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59 JABULANI: RAINHA DA COPA Sheila Elias de Oliveira DL-IEL/Unicamp RESUMO: Este artigo traz uma análise enunciativa da introdução da palavra zulu ‘jabulani’ no português do Brasil, com a Copa do Mundo de 2010. A partir da análise, a autora discute a categoria de ‘empréstimo linguístico’ e defende que o modo como se dá a apropriação de palavras de uma língua por outra pode ser um observatório dos processos de constru- ção da identidade de uma língua na relação com seus falantes. ABSTRACT: is article presents an enunciative analysis of the introduc- tion of Zulu word ‘jabulani’ in Brazilian Portuguese, with the 2010 Soccer World Cup. Departing from the analysis, the author discusses the category of ‘linguistic borrowing’ and argues that the ways of appropriation of wor- ds from one language by another can be taken as an observatory of the processes of identity construction of a language in relation to its speakers. Sin pelota no hay fútbol: Jabulani, la reina del Mundial (Título de artigo assinado pelo jornalista Pablo Croci publicado no jornal argentino La Nación em 18/01/2010) Emanuel Jacobina, autor dos períodos mais célebres de “Malhação”, reassume a novela teen para tentar segurar o que, se- gundo ele, “está se tornando uma espécie de jabulani”: entra no ar e não se sabe que rumo vai tomar (Nota da Seção Ilustrada, da Folha de S. Paulo de 30/07/2010) Patrão chama funcionária de “jabulani” e ela procura a polícia de Maringá (Manchete da Seção Polícia de odiario.com, de Maringá/PR, de 14/02/2012)

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Sheila Elias de OliveiraDL-IEL/Unicamp

RESUMO: Este artigo traz uma análise enunciativa da introdução da palavra zulu ‘jabulani’ no português do Brasil, com a Copa do Mundo de 2010. A partir da análise, a autora discute a categoria de ‘empréstimo linguístico’ e defende que o modo como se dá a apropriação de palavras de uma língua por outra pode ser um observatório dos processos de constru-ção da identidade de uma língua na relação com seus falantes.

ABSTRACT: This article presents an enunciative analysis of the introduc-tion of Zulu word ‘jabulani’ in Brazilian Portuguese, with the 2010 Soccer World Cup. Departing from the analysis, the author discusses the category of ‘linguistic borrowing’ and argues that the ways of appropriation of wor-ds from one language by another can be taken as an observatory of the processes of identity construction of a language in relation to its speakers.

Sin pelota no hay fútbol: Jabulani, la reina del Mundial (Título de artigo assinado pelo jornalista Pablo Croci publicado no

jornal argentino La Nación em 18/01/2010)

Emanuel Jacobina, autor dos períodos mais célebres de “Malhação”, reassume a novela teen para tentar segurar o que, se-

gundo ele, “está se tornando uma espécie de jabulani”: entra no ar e não se sabe que rumo vai tomar

(Nota da Seção Ilustrada, da Folha de S. Paulo de 30/07/2010)

Patrão chama funcionária de “jabulani” eela procura a polícia de Maringá

(Manchete da Seção Polícia de odiario.com, de Maringá/PR, de 14/02/2012)

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Na Copa do Mundo de 2010, sediada pela África do Sul, algumas palavras de línguas deste país são irradiadas em diferentes línguas do mundo a partir da cobertura midiática do Mundial; elas se tornam, universalmente, palavras da Copa sul-africana: quem não lembra das cornetas convertidas em vuvuzelas, ou da bola da Copa, que ganhou vida e personalidade como Jabulani? No Brasil, estas duas palavras so-breviveram à Copa. Ainda se escuta em narrações esportivas a menção a vuvuzelas na torcida. E Jabulani, nome da bola que se tornou “a rainha do Mundial” (como o jornalista do argentino La Nación antecipou me-ses antes do início da Copa) percorreu, no Brasil, um caminho próprio.

Conforme ilustram as ocorrências da Folha de S. Paulo, de 2010, e do odiario.com, de 2012 nas epígrafes acima, na inscrição de jabulani no português do Brasil, há um processo eponímico, pelo qual o nome próprio passa a predicar, como nome comum ou adjetivo, nomes de pessoas, objetos ou fatos, a partir de características atribuídas à bola da Copa – sobretudo seu destino errante a partir de um lançamento: é assim que aparecem na enunciação de brasileiros a mulher jabulani ou a novela jabulani.

A apropriação de palavras de uma língua por outra tem sido tratada na Linguística Geral e na Lexicologia como empréstimo linguístico. Uma breve caracterização enunciativa da introdução de jabulani no portu-guês do Brasil nos servirá para refletir sobre esta categoria e propor que pensemos mais amplamente, de uma posição materialista centrada no sentido e na enunciação, a apropriação de palavras de uma língua por outra como um fato da relação entre línguas, que se dá a partir de dife-rentes modos de relação entre sujeitos falantes e línguas na enunciação.

Jabulani no português do BrasilNa Semântica do Acontecimento, que sustenta esta reflexão, a enun-

ciação é compreendida como um acontecimento político, caracterizado “pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmen-te) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos” (Guimarães, 2002, p.16). O acontecimento se dá em espaços de regulação da relação entre falantes e línguas, os espaços de enunciação, definidos como

“espaços de funcionamento de línguas, que se dividem, redivi-dem, se misturam, desfazem, transformam por uma disputa in-cessante. São espaços “habitados” por falantes, ou seja, por sujei-tos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer (...)” (Guimarães, 2002, p.18).

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Tomar em conta a divisão política dos espaços de enunciação nos leva a observar a relação entre falantes e línguas nos embates de força das divisões de uma mesma língua (por exemplo, língua culta, língua regional, língua da ciência); ou nas relações entre línguas (por exemplo, o português e as línguas de fronteira, de imigração, o inglês, as línguas que dominam as relações em diferentes campos científicos, etc.). A in-trodução de palavras novas em uma língua (ou em uma divisão de uma língua) é um fato corrente, próprio da convivência contraditória perma-nente entre estabilidade e instabilidade nas línguas.

Ela pode se dar, como no caso de jabulani, a partir de palavras já existentes em outra língua. É o caso também de deletar, que vem do inglês para o campo da informática, recebe adaptação morfológica em português, e migra da informática para a língua cotidiana, concorrendo com apagar como sinônimo de esquecer. Entre jabulani e deletar, embo-ra as duas palavras venham de outras línguas para o português do Brasil, as diferenças são grandes. Deletar se populariza a partir da abreviação del do verbo to delete do inglês no teclado dos computadores. As teclas são marcadas em inglês segundo uma política do Estado brasileiro, pela qual a informática é introduzida no país em língua inglesa. O inglês já tem um imaginário de prestígio e de língua franca, o que a sua intro-dução no domínio da informática, junto à popularização deste domí-nio, vem reforçar. O locutor-técnico em informática introduz um duplo saber, do domínio técnico e da língua em que ele circula, projetando um enunciador que, na relação com o português, significa a língua da informática como universal.

Por sua vez, a introdução de jabulani e das outras palavras sul-afri-canas da Copa no português do Brasil rompe com um imaginário es-tabilizado da relação com as línguas africanas e as palavras de origem africana no nosso português, significadas, historicamente, como ligadas à presença da escravidão no país. As palavras da Copa inscrevem um modo outro de relação com a África e as línguas africanas. Esta relação tem a particularidade de ser intermediada por locutores não-africanos; o que aparece em primeiro plano na cena enunciativa é o que toma a palavra como jornalista, e se inscreve em um modo de dizer (sobre a Copa, em português) universalizado.

Segundo Guimarães (2002, p. 23), as cenas enunciativas são configurações locais dos espaços de enunciação, e se dão como “mo-dos específicos de acesso à palavra dadas as relações entre as figuras da enunciação e as formas lingüísticas”. As figuras da enunciação são projeções das divisões do sujeito falante no acontecimento. São elas: o locutor (L), o locutor-x (l-x) e o enunciador (E). L é o “eu” que se repre-senta como fonte do dizer, desconhecendo que enuncia afetado por lu-

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gares sociais (l-x) autorizados a falar, de um modo específico, e em uma língua específica. Já os Es são lugares de dizer representados na tomada da palavra, que podem ser de quatro tipos: individual (como em “eu declaro...”); Universal (típico do discurso da ciência, sem modalizações, como em “todo homem morre”); genérico (como na repetição de um dito popular (“quem espera sempre alcança”); e coletivo (como em “nós, torcedores...”).

Se podemos vislumbrar uma cena enunciativa de introdução de ja-bulani no português do Brasil, nela o locutor-jornalista faz falar outros dois locutores: o locutor não africano/branco fabricante da bola (a Adi-das), que apresenta a bola como produto de uma evolução tecnológica e fala dela do lugar de dizer universal da ciência, e o locutor sul-africano/negro falante de zulu, língua que dá nome à bola, (posto em cena pelo próprio locutor-fabricante) em um dizer que apresenta uma coletivida-de (a comunidade dos falantes de zulu) como representativa dos sul--africanos, e, assim, o nome da bola como ligado genericamente ao país como um todo. Essas camadas hierarquizadas e sobrepostas de lugares sociais de dizer se presentificam na enunciação dos locutores-jornalis-tas, no português do Brasil, bem como nas diferentes línguas em que a Copa é noticiada.

Nas enunciações de apresentação da bola da Copa, seu nome é apre-sentado como oriundo do zulu, e tendo como significado “celebrar”. A estética da bola também é objeto do dizer sobre ela: explica-se que as cores são associadas às onze línguas oficiais da África do Sul. Há um dizer sobre a língua que dá ordem ao desconhecido (sul-)africano. Este dizer apresenta as línguas oficiais (dentre elas o africâner e o inglês, lín-guas não-africanas) como as línguas do país, e apaga a diferença entre línguas e falantes africanos e não-africanos lá presentes. O dizer sobre as línguas, evocado no dizer sobre a bola, projeta sobre o país-sede e o continente africano um sentido de celebração e união associado à Copa. As palavras sul-africanas midiatizadas se tornam metonímias da Copa; a Copa, metonímia da África do Sul, e esta metonímia da África. As palavras da Copa dão corpo ao desconhecido, que se torna imagina-riamente próximo e ordenado: a África do Sul, o continente africano, sua(s) língua(s), seu(s) povo(s).

Temos, então, uma cena enunciativa de introdução de jabulani no português do Brasil (e nas línguas oficiais em que a mídia noticia a Copa) bastante particular, em que a relação entre línguas não corres-ponde a uma relação entre falantes – do zulu e do português do Brasil. Como tratar, a partir da categoria de empréstimo linguístico, esta relação entre línguas?

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Empréstimo: fato de interferência entre línguas?Para discutir o modo como o empréstimo linguístico vem sendo

compreendido na Linguística, trazemos o artigo “Towards a Typological Classification of Linguistic Borrowing (Illustrated with Anglicisms in Romance Languages)”, de Juan Gómez Capuz (1997). Embora sua pu-blicação já conte 15 anos, o texto realiza uma revisão das principais ten-tativas de classificação dos empréstimos na Linguística que nos parece contemplar as categorizações mais observadas ainda hoje no tratamento do empréstimo como um fato neológico. Apresentaremos os critérios de tipologização propostos por Gómez Capuz, que se fundamentam em diferentes autores, e refletiremos sobre a impossibilidade de situar jabu-lani entre os tipos apresentados pelo autor.

Embora a entrada de jabulani no português do Brasil possa ser con-siderada um exemplo pouco comum de apropriação de palavra de uma língua por outra, pela própria configuração da cena enunciativa de sua introdução em nossa língua, ela nos chama a atenção para um fato que consideramos fundamental para a compreensão do funcionamento de uma língua: sua identidade se produz na relação com outras línguas, a partir de um trabalho dos falantes. É este trabalho enunciativo sobre o elemento que vem da outra língua que julgamos deve ser considerado para a apreensão do “empréstimo” como um fato constitutivo do funcio-namento de uma língua enquanto sistema, e que pode ser um caminho de reflexão para a compreensão de sua identidade.

Gómez Capuz (1997, p.81) produz uma equivalência entre emprés-timo linguístico e interferência entre línguas, caracterizando-os como troca de material entre línguas ou variedades de fala: “(...) empréstimo linguístico ou interferência, isto é, a troca de material linguístico entre duas variedades de fala, principalmente duas línguas”. Para precisar o modo como a Linguística tem concebido a relação de interferência, tra-zemos o verbete homônimo do Dicionário de Linguística de Dubois et al. (1973, p.349/1994, p.252-3):

Diz-se que há interferência quando um sujeito bilíngüe (v. BI-LINGUISMO) utiliza em uma língua-alvo A um traço fonético, morfológico, léxico ou sintático característico da língua B. O em-préstimo e o decalque são freqüentemente devidos, na origem, a interferências. Mas a interferência permanece individual e invo-luntária, enquanto que o empréstimo e o decalque estão em curso de integração ou são integrados na língua A (...).

Como vemos, o dicionário de Dubois modaliza a relação entre em-préstimo/decalque e interferência: aqueles são “frequentemente” devi-

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dos a esta. Não há uma relação necessária entre esses fatos. Por sua vez, Gómez Capuz, ao ligá-los à interferência, a expande além do quadro de bilinguismo, em que o dicionário a inscreve. Dubois et al. (1973, p.87/1994, p.66-7) definem bilinguismo como “a situação linguística na qual os falantes são levados a utilizar alternativamente, segundo os meios ou as situações, duas línguas diferentes. É o caso mais corrente de plurilinguismo”. Como veremos, a classificação adotada por Gómez Ca-puz inclui outras relações entre línguas em um quadro de interferência, notadamente os empréstimos ditos “culturais”, nos quais ele centra os exemplos de seu artigo.

Neste modo de abordagem, como observamos no dicionário de Dubois, põe-se uma relação entre individual e social. A interferência é apresentada no dicionário como “individual e involuntária” e o em-préstimo e o decalque como “em curso de integração” ou “integrados na língua A”. Haveria, assim, em termos saussureanos, um fato primeiro de fala – individual, e um fato de língua – social, que pode ser dele derivado. Esta é uma abordagem comum do fato neológico – tomá-lo a partir de uma passagem da fala – individual – para a língua – social. Uma questão a se levar em conta é a necessidade de teorização desta passagem. Outra questão, prática, é a dificuldade, em grande parte dos casos, em localizar (ou mesmo supor a existência de) um “ato individual” particular de fala que desencadearia o processo neológico. O que podemos reconstruir aproximativamente, como fizemos, são as cenas enunciativas de intro-dução das palavras em uma língua, que dão visibilidade à relação entre falantes, na especificidade do espaço de enunciação da língua em que a palavra é introduzida.

Jabulani e a tipologia do empréstimoGómez Capuz (1997) chama a atenção para a dificuldade, apontada

por diversos autores, dentre os quais, na década de 1970, Elks Oksaar (1972, p.494, apud Gómez Capuz (1997, p.821), em se propor uma clas-sificação dos empréstimos linguísticos: de um lado, porque não se pode fazer uma tipologia geral com base em algumas línguas ocidentais; de outro, “por causa da insuficiência dos sistemas disponíveis no presente para a maioria das possibilidades do processo e dos resultados da inte-gração linguística”. Cerca de trinta anos depois de Oksaar, Gómez Capuz (ibidem, p.83) acredita que se tenha chegado a uma tipologia “bastante abrangente”, que “permite a explicação de muitas instâncias particulares de interferência e empréstimo, deste modo parcialmente resolvendo a objeção de Oksaar em relação à insuficiência das tipologias atuais”.

Goméz Capuz reduz as propostas encontradas na literatura a quatro tipos básicos:

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a) classificações de acordo com o tipo de relação entre as línguas afetadas,

o que determina, de acordo com Bloomfield (1933, p.461, apud Gó-mez Capuz, 1997, p.82), a distinção entre empréstimo cultural e em-préstimo íntimo. Gómez Capuz não retoma a distinção de Bloomfield entre empréstimo íntimo, cultural e dialetal; então, a trazemos aqui, já com exemplos propostos por Cunha (2000-2007) para o português do Brasil.

O empréstimo íntimo é resultado da convivência de duas línguas no mesmo território, por exemplo o caso do guarani e do espa-nhol no Paraguai. O empréstimo dialetal realiza-se entre falares da mesma língua (variantes regionais, sociais a jargões especiali-zados), por exemplo o uso que Chico Buarque fez do termo ‘guri’, vindo do falar gaúcho, na descrição que uma mãe faz de seu filho em O meu guri. Por último, o, empréstimo cultural (ou externo), que é o mais comum, resulta de contatos políticos, sociais e co-merciais; podendo ser exemplificado com os inúmeros vocábulos provenientes da língua inglesa trazidos para o português por usu-ários do sistema computacional.

Jabulani se aproximaria do que Bloomfield chama de “empréstimo cultural”; no entanto, como levar em conta a discrepância na relação entre línguas e entre falantes dessas línguas? No caso de jabulani, como já afirmamos, o contato entre línguas não corresponde a um contato entre falantes. Há uma intermediação na relação “cultural” entre o zulu e o português do Brasil. É preciso destacar ainda que a classificação de Bloomfield se funda na relação língua-Estado, tendo como demarcador o território de um país; ela é externa às relações sistemáticas de uma língua e demanda que se pense a articulação entre o sistema e sua exte-rioridade.

O segundo critério se aproxima do primeiro:

b) classificações de acordo com o tipo de hierarquia entre as va-riedades de fala afetadas: empréstimo entre línguas nacionais versus “empréstimo dialetal” (tal como proposto em Bloomfield, 1933, p.444-5, apud Gómez Capuz, idem, ibidem);

No caso de jabulani, a divisão linguística da África do Sul traz uma especificidade: que língua poderia ser considerada nacional? A nação, neste caso, não corresponderia ao conjunto dos habitantes do país, mas

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sim a um grupo étnico e os grupos étnicos e linguísticos são mais nume-rosos do que as onze línguas oficiais fazem representar.

O terceiro critério diz respeito à forma das palavras:

c) classificações formais baseadas no grau de modificação das unida-des léxicas da língua-fonte ou língua-modelo,

o que leva à distinção germânica entre empréstimo [loanword], tra-dução [loan translation] e decalque [calque] ou ao seu refinamento por descritivistas americanos entre importação ou empréstimo direto [strai-ght loanword], substituição ou empréstimo-tradução/empréstimo-alte-ração [loan-translation/loanshift], e empréstimos misturados/híbridos [loanblends/hybrids] (Weinreich, 1968, p.50-53 e Haugen, 1950, p.212-20 apud Gómez Capuz, idem, ibidem).

A caracterização baseada na forma, no caso de jabulani, deixa uma lacuna. Pelo critério formal, ela seria uma loanword ou straight loanword – aquela que não apresenta alterações em relação à língua que a origi-nou. No entanto, seu processo de eponímia envolve, por vezes, uma mu-dança na classe gramatical – ela passa de nome próprio a nome comum ou a adjetivo. Mas não há uma marca na palavra que indique esta pas-sagem. É a estrutura sintática e a relação semântica com outras palavras que a evidencia. O que na forma parece ser uma reprodução, portanto, acaba revelando um trabalho dos falantes sobre a palavra, que incide ao mesmo tempo sobre a forma e o sentido.

Em ocorrências em jornais brasileiros após a Copa de 20102, jabulani apresentou os seguintes modos de eponímia; além de referir à bola da Copa3, o nome passa a designar: 1) outras bolas de Copa, como nome comum; 2) uma novela, também como nome comum; 3) fatos ou perso-nagens políticos, como adjetivo e como nome comum; 4) caso e efeito, predicando estas palavras como nome próprio “caso jabulani” / “efeito jabulani”, sendo o caso e o efeito referidos relacionados ao destino errá-tico da bola, mas projetados sobre fatos diversos. No processo eponími-co, a palavra ou se mantém como nome próprio, mas referindo a outros objetos que não a bola da Copa, ou passa a nome comum, ou a adjetivo. O sentido, por sua vez, se transfere, se expande para outros objetos.

O quarto critério é igualmente formal:

d) classificações de acordo com o nível ou sub-sistema da língua alvo/recebedora afetada por um dado fato de interferência.

Dentro deste critério, Gómez Capuz cita Meney e sua classificação baseada em Dalbernet (1976, p.930-39 apud Gómez Capuz, ibidem,

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p.82-3) feita sobre os anglicismos, divididos entre os de pronúncia, de ortografia e soletramento, morfologia, sintáticos, lexicais, e traduções idiomáticas ou fraseológicas. Cita também a classificação de Clyne (1977, p.641-642 apud Gómez Capuz, ibidem, p.83): empréstimo fono-lógico, prosódico, grafemático, morfêmico (transferência de morfemas derivacionais), morfológico (transferência de padrões morfológicos), semântico, lexical, sintático (transferência de regras sintáticas), e prag-mático. Por último, cita Humbley (1974, 53-74 apud Gómez Capuz, ibidem, p.83), que classifica os empréstimos em fonético, morfológico, semântico, lexical, sintático e fraseológico, e com o qual Gómez Capuz concorda no que toca à consideração do empréstimo lexical como o cer-ne dos fenômenos interlinguísticos.

Jabulani se inscreve nos empréstimos lexicais, como uma straight lo-anword, para a qual a grafia em alfabeto latino se mantém e a pronúncia se adapta às diferentes línguas.

Para os empréstimos culturais (anglicismos nas línguas românicas), a proposta de Gómez Capuz é reunir as ideias de Dalbernet, Meney, Clyne e Humbley, para dar conta do maior número de procedimentos formais envolvidos. São classificações que se dedicam à forma sem arti-culá-la ao sentido. Ainda que mencione forma e sentido na sua caracte-rização do empréstimo lexical, o que observamos no seu tratamento é a priorização da forma em detrimento do sentido: ele concebe o emprés-timo lexical “como o meio mais comum de enriquecimento neológico: isto é, a transferência de uma unidade lexical completa, significado e forma.” (Gómez Capuz, ibidem, p.83-84).

Acerca desta formulação, a reflexão sobre o processo de apropriação de jabulani no português do Brasil nos leva a nos perguntar em que medida cabe tomá-lo como uma “transferência de uma unidade lexical completa, significado e forma”. Vimos, com jabulani, a necessidade de maior reflexão sobre a relação entre forma e sentido. Por sua vez, a pa-lavra transferência nos conduz à falsa ideia de que o deslocamento da palavra é um processo sem intervenção dos falantes, um movimento entre línguas como se estas fossem independentes dos que as falam.

Relações entre línguas e apropriação de palavrasO processo de irradiação de jabulani na Copa de 2010 nos mostra

que as relações entre línguas nem sempre derivam de relações de conta-to entre falantes ou entre línguas, se estas forem tomadas de modo mais abrangente, para além das palavras em movimento. A cena enunciativa de introdução de jabulani no português, cena esta que se dá como uni-versal para diferentes línguas do mundo expostas à divulgação midiáti-ca da Copa de 2010, apresenta uma especificidade na relação entre fa-

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lantes e línguas que indica a complexidade desta relação e aponta para a necessidade de considerá-la teoricamente para investigar o modo como o que vem sendo tratado como empréstimo linguístico pode nos ajudar a compreender o funcionamento de uma língua, o modo como se forja sua identidade, na relação dialética entre o próprio e o alheio.

Por sua vez, temos um modo de apropriação da palavra no portu-guês do Brasil que guarda uma particularidade: o processo eponímico que faz com que o nome passe a identificar objetos outros que não a bola da Copa, a partir de características atribuídas à bola a que a palavra dá nome. Lembremos que o sentido de jabulani em zulu é “celebrar”, e que não é este sentido, e sim as características atribuídas à bola da Copa, que dão base ao processo eponímico. Se a atribuição do nome próprio à bola foi motivada pelo sentido do nome comum, o trabalho semântico sobre o nome próprio durante a Copa, que faz dela “a rainha da Copa”, é o que sustenta o processo eponímico.

No mesmo período em que pesquisamos a palavra nos dois jornais brasileiros, a pesquisamos em dois jornais argentinos4 e não consta-tamos o processo eponímico que ocorre no português do Brasil. Es-colhemos a mídia argentina para observar a introdução da palavra a partir da Copa em duas sociedades que possuem uma relação cultural semelhante com o futebol, e que têm na história de suas línguas nacio-nais-oficiais um imaginário de relação com as línguas africanas orien-tado pela presença da escravidão no país. Apesar dessas semelhanças históricas e de uma semelhança enunciativa e outra linguística – a pre-dominância da mesma temática (o esporte) nos textos em que jabulani aparece no período pós-Copa, articulada à presença de outros temas; e a semelhança entre os contextos morfossintáticos de aparecimento da palavra nas duas línguas5 – o processo eponímico não acontece no espanhol da Argentina.

A integração de uma palavra de uma língua em outra envolve, assim, um trabalho dos falantes em modos de significar que fazem com que a palavra na nova língua, ainda que guarde aspectos formais da língua original, possa ter outro funcionamento. É preciso analisar as condições históricas e as regularidades enunciativas em relação aos procedimentos linguísticos de uma língua para compreender melhor este processo e sua inscrição na produção de identidade de uma língua. O que é certo, e o modo como vimos, com jabulani, que pode se dar a apropriação de palavras de outras línguas não permite duvidar, é que a identidade de uma língua não se constrói sobre a exclusão do outro, e sim sobre a tensão dialética entre o um e o outro. Assim, mais do que como in-terferência ou empréstimo de uma língua sobre/para outra, preferimos falar em apropriação ou integração de palavras, que devem ser pensadas

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como gestos enunciativos (que articulam forma e sentido) inscritos em um trabalho sobre a identidade da língua em que a palavra é apropriada.

Notas

1 Todas as traduções do texto de Gómez Capuz, publicado em inglês, são nossas.2 Pesquisamos dois jornais brasileiros – Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo – em suas versões na Internet entre 12/07/2010 (a Copa encerrou no dia 11/07) e 03/11/2011. O objetivo do período escolhido foi observar a permanência da palavra depois da Copa. Encontramos um total de 27 matérias com a palavra Jabulani, 9 na Folha e 18 no Esta-dão. É no Estadão que que observamos um processo eponímico mais produtivo.3 Mesmo quando referindo à bola da Copa de 2010, a palavra já apresenta uma ambi-guidade: ou refere a exemplares concretos, ou ao modelo da bola.4 Pesquisamos o Clarín e o La Nación. Encontramos 17 matérias com a palavra jabu-lani; 8 no Clarín e 9 no La Nación. À exceção de um sintagma nominal que se repete nos dois jornais – “la jabulani ovalada” – que se refere a uma bola de rugby, indicando um processo eponímico que estende o nome próprio a outras bolas esportivas com ca-racterísticas remetidas à jabulani original, a palavra funciona sempre como o nome da bola da Copa, seja referindo-se a um exemplar ou ao modelo da bola.5 Pudemos identificar os seguintes contextos morfossintáticos: No espanhol da Argentina: a) precedida de artigo definido ou indefinido: la/ una Jabu-lani, marcando a diferença entre a designação do modelo (no será la Jabulani, pero) ou de um exemplar do modelo jabulani (no precisamente una Jabulani); b) precedida de artigo definido + adjetivo (la indomable/polémica/famosa/caprichosa Jabulani); c) precedida ou não de artigo defino, seguida de aposto: (Jabulani, la pelota que fabri-can.../ la Jabulani, el balón oficial...); d) seguindo a palavra modelo, especificando-a (una pelota modelo Jabulani); e) seguida do adjetivo ovalada, em um processo eponí-mico em que a palavra passa a compor uma descrição definida que nomeia uma bola de rugby: (la Jabulani ovalada) No português do Brasil: a) precedida ou não de artigo definido ou indefinido (uma Jabulani/a Jabulani, Fifa cita Jabulani); b) seguindo os substantivos réplicas ou bola, como especificador (réplicas da, a bola Jabulani); c) precedida de artigo definido + adjetivo (a patricinha/ traiçoeira/hoje famosa Jabulani); precedida ou não de artigo definido, seguida ou precedida e aposto (Jabulani, a maior artilheira do mundial/ Jabu-lani, bola da Copa 2010/ a bola desenvolvida pela Adidas, a Jabulani); d) precedida de artigo definido + demonstrativo tal de + artigo definido (a tal da Jabulani); e) seguindo “caso” ou “efeito”, compondo nome próprio; f) nos contextos em que aparecem as relações eponímicas já citadas.

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Palavas-chave: empréstimo linguístico, eponímia, enunciaçãoKey-words: linguistic borrowing, eponymy, enunciation