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UM FILME SOBRE O QUÊ? Reassemblage: o filme e o caderno de campo. 1 A FILM ABOUT WHAT? Reassemblage: the film and the fieldnote. Gustavo Soranz 2 Resumo: Apresentamos uma análise do filme Reassemblage – from the firelight to the screen (1982), dirigido por Trinh T. Minh-ha, explorando como este apresenta críticas às formas de representação cultural tradicionais, notadamente a antropologia e o cinema documentário, enfatizando, em especial, o uso da voz over como uma estratégia diferencial do filme. Para a análise detida deste recurso no caso aqui proposto, realizamos uma comparação com três momentos distintos da escrita etnográfica no trabalho de campo, conforme descritos por James Clifford (1990): a inscrição, a transcrição e a descrição, a fim de evidenciar como o filme se configura como um trabalho que expõe o caderno de campo da cineasta, ou seja, apresenta as estratégias de elaboração do discurso, ao invés de optar por uma descrição acabada e totalizante sobre os processos culturais que observa, uma das estratégias para criticar a escrita etnográfica tradicional e os discursos de poder e de autoridade, questão central do filme. Palavras-Chave: Reassemblage 1. Caderno de campo 2. Trinh T. Minh-ha 3. Abstract: We presentan analysis of the film Reassemblage - from the firelight to the screen (1982), directed by Trinh T. Minh- ha, exploring how this presents criticism of traditional forms of cultural representation, notably anthropology and documentary filmmaking, emphasizing in particular the use of voice over as a differential strategy of the film. For a careful analysis of this feature in the case presented here, we compared three different moments of ethnographic writing on fieldwork, as described by James Clifford (1990): inscription, transcription and description in order to show how the movie is configured as a job that exposes the filmmaker’s fieldnotes, ie, presents the strategies of the discourse, rather than opt for a finished and totalizing description of the cultural processes that observes, one of the strategies to criticize the traditional ethnographic writing and the discourses of power and authority, a central issue of the film. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Unicamp, Doutorando em Multimeios, [email protected] . Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam) 1

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UM FILME SOBRE O QUÊ? Reassemblage: o filme e o caderno de campo.1

A FILM ABOUT WHAT? Reassemblage: the film and the fieldnote.

Gustavo Soranz2

Resumo: Apresentamos uma análise do filme Reassemblage – from the firelight to the screen (1982), dirigido por Trinh T. Minh-ha, explorando como este apresenta críticas às formas de representação cultural tradicionais, notadamente a antropologia e o cinema documentário, enfatizando, em especial, o uso da voz over como uma estratégia diferencial do filme. Para a análise detida deste recurso no caso aqui proposto, realizamos uma comparação com três momentos distintos da escrita etnográfica no trabalho de campo, conforme descritos por James Clifford (1990): a inscrição, a transcrição e a descrição, a fim de evidenciar como o filme se configura como um trabalho que expõe o caderno de campo da cineasta, ou seja, apresenta as estratégias de elaboração do discurso, ao invés de optar por uma descrição acabada e totalizante sobre os processos culturais que observa, uma das estratégias para criticar a escrita etnográfica tradicional e os discursos de poder e de autoridade, questão central do filme.

Palavras-Chave: Reassemblage 1. Caderno de campo 2. Trinh T. Minh-ha 3.

Abstract: We presentan analysis of the film Reassemblage - from the firelight to the screen (1982), directed by Trinh T. Minh- ha, exploring how this presents criticism of traditional forms of cultural representation, notably anthropology and documentary filmmaking, emphasizing in particular the use of voice over as a differential strategy of the film. For a careful analysis of this feature in the case presented here, we compared three different moments of ethnographic writing on fieldwork, as described by James Clifford (1990): inscription, transcription and description in order to show how the movie is configured as a job that exposes the filmmaker’s fieldnotes, ie, presents the strategies of the discourse, rather than opt for a finished and totalizing description of the cultural processes that observes, one of the strategies to criticize the traditional ethnographic writing and the discourses of power and authority, a central issue of the film.

Keywords: Reassemblage 1. Fieldnotes 2. Trinh T.minh-ha3.

1. IntroduçãoO filme Reassemblage – from the firelight to the screen foi produzido em um período

histórico marcado pela ascensão dos estudos do pós-modernismo e do pós-colonialismo, que

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014.2Unicamp, Doutorando em Multimeios, [email protected]. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam)

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definiram um contexto de crítica e revisão epistemológicas de diversos campos do

conhecimento, sobretudo das ciências humanas. O filme materializa na estética

cinematográfica certa hermenêutica do discurso ocidental sobre a alteridade, refletindo, por

exemplo, uma tendência crescente de experimentação na escrita etnográfica, uma espécie de

reação filosófica às convenções de realismo que imperavam na antropologia. Estava em curso

um debate sobre a natureza da interpretação nas descrições etnográficas, destacando-se uma

consciência crescente por parte de destacados antropólogos, em sua maioria norte-

americanos, da evidenciação da estrutura narrativa e retórica da etnografia. Uma referência

importante para considerar esta ruptura epistemológica e seu impacto nas descrições

etnográficas é o livro Writing culture – the poetics and politics of ethnography, editado por

James Clifford e George E. Marcus, resultado de seminários avançados acontecidos na

School of American Research, em Santa Fé, Novo México, Estado Unidos, em abril de 1984.

Trinh T Minh-ha produziu um filme cuja forma fragmentada e descontínua critica o

paradigma clássico de cinema documentário, sobretudo do cinema de cunho etnográfico,

elaborando uma forma fílmica que coloca sob investigação práticas de representação cultural,

especificamente a antropologia e o cinema documentário, tradicionalmente ligadas à

descrição do Outro. Aqui a referência importante é a da vertente de estudos pós-

estruturalistas da teoria do cinema documentário, que tem se dedicado a refletir sobre como o

cinema documentário representa o mundo histórico, enfatizando seu caráter de constructo

social. Apoiamo-nos principalmente no trabalho de Bill Nichols, reunido e sintetizado em seu

livro Introdução ao documentário, para pensar o filme de Trinh T Minh-ha em seus aspectos

formais e estéticos.

Para abordar a forma fílmica inovadora de Reassemblage, buscamos nos deter nos

aspectos sonoros de sua composição, analisando a locução em voz over, escrita e narrada pela

própria diretora, como uma espécie de leitura de um possível caderno de campo, opção esta

que seria, em si, outra crítica às práticas da antropologia cultural tradicional, pois, iria contra

as convenções da disciplina, que mantém os cadernos de campo como trabalhos pessoais,

íntimos, geralmente inacessíveis. Para esta discussão nos apoiamos no texto Notes on

(Field)notes, de James Clifford (1990), que busca refletir sobre a função dos cadernos de

campo, complexificando e descentralizando a atividade da descrição na etnografia.

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2. A forma do filme e a crítica à representação culturalNo período em que o filme foi lançado, as discussões acerca da natureza do

documentário passaram a ganhar maior relevância nos estudos acadêmicos, lançando luzes

sobre questões relacionadas às particularidades do documentário enquanto gênero

cinematográfico e reflexões sobre o estatuto da representação do mundo histórico.

Conformou-se um corpus teórico mais denso, com a divisão entre basicamente duas vertentes

de estudo (RAMOS, 1991): uma de linha cognitivista-analítica, que buscava afirmar a

especificidade do cinema de não-ficção e outra de viés pós-estruturalista, que, ao contrário,

enfatizava a sua não-especificidade, borrando as fronteiras entre a ficção e a não-ficção. Dada

a forte influência das tendências revisionistas do período, neste contexto, a vertente tributária

do pós-estruturalismo vai enaltecer a valorização dos processos de subjetividade e da

autorreflexão em relação à representação do mundo histórico e da alteridade nos estudos

sobre o cinema documentário. Reassemblageé frequentemente citado na bibliografia que se

dedica ao cinema documentário como um exemplo de filme que apresenta uma estrutura

autorreflexiva, onde a preocupação está não apenas em o que está sendo representado, mas,

especialmente, sobre o modo como o filme elabora seu discurso, enfatizando que ele é um

discurso sobre o mundo histórico.

Em Reassemblage, Trinh T.Minh-ha rejeita deliberadamente os cânones do típico

documentário clássico, construindo um filme de estrutura fragmentada e disjuntiva, de ritmo

musical e disnarrativo, em uma estética que aposta na repetição para construir sua retórica,

onde imagem e som trabalham para provocar no espectador uma postura crítica em relação ao

filme. Desde sua primeira imagem, na verdade não uma imagem isolada, mas uma tela preta

que se prolonga por 43 segundos, acompanhada de sons de tambores e outros instrumentos,

temos as expectativas relacionadas a um filme etnográfico convencional frustradas. Cortes

abruptos, enquadramentos oblíquos, planos curtos, telas pretas e silêncios são recorrentes e

parte fundamental da estratégia narrativa do filme. A ênfase está centrada na opacidade da

linguagem cinematográfica e o foco do filme é a crítica aos modos de representação cultural,

notadamente em relação às etnografias tradicionais e ao cinema documentário.

No filme a relação da imagem com o som nunca é de ilustração ou descrição. A banda

sonora do filme é muito valorizada e utilizada de maneira inovadora, inserindo cada elemento

disponível de forma complexa na estrutura do filme. Podemos destacar três aspectos sonoros

distintos que são trabalhados pela diretora: em primeiro lugar o uso de paisagens sonoras,

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construídas com a repetição de músicas, sons de instrumentos musicais, cantos, conversações,

sons de insetos e de batidas no pilão, que são retiradas do seu contexto original, pois nunca

são utilizadas em sincronia com as imagens das respectivas ações, e passam a atuar como

formas expressivas autônomas, com presença marcante na estrutura rítmica elaborada para o

filme. A utilização dessa sonorização pontua o filme e ajuda a apresentar as diferentes regiões

e os seus diferentes povos, não de modo convencional, mas de maneira original, enfatizando

aspectos menos objetivos e mais ligados à sensibilidade em relação à dimensão sonora.

Segundo a diretora,

O que me interessa é o modo como certos ritmos retornavam a mim enquanto eu estava viajando e filmando pelo Senegal, e como a entonação e inflexão de cada uma das diversas línguas locais me informavam de onde eu estava. Por exemplo, o filme trouxe a qualidade musical da linguagem dos Sereer por meio de trechos não-traduzidos de conversação entre os aldeões e variando a repetição de certas frases. Cada língua tem sua própria musicalidade e sua prática não tem que ser reduzida a uma mera função de transmitir significado. A repetição de que fiz uso tem, consequentemente, nuances e diferenças inseridas em si, então essa repetição aqui não é apenas uma reprodução automática do mesmo, mas sim a sua produção com as diferenças e nas diferenças. (TRINH, 1992, p.114)3

Em segundo lugar, podemos destacar a presença dos silêncios na banda sonora de

Reassemblage. Assim como as paisagens sonoras, a utilização dos silêncios é importante para

a estrutura rítmica do filme, pois, servem como marcações que ajudam ao filme a desenvolver

seus compassos e a dar andamento aos diversos temas que desenvolve (aqui me refiro aos

aspectos tipicamente musicais desses dois termos – compasso e andamento -, sendo o

primeiro responsável por dividir os sons em grupos e o segundo pela velocidade com que

esses grupos se alternam). Os silêncios tem, ainda, um importante papel de provocar

estranhamento, desnaturalizando as imagens e enfatizando a opção pela opacidade da

linguagem cinematográfica, demonstrando que cada aspecto presente em sua estrutura é

resultado de uma opção deliberada da cineasta. A justaposição de planos mais abertos ou

mais fechados de um mesmo objeto ou sujeito. Imagens acompanhadas de sonorização ou em

silêncio. Pontas pretas. As imagens saltam aos olhos do espectador, provocadas pelos jump

cuts. A descontinuidade visual e narrativa contribui para certo distanciamento crítico por

3What interests me is the way certain rhythms came back to me while I was traveling and filming across Senegal, and how the intonation and inflection of each of the diverse local languages inform me of where I was. For example, the film brought out the musical quality of the Sereer language through untranslated snatches of a conversation among villagers and the varying repetition of certain sentences. Each language has its own music and its practice need not to be reduced to the mere function of communicating meaning. The repetition I made use of has, accordingly, nuances and differences built within it, so that repetition here is not just the automatic reproduction of the same, but rather the production of the same with and in differences.

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parte do espectador, que é instado a uma reflexão não apenas devido a esse trabalho de

montagem, mas também pelas assertivas e declarações da cineasta na locução.

O terceiro e último aspecto sonoro que gostaríamos de ressaltar no filme é a utilização

da locução em voz over, recurso que, na tradição do cinema documentário, foi largamente

utilizado nos filmes de retórica mais objetiva, alvos preferenciais das críticas proferidas pela

diretora em Reassemblage. Com a intenção de elaborar uma descrição generalizante e

totalizante sobre o assunto abordado, os filmes associados ao que se convencionou chamar de

modelo clássico de documentário, demonstram uma postura onisciente sobre o mundo, no

que já foi identificado por muitos como “voz de Deus”. Elaboram discursos detentores de

saber sobre esse mundo histórico, que resultam em filmes descritivos, expositivos e

informativos.

Apesar de normalmente estar associada a esse modelo chamado de expositivo, a

locução em voz over foi utilizada de modo criativo e não convencional em diversos filmes

que se destacam na história do cinema documentário, demonstrando que a opção pela

utilização desse recurso não se resume a seguir ditames voltados a discursos objetivos, sendo,

muitas vezes, um recurso criativo e inventivo. Podemos citar aqui uma série de filmes de

diretores notáveis, como Chris Marker (Lettre de Sibérie, 1957), Jean Rouch (Moi, un noir,

1958) e Agnès Varda (Salut les cubains, 1963), para citar apenas alguns precursores, que

utilizaram locuções irônicas, poéticas, bem humoradas, com referências autobiográficas, com

fabulações, estruturas epistolares, em primeira pessoa, etc.

Consideramos que o aspecto original de Reassemblageem relação à locução em voz

over do filme, cujo texto foi escrito e narrado pela própria Trinh T. Minh-ha, é o fato de que

este se assemelha às anotações de um caderno de campo, recurso utilizado por diversos

profissionais quando em trabalho externo, no campo, consagrado, sobretudo, ao trabalho do

antropólogo, local onde reúne suas anotações e observações, que mais tarde serão elaboradas

em uma etnografia escrita sobre o fenômeno observado.

3. A voz over em Reassemblage

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Um dos aspectos mais inovadores de Reassemblage reside no uso complexo e criativo

de sua banda sonora, conforme buscamos apresentar de forma sintetizada anteriormente neste

artigo. A utilização da locução em voz over, aspecto sobre o qual nos debruçaremos mais

detidamente de agora em diante, se destaca entre as estratégias utilizadas pela diretora na

elaboração do filme e se caracteriza por se diferenciar profundamente da maneira como este

recurso foi mais geralmente usado na história do cinema documentário, um modelo que se

convencionou chamar de “voz de Deus”, tradição esta que, segundo Bill Nichols,

fomentou a cultura do comentário com voz masculina profissionalmente treinada, cheia e suave em tom e timbre, que mostrou ser a marca de autenticidade do modo expositivo, embora alguns dos filmes mais impressionantes tenham escolhido vozes menos educadas, precisamente em nome da credibilidade que obtinham evitando tanto treino (2007, p. 142).

É evidente que a opção de Trinh T. Minh-ha na utilização da locução em voz over no

filme aqui em questão em tudo se diferencia dos aspectos relacionados nessa proposição de

Bill Nichols, conforme podemos notar no fato de ser a própria diretora que realiza a locução,

em oposição à “voz masculina profissionalmente treinada”, em sua inflexão sutil e frágil,

quase introspectiva, em oposição à “voz cheia e suave em tom e timbre”, além da questão de

que a locução é feita em inglês, sendo que ela não é uma falante nativa dessa língua, ficando

sua pronúncia carregada de sotaque.

Conforme apontamos anteriormente, a locução não se limita a descrever a imagem em

nenhuma passagem do filme. Ao invés disso, elabora sentenças quase autônomas, que tem

diferentes efeitos em sua estrutura discursiva fragmentada. Faremos aqui um esforço em

propor uma categorização para os tipos de sentença que julgamos estarem presentes no filme,

de modo a permitir uma análise mais detalhada da locução do filme em comparação com

aspectos de um caderno de campo. Consideramos que podemos definir as passagens da

locução em Reassemblage à partir de cinco categorias:

A) Proposições assertivas – trechos em que a cineasta realiza afirmações enfáticas, que

são importantes para indicar como ela se posiciona em relação ao seu tema e seu objeto,

sem precisar fazer afirmações objetivas para isso, como na passagem inicial, “menos de

vinte anos foram suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definam

como subdesenvolvidas”, quando podemos inferir que ela escolheu falar do ponto de

vista do pós-colonialismo ou no trecho “filmar na África significa para muitos de nós

imagens cheias de cores, mulheres de seios desnudos, danças exóticas e ritos temerosos.

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O incomum”, afirmação sobre a qual vai construir uma série de contrapontos visuais no

filme para exercer uma crítica sobre a representação da África encontrada

tradicionalmente no cinema.

B) Aforismos – importantes para marcar a postura ética segundo a qual pautou suas

decisões na elaboração do filme, como na famosa sentença “Eu não pretendo falar

sobre. Apenas falar ao lado”, onde busca fazer uma afirmação de princípios e opor-se

ao típico “falar sobre” das representações culturais tradicionais ou na passagem

“documentário porque a realidade é organizada em uma explicação de si mesma”,

quando direciona sua crítica para as formas clássicas de documentários descritivos e

informativos, marcados pela pretensão da objetividade vinda da observação externa ao

processo cultural que está sendo descrito.

C) Descrições de cenas – em diversas passagens a cineasta descreve cenas, talvez

hipotéticas em alguns casos, mas possivelmente visualizadas por ela anteriormente em

outros, que nunca estão sendo vistas na imagem. Esta opção reforça a postura de

enfatizar que a realidade é mais complexa e intrigante do que é possível conceber em

uma descrição ou representação, seja ela escrita ou visual. Logo no início do filme

temos a passagem “em Enampor, Andre Manga diz que seu nome está listado em um

livro de informações para turistas. Sobre a entrada da sua casa há uma placa escrita à

mão que diz ´trezentos e cinquenta francos´. Um fato antropológico vazio”, trecho que

nos leva a refletir sobre a questão da intersubjetividade presente no trabalho de campo.

Em outro momento, mais adiante, ela descreve a seguinte cena: “um etnólogo e sua

esposa ginecologista voltaram por duas semanas a uma vila onde eles realizaram

trabalho de campo no passado. Ele se define como uma pessoa que ficou bastante

tempo na vila, tempo o suficiente, para estudar a cultura de um grupo étnico. Tempo,

conhecimento e segurança. `Se você não ficou tempo suficiente em um lugar você não é

um etnólogo`, ele diz. Mais tarde ao anoitecer, um círculo de homens se reúne em

frente da casa onde o etnólogo e sua esposa ginecologista estão. Um dos aldeões está

contando uma estória, outro está tocando música em seu alaúde improvisado, o

etnólogo está dormindo ao lado do seu gravador de áudio que está ligado. Ele pensa que

exclui valores pessoais. Ele tenta ou acredita, mas como ele pode ser um Fulani? Isso é

objetividade.” Aqui temos uma cena que descreve uma relação que implica em lugares

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de poder determinados, que buscam se legitimar por critérios que seriam validados por

sua cientificidade e objetividade.

D) Indagações e reflexões – diversos trechos da locução do filme fazem perguntas e

proposições que problematizam definições que poderiam ser consideradas como

inequívocas em um olhar mais apressado, como, por exemplo, a passagem “um filme

sobre o quê? Meus amigos perguntam. Um filme sobre o Senegal; mas o quê no

Senegal” Uma afirmação aparentemente trivial reverte-se em uma pergunta que toca no

ponto nevrálgico do projeto político, ético e estético de Trinh T. Minh-ha, qual seja, o

de que todo discurso implica em um sujeito histórico, com um olhar elaborado sobre

seu objeto. Dito de outro modo, ao propor essa questão, “mas o quê no Senegal?”, a

cineasta está afirmando que o Senegal, ou, por exetensão, qualquer outra realidade

cultural, não pode ser resumida a definições fechadas, objetivas, digamos, positivistas.

Outro exemplo a ser destacado é a pergunta “o quê podemos esperar da etnologia?”

Evidentemente não há uma resposta objetiva a esta questão, que adquire relevância e

densidade quando surge, uma vez que já houve, naquela altura do filme, um acúmulo de

informações, de construções e de argumentações que levam o espectador a considerar a

indagação e duvidar das afirmações peremptórias.

E) Repetições e reformulações – O filme tem uma estética baseada na repetição, algo

notado visivelmente em sua estrutura fílmica, na articulação das imagens com os sons.

Porém, é sobretudo na utilização da locução que a repetição adquire maior significação.

Não se trata de uma repetição mecânica, automática. Está mais relacionada a um

retorno a um argumento prévio para repensá-lo, confrontá-lo novamente para melhor

poder apresentá-lo outra vez. É mais propriamente uma reformulação, como se

acompanhássemos o próprio ato de reflexão da cineasta, que indaga mais uma vez seu

objeto e não só, mas se questiona novamente. Acompanhamos o amadurecimento de

questões e problemas com os quais a cineasta está em embate. Assim acontece com as

principais passagens da locução, como a colocada no início do filme: “menos de vinte

anos foram suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definam como

subdesenvolvidas”, assim como com a questão “Eu não pretendo falar sobre. Apenas

falar ao lado”, que retorna mais ao final, já resumida e ressignificada, apenas com a

frase “falar sobre”. As reformulações configuram-se como anotações de um processo

de reflexão, a exposição de um processo intelectual de interpretação de uma realidade

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cultural. Ao optar por esse procedimento, a cineasta está como que a desvelar as

convenções da construção de narrativas etnográficas, convenções estas que não estão

evidenciadas em seu produto final.

4. Considerações sobre o caderno de campoEm seu ensaio Notes on (field)notes, James Clifford traz para o centro de sua reflexão

os cadernos de campo dos antropólogos, deslocando o foco sobre a atividade da descrição

etnográfica, tradicionalmente reconhecida por seu texto final, elaborado, para a etapa de sua

gênese ainda no trabalho de campo, quando começa a tomar forma por meio de anotações,

registros e descrições de processos culturais. Para Clifford, “cadernos de campo são cercados

por lenda e frequentemente certo sigilo. Eles são registros íntimos, cheios de significados –

temos dito – apenas para o seu escritor.”4(1990, p. 52). Segundo o autor, não há definição

exata sobre o que constitui um caderno de campo. O trabalho de campo, seu lugar de origem,

pode incorporar diferentes fontes de informação e de evidências sobre as quais o antropólogo

se debruçará para elaborar sua etnografia, que, ao final, será o resultado de um processo de

generalizações, sínteses e teorização. “O trabalho de campo é um conjunto complexo de

experiências históricas, políticas e intersubjetivas que fogem das metáforas de participação,

observação, iniciação, harmonia, indução, aprendizado, e por aí adiante, frequentemente

adotadas para explicá-lo.”5(CLIFFORD, 1990, p. 53).

Em seu exercício de reflexão sobre a constituição do caderno de campo, Clifford vai

utilizar três fotografias que registraram diferentes etnógrafos em trabalho de campo,

especificamente em momentos de escrita, para “ilustrar e distinguir graficamente três

momentos distintos na constituição do caderno de campo (Eu posso apenas especular o que

realmente estava acontecendo em cada uma das três cenas de escrita).”6(CLIFFORD, 1990, p.

51).

4Fieldnotes are surrounded by and often a certain secrecy. They are intimate records, fully meaningful – we are often told – only to their inscriber. 5Fieldwork is a complex historical, political, intersubjective set of experiences which escapes the metaphors of participation, observation, initiation, rapport, induction, learning, and so forth, often deployed to account for it.6… illustrated and to distinguish graphically three distinct moments in the constitution of fieldnotes. (I can only guess what was actually going on in any of the three scenes of writing)

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Figura 1: Joan Larcom em campo em Malekula, Vanuatu.FONTE – CLIFFORD, 1990, P. 48

Na figura 1temos a primeira das fotografias citadas por Clifford em seu ensaio, um

registro da etnógrafa Joan Larco, na ilha de Malekula, Vanuatu. Conforme podemos notar na

fotografia, ela está sob uma tenda, entre mulheres e crianças, olhando para um papel que tem

em mãos. Duas mulheres olham diretamente para fora do quadro na direção oposta à da

etnógrafa. Uma delas tem em seu colo um garoto, que olha atentamente para as mãos da

etnógrafa, que seguram papel e caneta. Um garoto, posicionado logo à frente dela olha

diretamente para a câmera, assim como outro garoto que está de pé ao fundo da cena.

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Figura 2: C.G. Seligman em campo na Nova Guiné.FONTE – CLIFFORD, 1990, P. 49

A figura 2 apresenta a segunda fotografia da série, que mostra o etnógrafo C.G.

Seligman na Nova Guiné, no ano de 1898, sentado em uma mesa escrevendo suas notas. A

mesa está tomada por diversos objetos. Ao seu lado um dos homens está sentado em outra

cadeira, ambos são rodeados por um grupo de homens e garotos em pé, alguns dos quais

olham diretamente para a câmera.

Por fim, a figura 3 apresenta a terceira fotografia, que mostra o famoso etnógrafo

Bronislaw Malinowski trabalhando em uma mesa sob uma tenda nas ilhas Trobriand. Ele está

de perfil, aparentemente concentrado em seu trabalho no que parece ser uma máquina de

escrever. Ao fundo alguns garotos estão ajoelhados e homens estão de pé, do lado de fora da

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tenda. Há uma clara separação entre o etnógrafo, na penumbra da tenda, e dos nativos da ilha,

que estão do lado de fora, observando-o.

Figura 3: Malinowski em campo nas ilhas Trobriand.FONTE – CLIFFORD, 1990, P. 50

Para Clifford, essas três fotografias “dizem muito sobre as ordens e desordens do

trabalho de campo”7. (1990, p. 51). Para detalhar sua proposta de reflexão, ele vai propor a

definição de três diferentes momentos no trabalho de campo. Optamos em transcrever aqui as

considerações do autor sobre esses momentos, deixando para compará-las mais adiante com

nossas proposições relacionadas ao texto da locução de Reassemblage.

Para o autor, a figura 1 representa um momento de inscrição.

Eu imagino que a foto de Joan Larcom olhando para suas notas registra uma pausa (talvez por apenas um instante) no fluxodo discurso social, um momento de abstração (ou distração) quando o observador-participante anota uma frase ou palavra mnemônica para fixar uma observação ou para recordar algo que alguém acabou de dizer. A foto também pode representar um momento quando a etnógrafa se refere a alguma lista prioritária de questões, traços de personalidade, ou hipóteses – uma relação pessoal de “notas e consultas”. Porém, mesmo que a inscrição seja

7… tell a lot about the orders and disorders of fieldwork.

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simplesmente uma questão de, como dizemos, “tomar uma nota mental”, o fluxo da ação e do discurso foi interrompido, direcionado para a escrita8. (CLIFFORD, 1990, p. 51)

Seguindo as demais descrições de Clifford, a figura 2 representa um momento de transcrição.

Talvez o etnógrafo tenha feito uma pergunta e esteja escrevendo a resposta: “Como você chama isso e isso?” “Chamamos isso assim e assim” “Diga isso novamente, lentamente.” Ou o escritor esteja tomando um ditado, registrando o mito ou a magia associada a um dos objetos sobre a mesa. Esse tipo de trabalho era do tipo que Malinowski tentou desalojar do papel central em favor da observação-participante: se afastando da mesa da varanda e caminhando por aí, conversando, questionando, ouvindo, observando – e escrevendo tudo mais tarde. Porém, apesar do sucesso do método de observação-participante, a transcrição permaneceu crucial no trabalho de campo, especialmente quando a pesquisa é orientada à linguística ou à filologia, ou quando coleta (eu prefiro “produz”) textos indígenas extensos.9 (CLIFFORD, 1990, p. 51)

Finalmente, ainda segundo o autor, a figura 3 representa um momento de descrição.

a realização de uma representação mais ou menos coerente de uma realidade cultural observada. Ainda que fragmentada e rascunhada, tais descrições de campo são designadas para servir como base de dados para escritas e interpretações posteriores visando a produção de uma narrativa finalizada. Esse momento de escrita no campo gera o que Geertz (1973) chamou “descrições densas”. Ela envolve, como como a foto de Malinowski registra, um afastamento do diálogo e observação para um lugar separado de escrita, um lugar para reflexão, análise e interpretação.10 (CLIFFORD, 1990, p. 51-52)

Como enfatiza o próprio autor em seu texto, a descrição destes momentos foi um

exercício de abstração, uma vez que eles não existem em estado puro, separados, mas acabam

por se misturar e se alternar nas sequências de encontros e mudanças que acontecem no

trabalho de campo. O exercício foi necessário para levar adiante a proposta que ele colocava

8I imagine that the photo of Joan Larcomglancing at her notes records a break (perhaps only for an instant) in the flow of social discourse, a moment of abstraction (or distraction) when a participant-observer jots down a mnemonic word or phrase to fix an observation or to recall what someone has just said. The photo may also represent a moment when the ethnographer refers to some prior list of questions, traits, or hypotheses – a personal “Notes and Queries”. But even if inscription is simply a matter of, as we say, “making a mental note”, the flow of action and discourse has been interrupted, turned to writing.9Perhaps the ethnographer has asked a question and is writing down the response: “What do you call such and such?” “We call it so and so.” “Say that again, slowly.” Or the writer may be taking dictation, recording the myth or magic spell associated with one of the objects on the table-top. This kind of work was the sort Malinowski tried to dislodge from center stage in favor of participant-observation: getting away from the table on the verandah and hanging around the village instead, chatting, questioning, listening in, looking on – writing it all up later. But despite the success of the participant-observation method, transcription has remained crucial in fieldwork, especially when the research is linguistically or philologically oriented, or when it collects (I prefer “produces”) extended indigenous texts.10… the making of a more or less coherent representation of an observed cultural reality. While still piecemeal and rough, such field descriptions are designed to serve as a data base for later writing and interpretation aimed at the production of a finished account. This moment of writing in the field what Gerrtz (1973) has called “thick descriptions”. And it involves, as the Malinowski photo registers, a turning away from dialogue and observation toward a separate place of writing, a place for reflection, analysis and interpretation.

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no texto sobre o qual estamos nos apoiando, quando buscava lançar uma reflexão sobre o

processo de elaboração do caderno de campo, ao invés de analisar etnografias escritas já

finalizadas. Aqui em nossa proposta servirão de apoio para a análise do filme Reassemblage.

5.Reassemblage – o filme como exposição do caderno de campoReassemblage desafia as convenções tradicionais encontradas na história do cinema

documentário. Não se trata evidentemente de um documentário clássico, não é um filme

eminentemente experimental, não é propriamente um filme etnográfico, não é simplesmente

um diário pessoal ou um filme de viagem. De certo modo, a um só tempo, o filme dialoga

com cada uma dessas expressões do cinema de não-ficção, deslocando as premissas

relacionadas a essas searas fílmicas, contribuindo para alargar as fronteiras da prática

cinematográfica. Ao não se enquadrar em definições rigorosas e categorizações previamente

definidas, o filme desafia o espectador a uma interpretação que dialogue com essas diferentes

tradições que ele coloca em contato.

O aspecto fragmentário e disnarrativo do filme nos provoca de tal modo, que somos

levados a pensar nas opções adotadas pela cineasta para definir suas estratégias, suas opções.

Uma maneira de buscarmos uma aproximação original a ele foi realizar uma análise

comparativa entre sua locução em voz over e a descrição dos momentos do trabalho de

campo do etnógrafo, conforme descritos por Clifford (1990). Seria possível considerar que o

filme se configura como a exposição de um caderno de campo? Ou seja, poderíamos

considerar que seu aspecto fragmentário e disnarrativo é resultado de uma estrutura de

anotações, de esboços, de impressões e interpretações ainda não completamente elaboradas,

não depuradas, como nas anotações de um caderno de campo? Poderia Reassemblage ser

considerado uma versão fílmica de um possível caderno de campo de Trinh T. Minh-ha no

período em que ela realizou suas filmagens no Senegal?

Para Clifford, os cadernos de campo “constituem uma base de dados descritiva, crua,

ou parcialmente cozida, para generalização, síntese e elaborações teóricas posteriores.”11

(1990, p.52). Como na metáfora da base de dados crua para os cadernos de campo, podemos

considerar que o texto de Trinh T. Minh-ha para a locução remete a essa ideia de algo não

acabado, portanto, próximo da imagem de algo ainda cru, proposta por Clifford. A locução do

filme não tem uma estrutura narrativa clara, assim, para manter uma mesma chave de análise,

11Constituting a raw, or partly cooked, descriptive database for later generalization, synthesis and theoretical elaboration.

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podemos considerar que apresenta uma estrutura parcialmente cozida, resultando em um

filme que não pode ser enquadrado em uma definição rígida, que se apresenta em “preparo”,

para ainda usar a metáfora do autor.

Tomemos os momentos do trabalho de campo propostos por Clifford (1990) para

iniciar nossa análise. Dos três momentos descritos pelo autor, um em especial pode ser

relacionado às categorias de análise que propusemos aqui. Trata-se do momento de inscrição,

que seria marcado por uma quebra no trabalho de anotações em favor de uma abstração ou

mesmo uma distração. Seria o momento das anotações e da recuperação de listas prévias de

questões e hipóteses, quando a observação se interrompe e o etnógrafo se volta para o ato da

escrita. Esse momento, segundo Clifford (1990), “é tanto o processo de fazer quanto de

refazer os textos. Escrever é sempre em algum grau reescrever”12 (1990, p.54). Em nossa

análise da locução de Reassemblage, definimos cinco categorias para a interpretação das

diferentes proposições do texto. Em uma comparação com o momento de inscrição

poderíamos considerar que todas as categorias tem relação estreita com a natureza das

anotações obtidas em um momento de inscrição. Talvez uma excessão possa ser feita em

relação à categoria descrição de cenas, que teria uma identificação maior com o momento de

descrição proposto por Clifford.

Evidentemente, dada a opção da cineasta em construir um filme que tece críticas às

formas convencionais de representação cultural, como temos insistido, o momento de

inscrição destaca-se dos demais, pois, trata-se justamente do momento em que o etnógrafo,

ou em nosso caso a cineasta, mergulha no mundo histórico em busca de um contato com o

processo cultural a ser observado. A questão relevante aqui é que as anotações resultantes

dessa observação, que ainda estão incompletas, parciais, impregnadas de subjetividade, são

alçadas ao primeiro plano. Em outras palavras, no caso de Reassemblage, o caderno de

campo não é uma etapa intermediária, que aguarda uma depuração, uma reflexão do

etnógrafo para chegar a uma forma final, mas passa a ser o produto principal, evidenciando

suas incompletudes e impropriedades deliberadamente, elaborando uma forma final onde sua

fragmentação visual e estrutura disjuntiva reforçam o caráter discursivo do relato. A escrita e

a reescrita estão presentes no filme, na forma de assertivas e aforismos presentes na locução,

assim como no fluxo de imagens e de sons, revelando um processo de elaboração de discurso

sobre a realidade, não a busca por uma descrição objetiva desta. As anotações resultantes da

12… is both theprocessof redoingdo aboutthe texts. Writing isalways in somedegreerewrite.

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inscrição da cineasta nessa cultura estão impregnadas da intersubjetividade desse encontro,

que valorizam as abstrações em detrimento de descrições objetivas.

As categorias da locução que aqui elaboramos apresentam o aspecto ensaístico do

filme, de uma reflexão que se constrói no processo. Uma elaboração que surge de um

segundo pensamento, da reflexão sobre a descrição, sobre o lugar da cineasta e a alteridade,

sobre a relação intersubjetiva que afeta a ambas as partes. Um processo que coloca questões,

dúvidas e indagações ao invés de apresentar respostas. Com essa opção na locução do filme,

contendo características de momentos de inserção no campo, Trinh T. Minh-ha estaria

também realizando uma crítica às formas convencionais de etnografia, que se apresentam

apenas em suas formulações finais, já acabadas, relegando o processo de escrita, o processo

de formulação, para o obscurecimento. Com essa estratégia a diretora expõe o seu caderno de

campo no filme, trazendo para o primeiro plano o seu processo de elaboração, contribuindo

assim para a revisão das práticas de escrita etnográficas, que encontram no processo fílmico

um terreno fértil para a experimentação.

Como a opção da cineasta é criticar os discursos de representação cultural

convencionais, a opção deliberada da cineasta é se opor à descrição objetiva, evitar as formas

de representação que “aprisionam” as expressões culturais a significados específicos. Em

Reassemblage a transcrição é subvertida de sua função primordial, que seria a de registrar

aspectos e fragmentos das manifestações culturais, coletar evidências, no que implica uma

ideia de objetividade. No filme a transcrição torna-se a evidenciação do ato da escrita, da sua

elaboração. No caso, trata-se de uma escrita fílmica, cujas estratégias narrativas são

evidenciadas por sua forma. Os planos são curtos, justapostos em uma montagem

fragmentada que valoriza o ritmo mais do que a narratividade. Os diversos pontos de vista

sobre um mesmo sujeito ou objeto enfatizam que esse olhar sobre o mundo histórico depende

de escolhas. A transcrição não existe em plena objetividade, depende decisivamente da

subjetividade da cineasta.

O momento da descrição tem referência direta com as descrições de cenas que estão

presentes na locução em voz over de Reassemblage. Porém, mesmo nesses momentos,

podemos notar a crítica e a reflexividade. Não há no filme a opção pela descrição detida do

fenômeno observado, como temos insistido a diretora duvida da objetividade, mas sim uma

elaboração que constrói-se quase como uma fabulação, uma estória que é contada. Seriam

realmente situações observadas in loco ou estórias que foram ouvidas pela diretora? Essas

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fabulações vão contribuir com a complexidade do discurso do filme. Contribuem inserindo

dúvidas, flexionando a observação para realçar a relação construída no encontro, que afeta

quem observa e quem é observado, impregnando todo e qualquer relato. Trata-se de um relato

que é afetado por essa cultura visitada, mas que também imagina uma realidade à partir dela.

6. Considerações finaisComo produto final, Reassemblage é um filme que provoca a tradição do cinema

documentário, propondo uma forma original que aproxima diferentes vertentes do cinema, do

filme etnográfico ao experimental, ao mesmo tempo em que desloca as fronteiras e

convenções desses subgêneros, contribuindo para a expansão do campo cinematográfico e

para o estabelecimento de estratégias fílmicas inovadoras no uso do som e da imagem. A

continuídade de nossa pesquisa sobre a obra de Trinh T. Minh-ha deve aprofundar questões

sobre a autoinscrição da cineasta em seus filmes e também a análise de como a cineasta utliza

de maneira inovadora estratégias típicas da tradição do cinema documentário, assim como

refletir sobre a forma ensaística que elabora nos diferentes trabalhos, que, no campo do

audiovisual, vão se estender para além do cinema em direção a instalações multimídia em

trabalhos seguintes.

Como vimos, o empreendimento eminentemente fílmico de Reassemblage pode ser

cotejado com a teoria social, de modo a contribuir para uma reflexão da qual é

contemporâneo em relação às descrições culturais e aos discursos que inscrevem e reforçam

lugares de poder. Do embate entre a estética fílmica e a teoria social vemos surgir uma forma

de etnografia que não mais pertence ao domínio estrito da antropologia como disciplina, mas

uma etnografia que reposiciona sujeitos e incorpora outros métodos, para além das

convenções tradicionais da disciplina na qual se originou. As questões ligadas ao diálogo

teórico de Trinh T. Minh-ha com diferentes campos do saber e diferentes epistemologias

ensejará análises futuras da relação entre a sua prática artística e sua produção intelectual.

Referências

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CLIFFORD, J. Notes on (field)notes. In: SANJEK, R. (Ed.) Fieldnotes – the makings of anthropology. Cornell University Press, 1990. pp. 47-70.

CLIFFORD, J. & MARCUS, G.E. Writing culture – the poetics and politics of ethnography. University of California Press, 1986.

NICHOLS, B. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2007.

RAMOS, F. O quê é documentário? In: RAMOS, F. & CATANI, A. (orgs.)Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre: Editora Sulina, 2001. pp. 192-207.

TRINH, T. M. Framer framed.Nova York: Routledge, 1992.

___________. The totalizing quest of meaning. In: RENOV, M. Theorizing documentary. Nova York: Routledge, 1993.

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