhando os doutores pela sua sa-bedoria. Por fim, abandonou o teto paterno para levar a cabo a sua missão.

Enquanto jejuava no deserto, à sombra da árvore, por um perí-odo de 49 dias (7x7) foi tentado várias vezes pelo demônio, sem-pre saindo vitorioso.

Pregou pela primeira vez em Benares, convertendo à fé gran-des e pequenos. A sua moral, como veremos, é muito superior à de Cristo.

O mais célebre dos seus dis-cursos ficou sendo chamado, em virtude do local onde foi pronun-ciado, de o Sermão da Monta-nha, precisamente como o de Cristo. Depois da morte, aparece aos discípulos, em forma lumi-nosa, com a cabeça circundada de uma auréola.

Buda teve também um discí-pulo traidor, Devadatta. Não dei-xou nada escrito. Os seus discí-pulos, porém reunidos em conse-lho geral recolheram todas as suas doutrinas.

Entre esses discípulos, houve dois de natureza diametralmente oposta: um sério e crente em ab-soluto e cheio de zelo; outro dul-císsimo por natureza e predileto

de Buda. O mesmo que Pedro e João, discípulos de Cristo.

Buda, como Cristo, revoltou-se contra o poder soberano dos sacerdotes.

Como os cristãos, os budistas estão divididos em varias seitas. No budismo encontram-se todas as práticas religiosas do cristia-nismo. E tanto é assim que, quando os missionários católicos se encontraram pela primeira vez com os monges budistas, acredi-taram numa tentação do diabo, o qual teria sugerido a esses mon-ges as práticas católicas, sem pensarem que os imitadores não podiam ter sido os budistas, muito mais antigos que os cris-tãos.

Até no seu Papa (Dalai Lama) e na sua infalibilidade, os budis-tas precederam os cristãos.

Mas, não antecipemos o plano da nossa obra e continuemos narrando a história dos Deuses Redentores, precursores de Cris-to.

Do pouco que já dissemos se depreende, com evidência que não pode ser maior, que na Índia houve uma encarnação do Deus Redentor, 3.500 anos antes de Cristo, e outra seis séculos ante-riores, também, e que em seu Je-zéus Cristna e em seu Buda exis-

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tem já quase todos os elementos do mito cristão, aos quais se as-semelham extraordinariamente.

Quanto mais avançarmos na breve resenha dos Deuses Re-dentores que precederam Cristo, mais claramente veremos que na época em que foi concebido este mito (de Cristo), não foi preciso inventar nada para conformá-lo tão bem quanto foi configurado.

Vejamos agora Mitra, o Deus Redentor da Pérsia, que como observa Stefanoni, é um ponto de passagem entre o avatar, en-carnação hindu, e a encarnação cristã. A diferença característica entre os dois antropomorfismos não é, na realidade, muito sensí-vel. Ocorre porém, considerar que na encarnação hindu é a di-vindade única e absoluta que toma da forma humana, sem vín-culo algum de inferioridade com o pai celestial, ao passo que a encarnação cristã se distingue pela procedência do filho do pai. E nos livros sagrados da Pérsia, o Deus Redentor transforma-se em patrono de Ormuz, quase igual a Deus. Mitra é precisa-mente o intermediário entre Deus e os homens, como diz Plutarco224.

Além disso, como nota

224 Sobre Isis e Osiris, c. 46.

Maury225, em Mitra realiza-se a união da ideia física da passa-gem das trevas para a luz, com a ideia moral da união do homem com Deus.

Mitra, chamado também Se-nhor, nasce de uma virgem, numa gruta. Como Cristo, que nasce num estábulo, também de uma virgem. O dia em que nasce Mitra é o mesmo em que, de-pois, nasce Cristo: em 25 de de-zembro, isto é, no solstício do inverno.

Este dia era o da festa princi-pal da religião dos Magos, se-gundo Freret e Hyde.

A mãe de Mitra continua vir-gem depois do parto.

Na esfera dos magos e dos caldeus, o signo zodiacal da Vir-gem, tem junto desta um menino e um homem, que parece ser o suposto pai da criatura.

O nascimento de Mitra anun-cia-se astrologicamente por uma estrela, que aparece do Oriente, e pelos magos que lhe levam perfumes, ouro e mirra.

Mitra, que nasce em 25 de de-zembro, como Cristo, morre como ele, no equinócio da pri-mavera. E, como ele também, teve o seu sepulcro, ao qual iam

225 Crenças e lendas da antiguidade, c. Mitra.

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os seus iniciados derramar lágri-mas. O escritor cristão Firmico conta que os sacerdotes levavam ao túmulo, de noite num andor, a imagem de Mitra, cerimônia que eles acompanhavam com cânti-cos fúnebres. Acendia-se o círio sagrado (círio pascal), ungia-se com perfumes a imagem do Deus e um dos sacerdotes decla-rava solenemente que Mitra ti-nha ressuscitado e que as suas penas tinham remido a Humani-dade.

Outra parte da vida de Cristo na mitologia persa, já tinha sido aplicada a Zoroastro. O reveren-do dr. Mills, eminente teólogo e sábio cristão não pode deixar de se render à evidência, declaran-do e reconhecendo que a tenta-ção de Cristo figurava já na mi-tologia persa, como tentação de Zoroastro, e acrescenta: Nenhum súdito persa, que passeasse pe-las ruas de Jerusalém, poderia deixar de reconhecer imediata-mente este maravilhoso mito.

Mais adiante veremos a sur-preendente semelhança entre os mistérios persas e os cristãos, se-melhança tão extraordinária, que S. Justino, não podendo negá-la nem sabendo explicá-la com ra-zões favoráveis à ortodoxia, acu-sava o diabo de ter revelado aos persas os mistérios do cristianis-

mo, antes do nascimento de Cristo.

Continuemos com a resenha dos Deuses Salvadores.

Os egípcios tinham também o seu Deus Salvador em Horus, convertido depois em Osiris ou simplesmente Serápis226.

Horus também nasceu de uma virgem no solstício do inverno e morreu no equinócio da prima-vera para depois ressuscitar como Cristo. Horus estava ex-posto no solstício do inverno sob a imagem de uma criatura à ado-ração dos fiéis, porque então, diz Macróbio, o dia era mais curto e este Deus não passava de um débil menino: o menino dos mis-térios, cuja imagem os egípcios tiravam de seus santuários todos os anos e em um dia determina-do (25 de dezembro ). Deste me-nino proclamava-se mãe a deusa de Sais, na famosa inscrição: O Deus que pari é o Sol. O deus Horus teve também a sua fuga, levado pela virgem Ísis, montada sobre um jumento.

O mesmo mito foi aplicado no Egito ao rei Amenófis III, que convém recordar aqui por ser um 226 Segundo a lenda egípcia, no dia em que nasceu Osiris uma voz gritou do alto do céu, que tinha nascido o Senhor de todo o mundo. (Plutarco, De Isis e Osiris, XIII O evangelis-ta Lucas (II, 11) apenas copiou a lenda egíp-cia.

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documento da maior importância para demonstrar que, dezoito sé-culos antes de Cristo, os mistéri-os que se encontram no Evange-lho de Lucas (c. I e II) já eram conhecidos.

Trata-se de um quadro pintado numa das paredes do templo de Luxor, no qual se veem as cenas da Anunciação, da Concepção, do Nascimento e da Adoração. Este quadro foi reproduzido por G. Massey no seu livro Natural Genesis227. Na primeira cena, o Deus Yath, o Mercúrio lunar (anjo Gabriel) saúda a virgem e lhe anuncia que ela dará à luz um filho. Na cena seguinte, o Deus Knept (o Espírito) produz a concepção. Na cena da adora-ção, o menino recebe as home-nagens dos deuses e as oferendas de três personagens (os Magos).

Também Baco nasceu no sols-tício do inverno, depois de mor-to desceu aos infernos e ressus-citou, e a cada ano se celebra-vam os mistérios da sua paixão no equinócio da primavera. Cha-mava-se Salvador, como Cristo, e como ele, realizava milagres curando enfermos e prevendo o futuro. Na sua infância, ameaça-ram matá-lo, como Herodes a Jesus, em uma emboscada. No 227 Citado por Malvert in Ciência e Religião.

templo de Baco operava-se o mi-lagre da mudança de água em vi-nho, tal qual fez Jesus nas bodas de Canaã.

Igualmente, Adônis, cujo nome significa meu senhor, tinha as suas festas que duravam oito dias (adonias), quatro de luto pela sua morte e quatro de ale-gria pela sua apoteótica ressur-reição. Uma verdadeira semana santa sem lhe faltar nem mesmo os santos sepulcros, onde as mu-lheres executavam lamentações fúnebres em torno do deus mor-to. Apagavam-se todos os círios, menos um (o pascal) que se es-condia no altar, para de novo ser mostrado no dia da ressurreição. Depois, o deus morto ressuscita-va e o luto dava lugar à alegria. Estas festas continuaram a ser celebradas no mundo antigo, es-pecialmente entre os fenícios, durante mais de cinco séculos, antes de se transformarem nas da paixão de Cristo.

Um dos rasgos característicos dos Deuses Redentores é a sua descida aos infernos, durante o tempo em que estão mortos. Também antes de Cristo e em idênticas condições, Baco, Osí-ris, Cristna, Mitra e Adónis, aproveitam o tempo em que es-tavam mortos para fazer nova vi-sita aos defuntos. (Dupuis, Ori-

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gem de Todos os Cultos, V, 204-348).

Poderemos continuar a rese-nha dos Deuses Redentores, de idênticos caracteres e notórios representantes do Sol: como Ati na Frígia, Belenho entre os Cel-tas, Joel entre os germanos, Fo entre os chineses, etc.

Até agora temos demonstrado suficientemente que, quando Cristo foi concebido, já tinham existido muitos Cristos antes dele.

O leitor, neste ponto, deve por si próprio tirar suas conclusões e deduzir consequências espontâ-neas e naturais.

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CAPÍTULO IIA MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL

Neste ponto poder-se-ia obje-tar que Cristo não foi copiado dos Deuses Redentores dos ou-tros povos, porque, como nós próprios já admitimos228, Cristo é um mito adaptado às alegorias do Antigo Testamento.

Mas esta dificuldade logo de-saparecerá assim que se prove que nem mesmo o Antigo Testa-mento é original, e que ele, ou antes a sua mitologia, se limita a uma cópia das mitologias orien-tais.

De sorte que, se por um lado, Cristo é uma cópia dos Deuses Redentores do Oriente, e por ou-tro, o mesmo Antigo Testamen-to, do qual Cristo depende, é pura cópia das mitologias orien-tais, teremos que, enquanto Cris-to deriva dos Deuses Redento-res, o mesmo Antigo Testamen-to, a que Cristo se adapta deriva das mitologias orientais criado-ras dos mitos dos Deuses Reden-tores.

Em outras palavras: sem o pe-cado original, que serve de base ao Antigo Testamento não teria acontecido a Redenção, que ser-ve de base ao Novo. Logo, se o

228 Segunda Parte, cap. III, IV.

pecado original deriva das mito-logias orientais, com mais razão derivará Cristo, porque Cristo está para os Deuses Redentores, assim como o Novo Testamento está para as mitologias orientais, e por sua vez, Cristo está para o Antigo Testamento assim como os Deuses Redentores do Oriente estão para as mitologias orien-tais.

Neste capitulo, demonstrare-mos que a mitologia do Antigo Testamento é uma imitação das mitologias precedentes.

A mitologia do Antigo Testa-mento baseia-se nestes conceitos fundamentais: Deus, a Criação, a queda dos anjos, o Éden, Eva, a Serpente e o Pecado Original, o Dilúvio, a Torre de Babel, os Anjos e os Demônios, o Paraíso e o Inferno, os Patriarcas, um le-gislador inspirado e os Profetas. Pois bem: esta mitologia não é original, porque outros povos a tiveram, muito antes dos he-breus.

As origens filosóficas do Deus hebreu são comuns com as dos outros deuses semíticos: Ja-hveh, Jahouh. Jeová nasce de Eloa, Ilou, Jahouh, Jahoh, que

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são os nomes de Deus tirados de vários povos semíticos. Sobre o Deus hebraico tiveram incontes-tável influência os outros deuses alheios ao grupo semita, como Ahoura Mazda, persa, e Jeová, hebraico, que é - Aquele que é.

A criação tem lugar no Gêne-ses, como em todos os livros sa-grados de todos os povos mais antigos. No Zend-Avesta, dos persas, o Ser Eterno cria o Céu e a Terra, o Sol, a Lua e as Estre-las, em seis Períodos, e o ho-mem, como no Gêneses, aparece no último229. Contando o dia de repouso temos sete dias ou perí-odos, número tido por sagrado nas nações antigas porque provi-nha da primitiva adoração do Sol, da Lua e dos cinco planetas e das fases lunares, que tinham lugar de sete em sete dias

Assim como a lenda da cria-ção, a do fim do mundo também foi adaptada a partir das mitolo-gias orientais. Volney explica que isso aconteceu pela interpre-tação equivocada das tradições astronômicas persas e caldeias.

De acordo com estas, o mun-do seria composto de um total de

229 A ordem da criação persa é idêntica à do Gênesis (Hyde, Valney etc.) Notável e a circunstância de que nos livros sa-grados dos etruscos também se encontra a mesma tradição.

12.000 revoluções (em torno do Sol) divididas em duas revolu-ções parciais, das quais uma se-ria a idade do bem, que termina-ria após seis mil anos, e a outra, a idade do mal, que terminaria depois de outros seis mil anos.

Como se vê, fazem uma alu-são à revolução anual do planeta, composta de 12 meses, cada um dividido em 1.000 partes e os dois períodos de inverno e verão, cada um dividido em 6 meses, ou 6000 partes.

Esta divisão, inicialmente ape-nas astrológica, foi posterior-mente tomada em sentido con-creto e interpretada como se o mundo fosse durar 12.000 anos, divididos em 6.000 anos de feli-cidade e outros 6.000 de infelici-dade.

Supondo que aqueles até en-tão passados fossem os anos de infelicidade, conforme cálculos atribuídos aos 70 eruditos ju-deus, os cristãos acreditavam que o fim do mundo, ou dos 6000 anos estava próximo, tanto que nos Evangelhos Cristo anun-cia o iminente fim daquela gera-ção.

Sabe-se como essa crença abalou a autoridade da Igreja cristã nos primeiros séculos, tan-to que, depois do ano mil, foi re-legado o cumprimento da profe-

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cia do Apocalipse, o que não conseguiu salvar o prestígio dos livros sagrados cristãos quando se percebeu que a Profecia dos Evangelhos colocada na boca de Cristo não se concretizara.

A lenda do fim do mundo, como se encontra na Revelação é uma cópia idêntica da lenda dos livros sagrados da Índia, que têm as mesmas imagens e os mesmos fenômenos que no do Apocalipse.

Não é a toa que se imagina que o pretenso autor do Apoca-lipse esteve na Ásia e o tenha es-crito após o seu retorno. A des-crição do fim dos tempos, tanto no cristianismo, como na religi-ão zêndica é que o mundo será consumido pelo fogo, aceso por um cometa. Em seguida, o zên-dico Messias, precedido por dois profetas (Elias e Enoque, na mi-tologia judaica), virá ao mundo para destruir o império das tre-vas e julgar os vivos e os mor-tos. Apenas no mazdeísmo é que mesmo os ímpios serão limpos e perdoados.

Na criação hindu, segundo as leis de Manu, o universo estava submerso nas trevas, como no Gêneses, quando o invisível Brahma as dispersou e criou as águas, imprimindo-lhes o movi-mento.

Criou logo uma série de divin-dades subalternas, chamadas an-jos, presididas por Mohassura. Este, movido por um desenfrea-do desejo de reinar induz os an-jos à rebelião contra o Criador, de quem se afastara. Siva foi en-carregado de os expulsar do céu superior, e precipitá-los nos glo-bos inferiores (inferno).

Brahma criou o homem e a mulher, dando-lhes a consciên-cia e a palavra, tornando-os su-periores a tudo que tinha criado, só inferiores aos Devas e a Deus.

Ao homem chamou Adima (Adão, o primeiro homem) e à mulher Heva (Eva, a que com-pleta a vida). Colocou-os em um paraíso terrestre em meio de uma esplêndida vegetação; ordenou-lhes que se unissem, procriassem e o adorassem por toda a vida, e proibiu-lhes de deixar o paraíso terrestre (Ceilão). Eles desobedeceram e logo o encanto da Natureza de-sapareceu. Brahma os perdoou, mas expulsa-os daquele lugar de delícias, e condena-lhes os filhos a trabalhar, prevendo que se tor-narão maus influenciados pelo espírito do mal que invadira a Terra.

Consola-os, porém dizendo que lhes enviará Vischnú, que se encarnará no seio de uma mu-

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lher, para redimir o gênero hu-mano do pecado.

Na mitologia persa, Ormuz promete ao primeiro homem e à primeira mulher a felicidade eterna, desde que se mantives-sem bons. Mas um demônio com a forma de serpente é enviado por Ariman. Nesse demônio acreditam, pois os persuade de que Ariman é o distribuidor de todos os bens, e começam a ado-rá-lo.

O demônio levou-lhes alguns frutos, que logo comeram, desa-parecendo imediatamente a feli-cidade de que gozavam. Expul-sos desse lugar, começaram ma-tando animais para se alimenta-rem, cobrindo-se com as peles dos mesmos. E no coração des-tas infelizes criaturas humanas, nasceu o ódio e a inveja e foram malditos, eles e suas gerações.

Uma particularidade digna de nota é a semelhança entre o pa-raíso terrestre persa com o Éden do Gêneses. O paraíso persa chama-se Eren, em vez de Éden, tendo havido corrupção de uma letra na passagem da lenda persa para a hebraica. Em outros para-ísos terrestres há os mesmos rios.

A árvore tem doze frutos, que correspondem aos 12 signos do zodíaco e aos 12 meses do ano

durante o qual o Homem passa alternativamente por períodos de bem e de mal, de luz e de trevas, de calor e de frio. O Gêneses não faz menção deste número, mas fala do Apocalipse.

Para finalizar. No nome do anjo posto de guarda no jardim, vê-se a semelhança da cópia com o original: No Zend-Avesta ele se chama Chelub enquanto que no Geneses é Cherub (Que-rubim)

Os hebreus tomaram igual-mente, dos persas, durante o seu cativeiro nas margens do Tigre e do Eufrates, a ideia da imortali-dade da alma e da vida futura, e, consequentemente, a mitologia dos anjos e demônios.

Os próprios nomes dos anjos (dividido em 7 ordens como as 7 órbitas dos planetas), - Gabriel, Miguel, Rafael, Querubins, Sera-fins, Tronos (Ofanins) e Domi-nações - foram copiados das reli-giões persa e caldaica.

O vocábulo Satã significava entre os hebreus, diz Bianchi-Gi-ovini, um homem inimigo. Foi só depois do desterro do Babilô-nia é que foi usado com o signi-ficado de anjo do mal.

Mesmo Asmodeu, que no An-tigo Testamento foi causa de per-turbações histéricas em mulheres

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(Tobias, III,8; VI,14) foi copiado do Aeshmodaeva persa, o deus da concupiscência.

O Paraíso e o Inferno provêm dos mitológicos orientais. Paraí-so, em persa, significa jardim. O Paraíso e o Inferno, já figuravam na mitologia dos hindus, persas, egípcios, gregos (Elísio), roma-nos (Tártaro), gauleses e escan-dinavos. Mas esses povos não conheceram a eternidade das pe-nas. Isso estava reservado para ser proclamado pelo manso cor-deiro de Nazaré.

Quanto ao Purgatório, a Bí-blia não o conhece, nem no Anti-go nem no Novo Testamento. A Gregório devem os cristãos as primeira menção do Purgatório, cuja ideia foi talvez tirada de Platão, que dividiu as almas em três classes: as puras, as curáveis e as incuráveis.

Os Vedas contam também a lenda do Dilúvio230. Os filhos de Adima e Heva tornaram-se tão numerosos e tão maus, que che-garam a negar à Deus e suas pro-messas. Então, Deus resolveu castigá-los, mandando-lhes o Di-lúvio. Só se salvou Vaiwasvata, por causa das suas virtudes. O

230 Regnaud no livro, Como Nascem os Mitos, demonstra a precedência da lenda védica sobre a semítica (pp. 59 e segs.).

senhor mandou-o avisar do que sucederia, que construísse um barco onde se encerraria com sua família, um casal de todas as espécies animais e exemplares de todas as plantas. Quando o Dilúvio findou, Vaiwasvata de-sembarcou no cimo do Himalaia.

A narrativa caldaica é ainda mais importante porque explica melhor a origem do Gêneses. Essa lenda foi recentemente de-cifrada nas tábuas encontradas na ruína de Ninive, onde se en-controu toda a mitologia, de que a hebraica não é senão cópia.

O Deus Ilu adverte Xisultrus de que em breve um dilúvio des-truirá todo o gênero humano, e manda-lhe que escreva uma his-tória de todas as coisas, que en-terrará na cidade do Sol. Tam-bém lhe ordena que construa uma embarcação na qual se re-colherá com sua família e os seus amigos, um casal de cada espécie animal com alimentos para todos.

Para saber se as águas tinham já descido, fez sair do barco, por três vezes, algumas aves que à terceira vez não voltaram, sinal evidente de que encontraram ter-ra seca, onde pousar. A nave dá sobre a montanha e ele sai com os seus.

As memórias caldaicas das 119

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Tábuas de Nínive, falam tam-bém da lenda da construção da torre de Babel. Os primeiros ha-bitantes da terra, orgulhosos de sua força e poder começaram a depreciar os deuses, levantando no lugar onde ficava Babilônia uma torre que chegasse até ao céu. A certa altura, porém, os deuses, auxiliados pelos Ventos, derrubaram o edifício e confun-diram a linguagem dos homens, que até então falavam uma só língua.

A Bíblia fala de dez patriarcas que viveram antes do dilúvio, e morreram com idade muito avançada; A tradição caldaica fala também de dez monarcas que reinaram 432.000 anos; Nos contos árabes, chineses, hindus e germânicos fala-se de dez perso-nagens igualmente míticos que viveram antes do período histó-rico. Também foram dez os pri-mitivos reis da tradição sagrada persa e dez heróis da Armênia.

Dos dez patriarcas hebreus, ressalta-se especialmente Abraão pelo seu famoso sacrifício. Pois bem: não é mais do que uma có-pia da lenda do patriarca Adgi-gatha que se lê em Rhamatsariar, livro das profecias hindus.

Adgigatha é um homem justo, predileto de Brahma, sem filhos até que este faz sua mulher con-

ceber de um modo milagroso. Um dia, Brahma ordena-lhe

que sacrifique o filho, e se bem que tal ordem lhe apunhale o co-ração, dispõe-se a obedecer, quando Brahma, tomando a for-ma de pomba lhe aparece orde-nando-lhe que guarde o filho e acrescentando que este viveria longo tempo, porque dele devia nascer a Virgem que conceberia de gérmen divino.

As modernas investigações no Egito vieram pôr a descoberto a historieta de José e da mulher de Putifar, que foi tirada do roman-ce egípcio os Dois irmãos.

O legislador da Bíblia é, en-fim, um copista fiel das antigas mitologias. Aqui, cedemos a pa-lavra a Jacolliot231:

Um homem chamado Manu dá à Índia leis políticas e religi-osas. O legislador egípcio rece-be o nome de Manes. Um cre-tense vai ao Egito para estudar as instituições que pretende im-plantar em seu país, e a história confirma nos anais o seu nome: Minos.

E finalmente, o libertador da casta dos escravos dos judeus que fundou uma nova comunidade se chama Moisés.

231 La Bible dans l'Inde, Vie de Iezeus Christna (1869)

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"Manu, Manes, Minos, Moi-sés, aqui estão quatro nomes que dominaram o mundo antigo. Os quatro aparecem nos primór-dios de quatro povos diferentes para representar o mesmo pa-pel, cercados pela mesma aura misteriosa de grandes sacerdo-tes e legisladores, fundadores de sociedades sacerdotais e teocrá-ticas.

Sabemos que um precedeu aos demais. Manu foi o precur-sor, disto não resta a menor dú-vida, vendo a semelhança de no-mes e de identidade das institui-ções que eles criaram. Manu, em sânscrito, significa o Homem por excelência, o legislador.

Manes, Minos e Moisés, evi-dentemente vêm da mesma raiz sânscrita. As variedades leves de pronúncia são consequência da diversidade de línguas que se falava no Egito, na Grécia e na Judeia.

Será muito fácil provar que os três últimos são a continuação de Manu, e quando se averígua, como já se fez, que a Índia é a origem de todas as lendas da antiguidade, não se estranhará dizer que a Bíblia nasceu na Alta Ásia.

Será mostrado que as influên-cias e as memórias dos berços da civilização, continuando

através dos tempos fizeram dar ao legislador judeu que queria regenerar o mundo, um nome si-milar ao de Jezeus Cristna que tinha, de acordo com tradições indianas, regenerado o mundo antigo.

O Egito, pela sua posição ge-ográfica, seria necessariamente um dos primeiros países coloni-zados pela emigração indiana a receber a influência desta anti-ga civilização que chegou até nós. Verdade evidente quando se estudam as instituições do Egi-to, totalmente baseadas nas da Alta Ásia, e das quais não se tem como negar a procedência.

Jacolliot faz em seguida o pa-ralelo entre as instituições do Egito, do Antigo Testamento e da Índia para demonstrar que as primeiras são uma simples cópia da última e que Moisés e Manes são plágios de Manu.

Ao que acrescentaremos que também já está demonstrado e provado incontestavelmente pela exegese e a crítica literária da Bíblia que os livros atribuídos a Moisés não podem ser de sua autoria.

Malvert afirma que Moisés é o nome do Deus solar Masu. Esta etimologia concorda com a de Jacolliot. A origem do nome pouco importa, de resto. O im-

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portante é saber-se que Moisés também é um mito.

Pigault-Lebrun faz o seguinte paralelo entre Baco e Moisés: Os antigos poetas fazem nascer Baco no Egito; Moisés também; Baco é exposto ao Nilo, como Moisés; Baco é transportado ao monte Nisa, Moisés ao Sinai uma deusa ordena a Baco que destrua um povo bárbaro. Moi-sés recebe a mesma ordem. Baco passa o Mar Vermelho a pé enxuto, Moisés também. O rio Horusnte suspende o curso em homenagem a Baco, e o Jor-dão em favor de Josué; Baco or-dena ao Sol que pare, Josué igualmente. Dois raios lumino-sos surgem da cabeça de Baco, o que também sucede a Moisés, raios que as crianças confun-dem com cornos. Baco faz nas-cer da terra uma fonte de vinho Moisés, tocando em uma rocha, faz brotar água.

Além disso, a assiriologia de-monstrou que a história de Moi-sés foi copiada, em parte, da do rei arcadiano Sargon, que nas-ceu em um lugar deserto, foi co-locado por sua própria mãe num cesto de vimes, lançado ao rio e recolhido e educado por um estranho, depois do qual foi rei mil e tantos anos antes de Moisés, como diz o reverendo

Bown. Nem mesmo o profetismo é

invenção judaica. Aqui também o judaísmo copiou a Pérsia, que, em tempos remotos supos que a história do mundo era uma série de períodos cada qual presidido por um profeta.

Cada profeta tinha sua Kazar, que era um reinado de mil anos (quialismo ou milênio). E no su-ceder destas períodos é compos-ta a trama dos acontecimentos que prepararão o reino de Or-muzd. Ao final dos tempos, ter-minada a época dos quialismos, virá o paraíso.

Na Bíblia judaico cristã, os personagens correspondem tam-bém a outros entes mitológicos, por exemplo Elias que, com sua carruagem de fogo e seus cava-los flamejantes, reproduz o Apo-lo grego.

Sansão e Jonas são cópia do mito pagão de Hércules, que também, como Jonas, permanece encerrado três dias no ventre de um monstro marinho e que, como Sansão, também significa pequeno sol.

Assim provamos que a mito-logia do Antigo Testamento não é original, mas uma cópia de mi-tologias anteriores. Tanto basta conhecer esta para conhecer

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aquela. Poderíamos reforçar isso com

uma maior abundância de docu-mentos de fontes mitológicas de outros povos, mas seria uma ex-cessiva preocupação erudita que nada acrescentaria à nossa de-monstração

Em conclusão: se o Antigo Testamento não é original, quem não vê em Cristo, que está indis-soluvelmente ligado à mitologia do Antigo Testamento, uma có-pia das antigas alegorias?

Para mais completa persuasão do leitor, recordaremos que a descoberta das inscrições cunei-formes feitas nas escavações de Babilônia, resolveram para sem-pre este ponto de história mitoló-gica, pondo acima e fora de toda a discussão, o nosso ponto de vista.

Quer dizer que a criação, a queda de Adão, o próprio decá-logo, o dilúvio, a semana de sete dias o descanso dominical, o próprio descanso de sábado e um grande número de prescrições ri-tuais, morais e penais foram para o Antigo Testamento depois da civilização caldaica.

O decálogo de Moisés foi co-piado de uma recopilação de leis

do rei Hamurabi, oito séculos anterior a Moisés. Na tábua re-centemente descoberta em Susa, pelo sábio assiriólogo Morgan, o rei Hamurabi esta representado no ato de receber das mãos de Deus (o deus Sol) um livro das leis, cena que prova que a de Moisés no Sinai é uma cópia.

As leis de Hamurabi contem, além do decálogo que depois foi copiado pelo legislador hebreu e atribuído a Moisés, as ferozes prescrições penais do Deus Pai dos cristãos, entre elas a pena de Talião.

Sobre as revelações devido a estas descobertas surgiu na Ale-manha um debate significativo. O prof. Friedrich Delitzsch di-vulgou que, numa sua conferên-cia pública a que assistiram o imperador Guilherme II e sua consorte imperial, este o tinha cumprimentado. O mundo orto-doxo na Alemanha reprovou o imperador como um adesista a um sistema que destrói a revela-ção, a divindade de Cristo, a reli-gião e, consequentemente... os privilégios que a religião, a base do direito divino e força conser-vadora por excelência, desfruta-va...

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CAPÍTULO IIIORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES

Passamos em revista vários Deuses Redentores anteriores a Cristo e dos quais ele é uma sim-ples cópia. Para que seja com-pleta a nossa demonstração e persuada a todos é preciso de-monstrar a origem e significado destes Deuses que, de origem humana e significação naturalis-ta são a transfiguração de um mesmo mito, coisa que foi já magistralmente demonstrada por Dupuis e Volney, cujos sistemas podem ser atacados, mas não se-riamente refutados e a cujas obras remetemos os que quise-rem profundar o assunto232.

Ainda que a primitiva huma-nidade tenha podido passar do fetichismo ao politeísmo e deste ao monoteísmo, segundo a co-mum opinião dos mitólogos, es-pecialmente de Girard de Rialle, encontramos ainda na época reli-giosa, que é a que mais nos inte-ressa, que o culto da Humanida-de tem por origem principal o Sol.

O Sol é o manancial da vida do Universo; a sua luz é a fonte 232 Ciência e Religião de Malvert e Os Adoradores do Sol de Moy, que tratam a questão sob o ponto de vista mitológico e evolutivo.

de toda a beleza o movimento que origina é a causa de todo o bem. Ele e só ele é o verdadeiro, o Belo, e o Bom: é uno e trino. A primeira adoração da Humanida-de dirige-se ao ministro máximo da Natureza, ao distribuidor de todo o bem, à luz incriada e eter-na, à força fecundante do univer-so. Do Sol deriva a primitiva ideia de Deus.

As próprias investigações dos orientalistas estabeleceram que até mesmo a etimologia da pala-vra Deus procede de um atributo do Sol, de Devv e da raiz divv, que em sânscrito significa, preci-samente, o luminoso.

Da raiz divv se derivam quase todos os nomes da suprema di-vindade dos povos europeus: desde o theos dos gregos ao dis-vas dos lituanos, do deus latino ao dia irlandês, até ao dieu dos franceses, ao dio italiano, ao dios dos espanhóis, etc.

A ideia de Deus é, pois, origi-nária do simples conceito do Sol, este corpo luminoso que tão grande influência exerce na vida do homem e de toda a natureza.

Por outro lado, como o Sol é inacessível aos homens, estes

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não podem usufruir diretamente os seus benefícios, a não ser por meio do fogo ou seja a acumula-ção do calor solar nas plantas, não se remindo de seus males, até ao dia em que o Fogo foi descoberto pela ação de dois le-nhos cruzados. E, descendendo, por assim dizer, do Pai Celestial, trouxe ao homem a sua proteção, dando-lhe alimentos, metais, utensílios, armas, meios enfim, de defesa e de saúde.

Eis aí a origem da antiquíssi-ma veneração dos homens pela cruz, desde que o Fogo, filho do Sol e consubstancial com ele, salvador da Humanidade que tanto lhe deve, se produz por meio de uma cruz de madeira, obra de carpintaria, na qual se realizava, ao contato do Espírito, ou do ar, o mistério do Salvador da Humanidade nascido de Maya.

Daí o mito de Perseu, que faz baixar o fogo do céu à terra; o de Prometeu, que o rouba do céu para salvação da Humanidade, sendo por isso condenado a per-manecer no Cáucaso com os bra-ços em cruz, e sobretudo, o mito hindu da Trindade primitiva de Savistri, Agni e Vayu, que indica claramente a sua origem, isto é: o Sol, o Fogo e o Ar.

No rito védico, celebrava-se

todos os anos o nascimento de Agni, no solstício do inverno, (25 de Dezembro) isto é, na épo-ca que coincide com o renasci-mento anual do Sol.

Há os sacerdotes que sobre o altar derramam um licor sagra-do, o espirituoso soma. Há a un-ção e Agni toma o nome de Unto (em grego Crisnos, Cristo).

A oferta do pão e do vinho fa-zia-se ao fogo sagrado, sobre o altar. Agni é também o mediador da oferta, o sacrificador que a si próprio se oferece como vítima.

Os sacerdotes e os fiéis rece-biam, cada um, uma partícula da oferta (hóstia) e a comiam como um alimento onde estivera Agni,

Esta antiga Trindade, compos-ta do Sol (Savistri) o pai celeste; do Fogo (Agni) filho e encarna-ção do Sol, e do Espírito (Vayú) o sopro do ar, ficou como dogma fundamental das religiões de ori-gem ariana.

Agni se transforma em Ag-nus. O Fogo é substituído pelo Cordeiro, que também era ima-gem de Deus Redentor.

No cristianismo, também o Cordeiro ocupou na cruz o lugar de Cristo durante seis séculos, até que o Concílio Quintesexto de Constantinopla (692 dC.) o mandou substituir pelo corpo de

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Cristo.(cânone-82)233.Naturalmente, com o tempo e

o significado da linguagem, ao passar do próprio para o figura-do, do físico para o moral - sábia observação de Valney, que ser-viu de base ao sistema de Muller - a antiga fonte do mito foi se es-gotando, ou melhor, foi se trans-formando. O gérmen primitivo, e ideia fundamental, essa, po-rém, fica sempre.

Só esta chegou à compreensão das outras forças físicas, remon-tando- se à concepção das ideias morais.

Porém, ainda mesmo que pelo processo do tempo e origem na-turalista do mito perdesse ou mudasse o significado, e ainda que se fizesse mais antropomor-fo, se indianizasse - jamais se perdeu o conceito fundamental que, servindo de base às religi-ões, isto é, que o Deus criador foi o Sol, e que o filho, em quem tinha encarnado para salvar a Humanidade era ainda e sempre o Sol, seja direta, seja indireta-mente, com o caráter de fogo.

233 ...para que a arte da pintura simbolize diante os olhos de todos, aquEle que é perfeito, decretamos de agora em diante se deve representar nos ícones ao cor-deiro, Cristo Deus nosso, que tomou os pecados do mundo, em sua natureza hu-mana no lugar do antigo cordeiro.

É assim que, apesar do desen-volvimento que logo tomou a te-ologia, a origem do mito não de-sapareceu nunca de todo. Ainda mais: os próprios desenvolvi-mentos teológicos do tema, fize-ram-se sobre a base das revolu-ções da Natureza, e especial-mente do Sol.

A vida dos Deuses Redentores é a descrição da vida do Sol. Nascem todos no solstício de in-verno, e precisamente, em 25 de dezembro, quando o Sol, que pa-rece próximo a extinguir-se, vol-ta a renascer. É a criatura, o in-fante. E todos eles morrem para ressuscitar na primavera, quando o Sol recupera todo o seu poder e esplendor, triunfando das tre-vas do inverno, do mal, de Tif-fon, de Siva, de Ariman, de Sata-nás.

Cristna, Mitra, Horus, Apollo, Adonis, como Cristo, todos nas-cem em 25 de dezembro e res-suscitam no equinócio da prima-vera. O Deus do dia foi, pois, personificado no Deus Criador, primeiro e Redentor depois, e submetido a todas as peripécias humanas. Que isto sucedera a respeito dos Deuses Redentores da antiguidade, não há a menor dúvida, porque a própria antigui-dade o deixou escrito em carac-teres claros e com palavras ex-

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plícitas.Platão e Aristóteles admitiam

a adoração do Sol e dos astros, e Anaxágoras testemunha a exis-tência desta adoração, quando, para a demolir, dizia que o Sol não era mais do que urna pedra inflamada.

Para Heródoto, como para Es-trabão, o mediador do mazdeís-mo, o Deus Redentor persa, Mi-tra, que tem por emblema a luz, não é outra coisa mais do que o Sol, e Quinto Cúrcio diz que os persas invocavam Mitra ou o Sol, como a urna luz eterna.

Segundo Plutarco, os mistéri-os Mitra foram levados ao Oci-dente, e em seguida a Roma, por piratas sicilianos, fato sucedido até o ano 68 da nossa era. Pois bem: em Roma, Mitra era adora-do pura e simplesmente como o Sol, e a própria Roma nos dá disso uma prova na formula Deo Soli invicto Mitrac, usada sem-pre nas inscrições latinas, consa-gradas ao deus redentor dos per-sas. Um escritor bizantino, Nice-to, diz-nos que Mitra era, por uns, considerado como sendo o Sol e por outros, como sendo o Fogo.

Um padre da Igreja, Julio Fir-mico Materno vê em Mitra a personificação humana do Fogo. Archelau, bispo de uma cidade

da Mesopotâmia, na disputa que sustentou até 277 com Maneton, identifica completamente Mitra com o Sol.

O pretendido Dionísio, o Are-opagita, vê em Mitra um deus de tríplice forma, isto é, concebido segundo as relações das esta-ções. O próprio S. Jerônimo quer encontrar no nome de Mitra um anagrama do numero 365, que tantos são os dias do ano.

S. Paulino, bispo de Nola, dei-xou-nos, nos seus versos, uma descrição dos mistérios de Mitra, nos quais o esplendor deste Deus solar se opõe às trevas da noite, durante a qual era adorado. Win-dischmann reuniu outros teste-munhos, pelos quais se vê que Mitra é, com efeito, o Sol.

Nas moedas de Karneki, rei indo-escita, que vivia no princí-pio da nossa era, Mitra aparece como o Sol, circundado de um risco radiante. O Deus solar Mi-tra era representado com a cabe-ça rodeado pelo disco solar, com a mão direita levantada ao alto e um globo na esquerda.

Sob este aspecto se represen-tou sempre Cristo. Em Roma, o Deus Mitra acabou por conver-ter-se em divindade preponde-rante chamanda Senhor, como indica uma medalha cunhada no reinado de Aureliano. O monote-

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ísmo, ou melhor, o prototeísmo Cristão, pode dizer-se que tinha já nascido, quando todos os po-vos do império romano designa-vam o Sol sob a denominação de Dominus ou Senhor. Esta evolu-ção foi facilitada pelo culto de Mitra, o Sol invencível, que o imperador Juliano chamava o pai comum dos homens.

Por isso, os Cristãos concen-traram todos os seus esforços em combater Mitra, que era o mais poderoso adversário da encarna-ção Cristã do Deus Sol.

No Egito, o Sol era gerador do universo, o criador dos seres e das coisas, e, como na índia, chamava-se o Pai Celestial. Era o principio ativo e luminoso, que a antiga inscrição de um dos obeliscos egípcios, transportados a Roma, ao Circo Máximo, defi-nia assim: O grande Deus, o jus-to Deus, o todo esplendente.

Era o princípio universal, o fluido luminoso, ígneo, sutilíssi-mo,que enche o universo. Os seus monumentos eram repre-sentados como um globo alado, encimado com uma coroa ondu-lada.

Em toda a América ficaram si-nais evidentes do antigo culto do Sol. Na Índia, na China, no Ja-pão, toda a mitologia é a repre-sentação antropomórfica das for-

ças da Natureza, e sobretudo da principal, o Sol.

O globo alado do Sol não era só dos egípcios, mas também dos persas e dos fenícios.

O Sol está representado geral-mente nos monumentos assírios e caldaicos, onde tinha altares por toda a parte.

A cidade de Sipara era-lhe consagrada, e nos seus templos, ardia continuamente fogo em sua honra. Na Síria, na cidade de Edessa, havia um templo consa-grado ao Deus Sol, assim como em Palmira.

Na Grécia, achamos o globo alado sobre o Caduceu. Orfeu considerava o Sol como sendo o maior dos Deuses. Em Homero, lê-se que Agamemon, apostro-fando o Sol, lhe chamava o que tudo vê e ouve tudo. Belenho, dos gauleses, é uma personifica-ção do Sol. Entre os romanos, não só Apolo e Baco eram perso-nificações do Sol, mas também Júpiter, segundo Juliano.

Macróbio, na obra acerca das Saturnais, prova que os nomes de Apolo, Baco, Adonis, etc., não eram senão as diversas de-nominações do Sol entre várias nações, e reduz toda a antiga te-ologia ao culto do Sol.

O Deus Redentor, portanto,

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era não só a personificação, o mito do Sol, mas era também o culto primitivo, direto e concreto do Sol, como também era o anti-go sabismo ou heliosísmo, que

transmitiu os seus sinais, apesar da sua transformação em mito antropomorfo e em símbolo teo-lógico.

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CAPÍTULO IVCRISTO É UM MITO SOLAR

Agora, mais do que nunca, es-tamos no direito de concluir que Cristo nunca existiu, sendo um puro mito solar.

O silêncio da história acerca dele, a sua inexistência como pessoa terrestre, o seu caráter exclusivamente sobrenatural, e, especialmente, a sua afinidade ou identidade com os mitos sola-res que o precederam, autori-zam- nos a tirar esta conclusão.

Temos, porém, muito mais com que robustecer o argumen-to, porque existem provas ainda mais diretas e convincentes.

- Um Deus nascido de uma virgem - diz Dupuis - no solstí-cio do inverno e ressuscitado na Páscoa, no equinócio da prima-vera, depois de ter descido aos infernos; um Deus que leva atrás de si um cortejo de doze apóstolos, correspondentes às doze constelações234 e que faz 234 O número 12 é comum a todas as re-ligiões de origem heliostática, dos ado-radores do Sol. Os romanos tinham 12 grandes deuses, cada um dos quais pre-sidia a um mês. Os gregos, os egípcios e os persas também tinham 12 grandes deuses, como os Cristãos 12 apóstolos. O chefe destes deuses guardava a barca e a chave do tempo, como Jano entre os romanos e Pedro entre os Cristãos.

passar os homens sob o império da luz, não pode ser senão um Deus solar, copiado de tantos mitos heliostáticos em que abun-davam as religiões do Oriente.

No céu da esfera armilar dos Magos e dos caldeus, via-se um menino colocado entre os bra-ços da Virgem celestial, a mes-ma a que Eratóstenes dá o nome de Isis, mãe de Horus. A que ponto do céu correspondia esta Virgem da esfera e o seu filho? Na meia noite de 25 de dezem-bro, quando nasce o Deus do ano, o novo Sol, o Cristo pela parte do Oriente e no mesmo ponto onde se levantava o Sol no primeiro dia.

É um fato independente de to-das as hipóteses e de todas as consequências que possamos deduzir, que o 25 de dezembro, na hora precisa da meia noite, no século em que aparece o cristianismo, a constelação ce-leste, que se erguia no Oriente, e cuja ascensão marcava a abertura da nova revolução so-lar, era a virgem das constela-ções zodiacais. E é também um fato que o Sol, nascido no solstí-cio do inverno entra nesta cons-telação e derrama os seus raios

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de fogo na época da nossa festa da Assunção, ou reunião da mãe com o filho. É indubitável que a virgem, que alegoricamente pode ser mãe sem deixar de ser virgem, realiza as três grandes funções da virgem mãe de Jesus, seja no nascimento de seu filho, no seu próprio ou na reunião de ambos no céu.

Que isto seja um fato positivo, prova-se depois com iguais cita-ções dos astrólogos antigos, a quem devia ser mais familiar do que a nós a ciência dos caldeus. Conta como nas tradições dos persas, dos caldeus, dos egípci-os, de Hermes e de Esculápio, aparece uma jovem chamada em persa Seclenidas de Darzama, e que em árabe se escreve Adrene-defa, isto é, Virgem casta, pura e imaculada, de formosa aparên-cia, de longas tranças e ar mo-desto. Tem entre as mãos duas espigas, está sentada num trono e amamenta um menino a quem alguns chamam Jesus é nós o Cristo.

O Sol, reparador dos males que o inverno causa, nascendo no solstício, deve permanecer ainda três meses nos signos in-feriores, na região atribuída ao mal e às trevas, antes de rebai-xar o limite do equinócio da pri-mavera, que assegura o seu

triunfo sobre a noite. Durante este tempo, convém que esteja exposto a todas as calamidades da sua vida mortal...

A teoria de Cristo foi, como a sua biografia, tirada inteiramente dos Vedas. É o Deus (o Sol), que oferece o seu único filho (o Fogo) para salvação dos ho-mens.

Cristo repete todas as circuns-tâncias dos outros Deuses Re-dentores que o precederam. Nem mais nem menos235. Logo, estes Deuses Redentores, por confis-são dos escritores pagãos, dos próprios padres da Igreja e dos primeiros escritores cristãos como Heródoto, Plutarco, Ma-cróbio, Atanásio, Lactâncio e Ju-lio Firmico, não representavam mais do que o Sol.

Impõe-se, pois, forçosamente, a consequência lógica de que Cristo é também um mito solar.

Este fato deduz-se, de maneira evidentíssima, da própria Bíblia, de alguns autores cristãos que têm expressões e conservam 235 Segundo Bianchi-Giovini, (Crítica dos Evang. 1ibr.IV, cap. VII) na Pérsia costumavam escolher, na festa chamada em caldeu Suchaia, um condenado à morte, vestiam-no de rei, colocavam-no no trono davam-lhe liberdade, em segui-da, passados cinco dias, despojavam-no das vestes, açoitavam-no e crucifica-vam-no.

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usos, cuja significação tem ínti-ma relação com a adoração do Sol e que denunciam, por conse-guinte, a origem e a natureza so-lar do mito cristão.

Já no Antigo Testamento (Sal-mo IV e XVIII) encontramos o Sol identificado com Deus. Deus estabeleceu os seus arrai-ais no Sol. Vai de um extremo ao outro do céu e nada se subtrai à sua vista.

Sobre vós, que temeis o meu nome, se levantará o Sol da Jus-tiça, e a vossa vida estará nos seus raios.

João diz no seu Evangelho que o Verbo era a lei, a luz e a vida, a luz que ilumina os olhos de todos os mortais, a luz do mundo.

Onde, porém, a Bíblia revela melhor a origem heliostática de Cristo é quando lhe chama cor-deiro, o Agnus Dei qui tollit pec-cata mundi. O Apocalipse, so-bretudo deleita-se representando Cristo sob a forma de cordeiro.

Do mesmo modo, a Igreja Ca-tólica, até 680, venerou Cristo sob a figura simbólica de um cordeiro.

Foi no quintesexto Sinodo de Constantinopla (Cânone 82) que esse cordeiro foi substituído pela figura de um homem crucifica-

do, mas nem por isso desapare-ceu: subsiste nos escritos e nas ladainhas eclesiásticas, bem como na arte Cristã.

Orígenes escreve que era ne-cessário adorar os astros em ra-zão da sua luz espiritual e não da sua luz sensível.

Tertuliano tenta defender os cristãos da acusação que lhe fa-ziam de adorarem o Sol, dizendo que, apesar das aparências em contrário e dos sinais exteriores da veneração pelo Sol, não é ao astro que se dirige o culto cris-tão: Outros, com maior razão ou verossimilhança, creem que o nosso Deus é o Sol. Esta ideia provém, aparentemente, de que nos dirigimos para o Oriente, para orar. Se dedicamos à ale-gria o dia do Sol é por urna causa estranha ao culto deste astro.

Não obstante, o próprio Tertu-liano reconhece que o dogma da ressurreição do Deus cristão é idêntica à da religião persa.

Clemente de Alexandria es-creve que o Verbo veio ao nosso conhecimento por meio da ma-deira. (Evidentemente alude ao fogo produzido pela madeira).

João Crisóstomo, falando, nas suas homilias, da descida de Cristo aos infernos, chama-lhe, o

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sol da justiça, que leva a luz.Sinésio chama a Cristo o tipo

sensível do sol intelectual. Des-creve-o saindo do inferno como um astro nascido das trevas no-turnas, precedido da lua, seguin-do o rasto luminoso do sol.

Firmico Materno também o descreve, na descida ao inferno, brilhando como o Sol.

O primeiro dia do calendário é ainda hoje, consagrado ao Sol, como o seu nome o indica. Do-mingo vem de dominas, o Se-nhor, como se chamava o Sol na época em que nasceu o Cristia-nismo.

Além disso, outros dias do ca-lendário expõem em favor do culto solar, porque conservam os nomes correspondentes à lua e aos cinco planetas.

Clemente de Alexandria con-servou-nos um fragmento de S. Paulo, ou a ele atribuído, em que se aconselha a leitura de livros sibilianos, dos gregos e dos Is-taspes. A autoridade dos livros sibilianos ainda hoje é reconhe-cida pela própria Igreja no Dies irae, onde se cita a Sibila como testemunha de que o mundo será destruído pelo fogo. Estes mes-mos livros eram frequentemente citados com a autoridade canôni-ca dos antigos teólogos.

Algumas das seitas primitivas, que pelos conhecimentos cientí-ficos têm o mesmo valor que o tronco de onde provêm, conser-varam a sua origem solar do cul-to Cristão. Os maniqueus, por exemplo, diziam que o Sol era o próprio Cristo. Assim o atestam Teodoro e Cirilo de Jerusalém. Segundo S. Leão, os maniqueus colocavam Jesus na substância luminosa do Sol e da Lua, a qual não faz mais do que refletir a luz daquele. Os saturninos acredita-vam que a alma tinha a substân-cia do Sol, do calor sideral, e portanto, que deixa o corpo na terra, voltando a sua origem.

A Igreja conserva-nos ainda, no culto, várias provas de que Cristo é um mito solar.

Por exemplo: a festa da Pás-coa não cai nunca em dia certo, variando, segundo as circunstân-cias e alternativas astronômicas, e isto não seria possível se Cris-to fosse um personagem históri-co, pois em tal caso seria fixo e incontestável o dia da sua morte.

O Santo Sacramento tem a forma do disco luminoso do Sol, conforme as antigas tradições das religiões heliostáticas. No ostensório católico, vê-se a Lua representada no mesmo centro, que se chama precisamente a Lúnula: está rodeada de seis pla-

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netas, representados também nos seis círios, que no altar rodeiam o Santo Sacramento.

O Santo Sacramento explica-se, no uso comum, do mesmo modo que o Sol. Todo ele é ex-traordinariamente semelhante ao budismo.

Malvert cita um curioso docu-mento que, confundido com o simbolismo cristão, não revela menos a sua verdadeira origem solar. É o abanador. No simbo-lismo cristão, encontra-se o ber-ço em que repousa o menino re-cém-nascido, sobre a palha, jun-to da virgem sua mãe, e em com-panhia do boi, do jumento místi-co dos Vedas e, finalmente, do abanador, verdadeiro contrassen-so numa cena que se passava em pleno inverno, se não fosse uma reprodução inconsciente, porém exata, do primitivo mito védico, onde cumpre uma função impor-tante: a de manter viva, na palha, a primeira chispa do Fogo. Este detalhe simbólico passou à litur-gia primitiva, onde o abanador se agitava durante a missa, desde a ablução à comunhão, prática conservada na Igreja romana até o século XIV.

Também se observou, durante largo tempo, o costume de se voltarem para o Oriente, durante as preces, bem como o de cons-

truírem as igrejas na mesma di-reção, de modo que a luz do Sol viesse ferir o disco de ouro do Santo Sacramento, colocado em frente da porta do templo.

O mesmo uso do culto solar se encontra também no antigo rito do batismo em que o catecú-meno se voltava primeiro para o ocidente, a fim de repelir de si Satanás, símbolo das trevas, e depois para o Oriente, jurando então fidelidade ao seu novo Se-nhor.

Uma congregação de irmãos adoradores do Santo Sacramento e que subsistiu até á revolução francesa de 1789, tinha o nome de Irmãs do Sol.

Por muito tempo, a Igreja re-presentou o Padre Eterno, o Deus Pai, sob a imagem do Sol. Malvert demonstra as transfor-mações sucessivas destas repre-sentações.

As primeiras versões eslavas dos Evangelhos, do século nono, traduziram a palavra ressurectio por Veskres, que, literalmente significa ascensão do fogo.

Todas as nossas cerimônias do sábado santo e especialmente, do fogo novo, do famoso círio pas-cal, não tem outra significação, nem outra origem que o triunfo do Sol sobre as trevas, que têm

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lugar no equinócio da Primave-ra, pela Páscoa.

Em muitas orações deste ofí-cio reproduzem quase literal-mente os hinos védicos. A pala-vra Alelúia (de all (elevado) e oulia (brilhante) era o grito de alegria que pronunciavam os an-tigos persas, adoradores do Sol, quando, pela Páscoa, celebravam a sua volta.

Enfim, o barrete dos bispos católicos, que toma o nome do Deus Sol dos persas - mitra, - usava-se já entre os magos ou sacerdotes de Mitra, o Deus Sol, simbolizando, pela sua forma pi-ramidal, precisamente o Sol, ou se assim querem, seu filho o Fogo, que sobe aos céus para se unir ao pai, como o prova a for-ma dada às pirâmides do Egito, aos obeliscos messiânicos e druidas e aos carros piramidais da Índia.

Pouco a pouco, com a com-pleta personificação do símbolo, nada mais fácil do que fazer de-saparecer os vestígios da origem heliostática de Cristo, a ponto de serem hoje bem poucos os sinais que se conservam de tal origem.

Mas os poucos que restam são de uma eloquência tão extraordi-nária, que não admite réplica, e se por si só não bastassem para afirmar a conclusão da não exis-

tência de Cristo, unidos às pro-vas precedentes adquirem valor de documento definitivo, como provenientes que são, do mesmo culto interessado em fazê-lo de-saparecer. Crer, por conseguinte, que Cristo existiu, equivale a crer que tenham existido Mitra, Adônis, Apolo, Baco, Jezéus Cristna e Horus, também conhe-cido por Serápis. Este último, se-gundo o imperador Adriano, se chamava Cristo e era adorado pelos cristãos. E a todos estes se tinha dado existência humana, lugar de nascimento e morte, sendo adorados pelos respecti-vos fieis.

O perspicaz Luciano riu, com grande fundamento, da pretensão das diversas religiões em querer elas, unicamente, adorar o Sol, dando-lhe cada uma nome e existência peculiares ao país res-pectivo, com caracteres especi-ais, enquanto a divindade perma-necia sempre a mesma e era co-mum a todos236.

Não tem maior valor a opinião dos que creem na existência de um hebreu chamado Jesus, de que logo brotou essa exuberante vegetação do mito e da poesia oriental, da alegoria e da rica

236 Segundo Justino mártir, o hebreu Tri-fon tinha já negado Cristo. E como já vimos, muitas seitas antigas o negaram.

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imaginação da lenda, apoiando-se na razão de que o nome de Je-sus era muito vulgar entre os he-breus. Com igual motivo se po-deria dizer que existiram Hércu-les, Apolos, e sobre todos, Josu-és e Jasones, nomes que têm a mesma raiz de Jesus, só porque muitas pessoas se chamavam as-sim237.

Não, o Jesus da Bíblia surgiu da mitologia; nem sequer é le-gendário, é completamente mito-lógico. Quem pretender susten-tar o contrário não o poderá pro-var, ao passo que nós, como já se viu, provamos que é mitológico por sua origem, natureza e signi-ficado.

É certo que não podemos ja-mais provar de um modo positi-vo, dada a distância e tenebrosi-dade dos tempos, como e por meio de quem se criou o mito de Cristo. Para isso concorreu, de certo, a obra do cristianismo nascente, destruindo todos os documentos que se opunham à sua propagação.

Por outro lado, sabe-se tam-bém, por ventura, por quem e

237 Segundo Volney, nos livros sagrados persas e caldáicos, dava-se ao Sol o nome Jes ou Cris, representado por um menino que nasce da virgem das conste-lações. De Cris fizeram os hindus Crist-na e os cristãos Cristo.

como foram criados os mitos dos Deuses Redentores que precede-ram Cristo e que, como ele, fo-ram acreditados, seguidos e ado-rados por tantos milhões de seres humanos e durante tantos sécu-los?

Em um tempo em que reinava uma tão densa noite de ignorân-cia, era de resto, bem fácil dar corpo a todos os mitos e lendas. Os tempos eram propícios para toda a criação mística, porque nunca época alguma foi mais atacada pelo sobrenatural. Tudo então era Deus, tudo então era celestial238.

O politeísmo helênico tornara- se muito humano, e muito aces-sível à critica e não contentava de modo algum os que busca-vam a forma de resolver o gran-de problema da vida futura e so-brenatural.

Não só na mitologia assírio-persa, mas em todas as divinda-des orientais que invadiram a Europa e que, por muito tempo

238 Os jornais americanos trazem notíci-as detalhadas acerca de um certo Dovie, que tendo-se feito passar pelo próprio profeta Elias ressuscitado, conseguiu atrair crentes e fundar uma nova cidade, Sião, com 10.000 habitantes, todos seus sequazes, de quem ele é o papa rei. E isto acontece perto de Chicago, em ple-no século XX. O que não seria antiga-mente!

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ainda, dominaram o império ro-mano, encontraram-se a nova linfa de que muito necessitavam para alimentar o seu misticismo.

Os tempos estavam realmente em sazão para que se realizasse uma nova encarnação da divin-dade. Nem o elemento milagroso podia prejudicar o crédito do novo Deus porque nunca, como então, o milagre esteve, tanto em voga.

Sabe-se de um Dositeu, que por seus milagres e prodígios foi confundido com o Messias e seus sequazes - entre os quais se contavam trinta discípulos, cor-respondentes aos dias do mês - julgando-o descido do céu.

Apolônio de Tianeo fez por si próprio milagres atribuídos a Cristo e desapareceu também, deste baixo mundo de uma ma-neira milagrosa239.

Simão, chamado o Mago, rea-lizou os mais espantosos mila-gres, sendo sempre seguido e acreditado pelo populacho. He-ródoto, como hoje o nosso bom Cantu, conta cheio de fé e com a maior seriedade os mais estu-

239 A vida de Apolônio foi escrita por Fi-lostrato até o ano 200 da nossa era e ainda naquele tempo o autor acreditava a sério em todos os milagres do seu he-rói, o que prova as disposições dos espí-ritos de então.

pendos milagres daqueles tem-pos tão supersticiosos e crédu-los.

Na Vida de Vespasiano, de um historiador sério, como é Suetô-nio, lê-se este fragmento: En-quanto presidia o tribunal, um indivíduo do povo cego e outro paralítico acercaram-se dele, rogando-lhe que os curasse, pois Serápis lhes tinha prometi-do, em sonhos, ao cego, que re-cuperaria a vista se lhe cuspisse o imperador e ao paralítico, que andaria se ele lhe tocasse com um pé. Não crendo que tal pu-desse realizar-se, não ousava Vespasiano fazer a experiência, até que, tendo-o exortado os amigos, este se decidiu, em pre-sença de todos, a tentar a prova que teve o mais completo êxi-to240. Tácito241 e Dion242 confir-mam estes milagres de Vespasia-no.

Mesmo na sociedade culta, a incredulidade só era aparente: a crença no sobrenatural tornava-se, contudo, mais intensa pelo fato de que, tendo-se afrouxado a fé nos deuses falsos, sem que a substituísse o conhecimento das leis naturais, a incredulidade re-

240 Edição Teubneriana, Leipzig, 1893. pag. 229.241 Histórias, IV, 81.242 LXVI, 8.

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dundou em crenças ainda mais estupendas, que impressionavam a imaginação em maior grau do que os milagres de que se riam os augures.

Naquele tempo a loucura, o escândalo da cruz, não podia deixar de assentar bem, de pro-duzir os seus efeitos, no mundo greco-romano, na positiva civili-zação Ocidental.

Orgulhamo-nos, por conse-guinte, de ter demonstrado aos espíritos apaixonados que Cristo nunca existiu e de ter introduzi-do a dúvida no ânimo dos mais crentes.

Na parte que segue, demons-traremos que o cristianismo não foi criado por Cristo, mas que já existia, em seus elementos cons-titutivos, na época em que deter-minadas condições psicológicas, políticas, históricas e do meio

ambiente, os uniram em corpo mais ou menos orgânico, dando vida, não ao fato novo - cristia-nismo, mas à nova forma - cristi-anismo.

Por isso a grandeza histórica do efeito cristianismo, se bem que não é de valor intrínseco, servirá para demonstrar que Cristo não existiu, porque uma só pessoa é causa muito inferior a um efeito tão grande.

Não, esse Cristo, seja qual for o valor que lhe seja dado, não pode ter produzido, em contrário do que a Bíblia diz, um tão con-siderável movimento na socieda-de humana.

Por isso, o cristianismo foi obra impessoal e criação coletiva de vários séculos, de distintas doutrinas, de muitos eruditos e de diversos povos.

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Quarta Parte

Formação Impessoal do Cristianismo

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CAPÍTULO IA MORAL CRISTÃ SEM CRISTO

Se um ponto de apoio resta ao cristianismo, esse ponto é a crença na originalidade e perfei-ção da moral, atribuída a Cristo.

Acerca da sua pretendida per-feição, já vimos a que se reduz; provaremos agora que, o que ela tem de bom, não é em nada ori-ginal.

Uma das glórias usurpadas pelo cristianismo é a de ter redi-mido a condição da mulher. É completamente falso.

Eva, no Antigo Testamento é obra em segunda mão: foi tirada duma costela do homem. É ela que introduz o mal no mundo, e o Deus Judeu-cristão condena-a, por fim, a parir com dor e sujei-ta-a ao homem. (Gen. III 16).

Todo o Antigo Testamento é um contínuo envilecimento e servidão para a mulher. Quando esta tem uma filha sofrerá mais que quando tem um filho. O seu voto é calculado em grau muitís-simo inferior ao homem. (Levit. XII, 2-5 XXVII, 1-7).

Passagens que envilecem a mulher são, entre outras da Bí-blia, as dos Num. V, XXI; Êxodo XXI, 4; Deut. V, 21; Ecles. VII; etc., etc. Isto sem contar os in-

cestos e as poligamias, que abundam em todas as suas pági-nas.

O Novo Testamento não a tra-ta melhor. S. Paulo, baseando- se em que foi tirada do homem, conclui que ela deve sujeitar-se ao mesmo (I Ep. Cor. XI, 3, 7, 9) A mesma ideia se repete em I Tim. II, 18; Col. III, 18, Pedro III, 1, 6).

Os padres seguem a Bíblia. Tertuliano chama-lhe a porta do demônio, que quebrou o segredo da árvore proibida, e outro de-clara-a mais amarga que a morte.

O celibato e a virgindade são a condenação do amor e da ma-ternidade, isto é, das principais e mais sagradas funções que a na-tureza confiou à mulher.

Poderíamos intitular este capí-tulo, mistificação cristã, porque, tendo de provar que a moral cris-tã não é original no que tem de bom, forçoso será provarmos que é inferior, em muitos pontos, à das religiões orientais, que a precederam, inferior mesmo, sob este aspecto, ao judaísmo, e es-pecialmente, inferior à civiliza-ção greco-romana.

Comecemos pelas religiões 140

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orientais. Confúcio, 500 anos antes, pre-

gava já o preceito de não fazer aos outros o que não queremos que nos façam.

Mêncio, outro filósofo chinês, repetia o mesmo preceito 300 anos antes de Cristo.

O brahmanismo hindu prega-va também a mesma máxima. Buda repete o mesmo conceito e sublima a moral até fazer dela uma caridade universal, que abarca toda a Natureza e não apenas a Humanidade.

A moral budista é imensamen-te superior à cristã, porque o amor do próximo pregado por esta não ultrapassa os confins do país nem as valas da seita.

A moral budista tem ainda ou-tra vantagem sobre a do preten-dido Cristo: a de admitir a livre investigação da verdade, ao pas-so que, nos Evangelhos, em vão se procuraria uma palavra em fa-vor da ciência.

Na índia, a caridade para com o próximo florescia e fecundava as instituições de hospitalidade e casas de beneficência, cinco sé-culos antes do advento do cristi-anismo.

Zoroastro, o fundador do maz-deísmo ou religião persa, tinha já pregado o outro preceito, atri-

buído mais tarde a Jesus, o pre-ceito da caridade positiva, isto é, o de fazer ao próximo o que de-sejaríamos que nos fizessem; e ao passo que o cristianismo de-via pregar depois, o dogma iní-quo da eternidade das penas, a religião persa, pelo contrário, ad-mitia que os malvados, depois de certo período de expiação, se-riam purificados e reabilitados, desfrutando também a bem aventurança dos bons. Ainda mais: enquanto o Cristo dos Evangelhos condena o trabalho e reserva a felicidade suprema para a mendicidade miserável, Zoroastro santifica o trabalho, especialmente o dos campos, enaltecendo-o e dando-lhe muito mais mérito do que aos rogos e orações.

A moral dos egípcios conti-nha, igualmente, além dos pre-ceitos de boa moral dos Evange-lhos, máximas mais elevadas e mais práticas para bem viver. No famoso capítulo CXXV do Livro dos Mortos, o morto faz, perante o tribunal de Osíris, uma dupla confissão: negativa, de que não fez mal a ninguém, e positiva, de tudo quanto fez de bom. Não en-ganei. Não menti no Tribunal. Não cometi fraudes contra os homens. Não atormentei as viú-vas. Não exigi aos trabalhado-

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res mais trabalho do que o que podiam fazer. Não promovi ne-nhum desastre. Não fiz chorar ninguém. Não fui preguiçoso. Não fui negligente. Não me em-briaguei. Não dei ordens injus-tas. Nunca fui indiscreto. Nunca abri a boca para intrigas. Não lancei mão de coisa alguma, em prejuízo de outrem. Não matei nunca. Não mandei jamais as-sassinar à traição. Não meti medo a ninguém. Não disso mal de ninguém. Não deixei que a inveja roesse o meu coração. Não levantei falsos testemunhos. Não tirei o leite da boca dos que mamavam. Não provoquei abor-tos.

E na segunda:Fiz aos Deuses as oferendas

que lhes eram devidas. Reconci-liei-me amorosamente com a di-vindade. Dei de comer ao famin-to, de beber ao sedento,vesti o nu e dei barca ao que não podia continuar viagem.

Daqui se vê, pois, que no Egi-to, muitos e muitos séculos antes do cristianismo, se pregava uma moral caritativa e misericordio-sa, e não só isso, mas também a justiça.

Pitágoras, que sob muitos as-pectos, pertence à civilização oriental, ensinara muito antes de Cristo, a perdoar aos inimigos,

aconselhando a maneira de fazer as pazes com eles. O Cristo dos Evangelhos nada forneceu à mo-ral das religiões do Oriente: pelo contrário, delas tirou tudo, delas aprendeu tudo, e neste ponto, bem teriam andado aqueles que copiaram o seu mito, copiando também os bons conceitos da-quelas religiões. A moral do Evangelho porém, reduz-se ape-nas a uma cópia servil do Antigo Testamento...

A afirmação parecerá estranha aos crentes, dada a mistificação de vinte séculos que o cristianis-mo arraigou nas mentes, mas a verdade é que nem sequer tem o mérito da novidade.

Há muitos anos já que se pro-vou que o Evangelho era a re-produção da parte boa - e nem sempre - do Antigo Testamento.

Salvador, Rodriguez, Dukes e Cohen demonstraram por forma que não admite réplica, que toda a pregação moral de Cristo, sem excluir o famoso Sermão da Montanha se formou, palavra por palavra, com as citações do Antigo Testamento.

O preceito amarás ao próximo como a ti mesmo, que caracteri-zou a doutrina moral e social de Cristo, achava-se já no Levítico (XIX, 18).

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E o melhor é que os próprios Evangelhos, pondo esse preceito na boca de Jesus, indicam a sua procedência, que seja dito de passagem, devia ter já há séculos aberto os olhos à Humanidade, se não o impedissem a escravi-dão do pensamento e o precon-ceito teológico.

O preceito que proíbe pagar o mal com o mal, encontra-se nos Provérbios (XX, 22; XXIV, 29).

O preceito não faças aos ou-tros o que não queres que te fa-çam, lê-se já no livro de Tobias (IV, 16).

Os profetas Jeremias e Eze-quiel tinham já condenado a par-te do Antigo Testamento que castiga os filhos pelos pais, es-tendendo o amor do próximo mais além do que os confins da Judeia. Nisto, é o cristianismo inferior ao judaísmo, pois, como já provamos, Cristo foi naciona-lista e não eximiu os filhos das culpas dos pais.

Sábios hebreus, mais moder-nos ainda, como Antígono de Soco, Jesus filho de Sirach e Hillet, tinham já aconselhado, antes do cristianismo, o perdão das ofensas e a doçura de cará-ter. Tinham também condenado a vingança.

Oséas, Isaías, Jeremias e os

Salmos tinham já preconizado uma religião menos formalista e menos hipócrita no que respeita-va às práticas exteriores do cul-to: mais espiritual, numa pala-vra.

Os ataques contra os potenta-dos da terra e a defesa dos fra-cos, encontram-se em Isaías, Je-remias, Amós e Sofonias.

A pureza do pensamento e o amor especial para com os po-bres e os oprimidos, veem-se, em termos comoventes, no livro de Job.

As bases da igualdade foram lançadas, em termos mais positi-vos que os do Evangelho, por Fí-lon, o hebreu alexandrino, filó-sofo e teólogo, racionalista e místico ao mesmo tempo.

Os que, diz ele, exaltam a no-breza como sendo um grande bem, merecem ser duramente re-primidos. A verdadeira distinção não pertence senão aos homens de inteligência e de justiça, ain-da que sejam filhos do escravo, nascido em nossa casa ou com-prado com o nosso dinheiro (Tratado da nobreza). Porque és tão orgulhoso e te julgas superi-or aos outros? Não são todos os teus parentes feitos do mesmo modo e não pertencem à mesma terra? Não bastaria a vida de um homem para narrar os bene-

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fícios da igualdade. Esta é a fonte dos maiores bens que po-dem existir: a boa vontade e a amizade entre os homens. No Universo produz a unidade; na cidade a democracia bem regu-lada; no corpo a saúde; na alma a honestidade e a virtude (De victim. Offer.; de creat. principi-is).

No que se refere ao desprezo pelas riquezas, ao bem estar so-cial e ao celibato, também o cris-tianismo é inferior ao judaísmo. Mais ainda: essa mesma inferio-ridade não lhe pertence.

Nem mesmo as virtudes nega-tivas são originais nos Evange-lhos, pois provêm dos essênios. Outros pretendem que vêm dos Terapeutas, não importa. O que é positivo aqui é esta parte da mo-ral cristã ter já existido antes do cristianismo,.

A parte boa do essenismo re-lativa ao cultivo da terra e à abo-lição da escravatura não foi imi-tada por Jesus nos Evangelhos, pois condena o primeiro e passa em silêncio a segunda.

Os essênios hebreus tiveram outra superioridade sobre a mo-ral evangélica: a de ser a sua moral puramente humana, como a dos estoicos, enquanto que a parte boa da evangélica era tira-do do ascetismo, do misticismo,

do medo do outro mundo243, e sobretudo, da preocupação na crença do fim próximo do mun-do, fazendo desta sentença toda a sua moral: A vida não é mais do que uma preparação para a morte.

A civilização greco-romana, que depois foi em parte assimila-da pelos padres e doutores do cristianismo teve uma moral ela-borada pelos seus sábios, pelos seus literatos e filósofos, ao lado da qual a cristã fica ofuscada.

A demonstração disso já a fi-zeram Denis (Histoire des theo-ries et des idées morales dans l´antiquitè) e Havet (obra citada): não faremos, por isso, senão re-cordar algumas das máximas mais salientes daquela época de ouro do pensamento humano.

Na Odisseia vemos a divinda-de protegendo o fraco e o des-graçado; o pobre e o infeliz são recomendados ao respeito e à pi-edade do próximo, ainda que se-jam culpados. Hiparco, filho de Pisistrato, manda gravar pelos caminhos públicos: Caminha na senda da justiça; não enganes o amigo.

243 Neste ponto, ainda o politeísmo gre-co-romano é superior ao cristianismo. Comparem-se os poemas de Homero e Virgílio com o tenebroso poema de Dante.

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No teatro de Atenas havia má-ximas que sobrepujavam, em muito, as melhores do Evange-lho.

E Sócrates? Havemos de falar dele? Apenas para inverter as pa-lavras de Rousseau, segundo as quais se a vida e morte de Sócra-tes são de um sábio, a vida e morte de Cristo são de um Deus. Sócrates não tremeu nem chorou diante da morte!

Grande era a liberdade conce-dida aos escravos em Atenas, onde eram tratados com doçura e humanidade244.

A filantropia e a anistia são palavras que vieram de Atenas; a sociabilidade era ali viva e inten-sa e a civilização ateniense, cheia de humanidade, de equida-de, de costumes aprazíveis, de razão e de ciência, de letras e ar-tes, era um verdadeiro foco de luz que iluminava o mundo anti-

244 Diz-se geralmente que o cristianismo aboliu a escravatura. Nada menos ver-dadeiro. Para os que assim pensam ve-jam a Bíblia Exod. XXI, 21, 24 e 27 Le-vit. XXV, 44 e 45 Proverb. XXIX; Ec-cles. XXXIII, 28; XLIII,5. - S. Paulo, epist. aos Epes. VI, 5,9 Fim. VI. 1,2. Os padres da igreja, S. Inácio, S. Isidoro, João, S. Crisóstomo, S. Agostinho, Bos-suet e Bouvier santificaram a escravidão e a Igreja praticou-a e serviu-se dela. Os últimos partidários da escravatura foram os maçons católicos. E a sua abolição deve-se à obra do livre pensamento.

go.Xenofonte fala em favor dos

escravos, das mulheres e dos pri-sioneiros de guerra, da exaltação dos humildes e da humilhação dos exaltados, etc.

Hisócrates promete, como os cristãos, aos que praticam a pie-dade e a justiça, não só a paz nesta vida, mas esperanças me-lhores na outra.

Em Platão, encontramos todo um sistema de máximas cristãs. Condena o suicídio e a voluptuo-sidade; recomenda a humildade, a castidade, o pudor; detesta a ri-queza: Ser bom e rico ao mesmo tempo, é impossível. Proíbe a vingança e proclama o desprezo dos sentidos, ao passo que exalta a alma etc. Não está aqui, por ventura, toda a moral cristã?

Em Platão se encontra, final-mente, o Pater Noster atribuído a Cristo.

Aristóteles, espírito mais posi-tivo, confunde a virtude com a justiça e chega a dizer que a co-munidade repousa mais no amor do que na justiça, e enfim, ante-cipando-se a Dante, que a justiça suprema é o amor. Recomenda que se não exponham ao público imagens indecentes, em respeito às crenças, e quanto a certos deuses obscenos, quer que só os

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padres os adorem.É certo que admite a escrava-

tura; mas se esta fraqueza é im-putada ao filósofo, do homem sabe-se que deixou em testamen-to, a liberdade aos seus escravos.

Ensinou também que a comu-nidade tem obrigação do instruir todos os seus filhos, e a este res-peito, o espírito positivo da mo-ral aristotélica sobreleva em muito o espírito nulo e decaden-te da moral evangélica.

Nem sequer o cinismo é estra-nho à formação da moral cristã. Diógenes, que foi um ateu mo-derno em toda a acepção da pa-lavra condenou o matrimônio, a família e a pátria, como depois vieram a fazer os monges cris-tãos.

Grande parte da moral cristã deve-se ao estoicismo, para o qual não ha mais que um bem, a virtude, nem mais que um mal, o pecado. Devemos especialmente aos estoicos a concepção da fra-ternidade humana universal, que ultrapassa as fronteiras de cada pátria em nome da universalida-de da raça, do Logos e do Verbo.

Eis aqui a essência do cristia-nismo, mas com uma diferença: é que este não procura a perfei-ção da alma pela própria virtude, mas unicamente para salvá-la,

para obter um prêmio na outra vida. Além disso, enquanto os estoicos amavam a liberdade po-lítica, os cristãos não se preocu-pavam com ela.

Aqui, evidentemente, os cris-tãos copiaram a parte pior do epicurismo, que ensinava a indi-ferença para com a vida pública.

Mas Epicuro tinha também ensinado que o escravo é um amigo de condição inferior, e re-comendava que não se lhe tocas-se.

A propósito da podridão que assolava a sociedade antiga, e aos pretextos dos cristãos em atribuir ao cristianismo, contra todas as evidências, o mérito de tê-la erradicado, Ernest Havet escreveu uma página maravilho-sa que, ao contrário do nosso hábito, reproduzimos na língua original para que não se perca a sua veemência.

C'est oublier bien facilement - escreve ele então no prefácio de sua obra imortal - que le monde d’après le Christ a conservé longtemps les mêmes misères; que l’empire byzantin a au moins égalé l'autre en scandales et en horreurs; que même sous la chrétienté moderne, la Rome des papes a été quelquefois aus-si impure et aussi sanglante que celle des Césars; que la torture

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a duré jusqu'à la Révolution française, et que l'esclavage dure encore. Car il n'y a pas de plus grand exemple des illusions que peuvent se faire les croyants, que leur obstination à faire honneur au christianisme et à l'église de l'abolition de l'esclavage; quand il est certain que l'esclavage antique a subsis-té dans l'empire chrétien comme dans l'empire païen, qu'il a duré assez avant dans le moyen âge, que le servage existait encore en France à la veille de la Révolu-tion; que l'esclavage des noirs s'est établi sous le règne de l'Église, qu'il persiste encore au-jourd'hui dans deux États, et que ces États sont catholiques; qu'il n'a commencé à tomber que de-puis le dix-huitième siècle, c'est-à-dire depuis que les Églises menacent ruine; et qu'à l'heure qu'il est, la Papauté, qui condamne si facilement et si im-prudemment tant de choses, n'a pu encore se résoudre à le condamner. L'Église a régné dix-huit cent ans, et l'esclavage, la torture, l'éducation par les coups, bien d'autres injustices encore ont continué tout ce temps, de l'aveu de l'Église et dans l'Église; la philosophie libre n'a régné qu'un jour, à la fin du XVIII e siècle, et elle a tout emporté presque d'un seul

coup”245. O grego Gelon, na Sicília, tra-

tando com os cartagineses, de-terminara que estes não imolas-sem mais vítimas humanas aos seus deuses.245 “É fácil esquecer que o mundo de-pois de Cristo conservou durante muito tempo as mesmas misérias. Que o Impé-rio Bizantino era, no mínimo, igual aos outros em escândalos e horrores. Que, mesmo na cristandade moderna, a Roma dos papas foi tão impura e sangrenta como a Roma dos Cesares. Que a tortu-ra durou até a Revolução Francesa, e que a escravidão ainda existe. Porque não há maior exemplo de ilusão possí-vel do que a determinação dos crentes em atribuir ao cristianismo e à Igreja Católica a abolição da escravatura, quando é certo que a escravidão antiga sobreviveu no império cristão tal qual no império pagão, e que, subsistindo ainda na Idade Média, a servidão sobre-vive na França até às vésperas da Revo-lução. Que a escravidão negra foi criada durante o reinado da Igreja e ainda per-siste em dois estados, e que estes Esta-dos são católicos. Que ela só começou a diminuir depois do século XVIII, o que significa dizer, depois que a Igreja Cató-lica passou a perder força e começou a ruir. E que até o presente momento o Papado, que condena tão facilmente e tão descuidadamente tantas coisas, ain-da não teve a dignidade de a condenar. O cristianismo tem reinado por mil e oi-tocentos anos, e a tortura, a escravidão, a catequese forçada e muitas outras in-justiças vigoraram durante todo esse tempo por obra da Igreja e na Igreja. A filosofia livre não reinou mais que um dia, no final do século XVIII, e quase levou tudo de um só golpe”.

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Em Cícero, encontramos um verdadeiro sacerdote cristão.

Muitas das suas sentenças, à parte da tão citada Charitas ge-neres humani, podiam ser reco-lhidas pelos livros cristãos para edificação religiosa.

Basta recordar a importante carta de Santo Agostinho, na qual este santo recomenda a lei-tura de Cícero, pela sua moral pura, declarando que a da Igreja não é diversa daquela.

Virgílio dizia: maxima debe-tur puero reverencia246. Lucrécio ensinava que o fraco deve en-contrar apoio em todos.

Horácio mostra-se cheio de sentimentos viris e delicados, ao mesmo tempo. A dignidade hu-mana, sobretudo, domina o seu coração.

A moral de Valério Máximo é já de todo cristã: tem um livro sobre a continência, um sobre a pobreza, um sobre a paciência e outro sobre a castidade.

A exaltação da pobreza prece-deu o cristianismo na própria Roma, sendo a sua grandeza ob-jeto da saeva paupertas, de Ho-rácio. Opes irritamenta malo-rum, pensava Ovídio.

E Lucano cantava:246 Deve-se à crença a máxima reverên-

cia.

O vitæ tuta facultas Pauperis, angustique lares, o

munera nondum Intellecta Deum!

A moral de Sêneca é por tudo e sobretudo cristã a ponto dele recomendar que sejamos superior às paixões, insensíveis à dor e ao prazer, e indulgente quanto à punição; Aconselha a generosidade e a bondade para com os escravos e chega até a dizer que todos os homens são iguais. Fala do céu como os cris-tãos e diz que todos somos filhos do mesmo pai. A sua pátria é a mesma dos Cristãos: o mundo todo 247.

Mas a sua moral era superior em muitos pontos à do cristianis-mo, porque ele quer que o fim da nossa vida seja a felicidade de todos, ao passo que o altruísmo cristão se limita aos eleitos sen-do por isso discriminatório e tem por fim o prêmio do céu, masca-rando um egoísmo. Sêneca quer suprimir a pena de morte, en-quanto que o cristianismo a con-serva. Finalmente, prega a to-lerância até para com os culpa-dos, que diz ele, em lugar de se-rem perseguidos, devem ser con-247 Entendamo-nos. Foi só o cristianis-mo de Paulo que tirou a pátria ao cris-tão. Cristo, esse era um acérrimo judeu nacionalista.

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vertidos248.Não falamos já na admirável

filosofia de Epiteto e de Marco Aurélio, tão cheias de caridade e fraternidade. Observa-se, geral-mente, como diz Havet, que os filósofos do mundo greco- roma-no foram mestres de moral, e consoladores, como deviam ser depois os sacerdotes cristãos, com a diferença que aqueles não estavam constituídos em casta privilegiada, nem impunham o seu dogma pela força.

É tempo de concluir. Vimos que a moral cristã se formou in-dependentemente do pretendido Cristo e que já existia, no que tem de bom, antes do cristianis-mo. Isto é consolador para a Hu-manidade, pois demonstra que a moral humana não é monopólio de uma seita, mas obra da mes-ma Humanidade. E daqui pode concluir-se que ela é tão antiga quanto a Humanidade racional.

Por conseguinte, não só não é precisa a presença de um Cristo para explicar esta moral, mas até a preexistência desta moral con-tribui para excluir o Cristo.

Porque, em todo o caso, o que fica claro é que a pretendida mo-ral cristã não foi inventada nem revelada pelo suposto Cristo,

248 De ira, livr. I, cap. XIV.

visto já existir antes dele e sem ele. Pelo contrário, o advento do cristianismo é até um princípio de decadência, sobretudo moral, decadência que explicaremos melhor, quando tratarmos da for-mação psicológica do cristianis-mo.

Apresentaremos agora, para mostrar a completa inferioridade do cristianismo em face ao poli-teísmo e ao judaísmo, o seu espí-rito anticientífico e dogmático que, agregando o imobilismo aos erros de então, sufocou a liber-dade de pensamento, fonte de todo o progresso intelectual e moral.

Na verdade, colocando a Bí-blia, com a sua cosmologia erra-da e pueril, e seus muitos erros científicos como uma emanação da verdade divina, não é de es-tranhar que se repute infalível tudo o quanto nela é dito, mes-mo no domínio científico, por-que Deus não pode errar e por-tanto, a ciência não poderia avançar para além das Colunas de Hércules da Bíblia.

A liberdade de pensamento foi banida para plagas longinquas porque é inadmissível o debate de ideias numa igreja que se ar-vora depositária da verdade divi-na absoluta, preocupada apenas com o zelo religioso.

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Sabe-se quão funestos foram os efeitos que daí derivaram.

Citamos como exemplo, a perseguição a Galileu, quando a mesma descoberta já havia sido anunciada na Grécia por Hiceta e Aristarco de Samos, (conforme Theophrastus) sem que eles ti-vessem sofrido qualquer tipo de constrangimento

A grandeza principal da Gré-cia é devida à liberdade de pen-samento e de palavra que ali se desfrutava, liberdade que foi a causa do rico florescimento do gênio, teorias e sistemas, e por isso foi tão produtiva.

Quando o cristianismo surgiu, o mundo greco-romano já tinha proclamado, especialmente pela boca de Lucrécio, a inflexibili-dade das leis naturais, e mesmo Hipócrates, quatro séculos e meio antes do tempo assinalado para Cristo, já mostrava as cau-sas naturais de fenômenos atri-buídos à obsessão;

Assim, o cristianismo repre-sentou um inegável retrocesso sobre os princípio científicos que já tinham sido reconhecidos pelos pensadores gregos.

No campo do conhecimento, o cristianismo infelizmente seguiu o judaísmo do Eclesiastes, que condena abertamente a ciência,

ainda que o Talmude reconheça a liberdade de opinião e de inter-pretações heterodoxas.

Com tais princípios, o cristia-nismo foi fatal para o progresso da , ao qual a liberdade de pen-samento é tão necessária quanto o oxigênio para os pulmões.

Mas ainda mais fatal para o progresso e a ciência, foi o cris-tianismo por seu ascetismo e seu distanciamento deste mundo, que o fez negligenciar todas as artes e estudos para melhorar a vida presente, considerada como uma mera peregrinação para uma outra vida, verdadeira, eter-na, a única importante para os alucinados crentes no além.

Gaetano Negri sintetizou ad-miravelmente o imobilismo da Igreja Católica com estas pala-vras:

O cristianismo tomou, de um lado, o antropomorfismo da di-vindade hebraica e o conceito de criação e de governo do uni-verso que encontrara nos textos sagrados de Israel, e de outro, o espiritualismo helênico, originá-rio da escola de Alexandria. Fundiu tudo, por obra do Concí-lio, num vasto sistema teológico baseado inteiramente em entida-des metafísicas, para em segui-da dizer: esta é a verdade, quem duvidar será amaldiçoado e per-

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seguido. Impôs à raça humana, como verdade absoluta, o que não era nada senão um produto mutável e passageiro de um mo-mento da evolução intelectual. Pôs a ferros o pensamento e condenou-o a viver por séculos e séculos na falsidade. A antiga civilização, decadente desde as

invasões e posteriormente sufo-cada por completo, disseminou por toda extensão do mundo a mais intensa barbárie. O cristia-nismo quis e soube como imobi-lizar a humanidade por muitos séculos. (Negri G., A Crise Reli-giosa, p. 64, Milão, Dumolard, 1878).

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CAPÍTULO IIA DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO

Depois de concluirmos que a mitologia judaico-romana e o mito de Cristo eram anteriores ao cristianismo e ao judaísmo, provaremos em seguida que nem sequer a doutrina cristã é origi-nal, formando-se primeiro e fora do pretendido Cristo. Veremos pois de que modo se formou aquela concepção metafísica e teológica de Cristo, que obscure-ceu por tantos séculos a sua ori-gem mitológica.

Três pontos, principalmente - e podemos até dizer unicamente - nos restam ainda a analisar, para completar os dogmas capi-tais da doutrina cristã: a imorta-lidade da alma, a ressurreição e dogma do Verbo.

O dogma da imortalidade da alma encontra-se na religião per-sa, tal como foi adaptado à reli-gião cristã. Os sequazes de Zo-roastro (1700 a 1000 aC) acredi-tavam que a alma se formava pura e imortal com o livre arbí-trio e que devia ser recompensa-da ou castigada, segundo os seus méritos ou deméritos. O dogma da imortalidade da alma era já conhecido dos persas, antes mes-mo de Zoroastro, segundo se vê pelas seguintes palavras da Ciro-

pédia (430 - 355aC): Disse Ciro ao morrer: Eu nunca pude per-suadir-me de que a alma, que vive enquanto está num corpo mortal se extinga desde que sai dele e que perca a faculdade de raciocinar, abandonando o que é incapaz de raciocínio.

Outros povos, como o egíp-cio, o indiano, o escandinavo e o gaulês, acreditavam já na imor-talidade da alma. Os hebreus não adotaram esta crença senão de-pois que se desenvolveu o co-mércio e relações que tiveram no desterro com as nações situadas além do Eufrates.

O dogma da ressurreição dos corpos é um dos principais do Zend-Avesta, e segundo Zoroas-tro, o fim do mundo devia prece-der aquele grande acontecimento que seria anunciado pelos profe-tas Ascedermani e Ascedermat e realizado pelo Messias persa.

Os dois primeiros substituí-ram-nos os judeus por Enoch e Elias e o terceiro pelo seu Mes-sias.

A doutrina dos Evangelhos era já, por conseguinte, um fato con-sumado antes do pretendido Cristo.

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E quanto à doutrina do Verbo, encontramo-la no Egito, onde o Deus supremo gera Kneph, a pa-lavra semelhante a seu pai; e da união do Verbo com o seu divino autor, nasce o Deus do fogo e da vida Fta, que vivifica todos os seres. Porfírio cita um oráculo de Serápis assim concebido: Deus é antes, depois e ao mes-mo tempo, o Verbo e o Espírito com um e outro.

Isto prova que os elementos da doutrina cristã preexistiam muito tempo antes daquele mo-vimento que lhes deu nova orga-nização, novo nome e nova for-ma.

Para sermos mais completos, rebuscaremos as origens no pró-prio judaísmo e helenismo249. Neles encontraremos ainda mais do que o que procuramos.

Tem-se dito que o cristianis-mo, apoiado no judaísmo, intro-duzira, ele só e primeiro que tudo, a unidade de Deus. Nada mais falho de provas. O judaís-mo conhece outros deuses.

Além disso, ainda mesmo que Jeová fosse o único deus dos he-breus, o cristianismo ajunta a Trindade, que decerto não era uma novidade, nem para as reli-249 Veja-se a tal respeito Salvador, obr. cit. Havet, obr. cit. e M. Nicolas - Dou-trinas religiosas dos Judeus.

giões orientais nem para o mes-mo politeísmo greco-romano, pois que, se tinham um grande numero de divindades inferiores, rapidamente copiadas pelo cristi-anismo, nos seus anjos e santos - tinham a sua Trindade e os seus deuses redentores, como já vi-mos, e sobretudo, tinham um Deus supremo, que em nada era inferior ao que logo foi o Deus Pai dos cristãos.

No mundo romano, o próprio Cantu admite (Hist. Univ. cap. VI) que o politeísmo se restrin-gira quase à crença num Deus único, a Júpiter e Apolo, sendo este, apenas um mediador entre Deus e os homens, a fim de por intermédio dos oráculos, revelar a sua vontade, e como salvador da Humanidade, que encarnou e viveu escravo na terra, submeti-do aos padecimentos para expia-ção do gênero humano.

Máximo de Tiro assegurava que, fosse qual fosse a forma, to-dos os povos acreditavam num só Deus, pai de todas as coisas. O mesmo dizia Prudêncio o povo tinha sempre na boca as expressões - Deus o sabe, Deus o abençoe, se Deus quiser. Os próprios oráculos falavam de Deus no singular.

Eusébio, Agostinho, Lactân-cio, Justino, Atenágoras e outros

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apologistas do cristianismo, re-conheciam também que a unida-de de Deus era admitida pelos antigos filósofos e formava a base da religião de Orfeu e de todos os mistérios gregos.

Além disso, sabe-se que o que produziu o êxito do Deus hebrai-co, fazendo-o comum a todos os cultos, foi um puro acidente de tradução, tendo a versão grega da Bíblia substituído o nome de Deus hebraico pelo de Senhor (em latim Dominus), que era o nome dado á divindade suprema (o Sol) por todos os cultos, na-quela época de evolução religio-sa em que nasceu e se propagou o cristianismo.

O amor de Deus não é inven-ção cristã encontra-se já no Anti-go Testamento, para não falar dos gregos, como atesta Planto, nem dos essênios, como observa Fílon. E a invenção do Pai Ce-leste, que se pretende achar em Jesus, pertence também ao Anti-go Testamento, especialmente em Isaías (LXIII, 15).

São de Ezequiel as palavras em que Deus declara não querer a morte do pecador, mas que se converta e viva (XVIII, 23; XX-XIII,11). O versículo de Paulo (Gal. III, 11 e seg.) segundo o qual o justo viverá da fé, encon-tra-se já em Habacuc (II, 4).

Porém, os elementos metafísi-cos da doutrina cristã procedem da filosofia grega, especialmente de Platão. Deste deriva igual-mente a doutrina metafísica do Verbo, tendo-o Platão, por sua vez, tirado do Egito250.

Platão foi o verdadeiro propa-gandista, - não dizemos criador porque a procedência é toda do místico Oriente - da metafísica cristã. Foi ele que popularizou a Trindade e o Logos, que propa-gou a distinção entre a alma e o corpo, subordinando este àquela, que fez desta terra um deserto, que reduziu, em suma, a sistema filosófico a decadência moral, que faz dos sentidos uma prisão e do mundo um mal, fazendo consistir a felicidade nos delírios metafísicos. Também a into-lerância religiosa, tirou-a o cris-tianismo das escolas místicas e espiritualistas da Grécia.

Cicero e Sêneca, no mundo romano, escrevem como perfei-tos padres da Igreja. Tanto que o primeiro converteu e inspirou S. Agostinho na teologia, e o se-gundo foi suspeito de haver tido relações filosóficas com algum dos apóstolos. Seria supérfluo repetir aqui a demonstração, que

250 Convém recordar que já antes de Pla-tão, Heráclito falara do Verbo, do mes-mo modo por que o faz o Evangelho.

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já é do domínio da filosofia e se conta entre as verdades experi-mentais adquiridas.

De todo o modo, a Idade Mé-dia, sinônimo de cristianismo, oferece-nos dela uma prova ple-na, porque nos conservou as obras daqueles autores, graças à afeição que por eles teve, exce-tuando o Hortêncio, de Cícero, provavelmente suprimido para evitar aos cristãos uma desairosa situação, pois que com ele se po-deria provar que o cristianismo foi anterior a Cristo251.

Poremos também de lado as provas que poderíamos tirar da cultura helênica, em demonstra-ção de que o cristianismo, ao menos na sua parte filosófica, ou antes metafísica, procede da len-ta elaboração dos materiais da-quela cultura, pois temos pressa de chegar à parte culminante da demonstração da nossa tese, que é a filosofia dos judeus alexan-drinos, os verdadeiros artífices do dogma cristão252.251 Havet prova que o cristianismo exis-tia todo, pelo menos em gérmen, no he-lenismo. Só lhe faltava a exaltação dos humildes e infelizes, que foi buscar, como vimos, ao judaísmo profético.252 Segundo Havet, as principais pala-vras da doutrina cristã são de origem grega: dogma, mistério, símbolo, cate-cismo, presbítero, bispo, diácono, mon-ge, teologia, invisível, criatura, corruptí-vel, afeição, etc. Esta observação é dig-

Com os judeus alexandrinos cristaliza o Oriente o espiritua-lismo helênico de Platão e o ju-daísmo, criando não só a doutri-na cristã mas o mesmo Cristo, ou antes, o Cristo metafísico, com o nome de Verbo. E de toda a sua doutrina, só faremos refe-rência à parte relativa ao mesmo Verbo, única que importa a nossa tese, acrescentando ainda aquele famoso ponto de intersecção ide-ológica, de que nasceu a doutri-na do Verbo que se faz carne, também sem que ainda existisse o nome de Cristo.

Importa recordar aqui a seita dos terapeutas do Egito, que eram os israelitas descontentes das práticas religiosas públicas do seu povo, os quais tinham abandonado o culto nacional do templo e do sacrifício, retirando-se à vida contemplativa, longe do comércio dos homens: que estabeleceram a comunidade de bens, tendo o matrimônio como um impedimento, querendo li-bertar a alma da tirania do corpo, obediente a uma severa discipli-na, abolindo os prazeres dos sen-tidos, aconselhando a caridade, a

na de ser notada, porque as palavras são o símbolo da ideia, e por sua vez, influ-em sobre as ideias e estas sobre os cos-tumes, sobre as religiões e sobre os acontecimentos e porque em todo o caso provam a verdadeira origem das ideias.

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beneficência e as preces em co-mum, condenando o juramento, exaltando a pobreza e o celibato, praticando a abstinência, etc. Eram semelhantes aos essênios da Palestina, outra seita análoga, mas não idêntica, pois esta ad-mitia o trabalho na agricultura e nos diversos ofícios.

Importa igualmente recordar aqui a opinião de Eusébio, se-gundo a qual os terapeutas, de que falava Fílon, como se fos-sem há muito uma seita cristã, eram os cristãos: opinião esta que demonstra, com uma evi-dência incontestável, que o cris-tianismo existia já antes do pre-tendido Cristo.

É certo que a critica impugna a afirmação de Eusébio. Mas com que fundamento? Que razão ficará que justifique a objeção feita pela crítica à afirmação de Eusébio, se suprimirmos a fonte suspeita da Bíblia? A opinião de Eusébio é fundamentada em fa-tos, e segundo eles, os terapeu-tas eram já em ação, verdadeiros cristãos.

E tanto assim é, que o próprio Strauss, um dos que combatem a opinião de Eusébio, se vê obri-gado a confessar que a seme-lhança e o parentesco dos essêni-os e terapeutas com o cristianis-mo primitivo, tem dado sempre

muito que pensar.Para os essênios e terapeutas

praticarem toda a moral e doutri-na cristã, só lhes faltava a doutri-na da encarnação do Verbo. Foi esta a obra dos hebreus alexan-drinos.

Os principais autores hebreus alexandrinos, de que nos ocupa-remos neste lugar são Aristóbu-lo253 e Fílon, principalmente Fí-lon, aquele Fílon que deixamos noutro ponto do nosso trabalho, quando explicava, em alegoria o Antigo Testamento.

Este Fílon, a quem Havet cha-ma o primeiro dos padres da Igreja, nós o consideramos como o verdadeiro fundador do cristia-nismo, o criador do Verbo, o cri-ador de Cristo, apesar de nunca ter falado em Cristo, e precisa-mente, por isso mesmo...

Fílon discorre acerca do Ver-bo, não no sentido de Salomão ou do Livro da Sabedoria, não à maneira de Heráclito, de Zenon e de Platão, mas sob o influxo da mitologia egípcia, de tal modo que devia servir, depois, de base ao cristianismo, não faltando se-não o nome de Cristo e a aplica-

253 Que foi o primeiro hebreu alexandri-no que tentou a fusão do hebraísmo com o helenismo. Vid. Vacherot, His. crit. da escola de Alexandria. Introdução, libr. II..

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ção do antropomorfismo dos Deuses Redentores orientais ao seu Verbo, para completar a fu-são do Oriente (espécie egípcia) com a Judeia e a Grécia, e a transformação de tantos materi-ais, tantas vezes fundidos numa nova religião254.

Já Salomão tinha distinguido a sabedoria divina de Deus, fa-zendo dela o instrumento da cri-ação. Por isso, o Livro da Sabe-doria define a natureza deste princípio intermediário, transfor-mando o pensamento vago de Salomão sobre a sabedoria, na doutrina do Verbo propriamente dito.

No Eclesiastes, de Jesus de Sirac, a doutrina do Verbo é ain-da mais precisa: A sabedoria vem de Deus, e com ele esteve sempre. Foi criada antes de to-das as coisas, e a voz da inteli-gência existe desde o princípio. O Verbo de Deus, no mais alto do céu, é a fonte da sabedoria.

E aqui já nós estamos muito perto da linguagem do quarto Evangelho255.254 Vacherot, na sua obra a Religião, no-tando a perfeita identidade da teologia do quarto Evangelho com a do Verbo platoniano e alexandrino, deduz que não deve duvidar da origem grega do Verbo cristão.255 No livro da Sabedoria, está já nitida-mente professada a divisão da alma e do

Fílon porém, dá o Verbo feito humano. Segundo ele, Deus é inefável e inacessível à inteli-gência humana que, mesmo aju-dada pela graça divina não che-garia até ele, se Deus não des-cesse até ela e se não se lhe reve-lasse. Nesta revelação, Deus não se mostra aos homens na sua fi-gura invisível, mas mostra a sua imagem, o Verbo. Este Verbo, em Fílon, é alguma coisa mais que em Platão.

Em Filon, dado o principio da essência impenetrável de Deus, que não pode proceder à criação do mundo nem comunicar com os homens criados sem a obra de um mediador, o Verbo converte-se precisamente neste Mediador. Para Fílon, o Verbo não é só a palavra, mas a imagem visível, a figura de Deus.

Ele é o ungido por Deus, o tipo ideal da natureza humana, o Adão celeste. Nesta última deno-minação, que devia ser mais tar-de empregada, no mesmo senti-do, por S. Paulo, crê Vacherot que está precisamente contido o princípio de uma grande doutri-

corpo, bem como o dogma da vida futu-ra e imortalidade da alma. S. Jerônimo, que traduziu do grego o livro da Sabe-doria, declara que tal obra não existia em hebraico e que os antigos escritores a atribuíam ao filosófo hebreu Fílon. É uma circunstância bem digna de reparo.

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na - a da encarnação do Verbo de Deus sob a fôrma humana256...

O mesmo Fílon diz que, se Deus criou o homem à sua ima-gem, não é a ele a quem pode comparar-se, mas ao Verbo de Deus. De modo que, observa Va-cherot, o Verbo de Fílon é parti-cularmente o tipo da natureza humana. Com Fílon, pois, o Ver-bo de Platão deixa de ser uma pura entidade abstrata para se converter em princípio de vida, para se encarnar.

Mais ainda: em Fílon, o Verbo converte-se em filho de Deus, que, por sua vez, é pai de todos os homens, que por isso são fi-lhos do mesmo pai. Porque, se o Verbo divino é o tipo da Huma-nidade, também o pai o é, e to-dos os homens são seus filhos: filhos do Verbo, antes de serem filhos de Deus...

Melhor ainda: segundo Fílon, o Verbo, mediador entre o cria-dor e a criação intercede junto do Eterno pela mísera Humani-dade, e além disso, interpreta as ordens de Deus aos homens... Assegura ao criador que a cria-tura será fiel à lei suprema, fora da qual não será coisa alguma, e, por outro lado, assegura à criatura que o criador não a 256 Vacherot, Escola de Alexandria, Introd. livro II, Fílon.

abandonará à sua fraqueza e impotência.

Fílon faz mais ainda: oferece-nos a eucaristia, a ceia, o que, em linguagem científica, chama-mos teofagia. Dá ao Verbo os nomes de pão da vida, de pão por excelência, indispensável (aos fieis) para se alimenta-rem257.

Poderíamos continuar o exa-me da doutrina de Fílon, que é absolutamente cristã, tanto na te-oria do Verbo como na da Trin-dade e no seu misticismo, de tal modo que o cristianismo não teve que acrescentar mais do que palavras, deixando incólume a substância.

Ao nosso plano, porém, im-porta que nos detenhamos aqui, porque, buscando a formação da doutrina Cristã antes do preten-dido Cristo e sem ele, alguma coisa mais encontramos: a dou-trina cristã de onde nasceu Cris-to. Não foi, pois, Cristo que cri-ou o cristianismo. Foi o cristia-nismo que criou Cristo.

Este Fílon, que fala como 257 Hic est panis, cibus quem doclit Deus animibus ut se pascant. Verbo ipsius at-que sermone. Nam hic est panis datus nobis ad viscendum vedelecit verbum hoc... Audiat igitur anima vocem Dei, quod um solo pane vivet homo fact us ad unaginem, sed omni verbo quod pro-cedit ore Dei (Philo. Legis, alleg. III).

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cristão, que funda o cristianismo - embora o nome da nova seita não apareça ainda em suas obras - e que, além disso não conhece Cristo, de quem forçosamente devia ser contemporâneo, não será, porventura, a mais formosa e contundente prova de que Cris-to nunca existiu?

Numa palavra: se recordarmos o que escrevemos no princípio deste trabalho, isto é, que os dis-cípulos imediatos de Fílon, Cle-mente Alexandrino (depois colo-cado no número dos santos!) e Orígenes não falavam de Cristo como homem; se recordarmos que o próprio S. Paulo fala de Cristo como do Adão celeste, à

maneira de Fílon; se acrescentar-mos o fato bem notório de que, em geral, os primeiros padres da Igreja se não interessaram pela humanidade de Cristo, conside-rando nele apenas o Verbo e o fi-lho de Deus, estaremos autoriza-dos a declarar que, mais do que nunca, fica demonstrada inteira-mente a nossa tese, e a pedir à ciência que retifique as opiniões seculares acerca de Cristo, e que, de pessoa humana, como foi jul-gado durante mais de quinze sé-culos, o faça voltar ao que foi em suas origens: uma pura enti-dade abstrata, uma criação mito-lógica e metafísica da Humani-dade.

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CAPÍTULO IIIO CULTO CRISTÃO SEM CRISTO

Em realidade, este capítulo não era preciso ao nosso assun-to; mas, para que se veja que o cristianismo não trouxe novida-de alguma ao mundo e que não é necessária a presença de Cristo para explicar a religião cristã, lançaremos uma rápida vista às práticas religiosas, às cerimonias e à parte exterior ou social das religiões que precederam a cris-tã, as quais nos provam que tam-bém o culto cristão antecedera o cristianismo, salvo algumas le-ves modificações, de forma, que a diversidade dos tempos e dos povos explicam. Escusado é di-zer que nos limitaremos aos cul-tos antigos que passaram para o cristianismo.

A tese, pois, e esta: as práticas das antigas religiões foram copi-adas pela cristã.

A religião de Brahma coloca a casta sacerdotal acima da socie-dade: só ela é que tem conheci-mento das coisas santas, só ela pode ler os Vedas, oferecer sacri-fícios, ensinar a religião e apro-priar-se das esmolas depositadas nos templos; as terras dos brah-manes são as únicas isentas de impostos.

O sumo sacerdote não pode casar-se e é venerado como um Deus, podendo fazer cessar os açoites o as calamidades públi-cas.

Na religião de Buda, os bon-zos devem ser bem tratados, pro-vidos dos respectivos mosteiros e do necessário para viver. Tam-bém estes não se casam. O Da-lai-Lama é o seu papa, isto é, o vigário de Deus e o sucessor de Fo, considerado infalível como o católico. No budismo era anti-quíssima a prática de celebrar concílios, a fim de condenar e evitar os erros infiltrados na reli-gião, bem como a de enviar mis-sionários a outros países.

Também o budismo, especial-mente no Tibete, abundava em mosteiros, uns para homens, ou-tros para mulheres, sendo nume-rosíssimos os irmãos258.

258 No livro célebre de Andrea Dickson White, História da luta entre a ciência e a teologia na cristandade, cap. XX, vem descrita a missão que em 1839 o padre Huc, lazarista francês realizou na China. Por ela se vê que tudo quanto há no cristianismo - cerimonia, ritos, sím-bolos, moral, - tudo ali o encontrou ele, realizado, prático, perfeito, superior. O missionário, a vista disto, ficou confun-dido, mas logo a sua fé encontrou uma

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Na religião dos persas aparece a divisão hierárquica do clero em várias ordens e a ele pertence a décima parte das rendas dos ci-dadãos. Os magos persas deviam ser puros e abster-se de todo o trabalho manual.

No Egito, os sacerdotes for-mavam a primeira casta da na-ção tinham o poder de eleger os reis e limitar a sua conduta; os seus alimentos eram fornecidos pelas classes inferiores, a quem arrendavam as terras dos tem-plos; só eles tinham o direito de instruir e oferecer sacrifícios.

Nada de novo, pois, debaixo do sol, como diria Salomão, no que se refere ao sacerdócio cris-tão: tudo estava já em prática nos povos mais antigos.

Inseparáveis dos sacerdotes são as profecias, os oráculos, os sortilégios, os prodígios, os exorcismos, porque a sua missão seria inútil, se não tivessem, ou

explicação: que Satanás, antecipando-se ao cristianismo, revelara ao budismo essa ordem de coisas divinamente cons-tituída. A Igreja romana, porém, não aceitou tal explicação. O cardeal Anto-nelli e todas as autoridades da Roma pa-pal, vendo o perigo que essas revelações traziam em pleno século XIX, proibiram a circulação do livro do padre Huc, mas foi debalde, porque, a esse tempo, já ele se tinha espalhado em todo o mundo, em diversas traduções. Padre Huc, nun-ca mais fui enviado a fazer missões.

não julgassem ter, algum poder oculto sobre a Natureza, para in-teresse das necessidades huma-nas.

Pois bem: os brahmanes indi-anos tinham o poder de paralisar, com maldições e malefícios, a ação insidiosa de Mahadeva, e possuíam certas plantas e lico-res, a que atribuíam virtudes mi-lagrosas.

As expiações são o alimento ordinário das religiões anteriores ao cristianismo, de modo que a cristã não faz mais do que copi-ar. As mortificações dos indianos jamais foram excedidas, mesmo pelos mais ferozes ascetas da Idade Média.

Uns arrastam cadeias de ferro por toda a vida; outros trazem sobre as carnes agudos espinhos de ferro; estes caminham sobre carvões acesos; aqueles passam a vida inteira imóveis; um peni-tente faz em dez anos a peregri-nação de Benares, medindo com o corpo o espaço que o separa... E quantos se deixam despedaçar debaixo das rodas dos carros que conduzem os deuses!

No budismo, há certas épocas do ano destinadas ao jejum, à abstinência de carnes e a muitas práticas austeras, entre as quais a de se transportarem aos templos, de joelhos.

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E, como estes, os egípcios, os gregos e os romanos.

Os votos são comuns a todas as religiões, exceto à de Confú-cio. O voto de castidade, sobre-tudo. Encontra-se na Índia, no Egito, na Grécia, em Roma, onde o colégio das vestais era um verdadeiro convento as jo-vens romanas, que entravam aos seis anos, para lá permanecerem até aos quarenta, faziam voto de não deixar extinguir o fogo sa-grado e de conservar a virginda-de. Se alguma delas violava este último compromisso, era sepul-tada viva e o amante condenado à morte.

Acerca dos sacrifícios, já vi-mos como eles se usavam nas religiões antigas. Os budistas, por exemplo, oferecem a Deus pão e vinho, que representam o corpo do Agni, e os bonzos, an-tes da cerimônia, abençoam o povo.

A missa é completamente pagã, até nos mais pequenos de-talhes litúrgicos.

O sacerdote, vestido de bran-co, purificava o templo e os fiéis com agua benta. A cerimônia era acompanhada de hinos ao Sol e ao Fogo, de onde procedem os nossos Kyrie-eleison, etc.

Em seguida, tinha lugar a

imolação da vítima que, com o tempo, foi substituída pela hós-tia259.

O sacerdote, antes de fazer a libação do vinho sagrado, (a pa-lavra libação provém de ser o vinho oferecido a Líber, Baco) lavava as mãos.

O Lavabo é uma oração anti-ga, que remonta a Orfeu. As ga-lhetas para as libações, uma para deitar a água nas mãos e outra para o vinho, já existiam tal como hoje.

O celebrante, ora ajoelhava, ora se levantava, erguia as mãos ao céu, estendia-as sobre a hós-tia, voltava-se para os circuns-tantes, queimava incenso, ofere-cia pão e vinho à divindade, in-vocando-a três vezes no Sanctus e no Agnus dei. Por fim, despe-dia os assistentes. Em Roma era com as palavras - ite míssio est - de onde veio, por corrupção, o ite missa est.

A elevação do cálice é de ori-gem ariana.

Os persas tinham a sua euca-

259 Pretende-se que a cristianismo aca-basse com os sacrifícios sangrentos. Nada menos verdadeiro. O uso de não imolar homens estava já há muito em prática, e até mesmo o de animais já ti-nha acabado, quando triunfou o cristia-nismo. A hóstia de pão era já usada en-tre egípcios e romanos.

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ristia, tal como os católicos.Pelo que se refere às orações,

o cristianismo está muito longe das religiões que lhe serviram de modelo. Os budistas tinham já a sua coroa - convertida pelos cris-tãos no rosário - de que se servi-am colocando os dedos entre os grãos e escrevendo num papel o número dos recitados.

Na religião de Zoroastro é prescrita a oração fervorosa, com pureza de pensamentos, pa-lavras e obras. A oração humil-de, acompanhada de sincero ar-rependimento era considerada superior a todo o existente.

O pater, o credo e o confiteor, eram as mais importantes ora-ções dos persas.

Na Grécia, a oração fazia-se pela manhã e à noite, ao nascer e ao pôr do sol. Os fiéis iam para o templo de olhos baixos e ar su-plicante beijavam o chão e fica-vam de joelhos. E na Etrúria era já costume antigo rezar com as mãos juntas.

Os romanos tinham duas es-pécies de orações: as execrações que se dirigiam contra os deuses, por ocasião das calamidades, e as súplicas, que eram pedidos de graças.

A confissão auricular já se praticava no brahmanismo, e os

confessores empregavam as mesmíssimas formas dos atuais sacerdotes católicos. A confissão era também usada pelos persas.

Os hábitos ou vestimentas sa-cerdotais são tirados das antigas religiões, em todos os seus deta-lhes. A sotaina procede dos sa-cerdotes de Mitra, bem como a estola, onde estavam representa-dos os signos do zodíaco.

0 uso de rapar toda a barba, era próprio dos sacerdotes, desde a maior antiguidade, e significa-va um grande sacrifício, pois às barbas se atribuíam certas virtu-des. O barrete preto, ou tricorne, é igual ao que usavam os sacer-dotes de Júpiter, em Roma.

O solidéu negro, o báculo, o anel de ouro, as sandálias, o manto branco, a tiara, são cópia dos costumes sírios e babilôni-cos.

Já falamos das festas da Nati-vidade e da Páscoa; acrescenta-remos as mais importantes, como são, por exemplo, a come-moração dos defuntos e a pri-meira comunhão, todas elas an-teriores ao Cristianismo.

As peregrinações eram já pra-ticadas pelos indianos.

As ladainhas são antiquíssi-mas. Malvert, no livro a que já nos referimos, confronta as la-

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dainhas da Virgem Maria com as das virgens-mães, que a precede-ram, e vê nelas a origem das próprias palavras da ladainha da Virgem.

As procissões remontam igualmente à mais remota anti-guidade. Ovídio e Apuleyo des-crevem procissões em honra de Juno e Diana, em tais termos, que poderiam aplicar-se às de nossos dias.

Havia também o costume de adornar as ruas quando passava a procissão, figurando nela alta-res, incenso, promessas, crianças vestidas de branco e sacerdotes de cabeça raspada, relíquias sa-gradas, etc.

As preces públicas eram em Roma a Ambarvalia, e tinham também lugar em maio, através dos campos, pedindo para eles a proteção divina. No solstício do verão, celebrava-se a festa do Sol, que o cristianismo conver-teu na de João.

Os budistas levavam estandar-tes nas procissões, uso que pas-sou para Igreja romana, sem al-teração alguma.

No budismo, os fieis eram chamados à igreja pelo toque de campainhas e no vestíbulo de to-dos os templos gregos havia água lustral.

Os cânticos e a música eram também já usados nas cerimôni-as religiosas dos gregos e roma-nos. O mesmo diremos dos círi-os e das lâmpadas, que se acen-diam para honrar a luz, princípio gerador do Sol e dos astros.

O culto das imagens é antigo como o homem. Tem-se dito que o cristianismo foi o primeiro e único a aboli-lo.

Plutarco, porém, recorda que os tebanos não representavam Deus sob forma alguma e o pró-prio Numa admoestou os roma-nos para que não fizessem ima-gens materiais dos deuses.

Mas até o cristianismo acabou por adotar o culto das imagens, e caso curioso, muitas vezes suce-de que as imagens dos deuses antigos são objeto da devoção dos cristãos, com uma simples mudança de nome.

Das cerimonias que acompa-nham o nascimento, importa re-cordar a dos indianos, que lava-vam o menino em água benta, dando-lhe em seguida o nome de um gênio, que se convertia em seu protetor, menino que ao fim de quatro meses era oferecido ao Sol, cortando-lhe os cabelos em forma de coroa para imitar o dis-co daquele astro.

Nas dos persas, o mobed (sa-

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cerdote) batizava a criatura, es-premendo- lhe na boca, com al-godão, o suco da árvore chama-da hom - cerimônias que passa-ram todas para o cristianismo.

Entre os indianos, quando a criança chegava à idade de oito anos, começava a recitar o hino ao Sol, e pouco depois, ia à es-cola do Gurom ou diretor espiri-tual, que lhe ensinava os Vedas.

Entre os persas, a criança de-via, aos quinze anos, preparar-se para as cerimônias do Zuzodi ou iniciação na religião e só então era purificada e conduzida ao templo. O mesmo sucedia entre os egípcios.

Acerca do matrimônio, as ce-rimônias que a ele presidiam eram quase as mesmas, assim como na morte.

Entre os indianos, a extrema unção consistia em banhar as mãos do enfermo em urinas de vaca.

Como se vê, esta ligeira rese-nha das principais cerimônias do culto das religiões pré-cristãs, embora parecesse, a princípio, estranha ao nosso tema, deu, contudo, em resultado mostrar que, ainda aqui, a religião cristã nenhuma necessidade teve de criar coisa alguma porque todos os elementos do seu culto pree-

xistiam já nas várias religiões, das quais ela os copiou.

É certo que nos podem obser-var que nos Evangelhos nada se encontra referente ao culto, mas isto é ainda um fato que depõe a nosso favor, pois não só prova que quem escreveu os Evange-lhos se não preocupava com o culto, porque evidentemente pra-ticava já um, mas também que o que depois foi culto de uma ou outra seita cristã não se tinha ainda adotado, ou antes diferen-ciado dos precedentes, com ca-racteres distintos, porque primei-ro devia criar-se o novo Deus e a crença nele mesmo.

Sob este ponto de vista, as contendas e lutas entre as várias seitas cristãs, relativas a este ou àquele ato do culto são verdadei-ras sandices e perdem todo o va-lor, já que todas elas beberam da mesma fonte oriental, o mito do Deus Redentor, encarnado no novo Deus.

Importava à nossa argumenta-ção demonstrar que nem para criar o culto cristão era preciso a existência e a obra do pretendido Cristo, tanto mais que, do exame do culto, tiramos para a luz, es-plêndidas e irrefutáveis provas da origem e natureza mitológica de Cristo.

Concluiremos, pois, dizendo, 165

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com Stefanoni, que em vários pontos da sua admirável obra es-tabelece com grande lógica e só-lida argumentação a pergunta - se Cristo realmente existiu: A nova época (a do nascimento do Cristianismo) estava, por conse-guinte, irrevogavelmente prepa-rada. Nem cataclismos, nem quebras de tradições a inicia-ram; veio lenta, insensível, qua-se inesperada, a erguer as inte-ligências a uma nova ideia. Não iniciou, mas completou o traba-lho de vários séculos.

O cristianismo não foi, pois, obra de um só homem nem de poucos anos, mas o resultado de largo trabalho de vários povos, o conjunto dos progressos ge-rais de cada um, feitos em todos os tempos.

E, ainda que a fé ensine que a nova religião foi consequência da divindade novamente revela-da, a História, fundamentada em documentos pode afirmar com toda a segurança que o cristianismo existia antes de Cristo260.

260 Stephanoni, História Crítica das Superstições, vol. 1, cap. XVI.

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CAPÍTULO IVFORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO

O haver demonstrado que to-dos os elementos que formaram o cristianismo já preexistiam nos vários cultos e escolas filosófi-cas, que o precederam, não bas-taria ainda para explicar a razão por que vieram a fundir-se num único corpo de doutrinas e cren-ças, dando origem a uma nova religião. Esta razão deve ser procurada fora dos materiais da nova religião, da qual forma a parte objetiva; esta razão não pode ser mais do que o estado subjetivo dos ânimos, nos tem-pos e lugares onde o cristianis-mo se foi elaborando, paulatina-mente, como difusa nebulosa que, pelas mesmas leis de gravi-dade que regem o Universo, deu princípio a um novo núcleo de atração em torno do qual vieram gravitar as forças psíquicas da evolução humana.

E aqui surge de novo a obser-vação de que hajam sido vãos todos os esforços que se têm ten-tado para determinar o momento preciso da origem histórica do cristianismo por parte das inteli-gências positivas, que com justa razão, não podem reconhecer o milagre, afirmando que o nasci-mento de uma religião não pode

ser uma coisa palpável, concreta, determinada ou determinável, mediante meios diretos e experi-mentais de observação, mas sim o produto de um processo lento e quase imperceptível em suas fases, de um trabalho absoluta-mente interno, imponderável, in-definível e indeterminável, do conjunto das capacidades huma-nas.

Quando se apresenta como um fato completo e consumado na cena da história, não pode dizer-se, com justiça, qual seja a sua fonte, porque as suas origens perdem-se na noite dos tempos, e especialmente, naquele misté-rio, quase impenetrável - porque, inadvertido quando se difunde, está já difundido e consistente quando se dá por isso - da filia-ção das ideias e dos sentimentos, que constituem a causa verdadei-ra da formação de uma religião nova.

Mas, se não podemos determi-nar o verdadeiro momento da história em que surgiu o cristia-nismo, podemos, em compensa-ção, fixar a sua causalidade e de-terminar, precisamente, o pro-cesso da sua formação. Este meio é a psicologia que avalia os

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fenômenos morais com o estudo das condições do meio ambiente.

Sem pretendermos descrever a fundo a formação psicológica do cristianismo, daremos contudo, deste fenômeno, uma explicação suficientemente clara, até mes-mo sob o ponto de vista positivo e evolucionista.

Diz-se, e é mesmo um lugar comum arraigado na persuasão de todos, até de muitos positivis-tas, e que só se explica pela grande força da tradição, que o cristianismo fora um progresso moral, devido à necessidade de pôr termo à corrupção do paga-nismo.

Pois bem: ainda com risco de sermos apedrejados, contra essa infundada crença nos revolta-mos, só porque é infundada, e em nome da verdade e como ho-menagem à justiça, devida tam-bém aos homens que tiveram a desgraça - ou a fortuna - de viver antes do cristianismo, declara-mos que a causa psicológica do advento do cristianismo foi um princípio de decadência e não de progresso.

E desde já passamos a de-monstração, deixando que falem os fatos para que, num argumen-to de tanta monta não figure a retórica em linhas de combate.

O cristianismo, que foi o en-contro dos hebreus e dos gregos no Egito, crisol onde se realizou a fusão do Oriente com o Oci-dente - consumado organica-mente em Roma - absorveu de todos esses povos, como expo-ente comum e denominador de suas diversidades étnicas, o con-junto daquelas lágrimas das coi-sas de que falava então, precisa-mente, o poeta latino.

O cristianismo fez a sua apari-ção quando hebreus, gregos e ro-manos tinham perdido a liberda-de, a felicidade e a esperança de reconquistá-las no mundo pre-sente; veio quando a felicidade de viver, própria da antiguidade primitiva, que teve o seu apogeu na Grécia, foi destruída pela re-flexão e pela prática dolorosa da vida, dando lugar ao tédio, às de-silusões trazidas pelas contínuas adversidades, aquela dor univer-sal das coisas, que tornava a existência inexplicável e intole-rável ao mesmo tempo, porque com a cultura, tinha também au-mentado o sentimento da into-lerância dos males que afligiam os homens e os povos.

Como diz Gaetano Negri, in-comparável filósofo e artista: E não podendo o homem renunci-ar à felicidade, não tem mais que um meio para sair de sua

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miserável condição o de trans-portar esta sua felicidade da vida terrena para a vida trans-cendental, a de admitir a adver-sidade no mundo presente, para a substituir, se assim pode dizer-se, pela esperança da felicidade no mundo futuro. Esta foi, justa-mente, a doutrina do cristianis-mo261.

A ciência experimental não ti-nha ainda nascido, e a Humani-dade, combalida, não tinha então outro remédio contra os males desta vida, além da esperança na vida futura. O cristianismo foi pois, uma doutrina nascida da decadência. Foi por conseguinte, a religião da decadência262.

A sorte do povo hebreu, conti-nuamente escravizado por uma e outra dominação, desiludido nas suas esperanças de voltar aos tempos felizes e à glória, tinha preparado aquela literatura da dor, que deveria consolar os hu-mildes e os aflitos e ser um po-deroso elemento para a forma-261 Gaetano Negri, Crise Religiosa.262 Emíle Zola, com sua vista de águia penetrou até a íntima essência do cristi-anismo, ao escrever: É do negro pessi-mismo da Bíblia que é preciso libertar o mundo, espantado e esmagado há dois mil anos, vivendo apenas para a morte; e nada é mais caduco nem mais mortalmente perigoso que o velho Evangelho semita aplicado ainda como único código moral e social.

ção e difusão do que mais tarde se chamou cristianismo.

O advento desta filosofia da dor, da resignação e do desprezo da vida presente precedeu igual-mente as mais graves calamida-des públicas na Grécia e em Roma.

Platão - o primeiro padre pré-cristão da Igreja - escrevia preci-samente quando os destinos de Atenas decaíam a olhos vistos.

As ruínas morais da pátria não fizeram senão dar maior incre-mento à filosofia de Platão, àquele misticismo que, destacan-do-se da vida real por sua bruta-lidade, sem liberdade nem justi-ça, em si mesmo se concentrou, como em último refúgio.

Encaminhada assim, a filoso-fia grega chegava por um lado à Egesia, que aconselhava a morte voluntária como meio mais se-guro para alcançar o repouso da alma, a paz sem inquietações, e por outro lado, ao Livro do Luto, do acadêmico Crantor, modelo das consolações.

Não andavam melhor as coi-sas de Roma, no século anterior ao advento do cristianismo.

Este século, que depois de ter reduzido tantos povos à domina-ção de Roma, submete a mesma Roma ao domínio de um só,

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inaugura-se sob os auspícios de uma interminável guerra entre cimbros e tentões; vê levanta-rem-se todos os povos da Itália contra Roma; assiste às guerras entre Mário e Sylla; admira Es-pártaco, que à frente dos escra-vos fez tremer os senhores; hor-roriza-se com a organização ge-ral e terrível dos piratas; na Áfri-ca, na Espanha, na Bretanha, vê cenas de ferocidade e de luta; as-siste às guerras de Mitrídates e dos partos no Oriente, às fações de Pompeu, de César, de Bruto, de Antônio e de Augusto, que di-vidiram e ergueram em armas o mundo que Roma dominava.

É então que desabrocha um grande mal estar para a vida, nada se esperando já da liberda-de nem da lei; o suicídio conver-te-se numa salvação, e a morte é considerada, não como o termo, mas como o objetivo da vida é a filosofia da desolação, que inspi-ra a Tusculane de Cícero.

E como a arte é o termômetro moral do tempo, nós vamos en-contrá-la em Horácio, pessimista até ao ascetismo263.

E esta era a disposição dos es-píritos, antes de Augusto. O que não seria depois, nos sucessores, sob Tibério e Nero? 263 Paulo Orano, O Problema do Cristianismo.

Daquele ambiente não podiam sair senão almas cristãs, como Sêneca. E eis porque, naquela época, começa a fazer à sua apa-rição misteriosa o nome cristão e com ele o objeto.

A filosofia converte-se em re-ligião, e esta na religião do sofri-mento e da morte nesta vida, para gozar na outra o paraíso.

Vejam se naquele ambiente não deviam surgir e tomar forma concreta, as esperanças messiâ-nicas dos hebreus, anunciando o fim próximo do mundo, a ressur-reição e a palingenésia univer-sal!

Vejam se, ao antimoralismo daquele tempo, não era necessá-rio o ultramoralismo oriental, se-gundo a feliz antítese de Renou-vier264, para que, a fim de curar um excesso, viesse um excesso contrário, e a fim de curar um mal viesse outro mal - um outro mal que, desgraçadamente, per-maneceu no corpo social enfer-mo e debilitado, sem que tenham conseguido ainda expulsá-lo as repetidas renascenças do natura-lismo filosófico e do experimen-talismo científico.

Por outro lado, enquanto a moral degenerava, as crenças na antiga divindade esfumavam-se 264 Citado por Benoit Malon no livro Questões Ardentes.

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até desaparecer de todo. Se a fé diminuía, não era tanto obra do livre exame, mas do encontro entre os vários cultos e a crítica recíproca.

Sobretudo, devia ter sido de uma grande influência e contato com os persas, pois não tendo os seus deuses estátuas nem altares, animando o seu culto apenas o elemento puramente espiritual, os gregos seriam levados a me-ditar sobre o grosseiro antropo-morfismo dos seus deuses.

Isto não quer dizer que à anti-guidade clássica faltassem espí-ritos liberais e críticos raciona-listas: Anaxágoras, Epicuro, De-mócrito, Protágoras, Diágoras de Melos, Lucrécio, etc., são nomes que o moderno livre pensamento pode colocar entre os seus mem-bros honorários.

Já, além disso, o estoicismo encontrara a verdadeira explica-ção da origem das religiões nos mitos, nos quais a imaginação dos antigos, desconhecedora das leis da Natureza, intentara expli-car os fenômenos naturais. Já Evemero de Messina estabelecia a teoria de que os deuses não eram mais que grandes homens ou reis divinizados, teoria que esteve muito em voga até os nossos dias, e que ainda hoje é verdadeira para certas tradições

secundárias, e que no seu tempo, devia ter exercido uma influên-cia demolidora sobre as religiões constituídas.

A incredulidade entra nas consciências de tal modo, que até Virgílio admirava Lucrécio nos famosos versos: Foelix qui potuit rerum cognoscere causas. (Feliz. aquele que foi capaz de aprender as causas das coisas )

E o próprio Séneca, o cristão Séneca, escrevia o não menos fa-moso verso em que faz acabar tudo com a morte.

Estava portanto batido o poli-teísmo. Na sociedade culta era moda ser incrédulo. Não se cria em milagres, nem pouco nem muito, e a idolatria, essa era só para o vulgo.

A crítica religiosa tinha chega-do, com Cicero, até á negação absoluta da divindade, nos seus diálogos sobre Deus e sobre a adivinhação, apesar das precau-ções que toma ao apresentar a ideia.

Mas esta crítica, numa época em que faltavam a liberdade e a ciência experimental, não podia conduzir à negação absoluta, embora fosse excessivamente atrevida e adiantada para o mai-or numero dos homens daquele tempo.

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Ainda assim, conseguiu, em certas ocasiões, destruir a fé nos vários Deuses, se bem que para a concentrar no Deus ignoto de Sócrates, de Eurípedes e do dou-to e grave Varrão.

0 povo greco-romano não se julgava incrédulo, embora hou-vesse perdido toda a fé nas desa-creditadas divindades ocidentais; estava agitado, mais que nunca, por uma intensa febre de crer, especialmente no maravilhoso, no místico, na novidade, em al-guma coisa que adormecesse a inteligência amodorrasse os sen-tidos. Dominava o ceticismo fi-losófico.

O espírito febrilmente agitado procurava um ponto, um leito onde repousar. E não conhecen-do ainda a ciência experimental, caminhava, delirando, em busca de uma nova fé. O neopitagoris-mo e, mais tarde, o neoplatonis-mo, não foram mais que esboços de tais tentativas. A superstição recrudescia.

Diodoro tinha já invejado a tranquilidade que os caldeus desfrutavam em suas crenças re-ligiosas, imóveis e livres da crí-tica.

Na desagregação política e na desconsolação pela liberdade perdida, quando nem leis nem poderes, nem costumes basta-

vam a reforçar a fé debilitada, a Humanidade entregava-se de corpo e alma aos sonhos do so-brenatural, como para se agrupar em torno da última âncora de salvação. A impotência geral sentia a necessidade de um jugo, na ordem espiritual, como na or-dem temporal.

Os próprios poetas eróticos, Ovídio e Tíbulo sobre todos, fa-zem-se eco da devoção domi-nante nos espíritos do tempo.

Por fim, Sêneca mostra acre-ditar na astrologia, no fim do mundo e numa nova palingené-sia. Chega a falar no reconheci-mento que se deve ao Sol e à Lua. Lucano mostra-nos a alma de Pompeu subindo ao céu, onde se senta entre as almas santas, contemplando de lá o nosso mundo miserável e o despojo mortal que nele deixou. Também em Virgílio se revela a crença na palingenésia universal; o nasci-mento de um menino sugere-lhe o cumaeum carmen, sonhando, de olhos abertos, na fé do apoca-lipse sibilino.

O grande número de dogmas e religiões concentrados em Roma favorecia, mais que tudo, esta al-titude dos espíritos, predispon-do-os para aceitar a doutrina re-ligiosa que mais autoridade mos-trasse pela necessidade universal

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da unidade religiosa e de sub-missão a uma crença, que acal-masse os espasmos da incerteza, da confusão e do caos.

Os espíritos estavam fatiga-dos, cansados de pensar, e ansia-vam o repouso.

A unidade do mundo, prepara-da por Alexandre e consumada em Roma, onde se realizava a paz universal, na universal es-cravidão, e a universalidade da língua grega, convertida em veí-culo e em ponto de contato mo-ral das mais diversas nações, como Roma viera a ser o centro e ponto de contato material dos diversos povos, conduziram to-das as inteligências à concepção do homem universal, que não fosse apenas um cidadão de Ate-nas, de Alexandria, de Jerusalém ou de Roma, e sim homem hu-mano, segundo a justa expressão de Strauss, como a multidão das religiões (gaulesa, caldaica, per-sa, egípcia, hebraica, etc.) con-duz os espíritos a buscar a sua fusão e confusão numa crença única, cujo centro seja o Deus supremo e único e a periferia toda a Humanidade.

Que religião seria essa? O único obstáculo estava na sele-ção.

Acusava-se o público do ul-tramoralismo das religiões orien-

tais, que vieram, com todas as outras, estabelecer-se em Roma.

E destas, as que mais se dis-putavam o domínio dos espíritos eram a persa e a hebraica, hele-nizada especialmente por Fílon, sobre as doutrinas de Platão por um lado, sobre as dos terapeutas por outro.

Os mistérios egípcios, com o Deus Redentor Serápis e sua Vir-gem Mãe Ísis, tinham igualmen-te conquistado grande influência, mas acabaram por se confundir com os dos hebreus, provavel-mente por estes se terem impreg-nado daqueles, tirando deles o mito do Deus Redentor, que de-pois viria realizar, às mil maravi-lhas, o sonho do Messias, com quem podia confundir-se.

Mitra, sobretudo, conseguiu por muitos anos conquistar a su-premacia. Pelo ano 68, antes da época assinalada ao nascimento de Cristo, introduziram-se em Roma os mistérios de Mitra, al-cançando um êxito prodigioso e conseguindo milhares de adep-tos. Mitra, que já era adorado na Pérsia, na Armênia e na Capadó-cia, teve em Roma, durante dois séculos, a preferência dos devo-tos. No tempo de Adriano, o seu culto era tão popular, que um es-critor grego, Paládia, compôs um tratado especial, a que Porfí-

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rio faz referências. O seu culto torna-se quase ge-

ral nos últimos séculos do paga-nismo, em Roma, onde a sua ini-ciação misteriosa feria as imagi-nações, provocando a criação de muitos monumentos, baixo-rele-vos e inscrições em sua honra, descobertos e recolhidos no nos-so tempo.

A vitória definitiva, porém, essa devia caber aos hebreus.

(Breve se verá porque falamos de hebreus e não ainda de cris-tãos).

Os hebreus tinham começado a exercer determinada influência sobre os ocidentais, especial-mente no Egito, onde, por suas contínuas emigrações, estabele-ceram numerosas colônias, se-gundo atestam os escritores he-breus Josefo e Fílon, sobretudo quando Alexandre leva 40 mil deles para Alexandria e quando, 150 anos antes da nossa era, ali se foi estabelecer Onia, fundan-do um templo ao Deus israelita.

Foi principalmente em Ale-xandria que, por meio das tradu-ções dos seus livros sagrados, feitas em grego, começaram a ser conhecidas as suas crenças, rebaixando as gregas, alexandri-nas e egípcias.

Passaram logo a Roma, depois

das guerras de Pompeu, que con-duziu consigo alguns milhares de prisioneiros. Antes disto, po-rém, já eles exerciam em Roma uma influência considerável, a ponto de, já no tempo de Cícero, terem no Senado alguns amigos, segundo diz Plutarco.

Já no ano 22, reinando Tibé-rio, teve lugar um Senatus-con-sultus contra os hebreus e os egípcios, que segundo Tácito, formavam em Roma uma única superstição.

Assim, pois, os hebreus, mais que nenhuma outra religião, le-vavam a Roma aquilo de que Roma, e com ela todo o mundo, tinha necessidade, isto é, a cren-ça no fim do mundo, seguida da ressurreição ou palingenésia uni-versal, a exaltação da pobreza, dos humildes e dos doentes e também a exaltação do misticis-mo religioso, que então chegava ao cúmulo, porque sendo uma enfermidade, esta irrita-se, espe-cialmente nas horas de sofrimen-to e prostração, tanto na vida dos povos como na dos indivíduos.

A crença no fim próximo do mundo e numa regeneração da vida, trazida da Pérsia para o mundo latino, era geral naquela época, desde a Índia a todo o Mediterrâneo, e no Ocidente, Plutarco, Lucrécio, Ovídio, Vir-

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gílio, Lucano e Sêneca tinham se tornado seus intérpretes. Os li-vros do Novo Testamento, dis-cordante em quase tudo, anda-vam de harmonia neste ponto so-bre que gravitava a crença na próxima vinda do Messias.

A religião judaico-cristã vinha aqui dar um destino a esta cren-ça, e por conseguinte, devia ser a predileta naquele ambiente exal-tado, que também era o mais bem disposto para que esta se pudesse arraigar nele e estender-se rapidamente, como uma man-cha de azeite sobre uma superfí-cie plana.

O que mais devia contribuir para o culto do cristianismo,era a tendência eminentemente po-pular do judaísmo, tendência que, tanto na literatura como nas figuras ideais dos seus persona-gens, era extremamente sugesti-va e de molde a que os humil-des, os oprimidos e os deserda-dos se convertessem em massa à nova fé.

Este elemento, passado do ju-daísmo ao cristianismo, explica como e porque essa mesma mo-ral e essa mesma doutrina, assim como a filosofia greco-romana, há tanto professada de maneira sublime, só se tornaram popula-res, só se generalizaram por in-termédio da nova religião.

Com a diferença de que, com a religião cristã, aquela filosofia, em lugar de uma redenção, foi uma ilusão pior que o mal, foi uma decadência que retardou a reivindicação que prometia, co-locando-a mais longe, na vida futura, pregando nesta vida a re-signação e a miséria, como sen-do de direito divino e como meio meritório, a uns para exer-cer a caridade, a outros para dar motivos a que os primeiros a exercessem, tornando-se dignos do reino dos céus.

Sob este ponto, foi moroso o triunfo do cristianismo, porque prometia a felicidade só com a esperança, separada de toda a ação e iniciativa, fonte única de todo o verdadeiro progresso mo-ral e material.

Estas eram, realmente, as ar-mas da vitória, o in hoc signo vinces daquela época, em que o sentimento da revolta contra a miséria e a opressão se tinha ge-neralizado e selecionado pela força das coisas e das doutrinas filosóficas, que para tal fim con-vergiam.

As aspirações morais, mais profundamente sentidas naquela época, juntavam os hebreus o culto a um Deus Redentor, que nesse tempo era provavelmente Serápis, adotado por eles no Egi-

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to, como veremos, e que viera substanciar e materializar o Ver-bo de Fílon, encarnando-o num deus feito homem; um Deus Re-dentor que tinha os mesmos atri-butos de Mitra, de Horus, de Apolo, e em geral, dos Deuses Redentores, já conhecidos e ado-rados por todos os povos.

Os propagandistas mostra-vam, na propaganda, tanto fana-tismo como o mesmo público, segundo afirma Horácio e a his-tória confirma, achando nas mu-lheres um dos meios de propaga-ção mais eficazes, de que se ser-viram.

Assim, Pomponia Graecina comparecia no ano 57 perante um tribunal, acusada de judaís-mo, e a famosa Popea, amante e depois esposa de Nero, protegia os hebreus nos momentos difí-ceis.

Ajuntemos a isto o atrativo da comunhão dos sexos nesta reli-gião, comunhão que, na institui-ção dos ágapes, chegou ao extre-mo de se beijarem na boca e dor-mirem no mesmo leito, por pre-tendido espírito de mortificação, abusos cuja autenticidade está fora de toda a dúvida, e que tor-naram necessária a imposição de limites a tão misteriosa intimida-de, filha da exaltação erótica, que acompanha sempre a exalta-

ção mística das crises religiosas, como se vê pela história.

Agora pergunta-se: em que época começaria Cristo a ser hu-manizado? Não é fácil determi-ná-lo com precisão, embora isso seja indiferente à psicologia.

Recordaremos, no entanto, de novo, que a invenção de Jesus não pode ser obra dos hebreus, mas dos romanos, não já pela parte favorável atribuída a Pila-tos, contra a lógica das ideias, que corresponde à logica dos fa-tos, mas pelo papel odioso, inve-rossímil e absurdo que os Evan-gelhos as igualam aos hebreus: o papel de deicidas.

Repugna à inteligência e ao coração supor que uma calúnia tão atroz, que por tantos séculos devia pesar sobre um povo, só porque se negou a acreditar na mentira da vinda do Messias, possa ter sido inventada pelos hebreus, inovadores e expatria-dos.

Não: essa calúnia só pode ter sido elaborada pelo cristianismo romano, ao formar-se o catoli-cismo czarista e teocrático, em cujo auxílio acudia um novo Deus para melhor consolidar o seu poder; Deus que era preciso fabricar na expectativa messiâni-ca dos hebreus, sobretudo depois da destruição de Jerusalém e dis-

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persão dos hebreus, em que co-meçavam a passar as gerações e os testemunhos, que poderiam desmenti-lo.

O momento histórico aproxi-mado, em que foi inventada a fa-bula de Cristo, constitui uma questão por completo supérflua para o nosso objetivo.

Nessa fusão histórica e psico-lógica de raças, doutrinas, religi-ões e aspirações cosmopolitas, de que surge o cristianismo, foi isso um efeito do meio ambiente e do estado relativo dos ânimos.

Mas, deixemos isso, que afi-nal, pouco tem com o nosso as-sunto, já suficiente e exuberante-mente demonstrado.

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CAPÍTULO VCOMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO

Exposto o meio ambiente em que se produzira o cristianismo, não fica, porém, de todo explica-do o grande fenômeno de unifi-cação que gerou o cristianismo.

Naquelas condições criadoras do meio e por sua vez, do estado de ânimo geral que deveriam operar a transformação da civili-zação greco-romana, só vemos agir causas mecânicas e incons-cientes - em relação do efeito produzido com seu involuntário concurso - causas que explicam a preparação subconsciente e evolutiva do fenômeno, mas nunca a sua determinação defini-tiva. Isso foi obra de causas conscientes e de vontades ativas, que neste capítulo indicaremos rapidamente.

Estas forças ativas, coordena-doras, conscientes, determinadas e determinantes foram a Igreja e o Estado. Primeiro, aquela só, e contra a vontade deste; depois com este e por meio deste; e fi-nalmente, contra este.

Quando, onde e como se for-mou o primeiro núcleo, a pri-meira organização da Igreja cris-tã? O que existiu primeiro: o cle-ro, a casta sacerdotal ou o cristi-

anismo?Foi o cristianismo que gerou o

clero cristão, ou este que gerou o cristianismo? Veio primeiro o sa-cerdote, ou veio primeiro a mis-sa, como diria Guerrazzi?

Desgraçadamente - e dizemos desgraçadamente porque a histó-ria verdadeira da Igreja seria também a da origem precisa do cristianismo - temos de nos re-signara confessar a ignorância da história sobre este ponto, tanto mais que os únicos documentos que sobre tal assunto existem, como a História de Eusébio, que também é a primeira e só data do ano 313, são documentos inte-ressantes.

O que, porém, está evidente-mente provado é existir já a Igre-ja antes da redação dos Evange-lhos, e os próprios Evangelhos nos dão provas disso, tais como as palavras de Cristo, quando diz que se deve considerar o herege, que não obedece à Igreja, como publicano e fariseu, e quando fala em levar a própria cruz, em sentido metafórico, o que não poderia nunca ter dito antes que a pretendida paixão de Cristo se tivesse difundido e fosse acolhi-

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da com aquele caráter de autori-dade que pressupõe uma organi-zação.

E como a Igreja era anterior aos Evangelhos, com que ela fa-bricou o novo Deus Redentor, é lícito deduzir que a casta sacer-dotal presidira desde o princípio à formação e difusão da nova re-ligião.

E também é certo que, desde o princípio da nova seita, se en-contra a Igreja hierarquicamente organizada sobre a imagem da teocracia hebraica e conforme a associação grega e o colégio ro-mano, de cujos nomes principais se apropriou (clero, bispo, pres-bítero, diocese, etc.).

Dada assim a existência da Igreja, já temos uma das causas mais poderosas e eficazes da di-fusão do cristianismo, porque ao ideal, o clero juntou o próprio interesse, estímulo e aguilhão es-pecialíssimos para a ação.

Acerca da contradição entre a organização de uma nova Igreja e a pregação do próximo fim do mundo, só diremos que pode muito bem existir, como tantas outras que formam grande parte do trama da vida dos povos, ain-da que aquela fosse de gravida-de, própria para fazer duvidar da boa fé do clero cristão e até mes-mo da origem da nova seita.

E a constituição do cristianis-mo em teocracia, conciliando-se com a moral evangélica, é outra daquelas contradições lógicas, que parecem formar o substrac-tum da psicologia dos povos, e que provavelmente estão deter-minadas pelo trama dos mais di-versos e vários interesses das di-ferentes classes sociais.

Pela presença, certamente, duma nova casta sacerdotal, as-sistimos desde o principio do cristianismo a este duplo caráter da sua política ser a um tempo rebelde à autoridade constituída, e instrumento de submissão à mesma; caráteres que termina-ram ambos por fazer parte da doutrina da Bíblia, na qual, como já vimos, estão em desa-cordo, tanto como na vida da Igreja.

Estas duas doutrinas, que à primeira vista parecem inconcili-áveis, não o são. Quando a Igreja quer, concilia-as admiravelmen-te, em seu interesse. O que a Igreja quer é a sujeição do povo ao poder civil, quando este trata dos interesses dela mas quando se ocupa dos interesses próprios, então passa a outra doutrina, ar-mando a mão dos Ravailac e dos Clement inspirando a justifica-ção do regicídio, que se não en-contra apenas nos doutores jesu-

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íticos, mas também nos diplomá-ticos como S. Thomaz de Aqui-no.

A primeira destas doutrinas serviu à Igreja cristã para fazer prosélitos nos pontos da terra, povoados de nações vencidas, de povos reduzidos à escravidão e escravos ansiosos pela emanci-pação, que a filosofia helênica e romana há muito defendia e fo-mentava.

A segunda doutrina serviu-lhe - se bem que nem sempre - de proteção contra o medo do go-verno romano, para quem a reli-gião era questão de Estado e pe-dra de escândalo.

Este segundo elemento da doutrina cristã, muito mais que o elemento revolucionário popular, foi o que produziu, em princípi-os do reinado de Constantino, o triunfo do cristianismo265.

Este desprendimento dos âni-mos, que os fez abdicar da pró-pria independência, em mãos de uma nova teocracia lançou-os depois nos braços do despotismo político. A restauração foi religi-osa e política ao mesmo tempo.

Augusto, restabelecendo a or-265 Ninguém como Bakounine viu a reci-procidade das relações entre o Estado e a Igreja, para exploração do fenômeno religioso. O seu livro Deus e o Estado é, neste ponto, admirável.

dem, restabelecia a religião. E quando chegou o tempo de Constantino, o hipócrita, este aproveitou-se habilmente da doutrina da resignação e da sub-missão aos princípios - instru-mentos do direito divino - ensi-nada pela Igreja cristã, para co-locar simplesmente esta nova re-ligião no lugar da antiga religião romana, restaurada por Augusto, porque a nova era também uma sanção para o Estado e um ins-trumento de servidão. Esta e só esta pode ter sido a razão da pre-tendida conversão de Constanti-no266, muito mais que a de apa-gar os remorsos de sua consciên-cia de assassino, apegando-se a uma religião que tinha o poder de lavar toda a culpa, conforme lhe lançavam em rosto os pa-gãos267.

Constantino, encurtando as disputas internas da Igreja cristã, que tinham marcado o largo pe-ríodo da lenta formação durante o qual esta vinha elaborando e aperfeiçoando os seus dogmas mediante a discussão das várias

266 Que a conversão de Constantino fora uma hábil manobra de oportunismo po-lítico, ele próprio o confessa na carta em que, falando da disputa com Arrio, ape-lida de mesquinha, vã, inútil, indigna de discussão e de resposta, etc. (Eusébio, livr. II, cap. LXIV.)267 Zósimo, l50.

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seitas cristãs, entre si e em luta com o paganismo, Constantino, dizemos iniciou o famoso Con-cílio de Niceia, no ano 325, de onde data a consolidação do cristianismo. Sem a conversão de Constantino ao cristianismo, é provável que este não chegasse nunca a triunfar, não já pela sua pretendida268 doação, que arran-cava ao poeta gibelino de Flo-rença a famosa invectiva: Ai! Constantino de quanto mal

foste a causa! Não tanto pela tua conversão,

mas pelo rico dote Que de ti arrancou o primeiro

Papamas porque facilitou ao cristia-nismo a maneira de impôr-se com violência.

Só por meio da força, auxilia-do pelos embustes do clero e ou-tras circunstancias fortuitas como a mudança da capital do império de Roma para Bizâncio, o que permitiu à Roma dos Cé-sares converter-se na Roma dos Papas e a invasão dos bárbaros,

268A Doação de Constantino é apócrifa e não foi redigida antes da metade do sé-culo sexto. Esta falsificação foi demons-trada inequivocamente por Lorenzo Val-la, que provou também a falsidade da Carta de Cristo a Abgaro, tal como fez o próprio cardeal Nicolan de Cusa com as Decretaes de Isidoro e com os escri-tos atribuídos a Dionísio, o Areopagita.

que desorganizou o império, dei-xando a Igreja em pé, sobre as suas ruínas, pôde o cristianismo triunfar e estabelecer a tirania das consciências ao lado da tira-nia temporal dos princípios, à espera do tempo em que pudesse empunhar as duas espadas, as duas tiranias, que fez pesar sobre a pobre humanidade até a esma-gar e horrorizar com a fogueira, a tortura, o cárcere, o desterro, a inquisição, os índex, a censura, a confiscação, as guerras de exter-mínio dos heterodoxos, os tribu-nais de exceção e capitis dimi-nutio dos hereges, dos cismáti-cos e dos hebreus.

O cristianismo conquistou o mundo com a violência, e só com a violência pôde tê-lo sujei-to por tantos séculos. E Por vio-lência, não entendemos só a da força bruta, mas também, a le-gal, a moral da opinião e, sobre-tudo, a patológica da servidão intelectual, que foi a mais pode-rosa arma da Igreja católica, e que chegou à sua perfeição dou-trinal na fórmula jesuítica perin-de ac cadaver.269

Mas isto não basta para che-269 Disciplinado como um cadáver. Loyola escreveu a constituição jesuíta que deu origem a uma organização rigi-damente disciplinada, enfatizando a ab-soluta auto-abnegação e a obediência ao Papa e superiores hierárquicos. (NE).

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gar à liberdade, a fórmula da li-berdade de consciência das constituições modernas, no sen-tido cavouriano da Igreja livre no Estado livre.

É mister a separação, sem a supremacia do Estado; é neces-sário enfim, que a liberdade diri-gida por livres pensadores tenda sobretudo a emancipar com a mais intensa propaganda intelec-tual, psicológica e sociológica aqueles a quem a crença católica faz escravos da superstição, ina-bilitando-os para desfrutar a li-berdade de pensamento.

Com muitíssima razão disse-ram V. Alfieri e Filippe De Boni que a liberdade é incompatível com o catolicismo e onde este impera não pode nascer nem conservar-se pura a liberdade. A mais perigosa das teocracias é aquela que o padre exerce sobre as consciências.

Com aquisição do favor impe-rial, o cristianismo preparou-se para a grande luta contra o paga-nismo, que só logrou aniquilar passada uma larga série de anos, com leis repressivas e persegui-ções de todo o gênero.

Por dois modos a Igreja insi-nuou aos imperadores a ela con-vertidos, a persuasão de empre-garem a violência contra o paga-nismo: ora transformando em

demônios os deuses pagãos e em práticas de magia os ritos dos seus sacrifícios, ora fazendo-lhes crer que as cerimônias dos pa-gãos eram uma permanente conspiração contra a vida do so-berano e obrigando-os, desta maneira, a declará-los culpados de delitos de lesa-majestade.

Por este processo, os bispos obtiveram o duplo efeito de in-duzir os imperadores a extermi-narem o paganismo, a ferro e fogo, e ao mesmo tempo, de se esconderem por detrás do braço secular, lançando sobre este toda a responsabilidade e odioso da perseguição.

Para fazer passar por magia os ritos do paganismo, bastava res-peitar os decretos anteriores con-tra a magia: assim se alcançava o fim desejado, sem dar a conhe-cer que se inaugurava uma nova perseguição.

Os primeiros decretos de Constantino não fizeram, em aparência, mais do que sancionar leis severas contra a magia; mas, na realidade, feriam de morte o paganismo.

Com os imperadores, Cons-tâncio, Constante, Valério e Teo-dósio, a perseguição deixou cair a máscara que a cobria, dirigin-do-se diretamente contra o paga-nismo. Basta examinar as leis

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contidas no Códice Theodosia-no, com o titulo de paganis, sa-crificiis et templis para com-preender todo o alcance e gravi-dade daquela odiosa perseguição destinada a exterminar o paga-nismo.

Um decreto imperial começou por proibir os sacrifícios pagãos. Em 353, Constâncio e Constante promulgam este decreto: Decre-tamos que, em todo o lugar e em toda a cidade sejam fechados os templos (refere-se aos pagãos) que ninguém possa entrar neles e que aos ímpios se negue o di-reito de delinquir (isto é, adorar outros Deuses). Queremos que todos se abstenham de fazer sa-crifício. Se alguém fizer seme-lhante coisa, será morto com a espada vingadora. Decretamos que os bens do executado vão para o fisco e queremos que se-jam castigados os governadores das províncias que se mostrarem negligentes na repressão dos de-litos.

Guiado pelo clero, Constanti-no manda matar, na Tebaida, to-dos os sequazes do antigo cul-to270. João e Valentiniano I imi-tam o rigor de Constâncio.

Por toda a parte, escrevia Zó-zimo, reina o pranto e o deses-pero; as prisões regurgitam de 270 Amiano Marcelino, lib. XXI. cap. XI.

gente, para cujo cativeiro não é salvaguarda a honra de muitos méritos.

Sob o império de Valério, o próprio nome de filósofo era um titulo de proscrição.

Libânio e Jamblico foram acu-sados como tais, e só o veneno os pode libertar de pior suplício.

Deste modo, o terror operava simuladas conversões mas, ape-nas voltava a tranquilidade, a maioria dos convertidos abraça-va a antiga crença.

Para impedir isso, Teodósio decretou uma lei, que despojou do direito de testar aos pagãos que voltassem ao seu culto. Dez anos depois, a mesma lei era re-novada, e declarando infames os apóstatas do cristianismo, conce-dia que se ultrajasse a sua me-mória e se rasgassem os seus testamentos. Outra lei proíbe toda a espécie de sacrifícios pa-gãos. O culto dos deuses, pros-crito da cidade, refugiara-se nos campos.

Teodósio arremete contra ele até no ultimo refúgio, ordenando a confiscação do campo onde se consumasse um sacrifício.

Não se permite ter nem usar outro nome que o dos cristãos católicos; proibido em absoluto aos apóstatas, não já o direito de

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testar, mas até o de vender; pena de fogo contra quem abraçar re-ligião contrária, com a respetiva confiscação de bens; autorizada e permitida a delação; ordem para derrubar todos os templos pagãos; destituição de todos os cargos públicos para aqueles que se não conformarem; desterro, pena de morte, confiscação dos bens, para quem continue ainda realizando sacrifícios pagãos; desterro e excomunhão contra quem ouse discutir as afirma-ções da Igreja e dos sacerdotes; proibição aos hereges de recebe-rem bens; privações de todo o direito civil para os não católi-cos; expulsão dos soldados de todas as legiões, que se encon-trem em igual caso; pena de morte contra o possuidor de qualquer livro, que contradiga o Concilio de Niceia. Uma só fé para todos: a de Niceia.

Tais são, além doutras, as prescrições dos imperadores cristãos, combinados para exter-minarem o paganismo e consoli-darem o cristianismo, impondo silencio a toda a heresia.

A Igreja é que tinha a seu cui-dado atear o fogo nos seus con-cílios, secundava os imperadores na obra de destruição por ela su-gerida; excitava as turbas cristãs a cometerem excessos contra os

pagãos - violação das sepulturas dos pagãos e roubos dos seus bens - excessos tais, que até os mesmos imperadores, entre eles Valentiniano, se vêm obrigados a proteger, momentaneamente, as vítimas da perseguição.

Para melhor armar o braço se-cular, os bispos dão a entender aos imperadores que as calami-dades públicas são devidas à im-piedade dos que se não conver-tem ao cristianismo.

O clero tinha, além do fisco, o direito de se apossar dos bens dos perseguidos, falando-lhes de assuntos respeitantes ao sacrilé-gio e tratando de delatar contra-venções à lei da fé271. Mal os ir-mãos tinham qualquer possibili-dade de se assenhorearem de um campo, acusavam o seu proprie-tário de ter sacrificado aos deu-ses, pedindo que contra ele se mandasse a soldadesca.

O clero cristão consegue toda a sorte de privilégios e imunida-des, aproveitando-se arteiramen-te daquela época de terror para se dedicar à obra fraudulenta de falsificação e destruição dos li-vros que poderiam revelar as mentiras e farsas demasiadamen-te visíveis da nova religião, e que de algum modo poderiam 271 Libânio, Oração em favor dos templos.

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esclarecer suas origens; obra de falsificação que, em verdade, co-meçara com o mesmo cristianis-mo e se praticara em grande es-cala por todas as seitas, que ha-viam concorrido para formar a nova religião.

O próprio S. Jerônimo con-fessa que, traduzindo Orígenes, não teve em conta senão o que lhe pareceu útil, eliminando tudo o que julgou nocivo, escusando- se com a desculpa que o mesmo fizeram S. Hilário e S. Eusébio. Confessou isso no prefácio que fez ao livro de Eusébio. (De Loi-cis Ebr.)

Celso acusava os cristãos de terem falsificado os oráculos si-bilinos e a ciência justificou a acusação de Celso.

Macróbio foi falsificado para justificar o martírio dos inocen-tes; foram inventados esses nú-meros escritos, que a própria Igreja viria depois declarar apó-crifos.

Foram falsificados Josefo e esses outros autores que já vi-mos. Foram até inventados do-cumentos atribuídos ao pai de Matusalém, ao bisavô de Noé e de Enoc.

Mas, sobretudo, foram gravís-simas as falsificações realizadas pelos apologistas e historiadores

do cristianismo primitivo, como Atanásio, Basílio, Crisóstomo, Eusébio, etc.

Orígenes chegou até a inven-tar uma teoria para justificar es-sas falsificações, distinguindo as feitas com bom fim, das feitas com má intenção.

O pior de tudo porém foi a destruição das obras que poderi-am ter esclarecido as suas im-posturas. Foi assim que desapa-receram muitas obras importan-tes de Cícero, Proclo, Porfírio, Celso, Fílon, Orígenes, S. Cle-mente, Eunômio, etc.

É nossa opinião que toda a história do cristianismo, até a Reforma, deve ser quase por completo reescrita com critério naturalista, porque a Igreja tem sempre caluniado todos os que não vão com ela, chegando em contraposição, a colocar sobre os altares a última canalha, contan-to que fosse devota.

Contudo, e apesar de tantas proscrições e perseguições, ape-sar desse regime de terror e des-sa inquisição, a Igreja não conse-guiu conquistar o politeísmo para a nova fé.

Então, recorreu a um último expediente, que lhe assegurou o triunfo, e que, se lhe não deu o aplauso do povo, pelo menos

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tornou tributárias à sua domina-ção as práticas religiosas, apro-veitando assim, em seu favor, a grande força do costume que adotou as formas exteriores do culto, já em uso entre os pagãos.

Foi assim que, arrancando um novo farrapo àquela doutrina que queria adorar Deus em espí-rito e em verdade, pouco devia custar-lhe já o triunfo, herdando delas, fundindo-as e amalgaman-do-as, a moral e a doutrina das religiões precedentes.

Já vimos que o culto cristão não é mais que uma amálgama de cerimônias tiradas dos cultos precedentes.

Agora assistimos ao processo de integração deste culto, pro-cesso mediante o qual assimila as práticas e a própria divindade do paganismo romano, transfor-mando-o e corrompendo-o.

Deste modo, o cristianismo converte-se, por sua vez, em idó-latra e fetichista. O politeísmo não conseguira destruir o feti-chismo, limitando-se apenas a sobrepujá-lo. Pois também o ca-tolicismo não destrói o politeís-mo, antes o subordina aos seus interesses.

As divindades do paganismo, que não foram declaradas infer-nais, como é costume em todas

as religiões - que convertem em demônios os deuses das religiões contrárias - foram convertidas em santos cristãos.

Os gregos celebravam festas em honra de Hermes (Mercúrio) e de Nícan (o Sol); estas festas passaram ao calendário católico, nas mesmas datas, com os no-mes de S. Ermeto e S. Nicanor.

Baco era adorado sob o nome de Soter (Salvador) e Apolo com o de Efoibios. estas festas foram mantidas com os nomes de S. Sotero e S. Efebo ou Efésio.

Festejavam Baco com a festa de Dionysios, a que se seguia outra em louvor de Demetrius; pois os dois nomes encontram-se na mesma data, no calendário cristão, com os de S. Dionísio e S. Demétrio.

A festa de Ceres, a loira (Flá-via) é a de Santa Flávia; a festa da pudica Diana converteu-se em Santa Prudência; a do Palla-dium de Minerva veio a ser a festa de Santa Paládia.

As Saturnais converteram-se em S. Saturnino; a festa de Afro-disia (Venus) corresponde a S. Afrodísio e Santa Afrodísia; o dia do signo da Virgem (15 de agosto), em que Astrêa aparece no céu, na dita constelação, con-verteu-se na Assunção da Vir-

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gem.Baco, que se chamava na Gré-

cia Eleutério ou Dionísio e que tinha uma festa denominada rús-tica, porque celebrando-se no tempo das vindimas,era essenci-almente campestre, (Festum Di-onysis Eleuterie Rustici) deu lu-gar, com estes três nomes distin-tos, a três santos cristãos: S. Di-onísio, S. Eleutério e S. Rústico.

A brisa matutina, aura placida, que o paganismo simbolizava na mulher de Baco, converteu-se para os cristãos em Santa Aura Plácida.

A fórmula da saudação, per-petua felicitas, gerou duas santas Perpetua e Felicidade. Orar e dar (rogare e donare) correspondem a S. Donaciano e S. Rogadano, cuja festa se celebra no mesmo dia.

S. Apolinario comemora-se alguns dias depois daquele em que se celebravam os jogos Apo-linares em honra de Apolo. Até os Idus do mês se transformaram em Santa Ida.

A deusa Pelino transformou-se em S. Pelino e o Termes, que presidia aos limites dos campos e dos caminhos, simbolizando-se por uma pedra, transformou-se na estátua de S. Vito, colocada nos limites dos caminhos (viae),

de onde lhe vem o nome.A festa da Gorgona, divindade

infernal, que simboliza as trevas maiores do ano, foi substituída pela festa de Santa Górgona.

Uma nova festa consagrada a Baco, se celebrava em dezembro com o nome de Dionísia; tam-bém passou para o calendário católico. E aqui, importa obser-var quão frequente é o nome de S. Dionísio no calendário católi-co, o que prova, não que tenham sido numerosos os Dionísios santos, mas que os santos Dioní-sios não são mais que outras tan-tas transformações das festas em honra de Baco (Dionísio), que eram muito frequentes na época do paganismo.

A fórmula romana flor et lux, flor e luz, transformou-se em Santa Flora e Santa Lúcia.

O sobrenome de Júpiter, Nice-for, é nem mais nem menos que S. Niceforo; e o de Juno, Pelas-gia, Santa Pelagia. Atenena (Mi-nerva) originou S. Atanásio e Apollon o S. Apolônio e Santa Apolônia.

E quando não se cristianiza-ram as formas pagãs, inventa-ram-se santos novos, que, pelo próprio nome, indicam a virtude curativa dos antigos ídolos: San-ta Luzia para o mal dos olhos; S.

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Gotardo para a gota; Santa Tos-cana para a tosse; S. Latino para as afecções do leite; S. Bono para as enfermidades bovinas, etc.

Até mesmo os atributos dos deuses passavam para os santos cristãos. Como Baco, Noé e S. Vicente presidem a conservação da videira e da vindima. Como Neptuno, S. Nicolau e S. Vicente Ferrer invocam-se para acalmar as tempestades. Como Minerva, Santa Catarina infunde a ciência. Como Esculápio, S. Cosmo pre-side a medicina. Priapo conver-te-se em S. Fiacre, que guarda os jardins. Como Juno, Santana ampara as parturientes.

Santa Margarida, que fecunda as mulheres, é copiada de Luci-na, assim como S. Antônio e S. Humberto, de Mercúrio, que en-contrava o perdido, e de Diana que presidia a caça.

A estátua de Diana em Efeso e a de Pallas em Atenas, tinham caído do céu, tal como muitas estátuas e imagens da Virgem cristã.

As estátuas dos deuses, que Enéas trouxera de Troia e colo-cara em Alba, voltaram para os seus antigos templos. Também Nossa Senhora de Montenegro, trazida de Livorno, voltou para o seu monte.

Os deuses e as deusas pagãs desciam à terra para conversar com os mortais e o mesmo fize-ram as Nossas Senhoras Cristãs.

Os pagãos pediam favores às estátuas dos seus deuses, e, obti-dos estes, colocavam junto dos seus altares um voto e acendiam círios; nem mais nem menos do que fazem os cristãos com seus santos e madonas.

A Igreja de S. Lourenço, em Roma, foi transformada em S. Lourenço de Lucina, santa advo-gada dos partos das mulheres, em memória de um templo pa-gão ali existente, dedicado a Di-ana Juno Lucina, divindade que presidia aos partos. A águia de Júpiter foi substituída pela de João. Esculápio com a serpente, foi substituído por S. Patrício com a sua.

Santa Barbara, com a taça, é a representação flagrante de Baco. O dragão de Apolo passou para S. Jorge, assim como o martelo de Vulcano para S. Eládio.

A verdadeira imagem (vera icon), que algum tempo se vene-rou pintada em uma tela, foi logo personificada em uma San-ta Verônica.

Muratori demonstrou como, de uma casa destinada a hospe-dar peregrinos, se fez um S. Pe-

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regrino, e de outra chamada o Santo Albergue, situada no terri-tório de S. Cesáreo, se fez uma Santa Alberga.

As curas milagrosas, que se obtinham nos templos pagãos, com práticas sugestivas e medi-ante peregrinações a mananciais de fontes sulfurosas, ferrugino-sas, arsenicais, etc., sobrevive-ram ao paganismo, como tam-bém sobreviveram as crenças nos sonhos e nas aparições. Igual destino tiveram as pedras, cujo culto, ou litolatria, é uma supervivência do fetichismo, os animais que foram dados como companheiros a alguns santos e com eles colocados nos altares, etc.

Que diremos agora do culto das relíquias, que tanto se gene-ralizou no cristianismo, da mul-tiplicação das cabeças, dos bra-ços, das pernas, dos ossos, das mãos dos Santos, tantos que, para os catalogar, ser-nos-iam precisos muitos volumes.

Recordaremos apenas o sudá-rio, de que existem quatro exem-plares famosos, disputando to-dos a autenticidade (os de Be-sançon, Turim, Compiègne e Ca-douin) além doutros menos im-portantes. E citamo-los unica-mente, porque ainda se não apa-gou o eco das discussões acerca

dos mesmos e em que tomaram parte - até nem se acredita! - ho-mens de ciência de Paris, a favor da autenticidade de um ou outro dos sudários.

A Igreja adotou também o cul-to das imagens, especialmente da Senhora e dos Santos, e, so-bretudo, a da Cruz - evolução re-gressiva para cujo cumprimento teve de suprimir a segunda lei do Decálogo hebraico, que condena toda a representação da divinda-de com coisas sensíveis272, ven-do-se obrigada, em troca e para conservar sempre o número dez, a subdividir o décimo manda-mento em duas partes.

Portanto, se o cristianismo pôde triunfar e substituir o paga-nismo, foi somente mediante a perseguição, a farsa e a assimila-ção do culto pagão, favorecido por outro lado, pela desagrega-ção do Império romano e pela invasão dos bárbaros.

O cristianismo não foi apenas o herdeiro do império romano, de cuja decadência se aproveitou para se erguer sobre as suas ruí-nas, mas até contribuiu enorme-mente, mais que nenhuma outra causa, para produzir tal decadên-cia273.

272 Êxodo, XX, 3,6.273 G. Sorel, Ruína do mundo antigo, (Paris, 1902).

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O seu triunfo, porém, foi com-pletamente isento da pretendida pessoa de Cristo, como também fora isento à formação da nova religião, não tendo jamais existi-do, como de sobra temos de-monstrado no presente livro.

O mito do Cristo serviu, é certo, para dar impulso ao cristi-anismo porque apresentava ao

vulgo um novo culto antropo-mórfico, uma divindade acessí-vel aos sentidos e em forma hu-mana.

Esta força de expansão, porém não foi de Cristo, mas da ilusão popular, que viu em Cristo o símbolo dos infelizes, martiriza-dos nesta vida e glorificados na outra.

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Conclusão

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CONCLUSÃO

Lisonjeamo-nos por ter persu-adido os nossos leitores, os de boa fé e despidos de todo o pre-conceito, de que realmente Cris-to nunca existiu. Quanto aos ou-tros, é certo que não poderiam jamais, e agora menos do que nunca, tomar superficialmente e destruir sem discussão a hipóte-se da não existência de Cristo. A estes, basta fazê-los duvidar da própria fé, porque a dúvida é o princípio da sabedoria, a origem das descobertas e o ponto de partida de todo o progresso.

Além disso, seja qual for o re-sultado prático deste nosso tra-balho, a nós basta o prazer de ter levado a nossa pedra para o edi-fício da Verdade. Aos de maior engenho e mais favorecidos pe-las circunstâncias do tempo e do ambiente, compete erguer o edi-fício até a suma perfeição, para que não estremeça aos embates das tormentas.

Temos consciência absoluta de haver contribuído, na medida das nossas poucas forças, para imprimir a crítica aquela nova direção, que a deve conduzir á resolução do problema da ori-gem do cristianismo.

Contudo, não nos iludamos

muito acerca da fortuna da tese, ou melhor, da verdade por nós demonstrada. Porque não se trata apenas de uma verdade científi-ca, histórica e moral: trata-se também de uma religião. E se é fácil destruir erros antigos, no terreno científico, histórico e moral, não sucede o mesmo no religioso, pois que nele estão ar-raigados os interesses de uma imensa casta de parasitas que jungem ao erro dos outros a sua própria existência, os seus pró-prios privilégios.

Se a ciência pôde destruir sem dificuldade, por exemplo, o mito ou lenda de Guilherme Tell, não sucederá o mesmo com Cristo, porque na conservação de Cristo estão interessados milhões de pessoas que vivem dessa crença, como a aranha está interessada em conservar a sua teia.

Dir-se-á: Que importa, no fim de contas, que Cristo não tenha existido, desde o momento em que existe o farto cristianismo, que ainda quando derive de uma ilusão inicial, não deixa de ser um fato consumado e da maior importância?

Que importa, dirão outros, que a crença em Cristo tenha

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sido uma ilusão da Humanidade, se essa crença foi tão benéfica?

A estas objeções poderemos responder, simplesmente, que a ciência nada tem com as conse-quências nem com a utilidade prática das suas investigações, preocupando-se apenas com a descoberta da verdade.

Mas importa ainda examinar o significado do que geralmente se chama o cristianismo. O que é o cristianismo? Parecerá talvez uma pergunta paradoxal, mas tem a sua razão de ser.

O cristianismo é um nome que serve para legitimar toda a espécie de aberrações. E isto é assim, subjetiva e objetiva-mente. Subjetivamente, porque usa o nome de um autor que nunca existiu; objetivamente, porque, sob o nome cristão, se deu cabimento às doutrinas mais disparatadas, amalgamando-as em monstruosa confusão.

Decompondo este nome, ve-nerável apenas pelos séculos de veneração usurpada que sobre ele pesam, vê-se que não é já o resultado de elementos afins reu-nidos em um todo harmônico e orgânico, mas a arbitrária com-binação e justaposição de ele-mentos heterogêneos e inorgâni-cos, provenientes das fontes mais opostas como o hebraísmo

e o helenismo, o oriente e o oci-dente.

Em uma palavra: o cristianis-mo, tomado como fato consuma-do, não é uma doutrina, uma re-ligião, uma crença homogênea. É um mosaico em que há de tudo, menos a perfeição ideal do pretendido fundador e de seus pretendidos sequazes primitivos, como neste estudo se viu e como pode ver-se, lendo a própria Bí-blia, sem véu algum nos olhos.

A pretendida perfeição do cristianismo não é mais que o ideal humano, ideal que se tem formado em volta daquele centro de gravidade, para o subtrair às vistas naturais, não o deixando ver senão àquelas vistas particu-lares que só veem o que querem ver, mas não o que realmente se vê, fruto da sugestão teológica, do visionismo sobrenatural e do ilusionismo transcendental.

Hoje, quem diz Cristo, cristia-nismo ou cristão, quer dizer o homem, a doutrina, o crente, que é, se julga, ou quer ser perfeito como o Pai que está nos céus. Deste modo, o nome de Cristo converteu- se no símbolo do ide-al humano: pode dizer-se que, na sociedade atual, quem não é cris-tão é comparado com as bestas ou pouco menos.

Tão estranha quão monstruosa 193

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e ingênua é esta alucinação cole-tiva! Não só porque o cristianis-mo da Bíblia e dos doutores da Igreja é completamente diferente daquela perfeição que a si pró-prios se atribuem, mas também e sobretudo, porque na nossa soci-edade não há de cristão mais que o nome, ainda que a considere-mos na sua parte civil, evolutiva, moderna, progressiva, naquela, em suma, que indica o expoente da civilização presente.

Porque, onde está a crença no próximo fim do mundo, que constitui a base da moral evan-gélica? Onde as castrações vo-luntárias, para conquistar o reino dos céus? Onde o celibato, a não ser nas leis arbitrárias e políticas da Igreja, desprovidas de todo o consentimento e de toda a verda-de prática? Onde o retiro místi-co, aceito como um meio de per-feição, a não ser nos conventos, que dele fazem um cômodo ins-trumento de parasitismo, desfru-tando, ao mesmo tempo, o traba-lho das pobres criaturas exalta-das, enganadas e roubadas à fa-mília ?

Onde está o desapego, a ren-úncia espontânea das riquezas, para passar à vida contemplati-va? A própria Igreja não estará ainda farta de engolir os patri-mônios das viúvas e dos órfãos e

de engordar com os milhões rou-bados, moeda a moeda, à pobre gente, ou sequestrando os peni-tentes ricos, com contratos frau-dulentos, e um pouco a todos os crentes, com a sugestão e o ter-ror das penas do inferno ?

Onde está a pobreza voluntá-ria, aceita e procurada como meio mais seguro de ir ao céu, mesmo sem nenhum outro méri-to para se salvar? Onde está a fraternidade, se os sacerdotes abençoam as guerras, promoven-do-as até por conta própria? Onde está a igualdade, se os pró-prios padres e o próprio chefe, Leão XIII, copiado por Pio X, repetem que a pobreza e as dife-renças entre as condições sociais são de direito divino? Onde está o ódio e o abandono da família para seguir o Senhor?

Ah! Se alguma coisa ficou da moral cristã, aparte a época me-dieval, foi a parte bruta, foi o abandono da família, o ódio ao próximo, em que incorrem os exaltados que se retiram do mundo, e os fanáticos, que jul-gam que só eles vivem na justiça e na verdade, considerando os que não estão com eles - quem não é por mim é contra mim - como eternamente condenados, por cegueira voluntária; ficou a intolerância provocadora de ódi-

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os e de guerras; ficou o misticis-mo contemplativo e ocioso das ordens eclesiásticas e dos cren-tes de boa fé, cujos danos à eco-nomia pública e ao progresso to-dos nós podemos avaliar; ficou o entorse cerebral (como diria o dr. Alfredo Pioda) que torna a mente dos fiéis refratária à ra-zão, forçando-a e habituando-a a crer no absurdo - o que inspirava a Tertuliano quando ingenua-mente proclamava os motivos da sua fé, nestes termos: O filho de Deus morreu: isto é crível por-que é absurdo. Sepultado, res-suscitou: isto é certo, porque é impossível.

Esta é a sociedade que de cris-tã só tem o nome e a parte bru-tal, ao passo que a parte bela, a parte moral se refugiou (ironia da história!) na esfera da incre-dulidade, porque nesta se conti-nua a serena investigação da ver-dade e se trabalha para a reden-ção dos povos e para fraternida-de universal; esta é a sociedade que tem posto obstáculos ao cristianismo com a proclamação da laicização do Estado e da li-berdade de consciência, para a si mesma se salvar da sua into-lerância e consigo salvar as con-quistas da civilização, promo-vendo outras; esta é a sociedade que continua a chamar- se cristã,

fazendo do cristianismo o fim ideal, o espelho de toda a perfei-ção. E não vê ou não quer dar a conhecer os interesses que man-tém com tal engano, e que tudo aquilo que forma o orgulho da civilização moderna, da civiliza-ção europeia e americana, não só não é devido ao cristianismo, mas representa uma série de conquista obtidas pelo pensa-mento humano, tornado autôno-mo, sobre o cristianismo intole-rante, imobilista, teocrático, ili-beral, reacionário, místico, ascé-tico e visionário.

Da liberdade civil à política, da liberdade de pensamento à soberania do povo, do progresso intelectual ao econômico, tudo o que serve de base à nossa civili-zação é anticristão.

O ideal do cristianismo não é o homem moderno, trabalhador comedido, instruído e social; são os irmãos da Tebaida, os abstê-mios, que maceram a própria carne para salvar a alma, os Se-miões Estilitas, que vivem sobre as colunas, os Simões de Mon-fort, que degolam o próximo para ganhar o paraíso, os Pedros Eremitas, os inquisidores, os tor-turadores, os censores, os acen-dedores de fogueiras; são os dés-potas, que suprimem toda a li-berdade para consolidarem uma

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única: a de ser cristão. São os devotos, que passam o tempo em orações, jejuns e penitências, abandonando o patrimônio nas mãos da Igreja madrasta.

Em uma palavra o cristianis-mo é a religião da morte, ao pas-so que a atual sociedade só res-pira o amor da vida, de uma vida sempre melhor e mais intensa.

Porque perpetuar, pois, a men-tira de chamar-se, de julgar-se, de querer ser cristão?

Ainda mesmo que no delírio da hipótese, se quisesse admitir que Cristo, tal como o figuram os cristãos, fora um ideal de per-feição, e se dissesse, por conse-quência, que ele representa uma ideia mãe, que deve ser conser-vada, embora seja uma ilusão, a nossa resposta é que, ainda na hipótese - bem longe de ser certa - a Humanidade tem muito a ga-nhar e nada a perder, quando deixar de lhe dar fé.

Ainda mesmo que esta fosse uma ilusão boa, conservaria sempre dois defeitos capitais: primeiro, ser uma ilusão que, cedo ou tarde provocaria um conflito entre o pensamento livre e conhecedor da verdade e os costumes baseados no erro tradi-cional; segundo, pela sua lei mo-ral oposta à natureza humana, num limite heterogêneo.

E já sabemos que o progresso moral só procede da razão autô-noma, do conhecimento da ver-dade e do amor, companheiro do bem. São inúteis, pois, todas as mistificações: a moral é também uma ciência positiva. A sua nor-ma única baseia-se nas necessi-dades da natureza humana.

E estas necessidades, quem as fará conhecer e quem as avaliará a não ser a razão humana, o livre pensamento, a ciência armada do método experimental?

Suprimi o uso da razão prática e positiva na investigação do bem e voltareis às máximas an-tissociais do cristianismo, imora-líssimas quando mais pretendem ser morais, porque nos delírios de além-túmulo, isto é, fora do homem, colocaram o fim do ho-mem, como diz João Bovio.

Além disso, feita a alma uma entidade concreta, destinada a um mundo melhor, o corpo con-vertia-se em um cárcere, em um escândalo, causa de todo o mal; daqui, os suplícios infligidos à carne, o descuido por melhorar as condições da existência, e o ideal de perfeição baseado na dor, no abandono de todos os cuidados corporais, santificado pelo beato Labre.

Pois que este mundo é um lu-gar de provações, enquanto que

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a verdadeira pátria do homem seria em um mundo futuro, todo o interesse pelas condições polí-ticas, morais e materiais da exis-tência, deixaria de existir, acei-tando-se resignadamente o mal como um mérito maior para con-quistar a pátria celestial.

E posto que, segundo a reve-lação, um Deus se tivesse feito homem e morresse na cruz para salvar a Humanidade, à qual le-gou o modo de conquistar o rei-no dos céus com o conhecimento e a prática dos seus mandamen-tos, era pérfido e satânico aquele que se não aproveitasse da boa nova para se salvar, era meritó-rio obrigar os não crentes a con-verterem-se, à força de os ator-mentar ou exterminar. Assim é que a civilização cristã poderia se definir dizendo que nela o ho-mem, iludido acerca do fim da vida, reduzia toda a felicidade a torturar a si próprio para con-quistar a glória.

Eis aí, pois, como a moral re-pousa também na ciência e como só a razão humana, autônoma e experimental, pode descobrir as leis do bem e os métodos para o alcançar.

Eis aí, pois, como também no campo moral - e mais que em parte alguma - concorrem o co-nhecimento positivo das leis da

natureza humana e sempre o uso da razão natural, nunca exaltada nem desviada por nenhum trans-cendentalismo, para buscar e al-cançar a felicidade.

A moral, que é a última das disciplinas humanas a emanci-par-se da religião, deverá tam-bém diferenciar-se e constituir terreno autônomo, convertendo-se em ciência experimental. É uma questão de método, que dará, na própria moral, a vitória definitiva da ciência sobre a fé.

Porque a fé não raciocina, não examina, não discute, não inves-tiga, não descobre nada, ao pas-so que a ciência faz precisamen-te o contrário, e não impõe nada, nem sequer o bem, fazendo-o contudo conhecer, como esplen-dor da verdade, induzindo a amá-lo, pela persuasiva propa-ganda que faz dele. Iluminando as inteligências, engrandece e nobilita os corações: a sensibili-dade mais requintada é a que se desenvolve e apura na investiga-ção da verdade.

Não só, portanto, se dispensa a ilusão de um Homem Deus para conduzir a Humanidade ao bem; não só é necessário aban-donar definitivamente essa ilu-são, que tem sido causa de tão grandes danos, mas até preciso se torna emancipar para sempre

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a moral de toda a tutela teológi-ca e de toda a infiltração mística e sobrenatural, para a tornar ver-dadeiramente humana, para a ba-sear nas necessidades reais da vida: fazê-la, em suma, urna ci-ência positiva, experimental, ra-cional.

Com Cristo, deverá necessari-amente desaparecer o cristianis-mo.

Os que confundem o cristia-nismo com moralismo, pergunta-rão, talvez, de boa fé: Que será então da Humanidade sem a be-néfica ilusão de um mito, ideal do homem, como o é Cristo?

À essa pergunta, basta respon-der com esta: Teve a Humanida-de a necessidade de Cristo du-rante todo o tempo pré-cristão? De modo algum. Nesse tempo, antes dele, viveram as socieda-des cultas e civis; nesse tempo deram-se altos exemplos e exce-lentes costumes de moral, que o cristianismo nunca conseguiu ul-trapassar; nesse tempo houve Estados poderosos, ricos, prós-peros; floresceram filósofos, po-etas, artistas, homens de ciência, juristas que ainda hoje servem de modelo. E se, por outro lado, existiram instituições más e cos-tumes desumanos, estes não fo-

ram abolidos pelo cristianismo mas pela filosofia, em quanto que o cristianismo agravava os males que esta não pudera des-truir, acrescentando-lhe outros novos, como, para não citar se não os maiores, a luta da alma contra o corpo e a perseguição dos crentes contra os incrédulos.

Como antes do cristianismo, no futuro não haverá necessida-de do mito Cristo para ordenar o que à natureza humana cabe exe-cutar. Cristo pode voltar definiti-vamente para o céu, de onde não devia ter descido nunca à esta terra, para com o seu nome a en-cher de ruínas e desventuras.

Pela nossa parte, nenhuma nostalgia sentimos por esse ídolo que se vai. Antes, pelo contrário, sentimos a alegria que traz sem-pre um mal menor.

Agora, a vós, pagãos, estulta-mente caluniados e destruídos; a vós, hebreus injustamente odia-dos e infamados, a vós, livres pensadores de todos os tempos, natureza e grau, atrozmente per-seguidos; a vós todos, a reabili-tação da história, da ciência e da Humanidade.

Cristo, esse vosso detrator, Cristo, esse vosso perseguidor, Cristo, não existe!

FIM

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De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a história não nos con-servou documento algum, prova alguma, demonstração alguma.Assim começa um dos ensaios mais polêmicos e surpreendentes dos anos 1900. O advogado Emilio Bossi desmonta minuciosamente, ponto a ponto, com extrema habili-dade e rigor, qualquer vaga ideia que a nossa cultura possa ter a res-peito de um personagem chamado Jesus Cristo.Seria ele filho de Deus? Este não é um argumento de pesquisa históri-ca e, consequentemente, nem deste ensaio. Viveu ele realmente, ainda que so-mente como pessoa física? Bossi declara um categórico NÃO demostrando incontestavelmente, com provas e mais provas, que não há nenhum traço de evidência ou sequer sombra de suspeita da pos-sível existência de um homem cha-mado Jesus.Este ensaio mordaz de 1900 (Rara-mente reimpresso) é uma viagem através dos mecanismos meméti-cos de evolução cultural: mostra como as religiões mais primitivas e os rituais mais antigos evoluíram para o que hoje se chama de "ver-dade revelada".

Emilio Bossi nasceu em Bruzella no Can-tão suíço de Ticino em 31 de dezembro de 1870, filho de um arquiteto, Francis-co, e de Emilia Contestabile. Iniciou seus estudos no Liceu de Lugano e formou-se em direito em Genebra. Empreendeu car-reira no jornalismo e ganhou fama como um grande polemista com o pseudônimo de Milesbo. Foi adversário inflexível do clericalismo e defensor acérrimo da itali-anidade de Ticino. Travou duras batalhas contra os "menatorroni" da vida pública. Colaborou com o jornal O Dever, dirigiu A Gazeta Ticinense, foi diretor do sema-nário Nova Vida e fundou o jornal Ideia Moderna. Em 1906 fundou e editou A Ação, órgão da Extrema Radical. Bossi foi deputado do Grande Conselho, do Conselho Nacional e do Conselho dos Estados. Como tal, dirigiu o Departamen-to do Interior. De 1905 a 1910 ocupou o cargo de juiz de instrução substituto. Li-beral radical, foi com Romeo Manzoni, o flagelo implacável da política oportunista e das transações de Rinaldo Simen. Em 1897 foi um dos fundadores da União Social Radical Ticinense, uma associação que, além das reformas sociais que de-fendia propugnava a escola neutra e a se-paração entre Igreja e Estado. Com Man-zoni, foi o líder carismático da Extrema Radical, fundada em 1902 após uma vio-lenta polêmica com a corrente de Simen. Em seguida à sua entrada no Conselho de Estado, Bossi foi forçado a se adequar à lógica das negociações. Em consequên-cia, a Radical Extrema desaparece como grupo autônomo. Morreu 27 de novem-bro de 1920, em Lugano. Jesus Cristo Nunca Existiu foi publicado simultanea-mente em 1904 em Milão e em Bellinzo-na, na Suíça. Revê a luz em 1951 em Bo-lonha pela Lida e finalmente em 1975 em Ragusa, pela La Fiaccola.