Inferno Astral

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 INFER NO ASTR AL 

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Inferno Astral E-book

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  • INFERNO

    ASTRAL

  • Um livro de

    Lucas Salles

  • Para os adolescentes

    de corpo, alma, idade e/ou de mente

    (demente).

    E para a Joana, claro.

  • Introduo

    Sempre tive um amor incondicional pela adolescncia. No s pela minha. Primeiro,

    por que, de fato, no podemos catalogar quando, realmente, deixamos de ser crianas e passamos a ser adolescentes. Muitos dizem que l pelos doze anos. Outros, que

    quando voc menstrua. No judasmo, aos treze anos, um garoto (que nem tem pelo na

    cara) j considerado um homem. A transio mxima. O apogeu para um ser. Virar

    homem aos treze anos de idade.

    Deve ser por isso que eu gostei tanto de no ter nenhuma religio durante a minha

    adolescncia. Fazia coisas sem pensar, no tinha nenhum Deus para me julgar, no tinha

    que visitar a igreja todo domingo, no pensava no inferno e nem no cu, no tinha com

    o que me preocupar e, muito menos, pensava no amanh.

    Para o adolescente, s existe um dia no ano. E esse dia hoje. O ontem j foi. No tem

    motivo para chorar. guas passadas no movem moinhos. O amanh o amanh, bicho.

    Deixa chegar o amanh que, a sim, a gente comea a pensar no que fazer. Enquanto o

    ontem j passou e o amanh ainda vai chegar, vamos viver o hoje. Afinal, o hoje hoje. Essa parada de se preocupar com o que j aconteceu e com o que vai acontecer no t com nada. Adolescente que tem alma adolescente faz merda pensando

    no hoje.

    Adolescente que tem alma de adolescente comete os maiores crimes da humanidade

    sem ter noo. Afinal, no existe fase mais mal compreendida do que essa. Uma vez,

    um amigo meu disse: Rico ser aquele que entender e escrever um livro sobre a cabea da mulher e do adolescente!. Sim. E, de fato, verdade. O ser humano que entender essas duas cabeas (formas de pensar e agir) viver numa fortuna infinita. Nunca cessar. Mas, pra qu querer ficar rico custa de uma fase da vida? Escrevo na

    esperana de que algum leia e diga: Caralho, pela primeira vez algum que me entende.. Afinal, nem os prprios adolescentes se entendem. Eles fazem aquilo que muitos deixam de fazer todos os dias. Eles vivem. Eles aproveitam cada dia como o

    ltimo. Afinal, um dia vai ser.

    A verdade que eu invejo profundamente quem tem dezesseis anos. Como eu sou

    louco para ter dezesseis anos de novo. E eu nem queria ter dezesseis anos com cabea

    de vinte e cinco. No. Eu queria ter corpo de dezesseis e cabea de dezesseis. Eu

    queria poder sonhar sem me preocupar em como realizar, queria poder dormir sem

    me preocupar em como ganhar dinheiro, poder sair de casa s nove horas da noite e s

    voltar s cinco da manh (e ainda levar esporro dos pais por voltar muito tarde), viajar

    escondido para Ilha Grande, ser virgem, penetrar nas festas de quinze anos, tenta ficar

    bbado s com Smirnoff Ice, querer pegar a garota mais linda da turma, matar aula,

    querer comer a piranha da classe, enfim, coisas fteis, mas importantssimas na vida de um ser humano. Coisas que, se voc no fizer, no ter o que contar aos seus netos.

    E saiba que ns vivemos somente para um propsito: ter histrias para contar aos

    nossos netos. Engana-se quem acha que a vida ganhar dinheiro e morar em New York.

    De nada adiantar isso se voc no tiver vivido o suficiente. Nem todo o dinheiro do

    mundo capaz de substituir uma adolescncia rica em histrias.

  • Sumrio

    Comeo

    Ohana Quer Dizer Famlia

    migas, virgindade e Bruno

    (Re)Comeo

    Fodeu

    Minha Vida, Meus Problemas

    O Comeo do Recomeo

    Preparao Para A Festa E Crise Existencial

    Dona Snia

    Verdades, Apenas Verdades

    O Bolo

  • J reparou que no h intensidade para o amor? Ou se ama, ou no se ama. Por que, caso se ame um pouco, j h a existncia do amor. Ou seja: j se ama! Para qualquer brecha de amor, j existe a possibilidade de se amar. E o amor amar o prximo sem esperar resposta. Por mais que voc morra perguntando.

    (O Autor)

  • Comeo

    Cncer?

    -Cncer no pulmo. Infelizmente, Luiza.

    Silncio total. Mas eu nem fumo, cacete!

    -Voc tem algum caso de morte por essa doena na sua famlia?

    Silncio total. S eu e o doutor Antnio naquela sala. Algum caso de morte? Acho que

    no. Ah, no! Merda. Tem sim. A minha av paterna.

    -Tem sim.

    -Quem?

    -A minha av.

    -Paterna ou materna?

    -Isso importa?

    -No. Claro que no. Desculpa.

    Silncio total novamente. Acho que o doutor Antnio estava mais nervoso do que eu.

    Ele queria falar alguma coisa, mas parecia que no conseguia.

    -Faz muito tempo que ela faleceu?

    -No. Acho que no. Uns seis anos? . Deve ser por a.

    -Eu vou pegar a cpia do resultado do seu exame.

    Foda-se.

    -E depois fazer uma carta para voc entregar aos seus familiares.

    Foda-se de novo.

    -Luiza? Tudo bem?

    Tudo bem? T tudo timo. Deixa s eu te lembrar de uma coisinha: eu tenho dezessete

    anos, fao dezoito em seis dias, no sei qual faculdade eu vou cursar, moro na Zona Sul

    do Rio de Janeiro num apartamentinho apertado pra cacete, tenho srios problemas com

    os meus pais e, pra completar o bolo, acabo de receber a notcia de que estou com

    cncer de pulmo sem nunca antes na minha vida ter fumado um cigarro sequer. Sim,

    doutor Antnio! T tudo uma maravilha! Me explica VOC se t tudo bem comigo!

    impossvel eu ter cncer no pulmo! Eu nunca fumei um cigarro na minha vida!

  • -Isso costuma acontecer quando algum familiar morre por essa doena. Em alguns

    casos, mais srios, podemos considerar que o cncer uma doena gentica.

    Gentica a minha bunda, doutor. Me d a cura, rpido!

    -Eu preciso fazer uma srie de exames para saber em que nvel est.

    Nvel "ferrar com a vida da Luiza".

    -Mas, relaxa. Pode ficar tranquila. Tem cura!

    Demora muito pra achar?

    -Na carta, eu explicarei tudo. Alis, por que os seus pais no vieram?

    Silncio total.

  • Ohana Quer Dizer Famlia

    A minha vida parecia calma, tranquila e agradvel. Isso, claro, antes dos meus pais

    chegarem de viagem. Parece que o clima fica mais "pesado" quando eles esto por

    perto. Minha me nem me olha direito na cara. Ela nem sequer fala comigo. E olha que

    eu no fiz nada pra ela. Srio. Ela que esquisita mesmo. Quando ela fala comigo, a

    nica coisa que eu escuto :

    -Deu comida para os cachorros?

    Dei, sim. Dei comida para os cachorros, arrumei o meu quarto, tirei o p da instante,

    lavei a privada, deixei o banheiro arrumado, pendurei as minhas roupas e, ainda por

    cima, tirei a poeira da casa. No, por favor, no me confunda com a Cinderela. Eu no

    sou amiga de ratinhos falantes. E nenhum prncipe encantado me quer. Infelizmente.

    -Ento... me... voc j sabe o que a gente vai fazer no meu aniversrio?

    -J o seu aniversrio? Achei que fosse ms que vem!

    -Faltam sete dias, me.

    Porra. Se liga, me! uma data especial, caramba.

    -O que voc quer?

    Espao e ateno, me! Mas pode me dar mais espao do que ateno! Eu no ligo! Eu

    quero espao pra caralhooo! Quero poder chegar em casa e ter um espao s pra mim.

    No precisa ter banheira com ofur, no. Um quartinho que caiba minha cama e as

    minhas fotografias do Johnny Depp t de bom tamanho.

    -Que tal um jantar no restaurante do seu tio?

    No! De novo? Porra, me. Eu j t cansada de todo ano comemorar l. Pera! J sei!

    Que tal se a gente no fizer nada e voc comprar uma televiso nova pro meu quarto?

    -Ser que rola aquela televiso?

    -Eu at poderia. Mas muito cara, Luiza. Espera baixar o preo que eu vejo o que eu

    posso fazer.

    Por que Deus no coloca um homem rico na minha vida? J sei! Vou fazer charme

    para o meu pai! Sempre funciona.

    -Luiza! Marquei exame pra voc amanh!

  • Que saco. Que horas, pai?

    -Eu no vou poder te levar. Nem eu e nem a sua me.

    E eu vou sozinha?

    -Tudo bem?

    Silncio total.

    -No.

    Minha me e meu pai se olharam. Eu no costumo negar. Na verdade, eu nunca nego.

    Eu sempre me calo e vou direto pro meu quarto. Sempre.

    -Por que no t bem?

    Por que, Luiza? Por qu? Rpido! Uma resposta!

    -O qu?

    -Voc disse que no estava bem. O que houve?

    Tempo. Eles me olharam esquisito.

    -Hn? Eu falei "no"? Desculpa, gente. Eu quis dizer "sim". T tudo timo. Boa noite!

    Eles voltaram a se arrumar para dormir. Eu no suportaria conversar com os meus pais.

    Eles passaram a minha adolescncia inteira sem se comunicar comigo. Isso que d ter

    uma me publicitria e um pai advogado/policial federal. Quase no tem tempo pra

    voc. Mas, o que mais me di, que, s vezes, eu acho que, alm deles no terem tempo

    para mim, parece que eles no se importam nem um pouco em me ouvir. Eu tambm

    sempre fui muito fechada. Acho que, desde criana, eu sempre tive medo de contar

    meus segredos e meus desejos para as pessoas prximas. Parece loucura, mas eu me

    sinto mais confortvel com um estranho do que com o meu pai ou com a minha me.

    Pra voc ter ideia, meus pais nunca conversaram sobre sexo comigo. Srio. Eu aprendi

    tudo com a Jlia. Eu acho.

    -Lu!

    Gostosooo! Que saudade eu tava de voc! D c um abrao na irm!

    -Lu! Lu! Lu!

  • O Francisco tem s um ano e seis meses de idade, mas j sabe falar "Lu" e outras

    onomatopeias. Ele sim um privilegiado. No s por ter ateno dos meus pais e no

    ter com o qu se preocupar. Alm de ele ser o irmo mais gostoso do mundo, ele o

    nico pra quem eu me confesso nessa casa.

    -Luiza, vai dormir por que amanh suas aulas voltam! No quero que voc repita logo o

    terceiro ano!

    Eu repeti a quarta srie. Mas no foi por causa de falta de estudo. Foi por que a gente

    tinha acabado de se mudar. Foi meio punk pros meus pais. O meu pai tava sofrendo

    ameaas de morte do pessoal de dentro da polcia federal. Da, minha me, com medo

    de ser viva, decidiu se mudar pro Rio de Janeiro. A gente morava em Braslia. Pois .

    Maior merda voc sair de uma cidade calma e tranquila e vir para um lugar mil vezes

    mais movimentado e perigoso. Aproveitando que a vov, me da minha me, tinha um

    apartamento aqui, meus pais decidiram refazer nossas vidas. Quer dizer, decidiram

    refazer a vida deles e acabar com a minha. Eu tive que me desfazer de tudo que eu

    demorei a construir em Braslia. Chorei? Chorei pra cacete. Chorei muito.

    Tem um cientista alemo que disse que o ser humano leva em torno de dezessete

    meses para aceitar que um namoro chegou ao fim, quarenta e oito meses para se adaptar

    a uma cidade nova e noventa e dois (sim, eu escrevi noventa e dois) meses para aceitar

    que algum partiu dessa para melhor. Ou seja, se, um dia, o seu namorado resolver

    acabar com voc e, logo em seguida, voc se mudar para outra cidade e, do nada,

    receber a notcia de que algum da sua famlia morreu, bem, voc s voltar a ser voc

    mesma depois de cento e cinquenta sete meses. O equivalente h treze anos e um ms.

    Um ms voc aguenta fcil. Mas, treze anos? Nem fodendo. Ou melhor. S fodendo.

    -Lu, me! Me! Me! Me, Lu!

    Me quer dizer filme. Ok, pirralho. Qual filme voc quer ver?

    -Ti! Ti!

    Ok, vamos ver Lilo & Stich. De novo. Eu nunca gostei dos filmes da Disney, mas

    esse, em especial, faz com que eu me identifique muito. No sei se pelo pssimo gosto

    que a garotinha tem para as roupas ou se por que eu pareo o Stich na vida real. claro

    que eu sou bonita, t? Autoestima t em dia, amiga. T falando que eu sou um

    monstrinho s que metaforicamente.

    s vezes parece que tudo na minha vida no foi feito para mim. como se todo

    mundo esperasse que viesse outra Luiza e a, do nada, veio eu. Um Stich. Sei l. Acho

    que eles esperavam uma Luiza mais animada, mais carismtica, mais bonita, mais

    simptica, mais fru-fru, mais mais...

    Definitivamente, eu no vim na famlia certa. Nasci num lugar onde os meus pais so

    super no liberais, onde sexo nunca foi comentado na mesa de jantar, onde vivemos

    refm do trabalho do meu pai, onde minha me acha que sabe tudo sobre a minha

  • adolescncia, onde eu no tenho espao fsico para criar meus desenhos, onde eu sou

    prisioneira da solido e onde eu culpo o Cristo todo dia de manh. Digo isso por que

    ns moramos de frente para o Cristo Redentor. Isso no me deixa mais feliz e nem

    acaba com os problemas. Isso s me faz lembrar que tenho mais problemas.

    Queria tanto morar em outro pas. Onde eu no conhecesse ningum e onde ningum

    quisesse me conhecer tambm. Num lugar onde eu pudesse sobreviver s tomando caf

    no Starbucks e ouvindo msica no meu iPod. Srio. Eu ia morrer escutando The Smiths

    e tomando Dulce de Leche Latte.

    Francisco dormiu. Como sempre. Antes de eu desligar a TV, tava passando aquela

    cena onde o Stich diz: Ohana quer dizer famlia. Famlia que dizer nunca abandonar.

    Querido, se Ohana quer dizer nunca abandonar, eu, jamais, irei usar essa palavra no

    meu vocabulrio. Deus me livre viver presa nessa vida de merda. Eu quero sair daqui

    e ganhar cinquenta mil reais por ms. Se tiver que abandonar, eu vou abandonar sem

    precisar pensar duas vezes.

    Amanh tem mdico e o meu primeiro dia de aula. E ainda, pra piorar, em sete dias eu

    fao dezoito anos. Devo estar no meu inferno astral. Devo, no. Estou.

  • migas, virgindade e Bruno

    Acordar, escovar os dentes, tomar banho, tomar caf da manh, me arrumar e tentar

    sobreviver a mais um dia de escola. Na verdade, o primeiro dos ltimos dias de aula. O

    primeiro e, provavelmente, um dos ltimos para escolher o que eu tenho que fazer. E o

    pior que eu no tenho a mnima noo do que eu quero ser. Eu sei que eu quero ser

    rica. Mas como, porra? Casar com um homem rico? Ajuda. Mas, aonde eu vou

    encontrar um homem rico que se interesse por mim? A situao s piora com os trs

    quilos a mais que eu carrego na barriga. Ser que tem como ganhar dinheiro sem

    precisar fazer algo?

    A Jlia, por exemplo, poderia ser muito bem uma puta de luxo. Ela j d pra todo

    mundo do colgio mesmo. Se ela comeasse a cobrar por isso, com certeza ia se dar

    bem. Se duvidar, ela ia ser mais rica que a minha famlia inteira s dando. E a Jlia

    minha amiga h muito tempo, p. Digo isso com profundidade. Ela d pra qualquer um

    mesmo. No fofoquinha ou inveja. Acho que ela t fazendo estgio pra ser

    acompanhante de milionrio. Ou de filho de milionrio. Se voc tem piru e estuda nesta

    escola, provavelmente voc j comeu a Jlia. Isso quer dizer que, provavelmente, a Jlia

    faa relaes internacionais.

    A Fernandinha com certeza vai ser lsbica. Independente da profisso, ela vai ser

    lsbica. Tipo, ela nunca ficou com nenhum garoto. Nunca. Acho que ela j nasceu

    assim. E olha que a gente estuda desde a quinta srie. Dizem que ela fica com a

    professora de ingls. Eu acho difcil. Mas no impossvel. A Fernandinha craque em

    ingls e fala melhor do que a professora. J sei! Fernandinha com certeza deve cursar

    lnguas. Coitada.

    A Suzana vai fazer gastronomia. Gorda que nem uma vaca, o melhor que ela pode

    fazer para a prpria vida. Essa vai morrer virgem e encalhada (ou com uma ponte de

    safena). Ela mais conhecida como Bolo Fofo. Ou tambm como Kit Kat, Choc (de

    chocolate), Celulite Ambulante e entre outros adjetivos que fazem jus ao seu fsico.

    Bem feito. Ela no para de comer! Come que nem uma porca e s fala merda. Eu no

    consigo ficar mais de trs minutos perto dela. Insuportvel.

    Marina, a maluca. Essa, meu Deus, t mais perdida do que cego em tiroteio. A Marina

    no vai fazer nada da vida. Ela perdeu o pai (que era militar) e a me num acidente de

    carro. S ela sobreviveu. Com isso, hoje em dia, ela recebe uma (gorda) penso do

    governo. Pra melhorar, ela mora com a av materna (que insiste em mim-la). Amo a

    Marina. Amo, de paixo. Somos amigas h um tempo. Mas essa, infelizmente, se

    perdeu na vida. Tudo comeou quando ela quis namorar com o Hugo da dois b. S que esse Hugo muuuiiitooo maconheiro. Nossa, ele fede maconha. Eu chego a

    vomitar do lado dele. A Marina nem fumava. Ela comeou por onda s pra acompanhar

    o namorado (que a trai). Desde ento, ela nunca mais parou. Aconteceram algumas

    coisas que eu acho que at ela se arrepende de ter feito. Tipo, mnage trios (ou

    cinq), fugir de casa pra viajar com o namorado, beber e dirigir ao mesmo tempo, fazer

    sexo com os amigos do Hugo na frente dele, ficar com meninas mais velhas do que ela,

    enfim, coisas que eu tenho certeza de que a Marina antiga, que eu conheo, nunca faria.

  • E, acredite se quiser, essas quatro so as minhas melhores amigas. Eu no suportaria

    viver sem elas. amor e dio, juntos, numa s relao. ruim com elas e pior sem elas.

    Entende? No me julgue. Por favor. assim que eu as trato. Eu sou cem por cento

    sincera. E, alm do mais, esse ano vai ser foda. Se uma das cinco sasse, com certeza ia

    desestabilizar as outras quatro. Foi um acordo que ns fizemos. At o terceiro, unidas estaro!. Eu tambm sou amiga dos meninos da minha turma, mas, s vezes, prefiro ficar s com as garotas. Eu quero ser uma delas.

    -Jlia, vai comigo ao mdico?

    -Que foi? T grvida, Luiza?

    -No, piranha. exame de rotina mesmo.

    -E t com medo de ir sozinha?

    -No isso. Sei l. S no quero ficar me preocupando toa...

    -Linda, a nica coisa que voc tem que se preocupar se tem algum feto na sua

    barriga...

    -T maluca? Claro que no! Eu no transo faz uns//

    -Dezessete anos?

    -Babaca.

    Ningum sabe que eu sou virgem. Pra falar a verdade, eu minto pra todo mundo

    dizendo que perdi com um garoto numa social que a Jlia deu na casa dela h uns dois

    meses atrs. Tipo, eu tava (e ainda t) muito a fim do Guga (que estava nessa social).

    Mas ele nem sequer me olhava. Ele tava muito mais interessado na Jlia. Quem no t,

    n? Com o corpo dela, at um gay ia me querer. Quem dera Deus me desse um par de

    peitos, uma bunda enorme e charme. Nossa. Eu ia pegar vrios. E s os gatos.

    Na social da Jlia s tinham caras mais velhos e que cheiravam. No tenho nada contra

    com quem usa drogas. Mas, sei l. Eu meio que tenho medo. No. Infelizmente meus

    pais nunca me ensinaram nada sobre drogas. A nica vez que eu ouvi meu pai falar algo

    sobre drogas foi quando ele disse: Drogas? T fora!. Meu pai consegue ser brega at em momentos srios. Melhor seria se ele fosse um nada. Srio. Se ele no dissesse nada ia ser bem melhor.

    Voltando social! Ento, como s tinha gente mais velha e experiente, eu achei que ali fosse um bom lugar pra... pra... tipo... pra tentar... ah... enfim, foder! Se o Guga no

    queria trela comigo (e nem prestava ateno em mim), dane-se. Outro cara ia fazer esse

    trabalho por ele. Mas, que outro?

    Eu tentei analisar todos os tipos de cara que estavam naquela social. Parecia um

    cardpio de opes. Tinha desde arrumadinho (que o mesmo que um feio bem vestido) a gordinhos maconheiros encrenqueiros. E, nesse meio termo, a minha

    indeciso s aumentava em relao a quem eu deveria dar. Dar em todos os sentidos,

  • claro. Eu no queria parecer nenhuma desesperada, mas tambm no queria parecer

    nenhuma lerda. Resolvi apelar, como toda mulher faz. Sim, todas as mulheres apelam

    quando esto indecisas. Apelam na esperana de serem correspondidas sexualmente. Eu

    aprendi isso com a minha tia Simone. Ela sempre disse: Se voc quer um homem fiel, seja fiel ao seu homem. Faa sexo todo dia com ele.. Fcil falar quando voc casada com o meu tio, que alm de gato rico. At eu, n, tia Simone?!

    Tinha um cara que fazia o meu tipo na social. Beeem gato. Tipo, gato mesmo. Mas, a,

    do nada, surgiu uma garota (do nada!) e roubou ele de mim antes que eu pudesse me

    aproximar e tentar alguma coisa. Piranha. Eu, desiludida e infeliz com o destino que

    ajudei a concretizar, decidi ir para o terrao da casa da Jlia. Eu costumo fazer isso no

    meu prdio. Sempre que eu t triste, eu vou l ver as estrelas. Elas me trazem uma

    calma e uma esperana que eu no fao a mnima ideia para que sirvam. Mas, daquela

    vez, as estrelas mandaram um recado. No um recado bonito, nem forte e muito menos

    interessante. Elas mandaram o Bruno. O Bruno o palhao do colgio. Ele t sempre

    fazendo piada e alegrando as pessoas no corredor. S que, naquela noite, naquele

    terrao, o Bruno no tava contando piada. E muito menos alegre.

    -Oi, me...

    Ele no tinha me visto. E eu no resisti. Tive que ouvir a conversa no celular.

    -Como a senhora t?

    Senhora? Quem ainda chama a me de senhora?

    -Que merda, me.

    Algum babado fortssimo. Tem cheiro de traio. As mulheres (principalmente as

    mes) sofrem muito com isso. . Deve ser isso.

    -E o papai? Como reagiu?

    Pera! Ser que ela traiu o pai? E o filho t ajudando a acobertar? Safada!

    -No precisa chorar, me! Vai ficar tudo bem!

    No adianta chorar sobre o leite derramado. Merdas cagadas no voltam ao cu.

    -Relaxa, me. Fica tranquila. Com certeza a gente vai arranjar um jeito! Eu vou ter que

    desligar. J t voltando pra casa.

    Pior que fazer merda envolver as outras pessoas na sua merda. Melhor eu sair daqui

    antes que ele perceba.

    -Luiza?

    Tarde demais, retardada. Se fodeu. Agora d teu jeito.

    -Bruno?

  • -Tudo bem?

    -Tudo. Desculpa! Eu nem vi que voc tava por aqui! Eu j t de sada!

    -No! Eu que no vi que voc tava aqui!

    Ele deu um sorriso sem graa.

    -Eu j t indo tambm.

    -!

    -Pois !

    -!

    Silncio total. Constrangimento total.

    -Voc ouviu alguma coisa?

    -O qu?

    -Voc t aqui h muito tempo?

    -Eu? Cheguei agora!

    -Voc no ouviu nada?

    -Negativo.

    Silncio total novamente.

    -Bom te ver, Luiza.

    -, pois ! Idem! At uma prxima a!

    -Voc no vai descer?

    -No! Vou ficar e fazer uma ligao!

    Ele sorriu, deu tchau e foi embora. Desceu as escadas da casa da Jlia e sumiu. Tinha alguma coisa estranha no Bruno. Ele nunca tinha sido srio e calmo com

    ningum. Alguma coisa tinha me dito para eu ir l conversar com ele. Talvez ele esteja

    precisando ser ouvido. Todo mundo precisa ser ouvido. Porra! uma merda no ter

    ningum pra desabafar. s vezes, a gente no quer uma soluo imediata. s vezes, a

    gente s quer ser ouvido. E, s de ser ouvido, j ajuda pra caralho.

    Beleza. isso. Eu no conheo o Bruno intimamente, no sou muito amiga dele, mas,

    foda-se. Eu vou l ajudar ele. Ou pelo menos tentar.

  • -Oi...

    Quem voc? E da onde voc surgiu? Eu tava aqui, sozinha! Como voc apareceu do

    nada? E o que voc veio fazer aqui no terrao?

    -Tambm curte dar um dois?

    No?! Com licena, eu tenho que ir embora! Puta merda. Outro drogado nessa festa.

    -Qual seu nome, gata?

    Meu nome No Te Interessa.

    -Prazer, Jonas.

    Todo Jonas maconheiro. Impressionante.

    -Voc linda, hein!

    O qu? C t vendo coisa sem fumar! Parabns, hein, Jonas! h!

    -Voc no vai falar nada?

    - que eu j tava de sada...

    -Ah, fica s mais um pouquinho, gata!

    Se ele disser gata de novo, eu dou um soco na cara dele.

    -No, eu realmente tenho que ir embora!

    -S me diz o seu nome...

    -Prazer, Lui//

    Antes que eu pudesse dizer o meu nome, o viado do Jonas me agarrou e me beijou

    fora. Infelizmente no foi um daqueles beijos de cinema. No. Foi uma parada babada,

    com gosto de maconha e cigarro. Parecia que eu estava beijando um cinzeiro! Ainda por

    cima, pra piorar, ele tinha um cabelo todo cheio de dreads mal lavados e que fediam a

    suor, maconha, salsicha e incenso. Porqu todo maconheiro pe incenso em tudo que

    lugar.

    Ele parou de me beijar, olhou pra mim e disse: Posso continuar?. Eu juro por Deus que naquele momento eu pensei em me tacar do alto do terrao da Jlia. Mas, com

    certeza, ia dar a maior merda pra Jlia. Ela ia ser a culpada pela merda que o Jonas me

    obrigou a fazer. Ento, pra tentar afastar o maconheiro tarado, eu perguntei: O que voc quer comigo?. Ele olhou no fundo dos meus olhos e disse: Te comer.. Nossa. Morri com o romantismo. Baixou o Shakespeare nele. Momento mais potico na minha

    vida. Se eu gravasse aquilo, com certeza ia virar toque do meu celular. Porra! Que voc

    quer me comer, isso eu sei! T bvio! At porqu, se no fosse por isso, eu ia te achar

  • muuuiiitooo mais estranho do que eu j estou achando! Quer me comer? Ento, por

    misericrdia, faa o favor de ser um gentleman. Ou pelo menos tentar.

    -E a? O que voc me diz?

    No digo. Faz. Vai! Comea a me beijar pra ver se eu sinto alguma coisa alm de nojo!

    Pelo amor do santo Cristo. Eu nunca tinha me sujeitado a isso. Mas, s passava uma

    coisa na minha cabea: hoje, Luiza! hoje, Luiza!. Passava isso e a musiquinha que tocava quando o Ayrton Senna ganhava as corridas de frmula um. Os dois, ao

    mesmo tempo! E o teso que bom, nada.

    normal o cara ter a boca seca? Parece que quanto mais eu beijo ele, mais a boca t

    seca. E beijar de olho aberto? Rola? E rla? Rola tambm? Meu Deus. Ele botou o pau

    pra fora. O que eu fao?

    -Pega nele...

    Eu? bvio que no! Vai saber por onde andou isso a!?

    -Vai... pega...

    Arhg! Que nojo! Nossa, tem muita pele nesse troo! T bom. Vai, Luiza. Pega nele.

    Vai. Coragem, porra. Peguei. T. E agora? O que eu fao? S fico olhando? Aperto?

    -Aiii! No aperta!

    Ok, anotado. No pra apertar. Meu Deus. O que eu fao? Tem muita pele nessa

    porra. Ser que se eu sacudir ele sossega?

    -D um beijinho nele...

    Oi??? O qu??? Hahahahaha! Dar um beijinho nele? Pelo amor de Deus, n?! T maluco. Eu nunca te vi antes, seu drogado. C quer que eu chupe o seu pau, assim, do

    nada? Eu nem te conheo! Vai que voc tem alguma doena!

    -Ele s seu...

    Dispenso. Muito obrigada. Mas eu t muito bem sem ele.

    -Vai! S um beijinho...

    No, cara.

    -Por mim...

    S t piorando a situao.

    -S um beijinho e eu juro que no vou pedir mais nada...

  • Tem um amigo meu que diz assim: A vida uma selva! Ou voc d ou voc chupa!. Como eu nunca ia querer dar pra aquele animal, eu achei que um beijinho talvez no fosse machucar. Ento, engoli ar suficiente para no ter que respirar pelo nariz, e me

    agachei. S que, na hora em que eu me agachei (que nem nos filmes porns, fazendo

    olhar de piranha sensual), o retardado do maconheiro viado sentiu nsia de vmito (no

    sei por qual motivo). E, com isso, ele virou e vomitou no meu cabelo.

    Um minuto de silncio em respeito minha dignidade, por favor.

    Srio. Eu t falando a verdade. Juro. Nem eu acreditei. Custava vomitar pro lado,

    viado? Caralho! E agora? O que eu vou fazer com o meu cabelo? Aonde eu vou lav-lo?

    Vou ter que passar na frente de todo mundo com essa porra? Porra, no! Vmito

    mesmo! Antes fosse porra. Esfregava na camisa e, pronto, j saa. Que vontade que eu tenho de te matar, seu drogado de merda!

    -Foi mal, gata!

    Se voc me chamar de gata de novo, eu rasgo o seu saco e voc nunca mais vai poder

    ter filhos.

    -Jliaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!

    Minhas amigas tem um sexto sentido ativado quando alguma merda d. E no foi

    diferente. Depois de eu ter gritado o nome da Jlia (l de cima, no terrao), ela apareceu

    ofegante e preocupada.

    -Que merda essa?

    Eu apontei pro Jonas. Ela riu.

    -Foi mal, Jlia! Desculpa a, gata!

    Para de me chamar de gata, seu maconheiro de merda! Sai daqui! Antes que eu te bata!

    Srio! Antes que eu faa alguma merda!

    -Jonas, melhor voc ir l pra baixo com os outros garotos!

    -Desculpa, Julinha. Mal a!

    Depois de a Jlia ter me acalmado e limpado meu cabelo umas trinta vezes, contei pra

    ela o que tinha acontecido no terrao. Desde ento, todo mundo acha que eu perdi a

    virgindade com um maconheiro que vomitou em mim. Por favor, no ria da minha cara.

    -Babaca.

    -Eu tenho vlei. Pede pra Marina ir contigo.

    No. Quer saber? Eu vou sozinha. Por favor, n? At parece que eu tenho alguma

    coisa.

  • -Mas, quando voc sair de l, me liga. A gente pode voltar junto pra casa. Ok?

    Ok. Eu acho.

  • (Re)Comeo

    -Eu tenho uma consulta marcada com o doutor Fabiano.

    -Boa tarde. O doutor Fabiano no veio hoje. Quem vai te atender o doutor Antnio.

    Algum problema?

    No?

    -No.

    -Pode aguardar sentada. Por favor.

    S tem revistas velhas nessa sala. Aqui uma: Casamento do ano! Ronaldinho e Cicarelli!. Pena. Outra: Depoimento de atrizes contando como fazem para serem magras!. Pena de novo. No para por a: Extra, extra! Tem rolo! Atriz que faz par na novela das oito flagrada com o mocinho da trama!. De uma coisa eu sei. Nunca vou me submeter a estudar jornalismo para escrever esse tipo de matria. Coisa ridcula

    querer saber da vida das celebridades. Pior do que algum querer saber, algum passar

    quatro anos da vida dela estudando os princpios da comunicao para trabalhar como

    fofoqueiro. Op. T a. De uma coisa eu sei. No vou fazer jornalismo. Posso at fazer uma listinha com as opes que eu no quero e ver o que vai sobrar at o final

    desse ano. S espero que no fique turismo e nem gastronomia. Nada contra, mas essas

    duas tambm no fazem parte do meu perfil.

    S eu percebi que quanto mais velho, mais chato ns ficamos? raro ver um senhor de

    bom humor. Parece que muita gente no aceitar envelhecer. Eles vo ficando ranzinzas,

    mal educados e chatos. Ser que eu vou ser uma velha ranzinza mal educada chata?

    Coitado dos meus netos.

    Pois . Velhas e revistas ultrapassadas. nisso que podemos resumir um consultrio

    mdico. E cheiro de lcool em gel, claro.

    -Luiza!

    Bor l. Vamos acabar de uma vez por todas com isso.

    -Tudo bem, Luiza? Prazer. Eu sou o doutor Antnio. O doutor Fabiano infelizmente

    no pode vir hoje. Parece que teve algum acidente envolvendo a filha dele.

    Putz, que merda. Deve ser ruimzo para um pai (que realmente se importa com a sua

    filha) saber que houve algum acidente.

    -Alguma coisa grave?

    -No! Deve ter sido alguma bobeira. Ela deve ter tomado alguma bomba no colgio.

    Ele no faz a mnima ideia do que houve.

  • -Vamos comear com uns exames da coluna. Pode ser? O doutor Fabiano me disse que

    voc tinha um probleminha na coluna. Mas, d pra ver que voc no sofre mais desse mal, n? Hahahaha! No mesmo?

    Ha ha. Pois . Posso ir l tirar o raio x?

    -Voc sabe onde a sala?

    -Sei.

    -Te espero aqui com os resultados!

    Alguma coisa t me dizendo que esse mdico gay. No sei por qu. Mas t com cara.

    E ainda por cima de passivo. Tanto faz. Isso no me importa mesmo. Mas que, seria um

    desperdcio, isso sim. Seria um grande desperdcio. Tentar ter a minha primeira vez com

    ele. O qu? Voc t louca, Luiza. No. Eu t s falando que ele bonito e parece ser

    bem jovem. Se, por um acaso, ele quisesse me conhecer melhor, seria, de fato, um

    prazer. Em todos os sentidos. Se ele no vomitar no meu cabelo, melhor ainda.

    -Luiza, ser que voc pode esperar na sala de novo? S mais uns cinco minutinhos.

    -Ainda no entregaram os meus exames?

    -No, no isso. S um minuto. Andria ligue para o doutor Fabiano e me repasse a

    ligao, por favor. Diz pra ele que um assunto srio. Luiza, s mais cinco minutinhos

    que eu te chamo. Pode ser?

    E eu vou falar no? Cara estranho. Deixa. Perdi todo o teso.

    -Luiza, eu vou precisar que voc refaa o raio x da coluna. Tivemos algum

    probleminha com a mquina.

    -Tudo bem.

    -Luiza...

    Meu Deus, ele vai me chamar para sair. agora.

    -Voc fuma?

    O qu???

    -Como?

    -Voc costuma fumar?

    srio que voc t me perguntando isso?

    -No, doutor. No fumo. Por qu?

    Tempo. Silncio total.

    -Era s curiosidade.

  • Ele gay. Com certeza. Pra ter feito essa pergunta do nada, porqu ele . S falta

    perguntar a cor do meu esmalte, o nome do shampoo que eu uso, etc.

    -Luiza, pode vir.

    E ainda por cima esconde mal.

    -Eu tenho aqui dois exames da sua radiografia.

    U? Mas os primeiros no tinham ficado ruins?

    -Eu pedi que voc refizesse porqu tive uma, bem... digamos, assim... uma... uma

    dvida. Por isso eu tambm pedi que voc esperasse enquanto eu ligava para o doutor

    Fabiano.

    O que foi? Eu vou ter que usar aquele troo na coluna de novo?

    -Luiza...

    , eu vou ter que usar aquele troo na coluna de novo. Meu Deus. Eu no acredito.

    -Na radiografia... quer dizer, nas duas radiografias...

    Fala logo!

    -Apareceu um cncer.

    Cncer?

    -Cncer no pulmo. Infelizmente, Luiza.

    Silncio total. Mas eu nem fumo, cacete!

    -Voc tem algum caso de morte por essa doena na sua famlia?

    Silncio total. S eu e o doutor Antnio naquela sala. Algum caso de morte? Acho que

    no. Ah, no! Merda. Tem sim. A minha av paterna.

    -Sim.

    -Quem?

    -A minha av.

    -Paterna ou materna?

    -Isso importa?

    -No. Claro que no. Desculpa.

    Silncio total novamente. Acho que o doutor Antnio estava mais nervoso do que eu.

    Ele queria falar alguma coisa, mas parecia que no conseguia.

  • -Faz muito tempo que ela faleceu?

    -No. Acho que no. Uns seis anos? . Deve ser por a.

    -Eu vou pegar a cpia do resultado do seu exame.

    Foda-se.

    -E depois fazer uma carta para voc entregar aos seus familiares.

    Foda-se de novo.

    -Luiza? Tudo bem?

    Tudo bem? T tudo timo. Deixa s eu te lembrar de uma coisinha: eu tenho dezessete

    anos, fao dezoito em seis dias, no sei qual faculdade eu vou cursar, moro na Zona Sul

    do Rio de Janeiro num apartamentinho apertado pra caralho, tenho srios problemas

    com os meus pais e, pra completar o bolo, acabo de receber a notcia de que estou com

    cncer de pulmo sem nunca antes na minha vida ter fumado um cigarro sequer. Sim,

    doutor Antnio! T tudo uma maravilha, porra! Me explica VOC se t tudo bem

    comigo! impossvel eu ter cncer no pulmo! Eu nunca fumei um cigarro na minha

    vida!

    -Isso costuma acontecer quando algum familiar morre por essa doena. Em alguns

    casos, mais srios, podemos considerar que o cncer uma doena gentica.

    Gentica a minha bunda, doutor. Me d a cura, rpido! Por favor!

    -Eu preciso fazer uma srie de exames para saber em que nvel est.

    Nvel "ferrar com a vida da Luiza".

    -Mas, relaxa. Pode ficar tranquila. Tem cura!

    Demora muito pra achar?

    -Na carta, eu explicarei tudo. Alis, por que os seus pais no vieram?

    Silncio total.

    -Luiza?

    Rpido, Luiza! Rpido!

    -... eles no vieram porqu esto cuidando do enterro do meu padrinho.

    O qu??? Por que mentir?

    -Meus psames.

  • Voc no tem padrinho, Luiza!

    -Pois ...

    Como eu vou voltar pra casa agora?

  • Fodeu

    O celular toca duas vezes seguidas. Eu olho e vejo que a Jlia. Quero falar com

    ningum. Desligo o celular. Eu ando pelas ruas de Copacabana e ningum me v. Como

    eu vou dar a notcia para os meus pais? Eles no vo ter a cura e vo me deixar mais

    preocupados. Luiza, calma. s no entregar a carta e ir a outro mdico. Talvez esse

    doutor Antonio esteja errado. S pode! Ningum tem cncer de pulmo sem nunca ter

    fumado!

    Fica calma. Voc tem um futuro brilhante pela frente! Deve ser um erro mdico. Rola

    muito isso. Uma vez eu li num site de entretenimento que um japons processou uma

    clnica mdica por terem diagnosticado ele com AIDS quando, na verdade, ele estava

    com infeco urinria. Ento. Vai ver eu estou com infeco urinria e o doutor Antonio

    t achando que cncer.

    E ainda posso processar a clnica e ganhar um dinheiro em cima. No, Luiza. Cai pra

    realidade. Talvez voc realmente esteja beira da morte. Voc tem que contar pros seus

    pais. bvio. Eles tm o direito de saber. E no preciso contar para mais ningum. S

    eles precisam (e devem) saber. Ento isso. Eu acho. Mas, e se realmente for erro

    mdico?

    -Alou?

    -Eu preciso de voc.

    E eu preciso de Deus, Jlia.

    -O que houve?

    -M.F.

    M.F. a sigla para merda federal. Meu pai usava com os amigos dele do trabalho e eu acabei adotando.

    -Onde voc t?

    -Em casa. E voc?

    -Acabei de sair do mdico. Vou pegar um nibus e ir pra.

    -Por favor.

    Jlia tava estranha. Talvez algum da famlia tenha falecido, ou o garoto que ela ama

    de paixo (que o Beto) tenha dado um fora nela. Vou ligar de novo oferecendo

    sorvete. Sempre funciona.

    -Quer que eu leve sorvete?

    -S vem, Luiza. Por favor.

  • Ih, a merda federal mesmo.

    -Apartamento duzentos e dois, por favor!

    -Pode subir. A dona Jlia j te liberou.

    Ser que o cachorro dela morreu?

    -Minha menstruao t atrasada.

    Puta que te pariu, Jlia!

    -Puta que te pariu, Jlia!

    Ela comea a chorar.

    -H quanto tempo?

    -Um ms!

    -Caralho! E demora isso tudo?

    -No!

    -No nervosismo? Volta s aulas? O Beto ainda no voltou da viagem do exterior!

    -No nada disso, Luiza!

    Ela no parava de chorar. Acho que, pela primeira vez, eu realmente fiquei tensa. No

    sei por qu. Mas fiquei bastante preocupada com a Jlia. E se ela realmente estiver

    grvida? Fodeu! O pior de tudo descobrir quem o pai. Se duvidar, essa criana pode

    nascer miscigena.

    -Jlia, voc j pensou em fazer um teste de gravidez?

    Silncio total.

    Algum tem que ir at a farmcia e comprar o teste. Adivinha quem foi? J no

    bastasse o doutor Antnio me por um cncer, eu ainda tenho que me preocupar com a

    (possvel, quase concreta) gravidez da Jlia. Foda. Parece que eu sou a me das minhas

    amigas. Nenhuma sabe se cuidar sozinha. Quem as leva bbadas pra casa? Eu. Quem d

    banho nelas pra tentar tirar o cheiro de vodka? Eu. Quem que pem elas num txi de

    volta pra casa? Eu. Quem que mente pros pais delas dizendo que elas vo dormir na

    minha casa? Isso mesmo. Eu. Quem que acoberta todas as merdas delas? Eu. Porra!

    Eu tambm quero fazer merda! Tambm quero ter algum para me acobertar!

    -Boa tarde.

    -Por favor, me v dois testes de gravidez.

  • -Alguma preferncia por marca?

    -Qualquer uma. Mas tem que ser confivel.

    -Luiza!

    Bruno?

    -Bruno?

    -Oi...

    Ele deu um sorriso sem graa.

    -Tudo bem?

    Eu fiquei sem graa.

    -Tudo?

    -Tudo?

    -Tudo. E voc?

    -Eu t bem. E voc? T bem?

    Era bvio que o farmacutico iria surgir agora.

    -Serve dessa marca aqui? noventa e nove por cento de certeza! No costuma falhar!

    Eu sempre indico quando algum vem aqui desesperado!

    Tempo. Silncio total. Constrangimento total.

    -Pode ser.

    -So s dois testes mesmo, n?

    O Bruno viu. Merda.

    -Eu vou embrulhar pra senhora!

    -Olha, Bruno, no nada disso que voc t pensando!

    Ele riu.

    -No acha melhor levar trs testes?

    Por qu?

    -Por qu?

  • -Porqu a voc vai ter o voto de Minerva, n...

    Voto de Minerva? Pssima piada para o momento. Silncio total. Eu fiquei sria

    enquanto olhava pra ele.

    -Acho que a piada no combinou com o momento.

    -Tudo bem! No so pra mim.

    -No? Ento...

    -Acho que no te interessa, n?

    Silncio total novamente. O Bruno ficou sem graa.

    -... realmente, no me interessa. Desculpa.

    -De boa.

    -Aqui, senhorita! Deu dezenove reais!

    -Fica com o troco. Tchau, Bruno.

    -Tchau, Luiza.

    Olhei com o rabo de olho para ver se o Bruno me seguia com o olhar e a nica coisa

    que eu consegui ver era ele pegando no telefone. Fodeu. Ele vai espalhar pro colgio

    inteiro que eu t grvida. Jesus. Eu. No. T. Acreditando. Minha vida virou um

    inferno.

    P.s.: Eu voltei e deixei os testes de gravidez na portaria do prdio da Jlia. J tinha

    passado vergonha o suficiente para um dia.

  • Minha Vida, Meus Problemas

    J tinha dado merda o suficiente para um dia s. Descobri que tenho cncer, Jlia

    (provavelmente) est grvida, o Bruno me viu comprando testes de gravidez (para a

    Jlia) e, com certeza, vai espalhar para o colgio inteiro que eu estou grvida. timo.

    Eu no sei o que melhor. Grvida aos dezessete anos ou morta por um cncer que nem

    meu. Isso culpa da minha av (que eu nem conheci direito!). A desgraada era uma

    mo de vaca do cacete e a nica coisa que ela me deixa de herana um cncer de

    pulmo. E EU NEM FUMO. Isso um absurdo. Srio. Deus s pode estar querendo me

    sacanear. Na boa, t foda. Acho que morrer vai at servir como uma sada.

    Imagina contar uma notcia dessas para o meu pai? Ele j focado vinte e quatro horas

    por dia no trabalho. Ele vai pirar se eu der a notcia pra ele. E a minha me? Ia chorar

    uma semana seguida gritando Por qu? Por qu, meu Deus?!. Melhor no contar.

    Mas, por outro lado, talvez seja uma boa hora de conversar com eles. Vai ver tem cura.

    Vai ver nem um cncer e sim um erro na mquina. No ? Uma vez eu li num site de

    entretenimento que um japons processou uma clnica mdica por terem diagnosticado

    ele com AIDS quando, na verdade, ele estava com infeco urinria.

    Conta. No. No conta. Conta s pro seu pai. No. A depois ele vai contar pra minha

    me e ela vai ficar falando que eu nunca conto nada pra ela. possvel que ela fique

    mais puta por eu ter contado primeiro pro meu pai sobre a doena do qu com a doena

    em si.

    Voc nunca conta nada pra mim! Eu sempre sou a ltima a saber!. Me, por mim, voc no seria a ltima a saber. Por mim, voc seria a NICA a no saber. Tipo, se eu

    no te conto por que eu no quero te contar. Entende? Ser que voc pode respeitar

    isso? Por favor. Sabe qual o nome disso? Sim, privacidade. E eu mereo.

    E se eu no contar pra ningum e resolver essa parada sozinha? Eu, praticamente, sou maior de idade. Faltam apenas seis dias! No preciso de acompanhante para exames

    e/ou tratamento. E se tiver que raspar a cabea? Bem, h tantas violetas velhas (e

    carecas) com um colibri.

    No ruim, ruim, ruim de tudo, mesmo careca, ainda d pra por uma peruca. Pensa

    positivo, Luiza. Ainda tem jeito. Merda. To me ligando.

    -Alou?

    -Luiza?

    -Fala, Suzana.

    -Tudo bem?

    -Aham. O que qu houve?

    -Nada.

  • Silncio por alguns segundos.

    -Suzana?

    -Oi!

    -O que foi?

    -Nada!

    -Hn?

    -Eu s queria conversar por que//

    -Suzana, agora no uma boa hora. Depois a gente conversa. Amanh no colgio.

    Mais alguns segundos em silncio.

    -T...

    As pessoas nunca param para pensar que podem estar atrapalhando a vida dos outros,

    n? Sabe o que pode me ajudar? Meu iPod e as caixas de som no ltimo volume. Isso,

    com certeza, vai me ajudar. Luiza, conta ou no conta? Nossa. Parece at drama de

    novela das oito. Conta logo de uma vez, porra! O mximo que eles vo fazer chorar e

    tentar te ajudar. E se no tiver soluo? Eles vo sofrer mais e mais, sempre. O que eu

    posso fazer para que eles no sofram? U, eles sempre te ignoraram, n? No. Eles no

    me ignoraram. Eu que sempre esperei bem mais do que eles pudessem oferecer dentro das nossas condies. Eu tambm tenho a pssima mania de comparar a minha

    vida com a dos outros. Enquanto todas as minhas amigas ganharam um carro aos

    dezoito anos, eu ganhei um ms de acupuntura grtis no salo da tia Simone. ta, vida

    de merda.

    Ningum se preocupa com a Luizinha aqui. Toda a minha pr-adolescncia foi

    limitada. No tenho dinheiro para isso! Voc acha o qu? Que o meu dinheiro nasce em rvore? Quem sabe no natal! Voc nunca t satisfeita, Luiza!. BVIO que eu no estou satisfeita com que eu tenho sabendo que eu posso ter mais e melhor.

    E nem adianta me chamar de mimada. Se ao menos tivesse algum realizando os meus

    desejos, a sim, eu seria (talvez) uma mimada.

    Eu at poderia adotar a ttica dos Beatles, let it be. fcil falar quando voc tem dinheiro pra caramba, toca numa das bandas mais famosas do mundo e ainda por cima

    tem tudo o que quer. Eu queria, um dia, quem sabe, ouvir algo que realmente fizesse

    efeito na minha vida. Queria ouvir algo de algum que sofre as mesmas coisas que eu.

    Por que fcil falar take it easy quando se tem tudo que precisa para ser feliz. Eu ainda no tenho nem metade daquilo que eu quero conquistar.

    Eu tenho problemas, dvidas e complicaes dentro da minha prpria casa.

    AHHHHHRGH! Porra! No vejo a hora de morar sozinha! De mandar todo mundo se

  • foder e ir morar numa casinha no meio do mato. Mas quando? E como? O que eu tenho

    que fazer para isso?

    Trabalhar. Mas, trabalhar com o qu? Eu nem sei o que fazer? Eu nem sei quais as aulas eu tenho amanh! Como eu vou saber o que eu quero da minha vida? Ah, mas voc j tem dezoito anos! J uma mocinha!. Dane-se. Tem um bando de gente que entra na faculdade aos dezoito anos e fica fazendo quatros anos de um curso que nunca

    vai usar na vida. Isso tudo por que entrou com dvidas antes de parar e pensar no que

    realmente gosta.

    Pensa, Luiza! O que voc gosta? Eu gosto de viver. T. Muito vago. Eu gosto de... eu

    gosto de organizar os eventos do colgio! Organizadora de eventos! Isso ganha

    dinheiro? D pra viver bem com isso? Tirar uns sessenta mil por ms? Eu tambm gosto

    de mandar. isso mesmo. Eu gosto de mandar nos outros. Que tal diretora? Eu poderia

    dirigir um filme. Isso fcil. s ficar falando ao e corta. Ps-graduao em petrleo? Dizem que d dinheiro hoje em dia. No. Melhor no.

    Aff. No t com cabea pra pensar nisso agora. T, na verdade, preocupada em como

    dar a notcia pros meus pais. PERA. J sei! s ir a outro mdico pra saber se o exame

    t errado! P! Isso super normal de acontecer! Uma vez eu li num site de

    entretenimento que um japons processou uma clnica mdica por terem diagnosticado

    ele com AIDS quando, na verdade, ele estava com infeco urinria.

    Vai ver, eu t s com uma infeco urinria! No. No minta para si mesma, Luiza.

    Encare os fatos. V a outro mdico. Pode ser em qualquer hospital, mas v. At mesmo

    no hospital pblico onde ocorrem milhares de erros mdicos. Tire a limpo essa dvida.

    Conta pros seus pais. o melhor a ser feito.

    Odeio quando a conscincia fala mais alto. Eu no quero contar pra ningum! Porra!

    Me deixem morrer em paz!

    Mas quem disse que voc vai morrer, Luiza? O prprio doutor Antnio disse que tem

    cura. E se no tiver? Se no tiver, a teremos que arranjar um jeito de aproveitar a vida

    antes dos vinte anos. .

    At que no seria uma m ideia fazer aquilo tudo que eu tenho vontade antes de

    completar vinte anos. Poderia ser uma bela desculpa para no ter mais responsabilidade.

    Quem eu devo ouvir, Deus? Na dvida, oua seu corao, Luiza.. Ok. Eu acho que sei exatamente o que meu corao est pensando. Eu me conheo to bem que eu sei o

    que ele t pensando.

    Querida dona,

    Sei que ns nunca sentamos para conversar e tomar um chopp no Baixo Gvea, mas eu

    preciso ter a profunda intimidade para lhe pedir algumas coisas.

    Por favor, pare de se apaixonar primeira vista sem nem ao menos conhecer a pessoa

    direito. Alis, pare de se apaixonar mesmo tendo algum conhecido h mais de

    cinquenta anos.

  • A paixo s me fode. Ela s existe para tirar as minhas energias. Se eu pudesse, me

    apaixonaria de uma s vez pro resto da minha vida. E seria pelo Crebro. Ele sim sabe discernir o que certo e o que errado. No haveria contradies com o Crebro. Ele sempre teria a razo. Venceria qualquer possvel discusso.

    Pare de se emocionar por qualquer coisa. Guarde suas emoes para os seus prprios

    problemas. Voc no precisa me usar para os outros se sentirem bem e amados. Seu

    corao s seu.

    Por favor, me d uma trgua. Eu no aguento a carncia. No consigo ir me

    apaixonando sempre por uma pessoa diferente. Eu quero sempre me apaixonar

    diferente pela mesma pessoa, sempre! Nem que essa mesma pessoa seja voc (que, no caso, sou eu tambm).

    Por favor, dona. Liberte-me desta angstia que querer ter algum para se sentir

    amada. Eu quero me sentir amado tambm, mas no acho que devemos ficar procurando

    por a. Deixe acontecer. Talvez, quando acontecer (se acontecer), seja infinito enquanto

    dure. Talvez no... Talvez no role... Talvez role com a pessoa errada...

    Por que voc se importa tanto em querer ser amada? Deixe isso de lado, menina. V

    aproveitar a sua vida! V pensar em coisas que lhe deem retorno e no dor de cabea!

    Aproveita, minha filha! V praia! Me leve junto com voc! Tome um banho de gua

    do mar!

    Pare de esperar muito dos outros. No espere nada de ningum. S h duas pessoas

    que sempre estaro com voc. Seu pai e sua me. E contente-se com isso. Nem sempre

    eles sero os que estaro cem por cento ao seu lado. Algumas vezes eles podem

    discordar e no querer te ajudar. Mas no por mal. por que, quer voc queira ou no,

    eles so mais velhos do que voc. So mais experientes. Eles sabem das coisas, menina.

    Acredite neles. So os nicos que no querem ver voc se ferrar.

    Luiza, preste ateno. Isso tudo s vai fazer sentindo se voc me ouvir. Eu sei que ns

    nunca sentamos para conversar e tomar um chopp no Baixo Gvea, mas eu preciso ter a

    profunda intimidade para lhe pedir algumas coisas e voc precisa ter a mais profunda

    inteligncia para aceitar. Aceita que di menos, Luiza. Pare de querer que as coisas

    sejam do seu jeito. Aceita!

    E aprenda uma coisa: O amor transforma qualquer lugar escuro em um lugar

    iluminado.

    Ass, Seu Corao..

  • O comeo do recomeo

    Seis e cinquenta. Depois de ter conseguido dormir s s trs da manh pensando no

    que eu ia fazer com a minha vida, eu acordei disposta a mudar tudo. Acordei at feliz.

    Neeem TO feliz, claro. J tinha tudo esquematizado na minha cabea. Eu vou contar

    primeiro pro meu pai sobre o tal cncer, depois eu vou contar pra minha me e, assim que ela terminar de chorar (umas seis horas, no mnimo), eu vou at a casa da Jlia

    obrig-la a contar tudo para os pais. E, pra melhorar, hoje, durante a aula, eu vou

    chamar o Guga pra ir ao cinema. Dane-se que so os homens que devem ter atitude. Eu

    acho que, se uma mulher tambm quer pegar um cara, ela tem que cham-lo para ir ao

    cinema. No basta s dar mole. s vezes eles no percebem. As mulheres amadurecem

    bem mais rpido que os homens. Os homens sero eternas crianas beberronas.

    isso, Luiza. Hoje o seu dia. Faltam apenas cinco dias para o seu aniversrio. Voc

    aguenta at l, n? O que pode acontecer de ruim at l? Nada! O mximo uma unha

    encravada, uma dor de barriga...

    -Desgraado!

    -A culpa no minha!

    -Por que voc no me contou?

    -Porqu eu no sabia de nada!

    -Mentiroso!

    Eu acordei decidida, mas acho que algum nessa casa nem dormiu.

    Fui at ao quarto dos meus pais para saber o que estava acontecendo. Quando eu

    entrei, o quarto parecia que tinha sido revirado por algum bandido. Parecia que algum

    tinha entrado l e jogado tudo para o alto. Minha me tava sentada, chorando, no cho

    do quarto. Tentei ver onde estava o meu pai mas no conseguia tirar a ateno da minha

    me.

    -Me? O que houve?

    -Luiza, o seu pai um filho da puta!

    Nota: minha me nunca tinha xingado na minha frente. Ele nunca sequer falou um

    palavro ao meu lado.

    -Eu no quero que voc fale mais com o seu pai! Entendeu, Luiza?

    -Mas, me, o que aconteceu?

    -Filho da puta!

    Outro palavro.

  • -Me! O que houve? Fala pra mim!

    -Eu no quero falar sobre isso agora! S no quero que voc chegue perto dele!

    -Mas, me//

    -Luiza!!!

    Minha me j gritou meu nome diversas vezes, mas nunca como agora. Os olhos dela

    estavam vermelhos de raiva. Eu via na feio dela um dio infinito. Por qu? O que

    houve? O que o meu pai poderia ter feito? Trado? Mas o meu pai nem tem tempo pra

    isso? Meu Deus, o que t acontecendo na minha vida? Fala logo, Luiza! Conta logo pra

    ela! Talvez ela esquea de brigar com o seu pai e queira te ajudar! No! Talvez ela

    culpe o meu pai e acabe dando uma merda pior! Falo? Morro? Ou estrago ainda mais o

    dia dela! Fala, Luiza! No, fala! No! Fala! Fala! Fala o que voc tem!

    -Me! Eu t com//

    BUM! Ouvimos uma exploso que vinha l de fora. Sa correndo com medo de ter

    explodido alguma coisa. Francisco comeou a chorar. Minha me foi tomar conta dele

    enquanto eu fui ver o que tinha acontecido. Tem alguma coisa muito estranha. Meu pai

    saiu com carro e ARRANCOU a porta da garagem. Por que ele faria isso? Por que ele t

    irritado?

    -O que houve?

    -Acho que o papai//

    - um retardado mesmo, n? Como ele acha que eu vou pagar o conserto dessa porta?

    Viado! Filho da puta!

    -Me, para de falar isso na frente do Francisco!

    - um filho da puta mesmo!

    -Me!

    -Cala a boca, Luiza! Eu chamo o seu pai do que eu quiser!

    Eu nunca tinha visto a minha me daquele jeito. Srio. Eu fiquei com muito medo.

    Srio. Por um momento, eu esqueci que ela pudesse ser a minha me e achei que ela

    fosse uma maluca desvairada que pudesse me matar.

    Resolvi ficar calada durante o resto do dia. Tive que desistir de tudo que eu tinha

    planejado. Vou ter que convidar o Guga outro dia. E, sinceramente, eu no acho que

    agora seja a hora de conversar com os meus pais.

    Agora a hora de tentar ajudar a Jlia. Ela sim precisa da minha ajuda. Alis, cad ela

    aqui no colgio?

  • -J sabe quem o pai?

    O qu? J sei onde t o meu pai, isso? O que voc t falando moleque?

    -Hahaha! Cuidado, hein, Luiza!

    O que esse babaca t falando?

    -No tem mais o que fazer?!

    -Ihhh, olha s! Se voc se estressar, vai fazer mal para o beb, Luiza!

    Bruno.

    -FILHO DA PUTAAA!!!

    Eu sa correndo que nem um cavalo em direo sala do Bruno. QUEM ELE PENSA

    QUE PRA MENTIR SOB O MEU RESPEITO? Assim que eu encontrei o Bruno, j

    sa dando porrada nele. No quis nem saber! A sorte dele que o tempo era livre e no

    tinha ningum dentro da sala pra o ver apanhando!

    -Seu babaca!

    -Pera!!! O que houve?!

    -Porra! Voc t maluco? Voc mentiu pra escola inteira dizendo que eu t grvida!

    -O qu?!

    -Seu babaca! Eu vou te matar, seu filho da puta!

    -Calma, Luiza! Voc t descontrolada! Eu no fiz nada!!!

    -Eu no fiz nada, eu no fiz nada! Idiota! Voc contou pra todo mundo que eu t grvida!

    -Voc realmente t grvida?!

    -Sim! Digo, no!!! No te interessa, porra!

    -Calma, Luiza!

    -No me pede pra ter calma! Porra! Foi voc, n?

    -No!

    Tempo. Parei de bater nele durante alguns segundos. Silncio total. Senti que esse no

    foi real.

    -No?

  • -No!

    -Quem foi?

    -Quem foi o qu?

    -Quem foi que contou pra todo mundo sobre o teste de gravidez?

    -Sei l! No fui eu!

    -Mentira!

    -No! srio! Juro que no fui eu!

    Tempo. Silncio total novamente.

    -Levanta do cho.

    Estendi a mo para o Bruno e o tirei do cho. Coitado. Deve ter sido humilhao

    demais ter apanhado de uma menina.

    -Olha s, t tendo algum engano aqui, t!

    -O que voc tava fazendo na farmcia?

    -No o mesmo que voc!

    -Eu no t pra piada, idiota!

    -T! Desculpa.

    -O que voc foi fazer l?

    Tempo. Silncio total novamente.

    -Acho que no te interessa, n?

    Fiquei quieta. Sem resposta. Realmente, no me interessa. E, se no me engano, acho

    que foi isso que eu respondi quando ele me perguntou sobre os testes.

    -Posso ir embora?

    -Pode.

    -Voc maluca. Srio.

    -Cala boca, cara! No me chama de maluca! Voc no sabe o que t passando na minha

    vida. Voc no tem o direito de falar comigo!

  • -Eu no te fiz nada! Voc chegou aqui me batendo e eu nem sei por qu! Se voc tem

    algum problema, procura ajuda! No sa batendo nos outros!

    -Que ajuda? Que ajuda? Eu t sozinha, porra!

    EU NO VOU AGUENTAR! EU PRECISO CHORAR! Pronto! Foda-se! T

    chorando! Bota pra fora, Luiza. Voc precisa. Pode chorar vontade. Shiii... calma,

    calma... calma garota... shiii...

    -Luiza, desculpa!

    -Sai daqui, seu babaca!

    -No! Eu no posso te deixar sozinha aqui! Vo pensar que eu fiz alguma coisa pra

    voc!

    Calma, Luiza, calma...

    -Luiza, o que t acontecendo com voc?

    Rolou um tempo e uma troca de olhares entre mim e o Bruno.

    -Voc quer mesmo saber?

    Ele jogou a mochila no cho, sentou do meu lado e enxugou uma lgrima que corria no

    meu rosto.

    -A gente tem cinquenta minutos at o prximo tempo.

    -Cara, eu no sei o que t acontecendo com a minha vida. Parece que, de uma hora pra

    outra, tudo virou de cabea pra baixo. E eu no t preparada pra isso, sabe? Tipo, eu no

    quero nunca estar preparada pra esse tipo de coisa.

    -Mas a gente cresce e a vm as responsabilidades...

    -E se eu no quiser ter responsabilidade? E se eu no quiser que nada de difcil ocorra

    na minha vida? pecado querer fazer o mais fcil? No questo de preguia. por

    que eu no suporto a ideia de ter que me matar de estudar mais quatro anos numa

    faculdade que eu no tenho certeza se o que eu quero fazer pro resto da minha vida!

    Alm disso, tem a parada do cncer que acabou de surgir! Eu peguei da minha av paterna que eu nem conheci direito! Srio! Eu a vi poucas vezes na minha vida e a

    desgraada ainda me deixou essa herana de merda! Bruno, eu t com cncer! Porra,

    Bruno! E daqui h cinco dias vai ser o meu aniversrio! Eu j tava combinando de

    comemorar numa boate na Barra, Bruno! Porra! Eu vou fazer dezoito anos e tenho

    cncer de pulmo! Porra! Deus me odeia! Ele quer me matar! Deus no existe pra mim!

    Por que eu no acredito num Deus que queira me matar! E, pra piorar, meus pais agora

    deram pra brigar feio, como nunca brigaram na vida. Eu acho que eles vo se separar!

    Fodeu, Bruno, fodeu. Eu t perdida. Cara, eu no sei o que fazer da minha vida. Eu no

    quero contar pra ningum sobre o cncer que pode no ser cncer, no quero que os meus pais se separem e quero ganhar muito dinheiro pra no depender de ningum

  • dessa vida. E a? Quem vai me ajudar? T vendo? Por isso que eu no quero falar com

    ningum. Ningum pode me ajudar. Talvez, a morte seja uma soluo pra mim.

    -E os testes de gravidez? Eram pra voc?

    -No. a Jlia. Ela t com a menstruao atrasada h um ms.

    -Putzzz... que badtrip...

    -Pois ...

    -T arriscado essa criana nascer miscigena...

    No consegui segurar a risada. Realmente essa piada foi boa. E o pior de tudo que

    verdade...

    -Voc vai fazer alguma coisa depois do colgio?

    -Bem... eu teria que votar pra casa, mas como a situao no uma das melhores, eu

    acho que vou fazer hora por a...

    Tempo. Silncio total. Bruno deu uma profunda respirada e disse:

    -Topa ir comigo num lugar?

    -Depende...

    -Depende da companhia ou do lugar?

    -Depende dos dois.

    -Ento... a companhia sou eu mesmo. E o lugar surpresa.

    Detesto surpresas.

    -Voc fez uma cara estranha. No gosta de surpresas, n?

    -No...

    Tempo. Silncio total.

    -Dessa vez voc vai ter que confiar em mim.

  • Preparao Para A Festa E Crise

    Existencial

    No esperava que algum, que eu nem conheo direito, fosse me estender a mo numa

    hora to difcil. Difcil, no. Impossvel. Muito legal o Bruno ter me oferecido ajuda.

    Mas, que tipo de ajuda?

    -A gente se encontra quando aula acabar! Pode ser? Na entrada do colgio!

    -Ok.

    Estranho. Esse moleque nem falava comigo direito, no me olhava e nem sequer ia nos

    mesmos lugares que eu ia. Estranho. Por que ele t se importando tanto comigo?

    -Luiza!

    Ai, meu Deus. L vem a histrica da Marina.

    -Oi, Marina...

    -Por que voc no atendeu os meus telefonemas? Eu te mandei vrias mensagens!

    Vacilo, porra!

    -Desculpa, Marina. A situao no t legal. Voc viu a Jlia por a?

    -A piranha da Jlia? Deve estar dando pra algum...

    Pelo amor de Deus! Mais um filho no...

    -Srio?

    -Sei l onde ela t. Ela chegou aqui no colgio, foi ao banheiro umas trs vezes e depois

    saiu chorando correndo pra casa.

    Puta merda. Ela deve estar mal pra caramba.

    -Mari, a gente se fala melhor depois.

    -O que houve, Luiza?

    -Depois eu te explico.

    -No. Fala agora. Eu te conheo h muito tempo. Eu sei que voc fica assim quando d

    alguma merda.

    Sabe quando voc QUASE fala aquilo que voc realmente queria falar? Tipo, eu sei

    que se eu contar pra Marina tudo que t acontecendo ela vai querer me ajudar e, com

  • certeza, vai querer estar ao meu lado. Mas, no momento, eu s quero algum que tenha

    a cura. Se houver cura, claro.

    -Nada. De verdade. s o meu inferno astral.

    -Eu seiii! E t chegando, garota! Dezoito! At que enfim, hein! Faltam s cinco dias!

    -Pois ...

    -J sabe o que voc vai querer de aniversrio?

    -Ahhh... eu ainda nem pensei sobre isso...

    -Que tal uma festinha l em casa? Minha av vai para o stio do meu av hoje e s vai

    voltar na quinta! A gente pode fazer uma festinha amanh! Que tal?

    Festa? ... eu realmente ando muito cansada. Acho que ia cair bem uma festa s para

    convidados ntimos. No, melhor no. Eu tenho que ficar do lado da minha me, ajud-

    la nesse momento difcil. Mas, por outro lado, talvez seja um bom momento para a

    minha me ficar sozinha. ! Tipo, eu tenho que cuidar da minha vida agora. Eu vou

    fazer dezoito anos. No posso mais ficar dependendo e me preocupando com a minha

    me. Ela j maior de idade h muito tempo. Foda-se.

    -Quem a gente pode chamar?

    A Marina abriu um sorriso de ponta a ponta que eu jamais vou esquecer na minha vida.

    -Que tal se a gente comear pelo Guga?

    A filha da puta sabe como me deixar feliz.

    Ento, foi isso. Passamos o tempo todo durante as aulas planejando como ser amanh.

    Fizemos as contas de quanto cada pessoa tem que dar para comprar as bebidas e a

    Marina disse que o namorado dela, o Hugo, prometeu que vai levar uns amigos (gatos) e

    umas amigas pra animar a festa.

    Liguei pra Jlia pra convid-la. Ela no atende o telefone. T preocupada. Srio. A

    gente no consegue prever o que uma pessoa seria capaz de fazer numa situao dessas.

    E se ela quiser abortar? Caralho. Nem sei como se faz isso.

    Mas tambm deixa pra l. Agora o momento dela pensar na besteira que fez e tentar

    arranjar alguma soluo junto com a me e com o pai. Afinal, os pais servem pra isso.

    Pra limpar as merdas que a gente faz.

    -A gente vai ao mercado e compra algumas paradinhas de comer que pro pessoal no

    entrar em coma alcolico.

    -C acha que pode dar alguma merda?

  • -Luiza, essa festa TEM que dar merda. Por que eu no quero dar uma festa de

    aniversrio de dezoito anos pra voc e no ter do que me lembrar! Digo, eu realmente

    no quero me lembrar de nada da festa. Mas no por que a festa foi ruim, e sim por que

    a festa foi boa pra caralho e eu fiquei trbada de tanto comemorar! Vai na minha que

    voc vai se dar bem.

    Tem o que falar depois dessa?

    -Tudo certo, ento?

    -Porra, Marina...

    -Luiza!

    -E se, realmente, der merda?

    Tempo. Silncio total. Marina abre um sorriso cafajeste na minha cara.

    -VAI dar merda.

    TRIIIM! Deu o toque de recolher do campo de concentrao (meu colgio) e todo

    mundo correu pra dentro da aula. Porm, no meio do corredor, encontrei a Suzana

    chorando e entrando no banheiro. Meu Deus. Por favor, que a Suzana no esteja grvida

    tambm!

    -Suzana?

    -Oi...

    -O que houve?

    -Nada!

    -C t bem? T passando mal?

    Silncio total. S conseguia ouvir os suspiros de choro.

    -Suzana?

    -Sai daqui, Luiza!

    -Ah, meu Deus! Que menina maluca! T s oferecendo ajuda! Dane-se tambm. No

    fica me ligando pra pedir coisa, hein! Garota maluca, porra! T indo embora ento.

    3... 2... 1...

    -No, Lu!

    Eu sei usar psicologia inversa com as minhas amigas.

  • -Que houve?

    -Eu quero me matar.

    O qu?

    -O qu?

    -Eu no quero continuar viva com essa vida de merda, Luiza! Eu t cansada! Cansada

    de saber que ningum me quer por perto!

    -Para de fazer cu doce, Suzana! Voc t maluca!

    -Ningum quer nada comigo! Se algum realmente me quisesse, iam me dar ateno,

    me ligar, me chamar pra sair, pra ir nas baladas...

    -Cala a boca! Voc ainda no tem nem idade pra sair, Suzana!

    -Nem voc, Luiza!

    -Para com essa palhaada! Sabe por que ningum quer ficar do seu lado? Porqu voc

    chata! Para de ser chata que, a sim, todo mundo vai querer ter voc por perto! Garota

    mal amada do caralho, porra!

    Tempo. Silncio total.

    -E o meu fsico?

    -Fecha a boca, Suzana! Para de comer que nem uma porca! E toma vergonha na cara!

    Vai fazer uma academia, garota!

    Ela comeou a chorar mais. E mais alto.

    -Para, Suzana!!! Porra! Que coisa chata! Quer saber? Eu no tenho pacincia pra isso

    no. Voc t sendo criana! E se quiser se matar, se mata logo! Vai at fazer um bem

    pra humanidade! No fica chorando no banheiro do colgio! T impedindo que outras

    pessoas usem! At nisso voc t atrapalhando!

    Bati a porta com fora e fui embora. Menina chata pra cacete. Putaquemepariu. Dei de

    cara com o Bruno. Tenso. Calma. Calma, Luiza. Esquece todo o nervosismo. Ser que

    ele ouviu alguma coisa? No. No ouviu.

    -Vamos? Terminou pra mim. E pra voc?

    No falei?

    -Pra onde vamos?

    -Pode confiar em mim.

  • Ele estendeu a mo e se curvou. Como os cavalheiros naqueles filmes de poca. . At que eu gostei disso. Hum... Legalzinho...

  • Dona Snia

    Toda hora eu virava pro Bruno e perguntava:

    -Falta muito?

    -No... Relaxa, Luiza.

    Relaxa? E se voc quiser me estuprar?

    -Acho que vai ser legal pra voc...

    Legal seria encontrar uma cura para o cncer. Na verdade, essa cura j deve existir.

    Srio. No possvel que, em pleno sculo XXI, ainda no tenham descoberto a cura

    para uma doena que existe h mais de cinquenta anos. Digo isso por que se a minha

    av paterna teve e morreu disso, bem provvel que algum antes dela tenha tido e

    morrido tambm. Todo mundo morre nessa porra. Av, neta, etc. E, por causa da minha

    av, eu no vou poder me casar com um homem rico. Hija de puta! Eu aposto mil reais

    (que eu no tenho) de que j descobriram a cura do cncer e que ainda no divulgaram

    por que a indstria farmacutica lucra muito com os doentes. Tanto mentais como

    fsicos.

    -Bruno, eu t comeando a ficar preocupada! Aonde voc t me levando?

    -Relaxa, Luiza.

    Relaxa, Luiza. a frase que eu mais ouo. Seja das minhas amigas ou dos meus pais. Relaxa, Luiza! A gente compra isso depois quando abaixar o preo!. Relaxa, Luiza! Ele no quer ficar com nenhuma de ns! O Guga todo seu!. Relaxa, Luiza! Eu s vou tomar uma cerveja! Bebe comigo!. Bebe comigo o mesmo que deixa eu ficar trbada e, por favor, me leve de volta pra casa, amiga! Alis, odeio quando alguma das minhas amigas me chama de amiga. Soa tooo falso. Parece que elas me odeiam e to debochando da minha cara. Talvez seja at isso e s eu que no

    percebi.

    -Chegamos.

    Hospital do cncer?

    -Por que voc me trouxe aqui, Bruno?

    Comecei a ficar puta. MUITO PUTA.

    -Hein, Bruno? Por qu?

    O Bruno olhou pra mim e andou em direo porta do hospital. Ele parou em frente a

    porta e fez um sinal de reverncia. Como se estivesse esperando uma princesa. Eu ri

    (disfaradamente), fiz cara de nervosa (pra ele no achar que eu estava dando muita

    confiana) e fui mesma direo. Entrei no hospital e, de cara, fiquei olhando para um

  • daqueles murais que tem fotos de crianas desaparecidas. Estranho. Eu sempre pensei

    que a minha foto pudesse estar ali, pendurada. J imaginou que louco voc descobrir,

    depois de anos de interao e amor, que a sua me no a sua me? Nossa. Que louco.

    Talvez fosse at bom, sabia? Por que a, se eu fosse contar com a sorte da vida, Deus

    poderia por uma me biolgica rica no lugar da minha me adotiva. Me quem cria!. Porra nenhuma. Quero ver quem que vai renegar a me biolgica quando descobrir que ela milionria. Mesmo que a minha me biolgica (se eu tivesse uma,

    claro) demorasse quarenta anos da minha vida para aparecer, assim que eu soubesse que

    ela podre de rica, eu iria esquecer esse simples detalhe em segundos. SE-GUN-DOS.

    Acho to babaca quando uma pessoa diz que dinheiro no compra tudo. Claro que

    compra. E, se duvidar, compra at criana desaparecida.

    -Vem, Luiza!

    O Bruno saiu correndo e, sem que ningum percebesse, entrou numa das salas da UTI.

    Como ele conseguiu entrar sem que ningum percebesse, eu no sei. Mas que ele tem

    uma puta sorte, isso sim. PERA. Rebobina a fita, agora! Lembra quando eu encontrei o

    Bruno na festa que a Jlia deu? H uns dois meses?! Que eu dei de cara com ele no

    terrao da casa da Jlia? Lembra que ele tava no telefone com a me? Puta que me

    pariu. S falta isso. A me dele t doente. A me dele t morrendo. Puta que me pariu

    de novo. E eu fui grossa pra caralho com ele! Nossa, meu! Porra! Eu t muito sem graa

    agora. Nossa, que vergonha. Eu no acredito. Idiota, Luiza! Idiota! Voc uma

    insensvel, Luiza! Tem mais que morrer de cncer mesmo!

    -Pode entrar!

    O Bruno abriu a porta, olhou para os lados para ver se tinha algum por perto e pediu

    para eu entrar. Entrei. Na esperana de ver a me dele viva pelo menos. Op. Pera. Que

    isso?

    -V, essa aqui a Luiza.

    Era uma senhora de sessenta e poucos anos, negra, careca, magra (quase esqueltica),

    deitada numa cama da UTI. Vestia uma cala florida e uma camisa de boto que,

    singelamente, escondia o seio falso que ela usava. Provavelmente deve ter sido retirado

    por questo de alguma operao de cncer de mama. Cncer. Cncer. Calma a. Por isso

    que o Bruno me trouxe aqui! ! A v dele t com cncer! Por isso que a me dele tava

    chorando naquele dia no terrao! Por isso ele foi comprar remdio! Por que a v dele t

    com cncer! Ah, no! Que merda! Mais uma no...

    -Oi, Luiza! Tudo bem com voc?

    -Oi...

    Dei um sorriso sem graa.

    -Ela linda, Bruno! a aquela que voc me contou?

    Contou? Contou o qu Bruno? Contou que eu t grvida pra sua av tambm, Bruno?

  • -No, v! Essa outra! Essa a Luiza. A que eu te contei a Brbara!

    -Ah, a Brbara! Tem razo!

    Quem Brbara?

    -Voc muito bonita, minha filha!

    -Obrigada!

    -Prazer em te conhecer, meu bem! Meu nome Snia! Mas pode me chamar de Snia

    mesmo...

    Isso foi uma piada?

    -Bom ver que voc nunca perde o seu humor, v!

    Isso foi uma piada.

    -Vocs se conheceram aonde?

    Bateu um nervosismo. Eu no sabia o que falar.

    -Ah..

    -Eu..

    -A gente estuda no mesmo colgio.

    -Mas no na mesma sala.

    -Nem no mesmo ano.

    -No! O ano o mesmo, sim!

    -Mas no na mesma sala!

    -No!

    -Na mesma sala? A gente estuda junto?

    -No! No na mesma sala! V, a gente estuda no mesmo colgio mas no na mesma sala. A gente t terminando o ensino mdio. Juntos. Digo, separados. No mesmo

    colgio. Mas no na mesma sala. isso.

    A Dona Snia comeou a rir da nossa cara. Tambm, com essa confuso toda, at o

    meu pai, que nunca d um sorriso, estaria gargalhando aqui.

    -Como a senhora est se sentindo?

  • No me pergunte por que eu fiz essa pergunta. Ela, simplesmente, saiu.

    -Como voc acha que eu estou me sentindo?

    -A senhora me parece bem!

    Tentei ser simptica.

    -Bem morta, n, minha filha?

    Pausa dramtica. Silncio total na sala. S a dona Snia que ria. E ria sem parar. Como

    uma adolescente que tivesse ouvido uma piada genial pela primeira vez. Ela parecia no

    se preocupar com a situao. Srio. Parecia que ela no tinha medo de morrer. Pensando

    bem, a dona Snia deve ter por volta dos seus sessenta anos de idade. Pra ela, morrer

    agora, lucro.

    -E voc? Como tem se sentido?

    -Eu?

    -A Luiza, v?

    -Sim...

    -Eu tenho me sentido meio estranha...

    -Por qu?

    -Porqu...

    Dona Snia me olhou com um sorriso no rosto e com os olhos sedentos por uma

    resposta. No tive coragem de hesitar.

    -Porqu eu descobri que tenho cncer, dona Snia. Infelizmente.

    Silncio total.

    -E foi por isso que o Bruno que me trouxe aqui. Suponho, eu. N, Bruno?

    O Bruno me olhou com o um sorriso no rosto. Engraado. Aquele sorriso, por um

    momento, foi um dos melhores e mais bonitos que eu j vi na minha vida. Caralho.

    Como que pode um garoto, que nem me conhece direito, fazer mais por mim que os

    meus prprios pais? Caralho, cara. Que foda. Esse moleque muito do bem. Muito

    gente fina. T te devendo a minha vida, Bruno. Eu nem sei como te agradecer. Um

    simples obrigado, por mais que seja de corao, ainda pouco para voc.

    -Foi, Luiza.

    -E eu amei.

  • Merda. Vai descer uma lgrima. Ai, cacete.

    -Amei a surpresa inesperada.

    SEGURA. Ufa. Segurei a lgrima.

    -E voc, dona Snia, gosta de ouvir alguma coisa?

    Velha ttica para mudar de assunto: perguntar sobre o gosto musical.

    -Eu? Ah, minha filha. Eu gosto de ouvir um pouco de tudo. Menos essa palhaada de

    funqui.

    - funk, v!

    -Funqui, funk, fanta, foda-.se! Tanto faz!

    Ela disse foda-se?

    -V! Olha a boca!

    Ela disse foda-se.

    -A boca minha e eu falo o que eu quiser, Bruno!

    Eu me segurei para no rir. Meu Deus. A velha desbocada! Incrvel! At que enfim

    um adulto que sabe usar os palavres!

    -Me conta, Luiza. Como voc t reagindo com essa coisa?

    Tempo. Silncio total.

    -Ah, dona Snia... t...

    -T foda, n?

    Silncio total. Eu s conseguia pensar numa coisa: -AT QUE ENFIM ALGUM QUE ME ENTENDE!.

    -Exatamente, dona Snia. T foda. Muito foda.

    -Sabe em que nvel est?

    Nvel ferrar com a vida da Luiza.

    -Isso tem alguma diferena?

    -Muita. Dependendo do nvel, ainda h tempo de curar.

  • Bruno parece ter uma resposta para tudo. Enquanto eu tenho uma pergunta para tudo,

    ele sempre tem a resposta.

    -Eu no sei direito. Tenho que ir de novo no mdico.

    -Ento vai, menina! No perde tempo, no!

    -Pode deixar. Mas eu vou pela senhora, hein!

    Tentei segurar a lgrima. De novo.

    -Vai pela sua vida! Por voc!

    -Mas a minha vida, agora, tem um cncer que me impossibilita de ser feliz, dona Snia. E ningum entende isso.

    Dona Snia ficou me olhando, sria, durante uma frao de segundos (que mais

    pareciam minutos alongados).

    -A senhora me entende.

    Mais alguns segundos (que pareciam minutos) em silncio.

    -A senhora me entende, n?

    Talvez ningum me entenda. Talvez, no. Ningum me entende.

    -Presta ateno numa coisa: nada e nem ningum nesse mundo vai te impossibilitar de

    ser feliz. S voc que pode fazer isso. S voc capaz de ser ou no feliz. Se eu pudesse

    escolher por voc, talvez eu escolhesse a melhor opo. Mas, e voc? Qual a opo que

    voc vai escolher? Vai ficar a parada com esse cncer de merda ou vai procurar a

    soluo?

    -Que soluo?

    -Aproveitar a vida. Essa a soluo.

    Talvez ela esteja certa. . Talvez ela esteja REALMENTE certa.

    -Obrigada, dona Snia.

    No consegui esconder o sorriso no meu rosto. Eu tava feliz por aquilo tudo.

    -Obrigada a voc que veio at aqui me visitar.

    -Pois , n? Foi uma visita inesperada! Tanto pra mim quanto pra senhora!

    -Por favor, no me chame de senhora! Eu me sinto mais velha do que eu realmente sou!

  • Olhei para o Bruno e ele estava dando um sorriso. Como se ele estivesse satisfeito com

    tudo que tinha acontecido. Talvez ele esteja. No sei por que, mas, pela primeira vez, eu

    gostei de uma surpresa. Por mais que eu deteste surpresas, s vezes a vida (e o Bruno) te

    prega(m) uma lio. E que lio...

    -V, infelizmente eu vou ter que ir embora...

    -Que isso, Bruno! Pela amor di Deus! Voc tem a sua vida! Vai fazer as suas coisas! De verdade! Me esquece aqui que t tudo bem! Eu juro! No se preocupa no!

    -Amanh eu volto pra te visitar de novo.

    -Voc sempre volta, n, querido?

    -Quantas vezes voc quiser.

    Essa foi uma das coisas mais lindas que eu j ouvi em toda a minha vida. A dona Snia

    olhou pra mim e disse:

    -No fundo, no fundo, bem l no fundo, eu sei que uma rede invisvel vai me segurar

    quando eu morrer.

    -Que profundo, dona Snia...

    -No questo de ser profundo ou no, minha filha. a verdade. H uma rede invisvel

    que segura todos que, ainda, esto vivos. No estou falando de Deus, Jesus ou qualquer

    outro esteretipo de uma religio. T falando da verdade. Uma hora a gente vai morrer.

    Essa a nica certeza da vida. Nascemos com a nica certeza de que um dia iremos

    morrer. E s! A rede invisvel que vai me segurar se chama Snia Maria Sckiezar. Ou

    seja, eu. Eu sou a rede invisvel que vai me segurar. S eu posso fazer, da minha

    passagem, uma coisa alegre e feliz.

    Eu acho que no entendi...

    -Vem c!

    Dona Snia pediu para que eu me aproximasse dela.

    -A morte um ponto final, n?

    ?

    -...

    -E sobreviver uma vrgula, n?

    -...

    -Ento, a gente concluiu que, a vida, um livro feito por frases. N? Concorda comigo?

  • Aonde a senhora t querendo chegar?

    -Num livro no d para ter frases s com vrgulas. Uma hora chega o ponto final. O ltimo pargrafo. A ltima palavra que vem seguida com o ponto final dos pontos finais. Ento, escreva o seu livro do jeito mais bonito do mundo. Faa o seu livro valer por milhes de enciclopdias. Faa o seu livro ser mais bonito do que mil poesias do

    Drumond. E no seja analfabeta. Saiba escrever bem. E sem linhas tortas. Faa um livro

    lindo, forte, presente e verdadeiro. Captulos surpreendentes com drama e comdia

    misturados. Faa o seu livro valer a pena, Luiza!

    Silncio total. Eu no sei por que eu t com vontade de chorar. Segura o choro, Luiza.

    Segura. E olha que eu nem t na TPM. Putz. T foda de segurar o choro.

    -Vamos indo, Luiza? Antes que algum do hospital nos veja aqui.

    -Foi um prazer, dona Snia.

    -Pra voc s Snia! Ou sogra da minha sogra tambm serve! E o prazer foi meu, minha filha. De verdade. A sua visita clareou o meu dia. Como uma rosa a brotar no

    meu jardim!

    Sogra da minha sogra?

    -Obrigado por tudo, v. J disse, mas no custa repetir: amanh eu volto pra te visitar

    de novo.

    -Voc sempre volta, n, querido?

    -Quantas vezes voc quiser.

    a segunda vez que eu ouo a coisa mais linda que eu j ouvi em toda a minha vida

    hoje. Que fofinhos, cara. Porra. Queria ter um av que nem a dona Snia. No queria

    uma que nem a minha que nunca falou comigo e que ainda me passou um cncer como

    herana.

    -Gostou da surpresa?

    No consegui conter o sorriso no rosto.

    -Gostei!

    -Quando quiser visit-la de novo, s falar. Acho que ela gostou de voc.

    Acha?! Meu amor, ela virou a minha f! Somos best friends forever agora!

    -Quer que eu te deixe em casa?

    -No precisa!

    -Srio?

  • -Sim. T de boa. Voc j fez muito por mim. Obrigada, Bruno.

    O Bruno deu mais um sorriso tambm. Igual ao que ele deu dentro do hospital.

    -Por nada.

    Que moleque estranho. Por que ele t insistindo em me ajudar?

    -Ento, tchau!

    -Espera!

    Ih, caralho. O que eu falo agora? Por que voc disse espera, Luiza? Idiota! D um jeito!

    -Sim?

    -Voc vai fazer alguma coisa amanh de noite?

    -Acho que nada. Por qu?

    Por qu? Porqu... porqu... porqu...

    -Porqu vai ter uma festa amanh pra comemorar o meu aniversrio.

    -Ah, que legal! seu aniversrio amanh?

    -No! no domingo. Mas a Marina quis por que quis comemorar amanh na casa dela.

    -Quantos anos?

    -Dezoito.

    -At que enfim, n?

    -Sim! Voc tambm tem dezoito, n?

    -S que eu ainda no tenho um carro...

    -Nem eu!

    -Hahahaha! Pois ...

    -Quer ir?

    -Na festa? Pode ser. Posso levar uma pessoa?

    A Brbara.

    -Pode, claro!

  • -Ento eu vou!

    -Que timo!

    -Ento, t! Tchau!

    QUEM QUE ELE VAI LEVAR, PORRA?

    -Me diz s nome da pessoa que voc vai levar!

    -O qu?

    O QU?

    - por que... eu... eu... eu preciso por o nome na lista de convidados e tal. Isso! . Lista

    de convidados. Coisa da Marina, mesmo!

    Luiza, NO EXISTE lista de convidados! Para de mentir! Mas eu preciso saber o

    nome dela! a Brbara mesmo? E se no for? E se for? Se for? Dane-se, porra. Seja l

    quem for, vai beber da minha bebida e comer da minha comida. Vai dar o maior gasto,

    cacete.

    -Ento... eu vou confirmar com ela pra saber e te mando uma mensagem. J ?

    a Brbara. Certeza.

    -J ...

    Silncio total por uma frao de segundos (que mais pareciam minutos).

    -E...

    -E o qu?

    -O seu telefone? Pra mandar a mensagem!

    -Ah, claro! Anota a! Foi mal. Tava pensando em outra coisa. nove, meia, quatro,

    trs, um, sete, oito, cinco, zero.

    -Anotado.

    -Beleza.

    -Tchau, Luiza!

    -Tchau, Bruno!

    Esconde o sorriso, Luiza! Esconde o sorriso!

  • Verdades, Apenas Verdades

    Cheguei em casa, tentei no fazer barulho e fui direto para o meu quarto. Se que eu

    posso chamar aquilo de quarto, claro.

    Tenta pensar em tudo que aconteceu hoje, Luiza. Foi um dia bom. Tirando o fato de eu

    no saber como e o que est acontecendo com a Jlia, foi um dia bom. Eu pude

    conhecer o outro lado da vida. Ou, quem sabe, eu conheci o outro lado da morte. O lado

    que as pessoas tem medo de visitar. Em cada um de ns mora um pedacinho da morte

    que pode ser despertado a qualquer instante.

    Eu posso morrer agora, aqui, nesse pedacinho de apartamento. Mesmo com menos de

    uns dez metros quadrados, eu posso pegar uma porrada de remdios que a minha me

    usa para o problema dela de depresso e tomar tudo de uma vez. Eu posso morrer indo

    para o colgio. Eu posso morrer descendo uma escada. Eu posso tropear, cair de mal

    jeito e quebrar o pescoo. Eu posso morrer atropelada na fala o sinal de trnsito que

    divide a rua Bulevar com a esquina Damio. Alis, aquele sinal muito maluco. D uns

    tilts do nada. Toc, toc. Batem no quarto

    -Quem ?

    -Sou eu, Luiza.

    Putaquemepariu. o meu pai! Esconde tudo! Rpido! Tem algum teste de gravidez da

    Jlia espalhado por a? No? Tem certeza? Ufa.

    -Pode entrar...

    Pela primeira vez nos meus dezessete (quase dezoito) anos de vida, o meu pai no

    reclamou da baguna do meu quarto. Ele entrou, sentou na minha cama e pegou na

    minha mo.

    -Tudo bem, amor?

    Amor? Voc NUNCA me chama de amor, pai. O que houve? Fez merda? Traiu a

    mam? Putaquemepariu, dois. Voc traiu a mame, n?

    -Sua me chegou a falar alguma coisa com voc?

    No? Era pra falar?

    -No...

    Meu pai deu uma bufada profunda e barulhenta.

    -Ento, Luiza, o seguinte...

    Senta que l vem merda...

  • -H uns quinze anos atrs eu conheci uma mulher.

    Minha me que no foi, por que voc j me tinha e, pra isso ser possvel, voc teria

    que ter a conhecido beeem antes.

    -E, num momento da minha vida em que eu tive uma discusso muito sria com a sua

    me, eu acabei dormindo com esta outra mulher.

    Voc traiu a mame, seu babaca! Caralho! Eu t chocada!

    -O qu?

    -S ouve, Luiza, por favor.

    Que raiva de voc! Que vontade de socar a sua cara! Idiota! Babaca! Filho da puta!

    Voc traiu a mame!

    -Eu estava brigado com a sua me. Voc era muito pequena. No deve lembrar. Ns

    ficamos uns dois meses sem se falar. Foi uma pseudo-separao. S nos encontrvamos para conversar com voc.

    E da? O que aconteceu?

    -E a que eu acabei arranjando uma outra pessoa que ficou comigo durante esses dois

    meses. Foi inevitvel.

    Inevitvel? Inevitvel vai ser o soco que eu vou dar na sua cara!

    -Eu tive uma outra mulher, mas, assim que eu e a sua me voltamos, eu terminei com

    ela.

    Pera. Ento, tecnicamente, no traio. N? Se eles estavam pseudo-separados e, durante esse tempo, ele teve uma outra mulher, no considerado traio, n? Ele t

    dizendo que voltou com a minha me e foi fiel. N?

    -E voc ficou fiel mame?

    -Claro! Eu e a sua me voltamos e eu nunca mais olhei para mulher nenhuma.

    -Voc teve outro caso enquanto estava separado da mame, n?

    -Sim. Eu j disse. Presta ateno, Luiza. Voc no se lembra por que tinha dois anos.

    Foi h muito tempo. Ns tambm no deixamos isso transparecer para voc. Nossas

    brigas so as nossas brigas. Voc e o seu irmo no tem nada a ver com isso.

    -Ento, por que a mame t puta com voc?

    Meu pai me olhou srio. Eu nunca usei a palavra puta na presena dele. Eu nunca usei um palavro perto dele e da minha me. E eles tambm. Quer dizer, at um certo

    tempo...

  • -Sua me est puta comigo com razo.