Jardim da República - Museu Municipal de...
Transcript of Jardim da República - Museu Municipal de...
1
O Jardim da República Realidade e contexto histórico-urbanístico
1 — A formação do Chão da Feira (séc. XIII-XV)
O Jardim da República implantou-se numa zona periurbana de transição e de forte
vitalidade, que a toponímia atesta ser tradicionalmente vocacionada para actividades económicas e
sociais: o Chão da Feira.
Este arrabalde, também conhecido por Rossio Fora de Vila, por se localizar fora da cerca
muralhada que delimitava a urbe, e perfeitamente delimitável na planta do século XVIII
(considerada hoje a mais antiga representação cartográfica da Vila, elemento fundamental para os
estudos sobre a urbe) havia-se tornado, desde inícios do século XIII, particularmente procurado
para a instalação de instituições religiosas de cariz monástico ou assistencial que, encontrando uma
cidade densamente ocupada nos seus limites defensivos e populacionais, se implantaram
estrategicamente na orla urbana, definindo uma frente conventual extra-muros: Trindade (1208), S.
Francisco (1242), Stª. Clara (1259) e S. Domingos dos Frades (1222-3).
As procissões, associadas, não apenas aos cultos prestigiados, mas também aos "milagres",
sabiamente explorados pelas novas ordens, tornaram esta zona em local de acontecimento, onde a
vida social e cultural se extrovertia em manifestações públicas devido, quer à proximidade da
população urbana (simultaneamente garante de sobrevivência e destino de pregação), quer à rede
viária (estrada para Leiria e Coimbra), quer ainda ao deslocamento do paço real (instalado, a partir
de D. Afonso III, na Alcáçova Nova, junto ao complexo defensivo da Porta de Leiria). A
quantidade de procissões realizadas no espaço urbano de Santarém faz da Vila uma urbe de grande
dinamismo e mobilidade social, talvez em correspondência com a actividade comercial e portuária e
a realização de feiras, uma das quais se constitui em feira franca.
2 — O Chão da Feira entre o séc. XV e os finais do séc. XVIII
A partir de finais do século XV a área plana do Rossio Fora de Vila (Chão da Feira), junto
ao actual Largo da Piedade, sofre algumas alterações. Junto ao Paço Real, remodelado com
campanhas arquitectónicas sob a égide de D. Manuel, realizaram-se diversas obras, como a
mudança de localização da Porta de Leiria e a edificação da Ermida de S. Sebastião, para além das
beneficiações ocorridas no Terreiro do Paço (habitação sobre a praça com janela manuelina).
Foi porém a partir de meados do século XVII que a remodelação urbana desta área mais se
fez sentir.
Nessa centúria foi demolida a Porta manuelina de Leiria e sobre ela construída a Igreja da
Senhora da Piedade (1666-1694), delimitando uma nova praça triangular, de características cénicas e
2
ideológicas. A Igreja de Nossa Senhora da Conceição (1673-1711) e o Colégio dos Jesuítas anexo,
por seu lado, pressupôs uma profunda alteração do espaço do Castelo e do Paço Real. Também no
Largo do Espírito Santo, próximo da Calçada do Monte, são construídos, já em Setecentos,
diversos paços da nobreza local, como o dos Saldanha e o dos Menezes, bem visíveis na planta da
cidade do século XVIII, levantada entre 1759 e 1780.
Ficavam assim perfeitamente definidos, a partir dessa data, os limites do local onde viria
futuramente a instalar-se o Jardim da República.
Fig. 1 – O arrabalde do Chão da Feira no século XVIII
3 — O Rossio Fora de Vila no contexto da sociedade romântica de Oitocentos
Acompanhando as tendências da época, a sociedade liberal oitocentista de Santarém exigiu,
segundo o modelo europeu e lisboeta, o seu passeio público. Convém não esquecer que Santarém
formou durante o cadinho revolucionário das lutas sociais e políticas uma das mais interessantes
inteligzentias do Portugal Liberal, intervenientes na vida constitucional, governativa, militar, social e
cultural do concelho, do Distrito e do País. Nomes como o Marquês de Sá da Bandeira (1796-
1875), António de Oliveira Marreca (....-....), os irmãos Santos Cruz, pioneiros das ideias sociais,
Manuel da Silva Passos, Alexandre Herculano, Almeida Garrett e Rebelo da Silva encontram-se
ligados à história de Santarém oitocentista. Além do que várias personalidades da burguesia local,
como os Barões de Almeirim e do Pombalinho, os Viscondes da Fonte Boa, do Andaluz e do
Landal e Joaquim Maria da Silva, Reitor do Liceu e defensor dos interesses regionalistas,
contribuíram para a modernização da cidade e a gestação da cidade romântica.
3
Não admira, portanto, que em Novembro de 1842 tenham lugar as primeiras decisões do
executivo municipal no sentido de uma intervenção paisagista que permitisse «desenjoo às fadigas
diárias e semanais e a comodidade dos mercados semanais e mensais, de apetecida sombra na estação calmosa»1. Só
em 26 de Outubro de 1876, porém, por proposta do vereador Pedro António Monteiro, é aprovada
a construção e plantio do Passeio do Largo de Sá da Bandeira.
Os anos seguintes à aprovação do projecto foram destinados ao equipamento infra
estrutural do espaço. Em 1877 o orçamento municipal incluía já as verbas destinadas à primeira
prestação (300.000 réis) do gradeamento, cujo montante total ascendia 1.300.000 réis.
O abastecimento de água do jardim, cumprido em 15 de Julho de 1878, foi assegurado pelo
Engenheiro Hipólito Labille, com quem foi contratualizada ainda a colocação de uma fonte,
inicialmente prevista para o Largo da Piedade, mas que acabou por ser colocada no interior do
jardim, junto à Rua Cidade da Covilhã.
Fig. 2 – A fonte do Jardim da República após a remodelação dos anos 30
Finalmente, em 16 de Outubro 1878, o jardim foi inaugurado com o nome de Passeio da
Rainha, em homenagem à rainha D. Maria Pia.
Segundo o projecto inicial, o Passeio da Rainha pretendia materializar os pressupostos do
jardim romântico, de tipo inglês.
A sua área de implantação abrangia o espaço entre a frente de S. Francisco e o lado Sul da
igreja da Trindade, correndo paralelo à Rua 31 de Janeiro, para onde tinha a sua entrada,
originando, a nascente, a definição de um espaço residual triangular, que mais tarde se transformou
num largo, denominado da Piedade. Este facto proporcionou a organização urbana do espaço
público, entre o Chão da Feira e o Rossio do Sítio.
1 Actas da C.M.S., citadas por Mário de Sousa Cardoso, “Jardins de Santarém”, Correio do Ribatejo, 3 de Abril de 1998.
4
Fig. 3 – O Jardim da República. Entrada principal vista de Sul (início séc. XX)
Apesar de fruído publicamente, o Passeio da Rainha não se considerava exactamente um
jardim público, sendo antes um espaço concedido aos quartéis e que neles veio a ser incorporado.
Talvez por isso possuía um gradeamento exterior, que o isolava, e portões de ferro, que eram
fechados ao cair da noite – até porque a iluminação do espaço só veio a acontecer em 1895, com a
colocação, pela Companhia Geral de Iluminação a Gás, de 16 candeeiros, substituídos, já em 1930,
por candeeiros eléctricos.
Fig. 4 – Pormenor da iluminação a gás do Jardim da República (inícios séc. XX)
5
Fig. 5 – Pormenor da iluminação eléctrica do Jardim da República (anos 30)
4 — O Jardim da República na viragem do século XIX
4.1. As transformações decorrentes do ideário republicano
A história do território urbano de Santarém no séc. XX é marcada, de forma indelével,
pelos ideais anti-clericais da 1ª República. Estes passam a repercutir-se, antes como depois de 1910,
no património monumental de Santarém, que corporizava o obscurantismo religioso e retrocesso
civilizacional contra os quais a ideologia progressista se opunha veementemente. Em conformidade
com a propaganda liberal, os conventos de S. Francisco e da Trindade foram adaptados,
respectivamente, a Regimento de Artilharia 3 (1845-1955) e Regimento de Cavalaria 4 (1844-...) e o
convento de Santa Clara foi mesmo destruído em 1906/7.
Igual sorte teria, anos mais tarde, a igreja do Convento da Trindade, definitivamente
demolida em Agosto de 1955, excepção feita à forte torre de cantaria que ficou atestando, na
silhueta da cidade, a marca e a memória dos trinitários.
Fig. 6 – Igreja e Convento Trindade. Vista Sul (anos 40-50) Fig. 7 – Torre da Trindade após
demolição da Igreja (1955)
O próprio Passeio da Rainha teria intervenções de vulto no contexto socio-político e
cultural republicano, tendo passado a chamar-se Jardim da República a partir de 6 de Dezembro de
1910. Uns meses antes, em 20 de Janeiro desse ano, tinha sido proposta a abertura da avenida
central, com a eliminação do lago aí existente, bem como iniciadas as pinturas do gradeamento. Em
1911 são aí dispostos 26 ulmeiros e 42 amoreiras.
6
Fig. 8 e 9 – Aspecto do lago antes e antes da remodelação dos anos 30
4.2. A “revolução” urbanística dos anos 30
Aproveitando a presença em Santarém de uma plêiade de arquitectos da escola modernista
regista-se, a partir da década de 30, uma expansão da cidade como até então nunca acontecera.
Nomes como Cassiano Branco, Amilcar Pinto2 ou João António de Aguiar3 passarão a interpretar
as novas ideias de urbanização que envolviam toda a cidade. Em consequência, constroem-se novos
bairros (Combatentes, Salazar, S. Bento), projecta-se um novo Liceu, urbaniza-se o Campo Sá da
Bandeira (onde se edifica um tribunal de estilo modernista), erige-se o Cine-Teatro Rosa
Damasceno e debuxa-se o edifício do Museu Distrital. Em 1936, no Campo Sá da Bandeira,
realizou-se a Exposição-Feira Distrital, que poderá ter contribuído para a sensibilização da
urbanização da área, uma vez que este tipo de Exposição se prestava ao desenvolvimento das ideias
novas, ao contrário das feiras tradicionais e temporárias e dos mercados de gado quinzenais, que,
entre 1900 e 19544, enchiam todo o espaço livre do Campo, extravasando mesmo para os Largos
do Espírito Santo e das Amoreiras.
Tal como no resto da cidade, também o Rossio Fora de Vila reflectiu a mudança de
mentalidades dos anos 30. Logo em 1928 Cassiano Branco assinaria o projecto do Mercado
Municipal. Dois anos depois, em 1930, seria montado um posto de transformação eléctrica na Rua
Cidade da Covilhã, junto ao Seminário, fornecendo esse bem essencial em melhores condições que
a própria Central Eléctrica de Alfange.
É neste contexto que, sob a Comissão Administrativa da Câmara, presidida pelo Capitão
Romeu Neves, foi entregue a Amilcar Pinto a responsabilidade de materializar a transformação do
Jardim da República. A arborização, essa, ficaria a cargo de Moreira da Silva, do Porto.
Na sua memória descritiva e justificativa, publicada no Correio da Extremadura, o projectista
defendia o que considerava ser uma intervenção «interessante e com sabor moderno, dentro de um urbanismo
equilibrado, despresando os moldes antigos e hoje banidos e impróprios de uma cidade civilisada que pretende
acompanhar o progresso».
2 A quem se devem o Teatro Rosa Damasceno, o edifício dos Correios, o Hotel Abidis e o Café Central. 3 autor do projecto da Urbanização de S Bento (1939) e do "Ante-Plano de Urbanização da Cidade de Santarém" (1948).
7
O projecto seria o início de um plano de conjunto abrangendo o Campo Sá da Bandeira e a
Avenida de S. Bento, para onde estava projectado o Liceu. Para tal, a Câmara Municipal de
Santarém havia tomado já a polémica decisão de abater as árvores do jardim romântico, decisão que
viria a revelar-se ruinosa para a continuidade da vereação.
Fig. 10 – Vista geral do Jardim da República após o derrube das árvores do jardim romântico (fim
anos 30)
O projecto, datado de 1937, visava a transformação do Jardim da República, no que se
propunha chamar Parque da Cidade. Este novo logradouro seria um "vestíbulo de honra" da cidade,
sem gradeamento, com placas «bem delineadas e com escolhida arborisação, plantas apropriadas, relvados
convidativos e devidamente vedados por arbustos especiais que formaria sebes decorativas» e decorado com «bancos
cómodos e bem lançados, fontenários interessantes, relógio de sol, pedestais para bustos ou estatuas, vasos decorativos
embelezando as entradas das ruas que limitariam os canteiros, uma pérgola semi-circular (...), ruas largas
aproveitando o desnível do terreno, ladeadas por árvores de sombra, ligadas entre si por festões de grinaldas».
Simultaneamente previa uma variante à Estrada Nacional nº 16 (actual 31 de Dezembro) que
rasgava em dois o Jardim da República, uma vez que a existente tinha «um cunho de desprezo constituido
pela aridêz do Campo Sá da Bandeira, sem nada de interessante que o caracterize, mas antes fértil em nuvens
poeirenteas, desagradaveis e perigosas».
4 Durante a 1ª República o Campo Sá da Bandeira serviu também para pista de aterragem de aviões, de forma esporádica.
8
Fig. 11 – Planta do Projecto de remodelação do Jardim da República (1937)
Do antigo Passeio da Rainha mantinha-se apenas o coreto, «para deminuição de encargos e
aproveitamento do actual lago e até mesmo por um pouco de sentimentalismo».
Fig. 12 e 13 – Aspecto do coreto romântico (inícios séc. XX e 80)
Apesar de uma intencionalidade moderna que revelava, centrada numa nova arborização e
na decoração do espaço ajardinado, o projecto originou uma forte corrente contestatária na
população, originando a demissão da Comissão Administrativa da Câmara Municipal pelo
Governador Civil do Distrito, Dr. Eugénio de Lemos.
Só anos mais tarde, depois da reconstituição do aspecto do Jardim, anterior ao projecto de
Amilcar Pinto, se assistiu ao arranque do gradeamento, tornando-o num jardim aberto.
9
Fig. 14 e 15 – Aspecto final do Jardim da República (anos 40-50)
Todavia, o Jardim da República acabou por resistir ao retalhamento interno, que tanto
Amilcar Pinto como João António de Aguiar propuseram com tanta veemência, sendo ampliado
com a área do antigo adro de S. Francisco e apenas ligeiramente desmembrado com a criação do
Largo do Infante Santo.
10
Fig. 16 – Aspecto geral do Jardim da República, após integração do antigo adro de S. Francisco
O Largo Infante Santo, fronteiro ao Mercado Municipal, resultou da urbanização do Largo
Espírito Santo, reduzido, a partir da criação da Praça do Município, em 1957, a uma faixa entre as
fachadas viradas à cidade e o Jardim e entre a Escola Prática de Cavalaria e o Mercado. A
inauguração da estátua do Infante D. Fernando, conhecido por Infante Santo, realizou-se em 1962,
por oferta do Governo da Nação, sendo a estátua da autoria de Leopoldo de Almeida (1957). Este
facto urbanístico marcou o início da história recente do antigo Largo.
Bibliografia
CARDOSO, Mário de Sousa, “Jardins de Santarém”, Correio do Ribatejo, 3 e 9 de Abril de
1998.
PINTO, Amilcar; - "Transformação do Jardim da República. Memória Descritiva e
Justificativa", em Correio da Extremadura, Santarém, 11 de Setembro de 1937.
REIS, José Lucas Coelho dos, "As Obras do Jardim da República"; - em Correio da
Extremadura, Santarém, 18 de Setembro de 1937.