Introdução - static.fnac-static.com · Alguns analistas consideram os monarcas absolutos como...

21
5 Introdução Da natureza das ditaduras U ma ditadura pode ser definida como a forma de governo na qual o grosso dos poderes está concentrado num único indi- víduo ou num grupo restrito de indivíduos, sem que se recorra à consulta popular. É um conceito bastante polémico, havendo, no entanto, aceitação universal sobre o facto de ser uma forma de go- vernação autoritária, dependente em grande medida da coerção e da violência. A forma mais absolutista desse sistema político é conhe- cida como totalitarismo. Geralmente, não existe separação de poderes legislativo, executivo e judicial. Uma boa maneira de avaliar o caráter ditatorial de um go- vernante é observar se detém o(s) cargos(s) políticos de maior impor- tância e por quanto tempo: se for por um período de duas décadas ou mais, as probabilidades de ser um ditador são, no mínimo, elevadas. Outra maneira é saber qual a natureza do sistema de partidos políti- cos: se forem monopartidários, é provável que sejam ditatoriais. Alguns analistas consideram os monarcas absolutos como ditadores, não sendo o caso deste livro, no qual a designação é aplicada a todos os governantes sem título de monarca mas com os mesmos poderes. Seria mais correta a sua inclusão se se estivesse a falar de autocracias, termo muito mais abrangente, pois um autocrata pode ser monarca (não sendo o inverso recíproco), enquanto um ditador é sempre um autocrata. Simbólico e revelador é o facto de os antigos césares serem fonte de inspiração e admiração para os ditadores, como os fascistas, que adotaram a saudação romana e elogiavam os valores guerreiros dessa civilização, como a disciplina, o expansionismo e a crueldade para com o inimigo, bem como a repressão da oposição, seja política, seja sob a forma de meras ofensas pessoais.

Transcript of Introdução - static.fnac-static.com · Alguns analistas consideram os monarcas absolutos como...

5

Introdução

Da natureza das ditaduras

Uma ditadura pode ser definida como a forma de governo na qual o grosso dos poderes está concentrado num único indi-

víduo ou num grupo restrito de indivíduos, sem que se recorra à consulta popular. É um conceito bastante polémico, havendo, no entanto, aceitação universal sobre o facto de ser uma forma de go-vernação autoritária, dependente em grande medida da coerção e da violência. A forma mais absolutista desse sistema político é conhe-cida como totalitarismo.

Geralmente, não existe separação de poderes legislativo, executivo e judicial. Uma boa maneira de avaliar o caráter ditatorial de um go-vernante é observar se detém o(s) cargos(s) políticos de maior impor-tância e por quanto tempo: se for por um período de duas décadas ou mais, as probabilidades de ser um ditador são, no mínimo, elevadas. Outra maneira é saber qual a natureza do sistema de partidos políti-cos: se forem monopartidários, é provável que sejam ditatoriais.

Alguns analistas consideram os monarcas absolutos como ditadores, não sendo o caso deste livro, no qual a designação é aplicada a todos os governantes sem título de monarca mas com os mesmos poderes. Seria mais correta a sua inclusão se se estivesse a falar de autocracias, termo muito mais abrangente, pois um autocrata pode ser monarca (não sendo o inverso recíproco), enquanto um ditador é sempre um autocrata.

Simbólico e revelador é o facto de os antigos césares serem fonte de inspiração e admiração para os ditadores, como os fascistas, que adotaram a saudação romana e elogiavam os valores guerreiros dessa civilização, como a disciplina, o expansionismo e a crueldade para com o inimigo, bem como a repressão da oposição, seja política, seja sob a forma de meras ofensas pessoais.

6

PEDRO RABAÇAL

Na ausência de consulta da vontade popular, o autocrata precisa de legitimidade, e todas as justificações se baseiam no facto de ser designado como o homem mais adequado para gerir os assuntos pú-blicos da nação, e até os do foro privado dos cidadãos, sendo descrito como protetor dos oprimidos, das tradições ou dos interesses de Esta-do. Nunca existiu um ditador que não se apresentasse como o salvador da nação e como sendo dotado de qualidades superiores às do comum dos mortais.

O corolário dessa imagem heróica (originalmente, a palavra «he-rói» designava semideus...) é a implicação de todos os rivais, críticos e inimigos do governante serem personagens maléficas e falhas de in-telecto. Um preconceito universal comum a todos os seres humanos é presumirem a inferioridade moral e intelectual de quem possui ideias diferentes, mesmo nestes tempos de respeito pela opinião alheia: veja--se a maneira como religiosos e ateus se atacam uns aos outros e as disputas entre a direita e esquerda. Cada ditador é descrito pelos res-petivos partidários como bondoso, inteligente, corajoso, entre muitos outros tributos, pois corruptos ou lunáticos assumidos não costumam inspirar lealdade e obediência incondicionais. Como disse Maquiavel no seu Príncipe, o que importa para um príncipe (dirigente) não é ser virtuoso, é parecer que o é.

Outro atributo das ditaduras e das autocracias em geral é a ex-ploração dos vícios e defeitos da natureza humana, como forma de melhor dominar o povo e esmagar os adversários. Um dos métodos favoritos é o das conspirações secretas elaboradas por grupos secre-tos e por minorias étnicas/religiosas, habitualmente os judeus. No mundo ocidental, as teorias da conspiração são consideradas uma forma de rebeldia contra as elites e as convenções da sociedade, en-quanto nas ditaduras são o seu pilar. O nazismo, a última junta mili-tar argentina, vários governos comunistas europeus, quase todos os déspotas islâmicos e árabes seculares, culpam os males nacionais e internacionais em conjuras secretas judaicas, recorrendo a «provas» risíveis como os Protocolos dos Sábios de Sião, uma fraude exposta em 1921.

O escritor francês Maurice Joly, opositor de Napoleão III, ao ler os escritos do abade Barruel sobre a Revolução Francesa ser uma cons-piração maçónica, teve uma ideia: escreveu o livro Diálogos no Inferno entre Montesquieu e Maquiavel, onde tais personagens descrevem a for-ma como um homem pode tomar o poder e impor uma ditadura. Os serviços secretos russos adaptam o livro de Joly na forma da obra Protocolos dos Sábios de Sião, segundo a qual os males universais eram fruto de conjuras judaicas com o objetivo de dominar o Mundo, para assim o Governo czarista justificar a repressão política (os judeus nem

OS GRANDES DITADORES DA HISTÓRIA

7

sequer foram mencionados no Diálogo!). Por outras palavras, a obra de um defensor da democracia tornou-se uma «bíblia» de fascistas, esta-linistas e fundamentalistas islâmicos, utilizada para legitimar crimes e a supressão de liberdades e pensamento racional. Um dos melhores exemplos de como as palavras de um pensador podem ser distorcidas para defender interesses mesquinhos, sede de poder e ódios. O culto da paranoia é essencial na justificação da renúncia a liberdades a troco de maior segurança e da perseguição de movimentos políticos, etnias e grupos religiosos diferentes.

As ditaduras não são consideradas Estados de Direito, pois as leis costumam ser distorcidas ou ignoradas conforme a vontade dos pode-rosos, com frequência caprichosa. No entanto, é vulgar manterem-se as aparências, pela criação de fachadas democráticas, pela variedade de partidos políticos decorativos e por eleições fraudulentas. Alguns ditadores eleitos pelo povo (Hitler, François Duvalier), ou nomeados legalmente, alteram as leis de modo a suspender inúmeras liberdades básicas, aumentando e consolidando o seu poder pessoal, bem como o dos partidos aos quais pertencem, recorrendo a ameaças de guerra ou a conspirações inimigas como justificação. Nalguns casos, as leis são descaradamente ignoradas quando se praticam abusos de poder; noutros, existe a preocupação de legalizar torturas, execuções e roubos efetuados pelos governantes e pelas forças da ordem.

A violência é uma componente vital de todas as ditaduras, seja na forma da repressão da oposição política pacífica, seja na da resistência armada interna ou na da guerra contra outras nações. Os maiores mas-sacres e mortandades em tempos de paz, e boa parte das guerras, são obras de governos autoritários, criadores de alguns dos piores horrores da História humana. Um fenómeno histórico ainda por desmentir é a ausência de conflitos armados entre democracias: até agora as demo-cracias combateram ditaduras, nunca o fazendo entre si.

É agradável o facto de discursar sobre violência só gerar violência e de os métodos não violentos serem as melhores formas de combater tiranias. É verdade nalguns casos – mas não em todos. Quando um go-vernante recorre a mortandades em grande escala, só pode sofrer um destes destinos: a morte natural, sem nunca ter sido expulso do poder (François Duvalier, Mao Tsé-Tung, etc.), ou ser deposto por exérci-tos armados, quase sempre estrangeiros (Hitler, os Jovens Turcos, os Khmeres Vermelhos, Saddam Hussein, etc.). O pacifismo de Ghandi parece funcionar apenas com democracias ou autocracias não sangui-nárias, como os regimes comunistas durante a Perestroika. Quem disse que o sábio indiano não teria sucesso contra Hitler não sabia da missa a metade: os membros do grupo da Rosa Branca não recorreram a atos violentos; porém, foram guilhotinados.

8

PEDRO RABAÇAL

Aristóteles, no seu Tratado da Política, descreveu a tirania como sendo «a violação das leis e regras pré-estipuladas pela quebra da legi-timidade do poder», além de referir que os tiranos «obtêm o controlo social e político despótico pelo uso da força e da fraude. A intimida-ção, o terror e o desrespeito às liberdades civis estão entre os métodos usados para conquistar e manter o poder. A sucessão nesse estado de ilegalidade é sempre difícil». Esta descrição de Aristóteles (o qual não acreditava muito na democracia e preferia a utopia dos reis-filósofos) aplica-se na perfeição às ditaduras modernas.

Outro pilar essencial de uma ditadura é a ideologia, cuja diversi-dade é elevada: secular, ateia ou religiosa; direitista ou esquerdista; civil ou militar. O motivo é a necessidade de ter valores e princípios que justifiquem inúmeros atos criminosos, algo explorado com mestria pelos autocratas, podendo aqueles ser constituídos pelos seguintes aspetos: tradição, religião, revolução, nação.

Tradição: o despotismo é mais fácil de impor a uma sociedade sem tradições democráticas, e o estabelecimento de um regime de terror é favorecido por costumes violentos e defensores da prepotência para com os socialmente inferiores. Foi o caso da Rússia e da Roménia, aquando da ascensão do comunismo e do fascismo, respetivamente. O humanita-rismo é um conceito relativo: relembre-se que no passado a escravatura era tão aceitável, que ninguém defendia a sua abolição, além do facto de a pedofilia com pré-adolescentes ser comum na Grécia antiga.

Religião: além dos regimes integristas católicos ou islâmicos, tam-bém existem autocratas a invocar valores budistas, como na Birmânia, ou panteões politeístas, como no Japão. Em qualquer caso, a vontade divina exige crueldade para com os inimigos do Estado ou do dirigente supremo, e obediência para com este. O que não evitou a utilização de sentimentos religiosos na defesa dos direitos humanos e na luta contra as tiranias.

Revolução: foi em nome de uma revolução que foram cometidos vários horrores pelos franceses dos finais do século XVIII, pelos comu-nistas, pelos nazis e pelo Kuomintang, todos em nome da criação de uma sociedade nova e do fim de «tradições retrógradas».

Nação: engrandecer a pátria, salvá-la dos inimigos externos e in-ternos, convertê-la num império poderoso – eis as motivações capazes de inspirar patriotas a servirem tiranos, mesmo sabendo que estes o são, e a morrerem por eles.

Não se deve exagerar a influência dos ideais nas práticas crimino-sas e na subserviência a tiranias, sabendo-se como inúmeras pessoas só seguem valores quando lhes convém: inúmeros fascistas e comunistas

OS GRANDES DITADORES DA HISTÓRIA

9

afirmaram-se «democratas desde sempre» com a queda dos regimes que apoiavam, tendo ocorrido o inverso com frequência. Mesmo assim, um facto desagradável é o de muitas pessoas acreditarem sinceramen-te nos valores que defendem, não importa o quão injustos ou crimi-nosos sejam. Quantos torturadores, violadores e homicidas acreditam na justiça das suas ações, em nome da vontade divina, da revolução ou da mãe-pátria, e na «degeneração moral» das vítimas? Incontáveis intelectuais e filósofos defenderam algumas das piores ditaduras. Não existe explicação para eventos irracionais como o Holocausto ou a co-letivização soviética, a menos que os responsáveis acreditassem mes-mo no mito de todos os judeus visarem dominar o mundo e na superio-ridade dos dogmas socialistas. Um aspeto insólito do fanatismo são os casos em que os hipócritas corruptos podem ser preferíveis aos crentes sinceros: quando se ordena o extermínio total de uma comunidade, um soldado leal matará todos os que puder, mas um corrupto poderá salvar as suas vidas – a troco de subornos generosos. A hipocrisia é um mal tão abominado quanto praticado, mas a coerência e a convicção excessivas podem ser piores.

Muitos pregadores do politicamente correto adoram simplificar as coisas, classificando, por exemplo, os defensores da pena de morte e os críticos da homossexualidade como psicopatas fascistas e hipócri-tas, mas Churchill e Charles de Gaulle partilhavam essas ideias, hoje polémicas, e fizeram mais pela democracia do que muitos. Por outro lado, diversos progressistas recusam-se a condenar as brutalidades is-lamistas ou comunistas contra mulheres e homossexuais, preferindo justificá-las. Quantos amaldiçoam a sociedade ocidental, mas conti-nuam a desfrutar dos seus prazeres e liberdades? Não se conhecem muitos casos de críticos dos Bush ou de Charles de Gaulle a emigrarem para o Irão dos aiatolas ou para a Coreia do Norte…

O resultado dos conflitos nacionais e internacionais levou muitos democratas a apoiarem déspotas. Inúmeros políticos de direita de-ram o seu apoio a ditadores anticomunistas: Charles de Gaulle visitou amigavelmente Francisco Franco sem ter a desculpa das obrigações diplomáticas, pois já se tinha demitido da presidência da República francesa. Washington forneceu dinheiro e armas a vários caudilhos da América Latina, chegando até a financiar a Escola das Américas, cujos cursos de técnicas de contraguerrilha incluíam torturas, algo de que Ronald Reagan, Nixon e Kissinger (não) se deviam orgulhar.

Por outro lado, incontáveis esquerdistas apoiaram, ou mesmo negaram, os crimes de regimes comunistas, havendo vários talentos das artes e das letras, como o comunista Pablo Picasso, a defender monstros como Estaline. Danielle Mitterrand elogiou publicamente Mao Tsé-Tung, alegando que este não detinha mais poder do que o

10

PEDRO RABAÇAL

presidente dos EUA (nenhum deles ordenou o assassínio ou a tortura pública dos seus ministros).

Até os ditadores de direita beneficiavam de apologistas respeita-dos. O comunismo saiu de moda, sendo substituído pelo integrismo islâmico como causa totalitária a ser defendida em nome da crítica e do ódio à cultura ocidental. Repare-se no facto de vários ditadores do Terceiro Mundo afirmarem que as suas culturas nacionais possuem conceções diferentes de direitos humanos. Ou seja, são eles que deci-dem o que é liberdade ou crime, sempre que lhes convém.

De resto, não se deve esquecer os casos de partidos de extrema- -direita que obtêm bons resultados em eleições democráticas, espe-cialmente durante crises económicas, como a Frente Nacional de Jean- -Marie Le Pen, autor desta infame afirmação: «As câmaras de gás são um pormenor da Segunda Guerra Mundial». A extrema-esquerda é menos associada a ameaças antidemocráticas, mas o que pensar de partidos marxistas com líderes a elogiarem publicamente tiranos como Fidel Castro e a negarem os crimes de Estaline? Numa entrevista Odete Santos, dirigente histórica do PCP, descreveu as atrocidades de Esta-line como «erros» (como se tivessem sido acidentais...). Na votação do Parlamento ucraniano, em 2006, no sentido de declarar a Grande Fome de 1933 como um genocídio, o PC ucraniano foi o único a votar contra.

Embora muitos teóricos da conspiração antigovernamentais se autoproclamem «mentes livres», as suas fileiras incluem grupos es-talinistas, de extrema-direita e extremistas islâmicos. Alguns dos que consideram os governos ocidentais como «falsas» democracias possuem uma interessante tendência para ignorar, justificar ou até negar as violações dos direitos humanos por parte de «verdadeiras» ditaduras.

É óbvia a contribuição das afinidades ideológicas, como as de es-querda ou as de direita, a dificuldade de alguns muçulmanos devotos para criticar os crimes de regimes islamistas ou de inimigos do racismo para condenar antigos combatentes antirracistas convertidos em tira-nos demagogos, como Mugabe, para não mencionar que quase todas as nações do Mundo foram governadas por ditaduras ao longo dos úl-timos cem anos, proliferando os seus antigos colaboradores, bem como indivíduos receosos dos «podres» familiares.

Outro motivo preocupante é o descrédito da democracia. A corrup-ção e os abusos de poder reproduzem-se nos governos eleitos, toman-do as elites, muitas vezes, decisões que afetam o cidadão comum, sem que este seja consultado. Esse descrédito aumenta em tempos de crise, como na Grande Depressão, causa do crescimento do comunismo e do fascismo.

OS GRANDES DITADORES DA HISTÓRIA

11

Na atual crise económica, as medidas de austeridade promulga-das por vários governos, segundo as orientações do FMI, arruinaram a Segurança Social, aumentaram a pobreza e até a miséria gerais, redu-zindo ou abolindo direitos laborais, conquistados à custa de enormes dificuldades e de sangue literalmente derramado. Como consequência de tantas desilusões, alguns lamentam a inexistência de um governo «forte», preferindo possuir a despensa e o frigorífico cheios a liberda-des ilusórias e em desvanecimento.

Um pensamento falacioso, pois até uma ditadura pode sofrer de problemas económicos, como é prova disso a Primavera Árabe. Esta teve início na Tunísia devido aos protestos contra a subida do custo de vida e o desemprego, sendo a fagulha a auto-imolação de um jo-vem desesperado, impedido de vender legumes sem licença. De resto, ocorreram simultaneamente inúmeras manifestações globais contra a crise, em lugares tão díspares como o Brasil, Londres, Nova Iorque e a Turquia, o que não parece ser coincidência. Das várias nações onde eclodiram manifestações, só a Líbia e a Síria é que entraram em guer-ras civis, e, como os governos ocidentais apoiaram as respetivas fações rebeldes, houve acusações de que a Primavera Árabe era uma conspi-ração da «CIA-sionista» para dominar o mundo árabe.

Claro que houve ditadores responsáveis pelo desenvolvimento eco-nómico dos seus países, sendo utilizados como exemplos das vanta-gens de ditaduras fortes e eficientes. Contudo, os seguintes exemplos são falácias:

• É vulgar tais sociedades possuírem elites prósperas e enormes massas de desfavorecidos. Numa autocracia é bastante menor a preocupação com os mais desprotegidos, pois não há votos a perder;

• Se os métodos violentos trouxeram prosperidade e crescimento económico, imagine-se como é que a situação se teria desenvol-vido se as suas tiranias não tivessem levado à morte, ao exílio ou à prisão de incontáveis trabalhadores e cérebros, como pode ser confirmado pela prosperidade do norte da Europa, bastante superior à da quase totalidade de sociedades não democráticas;

• Mesmo quando um ditador desenvolve o seu país, pode arrui-nar os feitos realizados por meio de projetos megalómanos e destrutivos, como as guerras de Hitler e a Revolução Cultural de Mao. Um importante aspeto dos poderosos é o facto de se tornarem excessivamente autoconfiantes, ao ponto de acredi-tarem na ideia de que podem alcançar todas as suas ambições, não importa quão absurdas possam ser. O facto de estarem

12

PEDRO RABAÇAL

rodeados de bajuladores e de perseguirem quem ousa criticá- -los cria uma carapaça contra todas as análises sérias e honestas. Como bem disse Lord Acton, em 1887: «O poder tende a cor-romper e o poder absoluto tende a corromper absolutamente»;

• Os grandes feitos dos ditadores podem ser ilusórios ou exage-rados, ou seja, tão falsos como o culto das respetivas perso-nalidades. Como se verá, inúmeros autocratas gabaram-se de elevados sucessos – que só existem no papel. As sociedades comunistas gabaram-se durante gerações de terem erradicado as desigualdades sociais, como os sem-abrigo e a prostituição, considerando-os inerentes às sociedades capitalistas. Infeliz-mente, sabe-se hoje como tais males abundavam nos «paraísos» comunistas. Compare-se isso com o Estado Novo português, cuja imprensa ocultou escândalos sexuais e a mediocridade de diversos serviços públicos, entre outros problemas. E os alega-dos «feitos» do sistema de saúde de Kadafi? Mas os factos nunca devem prejudicar uma boa história.

Contudo, os tiranos são produtos das suas épocas, como prova o facto de a sua morte ou a sua queda não implicarem automaticamente paz e liberdade. Muitos subiram ao poder em sociedades violentas e injustas, prometendo paz e comida ao povo, além de poder e impuni-dade a inúmeros corruptos e rufias. Assim, o fim de um ditador não é o dos valores por ele defendidos, pois podem permanecer antigos partidários na luta pela retoma do poder, às vezes à custa de guerras civis ou de terrorismo. A deposição de um tirano é um grande passo, contudo, o primeiro de muitos numa longa caminhada para o alcance da paz e da liberdade.

Os diversos criminosos adiante descritos comprovam como a cruel-dade é um vício inerente à natureza humana. Anne Frank escreveu no seu diário que, «no fundo, todas as pessoas são boas», uma crença ingénua e normal numa menina de 13 anos escondida num sótão e ainda não deportada para um campo de concentração. Muitas perso-nagens aqui descritas desmentem-na, podendo ser incluídos os casos de Khomeini e Franco, convictos da «justiça» dos seus atos até ao fim, tendo ordenado execuções meses antes de morrerem de idade avan-çada. Felizmente, existem inúmeros casos de pessoas corajosas que, em nome de ideais nobres (ou menos maus), combateram governos e ideais autoritários, frequentemente à custa das vidas ou das carreiras, sendo pertencentes a todo o tipo de povos, religiões, idades e épocas.

Outro objetivo visado é a demonstração de um fenómeno difícil de admitir, o do apoio disseminado aos governos autoritários, não apenas das classes políticas e empresariais, mas também dos mais «humildes»,

OS GRANDES DITADORES DA HISTÓRIA

13

dos supostos defensores da liberdade e dos oprimidos. A precoce Anne Frank foi capaz de raciocínios superiores aos de numerosos adultos, incluindo intelectuais: «Não acredito na ideia de que a guerra seja obra de políticos e capitalistas. Ah, não, o homem comum é igualmente culpado; caso contrário, os povos e as nações já se teriam rebelado há muito tempo! Há uma necessidade destrutiva nas pessoas, a necessi-dade de demonstrar fúria, de assassinar e matar. E até que toda a hu-manidade, sem exceção, passe por uma metamorfose, as guerras conti-nuarão a ser declaradas, e tudo o que foi cuidadosamente construído, cultivado e criado será cortado e destruído, só para começar outra vez!» Segundo Hitler, a chegada da paz no Mundo ocorrerá somente quando o último ser humano matar o penúltimo.

O objetivo deste livro é demonstrar a podridão e a corrupção as-sociadas às ditaduras, para que se perceba como estas representam uma péssima forma de governo, confirmando as palavras atribuídas a Churchill: «A democracia é a pior forma de governo existente. Com excepção de todas as outras.» Esta obra, mais do que declarar verdades ou instituir conclusões finais, pretende abrir o gosto e o interesse do público pelos factos históricos e pelos detalhes menos conhecidos das ditaduras. Ao ler, o leitor, poderá fazer a sua análise do que aqui é exposto e chegar ao seu próprio discernimento a respeito dos grandes ditadores da história e de tudo o que aqui é relatado.

O pastor luterano Martin Niemöller percebeu, devido ao nazismo, como a passividade perante os abusos dos poderosos os pode incenti-var. Modificou um poema do soviético Maiakovsky, vítima do comu-nismo, sobre as consequências da indiferença relativa aos problemas alheios: «Quando vieram prender os judeus, não protestei, porque não era judeu. Quando vieram prender os sindicalistas, não protestei, por-que não era sindicalista. Quando vieram prender os socialistas, não protestei, porque não era socialista. Quando me vieram prender a mim, não havia ninguém livre para protestar por minha causa».

15

I

PIONEIROS

U sula V

o primeiro Ditador moderno

No ano de 138 a. C., nasceu um dos mais importantes estadistas da Roma antiga: Lúcio Cornélio Sula, chamado de Sila pelos helenos,

hoje ignorado pelo grande público, e, de certo modo, merecidamente. Esclarecedor o facto de os seus compatriotas o representarem em bus-tos com cara de poucos amigos, fosse jovem ou idoso.

Viveu numa época em que as tradições e os costumes antigos, ou mos maiorum («costumes dos antepassados»), estavam a ser questio-nados, pois a prosperidade económica da nação, à medida que se ex-pandia por meio de conquistas, tornou os romanos menos dispostos a viverem uma vida de austeridade e autossacrifício pela pátria. De resto, a Constituição era adequada a uma cidade-estado ou a um esta-do pequeno, e não a um território extenso. Por exemplo, a maioria dos povos itálicos subjugados pelos romanos aceitava o domínio imposto, devido aos benefícios daí resultantes, como a esperança de receberem a cidadania, o que implicava mais direitos, mas o facto de apenas uma minoria a obter gerava rancor generalizado. Oficialmente democráti-co, o Governo era, na realidade, uma oligarquia dominada pelo patri-ciato (nobreza), apesar dos direitos concedidos à plebe. E cada cargo político só tinha um ano de mandato, o que limitava projetos a longo prazo. A crescente tensão socioeconómica iria dar início às primeiras guerras civis.

Sula era membro de uma família sem fortuna, da pequena nobreza, talvez devido à expulsão de um antepassado do Senado, por maus costumes, mais precisamente por possuir uma fortuna superior à le-galmente permitida a um senador, o que era sinal de corrupção. Na sua juventude, não vivia de acordo com os mos maiorum, mas sim com os caprichos e gostos da maioria dos jovens da espécie humana, dedi-cando-se aos prazeres do vinho e do sexo, convivendo com atores de

16

PEDRO RABAÇAL

teatro, histriões, jogadores e cantores, em suma, a «ralé» da sociedade, boa para entreter, mas não para conviver com membros das classes superiores, como ele.

Não que estivesse a desperdiçar a vida, pois, apesar das manchas vermelhas na face, os seus belos cabelos loiros e olhos azuis permi-tiram-lhe seduzir Nicópolis, uma plebeia solteira e rica, que lhe dei-xou toda a sua fortuna e todos os seus bens, ao morrer. A madrasta amava-o como a um filho, tendo-lhe deixado também uma herança generosa.

Sula enveredou pela carreira militar, essencial para o sucesso elei-toral, tornando-se o lugar-tenente de Caio Mário, o maior génio militar romano da época, algo de família (era tio de Júlio César). Quando o Senado declarou guerra ao rei Jugurta, da Numídia, no Norte de África, Mário foi encarregado de o combater, e com sucesso, tendo o apoio de Sula, que capturou o monarca númida. Contudo, a inveja de Mário e a ambição de Sula tornaram-nos rivais.

Mário não foi o único crítico do ambicioso loiro. Numa ocasião, Sula gabava-se dos seus feitos na Numídia, quando um patrício re-torquiu: «Como podes ser um homem honesto, se te tornaste tão rico depois da morte de um pai que não te deixou nada?» Depois de ser eleito pretor, em parte graças a dinheiro bem gasto, discutiu com o jovem Júlio César, ameaçando-o de utilizar a autoridade do seu cargo contra ele. Pouco assustado, o sobrinho de Mário sorriu e respondeu sarcasticamente: «Podes chamá-lo teu, pois compraste-o».

Numa ocasião, foi negociar a paz com o rei dos partos, cuja comi-tiva incluía um caldeu, alcunha dada aos astrólogos, em homenagem ao povo que produziu os mais respeitados membros dessa profissão. O caldeu observou atentamente a face e os movimentos de Sula e pre-viu ser «impossível ele não se tornar no maior dos homens, sendo uma maravilha ter-se abstido de ser o líder de todos» (muitas previsões do futuro soam a bajulação). Ao saber que os videntes previam a che-gada de um homem de grandes qualidades e de aspeto invulgar que seria senhor e salvador de Roma, Sula declarou ser ele próprio esse homem, invocando como evidência o seu cabelo loiro, incomum entre os romanos desse tempo, e os talentos demonstrados. Numa ocasião, ouviu-se o barulho de uma trombeta, cuja origem era desconhecida, e os supersticiosos logo lhe atribuíram uma explicação sobrenatural. Era o culminar de uma profecia, afirmaram os etruscos, cuja mitologia di-vidia a história da Humanidade em oito eras, e em que a passagem de uma para a seguinte seria marcada por um sinal dos céus. Cada novo período seria caraterizado pelas mudanças dos costumes e tradições dos homens e, dado a sociedade romana estar a passar por esse tipo de mudanças, era natural tal interpretação do som misterioso.

OS GRANDES DITADORES DA HISTÓRIA

17

As rivalidades políticas ainda não eram prioritárias relativamente ao patriotismo, pelo que Sula e Mário continuaram a colaborar nas lutas contra inimigos armados do Estado. As invasões de duas tribos «bárbaras» do Norte, conhecidas como cimbros e teutões, em 102 a. C., colocaram a Urbe em perigo, tendo sido derrotadas, graças a Mário, a quem foi dado o título de Terceiro Fundador de Roma (os outros foram os lendários Rómulo e Remo). Exterminados e escravizados na sua maioria pelos vencedores, os cimbros e teutões sempre foram considerados germanos; porém, hoje defende-se que podiam ser cel-tas, sendo um dos indícios a semelhança entre as palavras «teutão» e «Tutatis» (deus celta). É irónico que «teutónico» seja hoje sinónimo de «alemão».

No ano 91 a. C., eclodiu a Guerra Social, assim chamada por ter sido uma revolta dos socii (aliados), os povos itálicos que haviam sido conquistados pelos romanos e que queriam ser cidadãos romanos de pleno direito, como atrás foi referido. Foram derrotados definitiva-mente em 89 a. C., mas só nas batalhas, pois a satisfação das suas exi-gências contribuiu para o fim da guerra, permitindo qua Roma adqui-risse uma preciosa fonte de cidadãos de grande utilidade nos séculos futuros. De notar que Sula dava ordens um tanto invulgares: ao saber da forma como um certo oficial Albino fora morto pelos seus legio-nários, avisou-os de que daí em diante teriam de lutar melhor e dar provas de bravura, para compensar o mal feito (senão…).

As necessidades militares forçaram o povo romano a eleger Mário para o cargo de cônsul, por seis mandatos, apesar de a Constituição determinar somente dois. Contudo, Mário era melhor estrategista na guerra do que na política, tendo até perdido o apoio da plebe, o qual conseguiria recuperar devido aos seus conflitos com a aristocracia, pois era um alto dirigente do Partido (fação) Popular. Mas o Partido Senatorial (fação aristocrata) triunfaria, graças às seis legiões de Sula, que se tornaria no primeiro de uma longa lista de comandantes roma-nos a ocupar Roma com as suas tropas. Mário converteu-se num fugiti-vo, com a cabeça a prémio, e alguns dos seus partidários, acusados de corrupção e outros crimes, foram assassinados. Um deles, Saturnino, foi morto por indivíduos que, de cima de telhados, lhe atiraram telhas. Outro, o tribuno da plebe Sulpício, estava envolvido em vários casos de corrupção, sendo, segundo Plutarco, um homem «cruel, um rapaz sem escrúpulos nem vergonha» e «um homem não superado por nin-guém em vilanias». Denunciado pelo seu escravo, Sulpício foi supli-ciado, pelo assassínio do filho de Cneu Pompeio, entre outros crimes. Sula recompensou o escravo com a liberdade, e castigou-o por ter traído o seu amo, ordenando que o atirassem da Rocha Tarpeia, de onde se empurravam os traidores. Sula creu ter ganho a partida.

18

PEDRO RABAÇAL

Nessa altura, travavam-se as Guerras Mitridáticas, entre Roma e o rei Mitridates do Ponto, poliglota e estratega de consideráveis ta-lentos e brutalidade. Mitridates, monarca helenístico que conquistou os reinos da Capadócia e da Bitínia, assim como boa parte da Grécia, sabia ser cruel: massacrou dezenas de milhares de romanos e aliados itálicos (socii) e convidou para um banquete dezenas de chefes gálatas (um povo celta da Ásia Menor), para melhor os assassinar. Famílias de conspiradores foram supliciadas.

Sula invadiu a Grécia e financiou as suas operações através de mé-todos sacrílegos, como a confiscar as riquezas dos santuários gregos, incluindo o mais respeitado de todos, o Oráculo de Delfos. O seu agen-te, Cafis da Fócia, informou-o de que, quando ele ia tocar nas ofer-tas sagradas, ouviu o som de uma harpa de proveniência misteriosa, talvez um artifício dos locais (ou dele próprio, por recear os deuses). Sula respondeu, quiçá com um sorriso cínico: a música era uma mani-festação da alegria dos deuses, e não da sua fúria, logo deveria aceitar aquilo que eles lhe tinham oferecido graciosamente!

Atenas foi o primeiro alvo importante de Sula. Essa prestigiosa cida-de já não era a democracia por tantos admirada, sendo governada pelo tirano Aristion. Os gregos designavam de «tiranos» os seus dirigentes autoritários que tomavam o poder à força (na prática, ditadores), e cuja crueldade deu a tal palavra o significado hoje utilizado. O cerco privou os atenienses de alimento, ao ponto de comerem botas e sacos de couro cozidos, levando uma delegação de notáveis a apelar a Aristion para que negociasse a paz com Sula. Sendo um tirano nos dois sentidos do termo, o bem alimentado Aristion dispersou a delegação por meio de uma chuva de flechas dos seus arqueiros. Enfim, um grupo de embaixadores foi enviado para negociar a paz, baseando-se a sua argumentação em relembrar inú-meras glórias e respeito dadas à Grécia pela cidade, ao que Sula respon-deu: «Meus bons amigos, podem guardar os vossos discursos e ir embora. Fui enviado pelos romanos a Atenas, não para receber lições, mas para reduzir rebeldes à obediência». O tirano de Atenas respondeu insultando Sula e a respetiva esposa, Metela, a partir das muralhas da sua cidade.

Atenas caiu no dia 1 de março, ou calendas de março, como os romanos diziam, naquele que era também era o dia da Lua Nova de Antesterion, no qual os gregos recordavam festivamente a versão helénica do Dilúvio. As hordas de legionários massacravam todos os habitantes que encontravam, levando muitos outros ao suicídio, na es-perança de um fim mais misericordioso. Dois aliados atenienses pros-traram-se sob os pés de Sula, implorando-lhe que poupasse a cidade. Com uma misericórdia a raiar a condescendência, Sula declarou: «Eu perdoo muitos como favor a poucos, os vivos pelos mortos». Com a sua sede de sangue saciada, Sula podia dar-se ao luxo do perdão.

OS GRANDES DITADORES DA HISTÓRIA

19

Outras cidades foram destruídas: Halea, Larimna e Antedon. Ambas pertenciam à Beócia, uma região grega cujos habitantes tinham re-putação de rústicos e incultos – o que tornou «beócio» num insulto, ainda hoje utilizado ‒, tendo sido, no entanto, tratados barbaramente por uma das mais avançadas civilizações europeias de então. Mitrida-tes seria posteriormente forçado a abandonar as suas conquistas em territórios helénicos e a pagar uma indemnização avultada, tendo os habitantes locais sido obrigados a agradecer aos «salvadores» roma-nos, com pesados impostos. Quanto a Aristion, foi executado por enve-nenamento, à maneira ateniense, talvez com cicuta, como aconteceu gerações antes com o filósofo Sócrates.

Chegaram notícias desagradáveis da capital: Mário regressou com um exército e ocupou a cidade, em 86 a. C., impondo a sua sétima no-meação como cônsul. Estava doente e sofria de alucinações, pelo que ordenou um massacre indiscriminado dos seus rivais e das respetivas famílias, cuja duração foi de cinco dias e cinco noites, englobando muitos transeuntes inocentes. Um exército de 5000 libertos foi en-carregado dessa tarefa criminosa, tendo, inclusivamente, abusado de mulheres e crianças.

Caio Mário morreu após longos 17 dias de poder, e foi substituí-do pelos seus partidários Carbão, Cina e Mário, o Jovem, seu filho. Um dos seus melhores oficiais, o zarolho Quinto Sertório, recorreu a tropas gaulesas (aliados ou mercenários) para exterminar os libertos que executaram o massacre. Se houve alegria e esperanças, foram de curta duração para os patrícios, graças à continuação dos assassinatos políticos.

Sula regressou a Itália com um numeroso exército, para fazer o Partido Senatorial regressar ao poder. O resultado foi a primeira de inúmeras guerras civis entre romanos, com dois anos de duração, na qual pereceram 50 000 indivíduos. Porém, os antigos adoravam elabo-rar estimativas exageradas: por exemplo, Sula relatou «modestamente» nas suas memórias que só perdera 23 homens numa vitória importante, tendo morto 20 000 inimigos e capturado 8000...

Durante o conflito, Carbão afirmou que o peito de Sula continha uma raposa e um leão, sendo a primeira mais digna de temor. Ou seja, Sula era feroz como um leão e astuto como uma raposa, e a sua astúcia era a sua maior arma. Sula carregava no peito uma imagem dourada de Apolo, proveniente de Delfos, à qual dizia «Ó Apolo Pítio, que em muitas batalhas concedestes honra e grandeza ao afortunado Cornélio Sula, ireis abandoná-lo agora, trazendo-o aos portões deste país, para perecer vergonhosamente com os seus compatriotas?» Apo-lo foi clemente para com esse militar desprovido de tal virtude, como mostrou ao vencer a guerra civil, em 82 a. C., contra o Partido Popular

20

PEDRO RABAÇAL

desprovido de estrategistas de alto nível, à semelhança do Partido Se-natorial, em particular Pompeio e o próprio Sula. Mário, o Jovem, her-dou os genes paternos, mas não as qualidades de liderança.

Cerca de 6000 prisioneiros de guerra foram reunidos no circo, lu-gar da morte de tantos gladiadores e condenados às feras. A escolha do circo foi adequada e mórbida, como os cativos descobriram ao se-rem passados a fio de espada pelos legionários de Sula. Enquanto este discursava no Senado, no Templo de Belona, os gritos dos massacra-dos ouviram-se com clareza, para espanto e terror dos senadores. Sula limitou-se a continuar o discurso e a ordenar que o ouvissem a ele, e não os sons do exterior.

Para muitos, a crueldade do vencedor da guerra civil foi um cho-que, em especial para aqueles que esperavam o fim da tirania dos su-cessores de Mário. Sula tinha a reputação de patriota, alegre e fácil de comover até às lágrimas, levando muitos a perguntarem-se se o poder o tinha corrompido ou se já seria assim desde sempre. Dion Cássio, outro historiador grego, defendeu a última hipótese com um cinismo e uma simplicidade louváveis. Segundo ele, Sula «cometeu atos que censurou nos outros quando ainda era fraco, e muitos outros mais ul-trajantes. Sem dúvida, sempre desejou agir dessa maneira, mas só se revelou no dia do seu poder. Esse facto produziu uma forte convicção em algumas mentes de que a adversidade tem muito que ver com vir-tude». E Sula foi condenado publicamente por tratar o seu povo como se fosse uma nação estrangeira conquistada...

Cornélio Sula ressuscitou uma antiga magistratura, não praticada em Roma havia mais de um século e duas décadas: a ditadura. Quan-do a cidade estava em momentos de crise militar, era necessária uma autoridade forte e única, levando à suspensão de todos os cargos mais importantes e à nomeação de um governante dotado de poderes espe-ciais, o ditador, com um mandato de seis meses. Acontece que a dita-dura não era mais como a Constituição determinava: seria por quanto tempo o detentor do cargo quisesse e este poderia perseguir a oposição política. Sula tornou-se oficialmente no primeiro ditador no sentido moderno do termo.

As primeiras leis promulgadas foram as das impiedosas proscri-ções: os proscritos eram inimigos públicos cujo assassínio era legal e até obrigatório, para não mencionar o facto de se ser recompensado com dois talentos por cabeça (literalmente, pois as cabeças decepadas dos mortos eram provas de que a missão fora cumprida). Quem dava abrigo ou outra forma de apoio a um proscrito tornar-se-ia, por sua vez, num proscrito. Laços de parentesco, amor e amizade não eram justificação. Os seus bens seriam confiscados pelo Estado, necessitado de dinheiro depois de tantas guerras e de tantos bens vendidos em

OS GRANDES DITADORES DA HISTÓRIA

21

hasta pública. Previsivelmente, as listas exibidas ao público com os nomes dos proscritos incluíam numerosos ricos. Quinto Aurélio, uma personagem abastada, deslocou-se ao fórum para ler a lista e nela en-controu, horrorizado, o seu próprio nome: «Ai de mim, a minha quinta de Alba perdeu-me!» Seria rapidamente eliminado.

Mário, o Jovem, já à beira da captura, preferiu o suicídio, e Carbão foi vítima de verdugos. O patrício Lúcio Catilina pediu ao ditador que colocasse o nome do seu próprio irmão na lista das proscrições, pedido que seria atendido. Catilina também entregou a cabeça de um certo Marco Mário a Sula, e lavou as suas mãos manchadas na água benta dedicada a Apolo. As cabeças dos proscritos eram exibidas ao público. O terror afetou todas as cidades de Itália. Um caçador de proscritos era o abastado e ganancioso Marco Licínio Crasso, criticado pelo próprio Sula, devido aos seus exageros no terror. Era famoso pelos métodos sujos empregados para enriquecer, em especial pela equipa privada de bombeiros, à qual ordenava que apagasse edifícios em chamas – desde que os seus proprietários lhos vendessem previamente a baixo preço, é claro!

A personalidade instável de Cornélio Sula era adequada a um tira-no: podia castigar pequenos delitos com a tortura e perdoar grandes danos, embora fosse, no geral, violento e vingativo. Autoritário, como não poderia deixar de ser, Sula ordenou ao seu melhor comandante, o já referido Cneu Pompeio, que se divorciasse da esposa, para con-trair matrimónio com a sua enteada Emília. Esta já era casada, mas o padrasto forçou-a a divorciar-se do marido para ficar disponível para Pompeio. Morreria de parto.

Sentindo-se orgulhoso dos seus triunfos, e crente convicto de que fora abençoado por Fortuna, a deusa da sorte, Sula ordenou ao Senado a concessão do título de Felix (feliz), e passou a denominar-se Epafro-dito («favorito de Afodite», a deusa grega da luxúria), nas mensagens destinadas aos gregos. Quando a esposa, Metela, deu à luz dois falsos gémeos, um menino e uma menina, o pai chamou-lhes respetivamente Fausto e Fausta, nomes considerados auspiciosos e associados à boa sorte. A morte de Metela, por doença, não foi uma tragédia, a julgar pelo rápido consolo obtido da jovem admiradora Valéria, que conhe-ceu nas bancas do circo. Apesar de estar próximo dos 60 anos, o ex- -loiro Sula casou-se com Valéria e, incorrigível, continuou a dar-se com gente de baixo nível, incluindo o seu amante de longa data Me-tróbio, embora essa relação fosse condenada pela moral tradicional. Aliás, o ditador nem respeitava sequer as suas próprias leis contra festas demasiado dispendiosas.

As lutas entre Sula e os marianistas não eram meras disputas pelo poder. Eram também lutas entre classes sociais, mais precisamente

22

PEDRO RABAÇAL

entre a nobreza, que não queria perder os seus privilégios, e o povo, sequioso de mais direitos e maior participação na governação, como a Guerra Social tinha mostrado. As reformas constitucionais de Sula foram uma prova disso: o Senado podia vetar as decisões de todos os outros órgãos políticos, e o seu número de membros foi duplicado para 600, tendo sido os «tribunos da plebe» desprovidos de qualquer poder efetivo (a sua função era defender os interesses da plebe). O poder do Senado aumentou e o Estado tornou-se ainda mais elitista.

Sula anunciou, em 79 a. C., uma decisão ainda hoje inaudita e inex-plicada: abdicou do poder máximo e voltou a ser um cidadão privado! Eis algo em que não foi o pioneiro na história dos ditadores, pois estes nunca abdicam voluntariamente. É possível que tal se devesse a pro-blemas de saúde, dado Cornélio Sula, em 78 a. C., vir a morrer de doença cujos horríveis sintomas incluíam vermes na carne putrefacta e o leva-vam a banhar-se diariamente, vezes sem conta. Mas, mesmo a morrer, o antigo estadista não deixou de ser influente e cruel. O magistrado Granio almejava o atraso do pagamento de uma dívida para uma data na qual esperava que Sula já tivesse falecido, na esperança de que fos-se cancelada pela sua morte. Quando Sula tomou conhecimento disso, os seus sabujos deslocaram-se à casa dele e estrangularam-no. A quinta esposa, Valéria, estava grávida quando enviuvou, logo a filha recebeu o nome de Póstuma, como todas as romanas nascidas após a morte do pai.

As reformas de Sula foram rapidamente canceladas, pois só au-mentaram a insatisfação generalizada e eram fonte de mais conflitos. Sertório, o oficial zarolho, refugiou-se na Hispânia, onde se aliou aos lusitanos na luta contra o Partido Senatorial, até ser assassinado. Crasso tornou-se num herói nacional por meio de atos que o converteram num dos mais detestáveis vilões da História: com a ajuda de Pompeio, exterminou o exército de escravos revoltados sob o comando do trácio Espártaco e crucificou os 6000 sobreviventes capturados. Seria captu-rado e morto pelos partos, graças a erros estratégicos que originaram a expressão «erro crasso». Um relato ou uma lenda descreve como o obrigaram a ingerir ouro derretido, para horror de muitos romanos e de poucos escravos. A ganância pode ter um sabor desagradável.

E Mitridates? Derrotado por Pompeio, ordenou a um dos seus sol-dados celtas que o matasse, e, se bem o disse, melhor o outro o fez. Uma versão alternativa defende o assassínio do monarca. O próprio Pompeio seria assassinado por ordem do Governo egípcio. Catilina conspiraria para tomar o poder, prometendo a anulação das dívidas dos seus partidários, mas seria denunciado pelo senador Cícero, no discurso conhecido como «Catilinárias», e morreria numa batalha per-dida.

OS GRANDES DITADORES DA HISTÓRIA

23

Relembre-se um aspeto importante: todos os inimigos e aliados de Sula eram violentos e estavam dispostos a massacrar os rivais, mes-mo os compatriotas. Assim, o «feliz» estadista pode ter acreditado que nunca venceria se ultrapassasse todos os outros em brutalidade. De resto, a sua crença na boa sorte que não o abandonava era justificada, dado ter morrido de morte natural, ao contrário de tantos aliados e ini-migos, vítimas de mortes violentas. Apesar de ter sido vítima de uma doença horrível considerada castigo divino pelos gregos…

Segundo uma lenda, quando Sula abandonou o poder, foi cons-tantemente seguido e insultado por um cidadão, enquanto regressava ao lar. Disse com desprezo que, graças àquele «imbecil», os futuros tiranos ganharam um motivo para não renunciarem ao poder. No seu túmulo, estava escrito um epitáfio, informando que o «feliz» nunca fora ultrapassado pelos seus amigos em boas ações, nem pelos inimi-gos em más ações. Ou seja, nunca houve amigo nem inimigo ao qual não tivesse retribuído na mesma moeda. O historiador grego Plutarco tinha razão: todos os homens deviam recear a ambição como o mais destrutivo e pernicioso dos poderes.

437

ÍNDICE

INTRODUçãO: da natureza das ditaduras ............................................ 5

I – PIONEIROS ............................................................................... 15

Sula ........................................................................................................... 15Oliver Cromwell ......................................................................................... 24Robespierre ................................................................................................ 32

II – DO fASCISMO E DO NAzISMO .................................................. 41

Mussolini .................................................................................................... 47Franco ........................................................................................................ 58Salazar ....................................................................................................... 70Ante Pavelic ............................................................................................... 80Adolf Hitler ................................................................................................ 89Hideki Tojo .............................................................................................. 102Pétain ....................................................................................................... 115

III – DA NATUREzA DO COMUNISMO ........................................... 124

Lenine ...................................................................................................... 130Estaline .................................................................................................... 139Mao Tsé-Tung .......................................................................................... 150Pol Pot ..................................................................................................... 160Enver Hoxha ............................................................................................ 168Ceausescu ................................................................................................ 179Dinastia Kim ............................................................................................ 189Fidel Castro .............................................................................................. 199

438

PEDRO RABAÇAL

Krustchov ................................................................................................. 208IV – DA NATUREzA DO fUNDAMENTAlISMO ISlâMICO ............... 216

Khomeini ................................................................................................. 225Khamenei ................................................................................................. 234Omar al-Bashir ......................................................................................... 242Zia-ul-Haq ................................................................................................ 252Muhammad Omar .................................................................................... 261

V – O PAN-ARABISMO .................................................................. 272

Saddam Hussein ...................................................................................... 275Dinastia Al-Assad ..................................................................................... 289Muammar Kadafi ..................................................................................... 299

VI – OUTRAS DITADURAS ............................................................ 311

Os três paxás ............................................................................................ 311Mustafá Kemal ......................................................................................... 319Suharto .................................................................................................... 326Chiang Kai-Shek ...................................................................................... 334Idi Amin ................................................................................................... 343Charles Taylor .......................................................................................... 349Juan Perón ............................................................................................... 357Jorge Rafael Videla .................................................................................. 366Augusto Pinochet Ugarte ......................................................................... 374Trujillo ..................................................................................................... 382Getúlio Vargas ......................................................................................... 390Os Anastasios Somozas ............................................................................ 398Dinastia Duvalier ..................................................................................... 404Dinastia Macías Nguema .......................................................................... 412Slobodan Milosevic .................................................................................. 420

BIBlIOGRAfIA ............................................................................. 429