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Entre 1914 e 1918 Portugal enviou mais de 20 mil soldados para Moçambique com o objetivo de garantir a defesa da colónia face aos alemães. Apesar da sua superioridade em número e no equipamento, os soldados portugueses foram condenados a uma missão impossível. As divisões internas,o desleixo com as regras sanitárias, a impreparação para as doenças tropicais, as dificuldades de um país arruinado para manter duas expedições a milhares de quilómetros de distância, a incompetência e a falta de vontade de combater tornaram a aventura moçambicana num dos maiores desastres de sempre das tropas nacionais. Na Primeira Grande Guerra morreram,em Moçambique, mais portugueses do que na frente europeia.

Nascido da série de reportagens homónima que valeu ao autor o Prémio Gazeta de Imprensa em 2015, A Guerra que Portugal quis Esquecer relata as memórias dos soldados, as denúncias de cobardia e de incompetência das chefias e a vergonha pelas derrotas, fazendo justiça a uma parte da História que o Estado Novo tentou apagar.

No final de 1917, as tropas portuguesas são um exército derrotado, acossado pela fome e pela sede, sem comando nem destino. Os alemães haviam sido expulsos pelos ingleses do seu território, a atual Tanzânia, e levaram a Primeira Grande Guerra em África para o solo do império colonial português. No seu avanço, desbarataram a frágil linha de resistência na Batalha de Negomano, em 25 de novembro de 1917, e acabaram de vez com os últimos sonhos de conquista e de glória que a República projetara para África. “Fui daqueles que entraram nesta guerra com os olhos mais cheios de belas utopias e o coração largo abrasado de fé e lusismo, esperançado de que a minha raça, como todas as raças, se salvaria sob a cinza deste braseiro”, escreveria anos mais tarde António de Cértima. Naqueles dias de dezembro de 1917, as “belas utopias” estavam destroçadas. Portugal sofrera a maior derrota militar em África desde Alcácer Quibir.

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O desastre do exérc ito

portugu ês em Moçamb ique

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© Nelson Garrido

Manuel Carvalho é jornalista e desenvolveu quase todo o seu percurso profissional na redação do Porto do jornal Público (excetuando um breve período entre 1999 e 2000, em que integrou o Diário Económico). Para além de ter pertencido ao grupo de jovens escolhido, em 1989, para formar a primeira redação do jornal, entre 2000 e 2013 ocupou as funções de subdiretor e de diretor adjunto. Foi ainda professor do ensino básico, durante dois anos.

Nascido em Alijó, Alto Douro, fez os seus estudos superiores no Porto, primeiro com um bacharelato na Escola Normal e mais tarde na Faculdade de Direito e na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se licenciou em História. Fez o curso de jornalismo do Cenjor e foi fellow do German Marshall Fund, nos Estados Unidos, e do International Studies and Training, no Japão. Venceu vários prémios de jornalismo, o último dos quais em 2015 – o Prémio Gazeta de Imprensa com a série de reportagens sobre a Primeira Guerra Mundial em Moçambique, que estão na base deste livro.

É, atualmente, redator principal do Público e integra o painel de comentadores de assuntos políticos e económicos da RTP Informação e da RTP2.

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Índice

Introdução 11

1 – A guerra longe de mais 15A guerra que vive 18Um génio como inimigo 21Como reses para o matadouro 26

2 – A guerra antes da guerra 28Moçambique, ocupação e “pacificação” 31O assalto através da dívida 35A guerra chega a África 38

3 – A guerra sem sobressaltos (1914-1915) 43O Exército na tormenta da revolução 45Rumo ao Índico 49Paz tensa 54O conflito no norte 56O triunfo dos beligerantes 59A tropa de Penamacor 61Portugal em guerra 67

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4 – Leve vitória em Quionga, pesada derrota em Namaca (abril-junho 1916) 70A queda de Quionga 74A derrocada da expedição 86

5 – Em Palma, entre o tédio, a ansiedade e a malária (julho-setembro 1916) 91O caos no Tungue 95O quotidiano na base 98A escravidão dos carregadores 102A segunda tentativa 105Pressão sobre Ferreira Gil 107De regresso aos vaus do Rovuma 110

6 – Nevala, glória e fuga (setembro 1916-janeiro 1917) 117A primeira emboscada 120Uma base em terra inimiga 122Viver entre o inimigo 128A tenaz de Smuts 132Seis horas de brio, em Quivambo 134A noite decisiva 140O pânico em Palma 143

7 – Morrer na praia, em Mocímboa (janeiro-outubro 1917) 153O país em estado de sítio 156A “pobre mocidade do Porto” 159O regresso à selva 165A caminho de Chomba 167

8 – A coluna perdida (maio-outubro 1917) 173A coluna em ziguezague 177Um ensaio geral sangrento 178A pé pelo sertão 180Ao longe, o Rovuma 187

9 – O princípio do fim em Negomano (novembro-dezembro 1917) 191Os alemães em desespero 196O pecado capital de Sousa Rosa 200

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A batalha junto ao Lugenda 203Os despojos de Negomano 209A resistência na Mecula 211

10 – Subalternos na guerra dos ingleses (dezembro de 1917-novembro de 1918) 218As culpas de Namacurra 226À espera do fim 232A última marcha de Von Lettow 235O balanço do regresso à vida 240

Bibliografia e fontes 247

Notas 255

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1. A  guerra longe de mais

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A guerra longe de mais

Por volta das quatro e meia da tarde de 19 de dezembro de 1917, o  grupo avançado de uma coluna de 350 homens arrastava-se para o interior do forte de Unango, nos confins da província do Niassa, no norte de Moçambique. Tinha começado a sua fuga dos montes Maco-los há mais de 40 horas. Pelo caminho, fizera duas breves paragens em pontos elevados para evitar um ataque-surpresa dos alemães. Ao longe, num cume dos Macolos onde tinha passado as três últimas semanas, uma nuvem de fumo erguia-se no ar, dando conta de que a destruição do equipamento que não conseguira transportar fora bem-sucedida. Durante a fuga em marcha forçada, os soldados tinham consumido as rações de combate que sobraram, refrescaram-se com frutos da selva que os soldados indígenas sabiam distinguir e deliciaram-se com duas galinhas e umas espigas de milho furtadas numa das aldeias algures no trajeto. Os doentes, incapazes de acompanhar o passo, tinham ficado para trás. Os que resistiram agarravam-se em paus, gemiam, vergados pela dureza do caminho, pelo cansaço, pelo medo e pelo sentimento da derrota.

Quando, finalmente, passou pela porta da entrada do forte de Unango, o alferes José Teixeira Jacinto, 37 anos, retirou a bandeira de Portugal que trouxera enrolada no corpo e içou-a no mastro no centro do forte. Depois, os corneteiros deram o toque de armas e os soldados em formatura fizeram uma prolongada continência. Um tenente in-glês, que chegara pouco antes a Unango, não queria acreditar no que estava a ver. Os rostos esquálidos, a pele tisnada, “o cabelo e a barba de mais de dois meses por cortar”, a sujidade, “os fatos e o calçado dos eu-ropeus a cair aos pedaços e os soldados indígenas quase todos seminus,

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A guerra que P ortugal quis esquecer

sendo os casacos tristes farrapos em cima do dorso”, levaram os pre-sentes a chamar à infeliz tropa de José Teixeira Jacinto a “Companhia Pirata”.1

A sua aparência e condição eram uma boa imagem do que res-tava do exército português enviado a Moçambique para combater os alemães na Primeira Guerra Mundial. No final de 1917, era um exér-cito derrotado, acossado pela fome e pela sede, sem comando nem des-tino. Os alemães haviam sido expulsos pelos ingleses do seu território, a atual Tanzânia, e levaram a Primeira Grande Guerra em África para o  solo do império colonial português. No seu avanço, desbarataram a frágil linha de resistência na Batalha de Negomano, em 25 de novem-bro de 1917, e acabaram de vez com os últimos sonhos de conquista e de glória que a República projetara para África. “Fui daqueles que en-traram nesta guerra com os olhos mais cheios de belas utopias e o co-ração largo abrasado de fé e lusismo, esperançado de que a minha raça, como todas as raças, se salvaria sob a cinza deste braseiro”, escreveria anos mais tarde António de Cértima2. Naqueles dias de dezembro de 1917, as “belas utopias” estavam destroçadas. Portugal sofrera a maior derrota militar em África desde Alcácer Quibir.

Poucos dias depois de José Teixeira Jacinto ter hasteado a ban-deira nacional no Unango, a condução das operações militares em ter-ritório português seria entregue aos ingleses, que tinham partido do Quénia e,  após três anos de pressão, empurrado os alemães do Tan-ganica, a sua África Oriental, para a região do Niassa. Os homens que restavam das últimas expedições nacionais arrastavam-se na rotina em postos remotos, lutavam contra a malária e a dureza do clima ou, como a coluna do alferes Jacinto, procuravam apenas um refúgio onde pudes-sem recuperar as forças após semanas de ansiedade, privação e medo. Para eles, a guerra deixara de existir. Sem inimigos para defrontar, a vi-tória mais desejada era a da sobrevivência e, principalmente, a de um lugar num vapor que os levasse para casa. A profética declaração de vergonha proferida pelo tenente Manuel de Oliveira, que num raro ato de solidariedade se voluntariara para salvar a coluna com uns mil ho-mens cercados no forte de Nevala um ano antes, cumprira-se: “Adeus Portugal! Já não há portugueses”3.

Um século passado, esse desastre militar em Moçambique não passa de um vestígio remoto na memória da Primeira Guerra Mun-dial. No dia 26 de junho de 2014, o  primeiro-ministro de Portugal, Pedro Passos Coelho, foi ao cemitério militar de Richebourg, no norte

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de França, “prestar a  nossa homenagem coletiva” aos soldados que morreram na guerra, mas se em vez de ter escolhido para a cerimónia o  teatro europeu optasse pelos cemitérios militares portugueses que persistem no norte de Moçambique, dificilmente teria condições para manifestar o “respeito e sentimento de enorme orgulho” que o País su-postamente “tem por todos aqueles que se sacrificaram ao serviço da nação”. Porque nesses lugares remotos, não encontraria cemitérios com cruzes brancas, alinhadas e conservadas, a recortar o verde da paisa-gem. Descobriria, sim, lápides a emergirem entre o lixo que alimenta galinhas e cabras, tumbas engolidas pelo avanço da selva, túmulos pro-fanados, campas onde só com esforço se consegue ler o nome dos que morreram nas praias do Índico, na selva do planalto dos Macondes ou nas margens do rio Rovuma.

Dulce et decorum est Patria mori. O verso de Horácio que atesta a  beleza e  a nobreza da morte ao serviço da pátria soa assim vazio e mentiroso na porta de entrada no mausoléu em ruínas no cemité-rio de Mocímboa da Praia, erigido pelo Estado Novo para perpetuar a memória dos soldados que morreram em Moçambique entre 1914 e 1918. O mausoléu conserva ainda a estátua imponente de uma figura feminina que segura a espada com a mão direita e ampara um escudo com as armas nacionais com a esquerda. Mas no seu interior devastado pelo tempo, pelo saque e  pelo vigor da natureza tropical, as tumbas onde se encontram depositadas as ossadas dos soldados são a prova de que nada, nem a paz eterna, fez sentido naquela guerra. As pesadas pedras de mármore que tapavam as sepulturas no interior do mausoléu foram arrastadas depois da independência de Moçambique e restos de fémures, de caveiras, de cúbitos assim ficaram ao ar. Em 2014, o pro-jeto Conservação das Memórias da Liga dos Combatentes exumou 24 restos mortais em Mocímboa da Praia e previa recuperar um ano de-pois o ossário.

O historiador Marco Arrifes escreveu que “o soldado desconhe-cido de África é  bem mais desconhecido que o  da Flandres”4, e  não faltam argumentos para comprovar a sua tese. Já no tempo da guerra essa discriminação era sentida. “Para a França foram os políticos, os escritores, os literatos e  os militares conhecidos; para Moçambique foram os que apenas eram militares ou soldados, e  por isso a  cam-panha, lá longe, lutando contra todos os inconvenientes possíveis ou imaginários, combatendo-se em silêncio, e silenciosamente morrendo pela Pátria, é  desconhecida”, notava, em 1924, o  capitão António J.

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Pires5. Nada justifica esse desconhecimento. Em África combateu-se, de acordo com a ideologia e o direito da era colonial, pela defesa do território nacional. No norte de Moçambique, morreram mais sol-dados portugueses do que nas trincheiras da Flandres. Em África, os soldados tombaram não tanto pelo poder de fogo dos alemães, mas principalmente por causa da impreparação e falta de treino, da incúria com a alimentação e o vestuário, da insensibilidade dos comandantes, da sede, do paludismo e da disenteria.

Foi por isso uma derrota em parte autoinfligida, cheia de ensina-mentos e  significados que não justificam a omissão da História nem o  apagamento que o  Estado Novo lhe impôs. Como escreveria mais tarde o higienista Ricardo Jorge, foi uma guerra na qual “o inimigo foi o próprio português, com a sua leviandade, irreflexão, desmazelo e bir-ras, a  sua vara na mão, o  seu cego quero posso e mando. Velar pela alimentação, pela saúde e pela assistência das tropas, prevenir e atacar os flagelos que sobre elas incidem letalmente, ouvir e respeitar as vozes da higiene e da medicina, não são predicados da simples caserna”6. Nos anos conturbados da “renovação nacional” do Estado Novo, falar das falhas do Exército só fazia sentido para recriminar o republicanismo jacobino. Era preciso esquecer essa nódoa na bandeira das glórias ul-tramarinas. Quando o 25 de Abril abriu uma nova página, essa guerra estava já distante de mais para merecer curiosidade e estudo. Afinal, o império colonial era coisa do passado.

A guerra que viveNos palcos do conflito, nas atuais províncias de Cabo Delgado

e Niassa e no sul da Tanzânia, é ainda hoje possível reconstituir os ca-minhos trilhados pelos soldados portugueses há um século. Em Pemba, a cidade de Porto Amélia dos tempos coloniais, as memórias estão mais diluídas, mas, 300 quilómetros a norte, em Mocímboa da Praia e  em Palma, bases das principais expedições das tropas nacionais entre 1916 e 1917, ainda se conseguem identificar as zonas dos acampamentos e dos hospitais ou os cemitérios. Em Quionga, que fora ocupada pelos alemães em 1894 e reconquistada sem um tiro em 10 de abril de 1916, as ruínas da casa do governador alemão, cujo aprumo e solidez tanto impressio-naram os portugueses, ainda persistem. Em Namoto, na margem do Rovuma, ainda se podem assinalar os contornos do forte numa elevação

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1. A  guerra longe de mais

sobranceira à  margem, de onde os soldados portugueses vigiavam os movimentos alemães do lado de lá do rio.

Em Mueda, a moderna capital dos macondes e  lugar mítico da Guerra Colonial, desencadeada em setembro de 1964, começa uma es-trada de quase 200 quilómetros de terra batida, em plena selva, que vai até Negomano, onde as tropas portuguesas sofreram a pesada derrota em 25 de novembro de 1917. O velho forte ainda se identifica entre uma machamba (campo agrícola) entretanto abandonada, bem como a planície junto à confluência dos rios Lugenda e Rovuma, onde mais de mil portugueses foram cercados e  derrotados. Do outro lado da fronteira, que se cruza hoje por uma ponte megalómana e  absurda, a ligar duas picadas entre o nada e lugar nenhum, sobe-se ao planalto dos Macondes do lado da Tanzânia e percebe-se que o forte alemão de Nevala, que os portugueses conquistaram e ocuparam durante um mês no final de 1916, ainda conserva a sua traça original.

Em África, as memórias da Grande Guerra não foram objeto de registo nas páginas da História ou do memorialismo, mas permanecem guardadas pela lentidão do tempo e  pelo culto da tradição oral. Em 2014, Amisse Juma, 76 anos, sabia identificar o lugar onde se instalou o quartel-general da quarta expedição, em Mocímboa da Praia. Martins Ibrahim Musse, 65 anos, era capaz de relatar as histórias dos soldados cujos restos mortais permanecem no cemitério de Palma e lembrava-se do dia em que muitos foram exumados e transportados para Portugal. O mzê (ancião, em suaíli) Assani Abdel Remani Kimombo desconhecia ao certo a sua idade, mas conseguia apontar entre o mato as trincheiras que em 1916 as tropas portuguesas cavaram em Namoto para se defen-derem das investidas alemãs vindas do outro lado do rio Rovuma; Abdel Carlos John conseguia abrir a golpes de catana um trilho entre o mato para chegar a uma pequena clareira na selva onde se encontra o túmulo de um soldado alemão cuja cúpula, garantia, foi derrubada por um ele-fante. E, em Negomano, Santos Salimo Mundogwan, 61 anos, preservava com evidente orgulho as memórias que o seu avô, o régulo Malunda, lhe transmitiu do terrível combate que opôs portugueses e alemães numa das orlas da sua aldeia. Santos Salimo Mundogwan recordava-se até do nome do major Teixeira Pinto, o comandante das tropas nacionais, que perdeu a vida nos primeiros tiros do cerco alemão.

O regresso a esses lugares e a recuperação dessas memórias aju-dam a  perceber o  destino dos 20 mil portugueses das quatro expe-dições que a  República enviou para Moçambique entre 1914 e  1917

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A guerra que P ortugal quis esquecer

– uma quinta partiu de Lisboa em 1918, mas limitou-se a assistir às feridas do final da guerra. Obrigados a  defender uma fronteira com 720 quilómetros, tendo de cruzar um território muito maior do que Portugal, num clima abrasador onde, no verão, a chuva potencia níveis de humidade acima dos 90%, os soldados foram sujeitos a uma mis-são impossível. No Niassa e no Cabo Delgado não havia estradas, nem pontes, nem facilidades logísticas, nem nada que se pudesse adaptar às necessidades de um exército europeu.

Para que as tropas se pudessem movimentar e sobreviver, milha-res de africanos foram recrutados para rasgar estradas. Sob a guarda de oficiais do corpo de engenharia, tiveram de enfrentar a selva, as feras e os mosquitos para rasgar pistas precárias num solo de areia vermelha fina. Em alguns lugares, foi necessário aniquilar a persistente oposição das tribos macondes que, com dor e sofrimento, se opuseram à pertur-bação das suas ancestrais formas de vida. Muito desse esforço estava condenado ao fracasso. No verão, a poeira entupia os motores dos ca-miões e no inverno o matope (a lama argilosa) abria-se em sulcos que deixavam as pistas intransitáveis. Uns 100 mil carregadores indígenas tiveram de ser recrutados para transportar armas, alimentos, água ou medicamentos aos postos militares perdidos no meio da selva ou nas margens do Rovuma.

Nem essa enorme reserva de mão de obra forçada a carregar far-dos de 25 a 30 quilos ao longo de centenas de quilómetros foi capaz de suprir as permanentes necessidades dos soldados portugueses ou dos milhares de soldados das companhias indígenas. Os relatos da guerra em África, seja dos ingleses, dos alemães ou dos belgas, é feito de per-manentes dificuldades em garantir comida e  de extremas privações materiais, mas o  que aconteceu às forças expedicionárias portugue-sas ultrapassou todas as experiências conhecidas. Os relatos de solda-dos famintos, doentes, sujos, esfarrapados e abandonados à sua sorte fazem parte da generalidade das memórias que chegaram aos nossos dias. Nesses cenários, a violência da guerra e o medo da morte eram apenas mais dois ingredientes de uma condição de vida miserável.

Não admira que os níveis de disciplina, de sentido de corpo, de patriotismo ou de combatividade fossem escassos. A começar pelos ofi-ciais, que, com raras exceções, gastavam mais energia a disputar cargos burocráticos o mais longe possível da zona de perigo do que a instruir e a cuidar dos seus soldados. Na hora de combater, a falta de moral emergia e para muitos a  fuga, ou a  rendição, era apenas um incidente na luta

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Nascido da série de reportagens homónima que valeu ao autor o Prémio Gazeta de Imprensa em 2015, A Guerra que Portugal quis Esquecer relata as memórias dos soldados, as denúncias de cobardia e de incompetência das chefias e a vergonha pelas derrotas, fazendo justiça a uma parte da História que o Estado Novo tentou apagar.

No final de 1917, as tropas portuguesas são um exército derrotado, acossado pela fome e pela sede, sem comando nem destino. Os alemães haviam sido expulsos pelos ingleses do seu território, a atual Tanzânia, e levaram a Primeira Grande Guerra em África para o solo do império colonial português. No seu avanço, desbarataram a frágil linha de resistência na Batalha de Negomano, em 25 de novembro de 1917, e acabaram de vez com os últimos sonhos de conquista e de glória que a República projetara para África. “Fui daqueles que entraram nesta guerra com os olhos mais cheios de belas utopias e o coração largo abrasado de fé e lusismo, esperançado de que a minha raça, como todas as raças, se salvaria sob a cinza deste braseiro”, escreveria anos mais tarde António de Cértima. Naqueles dias de dezembro de 1917, as “belas utopias” estavam destroçadas. Portugal sofrera a maior derrota militar em África desde Alcácer Quibir.

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Manuel Carvalho é jornalista e desenvolveu quase todo o seu percurso profissional na redação do Porto do jornal Público (excetuando um breve período entre 1999 e 2000, em que integrou o Diário Económico). Para além de ter pertencido ao grupo de jovens escolhido, em 1989, para formar a primeira redação do jornal, entre 2000 e 2013 ocupou as funções de subdiretor e de diretor adjunto. Foi ainda professor do ensino básico, durante dois anos.

Nascido em Alijó, Alto Douro, fez os seus estudos superiores no Porto, primeiro com um bacharelato na Escola Normal e mais tarde na Faculdade de Direito e na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se licenciou em História. Fez o curso de jornalismo do Cenjor e foi fellow do German Marshall Fund, nos Estados Unidos, e do International Studies and Training, no Japão. Venceu vários prémios de jornalismo, o último dos quais em 2015 – o Prémio Gazeta de Imprensa com a série de reportagens sobre a Primeira Guerra Mundial em Moçambique, que estão na base deste livro.

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