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IV Encontro Anual da ANDHEP
08 a 10 de outubro de 2008, Vitória (ES)
Grupo de Trabalho: Teoria e História dos Direitos Humanos
Direitos Humanos e Democracia liberal:
Sociedade civil versus Estado e Homem versus Cidadão?
Camila Oliveira do Valle, Universidade Federal Fluminense
1
A pesquisa relaciona política e economia, situando os Direitos Humanos
nas contradições da modernidade política. Com a Revolução Francesa, o
Antigo Regime é destruído, erguendo- se sobre ele o Estado Moderno. O
desenvolvimento do poder estatal centralizado foi entravado por direitos
senhoriais, privilégios locais, etc. Com a quebra dos privilégios da ordem
feudal em face do Estado, esse se transforma em Estado político, “o lugar de
todos”. Mas mesmo que passe a se relacionar com cidadãos, sendo Estado, é
poder de uma classe sobre outra. A sociedade burguesa permanece
fragmentada em classes sociais, com interesses antagônicos, ainda que haja
um espaço que se apresente como “de todos”.
Com a modernidade política ocorre a contradição entre particular e
universal, “homem egoísta” e cidadão, sociedade civil e Estado. A nova relação
entre “econômico” e “político” reduziu a importância da cidadania e transferiu
alguns de seus poderes exclusivos para o domínio econômico da propriedade
privada e do mercado, em que a vantagem puramente econômica toma o
lugar do privilégio e do monopólio jurídico. Assim, podem ser feitas
concessões políticas e jurídicas, como a cidadania, a liberdade e a igualdade,
que não afetam a esfera econômica: a distribuição mais ampla dos bens
extra- econômicos 1 ocorre juntamente com a “desvalorização” da esfera
política.
O capitalismo tornou menos importante o status cívico, possibilitando
uma nova forma de democracia: a democracia liberal, que se ergue sobre
esses ideais de liberdade, igualdade e cidadania – os Direitos Humanos. Mas
se concede tantos “bens” é justamente em função da “desvalorização” da
política2.
A democracia liberal deixa intocada tanto a nova esfera de dominação e
coação criada pelo capitalismo, como áreas não sujeitas à responsabilidade
democrática, mas governadas pelos poderes de propriedade e pelas ‘leis’ de
mercado. Antes inspirada nos ideais iluministas, a democracia liberal baseada
1 Conforme expressão de Wood (2003).2 Chama - se a atenção para um processo apontado na atualidade: a repolitização da política,um novo tipo de envolvimento e uma nova ação da classe dominante. Critica- se a idéia dedespolitização ou de apatia, apontando - se para um movimento de repolitização, em que sereduz a grande política à pequena política. Ver André Martins. Burguesia e a novasociabilidade: estratégias para educar o consenso no Brasil Contemporâneo . Tese deDoutorado em Educação, UFF, 2006.
2
no mandato representativo, acompanhando a lógica expansionista,
competitiva e exploradora da acumulação capitalista, consolida- se como
método de escolha de governo, afasta eleitores de eleitos e entrega a política
a profissionais 3.
Se, por um lado, a revolução política, o Estado Moderno “de todos” e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão são considerados um avanço,
por outro lado, eles significam uma emancipação incompleta. Nesse sentido, a
pesquisa objetiva resgatar a crítica ao Estado Moderno e aos Direitos do
Homem e do Cidadão tal qual apresentados na Declaração de 1789, por meio
da análise das contradições da modernidade política. Primeiramente, irá
relacionar essas contradições com a Declaração e, em seguida, através de uma
análise histórico- teórica, objetiva compreender o que tornou possível a
ampliação da cidadania a todas as classes bem como a democracia liberal,
baseada no liberalismo político e nos “Direitos Humanos”; para, por fim,
analisar as suas idéias principais: a liberdade e a igualdade. Objetiva, então,
mostrar que essas idéias e a cidadania, tal qual presentes na Declaração,
inserem- se no pensamento político liberal e, portanto, à manutenção da
ordem capitalista.
1. Os Direitos Humanos e as contradições da
modernidade política
A modernidade política está imersa em contradições que originam
inúmeros conflitos que ainda não foram superados. O poder estatal
centralizado procede dos tempos da monarquia absoluta e serviu à nascente
sociedade burguesa como uma arma poderosa em suas lutas contra o
feudalismo. Entretanto, seu desenvolvimento foi entravado por direitos
senhoriais, privilégios locais, monopólios municipais e corporativos, códigos
provinciais. A Revolução Francesa varreu todas essas relíquias, limpando, ao
mesmo tempo, “o solo da sociedade dos últimos obstáculos que se erguiam
ante a superestrutura do edifício do Estado moderno” (MARX: 78).
3 A democracia representativa é apenas uma das formas de se conceber a democracia.Existem outras teorias democráticas, como as teorias da democracia participativa e dademocracia deliberativa. Ainda que tenham outras bases, também poderiam ser consideradasliberais.
3
Com a Revolução Francesa dá- se a emancipação política, a qual é
incompleta, posto que só política. Ela rompe com a antiga sociedade,
caracterizada pelo feudalismo (“feudalidade”), onde os elementos da vida civil
estavam elevados a elementos da vida estatal; quebra estes privilégios,
tirando- os da vida estatal. Com a emancipação política, o Estado passa a
considerar a todos como iguais, independente da religião, do nascimento ou
dos privilégios de classe, tal qual, anteriormente, se dava com os senhores
feudais. Este Estado emancipado não contém, nele mesmo, os privilégios: é o
Estado real.
Entretanto, o Estado real, que já não possui uma religião, não a abole na
realidade. O deslocamento da mesma em relação ao Estado, para transferi- la à
sociedade civil, constitui a consagração da emancipação política, que não
suprime nem tem por objetivo suprimir a religiosidade real do homem. Da
mesma forma, a quebra de privilégios, a abolição, no próprio Estado, das
diferenças de nascimento, não extingue essas diferenças na própria sociedade
burguesa. A anulação política da propriedade privada – e isto quer dizer que o
Estado já não exige que se tenha a propriedade para “fazer parte” dele - não a
destrói, mas a pressupõe. O Estado anula, a seu modo, as diferenças de
nascimento, status social, propriedade, etc, mas deixa que elas atuem, a seu
modo – como propriedade privada, como status, etc. Longe de acabar com as
diferenças de fato, ele existe sobre tais premissas, fazendo- se valer como
generalidade em contraposição a estes elementos seus. Se antes o Estado
tratava com classes, corporações – os senhores feudais relacionavam- se com
o Estado como senhores feudais - , agora o Estado passa a tratar com
indivíduos, que estão na condição de iguais, ainda que não estejam, de fato,
na condição de iguais na sociedade burguesa.
A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da
sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão
do Estado, à pessoa moral. Primeiramente, evidencia- se o individualismo
presente na sociedade burguesa, o qual se dá na realidade, nas próprias
relações sociais. É o indivíduo que vende sua força de trabalho em troca de um
salário. Mas um indivíduo que pertence a uma classe, a qual existe na
4
realidade da sociedade civil, classe essa que é produto das relações sociais de
produção, com interesses próprios.
A revolução política rompeu a sociedade civil em suas partes integrantes
mais simples, de um lado, os indivíduos; de outro, os elementos materiais e
espirituais que formam o conteúdo de vida, a situação civil destes indivíduos.
A revolução política libertou o político; a atividade determinada de vida e a
situação de vida determinada passaram a ter um significado puramente
individual: deixaram de representar a relação geral entre indivíduo e o
conjunto o Estado – as diferenças da sociedade civil já não mais se transferem
para o Estado.
O Estado passa a ser o espaço do universal, em contraposição à
sociedade burguesa que é o espaço do particular. A sociedade burguesa tem
por base os indivíduos, e estes – enquanto cidadãos - irão se expressar
perante o Estado. Pois é perante ele que atua o cidadão - aquele que tem que
pensar no universal, o qual é, por fim, um homem abstrato; enquanto é na
sociedade burguesa que atua o homem real, um homem que é egoísta. De
acordo com Marx, o homem da sociedade burguesa é um homem não-
político, pois atua segundo seus próprios interesses. Daí a crítica de Marx a
esta separação, tão escancarada com a “Declaração dos Direitos do HOMEM e
do CIDADÃO”: o HOMEM não é o CIDADÃO, e o CIDADÃO não é o HOMEM? O
ser humano é fragmentado em um homem que, perante a sociedade burguesa
(nas suas relações econômicas e sociais), é egoísta; e o homem que, perante o
Estado (na comunidade), pensa – ou deveria pensar - no universal. “Deveria”,
pois ainda que se considere que o espaço da política e do Estado é o espaço
do público, do universal, “do pensar em todos”, “o poder político é o poder
organizado de uma classe para a opressão da outra” (ENGELS & MARX, 2005:
59). Enquanto cidadão, o homem precisa se despir de seus interesses
egoístas. Mas, será isso possível?
Esse é o caráter contraditório do homem fragmentado: para o judeu ser
reconhecido perante o Estado, ele tem que deixar de ser judeu – ao menos
perante o Estado, que é separado da religião e se propõe a tratar a todos
como iguais. O judeu pode ser judeu em sua esfera privada, mas quando se
relaciona com o Estado é um cidadão como qualquer outro, cristão ou ateu, e
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não um judeu. Daí a cisão: o homem individual é religioso, enquanto o homem
genérico não é. Mas, como ser judeu só na esfera privada e não ser perante o
Estado? O Estado, então, é estranho ao ser humano. Nesse sentido, se o
Estado abole as diferenças, ele abole perante ele, pois elas permanecem; o
que faz com que o Estado só possa se apresentar como universal em oposição
às diferenças da sociedade burguesa, ou seja, não reconhecendo as diferenças
que existem na própria realidade. Marx, então, afirma que a diferença entre o
homem religioso e o cidadão é a diferença entre o comerciante e o cidadão,
entre o trabalhador e o cidadão, entre o indivíduo vivendo e o cidadão. A
contradição entre o homem religioso e o homem político é a mesma
contradição que existe entre o bourgeois e o citoyen , entre o membro da
sociedade burguesa e sua aparência política. A consagração do idealismo do
estado era, simultaneamente, a consagração do materialismo da sociedade
burguesa.
Para Bilharinho Naves, se “dizemos que o Estado é democrático, estamos
querendo dizer com isso que ele não é, nem pode ser , o Estado de uma
classe, mas, ao contrário, que ele se constitui em um poder que não é a
expressão de interesses privados”. Segundo ele, o Estado democrático
apresenta- se como a esfera do interesse público , o que exclui a
representação do Estado como aparelho de dominação de classe. Um Estado
só pode apresentar- se como ‘público’ em uma sociedade fundada no princípio
da equivalência mercantil, já que esta pressupõe sujeitos- proprietários
formalmente iguais que trocam mercadorias de modo voluntário e livre , isto
é, sem a interferência de um poder coator externo. Assim, a dominação de
classe burguesa aparece como uma operação privada de compra e venda entre
dois possuidores de mercadorias livres e iguais, pois o operário não é coagido
a vender a sua força de trabalho para o capitalista, ele o faz por livre
deliberação de sua vontade.
O Estado democrático apenas assegura a ordem jurídica, isto é, a
observância desse contrato entre partes das quais ele mantém eqüidistância.
Essa separação entre o público e o privado acarreta tambémuma representação da política como esfera concentrada noâmbito do Estado. Construindo a figura do ‘cidadão’ como osujeito ao qual pertence exclusivamente a representaçãopolítica no Estado — e ao qual só se tem acesso por meio das
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eleições —, a ideologia jurídica exclui da política, portanto, dademocracia, a luta de classe operária, já que esta pertence aoâmbito privado, e não pode ser reconhecida pelo Estadodemocrático (NAVES, 2001: 8).
É por isso que a legalização da luta dos trabalhadores a torna inócua. A
legalidade burguesa vai permitir que o domínio do capital ocorra em nome da
democracia (liberdade e igualdade), transformando a questão da luta de
classes em uma questão de direito. O direito ambiciona trazer para o seu
campo um objeto que não pode ser por ele apreendido: a classe operária e
suas lutas. Trata- se de retirar da classe trabalhadora o caráter antagônico de
suas formas de luta, e, em particular, da greve enquanto fato que exprime a
recusa da classe operária em se submeter à dominação do capital. A greve,
portanto, só é reconhecida como o exercício de um direito sob a condição de
não desorganizar a produção capitalista, de não impedir o funcionamento
“normal” da empresa, portanto, de não ser motivada por razões de ordem
polít ica . É justamente esta legalização da greve que vai permitir a
despolit ização da luta de classe operária.
É suficiente para isso considerar o trabalho como uma atividade que se
exerce nos quadros e dentro dos limites da esfera privada . O trabalho do
operário estaria encerrado no domínio econômico, estranha à atividade
política, que é exercida pelos indivíduos na qualidade de cidadãos, de tal
modo que a política deve se deter na porta da fábrica, pois o Tribunal recusa a
greve política argumentando que ela “ultrapassa” a reivindicação profissional.
O direito interdi ta a política, isto é, o poder de Estado, à classe operária,
a qual não pode intervir politicamente enquanto classe. A política é o terreno
reservado à manifestação dos cidadãos.
Quando a classe operária manifesta- se politicamente por meiode uma greve, ocorre, a rigor, um atentado à liberdade , namedida em que a greve política representa uma ameaça dos‘poderes particulares’ contra o ‘poder universal’ do Estado, oque equivale a dizer que a luta operária constitui uma ameaçaà democracia . E assim, ao converter a opressão em liberdade,a democracia revela toda a sua eficácia e toda a sua sedução(NAVES, 2001: 9).
O capitalismo difere- se das formas pré- capitalistas pois estas se
caracterizam por modos extra- econômicos de extração de mais- valia. A
7
coação política, legal ou militar, obrigações ou deveres tradicionais,
determinam a transferência de excedentes para um senhor ou para o Estado
por meio de serviços prestados, aluguéis, impostos... No capitalismo, as
funções sociais de produção e distribuição, extração e apropriação de
excedentes, e a aplicação do trabalho social são, de certa forma, privatizadas
e obtidas por meios não- autoritários e não- políticos4.
Ainda que pareça contrastante que o capitalismo represente a
privatização última do poder político e que ele é um sistema caracterizado
pela diferenciação entre o econômico e o político, ambas as afirmações se
complementam. Há um contraste entre o capitalismo - o qual é marcado por
uma esfera econômica especializada e por modos econômicos de extração de
excedente, mas também por um Estado central com um caráter público - , e a
parcelização do poder de Estado que une os poderes político e econômico
privados nas mãos do senhor feudal. Nesse sentido, o capitalismo tem a
capacidade única de manter a propriedade privada e o poder de extração de
excedentes sem que o proprietário seja obrigado a brandir o poder político
direto no sentido convencional 5. No capitalismo, o trabalhador é “livre”, pois
não está numa relação de dependência ou servidão; a transferência da mais-
valia e a apropriação dela por outra pessoa não são condicionadas por
nenhuma relação extra- econômica. Ao mesmo tempo, o controle exercido
pelo capital é imposto pelas exigências impessoais da produção mecanizada e
da integração tecnológica do processo de trabalho. O capital tem à sua
disposição novas formas de coação puramente econômicas.
O controle capitalista é exercido de diversas formas, desde a organização
mais despótica da produção até graus variáveis de “controle dos
4 A organização capitalista de produção pode ser considerada o resultado de um longoprocesso em que poderes políticos se transformaram gradualmente em poderes econômicos eforam transferidos para uma esfera independente. A organização da produção sob aautoridade do capital pressupõe a organização da produção e a reunião de uma força detrabalho sob a autoridade de formas anteriores de propriedade privada. O processo pelo qualessa autoridade da propriedade privada se afirmou pela reunião nas mãos do proprietárioprivado, e para seu próprio benefício, do poder de apropriação e da autoridade paraorganizar a produção, pode ser visto como a privatização do poder político. A supremacia dapropriedade privada absoluta parece ter se estabelecido em grande parte por meio dadevolução política, a apropriação pelos proprietários privados de funções originalmenteinvestidas na autoridade pública ou comunitária (grifos no original)” (WOOD, 2003: 40).5 “A expropriação do produtor direto simplesmente torna menos necessário o uso de certospoderes políticos diretos para a extração de excedentes, e é isso exatamente o que significadizer que o capitalista tem poderes econômicos, e não extra - econômicos, de exploração”(Idem: 43).
8
trabalhadores”. Comparando o capitalismo com os sistemas anteriores, nele o
trabalho é mais disciplinado e organizado e a produção responde mais
diretamente às exigências da apropriação. A vida humana, então, é atraída
para uma órbita do processo de produção. Isto evidencia a existência de uma
esfera econômica e de leis econômicas diferenciadas, mas também uma
transformação da política, já que a integração da produção e da apropriação
representa a 'privatização' final da mesma, pois funções antes associadas a
um poder político coercitivo estão alojadas na esfera privada como funções de
uma classe apropriadora privada, isentas das obrigações de atender a
propósitos sociais6.
A esfera política no capitalismo tem um caráter especial porque o poder
de coação que apóia a exploração capitalista não é acionado diretamente pelo
apropriador nem se baseia na subordinação política ou jurídica do produtor a
um senhor apropriador.
Somente quando sai para a rua, o conflito de classes setransforma em guerra aberta, principalmente porque o braçocoercitivo do capital está instalado fora dos muros da unidadeprodutiva. O que significa que confrontações violentas,quando acontecem, não se dão geralmente entre capital etrabalho. Não é o capital, mas o Estado, que conduz o conflitode classes quando ele rompe as barreiras e assume umaforma mais violenta. O poder armado do capital geralmentepermanece nos bastidores; e quando se faz sentir como forçacoercitiva pessoal e direta, a dominação de classe aparecedisfarçada como um Estado 'autônomo' e 'neutro' (Idem, 2003:47).
A propriedade privada absoluta, a relação contratual que prende o
produtor ao apropriador, o processo de troca de mercadorias exigem formas
legais, aparato de coação e as funções policiais do Estado. O correlato dessas
formas econômicas e jurídico- políticas privadas é uma esfera política pública
especializada.
Com a separação entre o político e o econômico, pode- se fazer
concessões políticas que não cheguem a afetar a esfera econômica. Da mesma
maneira, o Estado pode ser visto como alheio à luta de classes. “O Estado –
que é separado da economia, embora intervenha nela – pode aparentemente
6 “Em outro sentido, representa a expulsão da política das esferas em que sempre estevediretamente envolvida” (grifo no original) (WOOD, 2003: 46).
9
pertencer (por meio do sufrágio universal) a todos, apropriador e produtor,
sem que se usurpe o poder de exploração do apropriador.” (Idem: 43).
2. Os Direitos Humanos e a Democracia liberal
O liberalismo teve como precondições fundamentais o desenvolvimento
de um Estado centralizado separado e superior a outras jurisdições mais
particularizadas. Suas concepções centrais de liberdade e limites
constitucionais têm origem no final do período medieval e início do período
moderno, na afirmação dos poderes independentes do senhorio por parte das
aristocracias européias contra o avanço das monarquias centralizadoras, ou
seja, no início representaram uma tentativa de garantir as liberdades, os
poderes e os privilégios feudais. Esses princípios feudais foram mais tarde
apropriados para objetivos mais democráticos por forças “progressistas”;
desde o século XVII expandiram- se dos privilégios de senhorio para liberdades
civis mais universais e direitos humanos e foram enriquecidos pelos valores de
tolerância religiosa e intelectual - Mill (1942) ataca a Igreja e as crenças
religiosas em função de sua intolerância com a diversidade. A idéia
aristocrática original, de controle sobre o poder monárquico, não teve relação
com a idéia de democracia, sua identificação com “democracia” foi um
desenvolvimento posterior, relacionando- se mais com a afirmação do poder
das classes dominantes contra o povo.
No momento em que a história da democracia estava sendo confundida
com a história do senhorio, o próprio senhorio já havia sido substituído por
um Estado centralizado e por uma nova forma de propriedade privada, em que
o poder puramente econômico estava separado da condição jurídica e do
privilégio.
A constituição do Estado político (e não mais religioso, já que, segundo
Marx, o Estado cristão – o Estado antes da revolução política - reconhece
somente privilégios) e a desagregação da sociedade civil em indivíduos
independentes, cuja relação se baseia no direito (e não nos privilégios)
processam- se num só e mesmo ato. Os direitos do homem aparecem como
direitos naturais. A revolução política, então, deixa a sociedade civil nos seus
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elementos constitutivos, entretanto, sem revolucionar estas partes nem
submetê- las à crítica.
A sociedade burguesa que surge “considera” em termos políticos – e
jurídicos – a todos como iguais, um Estado que se apresenta como de todos e
que permite a participação de todos. E essa é uma presença e participação
real. Mas se “perante a lei” os cidadãos são “iguais”, na realidade da sociedade
burguesa eles estão “diferentes”. E tal qual o Estado, o Direito também não
pode ser visto como neutro. Ele se relaciona com a estrutura sobre a qual ele
se ergue.
Na produção social da sua vida, os homens contraemdeterminadas relações necessárias e independentes da suavontade, relações de produção que correspondem a umadeterminada fase de desenvolvimento das suas forçasprodutivas materiais. O conjunto dessas relações de produçãoforma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre aqual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qualcorrespondem determinadas formas de consciência social. Omodo de produção da vida material condiciona o processo davida social, política e espiritual em geral. Não é a consciênciado homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seuser social é que determina a sua consciência (MARX, 1982:301).
Ainda que o Estado se relacione com cidadãos em “condições de
igualdade”, ele não deixa de ser de uma classe, da classe dominante. O Estado
é um órgão de dominação de classe, e o Executivo no Estado Moderno é um
comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa. Nesse
sentido, indivíduos de todas as classes podem estar em seus três poderes,
mas o Estado permanece tendo por função moderar, amortecer a luta de
classes, reprimindo a classe dominada e propagando a ideologia da classe
dominante. Daí que, se perante o Estado, há cidadãos, estes estão inseridos
em classes sociais, possuidoras de interesses antagônicos e em luta. E a luta
de classes está, também, no Estado, ainda que ele seja “formado” por
indivíduos – e, enquanto a classe burguesa permanece dominante, seja
ideológica, política ou economicamente, impõe sua hegemonia. Assim, a
classe burguesa não está em condição de igualdade com o proletariado, nem
em termos políticos, econômicos ou ideológicos, mesmo que o Estado permita
que qualquer cidadão seja eleito, seja ele burguês ou trabalhador. E o Estado
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de todos, que já não trata mais com senhores e servos, mas com cidadãos –
“livres” e “iguais”, não está alheio às diferenças existentes na sociedade
burguesa, nem às classes sociais. Marx evidencia esta contradição ao afirmar
que “a contradição que existe entre o poder político prático do judeu e seus
direitos políticos é a contradição entre a política e o poder do dinheiro em
geral. Enquanto a primeira predomina idealmente sobre a segunda, na prática
dá- se justo o contrário” (Marx, 2005: 47).
O surgimento do indivíduo isolado teve o seu lado positivo, pois a criação
da soberania individual foi o “preço pago” pela multidão trabalhadora para
entrar na comunidade política. O processo histórico que gerou a ascensão do
capitalismo e juntou o trabalhador assalariado “livre e igual” ao corpo de
cidadãos, foi o mesmo processo em que os camponeses foram desapossados
e desenraizados, arrancados de sua propriedade e de sua comunidade, com
seus direitos comuns e costumeiros. “Foi como um agregado desses
indivíduos isolados, sem propriedade e roubados das solidariedades
comunitárias7, que a “multidão trabalhadora” finalmente entrou para a
comunidade de cidadãos” (Wood, 2003: 182).
O pressuposto histórico dessa cidadania foi a desvalorização da esfera
política, a nova relação entre “econômico” e “político” que reduziu a
importância da cidadania e transferiu alguns de seus poderes exclusivos para
o domínio econômico da propriedade privada e do mercado, em que a
vantagem puramente econômica toma o lugar do privilégio e do monopólio
jurídico.
Ao deslocar o centro do poder do senhorio para a propriedade, o
capitalismo tornou menos importante o status cívico, o que tornou possível
uma nova forma de democracia. O que possibilita a identificação de
“democracia” com liberalismo, o qual se baseia em formas pré- modernas e
pré- capitalistas de poder, é o próprio capitalismo, o surgimento das relações
sociais capitalistas de propriedade. Isto ocorre em função da existência de
uma esfera política na qual a condição extra- econômica não tem implicações
diretas para o poder econômico e para o poder de apropriação, exploração e
7 “As instituições e solidariedades da comunidade aldeã tinham condições de lhe oferecercerto grau de proteção contra os proprietários e o Estado (embora também pudessem servircomo meio de controle por parte dos senhores)” (Wood, 2003: 182).
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distribuição, bem como em virtude da existência de uma esfera econômica
com suas próprias relações de poder que não dependeriam de privilégio
político nem jurídico.
As condições reais que possibilitam a democracia liberal limitam o
alcance da responsabilidade democrática. A democracia liberal deixa intocada
a nova esfera de dominação e coação criada pelo capitalismo, bem como
vastas áreas de nossa vida cotidiana que não estão sujeitas à responsabilidade
democrática, mas são governadas pelos poderes de propriedade, pelas ‘leis’
de mercado e pelo imperativo da maximização do lucro. A maneira da
democracia liberal tratar essa esfera de poder – o econômico – é libertá- la; o
mercado é visto como oportunidade e não como coação.
Onde o republicanismo clássico havia resolvido o problema daelite proprietária e da multidão trabalhadora mediante aredução do corpo de cidadãos (como gostariam de ter feito osoligarcas atenienses), a democracia capitalista ou liberalpermitiria a extensão da cidadania mediante a restrição deseus poderes (como o fizeram os romanos). Onde um propôsum corpo ativo, mas exclusivo, de cidadãos em que as classesproprietárias governariam a multidão trabalhadora, o outro foicapaz de imaginar um corpo abrangente, mas grandementepassivo, de cidadãos composto pela elite e pela multidão,embora sua cidadania tivesse alcance limitado. (Idem: 180)
O capitalismo tem a capacidade de fazer uma distribuição universal de
bens políticos sem colocar em risco suas relações constitutivas, suas coerções
e desigualdades e o Estado – que é “separado” da economia, embora
intervenha nela – pode aparentemente pertencer a todos, sem que se usurpe o
poder de exploração do apropriador. “Submetido a imperativos econômicos
que não dependem diretamente do status jurídico ou político, o trabalhador
assalariado sem propriedade só pode desfrutar no capitalismo da liberdade e
igualdade jurídicas, e até mesmo de todos os direitos de um sistema de
sufrágio universal, desde que não retire do capital o seu poder de apropriação”
(Idem, 2003: 173). As relações de classe entre capital e trabalho podem
sobreviver até mesmo à igualdade jurídica e ao sufrágio universal.
Ahora es posible tener un nuevo tipo de democracia que estáconfinada a una esfera puramente política y judicial – aquelloque algunos denominan democracia formal – sin destruir loscimientos del poder de clase. El poder social ha pasado a lasmanos del capital, no sólo en razón de su influencia directa enla política, sino también por su incidencia en la fábrica y en la
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distribución del trabajo y los recursos, así como también víalos dictados del mercado. Esto significa que la mayoría de lasactividades de la vida humana quedan por fuera de la esferadel poder democrático y de la rendición de cuentas (WOOD,2006: 8).
A liberdade, então, deixa de significar participação, ligando- se à idéia de
não intervenção, tal qual concebem os liberais: o que se convencionou chamar
de “liberdade negativa” - sobre um indivíduo incidem os poderes do governo
de que ele é submisso, e tal intervenção se dá nos limites da lei civil. Essa
distinção entre liberdade “positiva” e “negativa” relaciona- se com a dicotomia
“antigos” e “modernos”, inaugurada por Constant. Para ele (1980: 10), a
liberdade dos modernos é:
o direito de não se submeter senão às leis, de não poder serpreso, nem detido, nem condenado, nem maltratado denenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um oude vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer suaopinião, de escolher seu trabalho e de exercê- lo; de dispor desua propriedade, até abusar dela; de ir e vir, sem necessitar depermissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou deseus passos. É para cada um o direito de reunir - se a outrosindivíduos (...), é o direito, para cada um, de influir sobre aadministração do governo, seja pela nomeação de todos ou decertos funcionários, seja por representações, petições,reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menosobrigada a levar consideração.
Já a liberdade dos antigos “consistia em exercer coletiva, mas
diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública
sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança,
em votar leis, em pronunciar julgamentos, em examinar contas, os atos, a
gestão dos magistrados; em fazê- los comparecer diante de todo um povo, em
acusá- los de delitos, em condená- los ou em absorvê- los” (Idem: 11).
A esfera privada passaria a ganhar mais “peso” na vida do homem
moderno e seria defendida como o espaço da liberdade, posto que esse (o
homem moderno) acredita ser livre por dedicar- se à suas questões
particulares e individuais, não precisando “gastar tempo” com as decisões da
esfera pública – deixando- as aos representantes. Ou seja, os liberais
acreditam que a liberdade dos modernos deve compor- se com o exercício
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pacífico da independência privada8. E a representação política é justamente o
artifício que permite deixar a esfera privada “livre” e consolidar a idéia de
liberdade “negativa”, já que o poder político pode ser “entregue” a poucos
indivíduos 9.
Em Atenas, portanto, a liberdade era vista como possibilidade de
participar das decisões do Estado, contrariamente à idéia de liberdade
negativa, associada à teoria liberal, a qual prioriza a “esfera privada” em
detrimento da “pública”. A mudança na idéia de liberdade (de positiva, ligada à
participação, para negativa, ligada a não intervenção) contribui para a
construção do que veio a se chamar “cidadania passiva”, e não mais “ativa”,
como em Atenas.
Analisando os ideais burgueses, Marx desmistifica aquilo que há por trás
deles. A liberdade presente na “Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão” é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique
aos outros; o limite dentro do qual todo homem pode mover- se inocuamente
em direção a outro é determinado pela lei. É uma liberdade fundada na
separação e não na união dos homens, os quais se apresentam como limite
uns dos outros, e não como realização. Assim, “se minha liberdade vai até
onde começa a do outro”, o outro é meu limite, uma barreira imposta a mim e
à minha liberdade – o que faz gerar ainda mais individualismo e egoísmo. Daí
a aplicação prática disto ser a propriedade privada, o direito de dispor de sua
própria propriedade, com base em seu interesse pessoal e, portanto, sem a
perspectiva universal e social. A liberdade individual e sua aplicação
constituem o fundamento da sociedade burguesa. A liberdade que emerge é a
liberdade individual; a igualdade é a igualdade perante a lei e a segurança é
8 Segundo Constant, enquanto os antigos estavam dispostos a fazer “muitos sacrifícios” pelaconservação de seus direitos políticos e de sua parte na administração do Estado, osmodernos acreditam ser melhor aproveitar os “progressos da civilização” e as “variedades deformas de felicidade particular”. “A independência individual é a primeira das necessidadesmodernas. Conseqüentemente, não se deve nunca pedir seu sacrifício para estabelecer aliberdade política” (Constant: 19). Veja- se, todavia, que o pensador não renuncia à liberdadepolítica, alterando, somente, seu significado, e reduzindo - a (ou melhor, dando - lhe menosimportância), privilegiando a liberdade individual: “quanto mais o exercício de nossos direitospolíticos nos deixar tempo para nossos interesses privados, mais a liberdade nos serápreciosa” (Constant, 1908: 23).9 Constant defende o governo representativo como o único sob o qual podemos hojeencontrar alguma liberdade e tranqüilidade. Para ele, o sistema representa tivo é umaprocuração dada a um certo número de homens pela massa do povo que deseja ter seusinteresses defendidos e não tem tempo para defendê - los sozinhos. Assim, as instituiçõesdevem realizar os destinos do gênero humano, terminando a educação moral dos cidadãos.
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servidora do homem egoísta, dos seus interesses particulares. A segurança é
o conceito social supremo da sociedade burguesa, a noção de polícia, segundo
o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seus
membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade.
A fim de garantir os direitos, criou- se a polícia: a liberdade é garantida pela
repressão. O conceito de segurança não faz com que a sociedade burguesa se
sobreponha a seu egoísmo, a segurança é a preservação deste.
Assim, segundo Marx, a religião, longe de se constituir incompatível com
o conceito de direitos humanos, inclui- se expressamente entre eles. Os
direitos humanos proclamam o direito de ser religioso, o privilégio da fé é um
direito humano geral. O homem não se libertou da religião, da propriedade
privada e do egoísmo da indústria. Obteve liberdade religiosa, liberdade de
propriedade e liberdade industrial.
Apoiada nos ideais de liberdade e igualdade, nos Direitos Humanos, a
democracia liberal permite a ampliação da cidadania a todos, não pondo em
risco o capital. Segundo Marx, nenhum dos direitos humanos ultrapassa o
egoísmo do homem, do indivíduo voltado para si mesmo; estes direitos fazem
da própria vida genérica – do comum - um marco exterior aos indivíduos.
Nesse sentido, a cidadania, vista como um avanço com relação ao feudalismo
– já que o povo começa a libertar- se, a derrubar as barreiras entre os distintos
membros que o compõe, a criar uma consciência política - é um meio para
conservar os direitos do homem, proclamando a legitimidade do homem
egoísta, dissociado de seus semelhantes e da comunidade. A esfera universal,
então, fica colocada em uma posição inferior, a serviço do homem egoísta:
isto evidencia a relação que Marx faz entre a economia e a política, entre a
esfera do particular – ressaltada na sociedade burguesa – e a esfera do
universal – a serviço do particular, sem seu caráter universal: um espaço do
comum que exige um homem que pense no comum, mas este homem não
existe na sociedade civil, a qual tem indivíduos que pensam em seus próprios
interesses – e que, ao ir para esfera do universal, teriam que “esquecer” seus
interesses para pensar no comum. A comunidade – o espaço do comum, do
“público”, do Estado, - é deixada para um homem abstrato, um homem que
tem que pensar no universal... mas o que existe são homens egoístas, os
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homens reais. Assim, não se considera como homem verdadeiro e autêntico o
homem enquanto cidadão, senão enquanto burguês. A vida política se declara
como simples meio, cujo fim é a vida da sociedade burguesa. Ora, esta é uma
das contradições que Marx constata e que devem ser superadas, a fim de se
conquistar a emancipação humana.
Em “O capital”, Marx continua na crítica à Liberdade, Igualdade e
Propriedade:
A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias,dentro de cujos limites se movimentam compra e venda deforça de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitosnaturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade,Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois compradore vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força detrabalho, são determinados apenas por sua livre- vontade.Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. Ocontrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão umaexpressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles serelacionam um com o outro apenas como possuidores demercadorias e trocam equivalente por equivalente.Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu.Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. Oúnico poder que os junta e leva a um relacionamento é oproveito próprio, a vantagem particular, os seus interessesprivados. E justamente porque cada um só cuida de si enenhum do outro, realizam todos, em decorrência de umaharmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios deuma previdência toda esperta, tão- somente a obra de suavantagem mútua, do bem comum, do interesse geral. Ao sairdessa esfera da circulação simples ou da troca demercadorias, da qual o livre- cambista vulgaris extraiconcepções, conceitos e critérios para seu juízo sobre asociedade do capital e do trabalho assalariado, já setransforma, assim parece, em algo a fisionomia de nossadramatis personae . O antigo possuidor de dinheiro marchaadiante como capitalista, segue- o o possuidor de força detrabalho como seu trabalhador; um, cheio de importância,sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido,contrafeito, como alguém que levou a sua própria pele para omercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto o —curtume.
Liberdade, igualdade e propriedade precisam ser compreendidas dentro
da totalidade de que fazem parte. Ligam- se ao direito de dispor de sua
propriedade, pensada de forma individual, e não numa comunidade que
precisa organizar a sua produção. De modo que a liberdade da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão não dá – e nem daria - conta de novos
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poderes que estão emergindo e que irão impor- se sobre os homens – a lógica
de acumulação capitalista.
Ora, numa sociedade dividida em classes sociais, onde uma delas é
dominante e exerce sua hegemonia, a liberdade e a igualdade não podem ser
usufruídas por todos. Lênin ressalta que, numa república burguesa, a
liberdade e a igualdade são a expressão da igualdade e da liberdade dos
proprietários de mercadorias. “A 'liberdade e a igualdade' no sistema burguês
(isto é, enquanto se mantiverem a propriedade privada das terras e dos meios
de produção) e na democracia burguesa, serão meramente formais, o que
significa, na realidade, escravatura salarial para os trabalhadores (que são,
formalmente, livres, gozando, formalmente, de direitos iguais), todo o poder
para o capital, e opressão do trabalho pelo capital” (Lênin, 1985: 8).
Ele afirma que a liberdade é uma fraude se se opõe à emancipação do
trabalho da opressão do capital e, neste sentido, ressalta a crítica “a todas as
espécies de Benthams” Marx devotou suas obras à ridicularização da
“liberdade”, “igualdade”, “vontade da maioria”, “para provar que por detrás
destas frases se encontram os interesses da liberdade do proprietário, a
liberdade do Capital, para oprimir as massas trabalhadoras” (Idem: 26). Assim,
a liberdade dos capitalistas refere- se à liberdade de comercializar. Continua
afirmando que a liberdade dos “civilizados” franceses, ingleses e americanos é
a liberdade no papel - os grandes auditórios que existem nas grandes cidades
pertencem aos capitalistas e aos proprietários. “A liberdade de reunião,
incluída nas Constituições de todas as repúblicas burguesas, é uma fraude
porque, quando queremos nos reunir, protegidos do tempo, os melhores
edifícios são propriedade privada” (Idem: 28). Assim, a liberdade de reunião
significa liberdade de reunião dos capitalistas. Mas, ainda que Lênin critique a
liberdade associada à propriedade privada, reconhece que ela é um progresso
em comparação com a ordem feudal.
Lênin faz a crítica à igualdade na república democrática, afirmando que a
igualdade não pode existir em virtude da propriedade privada dos meios de
produção, do dinheiro e do capital; e ressalta que a igualdade é “oca” a não
ser que por igualdade se entenda a abolição das classes. Enquanto houver
diferenças de classe, não haverá igualdade.
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3. Pensando a superação
Ainda que a emancipação política seja um avanço, e o avanço se dá,
justamente, porque “tirar” as classes do Estado, ou seja, fazer com que o
Estado não se relacione mais com senhores feudais e servos, mas com
cidadãos, é um primeiro passo para se chegar ao fim das classes na realidade.
Todavia, com a emancipação política, o Estado permanece, ainda que de forma
diferente. Continuam as mediações entre o ser humano e ele mesmo, pois o
homem se emancipa polit icamente , ou seja, por meio do Estado ele se vê
como um ser genérico que não tem religião nem privilégio. E isto significa que
a religião e os privilégios continuam, pois foi somente por meio do Estado que
ele se emancipou, e não por meio dele mesmo. Para ser uma emancipação
completa, o ser humano tem que abolir a religião e os privilégios não só de
forma abstrata, ou onde ele tem que se ver como comum, ou por meio do
Estado, mas também na sua realidade prática, na economia, na sociedade civil.
O ser humano tem que se emancipar sem precisar passar pelo Estado, tem
que se afirmar como comum, universal, não por meio do Estado, ou seja, o fim
dos privilégios e da religião não podem ocorrer só no Estado, tem que ocorrer
também na própria sociedade civil – e isto se dará com a superação de ambos.
A cisão do ser humano em homem egoísta e cidadão, entre sociedade
burguesa e Estado, entre uma esfera onde o homem pensa só nele e uma
esfera em que ele pensa em todos, torna necessária a superação dialética
existente entre estes opostos antagônicos, objetivando fazer com que o ser
humano, quando da sua atuação na sociedade (nas relações econômicas e
sociais), pense no universal (seja, também, um político). A comunidade não é
possível onde há indivíduos e classes – com interesses antagônicos – que
atuem na própria sociedade conforme seus interesses, daí a necessidade de
resgatar o homem genérico, não fragmentado nem iludido, que se reconheça
enquanto homem, que considere o trabalho seu fim (a realização das
necessidades humanas) e não um meio. E enquanto as relações sociais de
produção estiverem baseadas na exploração e dominação de classe, na troca
entre indivíduos egoístas, o ser humano – em sua realidade diária e, também,
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em termos políticos - não pensará no universal, pois não é esta a sua
realidade. Sua consciência, formada pelo meio, formará um ser egoísta, que
pensa em seus interesses próprios, mas que pode ser crítico. Por isto, é
necessária a superação dos antagonismos, das classes, das relações sociais
que lhes dão origem e da ideologia que as mantém e reproduzem, a fim de
conquistar a emancipação humana. Somente quando o homem individual real
recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em
ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais,
somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas forças
próprias como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força
social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação
humana, a emancipação de classe. E esta superação seria feita pelo
proletariado, a classe radical que possui um caráter universal em função de
seu sofrimento universal.
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