Infância e Juventude no Riode Janeiro 2008

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[2008] Claudio Andrés Barria Mancilla [Incidência política para a garantia de direitos – SER] INFÂNCIA, ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE EM SITUAÇÃO DE RUA NO RIO DE JANEIRO - BRASIL

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Report about Children street in Rio de Janeiro, Brasil in 2008

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[2008]

Claudio Andrés Barria Mancilla

[Incidência política para a garantia de

direitos – SER]

INFÂNCIA, ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE EM SITUAÇÃO DE RUA NO

RIO DE JANEIRO - BRASIL

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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO

A situação da infância e juventude no Brasil

A criminalização da juventude pobre como política pública no Rio de Janeiro (2004-2008)

Infância em situação de rua no Rio de Janeiro

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“Quando uma sociedade deixa matar as crianças é porque começou seu suicídio como sociedade. Quando não as ama é porque deixou de se reconhecer como humanidade. "Se Essa Rua Fosse Minha" é um movimento que tem como objetivo mobilizar toda a sociedade brasileira para resolver o que hoje é um grande escândalo: a situação das crianças deste país, particularmente daquelas que trabalham e vivem nas ruas.”

Herbert de Souza (Betinho)

Contracapa do disco de lançamento do projeto “Se Essa Rua Fosse Minha”, 1991

“Ao mesmo tempo em que é urgente responder às necessidades de sobrevivência e inclusão das Crianças e Adolescentes de classes populares, que vivem abaixo da linha de pobreza, é fundamental oferecer espaços que estimulem a capacidade criadora, que tira da vida o amargor da sobrevivência, e vai adicionando o sabor de que a humanidade vale a pena, e a certeza de que a vida é (re) inventada a todo momento. Porque estes sujeitos não devem apenas ocupar o seu lugar na “cadeia alimentar”, mas serem compreendidos como atores potenciais na construção de um novo sentido de libertação civilizatória (inclusive dos seus opressores).”

Cesar Marques

(educador, Secretário executivo do Se Essa Rua Fosse Minha)

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A situação da infância e juventude no Brasil

Segundo os dados levantados por pesquisa do UNICEF, lançada em 2004, e complementados com dados oficiais de agências brasileiras como o IPEA e o IBGE, a realidade da infância e juventude no Brasil é desalentadora e serve em grande medida para se ter uma noção das causas e do contexto em que se dá a situação daquelas que se encontram nas ruas da cidade. Após alguns anos, podemos constatar que a situação continua estruturalmente a mesma, embora não exista uma nova pesquisa nacional que aponte as mudanças em termos quantitativos.

Não obstante o surgimento de alguns programas assistenciais promovidos pelo governo federal tenha, de fato, provocado mudanças junto às famílias em situação de extrema pobreza, introduzindo uma renda mínima por meio de programas como o Bolsa Família, podemos observar que, como apontava a citada pesquisa, o Brasil continua sendo um pais que “não é pobre, mas(é) um país injusto. Ainda hoje, a renda da família, a etnia, o

sexo, o lugar onde vive, o fato de ter ou não deficiência determinam os acessos de meninas e meninos a serviços de saúde e nutrição, à educação infantil, fundamental e média, se terão ou não seu trabalho explorado antes dos 16 anos, ou até mesmo o risco de ser contaminados pelo HIV/Aids.”1

Cerca de 40% dos jovens brasileiros vivem em famílias com renda até meio salário mínimo. A cada dois desempregados do país, um é jovem. Mesmo entre os ocupados, a maioria está na informalidade - somente 35% têm seus direitos trabalhistas constitucionais garantidos (carteira assinada). Dois em cada três presos são jovens. Somente três em cada dez jovens têm acesso ao ensino médio. Entre os que já pararam de estudar, 51% não superaram o ensino fundamental e 12% sequer ultrapassaram a 4ª série. Os dados sobre as crianças entre 7 e 15 anos, não são mais alentadores.

Do total de crianças e adolescentes brasileiros, 45% são pobres, vivendo em famílias com renda per capita de, no máximo, ½ salário mínimo. Essa média esconde uma iniqüidade significativa. Se analisarmos a distribuição da pobreza por raça/etnia poderemos notar que o percentual de pobres nos grupos de crianças e adolescentes indígenas e negros é maior (71% e 58%, respectivamente) do que nos grupos de brancos e amarelos (33% e 24%, respectivamente)2. Isso significa que, no Brasil, uma criança ou um adolescente negro tem quase duas vezes mais chance de ser pobre que uma criança ou um adolescente branco (razão de eqüidade de 1,8).3

1Relatório da situação da infância e adolescência brasileiras, Conclusões, UNICEF, 2003. 2 O IBGE baseia o quesito etnia pela auto-definição dos entrevistados e organiza cinco tipos de etnia: Brancos, Pretos, Pardos, Indígena e Amarelos ou Asiáticos. Na tradição demográfica e sociológica brasileiras consideram-se pretos e pardos como negros ou afro-descendentes. 3 Os dados utilizados correspondem a fontes do IBGE (2000), IPEA (2002) e UNICEF (2003).

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Esses dados frios dão somente um sinal de uma realidade muito mais complexa, vivenciada cotidianamente por meninos e meninas pelo Brasil afora, em particular os 29 milhões de negros.

Os dados levantados citados confirmam a conclusão a que chegaram os pesquisadores do UNICEF:

“A iniqüidade, o preconceito e a discriminação surgem na sociedade brasileira como resultado de um sistema injusto, erguido sobre um conjunto de fatores históricos, econômicos, sociais. Um sistema baseado na perversa reunião de três fatores: uma das maiores concentrações de riqueza do mundo; a falta de investimento do Estado em serviços sociais fundamentais; e a falta de participação dos cidadãos no desenho e implementação de políticas públicas sociais.”

E ainda agrega o que já sabemos e diariamente confirmamos,

“Crianças e adolescentes são as primeiras e maiores vítimas dessa terrível combinação de fatores de exclusão social.”

Entretanto, para além das condições de miserabilidade das crianças e jovens das comunidades pobres, a cada dia mais pode se perceber o agravamento das condições de vida devido justamente ao modo como o Estado encara a questão social sob uma lógica que criminaliza a pobreza, notadamente a juventude negra e pobre. Esta lógica vem fazendo com que a presença do estado em quase a totalidade das favelas do Rio de Janeiro, seja quase exclusivamente a da força policial, que sob a bandeira da luta contra a criminalidade atropela sistematicamente direitos, semeando o terror e a morte entre a população.

A criminalização da juventude pobre como política pública no Rio de Janeiro (2004-2008)

Nos últimos anos o Rio de Janeiro parece estar sofrendo um recrudescimento da violência urbana em diversos aspectos. Entretanto, este aumento da violência assume características muito distintas e até opostas, dependendo do território ao qual se pertença na cidade e, principalmente, de quem conta a história. Para a grande mídia e para as autoridades policiais e de governo, o que tem aumentado é a delinqüência e, em conseqüência, as ações policiais para enfrentá-la. Para as centenas de milhares de pessoas nas comunidades pobres da cidade, tem aumentado a sensação de insegurança e terror perpetrado tanto por grupos de trafico de drogas e de milícias4, como pelas forças policiais, que têm passado a utilizar táticas de guerra e de terror que vêm

causando, mesmo segundo dados oficiais, a morte de milhares de pessoas a cada ano.

As afirmações podem parecer alarmistas ou exageradas, entretanto as estatísticas e os informes de organismos nacionais e internacionais sobre a questão relatam uma situação de extrema gravidade,

4 Grupos formados por policiais militares, na ativa ou aposentados, bombeiros, e em alguns casos até ex-traficantes, agem como grupo de extermínio e cobram taxas ilegais aos moradores sob o pretexto de protegê-los.

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que afeta diretamente a vida e o desenvolvimento de comunidades inteiras, em particular das crianças e jovens que lá estão.

O informe 2008 de Anistia Internacional, relata que “a política de realizar operações policiais militarizadas de grande escala foi intensificada à custa de centenas de vidas. Segundo dados oficiais, a polícia matou ao menos 1.330 pessoas no estado em 2007 – o maior número até agora. Todas as mortes foram classificadas como "resistência seguida de morte" e tiveram pouca ou nenhuma investigação séria”.

Mais adiante, ao se referir à mega-operação policial organizada numa parceria entre os governos Federal e Estadual, com motivo da realização dos Jogos Pan-americanos na Cidade, em Junho de 2007, o informe dá um relato do que vem sendo a lógica do estado com relação às comunidades pobres: Houve

dezenas de mortes e uma enorme quantidade de feridos durante as operações policiais realizadas no Complexo do Alemão (…) e na vizinha Vila da Penha. Milhares de pessoas tiveram de enfrentar o fechamento de escolas e de postos de saúde, bem como cortes no fornecimento de água e de energia elétrica. No primeiro dia de operação, a polícia matou ao menos 19 supostos criminosos, um deles com 13 anos de idade, e dezenas de transeuntes foram feridos. Foram apreendidas 13 armas e uma quantidade de drogas. Ninguém foi preso.

Lamentavelmente o relato de Anistia Internacional reflete uma realidade cada vez mais comum nas comunidades. Os dados oficiais confirmam esta macabra forma de lidar com a pobreza: Segundo a própria polícia o número total de ‘autos de resistência’ em 20075, equivale a quase o 50% do total de homicídios dolosos cometidos no mesmo período registrados pelo Instituto de segurança pública.

Uma olhada sobre os números anuais de mortes pela polícia, considerando os últimos sete anos (e incluindo o início do projeto) até o presente, dão uma clara noção do agravamento da situação, demonstrada no gráfico pela linha exponencial de ascensão constante (linha azul no Gráfico 1).

Gráfico 1 - Mortes de civis pela polícia no Rio de Janeiro 2001 2008

596

897

1195

9831114

14321330

1069

0

500

1000

1500

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008(projeçãoc/base 1o

Tri)

civis mortos pelapolícia (auto deresistência)

Expon. (civis mortos pela polícia (auto deresistência))

5 Vale observar que estudo do professor Ignácio Cano (UERJ) demonstrou que 67% dos casos de auto de resistência a vítima apresentava tiros na nuca e disparados a curta distância, configurando indícios claros de execução sumária.

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No presente ano o Rio continuou a registrar aumento nos casos de pessoas mortas pela polícia em confrontos --os chamados autos de resistência. No primeiro trimestre deste ano, houve 358 casos do tipo, 12% a mais que o registrado no mesmo período do ano passado (318). O número consta no balanço dos índices de criminalidade do primeiro trimestre de 2008, divulgado pelo ISP (Instituto de Segurança Pública), órgão do governo do Rio responsável pelas estatísticas criminais. Segundo relatório publicado no momento de fechamento deste documento “Apesar de ter matado mais, a polícia do Rio apreendeu menos armas e drogas no primeiro trimestre de 2008”, situação que parece confirmar a política de “segurança” pública antes assinalada.

O discurso da “Guerra ao tráfico”, utilizado pelo poder público e reforçado pela grande mídia, traz implícita a existência do “inimigo” – o outro que é uma ameaça ao bem comum e, por isso, ‘deve ser eliminado’ – e, junto, a concepção de que todos os moradores de determinada região são bandidos em potencial: ser pobre, negro, morador de comunidades subalternizadas é justificativa para ser suspeito, como provável “inimigo do Estado e da sociedade”, não precisando, portanto, ter respeitado seus direitos fundamentais: a política de extermínio passa a ser apresentada como algo necessário. A

violência institucionalizada pelo Estado tem provocado um fenômeno único na história do Rio de Janeiro, que é a diminuição demográfica da população jovem, em especial a negra, o que aponta para uma prática do estado que longe de buscar promover a cidadania e a equidade social tende a favorecer o desrespeito aos direitos humanos.

A situação descrita tem levado uma série de organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa e grupos militantes de Direitos Humanos a apresentar denúncias perante diversos organismos internacionais como OEA, e as Nações Unidas.

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Infância e juventude em situação de rua

“Eu sou a luz do mundo e ninguém me vê aqui...”

da música Luz do Mundo (C. Buarque/Djavan/A. Antunes/Caetano Veloso) composta para o lançamento do projeto Se Essa Rua Fosse Minha.

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Infância em situação de rua no Rio de Janeiro6

[A ação da sociedade e do Estado: na história e na lei, a discriminação]

No contexto apresentado dificilmente poderíamos esperar uma situação diferente para a infância e juventude que tem na rua sua principal referência. Desde o final do século XIX os relatos sobre os encantos da outrora capital do império vêm sendo pontuados por queixas na imprensa sobre a presença dos chamados menores de rua. Estes, na sua quase totalidade, herdeiros da lei do ventre livre7 e posteriormente da própria lei áurea8, ficaram abandonados pelo Estado e excluídos do projeto de construção do Brasil republicano. Dede então e de maneira constante, tem prevalecido

na perspectiva das elites e reproduzida no senso comum da sociedade, uma visão que oscila entre a compaixão e o desprezo, entre a caridade descomprometida e o medo fundado no desconhecimento e numa visão criminalizante sobre as classes populares.

Assim, podemos observar que das políticas Higienistas e Juristas, na virada do século XIX para o XX, até o Novo Código do Menor de 1979, predominou uma visão que classificava a infância “de acordo com sua origem familiar, portanto sua herança social. Os bem-nascidos terão a infância garantida; os demais estarão sujeitos ao aparato jurídico-assistencial destinado a educá-los ou corrigi-los. Alguns serão crianças e os demais, menores.”9 A expressão desta distinção ficava consagrada na existência da Vara da Família, para atender à infância normal e o Juizado do Menor, para a infância pobre ou desvalida. Esta classificação/distinção acabou definindo também, e principalmente, as responsabilidades cabidas ao Estado ou à família.

Esta visão sobre a infância pobre sofre um duro revés com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA10, que propõe a superação da doutrina da situação irregular por meio da doutrina da proteção integral (ECA, art. 1), ancorada numa perspectiva de direitos universais. A nova lei supera em termos jurídicos a dicotomia criança x menor (art. 2) enquanto ratifica e especifica os direitos fundamentais e sua responsabilidade, definidos já na constituição11, estando, entretanto, longe de significar a superação real da discriminação estabelecida.

6 Para a construção deste documento utilizamos, além das pesquisas e referenciais citados pontualmente, dados oriundos de relatórios institucionais das organizações não governamentais Assoc. B. São Martinho, Associação EXCOLA e Se Essa Rua Fosse Minha e do documento “Marco situacional”, elaborado pelos pesquisadores Marcelo Princeswall e Paula Caldeira do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância – CIESPI, como parte das contribuições apresentadas à comissão de elaboração da política de atendimento à infância e adolescência em situação de Rua do CMDCA Rio (2008), atualmente em funcionamento e da qual o autor deste artigo é também membro, além das fontes e referências citadas oportunamente. 7 Lei que outorgava carta de alforria aos filhos de escravos negros no final do século XIX. 8 Lei que decreta o fim da escravatura no Brasil e que, no mesmo movimento, jogou nas ruas milhares de trabalhadores afro-descendentes sem nenhum tipo de participação nos frutos daquilo que, durante séculos, construíram com seu trabalho. 9 Rizzni, I & Pilotti, F. (org) A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil, IIN, Ed. Univ. Santa Úrsula, Amais liv e edit., 1995. pág. 102. 10 Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal N 8069 de 13 de julho de 1990. 11 O Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu artigo 4o enuncia, “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, a alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e á convivência familiar e comunitária.”.

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[O perfil das crianças nas ruas: a disputa pelos números e sua legitimidade]

Na década de 1980 – com quase cem anos de atraso – começou-se a estudar o perfil das crianças e adolescentes nas ruas. Entretanto, o próprio fato da sua identificação advir de uma série de relações sociais ancoradas no preconceito e na discriminação naturalizadas no imaginário social dificultou, e dificulta até hoje, a obtenção sequer de dados quantitativos específicos, quanto mais de um perfil qualitativo ou de um entendimento dos processos sociais que envolvem a vida desses meninos e meninas. Os dados existentes, via de regra, não são consenso entre os diferentes atores coletivos da área da infância, notadamente entre sociedade civil e organizações governamentais.

Recentemente a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS-RJ) realizou um levantamento da população em situação de rua nas 13 regiões da Cidade do Rio de Janeiro. O levantamento da SMAS contemplou um total de 1.682 pessoas, das quais um 24,9% corresponderia a crianças, adolescentes e jovens de até vinte e quatro anos de idade, perfazendo um quantitativo de 420 pessoas nessa faixa etária. Os números totais, assim como alguns referentes a dados como procedência e vínculo familiar, são contestados por semelhantes levantamentos realizados por organizações da sociedade civil e por relatórios de equipes que trabalham diretamente com os meninos e meninas nas ruas e em espaços de

atividades alternativos.

O citado levantamento foi realizado pelas equipes sempre à noite, denotando que o corte metodológico de pesquisa trabalhou com o entendimento de situação de rua como sinônimo de sem teto, questão superada pela literatura especializada. A redução da idéia de ‘situação de rua’ como sinônimo de ‘sem teto’ ou ‘sem vínculo familiar ou comunitário’, além de não possuir bases estatísticas ou científicas, desconhece a complexa dinâmica social estabelecida pelos sujeitos que têm na rua sua principal referência

de socialização e sociabilidade.

[Novos olhares sobre as crianças, adolescentes e jovens: a pesquisa a partir da prática]

No caso da Infância, adolescência e juventude em situação de rua, diversos autores passam a entender a impossibilidade de definir alguém como “de rua”, e sim a rua como um dos espaços que fazem parte do mundo da criança12. Nesse sentido, e com base na literatura existente e no seu próprio trabalho junto aos meninos e meninas, as organizações da Rede Rio Criança13, entendem a situação de rua com

12 Daniel Stoecklin (2000) 13 A Rede Rio Criança é uma articulação de referência de organizações não governamentais que desenvolvem trabalhos junto a crianças adolescentes e jovens em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro.

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uma complexa relação dinâmica que envolve casa, rua, abrigo, projetos sociais e espaços de outras comunidades, em que a rua, em diferentes graus, ocupa um lugar de referência predominante14.

O relatório do primeiro semestre de 2007 da Associação Beneficente São Martinho, aponta um quantitativo de 272 crianças e adolescentes em situação de rua, apenas nas regiões atendidas pelo projeto que inclui as Zonas Sul, Centro e Grande Tijuca. O citado relatório, entretanto, não é uma pesquisa realizada uma única vez, mas o seu resultado se desprende de um acompanhamento continuado, de registro das ações de atendimento junto aos meninos e meninas.

Com base nesse relatório e no similar do Se Essa Rua Fosse Minha15, podemos observar mudanças drásticas nos lugares de concentração e nas dinâmicas sociais estabelecidas pelos meninos e meninas, devido a elementos externos, notadamente, as ações de recolhimento e mesmo de repressão, motivadas pela realização dos Jogos Pan-Americanos. Grupos de Crianças e adolescentes que costumavam se encontrar na orla marítima (especialmente Copacabana e Leme) foram forçados a buscarem bairros menos visados na zona Norte da cidade, ou mesmo nas encostas dos morros próximos, ficando em situações de maior vulnerabilidade, tanto pela invisibilidade quanto pela relação direta com grupos do trafico de drogas.

No mesmo ano foi lançada uma pesquisa que buscava definir o perfil dos meninos e meninas em situação de rua nos Bairros da Zona Sul e da Barra da Tijuca, encomendada pela Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro16. A pesquisa, realizada em três dias de trabalho de campo, aponta um total de 344 crianças e adolescentes para estas duas regiões da cidade.

[Os dados desconstruindo preconceitos e legitimando uma ação diferenciada]

Quanto aos perfis traçados, embora haja divergências relativas nos percentuais apontados pelos diversos levantamentos, podemos encontrar tendências aproximadas em alguns itens pesquisados. Contrário ao que costumava se pensar (e veicular na grande mídia), e em contraposição ao apontado por alguns levantamentos do poder público municipal, as pesquisas sobre a procedência das crianças e adolescentes em situação de rua nos principais pontos de concentração na cidade do Rio de Janeiro, assinalam que a grande maioria é originária deste Município. Do total de entrevistados na pesquisa da Cáritas, realizada pelo professor Dario de Sousa e Silva Filho, da UERJ, se observa que a referência domiciliar apontada como origem é tipicamente um bairro da capital. A expressiva maioria dos que foram entrevistados (92%) possui família no Rio de Janeiro, e a quase totalidade, com duas exceções, no Estado do Rio de Janeiro.

Este dado é de extrema importância para a responsabilização do poder público municipal, pois não é raro assistirmos discursos de representantes do legislativo e gestores públicos afirmando que a responsabilidade pela sorte dos meninos e meninas que estão nas ruas é dos seus municípios de origem, apontando uma suposta maioria de origem na baixada fluminense.

A mesma situação - em que os dados desmentem o senso comum acerca da realidade da infância em situação de rua - ocorre ao pesquisar o seu vínculo familiar: Das 263 crianças e adolescentes

14 Para um estudo mais aprofundado desta questão ver, 15 Ambas organizações vêm realizando um trabalho conjunto, articulando o trabalho das suas equipes nas ruas da cidade. 16 Dario de Sousa e Silva Filho, “Perfis e trajetórias de crianças e adolescentes que vivem nas ruas da zona sul carioca e barra da tijuca”, 2007, não publicada.

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pesquisados no Levantamento do primeiro semestre de 2007 do projeto Ao Encontro17, apenas 4% relataram não possuir nenhum vínculo familiar. Na mesma linha, a pesquisa desenvolvida por Silva Filho aponta que 77,5% dos entrevistados possuem referência domiciliar, e 55,1% visitam suas famílias.

Estes dados parecem embasar um ditado conhecido entre os educadores populares que trabalham junto à garotada: “menino não é de rua, ninguém nasce de paralelepípedo”, se contrapondo ao preconceito que estigmatiza o “menor de rua” como um pária.

[Das causas que levam à situação de rua]

Com relação às causas que levam à situação de rua, gostaríamos de colocar três considerações, numa tentativa de lançar um olhar crítico sobre os aspectos que mais comumente são apontados como motivos, numa relação aparentemente mecânica que levaria inexoravelmente à situação de rua. Essas causas seriam a pobreza, a violência intra-familiar, o tráfico, o fracasso escolar. É claro que estas questões aparecem em toda pesquisa, mas o que aqui queremos questionar não é os dados, mas a leitura que se joga sobre eles, definindo à priori quais são causa e quais efeito. De qualquer maneira vale destacar que mesmo os dados brutos sobre a origem dos meninos e sua relação com estruturas sociais familiares, não confirmam as idéias mais comuns sobre os “menores de rua” como são ainda chamados pela mídia e pelos setores mais conservadores da nossa sociedade.

Primeiro, e como apontamos no início deste documento, a pobreza na sociedade Brasileira é produto de uma estrutura sócio-econômica que reproduz injustiça e desigualdade, e que (a respeito da situação de rua), aliada à ausência de garantias de direitos básicos e de espaços para o lazer e o desenvolvimento, pode, ou não, se traduzir em situações de trabalho infantil, domésticos, violência intra-familiar, falta de espaço e de afeto, abuso físico e sexual nas mãos de pais ou adultos supostamente responsáveis, uso de drogas, abandono escolar, ameaças de morte por parte de grupos de traficantes locais, de paramilitares ou mesmo da polícia. Estas situações podem, por sua vez, vir a provocar a ida para as ruas por parte dos meninos e meninas.

Consideramos importante [1º] contextualizar a pobreza e [2º] aliar esse contexto ao acesso a políticas de garantia de direito, bem como [3º] especificar que essas situações podem (ou não) vir a provocar a situação de rua e suas variantes, como condição para não cairmos num tipo de generalização sobre a infância e juventude nas ruas que, além de não conseguir superar a visão do senso comum, afastando-nos da possibilidade de entender este fenômeno social, implica necessariamente na reprodução de mecanismos de distinção que são implícita e explicitamente discriminatórios. Vale salientar que são esses mecanismos de distinção, os que embasam e justificam, no senso comum, as políticas de criminalização da pobreza, em particular da juventude pobre no Brasil.

[A infância, a rua e a cidade: os seus direitos, os nossos direitos]

Hoje, no Rio de Janeiro, chama a atenção o fato da infância em situação de rua vir ganhando, a cada vez mais, destaque nos discursos políticos – notadamente na recente campanha eleitoral - e na mídia a partir da lógica da segurança e da necessidade da implantação de políticas chamas de ‘choque de ordem’. Esta perspectiva aponta explicitamente, no seu discurso, o entendimento de que essas crianças e jovens seriam antes um problemas para a chamada ordem urbana, do que sujeitos cujos

17 Relatório citado: ABSM em parceria com SER.

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direitos têm sido sistematicamente violados e que requerem do estado uma atenção especial para sua garantia.

Qualquer política de atendimento à infância em situação de rua deve se contrapor de modo claro e incisivo a esta perspectiva que criminaliza a infância pobre, sobe risco de deliberar uma ação permanente do Estado que venha consolidar estruturas e dinâmicas sociais de discriminação. Em contrapartida, uma política comprometida com a integralidade e universalidade dos direitos humanos, notadamente os direitos da infância, deve propiciar uma profunda mudança na percepção da sociedade sobre a infância e sobre o próprio espaço público, sobre a cidade.

Se buscarmos entender socialmente o fenômeno da situação de rua a partir das descrições implícitas nas ações desenvolvidas, seja para conte-la, reprimi-la ou prestar assistência às crianças e jovens que nela estão, perceberemos rapidamente que a mesma parece estar circunscrita a alguns poucos bairros da cidade: a orla marítima, o centro da cidade e alguns bairros da Grande Tijuca, territórios definidos por serem centros comerciais, de negócios, do grande turismo e de moradia das camadas mais abastadas da sociedade carioca, situação que se repete com poucas variantes em todos os grandes centros urbanos no Brasil. Esta condição espaço-temporal da situação de rua, com a sua imbricada e velada relação entre poder, território, pobreza e raça que define lógicas e dinâmicas de acesso e exclusão, nos alerta para um fato que interfere diretamente na nossa percepção e, logo, nas ações e políticas que possamos definir para encará-la.

Deste modo, a construção de uma política de atendimento à infância em situação de rua, baseada em princípios democráticos e participativos, deve contemplar a implementação de amplo processo de reflexão não apenas sobre como “resolver” o suposto “problema” dos meninos e meninas de rua, mas sobre o uso do espaço público, sobre o real acesso à cidade por parte das mais diversas camadas da população; um debate que envolva diversos grupos sociais, de maneira a que os princípios para os que apontarão as ações definidas nessa política possam visar, de modo concreto, mudanças sociais que possibilitem efetivamente a garantia integral dos direitos econômicos sociais e culturais dessas crianças. Protelar estas questões implicaria no risco iminente de continuarmos a reproduzir as lógicas ora higienistas, ora assistencialistas que vem desdobrando em ações pontuais e fragmentadas de atendimento ou de repressão à infância e juventude em situação de rua nos últimos 120 anos e que, de um modo ou outro, e para além de questões morais ou política, têm se demonstrado espantosamente ineficazes. Sem lugar a dúvidas, estamos convencidos de que é este o momento de mudar a lente que até agora utilizamos para encarar um problema que não são essas crianças, mas do qual são elas as principais vitimas.