Jesus, A História de Um Vivente - Edward Schillebeeckx

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  • Edward Schillebeeckx

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    PAULUS

  • jfc lO J: A histria de um viventenos apresenta uma nova busca do Jesus histrico. Expe os avanos dos estudos cristolgicos a partir da Segunda Guerra Mundial e a partir do Vaticano II. Com rigor histrico-crtico, aproxima- nos do mistrio de Cristo, at a fronteira onde a inteligncia humana pode falar com um mnimo de sentido e coerncia. Alm dessa fronteira, a inteligncia no nega, mas tambm no se atreve a falar. O resultado disso uma proposta aberta e uma tentativa de construir uma ponte sobre a ruptura entre a teologia acadmica e a necessidade concreta dos fiis, em que o respeito tradio busca sintonia com a cultura atual, abrindo-se para o futuro.

    J EOLOGIA^

    SISTEMTICA

  • Jesus: A histria de um vivente

  • Curso fundamental da f, K. Rahner Teologia do sacramento da penitncia,}. R. Regidor Unidade na pluralidade, A. G. Rubio Os sacramentos da f, C. Rocchecta O Pai, Deus em seu mistrio, F. X, DurrweW Teologia da histria - ensaio sobre a revelao..., B. Forte Histria humana revelao de Deus, E. Schillebeeckx A revelao de Deus na realizao humana, A. Torres Queiruga Teologia Sistemtica perspectivas catlico-romanas (Vol. 1),

    F, S. Fiorenza ej. P. Galvin (orgs.) Teologia Sistemtica - perspectivas catlico-romanas (Vol. 2),

    F. S. Fiorenza ej. P. Galvin (orgs.) A histria perdida e recuperada deJesus de Nazar, J, Lus Segundo Mistrio e promessa - teologia da revelao,}. F. Haught Histria da penitncia - das origens aos nossos dias, P. Rouillard Maria na tradio crist ~ a partir de uma perspectiva contempornea, K, Coye Introduo Cristologia, W . P. Loewe Escatologia da pessoa - vida, morte e ressurreio (Escatologia I), R. J. Blank Escatologia do mundo o projeto csmico de Deus (Escatologia II), R. J. Blank Quando Cristo vem... a parusia na escatologia crist, Leomar Brustolin Teologia da ternura - Um evangelhoa descobrir, Cario Rocchetta Misso para todos Introduo missiologia, Joo Panazzolo Mariologia social Perspectivas, Clodovis BofF Jesus: a histria de um vivente, Edward Schillebeeckx

  • EDWARD SCHILLEBEECKX

    Jesus: a histria de um v

    PAULUS

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Schillebeeckx, Edward Jesus, a histria de um vivente / Edward Schillebeeckx; [traduo de Frederico Stein],

    So Paulo : Paulus, 2008. (ColeoTeologia sistemtica)

    Ttulo original: Jezus, het verhaal van een levende.Bibliografia.

    ISBN 978-85-349-2933-2

    1. Jesus Cristo 2. Jesus Cristo - Biografia 3. Jesus Cristo - Pessoa e misso I. Ttulo. II. Srie.

    08-01491 CDD-232

    ndices para catlogo sistemtico:1. Jesus Cristo : Teologia dogmtica crist 232

    Ttulo original Jezus het verhaal van een levende

    Uitgeverij H. Nelissen B. V., Baarn, 2000, 10a ed. ISBN 90-244-1522-5

    Traduo Frederico Stein

    EditoraoPAULUS

    Impresso e acabamento PAULUS

    PAULUS - 2008 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 So Paulo (Brasil)

    Fax (11) 5579-3627 Tel. (11) 5087-3700 www.paulus.com.br [email protected]

    ISBN 978-85-349-2933-2

  • Para que no vos entristeais como os outros que no tm esperana.

    (lT s 4,13)

  • P r o m i o

    U m ensa io c r is to l g ic o

    Considero o presente livro como uma interpretao crist de Jesus, uma cristologia, por mais inconvencional que talvez seja. Todavia, no foi escrito para solucionar problemas sutis de teologia acadmica. N o porque sejam irrelevantes, mas porque os fiis colocam, a respeito de Cristo, perguntas diferentes daquelas com que os acadmicos muitas vezes se ocupam. Tentei construir uma ponte sobre a ruptura entre a teologia acadmica e a necessidade concreta dos fiis. Ou, em termos mais modestos: com esta pesquisa tentei esclarecer a problemtica que precede aquela ruptura; a que as perguntas dos fiis so mais urgentes. Isso, sem dvida, exigiu considervel trabalho cientfico e uma reflexo teolgica, na qual foram levadas muito a srio as exigncias tanto da f como do pensamento crtico.

    O livro foi escrito em estilo que se pode considerar acessvel para qualquer pessoa interessada pelo tema. * O leitor talvez precise de algum esforo para acompanhar (na Parte III) a evoluo, s vezes complicada, da maneira como, depois da morte de Jesus e at o Novo Testamento, os cristos (inicialmente judeus-cristos) interpretaram Jesus. Porm, quem deste livro quiser ler apenas um ou outro captulo que lhe interesse particularmente, no perceber sua verdadeira finalidade. Pois o conjunto foi composto de tal maneira que o leitor possa, por assim dizer, participar do nascimento da f crist responsvel, inclusive de sua prpria f. Uma seleo de captulos ou uma mudana na sua ordem privaria o livro de sua dinmica interna.

    Enquanto isso, o leitor quem julgar se essa abordagem convence ou no. E exatamente por isso que toda crtica motivada me ser muito bem-vinda.

    Edward Schillebeeckx o.p.

    7 de outubro de 1973.

    * medida do possvel, procurei evitar termos do jargo teolgico, o que s vezes pareceu impossvel. No aparato crtico, no final deste livro, alguns termos tcnicos so explicados.

  • P ara a t er c e ir a ed i o

    Na IV Parte foi inserido um pequeno captulo novo: O sentido salvfico intrnseco da ressurreio de Jesus . E em alguns lugares foram feitas pequenas correes na formulao.

    A pr esen t a n d o a d c im a ed i o

    Que boa surpresa ficar sabendo que a minha obra Jesus, a histria de um vivente, publicada pela primeira vez em 1974, ainda est sendo vendida! Agora que a nona edio se esgotou, e o livro continua sendo procurado, decidiu-se lanar uma nova edio.

    Na evoluo da viso crist teolgica sobre o profeta Jesus de Nazar, confessado como O Ungido: Cristo, Filho de Deus, nosso Senhor, Amigo e Irmo , o livro foi sem dvida um momento significativo.

    Ora, depois de 25 anos de novos estudos e reflexes, de minha parte e da parte de outros, no teria sentido reelaborar tal livro, como se fosse um upgrade. A naturalmente nasceria um livro totalmente novo.

    Mas ento esta histria de um vivente , como fase explcita na busca crist de muitas Igrejas ecumenicamente crists, a respeito do que realmente aconteceu na vida, morte e ressurreio de Jesus de Nazar, perderia sua posio histrica dentro dessa progressiva evoluo.

    Pois essa f crist, procurando o entendimento, uma busca que sempre de novo deve ser retomada. Tanto por uma continuidade homognea, como por rompimentos com idias historicamente condicionadas, essa busca do sentido da f, dentro do horizonte novo do nosso tempo, quer continuar fiel dinmica da f do TENAK e da Boa Nova crist, o Evangelho.

    Edward Schillebeeckx

  • P o r q u e f o i e s c r it o e s t e l iv r o

    I. A NARRATIVA SOBRE UM COXO

    Quem de ns no o conhece? Todo dia a est ele, sentado no mesmo lugar; os transeuntes, apressados, mal o percebem; alguns estranham ou se irritam; outros, ao passarem, cumprimentam gentilmente, entregando uma moeda; a est ele, sozinho, no seu cantinho, o paraltico do bairro. Antigamente j era assim: Havia ali um homem, paraltico desde o nascimento; todos os dias o carregavam at a porta do Templo chamada Bela Porta, para ele, a sentado, pedir esmola a quem entrava no Templo (At 3,2). Um belo dia Pedro, seguidor do Nazareno, o viu sentado no lugar de sempre. Comearam uma conversa. Mais tarde o povo viu esse paraltico do bairro, so e curado, andando. Reconheceram-no: era o mesmo que ficava sentado, mendigando, na Bela Porta do Templo. E todo o mundo ficou cheio de pasmo diante do que lhe havia acontecido (At 3,10). E Lucas narra que Pedro, depois de ter falado ao povo, respondeu s autoridades judaicas, que se intrometeram no caso: Sabei, vs todos, e todo o povo de Israel: pelo nome de Jesus Cristo, o Nazareno, por vs crucificado, mas ressuscitado por Deus, que esse homem se acha a, diante de vs, curado... No h salvao, a no ser por Jesus, e no h sob o cu nenhum outro nome oferecido aos humanos pelo qual, conforme Deus decretou, possamos ser salvos (At 4,10.12).1

    Nesse texto - que, sendo dos Atos, no dos mais antigos do cristianismo - escutamos, em todo caso, um eco do cristianismo primitivo. Depois de uma anlise crtica dos Atos dos Apstolos, podemos entender esse fato bblico, pelo menos como eco da primeira pregao crist, que Pedro - depois da execuo de Jesus, e somente depois de muitas dvidas - julgou poder e dever dirigir aos seus correligionrios judaicos: a ns, judeus, e - como mais tarde se tornaria claro - a todos os seres humanos, a salvao de Deus dada nica e exclusivamente em Jesus, o Nazareno , isto , na linguagem do Novo Testamento, o

    1 O texto diz literalmente: devemos ser salvos . N a linguagem do Novo Testamento esse dever significa: assim o Deus vivo o providenciou; assim seu plano divino, para a salvao dos humanos. Da a traduo: Conforme Deus decretou .

  • Crucificado e Ressuscitado. Foi de importncia histrica essa profisso de f petrina, confirmada depois solidariamente pelos Doze , na base de suas prprias experincias embora tampouco sem dvidas iniciais (a Escritura insiste nisso). Testemunhas de Jesus de Nazar, e de tudo o que esse homem iniciou, vivem entre ns: so as Igrejas crists, e mesmo os que fora dessas Igrejas (mas no sem sua mediao milenar) at hoje tm uma experincia de salvao neste Jesus, inclusive os atuais Jesus People, Povo de Jesus . Sem essa mediao histrica, ecesial, hoje ns no saberamos nada sobre um tal de Jesus de Nazar (exceto alguns historiadores especializados). Nem de Esprtaco, o escravo que com muita razo se revoltou, nem de Joo Batista, o severo crtico da cultura religiosa de seu tempo, no existem hoje testemunhas vivas, a no ser alguns especialistas privilegiados de historiografia. Essa curiosa diferena, sem ser decisiva por si s, de excepcional importncia histrica. Chama a ateno. Faz pensar: O que est acontecendo por a? Por que determinadas figuras histricas so to diferentes quanto sua influncia?

    O que particularmente me chama a ateno, no vago eco da catequese da primeira f crist, no o fato de que foi executado um homem, Jesus de Nazar, que segundo a convico de seus seguidores era inocente. Naqueles dias rudes tempos que parecem caracterizar toda a histria da humanidade - uma execuo problemtica, entre tantas outras, nem surpreenderia. Tal acontecimento no parece ter despertado especialmente a ateno, e era um caso diferente no noticirio daqueles dias, que apesar de At 26,262se passou realmente em algum canto sem importncia da oekumne, do grande mundo dos humanos . Casos como esse eram freqentes. O que deixou Simo Pedro pensativo, e com ele todos os seus, foi o fato de que logo este homem, Jesus de Nazar, foi executado por todos os que de fato tinham autoridade. A impresso que Pedro e os seus tiveram de Jesus, e a imagem que neles deixara, no combinavam absolutamente com o fim que as autoridades lhe tinham destinado, sendo ele entregue pelos seus prprios correligionrios aos dominadores romanos, que o mandaram crucificar como malfeitor. Isso no condizia com a evidente impresso que muitos deles, sendo judeus, tinham de Jesus. Nisso consiste o problema que a tradio crist, a partir da, tem chamado de o problema cristolgico .

    II. E s b o o d a s itu a o

    1. Por mais que seja determinada tambm por situaes muito concretas, a histria realmente provocada por uma pessoa nos forne-

    2 Pois isso no aconteceu em algum recanto escondido (At 26,26).

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  • ce uma chave hermenutica para a interpretao de sua identidade. E pelo movimento para o qual Jesus deu o impulso, que ns, ainda hoje, somos confrontados com Jesus de Nazar. O movimento que ele iniciou a mediao permanente para qualquer estudo que se empreenda para saber historicamente quem foi Jesus. Para mim, como pessoa que cr e pensa, esse fato um dado que obriga a pensar; e tambm o para qualquer um que reflita sem preconceitos sobre o que aconteceu realmente na sua prpria histria.

    A histria que nasceu de Jesus vai fascinar tanto mais o nosso pensamento, ao se evidenciar que, uns trs anos depois da morte desse Jesus na cruz, j estavam se consolidando as profisses fundamentais de f, depois chamadas de profisses cristolgicas-, e sobretudo ao se tornar claro, historicamente, que um fariseu, chamado Saulo, durante uma viagem empreendida para perseguir os que professavam a f em Jesus, se converteu, tornou-se cristo, apenas uns trs anos depois da morte de Jesus. Foi perto de Damasco, o que supe que na poca j existia na Sria uma comunidade de cristos.3 A histria mostra que dentro do prazo de cinco anos estavam prontos os fundamentos para uma nova religio mundial, fenmeno sem dvida excepcional.

    Esse acontecimento, porm, no deixa de nos confrontar com um processo extremamente complicado, o de uma histria de pessoas que encontraram a salvao que provm de Deus em Jesus de N azar. Elas, na base de suas expectativas de salvao confrontadas com o aparecer concretamente histrico do mesmo Jesus, o denominavam Cristo, Filho de Deus, nosso Senhor .

    Idias e expectativas de salvao e felicidade humana sempre so projetadas a partir de uma realidade concretamente experimentada e refletida de desgraa, sofrimento, misria e alienao, a partir de experincias negativas, acumuladas numa histria secular de sofrimentos, permeada de lampejos de experincias cheias de promessas de felicidade, experincias parciais de salvao numa histria, atravs de muitas geraes de expectativas no realizadas, de culpa e de maldade: o problema de J , atravs da nossa histria humana. Disso nasce ento, com o tempo, um projeto antropolgico, uma viso do que seria o ideal de uma humanidade verdadeira, feliz e boa. Os desejos ardentes de felicidade e salvao, sempre de novo sujeitos a crticas, porm sempre sobrevivendo a qualquer crtica, vo inevitavelmente assumindo, em diversas formas, o profundo matiz de ser salvo de... ou ser libertado de... . e ao mesmo tempo de entrar num mundo inteiramente novo . As experincias negativas e contrastantes da humanidade esboam assim as idias e expectativas positivas

    3 M. Hengel, Christologie und NeutestamentUche Chronologie, em: Neues Testament und Geschichte (O. Cullmann zum 70. Geburtstag), Zurique-Tubinga 1972, 43-67.

  • sobre a salvao de um povo. Das suas idias a respeito de salvao podemos, por assim dizer, deduzir a histria dos sofrimentos de um povo, mesmo quando no podemos mais seguir, por outras fontes, o trajeto exato desse sofrimento.

    Nesse processo humano de experincias desastrosas e parcialmente salutares, digno de nota que as prprias idias de um povo a respeito de sua salvao tentam interpretar, no apenas a profundeza e o ilimitado tamanho da infelicidade j sofrida ou permanente, mas tambm suas causas, origem e conseqncias. E exatamente na referida expectativa de salvao que, ao mesmo tempo, o mal e o sofrimento so desmascarados; de ambos, ento, obtm-se uma compreenso perspicaz. Na antiguidade, mas tambm na espontnea experincia de todos os povos, a experincia da desgraa recebe sempre uma dimenso religiosa por causa da profundidade humana da histria de seu prprio sofrimento, que teoricamente insondvel e praticamente inelutvel. uma evidncia espontnea: a desgraa no humanamente aceitvel, nem na teoria, nem na prtica. Em conseqncia, as expectativas de salvao receberam um nome religioso. A humanidade comeou a esperar, acima de si mesma, uma salvao da parte de Deus . Ela espera clemncia e misericrdia no cerne mais profundo da realidade, apesar de todas as experincias em contrrio.

    Sobretudo do ponto de vista histrico, a poca de Jesus, tanto entre os judeus como entre os gentios, foi um perodo repleto de expectativas de salvao, assumindo diversas formas, no leque de idias sobre salvao, durante uma histria secular acrescidas de alguma salvao ligeiramente experimentada, e sobretudo de muitas expectativas no realizadas. Sobretudo o tempo da apocalptica judaica, desde a luta dos macabeus (167 a.C.) e a guerra judaica (66-70 d.C.), at Bar Kohba (135 d.C.), foi uma histria de sangue e lgrimas ,4 de onde surgiu o desejo: Agora chega! O mundo tem de ser transformado definitiva e radicalmente! Essas expectativas de salvao foram grandiosamente elaboradas em vises apocalpticas, em imagens com as quais ns dificilmente nos familiarizamos. Expectativas bem divergentes, provenientes de mltiplas tradies, convergiram pelo contato internacional de muitas tendncias contemporneas. Disso resultou uma mistura de toda espcie de expectativas de salvao, originariamente independentes. Foi um processo historicamente to complicado, que para ns se torna hoje extremamente difcil destrinchar com exatido a forma original de cada tradio.

    Dentro desse horizonte geral de expectativas, dado que no tempo de Jesus o processo de aglomerao de diversas idias ainda estava em pleno andamento, a viva confrontao com Jesus de Nazar levou

    4 M. Hengel, Judentum und Hellenismus, Tubinga 1973, 354.

  • alguns convico: Em nenhum outro nos dada a salvao . A sua experincia de uma salvao em Jesus, vinda de Deus, foi verbalizada por aqueles primeiros cristos em idias j existentes sobre salvao, idias das mesmas diferentes origens, mas que eles mesmos partilhavam vivamente. Essas expectativas, eles as viam agora cumpridas em Jesus de Nazar, pois sentiam-se como seres humanos renovados. No Novo Testamento, depois de algumas geraes de vida crist e de reflexo a respeito, eles deram o testemunho de terem reconhecido em Jesus a sua salvao, manifestando ao mesmo tempo quais tinham sido as suas idias e expectativas a respeito de salvao. Por isso, a prpria expectativa deles sobre salvao e o alegre reconhecimento de que ela se cumpriu em Jesus, no se encontram separadamente nos evangelhos. As duas linhas se acham entrelaadas, quase inex- trincavelmente. A pergunta pela verdadeira essncia do ser humano, e a resposta encontrada no homem histrico Jesus, so correlativas, no sentido de que no so as anteriores expectativas de salvao que determinam quem Jesus; ao contrrio, a partir da histria prpria e muito pessoal de Jesus, as expectativas existentes de salvao foram reassumidas, sim, mas ao mesmo tempo transformadas, recunhadas e corrigidas. O fato mostra que ao mesmo tempo existe continuidade e descontinuidade entre a busca humana de salvao e a resposta concreta, histrica, que Jesus.

    E por isso que uma primeira leitura do Novo Testamento nos coloca grandes problemas. Ns no vivemos dentro de uma tradio que esteja esperando um messias ou um misterioso Filho do Homem celestial; nem tampouco vivemos na expectativa de um fim iminente deste mundo. Nos evangelhos somos confrontados, no apenas com Jesus de Nazar, mas tambm com pedaos de uma cultura religiosa antiga. Nessas narrativas, de fato, Jesus est encoberto por idias religiosas da poca, ideias alis no estranhas a ele mesmo. Alm disso, nos evangelhos, a experincia original de salvao por Jesus ainda est misturada tambm com problemas doutrinrios e prticos das comunidades crists posteriores. Tendo sido inicialmente comunidades dentro do judasmo (ao lado de muitas outras), foram depois se separando dele, paulatinamente, em oposio polmica contra as sinagogas dirigidas pelos fariseus; por outro lado, o judasmo, por sua vez, se distanciou oficialmente do fenmeno cristo, excomungando- o, excluindo-o da sinagoga , por j no ser mais algo autenticamente judaico.5 Nos evangelhos, Jesus de Nazar, por assim dizer, sumiu no fundo da polmica entre Israel e Igreja , problema esse que

    5 Ver o enxerto no dcimo segundo pedido da Orao dos Dezoito Pedidos: Que peream logo os nazarenos e os hereges. Que seu nome seja apagado do livro da vida, e que no sejam inscritos entre os justos (ver K. G. Kuhn, Achtzehngebet und Vaterunser und der Reim [WUNT, 1], Tubinga, 1950, 18-21).

  • Jesus, nessa forma, no conheceu, e provavelmente no desejou. O fenmeno Jesus, de fato, quebrou as expectativas de salvao comuns aos judeus em geral, como tambm aos judeus depois chamados de cristos. Essas expectativas, pela livre atuao de Jesus, ganharam sentido alterado, no tradicional. Alm disso, os judeus-cristos de lngua aramaica interpretavam Jesus de maneira diferente da assumida pelos judeus helenistas da dispora, com seu humanismo grego, universal, e sua sensibilidade para a filantropia, ou seja: o amor por toda a humanidade, aberto para os pagos. Os gregos, os srios e os romanos que, no sendo judeus, no tinham participado em nada das esperanas messinicas de Israel, naturalmente verbalizaram a salvao, que eles encontraram em Jesus, em categorias de salvao totalmente diferentes. No entanto, apesar das diferenas fundamentais, de um lado entre as comunidades primitivas de cristos judeus de lngua aramaica, e de outro lado as comunidades primitivas de lngua grega (tanto de judeus que se tornaram cristos como de gentios que se tornaram cristos), todos tinham pelo menos uma coisa em comum: participavam, embora de formas diferenciadas, da mesma cultura antiga; sim, da cultura helenista, sobretudo na Galilia (e mesmo na Judia, em ambientes importantes de Jerusalm, com as suas muitas sinagogas gregas). A Judia, no sul, considerava a Galilia (praticamente bilnge, e circundada de cidades gregas da Decpolis) quase como pas pago, de onde nada de bom podia sair.

    Para ns essa cultura antiga realmente estranha, em todos os seus modelos de expectativa, tanto judaicos como helenistas. N ossas expectativas de salvao tm outra cor e outra direo; diferentes tambm so as nossas idias a respeito do que seria salvao. A priori, pode-se afirmar, talvez, que as nossas idias devem ser criticadas a partir das expectativas antigas; ou ento, que as idias antigas devem ser criticadas do ponto de vista moderno. Pois so culturalmente condicionadas as idias a respeito de salvao e as expectativas sobre o que seria verdadeiramente humano. Para um cristo, o critrio decisivo naturalmente Jesus, experimentado como salvao decisiva, e no as idias culturais-religiosas sobre salvao, de judeus e gregos falando aramaico ou grego que se tornaram cristos. Em todo caso, a salvao que os primeiros cristos encontraram em Jesus foi descrita nos termos das esperanas messinicas da poca, por mais que esses termos tenham sido modificados, recunhados e corrigidos sob o peso histrico de Jesus. E inegvel o fato de que so estranhas para ns as idias do Novo Testamento sobre salvao. No estamos esperando um Filho do Homem celestial, que vir em breve para um julgamento, fundando uma repblica messinica, enquanto ns, como os cristos de outrora, perguntaramos ansiosamente se os cristos j falecidos tambm participariam dela (lTs 4,13-17). Ou ser que chegamos depressa demais a uma concluso? Quando o trem que estamos es-

  • perando atrasa, podemos aguardar um tempo razovel. Mas quem, hoje em dia, j esperou, no durante horas mas durante dias e meses que parecem sculos, por um trem claramente programado, acaba no agentando mais, psicologicamente, a demora do trem esperado, e no acredita mais nele. Ento, no demora chegar concluso de que por esta linha no passa mais trem nenhum. A imagem de Cristo que o Novo Testamento nos transmite realmente estranha, primeira vista, no sentido da chocante estranheza que sempre h de caracterizar aquilo que o prprio Deus dispe sobre a humanidade, transcendendo a sabedoria humana; no s, mas estranha tambm no sentido humano, cultural e religioso. A objeo de que Jesus realmente submete a uma crtica as nossas idias humanas, por demais humanas, verdadeira, mas no disso que agora se trata. No Novo Testamento, a figura dejesus ficou historicamente irreconhecvel pelas idias antigas sobre salvao; por outro lado, foi nessas idias que ele, paradoxalmente, foi reconhecido, na convico da f, como Salvador. Ns, ento, no merecemos nenhuma crtica, a no ser na medida em que aquelas idias colocam o critrio de que Jesus a salvao definitiva. Quem no v essa distino, no coloca Jesus Cristo como norma da f crist, mas determinado pedao de cultura religiosa, que no caso j no um crer em Jesus de Nazar. No entanto, a profisso fundamental do credo cristo o que professamos a respeito de Jesus, isto , de Jesus de Nazar : que ele o Cristo, o Filho Unignito, nosso Senhor . Nisso, esta norma que decide tudo: Credo in Je- sum : eu creio na apario deste homem muito concreto, Jesus , que apareceu na nossa histria com este nome histrico: Jesus de Nazar . E nele que encontramos a salvao decisiva. Esse o Credo fundamental do cristianismo primitivo.

    Nosso padro de expectativas com relao salvao da humanidade totalmente diferente das expectativas antigas sobre um Messias descendente de Davi, ou de um Messias Filho do Homem. Igualmente, para ns estranha a combinao dessas duas tradies de expectativas, originariamente independentes.

    Esse foi para mim o primeiro motivo para comear a escrever este livro: O que significa para ns, agora, a salvao de Deus em Jesus? Pois, salvao um conceito que lingisticamente, ou seja, a partir de experincias humanas da realidade, com implicaes sociais, s chega a ser compreendido e vivido, se se parte de experincias negativas, contrastantes, juntamente com experincias, pelo menos espordicas, com sentido oposto; experincias que, pela esperana, geram uma antecipao do sentido de totalidade, de um ser so e salvo, um salvar-se. Uma experincia puramente positiva, quem a chamaria de experincia de salvao, se no fosse contra um j vivido fundo contrastante, de experincias muito negativas? Tambm da nossa prpria

  • histria ocidental de desgraas est brotando entre ns uma utopia, conforme sempre aconteceu. Essa experincia concreta repercutiu em muitas formas de movimentos libertadores de emancipao, movimentos que querem libertar a humanidade de suas alienaes sociais, enquanto diversas tcnicas cientficas (libertao psicoteraputica, gestalt-terapia, androgenesia, servio social, counseling etc.) querem libertar as pessoas de uma perda de identidade. Que fora de Jesus Cristo haja em nossa vida numerosos fatores, que historicamente trazem de fato alguma salvao e efetivamente curam ou completam o ser humano, uma convico que em nosso tempo, mais do que nunca, se imps como evidncia. Esse fato coloca em contexto difcil e pouco transparente, pelo menos estranho e inacreditvel, a expresso: Toda verdadeira salvao vem somente de Jesus Cristo . Expresso que at pouco tempo era candidamente usada em certos ambientes cristos.

    Enquanto isso, a crtica atual da cultura mostrou que tal expectativa moderna de salvao - sobretudo a partir do sculo XIX, colocando toda a esperana de salvao na cincia e na tcnica - leva ela mesma a desvios e alienaes, pelo fato de se basear em conceito muito estreito do ser humano. Esse estreitamento em que a cincia e a tecnologia comearam a ser estimadas como valores culturais, embora no exclusivos, mas certamente representativos, causou nova desgraa, sobretudo numa sociedade que na realidade acabou atribuindo prioridade a valores exclusivamente econmicos. Assim, a prpria noo moderna de salvao fica sujeita a crticas. Portanto, ficou bem claro que a falta de sintonia com o Novo Testamento no deriva apenas do prprio Novo Testamento, mas tambm, e no menos essencialmente, por uma falha na maneira como hoje entendemos a realidade e a ns mesmos. Para a vida humana existem tambm fontes de libertao e salvao, que no so cientficas nem tcnicas; essa a nova compreenso cientfica de hoje. Tanto assim que, paradoxalmente, toda espcie de vivncias gratuitas, inclusive as vivncias religiosas, so reabilitadas como fatres de salvao.

    No devemos esquecer, no entanto, que essa viso antitecnolgi- ca - no sentido de uma relativizao da tecnologia - no deixa de ser resultado de uma anlise cientfica. E uma viso cientfica. Mas essa viso, como tal, ainda no restabelece, por si s, a capacidade de outra aproximao, no cientfica, da realidade. Alm disso, exatamente nos ambientes em que se desenvolveu essa viso cientfica dos fatores extracientficos de salvao, em geral tambm se coloca explicitamente que salvao auto-atualizao, no sentido de que o aspecto religioso, na sua vivncia de gratuidade e de orientao para os outros, sem dvida um aspecto de salvao humana; mas de uma salvao cuja fora e fonte esto no prprio ser humano, sem nenhuma referncia a alguma transcendncia absoluta. Nessa concepo, no h lugar para a teologia, que nessa perspectiva deveria desaparecer, e

  • seria melhor que dedicasse seus esforos exclusivamente s cincias humanas.

    Da resulta (fazendo-se abstrao da ltima assero, que ideolgica): em nosso tempo a noo religiosa de salvao, em comparao com o Novo Testamento, ficou realmente empobrecida; foi obrigada a ceder muito terreno a outras instncias de salvao, real e visivelmente efetivas. Tal situao traz para o centro da problemtica atual esta pergunta: O que que serve realmente para o bem do ser humano?

    Pois constatamos que realmente deixa de estar presente a possibilidade de acabarmos com toda espcie de alienao humana atravs de cincias e tcnicas, mas que ao mesmo tempo essa possibilidade efetiva s se refere a alienaes que essencialmente so conseqncias de condicionamentos corporais, psicossomticos, psquicos e sociais, devidos ausncia de condicionamentos libertadores e presena de condicionamentos agravantes da liberdade humana; estes ltimos em boa parte poderiam ser efetivamente sanados por um engajamento competente e ativo. Surge da a questo se no existe no ser humano uma alienao mais profunda, conectada sua finitude e sua ligao com a natureza (que, apesar de toda humanizao dessa natureza pelo ser humano, lhe continua profundamente alheia e ameaadora); e se no existe, alm disso, uma alienao em conseqncia de culpa e pecado. De fato, a auto-redeno do ser humano continua sempre limitada. E a surge o problema novo: No ser exatamente essa a problemtica mais profunda que Jesus de Nazar coloca em questo, de maneira especfica, quando fala de uma libertao que realmente liberta o ser humano, para chegar a uma liberdade perfeita, a uma autonomia somente possvel no estar alegremente ligado a um Deus transcendente, que exatamente como tal vivente e libertador? (Gl 5,1).

    Que toda salvao deva ser esperada somente de Jesus Cristo, como muitas vezes tem sido afirmado por uma tradio crist representativa, isso em todo caso contestado por muitos fatos da experincia atual e tem confundido muitos cristos. Em diversos pontos, eles tm de fazer uma reviso dos anteriores critrios histricos de sua f. Foi tambm esse dado da experincia que me estimulou a escrever este livro, sobretudo na maneira como foi escrito.

    2. E mais. Em nossa poca, a sociedade ocidental j no se sente como sendo o mundo inteiro, mas como pequena parte, muitas vezes por demais pretensiosa, de um mundo humano bem maior. Alm disso, este tem sofrido dolorosamente as pretenses e prticas ocidentais, como tambm a declarao do cristianismo: Em nenhum outro h salvao . Idia esta que encontra resistncia claramente perceptvel: Imperialismo cristo ! a censura sempre ouvida, at mesmo e expressamente dos prprios ocidentais, que muitas vezes

  • julgam s poderem encontrar uma identidade pessoal distanciando- se do seu prprio passado ocidental. Para alguns, a pretenso crist evoca a suspeita de uma discriminao de outras religies e culturas, no crists, ou mesmo de um colonialismo espiritual pedante, e de uma explorao egosta, subjetivamente amenizada pela conscincia de ter recebido uma misso de expanso mundial! Tambm essa conscientizao fez sentir algum remorso, enfraquecendo a confisso, anteriormente considerada evidente, de que Cristo o Salvador do mundo . Uma reflexo crist atual no pode deixar de refletir criticamente sobre o problema da universalidade de Jesus, se no quiser, de antemo, tornar-se suspeita de ser ideologia. Por outro lado, essa reflexo no pode desviar-se da questo da verdade, nem fugir em adaptaes exigncia moderna de pluralismo, se que isso nos levaria a no termos mais a coragem de sermos ns mesmos, e de sermos diferentes dos que de fato so outros.

    E se isso fosse a conseqncia do evangelho?...

    3. Com relao a Jesus de Nazar , apareceu em nosso tempo tambm algo mais, bem diferente, embora historicamente no seja uma novidade: no so apenas pessoas pertencentes a uma Igreja que se interessam por Jesus de Nazar.

    Os evangelhos narram sobre o que Jesus comeou a significar para um grupo de pessoas que posteriormente se denominaram ekklesia de Cristo.6 Os escritos antigos desse agrupamento, acrescentados ao Novo Testamento lido, meditado e estudado como seu livro prprio, continuam sendo, at hoje, para os que se declaram incorporados nesse movimento de Cristo, uma fonte de reflexo crtica sobre o cristianismo e a praxe de sua vida.

    Ao mesmo tempo, porm, Jesus tornou-se figura conhecida por uma literatura; no Novo Testamento ele foi, por assim dizer, objetivado. Fato este que o coloca de maneira muito especial na publicidade. Graas a esses escritos transmitidos, Jesus pertence literatura mundial; ficou acessvel para todo o mundo. Tornou-se um bem comum . O Novo Testamento no livro exclusivo da cristandade. Esse documento de literatura propriedade pblica e pode ser estudado historicamente. O conhecimento que dele resulta, e que pode ser controlado por no-cristos, fornece uma imagem de Jesus que pode tambm servir de controle para as imagens que os fiis fizeram a respeito dele no decurso do tempo. De fato, um cristo no pode, soberanamente, ignorar tais pontos de partida universalmente acessveis para o conhecimento sobre Jesus. Com tais pontos, o cristo pode enriquecer suas prprias idias sobre o Cristo, comparando-as e

    6 Rm 16,16, ou: ekklesia de Deus (ICor 1,2; 10,32; 11,16.22; 15,9 etc.).

    20

  • reformulando-as, se for preciso. Assim, o fato de que o conhecimento sobre Jesus de Nazar acessvel a todos presta um servio f dos cristos, no como apologia, mas como confrontao crtica.

    Essa interpretao extra-eclesial de Jesus tem muitos aspectos. O filsofo marxista Roger Garaudy afirmou certa vez: Entregai-o a ns! Devolvam Jesus de Nazar tambm a ns (que somos no-cris- tos, ou mesmo ateus). Vocs, em suas Igrejas, no podem guard- lo somente para vocs . Gandhi disse: Sem precisar ser cristo, eu posso testemunhar o que este Jesus significa na minha vida . Tambm muitos humanistas encontram orientao e inspirao em Jesus de Nazar, ao lado de outras fontes de inspirao. Em nosso tempo, sobretudo os jovens, p.ex., o Movimento de Jesus , fora de todas as Igrejas, encontram em Jesus felicidade, inspirao e orientao. E evidente que Jesus no monoplio das Igrejas crists. Podemos dizer: Jesus est sendo desconfessionalizado em grande escala. Na ndia se pergunta: O que significa Jesus para mim como hindu? Em outros lugares: O que significa ele para mim, como maometano? No mundo todo, jovens so atrados por Jesus de Nazar .

    Quem hoje procura avaliar esse fenmeno do ponto de vista da interpretao eclesistica de Jesus, corre o perigo de continuar cego, exatamente diante dos elementos em Jesus que so para muitos significativa inspirao; enquanto pessoas da Igreja, durante sculos, no os mencionaram ou simplesmente no os enxergaram. A interpretao sobre Jesus fora das Igrejas chama a nossa ateno para o fato de que Jesus realmente tem algo a dizer muito importante para todo ser humano, pois significativo tambm para os no-cristos. Isso coloca a questo da estreita ligao entre o evangelho e tudo o que religioso e humano. Alm disso, a interpretao eclesistica sobre Jesus - nele a misericrdia universal de Deus nos apareceu pessoalmente - assim recebe talvez uma atualizao altamente moderna. Pois muita gente no sabe mais o que pensar , nem sobre Deus nem sobre as Igrejas crists. Os freqentadores das Igrejas tambm tm culpa nisso. No entanto, aquelas mesmas pessoas encontram felicidade e inspirao no homem Jesus. Por um caminho indireto (ser que isso mesmo?) isto , por Jesus, ligando-se a Jesus, aqueles deixam aberta a pergunta sobre Deus e o problema eclesiolgico - provisoriamente, ou definitivamente?7 Ao que tudo indica, por uma pedagogia misericordiosa de Deus que a "ausncia de Deus compensada pela inspirao que Jesus d a muitos que vivem sem Igreja ( assim que o cristo no-r- gido interpreta a situao). A imagem que o ser humano no deixa de fazer de Deus - mesmo sem reconhecer nenhuma realidade divina -,

    7 Ver H. Bourgeois, Visages de Jsus et manifestation de Dieu, em LVie, n. 112 (1973) (71-84) 82.

  • para muitos substituda pelo smbolo e pelo mito de Jesus de Nazar. De fato, parece-me fundamental e surpreendente o carter simblico e mtico de Jesus, em todas as interpretaes de Jesus, sobretudo no-eclesisticas, com ou sem f. A Jesus se torna, fora do tempo, um modelo de verdadeira humanidade. Essa viso no-ecle- sistica de Jesus tem tido inegavelmente efeito historicamente eficaz. Isso significa boa chance, mas tambm possibilidade de fuga: Jesus se torna a resposta, isto , a soluo para todos os nossos problemas no resolvidosl Muitas vezes o povo de Jesus me deixa com essa impresso. Agostinho j o disse: Christus solutio omnium dificultatum- Jesus a soluo de todas as dificuldades. E um slogan feliz, mas tambm perigoso! Enquanto isso, para muitas pessoas sem religio, Jesus de Nazar no deixa de ser smbolo de alguma transcendncia.

    Em todo caso, pelas experincias com Jesus fora das Igrejas ficou claro que a humanidade quer deixar aberta a questo a respeito de uma transcendncia autntica e, pelo menos, no quer se despedir do sagrado com um no categrico. E inegvel que isso pode ser uma fuga dos srios problemas que tanto a realidade de Deus como a realidade histrico-social da Igreja colocam para todos ns. Se realmente uma fuga8 (como diz o jargo moderno neodogmtico), ainda precisa ser examinado. A humanidade no consegue afastar-se de Deus, pelo simples motivo (que a f garante) de que Deus no quer abandonar o ser humano, e continua a visit-lo por caminhos que no podemos traar de antemo. Acontece que precisamente numa poca dita secularizada, na qual Deus desaparece, o mundo se apaixona por Jesus Cristo, seja numa perspectiva poltica, seja na dimenso do homo ludens, do jogo da gratuidade sem objetivo, da festa cmica dos festivais . Ora, no se trata de um fatum, uma fatalidade ou necessidade, mas de uma chance vital de liberdade, qualquer que seja a opo tomada. Pode ser uma chance, aceita ou recusada, oferecida pela benigna misericrdia divina, que em Jesus Cristo quer o nosso bem, ainda que percamos o rumo. A, leis automticas no tm sentido. Quem cr em Deus, no poder negar que nessa situao contempornea h chances de algum se salvar - eu no diria apesar de, mas at exatamente por causa de toda a crtica contra a religio e de todo enjo provocado pelas Igrejas e pelo Deus delas.

    Exatamente essa interpretao sobre Jesus fora das Igrejas um desafio para o telogo cristo. O que que as igrejas de Cristo ainda tm para dizer aos que se acham fora de qualquer Igreja? O que que tm para dizer, depois de terem escutado o que os de fora das Igrejas lhes tm para contar a elas sobre Jesus de Nazar? Tambm isso foi para mim motivo para escrever este livro.

    8 H. van Zoelen, Jezus van Nazarctb: persoonsverkeerlijking als symptoom, em: Dwang, dwaling en bedrog, Baam 1971, 52-67.

  • 4. Tambm dentro da Igreja do nosso tempo, acabou se dividindo a cristologia tradicional (que era uniforme, apesar das diferenas entre diversas escolas). Existe uma problemtica cristolgica tambm intra-eclesial, embora ela no esteja desligada de tudo o que acima se disse. Do ponto de vista teolgico, o problema este: Pode-se, ou no, atribuir significado dogmtico aos dias da vida de Jesus nesta terra, sua mensagem, ao seu modo de agir, a suas palavras e aes ? Em termos populares quer dizer: A salvao crist est encerrada neste Jesus que viveu nesta terra, ou somente no crucificado-ressuscitado? Muitas vezes esse problema colocado claramente em forma de dilema.9 Paralelamente a esse dilema assim posto, podemos constatar outras oposies entre cristos dentro da Igreja: a) De um lado, uma teologia sobre Jesus de Nazar, sentido como a realidade salvfica, e interpretado como orientao e inspirao para a vida crist no nosso tempo; de outro lado, uma cristologia que parte do querigma pascal e que celebra e tematiza o Cristo como presente no culto eclesistico, b) De um lado, um cristianismo voltado para o mundo, de acordo com os interesses do povo, orientando-se diretamente pela mensagem e pela praxe da vida dejesus de Nazar, tendo no raramente a caracterstica de ser a parte externa da Igreja, ou mesmo de estar fora da Igreja ; de outro lado, um cristianismo bem intra-eclesial, com interesses hierrquicos, vivendo do querigma do crucificado-ressuscitado, cabea da Igreja, e nela agora j efetivamente presente; essa Igreja hesita diante de um engajamento sociopoltico em nome de Cristo, c) De um lado, muita insistncia no homem Jesus, com inspirao e orientao para um trabalho crtico, porm engajado, em prol de um mundo melhor, aqui nesta terra, sem verbalizar expressamente, s vezes at rejeitando explicitamente, a perspectiva de uma vida eterna ou de um encontro escatolgico com Cristo; de outro lado, muita insistncia na divindade de Jesus Cristo, o Senhor glorificado junto ao Pai, que agora j vive e opera entre ns, sendo cantado no culto litr- gico, e dando-nos o Esprito como penhor de uma vida futura, eterna; uma posio quase vertical em cima da nossa vida no mundo, cuja figura, como sabemos, transitria.

    Dois tipos de cristianismo, baseados em dois tipos de cristologia. No primeiro, uma alergia no explicitada pela palavra Cristo (em vrios cnones eucarsticos essa palavra tem desaparecido); no outro, uma averso clara, s vezes rancorosa e no-crist, palavra Jesus (de Nazar), como se no se estivesse crendo numa pessoa concreta, e sim num mistrio de culto gnstico. No tem sentido camuflar a

    9 Exemplo tpico desse dilema encontra-se no contraste entre dois artigos: de um lado o de G. Fohrer, D as Alte Testament und das Thema Christologie, em EvTh 30 (1970) 281-298; de outro lado, o de G. Klein, Reich Gottes , als biblischer Zentralbegriff, ib., 642-670.

  • existncia desses dois tipos; vivem entre ns, e de fato so praticados; mas no correspondem totalmente oposio entre conservadores e progressistas . Constata-se, portanto, a presena dos seguidores de Jesus, que correm o perigo de esquecer os momentos decisivos na vida de Jesus e a sua relao fundamental com o Pai celeste; de outro lado, os seguidores de Cristo, que correm o perigo de fazer do Cristo um mito sem ligao essencial com Jesus de Nazar; e essa situao tem, como todos sabem, conseqncias bastante considerveis para a interpretao da Escritura, para a teologia e a historiografia, sobretudo e concretamente, para a pastoral. Contrastes cristolgicos formam no raramente a base, explicitada ou no, de uma polarizao atual entre cristos.

    Todavia, antes que se chegue a uma discusso, seria bom que todos reconheam uns aos outros como cristos. Ora, cristo quem tem a convico de que a salvao definitiva provm de Deus e nos oferecida na pessoa de Jesus, e que essa convico fundamental cria comunho, na graa de Deus, embora os que admitem isso ainda possam assumir diferentes posies quanto ao contedo da plenitude de Jesus Cristo, isto , quanto ao sentido pleno desta profisso de f: Eu creio em Jesus (de Nazar), o Cristo, o Filho unignito, nosso Senhor . Profisso que de fato significa: Eu creio em Jesus como realidade definitiva de salvao, que determina o sentido da minha vida . Supondo-se que o parceiro do dilogo o aceite, trata-se de um dilogo entre cristos, e tambm, como esperamos, de um dilogo cristo.

    5. Para o telogo, coloca-se ainda a questo (do ponto de vista moderno no simptica): O que verdadeiro? Honrando a inteno de quem cr, bem como a exigncia crtica-racional da nossa natureza humana (quaisquer que sejam a intensidade de experincias concretas de f e as identificaes histricas de salvao e libertao humana), o telogo sente que tais experincias intensas continuam problemticas (nunca podendo significar para os outros um convite que possa obrigar ou constranger pessoas livres). Tudo isso enquanto no for demonstrado razoavelmente (dentro e por meio dessas experincias e identificaes de salvao de uma determinada comunidade) que a gente entra realmente em contato com aquela realidade que ns, seres humanos, na nossa histria, denominamos de Deus, o criador de tudo o que e de tudo o que ser.10 Reconheo o valor, a excepcional importncia da vivncia existencial e do entusiasmo religioso, mas nem por isso deixo de estar convencido do seguinte: um Deus experimentado somente como meu Deus , e adorado como tal, ser um

    10 Ver tambm W. Pannenberg, D as Glaubensbekenntnis ausgelegt und verantwortet vor den Fragen der Gegenwart, Hamburgo 1972, 44.

  • no-deus, enquanto no for demonstrado significativamente (mas no matematicamente ou por raciocnio lgico) que neste homem Jesus de Nazar nos encontramos realmente com o Criador do cu e da terra, o qual nos liberta e ao mesmo tempo nos d um sentido definitivo a tudo, por mais incompreensvel que seja. Um piedoso auto-engano plenamente possvel, sobretudo em assuntos de religio. Por isso, uma f religiosa em Jesus de Nazar, neste ser humano que apareceu na nossa histria humana, ser para mim problemtica, enquanto no ficar clara para ns a relao pessoal deste homem historicamente localizvel com o Criador do cu e da terra , o Deus vivo, o fator universalmente unificador de tudo o que vive e se move. Dou valor ao entusiasmo por Jesus de Nazar, como homem que inspira; - humanamente falando, j muita coisa! M as no contm um convite obrigatrio, de carter universalmente humano, se no ficar claro que o Criador , o Deus do monotesmo judaico, islmico, cristo e de tantos outros, est pessoalmente envolvido no que aconteceu em Jesus.

    Por isso, o que neste livro parecer de carter apologtico ou crtico, foi de fato inspirado no interesse pela verdade, onde quer que ela se encontre, dentro ou fora das Igrejas. J que esta pesquisa trata da f em Jesus de Nazar, o Cristo, tornou-se cada vez mais clara em mim a certeza (antiga como o prprio cristianismo) de que a f, como o mito, possui a sua justificativa e a sua certeza dentro de si mesma: o porqu da minha f em Jesus como salvao decisiva s pode ser justificado em f (e neste sentido existe um espao inacessvel para ataques da crtica). Contudo, a partir do momento que comeo a falar da minha f (e o fao to logo comeo a crer), j abandonei esse espao livre, e tornei-me vulnervel diante das exigncias da racionalidade crtica (nesse sentido no existe espao livre). Por isso que foi escrito este livro: em respeito pelo carter original, prprio e irredutvel do crer, e tambm em respeito pelas exigncias da racionalidade crtica. So duas coisas que se podem proteger mutuamente contra o perigo de se tornarem totalitrias, tolhendo a liberdade.

    6. Enfim, existe a questo dolorosa, e ainda no resolvida: a relao entre cristos e judeus. Alm de outros, tambm cristos tm culpa no anti-semitismo ocidental que tornou possvel a assim chamada Endlsung (soluo final) do nazismo. Ns, telogos, no podemos fingir que no sabemos nada a respeito das relaes histricas entre judeus e cristos. No podemos ignorar um fato: o que alguns judeus fizeram com Jesus j foi h muito tempo, e j ultrapassado diante do que todos ns fizemos historicamente com os judeus. A recente literatura judaica sobre Jesus11 mostra que, depois de sculos longe

    n Entre outros, ver Schalom Asch, Der Nazarener, Amsterdam 1950; M. Brod, Der Meister, Gtersloh 1951; M . Buber, Zwei Glaubensweisen, Zurique 1950; e: Der Jude

  • deste Jesus, o prprio holocausto (imolao) deles em Auschwitz e alhures, os tornou conscientes de sua solidariedade com o holocausto de Jesus de Nazar. O judasmo no tem nenhum panteo, mas tem, isto sim, um martirolgio inesquecivelmente grandioso. Muitos judeus agora reconhecem que nesta fila Jesus tem o seu lugar. Martin Buber o formulou da seguinte maneira: Desde a minha juventude tenho sentido Jesus como meu grande irmo. Que o cristianismo o tem considerado como Deus e redentor, isso eu vi sempre como assunto da maior seriedade, que devo e tento compreender, por causa dele e por causa de mim mesmo .12

    Um telogo no pode fazer muita coisa para consertar essas relaes dolorosas e dramticas; todavia, alguma contribuio pode dar. N o se pode negar que uma das chaves hermenuticas para compreender o Novo Testamento a polmica entre Israel e a Igreja .13 Mas o historiador e o telogo podem mostrar, com bons argumentos, que o cristianismo em boa parte herdou apenas uma crtica intra-ju- daica contra Israel, e que a interpretao sobre Jesus no cristianismo primitivo na verdade uma interpretao judaica sobre Jesus. As tendncias fundamentais do cristianismo foram iniciadas por judeus, e j estavam consolidadas muito antes que influncias no-judaicas de gentios-cristos comeassem a valer. Por isso, qualquer sentimento anti-semita totalmente estranho s tendncias originais do cristianismo. Por esse motivo, sempre hei de insistir em que certas interpretaes dentro do cristianismo primitivo no so outra coisa seno um reassumir padres de pensamento e ao judaicos pr-cristos.

    I I I . U m d e s a f io

    Considerando todos esses problemas - que durante o estudo ainda se avolumaram - escrevi este livro: como reflexo sobre Jesus de Nazar, professado pelas Igrejas de Cristo, s quais perteno, como a salvao definitiva. Em termos judaicos: o Cristo, o Filho de Deus e Filho do Homem. Em termos helenistas: o Filho de Deus em sentido absolutamente ontolgico.

    und sein Judentum, Colnia 1963; Joel Carmichael, Leben und Tod des Jesus von Nazareth, Munique 1966; Schalom ben Chorin, Bruder Jesus, Munique 1967; Haim Cohen, Trial and death o f Jesus, Tel Aviv 1968; W. P. Eckert, Judenhasz. Schuld der Cbristen? Essen 1966; David Flusser, Jesus, Hamburgo-Reinbeck 1968; J. Isaac, Jsus et Israel, Paris 1970; Ascher Finkel, The teacher o f Nazareth, Leiden 1964; Aharon Kabak, The narrou/ path, Jerusalm 1968; J. Klausner, Jesus von Nazareth, Jerusalm 1952; Pinehas E. Lapide, Jesus in Israel, Gladbeck 1970; S. Schwartz, La rhabilitation juive de Jsus, Martizay 1969; ver tambm: Moris Goldstein, Jesus in the Jewish tradition, Nova York 1950, e Frank Andermann, Das grosze Gesicht, Munique 1971.12 M. Buber, Zwei Glaubensweisen, Vorwort.13 Kl. Berger, Die Gesetzesauslegung Jesu (tese deste livro).

  • O projeto no apologtico, embora eu no tenha medo de uma apologtica sincera. Isso quer dizer: no se tentar legitimar o dogma eclesistico, nem apresent-lo como racionalmente a nica interpretao de Jesus que possa ter sentido. Constato o fato de que existem outras interpretaes, as quais recusam Jesus; outras, tambm, que inspiram e orientam seres humanos fora de qualquer confisso cristolgica; tambm essas interpretaes sero cuidadosamente ouvidas, embora no se diga expressa e explicitamente a toda hora. M as tambm essa escuta orientou a pesquisa.

    Sendo cristo, quero examinar criticamente a compreensibilida- de da f cristolgica em Jesus, sobretudo na sua origem. Encarando mesmo os numerosos problemas reais, para mim trata-se juntamente tanto de uma fides quaerens intellectum, como de um intellectus quaerens fidem . Ou seja: dentro de um respeito, que deve ser igual diante da f e diante da razo humana, quero procurar, para as pessoas de hoje, o sentido compreensvel da f crist em Jesus de Nazar.

    Compreensibilidade , dizia eu. Com isso no quero negar, absolutamente, que a salvao de Deus em Jesus, um mistrio. O que com isso quero explicitar a atitude crtica do telogo crente que se recusa a identificar o mistrio de Deus com os mistrios fabricados pelos prprios seres humanos, no sentido de incompreen- sibilidades, que no tm nada a ver com o mistrio da ao salvfica de Deus na histria, e mesmo assim, tornando a f ridcula, muitas vezes so propagadas como mistrio da f crist e como intangvel ortodoxia.

    Que o homem Jesus, no sentido humano da palavra (uma pessoa humana) o ponto de partida de toda esta reflexo, para mim uma verdade to grande, que no precisa ser provada. Pois na nossa histria humana no podemos encontrar-nos com fantasmas nem com deuses disfarados; apenas com seres humanos. Quero descobrir o que prprio a este homem Jesus, algo que talvez leve a uma profundeza insondvel; pois o certo que este homem, Jesus de Nazar, deu impulso a um movimento religioso que se tornou uma religio mundial; esta declara que Jesus a figura que, pessoalmente, revela Deus. E por isso que a pergunta acerca de sua verdadeira identidade orienta toda esta pesquisa. Quero buscar eventuais sinais, na imagem de Jesus, reconstruda numa histria crtica, sinais que possam orientar a busca humana de salvao para a oferta crist de uma resposta que aponta para uma ao especial, salvfica, de Deus neste Jesus; e o fao na mesma reao como aquela que caracteriza o Novo Testamento: contra as cristologias pr-cannicas sobre um theis anr (homem divino), contra uma cristologia sobre um deus terreno, disfarado em figura humana (segundo um modelo grego), contra a qual sobretudo Paulo e Marcos reagiram com veemncia, porque tais idias desconhecem o sentido autntico do verdadeiro Filho de Deus.

  • Por isso, a f e a crtica histrica andam de mos dadas, em quase todas as pginas deste livro. Tambm no podia ser de outra maneira, se afirmamos que encontramos salvao em Jesus, um homem histrico, que apareceu num perodo bem determinado do passado. Pois ento, tanto a cincia histrica como a f tm, cada uma, sua prpria competncia legtima e seu prprio ponto de vista, enquanto se referem a uma s e mesma realidade: Jesus de Nazar, como fenmeno histrico.

    Embora tendo f, eu me identifiquei com as dvidas a respeito do Cristo eclesistico , dvidas essas que eu via nitidamente formuladas ao meu redor, tanto na Holanda como em qualquer lugar por onde passava; formuladas s vezes de modo agressivo, outras vezes com tristeza. Assim cheguei a procurar e seguir vestgios, sem saber aonde isso me levaria; at sem saber se essa abordagem no acabaria como um fracasso, conforme alguns dos meus estudantes sugeriam. Eu o fazia de maneira metadogmtica , isto , passando por cima do dogma eclesistico, embora na conscincia de que esse mesmo dogma me levava a procurar. Sabia que tambm, e talvez sobretudo, fracassos podem levar-nos a maior sabedoria. Tal risco existia. Durante a pesquisa inquietava-me cada vez mais uma convico: por mais acuradamente que uma reconstruo histrica do chamado verdadeiro Jesus seja executada, o resultado cientfico s pode fornecer uma imagem de Jesus, nunca o verdadeiro Jesus de Nazar. Um estudo hist- rico-cientfico de Jesus algo bem diferente de uma aproximao simplesmente humana, espontnea, ou da lembrana de uma pessoa do passado. E por mais historicamente bem fundada que seja tal imagem cientfica, no foi com essa imagem que os primeiros seguidores de Jesus foram confrontados, embora tal imagem cientfica tenha tudo a ver com o Jesus que vivia ento, e que as Igrejas hoje confessam como o Cristo. A questo da continuidade viva, entre Jesus de Nazar e a f da Igreja primitiva, bem diferente da questo da continuidade entre aquela f e uma imagem de Jesus cientificamente reconstruda. No entanto, certamente uma tambm no estranha outra.

    Tal pesquisa no passa e no pode passar, nas Igrejas, por cima da mediao de vinte sculos de histria crist de confisso e praxe de f. Tal fato, numa poca de hermenutica, nem se precisaria dizer. Ao escrever este livro, eu me lembrava nitidamente dos resultados dos meus estudos anteriores (aulas) sobre a cristologia patrstica, caroln- gia, medieval e ps-tridentina, embora no sejam citados neste livro. Limito-me agora a uma reflexo sobre a histria do dogma a partir do incio do cristianismo primitivo at a formao dos evangelhos e demais livros do Novo Testamento, perodo este que nos leva o mais perto possvel de Jesus, e que ainda muito reservado na sua identificao de Jesus de Nazar, em quem os seus discpulos, aps ele ter morrido, encontraram uma salvao decisiva e definitiva. Inicialmen

  • te, a sua morte, ou no foi problema ou, com relao salvao, foi qualificada de maneira neutra .

    Essa histria abafada do Novo Testamento cannico pode ter efeito libertador e ao mesmo tempo orientador diante da cristologia tradicional da nossa sistemtica ocidental, que muitos sentem como tendo entrado num beco sem sada. Por isso, o subttulo Um ensaio cristolgico ainda pretensioso demais, e precipitado. Este livro um prolegmeno. Digo assim, no por causa do que realmente est dito neste livro, mas por causa do que eu inicialmente tinha planejado: dar uma viso sinttica do problema atual de redeno e emancipao ou autolibertao humana, inclusive pensando na Teologia da Libertao .

    Alm de reflexo continuada, este livro quer dar tambm uma informao constante, inclusive porque nem todo cristo pode permitir a si o luxo de que dispe algum liberado pela sociedade para se ocupar com essas coisas da vida, e tambm porque tive de constatar, continuamente, que a f crist, quando falta formao fundamentada, se torna mandona, at no-crist, com pretenses absolutistas que so alheias a Jesus e ao seu evangelho. Muitas vezes, chama-se de cristo algo que aparece como essencialmente no-cristo para algum que, estudando e orando, convive com o Novo Testamento. Considero, pois, este livro como obrigao que devo sociedade, em primeiro lugar comunidade crist, mas ao mesmo tempo a todos os que se interessam pelo destino da vida humana.

    IV. N o ta s o b r e ex eg ese e t e o lo g ia

    Durante os mais de trs anos de estudos exegtics, em preparao para este livro, esbarrei-me repetidamente, s vezes de maneira desesperadora, com um problema srio que parecia transformar todo o meu projeto num empreendimento impossvel: no existe talvez nenhuma percope bblica sobre cuja interpretao os exegetas profissionais no discordem entre si, embora se deva dizer que nos ltimos dez anos vem crescendo cada vez mais certo consenso sobre problemas exegtics fundamentais, entre biblistas peritos, tanto catlicos como reformados. O Novo Testamento firmou o primeiro impulso constitutivo do movimento em torno de Jesus num imponente testemunho de f, na certeza de que era orientado e conduzido pelo que a ao salvfica de Deus havia operado em Jesus de Nazar. Portanto, toda reflexo teolgica depende irresistivelmente da compreenso desse Novo Testamento; nele, em linguagem humana, em palavras e imagens usadas na linguagem sociocultural e religiosa da poca, cristos expressaram sua f na decisiva salvao-por-Jesus, da parte de Deus, por eles experienciada. Nessa situao, no cuidar

  • de uma apresentao cientfica da Bblia, com todos os mtodos da cincia moderna das literaturas, seria um desprezo do que costuma ser chamado a Palavra de Deus, a qual s chega at ns atravs das palavras de pessoas religiosas. Para descobrir com preciso qual era na poca o sentido dos testemunhos humanos de f, uma comunidade crente (que com razo usa o livro sagrado tambm para outras finalidades, p.ex. no culto litrgico) no pode se dispensar de estudar esse Novo Testamento tambm do ponto de vista da cincia literria; quer dizer, no conjunto da literatura do Antigo Testamento e da assim chamada literatura intertestamentria, como tambm da seguida pelo Novo Testamento. Do contrrio, seria desconsiderar um dado fundamental da f, a saber: que a prpria Igreja, nas suas comunidades e na sua hierarquia, est submissa soberania de Deus e norma da pessoa e da atuao de Jesus de Nazar, a quem ela proclama o Cristo, o Filho unignito, nosso Senhor .

    Um telogo temtico ou reflexivo, como tal, no um exegeta profissional. Tenho conscincia disso. Todavia, sem a Escritura, o telogo no est em lugar nenhum. Ento, ser que ele depende dos exegetas profissionais? No! Porm, da exegese profissional, sim! Pois entre os exegetas encontramos naturalmente, como em todas as cincias, bom nmero de opinies diferentes. Por isso, o telogo no pode fazer uma escolha arbitrria entre as opinies exegticas que existem, p. ex. aquela que se enquadraria melhor na sua prpria sntese dogmtica! Seria desconhecer a funo fundamental da Escritura na teologia. O que fazer, ento? Embora no sendo exegeta, o telogo deve saber avaliar o valor dos argumentos exegticos que lhe so apresentados, e sobretudo saber examinar os pressupostos, pelos quais os exegetas divergem entre si na interpretao de uma percope bblica. Muitas vezes pressupostos no-exegticos so a causa das diferenas entre as opinies. Por isso, um telogo tambm no pode entregar-se a seus exegetas preferidos; embora uma preferncia, depois de certa experincia com as obras de muitos deles, possa aparecer espontaneamente. Se houver uma opinio communis entre exegetas de diversas escolas (e isso, para mim, tambm significa expressamente: de diversos pases ), o telogo, pode nesse ponto confiar facilmente, com toda a razo, a no ser que durante algum tempo surjam perguntas, aqui e acol: primeiro, por algo que inicialmente aceito como opinio pessoal, mais tarde por outras dificuldades que surgem dentro do mesmo contexto; at que de repente^ contra toda a opinio communis, um exegeta prope uma viso inteiramente nova, porm coerente. Sou da opinio de que, em certos casos, o telogo, tendo ponderado os argumentos, pode, contra a opinio communis dos exegetas, utilizar tal nova viso (que s vezes a retomada de uma viso muito antiga) dentro de seu raciocnio dogmtico. (Alis, depois de algum tempo, tal viso nova pode aparecer conquistando a unanimidade exeg-

  • tica.) Algum consenso entre os exegetas, abstraindo-se de seus pressupostos, no me parece um bom princpio para orientar o telogo. Alis, os prprios exegetas muitas vezes trabalham com preferncias teolgicas, isto , no exegticas, sobre as quais o telogo pode julgar.

    Naturalmente o telogo deve ter tambm cuidado com slogans exegtics (slogans toda cincia conhece, tambm a teologia!) como, p. ex., a frase, sempre repetida na literatura exegtica, desde M. Kh- ler: O Evangelho de Marcos uma narrativa da paixo, com uma longa introduo . Slogans costumam ser pouco matizados, embora contenham um ncleo de verdade.

    A principal objeo do telogo vai contra convices (que a prtica de alguns exegetas demonstra) de que um determinado mtodo o nico vlido; p. ex., o mtodo exclusivo da histria das formas literrias (Formgeschichte), ou um mtodo apenas estruturalista etc. O telogo, como tal, no pode entregar-se ao resultado de um s mtodo de exegese (ainda mais que com ele se pode chegar a opinies diferentes, talvez exatamente por causa do exclusivismo do mtodo, que tem naturalmente seus prprios pressupostos). Ernst Troeltsch, no seu tempo, j dizia: No mtodo histrico-crtico esconde-se toda uma ideologia .14 A literatura nos ensina que sobretudo diferenas exegticas, entre um pas e outro, muitas vezes dependem de problemas acerca de mtodo e verdade ; assim, como um conhecimento dessas perspectivas nacionais d independncia teolgica maior, sem que se negue a dependncia da exegese profissional.

    Por outro lado, no menos funesta a escolha dogmtica de uma espcie de denominador comum , destilado da exegese existente. Tal procedimento nada tem a ver com conhecimento da Bblia; portanto, no pode fundamentar nenhuma teologia crist. Por isso, o telogo precisa entrar em exegese detalhada, no podendo, em primeira instncia, confiar em estudos exegtics globais (ou no que s vezes se denomina teologia bblica ). Esses estudos globais s tm sentido quando baseados em estudos detalhados; alm disso, mostram com freqncia mais a viso teolgica do compilador do que a interpretao sobre Jesus no Novo Testamento; interpretao ao mesmo tempo pluralista, basicamente una. Semelhante viso teolgica pessoal no base para uma teologia que procure pelo menos ser universalmente reconhecvel.

    Em resumo: fazer teologia a partir de uma base verdadeiramente bblica de fato tarefa laboriosa, esgotante. As prprias snteses do telogo, j estabelecidas, continuamente so desfeitas e novamente reconstrudas; algumas expectativas se desfazem, outras crescem

    14 Ver E. Troeltsch, eber historische und dogmatische Methode in der Theologie, em: Gesammelte Schriften, vol. 2, Tubinga 1922 (Aalen 1962) 729-753.

  • etc. A prpria sntese est sempre em movimento. No entanto, cresce com isso a capacidade para avaliar a nova literatura exegtica e a capacidade de sintetizar. O telogo que assim pratica teologia, isto , na opinio de alguns, que se arrisca demais no terreno da exegese, pode s vezes ser criticado por cometer uma gafe. Claro! Sua nica defesa ser esta: sem exegese, todo o teologizar fica sem base. Antes cometer uma gafe no caminho certo do que enveredar negligentemente (embora talvez sem manchas e sem falhas) por um caminho errado, que somente leva a uma ideologia.

    Existe, sim, uma distino entre exegese e teologia sistemtica. No entanto, alm da exegese puramente literria, h tambm a exegese teolgica; nesta procuramos a definitiva atuao salvfica de Deus, em Jesus e nos primeiros testemunhos da f crist, isto , no cristianismo primitivo. Isso que determina o carter teolgico da exegese, a qual no se torna teologia s por uma atualizao em vista do presente ( o que chamo de teologia sistemtica ). Alis, a separao entre exegese bblica e teologia sistemtica na teologia um fenmeno relativamente recente, e somente se consumou completamente no sculo XVII. A exegese teolgica tenta descobrir a dimenso teolgica dentro do prprio fenmeno histrico do cristianismo primitivo; a j se colocou a pergunta a respeito da verdade, e no somente na relao dita atualizante da Bblia com a nossa atualidade. Perguntar pela relevncia do Novo Testamento para ns, hoje, teologia sistemtica; esta supe a exegese teolgica, que estuda o Novo Testamento sob o aspecto da definitiva atuao salvfica de Deus na origem histrica da religio judaica-crist.

    Finalmente, a maior objeo (que tomo muito a srio) a seguinte: Existe a tradio crist dentro da Igreja; existe a vida das Igrejas e, para um catlico, at o mnus eclesistico do magistrio, uma autoridade a servio da comunidade eclesial. De fato: sem esta Igreja, eu nem teria comeado a minha pesquisa. M as, esse carisma do mnus, no qual, dentro das Igrejas de Deus, o Esprito dele opera ativamente, no funciona milagrosamente, e menos ainda com revelaes particulares ou por uma ligao direta, e sim de modo muito histrico. Portanto, esse mnus precisa tambm entender a Escritura; e para isso a exegese oferece sua ajuda. Se esse mnus precisa exatamente dessa ajuda de exegetas e telogos, por causa da estrutura eclesistica de sua prpria essncia, ento essa ajuda, como tal, no pode ser substituda por nada. A mesma coisa vale para a comunidade eclesial, cuja vida consiste em estar unida a Cristo. Realmente, para o telogo a comunidade viva, a Igreja, um lugar teolgico; sem ela, o telogo no teria base para sua pesquisa bblica e sua reflexo teolgica. Teologia no hermenutica livresca. M as, quando algum afirma que se une a Jesus Cristo pela f, e que nele que encontra inspirao e orientao dentro da comunidade viva, ento, como te

  • logo, quero saber de quem que tal pessoa est falando: de um Jesus que essa pessoa escolheu para si, conforme certa moda atual e necessidades reais, ou de Jesus de Nazar: deste que as grandes tradies crists - embora de muitas maneiras e em muitas lnguas - puderam escutar uma mensagem muito especial, intencional, e esta que ns agora, em nossas necessidades, temos de transmitir, criativa porm fielmente, em primeiro lugar ns mesmos vivendo dela. No o exegeta ou o telogo que, pela sua cincia pode garantir essa fidelidade e criatividade. Porm, so muitos os fatores eclesisticos e seculares que servem, cada um sua maneira, como intermedirios da direo divina, pelos quais a Igreja se mantm fiel, no seu percurso, como esperana fidedigna para o mundo; entre esses fatores h tambm um lugar insubstituvel para a exegese e a teologia.

    Por isso, termino esta introduo com uma palavra do padre Yves Congar: Respeito e interrogo sem cessar a cincia dos exegetas, mas recuso seu magistrio .15

    Por fim, sei que apenas uma das muitas possibilidades a abordagem cientfica-crtica (o meu ponto de vista neste livro, que escrevo com f). Isso relativiza o livro todo. Mas tambm esse ponto de vista, embora relativo, tem seu direito de existir; finalmente, tem valor pastoral prprio e insubstituvel. Na base dessa inteno pastoral - que outros, espero, sabero traduzir - que este livro foi escrito, como uma entre as muitas contribuies para o mistrio vital, nunca dignamente formulvel, daquele que confesso como Jesus de Nazar, em quem podemos encontrar salvao definitiva e decisiva. Com isso se explica o fato de no serem citados telogos e sim muitos exegetas, o que no implica nenhuma falta de solidariedade colegial.

    15 Y. Congar, Vraie et fausse rforme dans lglise, Paris 1950,498-499.

  • P e r g u n t a s a r e s p e it oDE M T O D O , H ER M EN U T IC A E CRITRIO S

  • S e o I

    JESUS DE NAZAR, NORMA E CRITRIO DE TODA INTERPRETAO SOBREJESUS

    Ca ptu lo I

    A c esso h ist r ic o d o c r ist o a J esu s d e N a z a r

    1. E st r u t u r a da o fer ta d e salvao e respo st a c r ist

    Bibliografia sobre a poca de Jesus : A. Alt, Kleine Schriften zur Geschichte des Volkes Israel, 3 vols. (Munique 1953-1959); J. Bonsirven, Le Ju dasme palestinien au temps de Jsus-Christ, 2 vols. (Paris 1934-1935); W. Foerster, Neutestamentliche Zeitgeschichte I. Das Judentum Palestinas zur Zeit Jesu und der Apostel (Gterlsloh 41964); Ch. Guignebert, Le monde juif vers le temps de Jsus (Paris 1950); A. H. Gunneweg, Geschichte Israels bis Bar Kochba (Theol. Wissenschaft 2; Stuttgart 1972); M. Hengel, Judentum und Hellenismus (WUNT, 10; Tubinga 21973; J. Jeremias, Jerusalm no tempos de Jesus (Paulus, So Paulo, 1983); M. Lagrange, Le Judasme avant Jsus-Christ (Paris 1931); E. Lohmeyer, Galila und Jerusalem (FRLANT 34; Gotinga 1936); E. Lohse, Umwelt des Neuen Testaments (Gotinga 1971); A. D. Nock, Essays on Religion and the Ancient World, 2 vols. (Cambridge 1972); B. Reicke, Neutestamentliche Zeitsgeschichte (Berlim 1965); M. Ros- tovtzeff, The Social and Economic History of the Hellenistic World (Nova York 1941); E. Schrer, Geschichte des Jdischen Volkes im Zeitalter Jesu Christi, 3 vols. (Leipzig 41909-1911).

    A. A pessoa humana, centro de mltiplas relaes

    Uma pessoa constitui o foco de um espao amplo. Por isso a pergunta: Quem Jesus de N azar? Pergunta que no pode ser colocada sem ligao com o que aconteceu antes e depois dele. Ningum pode ser entendido: a) como independente da histria passada em que ele se encontrou, que o carregou e o desafiou, e diante da qual ele reagiu criticamente; b) como independente de suas relaes para com as pessoas com as quais conviveu, contemporneos que dele receberam alguma coisa e que por sua vez o influenciaram e nele provocaram certas reaes; c) como independente da influncia que ele exerceu sobre a histria depois dele, nem como independente daquilo que ele mesmo, eventualmente, quis pr em movimento. Em outras palavras: uma pessoa humana o centro de uma srie de relaes interativas com o passado, o futuro e o seu presente.

  • Tudo isso vale tambm para Jesus. Concluso: o ponto de partida para qualquer cristologia ou interpretao crist de Jesus no , simplesmente, Jesus de Nazar; menos ainda, o querigma ou o credo da Igreja. o movimento que o prprio Jesus despertou no primeiro sculo da nossa era, sobretudo tambm porque s atravs desse movimento que temos algum conhecimento histrico sobre Jesus. O mais lgico ponto de partida , portanto, um determinado fato histrico, a saber: os evangelhos nos contam o que um tal de Jesus significou para a vida de alguns grupos de pessoas. Em outras palavras, o ponto de partida a primeira comunidade crist; sim, mas como reflexo, isto , espelhando o que o prprio Jesus foi, falou e fez. A oferta de salvao, da parte de Jesus, alguns judeus reagem com um sim incondicional. O que foi essa oferta de Jesus, isso podemos deduzir das reaes e dos testemunhos do Novo Testamento, atravs do prisma das respostas cristolgicas das primeiras comunidades crists. Elas falam sobre Jesus de Nazar na linguagem da f; mas, ao falarem assim, referem- se ao Jesus de Nazar real, uma realidade concretamente histrica, que fazia apelo a elas.

    Tudo isso torna-se claro pelo teor de sua linguagem. Essas comunidades crists no frisam que ele morreu, e sim: que morreu pelos nossos pecados ; e mais ainda: morreu pelos nossos pecados... segundo as Escrituras (ICor 15,3); - ou tambm: morto, porm ressuscitado (Rm 8,34; ICor 15,3-4). Falar sobre Jesus na linguagem da f explicitar o que este Jesus realmente histrico significou para os seus seguidores, e como tudo isso est ancorado no prprio Jesus. A a histria e o conhecimento emprico, portanto informao, esto presentes, mas j interpretados na linguagem da f.

    O nico conhecimento que temos sobre o que aconteceu com o Cristo chegou at ns atravs do que foi concretamente vivido nas primeiras comunidades crists. Elas experimentaram dentro de si uma vida nova que atriburam ao Pneuma: foi um dom do Esprito; foi a experincia de uma vida nova, dominada pelo Esprito, mas lembrando Jesus. Por isso, dizia eu que o movimento cristo primitivo o indiscutvel ponto de partida historicamente certo. No podemos fazer esta pergunta isolada: Quem foi Jesusde Nazar? Qualquer historiador que faa tal pergunta no pode fazer abstrao da influncia-de- fato desse homem Jesus (que fazia parte, ele mesmo, de uma histria de tradies, no contexto de uma situao cultural religiosa). Por um lado, ele influenciou um grupo de contemporneos que se tornaram seus seguidores; por outro lado, influenciou aqueles que o entenderam de modo totalmente diferente, mas chegaram a uma reao no menos excepcional que custaria a ele a vida (consta historicamente que Jesus, entregue pela autoridade judaica, foi executado por ordem da autoridade romana local). Por isso, o historiador no pode deixar de perguntar: Quem foi, afinal, esse homem que pde provocar essas rea

  • es extremas: de um lado, f incondicional; de outro lado, incredulidade agressiva? significativo para a nossa histria humana, cheia de injustias, que os romanos, ante a possibilidade de uma agitao poltica numa regio subjugada, mandaram crucific-lo. Que a autoridade judaica o entregou, s se explica (fazendo-se abstrao de paixes humanas) se este Jesus, do ponto de vista convencional judaico, teve comportamento fundamentalmente no-judaico (uma pretenso de ser M essias no bastava; houve naqueles tempos outros pretendentes a serem messias, os quais, nem por isso, foram executados). Por outro lado, houve os seguidores que creram em Jesus, que lhe deram resposta positiva, to incondicionalmente que, depois de sua execuo, foram capazes de expressar a experincia fundamental de sua resposta lanando mo dos mais variados, sugestivos e elevados conceitos e ttulos religiosos, disponveis no mundo judaico e no mundo pago: Filho do Homem, profeta escatolgico, Messias ou Cristo, Filho de Deus (com contedo tanto judaico como helenista), Senhor (mar judaico e kyrios helenstico). Eram ttulos sugestivos, alguns com sentido para cristos judeus, mas incompreensveis para cristos do paganismo (p. ex. Filho do Homem; Messias), pelo que desapareceram das Igrejas de lngua grega (p. ex. Filho do Homem) ou perderam seu vigor.

    O referido aponta para o carter muito relativo dos ttulos a empregados. Importante que os fiis, na base de suas experincias comunitrias, tinham de lanar mo dos ttulos mais elevados, disponveis na cultura religiosa de seu ambiente, para poderem verbalizar o que tinham experimentado e ainda experimentavam a respeito de Jesus. E primria a experincia crist, como resposta da comunidade realidade oferecida por Jesus. Os ttulos, embora tenham sua importncia, so secundrios. Alm disso, na prpria Bblia j puderam ser trocados entre si ou substitudos por outros, e puderam at deixar de ser usados. A experincia de salvao continuou, pedindo sempre expresses e articulaes mais adequadas, na base de novas situaes scio-histricas. Tal vivncia pode ser denominada experincia de abertura, ou descobrimento, uma revelao, um sentir-se na fonte (tanto para quem tinha conhecido Jesus diretamente, como para quem ouvia falar dele apenas atravs da memria Jesu, e pela vida da comunidade). Enfim, descobriram algo em Jesus que no pde ser demonstrado direta e empiricamente, mas que no deixava de lampejar como evidncia recebida, para quem dentro de uma comunidade viva era confrontado, sem preconceitos, com Jesus.

    interessante prestar ateno estrutura dessa experincia comunitria: a nova vida da comunidade, presente em virtude do Pneuma, posta em relao com Jesus de Nazar. Pneuma e anamnese, o Esprito e o lembrar-se de Jesus, so experienciados como unidade. E algo que no prprio Novo Testamento se expressa teologicamente de muitas maneiras:

  • a) Se compararmos Atos 2 com o evangelho joanino e com a cristologia judaica-crist original (aramaica), (que ainda pode ser destilada, at certo ponto, dos sinticos), vemos que em Atos 2 o acontecimento pentecostal, 50 dias depois da pscoa, uma narrativa etiolgica das experincias pneumticas das comunidades crists, desde muitos anos. No evangelho joanino a efuso do Esprito, etiolo- gicamente interpretada, acontece no prprio dia da Pscoa, isto , relaciona-se diretamente com a ressurreio, estando Jesus e o Pneu- ma, a lembrana e o hoje, intimamente de novo ligados entre si.

    b) O evangelho joanino tematiza de maneira ainda mais precisa a ligao entre o Pneuma e a anamnese (lembrana), quando faz o Senhor dizer que o Esprito vindouro lhes h de relembrar tudo (Jo 14,26; 15,26; 16,13-14). As experincias pneumticas da comunidade ficam intimamente ligadas memria de Jesus . H uma ligao orgnica entre o hoje, a atualidade das experincias comunitrias (Pneuma) e o passado de Jesus (lembrana).

    No evangelho joanino, uma estrutura que se encontra nos evangelhos sinticos, e tambm fora deles, formulada apenas de modo mais explcito e convincente. De fato, ocorre freqentemente tambm fora do evangelho joanino a frmula: No vos lembrais? (Cf. Mc 8,18-19 par.; Mt 16,9; Mc 14,9 par.; Mt 26,13; Lc 24,6-8; At 20,35; 2Pd 1,12-15 e 3,1-2). Enfim, tambm na frmula eucarstica a prpria Igreja declara que a celebrao litrgica feita em memria de Jesus (Lc 22,19; ICor 11,24-25). Em outras palavras: O querigma eclesistico ao mesmo tempo a memria do Jesus terreno, do que ele falou e fez. Espero que todo este livro o demonstre.

    Quando as comunidades crists refletem assim sobre suas prprias experincias, declaram que tais experincias se relacionam com o Esprito e com Jesus de Nazar; de tal maneira que essas duas relaes inicialmente pareciam, por assim dizer, uma s: O Senhor o Pneuma , disse Paulo, ainda numa fase precoce (2Cor 3,17). Alm disso, a comunidade articulou essa relao: a) em narrativas sobre Jesus (logia, narrativas e parbolas, em forma de memria Jesu );b) em querigmas, hinos e profisses de f, nos quais de modo variado (nas diversas comunidades crists) o sentido do que Jesus significa para essas comunidades verbalizado na linguagem da f, a fim de ser proclamado como toque de trombeta.

    Portanto, a matriz do Novo Testamento como texto escrito a experincia das primeiras comunidades crists, inseparavelmente ligada convivncia imediata com Jesus, e mais tarde, pela memria Jesu, ao contato com o Senhor. E por isso que as primeiras comunidades crists, com sua experincia, so historicamente acessveis para ns; historicamente, so elas o caminho mais responsvel para chegarmos a Jesus de Nazar. O que o Jesus histrico nos deixou no em primeira instncia uma espcie de resumo, ou trechos de prega

  • o sobre a vinda do Reino de Deus, nem tampouco um querigma ou srie de verba et facta ipsissima , isto , um relatrio fiel do que ele fez exatamente, historicamente; nem certo nmero de diretrizes e palavras sbias que pudessem com alguma certeza ficar isoladas dos evangelhos. O que ele deixou, somente pelo que ele era, fez e falou, puramente pela sua atuao como este homem determinado, foi um movimento, uma comunidade viva de fiis, conscientes de serem o novo Povo de Deus, a assemblia escatolgica de Deus, - no um resto sagrado, mas as primcias da assemblia de todo o Israel e finalmente de toda a humanidade: um movimento libertador escatolgico, para reunir todos os seres humanos, unindo-os. Um Shalm universal.1

    B. Revelao e le croyable disponible(o que est disponvel para ser objeto de f)

    Aproximadamente entre 1910 e 1960, mais ou menos paralelamente teologia da Reforma de K. Barth e sobretudo de Rudolf Bultmann sobre o querigma (ambos se distanciaram, no sculo XIX, da busca liberal de uma definio histrica de Jesus), tambm a teologia catlica foi dominada (como reao contra o modernismo) por le donn rvl (o dado revelado), ttulo da conhecida obra de A. Gardeil. Hoje, muitos pem isso em dvida, na medida em que esse termo parece referir-se a um dado, um assunto previamente determinado, que por assim dizer possa ser interpretado por mtodos positivistas. A sociologia do conhecimento e cincias afins, sobretudo lingsticas, nos forneceram compreenso mais exata da estrutura de qualquer conhecimento (quanto a isso, o conhecimento da f, por mais irredutvel que seja, no exceo). Assim ficamos sabendo que a realidade, medida que ns a experimentamos e verbalizamos, ou seja, a realidade da experincia, internamente colorida e parcialmente determinada pelo equipamento social (espiritual e cultural), que trazemos do passado para o presente: o padro cultural que preenche tambm a nossa vida interior.2 Por isso, tambm a realidade dessa experincia especial que forma a f crist depende no somente da realidade oferecida (Jesus de Nazar), mas - enquanto experimentada e verbalizada, p.ex. em formulaes e confisses de f, em liturgia e teologia - ela intrinsecamente colorida e co-determinada pela bagagem do esprito humano, aqui e agora, por aquilo que, com termo tcnico, se denomina contexto cultural da situao . Isso implica que a realidade da f se encontra no meio da histria, participando intrinsecamente da histria humana, e , ela mesma, histria e cultura. A reve

    1 Esse breve resumo ser justificado em todo o resto deste livro.2 Ver P. Berger e Th. Luckmann, The social construction o f reality, New York 1966; B. Lee Whorf, Sprache, Denken, Wirklichkeit, Hamburgo 1968.

  • lao e sua expresso na histria da cultura no so duas realidades separveis. A revelao se encontra sempre no meio daquilo que P. Ricoeur chama le croyable disponible de um perodo, isto , o conjunto de suposies, expectativas e ideologias universalmente aceitas, as quais no entanto se modificam interiormente - esta a viso crist- quando e pelo fato de que se tornam uma onda de revelao. Por isso, um cristo do mundo helenista parece em tudo mais com gregos e romanos de seu tempo do que com os seus irmos cristos de hoje. Todavia, um cristo de hoje, do ponto de vista expressamente cristo, est mais perto do cristo helenista do que de muitos contemporneos seus. A compreenso dessa caracterstica (determinada pela histria da cultura) de cada religio, inclusive da crist, relativiza o contedo do absolutismo da vivncia de valores atuais, como tambm alivia o peso do passado. De outro lado, o evangelho faz uma restrio diante de qualquer uma de suas expresses culturais em querigma, dogma, credo ou teologia. No cristianismo primitivo, pelo uso de ttulos honorficos como Filho do Homem, Messias-Cristo, Filho de Deus, fica claro que a f crist, no prprio uso que faz dessa herana da cultura religiosa, em que a revelao verbalizada, ao mesmo tempo se distancia dessa herana. Por isso, a resposta do cristo pergunta acerca da identidade crist nunca pode ser uma identificao total com a cultura que o circunda, nem sequer com a cultura religiosa da qual ele internamente participa. Por isso tambm, no existe uma identidade completa entre a f crist e as suas prprias formulaes da f, nem com as mais oficiais, embora a o mistrio da f, mesmo assim, seja verbalizado de maneira vlida e fiel. Por causa dessa tenso entre o mistrio da f e a articulao da f, determinada pela cultura religiosa, precisamos no apenas de uma aproximao do cristianismo primitivo e de sua evoluo posterior na base de uma histria e de uma hermenutica do dogma, mas tambm de um exame sociolgico, abordando criticamente as ideologias. E por isso que numa nova linguagem de f, em que Jesus de Nazar seja identificado em termos de f, ser preciso aparecer claramente tanto a ressalva crtica como a no-identificao com relao s categorias, expectativas e ideologias dominantes de hoje, exatamente quando a elas se recorre. A ressalva da f (antropologicamente inevitvel), mesmo quando citada, essencialmente cultural e formadora de cultura, e por isso tambm formadora de Igreja. Todo movimento religioso, pois, est inextrin- cavelmente assumido dentro de um processo cultural histrico. Nisso a questo sempre uma: Ser que esse movimento religioso mantm uma tenso crtica, criativa, em relao com e dentro deste mundo que o seu prprio mundo, tanto social como culturalmente? E o que podemos ficar sabendo ao verificarmos se existe uma variante especificamente crist na sua participao nos movimentos de toda a cultura, ou se falta tal variante.

  • Constatamos essa tenso na mais antiga estrutura da f e do credo no Novo Testamento. Por todos os conjuntos de tradies que a confluram, quaisquer que sejam as suas origens divergentes, torna-se claro que os primeiros cristos encontravam salvao em Jesus Cristo, uma salvao decisiva provinda de Deus. A luz dessa experincia de salvao eles deram a essa realidade salvfica nomes como: Cristo, Filho do Homem, Senhor etc. Assim aplicaram a Jesus noes-chave existentes de carter cultural-religioso; eram noes por assim dizer disponveis , que ganharam o seu sentido propriamente cristo por serem aplicadas a Jesus. Portanto, o primeiro significado dessas expresses que assim verbalizaram aquilo que sobre eles irradiava da pessoa, da mensagem e da atuao de Jesus. Suas experincias reais de antes e aps a morte de Jesus se amalgamaram, formando uma s imagem. No entanto, o que chama a ateno que esses primeiros cristos lanaram mo de conceitos j existentes, como Messias, Filho do Homem etc., conceitos de contedo prprio, historicamente desenvolvido, no aplicvel a Jesus em todos os aspectos; e que eles, na base de seu entendimento, na f, sobre Jesus como realidade salvfica definitiva, ao mesmo tempo modificaram criticamente esses conceitos, quando os aplicaram a Jesus, preenchendo-os com lembranas da vida e morte de Jesus nesta terra. Por isso, preciso dizer que o critrio para a denominao ou identificao de Jesus no Novo Testamento no foi o contedo preexistente desses ttulos de alteza , mas o prprio Jesus. Dessa maneira, os discpulos expressaram a convico de sua vida: encontraram definitivamente sua salvao em Jesus, e o fizeram em conceitos um tanto estranhos, para verbalizar o que lhes era prprio.

    Dentro dessa estrutura de f, existe pesada tenso. De sua parte, tambm Jesus, como ser humano, se encontrava em meio a acontecimentos inconstantes de seu tempo, e no meio de uma histria com tradies bem definidas, principalmente as de seu povo judeu, que interpretava a si mesmo como povo de Deus , servo e testemunha de Deus perante o mundo inteiro. No meio dessa histria (assim interpretada), Jesus se sentiu responsvel por um lugar prprio e uma tarefa especial dentro dela. Nisso, porm, ele se viu confrontado com diversas interpretaes j existentes no seu ambiente a respeito do sentido desse povo de Deus e do Reino de Deus: uma interpretao apocalptica, uma escatolgica, uma tica, uma poltica-zeltica, uma farisaica (para citar as mais importantes). Dentro dessa diversidade, Jesus tomou posio muito pessoal, embora sua mensagem e opo vital tenham ficado historicamente ambguas pela sua ignominiosa execuo. Mesmo fazendo-se abstrao de qualquer querigma ou credo eclesistico, tudo isso pode ser considerado como resultado de minuciosos estudos histricos das fontes. Por isso, no se pode perder de vista o quadro historicamente contingente da atuao de Jesus,

  • quando, em linguagem de f, se fala sobre Jesus como o Messias ou Cristo, o Filho do Homem, o Senhor, o Filho de Deus etc.

    Menos ainda se pode dar sentido absoluto, no histrico, ao que a Bblia cita como palavras e atos de Jesus, naquelas circunstncias concretas; em tudo isso no se pode fazer abstrao das categorias lingsticas historicamente condicionadas, com as quais naquele tempo a histria de Jesus foi verbalizada; esse acontecimento lingstico no pode ser promovido a categorias intemporais . Isso, alis, j nos desaconselhado - no prprio Novo Testamento - pela quantidade de dogmas cristolgicos e formulaes divergentes sobre o Reino de Deus, a redeno e a salvao em Cristo. Porque tambm as primeiras comunidades primitivas que aceitaram a Jesus se encontravam em contexto cultu