In girum imus nocte et consumimur igni

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I n g i ru m i mu s no c te e t con su m i mu r ig n i&

C rtica da s e parao

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Crtica da separao

Curadoria da coleo Ricardo Pinto de Souza Produo, projeto e artesanato Oficina Raquel Agradecemos a Ken knabb por suas notas edio. Seu trabalho seminal de divulgao da obra de Debord pode ser encontrado em seu site Bureau of Public Secrets: www.bopsecrets.org Debord, Guy (1931-94)In girum immus nocte et consumimur igni; Crtica da separao. Trad. Ricardo Pinto de Souza. Notas de Ken Knabb. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010. 100p. ISBN 978-85-61129-02-6 I. Cinema 2. Teoria Poltica 3.Guy Debord

Oficina Raquel www.oficinaraquel.com que este livro dure at antes do fim do mundo

I n g i ru m i mu s no c te e t con su m i mu r ig n i&

C rtica da s e parao

G uy D eb ord

oiR C nafaquel

CARTA DE FUNDAO

nossa aurora vir Cuida da flama, at que possamos despertar novamente, seguros. A flama est em nossas mos, a confiamos a ti, este nosso demnio |sagrado da ingovernabilidade. Cuida da flama e descansaremos em paz. Criana, s estranha, obscura, verdadeira, impura e dissonante. Cuida da nossa flama.

David Rudskin

Pre fc io A infnc ia de Ado, p or Ricardo Pi nto de S ouz a , p11 In g ir um imu s no c te e t con sumimur ig ni (1978), p 15 Cr t ica da se p arao (1961), p 83

A inf ncia de Ad o

No encontraremos aq u i u m prefcio trad icional a estes doi s rotei ros de Guy Deb ord . As i n forma es bio g rf ica s p o dem s er encontrada s em alg u ma da s m i l hares de p g i na s ded icada s a ele. Os de t al hes , coment rios e crtica s a sua obra , alm da prpria obra , p o dem s er faci l mente obtidos da mesma manei ra . Sua obra pri ma , A sociedade do esp e tculo , t amb m, i nclu sive a s ci nco ou s ei s tradu es para o p ortug us . O q ue encontraremos u ma tent ativa de fornecer alg u ma s pala v ra s de con forto e de av i s o q ueles q ue s e aproxi mam p ela pri mei ra vez da obra do es crtior f rancs (e p or q ue no p en sador, ou re vo lucionrio?re tornaremos ao tema ad iante). Pri mei ro, a s palav ra s de av i s o. Guy Deb ord no u m autor fci l. Sua es crit a re ple t a de referncia s a Mar x , alm de sua h i stria p ess oal e a s vria s ma tria s q ue o c upram sua mente i nq u ie t a ao longo dos anos , como estrat g ia , h i stria cl ssica , ci nema , p o esia ... Ma s est a s referncia s to da s so pro cessada s e recon stitu da s em s e u texto, s empre de forma crtica , s em q ue est a s cit a es s e j am d i lu da s , ma s antes , em u m pro cess o i rn ico mu ito prxi mo do noss o antrop ofa g i smo, geram contra ste, i nterro g ao, d ilo go. estrat g ia d i s c u rsiva Deb ord chamou d tou rnement , desv io. E st a p eq uena not ao esti l sitca nos p erm ite i ntro duzi r u m problema q ue a obra de Deb ord su s cit a para u m leitor mai s preo c upado, o da d iv i so entre u m autor este t a , e u m outro, p ol tico re volucionrio, e da prioridade de u ma f ig u ra em relao outra . A noss o ver u ma q uest o fal sa , ma s q ue val her t alvez alg u ma s l i n ha s de con siderao. De fato, o i n cio de sua v ida pbl ica s e d entre arti st a s e p o e t a s , m i l it ando como va g abu ndo iti nerante nos g rup os de vang uarda art stica q ue ai nda ti n ham o dada smo como oriente na Frana da dcada de 50. A ele g ncia do texto de Deb ord , q ue alterna entre mov i mentos de d ico cl ssica e a i ron ia mai s corrosiva , i nd icam s em dv ida a preo c upao em pro duzi r u m texto este ticamente

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p o deros o. No ent anto, necessrio ter em mente q ue to da s of i sticao do d i s c u rs o de Guy Deb ord est volt ada para sua outra m il it ncia , t o antig a q uanto sua preo c upao art stica , o s e u pap el de re volucionrio, em pri mei ro lug ar, e de terico, ai nda q ue her tico, do mar xi smo, do q ual s e tornou u ma da s voz es mai s dest aca da s e rele vantes do s c u lo XX. Dito i sto, necessrio t amb m est ab elecer q ue no p ossvel entender a manei ra q ue des emp en hou estes pap i s ca s o s e j a ne g ado q ue a teoria q ue pro duziu , a ssi m como sua m i l it ncia , foi med iada p ela l ng ua esp ecf ica de sua s en sibi l idade i nd iv idual. Em outros termos , a manei ra de Deb ord c u mpri r sua m i sso p ol tica foi atravs de s e u pap el de criador, s e j a de f i l mes , s e j a de textos . Deb ord , o re volucionrio, fala atravs de Deb ord , o es critor, e em b ora a preo c upao de amb os s e j a a crtica ao capit al i smo e a lut a p ela re voluo, u m erro estrat g ico m i n i m iz ar os aps ec tos mai s estrit amente est ticos da obra do f rancs como s e foss em u ma es p cie de idossi ncra ssia de u m f i ls ofo, q ue, no ent anto, p ertence mesma raa de u m Mar x ou u m He gel, ai nda q ue obv iamente s em a s em i n i l idade destes . A preo c upao de Deb ord com a arte, i nclu sive com o es cre ver com arte, no si mplesmente o trao i ncontornvel de u m i nd iv duo, como u ma veleidade ou tiq ue, t amp ouco u m acidente no corp o da obra terica . O q ue est a obra parece g ri t ar de dcada s de d i st ncia q ue, s e, ao contrrio do q ue defendem os ap ol ticos, a arte no autnoma , nem p o de s er s e parada dos a sp ec tos de exp erincia v it al e, p ort anto, p ol tica do suj eito q ue a pro duz , aq u i lo q ue s e j a a p ol tica e, p ort anto, a exp erincia v i t al-- t amb m no p o de acontecer de forma rad ical, ou s e j a , l ib ert ria , s em a med iao de u m d i s c u rs o con s ciente at o lti mo g rau , i nclu sive auto - con s ciente, u ma da s carac ter stica s do est tico. A med iao entre p ol tica , v ida e d sic u rs o s e d atravs da arte, ou de p elo menos alg u ma arte. Arte no de ve s er entend ido exclu sivamente como o u n ivers o dos g abi ne tes , como os q uad ros , l iv ros e d i s cos , ma s , antes d i s s o, os momentos em q ue a s l i ng ua gen s e os d i s c u rs os con s e g uem expri m i r a d ig n idade do homem em vez de sua subj ug ao, e neste s entido u ma re voluo u ma obra de arte. Uma l i ng ua gem neces sariamente con s ciente, con s ciente de s e u s meios e rec u rs os , de sua s

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ci rc u n st ncia s , de s e u s obj e tivos . Aci ma de tudo a l i ng ua gem de u m homem l iv re q ue no exi ste s eno como o exemplar raro de sua esp cie, e no, como de veria s er, como o ca s o tpico de u ma hu man idade a gora red i m ida de s of rer pa ssivamente a h i stria como u m p esadelo. Enq uanto homem l iv re, Deb ord , como to do homem l iv re, o pri mei ro homem, s e parado de s e u s s emel hantes e de sua prpria h i stria , q ue necessariamente a utopia , e no o re g i stro montono de cat strofes q ue s em refle ti r mu ito chamamos de nos s a h i stria emb ora p errtenamos a est a h i stria do capit al i smo enq uanto s e u s es cravos e sd itos , d if ici l mente p o demos d iz er q ue nossa , s eno como s e d iz noss o patro. No p o demos nem ter o con s olo dbio de q ue de alg u ma forma est a h i stria coresp onde a alg u ma ess ncia , ai nda q ue tr g ica e v iolent a , propriamente nossa . E ste ex l io, est a s e parao de noss os ig uai s , de nossa narrativa , de ns mesmos , o g rande tema da obra de Guy Deb ord . L er Deb ord , a ssi sti ra a s e u s f i l mes , receb er o i mpac to e a i n spi rao de sua h i stria sig n if ica necessariamente lembrar de q ue nossa h i stria , na verdade, h i stria al heia , e q ue, para de alg u ma manei ra sup erar est a ci so no p o demos p ermanecer nos termos e palav ra s q ue essa h i stria nos le gou . Preci samos de arte para q ue p ossamos ter p ol tica , e preci samos de p ol tica pra q ue p ossamos ter, de fato, arte. Talvez a advertncia q ue gost aramos de tran s m iti r q ue de vemos ter o c u idado de no ler a obra de Deb ord como a de u m terico ou mesmo a de u m re volucionrio no s entido trad icional. H algo de novo em sua obra , t o novo q uanto sua contribu io pu ramente terica , e s e no resp eit armos est a nov idade e d iferena em nossa leitu ra corremos o ri s co de torn -lo heri, ou m ito, ou g u ru re volucionrio, ou l der p ol tico, ou q ualq uer outra platitude q ue nossa f ra g i l idade conceba e q ue l he teriam cau sado a s co. O q ue Deb ord e sua obra foram est d ito naq u i lo q ue pro duziu , e s e no temos a palav ra j u st a para i ss o, ei s u m i nd cio de q ue ai nda no est amos prontos para o ne g ativo, e q ue, s e verdade q ue o pri mei ro homem na s ce pronto e renu ncia i n fncia , o mesmo no s e apl ica ao para s o arru i nado em q ue obrig ado a va g ar. Ap s alg u ma s advertncia s , alg u m con s olo. A d if ic u ldade da obra de Deb ord oferece como comp en sao o fato de s er u m dos p en sadores mai s rele vantes para expl icar noss o p esadelo e ang s -

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ti a . Comear a entend -lo, a entender sua s demanda s i mp ossvei s , s e u s f raca ss os e contrad i es , u m dos cam i n hos para sai rmos f i nal mente de nossa h i stria . De nossa pri so. Ricardo Pi nto de S ouz a

O bs . As not a s ao texto est o nu merada s , a s de Ken Kn abb preced ida s p or u m K, a s do prprio Deb ord pre ced id a s p or u m D. As rubrica s q ue i nd icam a s i ma gen s dos f i l me s vm preced ida s de le tra s do alfab e to. Tanto not a s q u anto rubrica s ss a referida s na vers a em p ortug u s . A sigla SI s e s efere a Sit uat ioni st Inte r nat ional Ant h o log y, cole t nea de textos do situacion i smo org a n i z ad a p or Ken Knabb e d i sp on vel em s e u site Bu reau of Publ ic S ecre ts em www.b ops ecre ts . org .

I n g i ru m i mu s no c te e t con su m i mu r ig n i(1978)

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e ne ferai, dans ce film, aucune concession au public. Plusiers excellentes raisons justifient, mes yeux, un telle conduite; et je vais les dire. Tout dabord, il est assez notoire que jai nulle part fait de concessions aux ides dominates de mon poque, ni aucun des pouvoirs existants. Par ailleurs, quelle que soit lpoque, rien dimportant ne sest communiqu en mnageant un public, ft-il compos des contemporais de Pericls; et, dans le miroir glac de lcran, les spectateurs ne voient prsentement rien qui voque les citoyens respectables dune dmocratie. Voil bien lessentiel: ce public si parfaitement prov de libert, et qui a tout support, mrite moins que tout autre dtre mnag. Les manipulateurs de la publicit, avec le cynisme traditionnel de ceux qui savent que les gens sont ports justifier les affronts dont ils ne se vengent pas, lui annocent aujourdhui tranquillement que quand on aime la vie, on va au cinma. Mais cette vie et ce cinma sont galement peu de chose; et cest par l quils sont effectivement changeables avec indiffrence. Le public du cinma, qui na jamais t trs bougeois et qui nest presque plus populaire, est dsormais presque entirement recrut dans une seule couche sociale, du reste devenue large: celle des petits agents spcialiss dans les divers emplois de ces services dont le systme productif actuel a si imprieusement besoin: gestion, contrle, entretien, recherche, enseignement, propagande, amusement et pseudo-critique. Cest la suffisamment dire ce quils sont. Il faut compter aussi, bien sr, dans ce public qui va encore au cinma, la mme espce quand, plus jeune, elle nen est quau stade dun apprentissage sommaire de

aO pblico atual de uma sala de cinema, observando fixamente diante de si, face dada, em um perfeito contracampo, aos espectadores, que no vm mais, ento, que a si mesmos sobre uma tela. bGrande conjunto de neo-habitaes. cUma assalariada moderna em sua banheira, com seu filho; traveling em direo a uma cama que orna a mesma pea. dPessoas esperando pacientemente diante da entrada de um cinema.

ePaisagens das fbricas de hoje em dia, e de seus resduos.

fUma joja de roupas, com duas jovens clientes.

N

oa farei neste filme1 concesso alguma ao pblico. Muitssimas, excelentes razes justificam, aos meus olhos, uma tal conduta, e as direi. Antes de mais nada, por demais notrio que jamais fiz concesses s idias dominantes de minha poca, nem a nenhum dos poderes existentes. Alm disso, qualquer que seja a poca, nada importante comunicado em se poupando um pblico, ainda que fosse composto por contemporneos de Pricles. E, no espelho congelado da tela, os espectadores no vem atualmente nada que evoque os cidados respeitveis de uma democracia. Eis, ento, o essencial: esse pblico to perfeitamente privado de liberdade, e que tolerou de tudo, merece menos que qualquer outro ser mimado. Os manipuladores da publicidade, com o cinismo tradicional destes que sabemb que as pessoas esto inclinadas a justificar as afrontas das quais no podem se vingar, anunciam-lhesc tranquilamente que quando se ama a vida, se vai ao cinema2. Mas essa vida e esse cinema so igualmente muito pouco. E por isso que so efetivemente intercambiveis de forma indiferente. Od pblico do cinema, que jamais foi muito burgus e que j no to popular, hoje quase inteiramente recrutado em uma nica camada social, que dee resto tornou-se ampla: aquela dos pequenos agentes especializados nos diversos usos dos servios dos quais o sistema produtivo atual tem necessidade to imperiosa: gesto, controle, manuteno, pesquisa, ensino, propaganda, entretenimento e pseudo-crtica. Issof basta para dizer o que so. necessrio contar tambm, claro, entre esse pblico que ainda vai ao cinema a mesma espcie quando, mais jovem, no est mais que no estgio de uma aprendizagem sumria dessas diversas

In girum... O ttulo (um palndromo em latim medieval de autoria desconhecida) significa: giramos pela noite e somos consumidos pelo fogo [ uma adivinha para a mariposa]. 1[D]Em 1978, um filme ilustrava efetivamente este discuso. verdade que um tal gnero de filme no teria realmente seu lugar no cinema, comose v agora que o cinema mesmo no tem mais tal espao na sociedade. Apenas estas palavras, a condio de se adicionar algumas notas para ajudar em sua compreenso, sero ainda assim instrutivas. Nosso tempo deixou poucos textos que visavam to farancamente as grandes transformaes que o marcaram. Que teriam ento podido dizer e fazer de verdadeiro aqueles que partilharam algo de suas iluses e de suas ambies combinadas? [K] Debord se refere aqui a este filme no pretrito porque estas notas apareceream originalmente em uma verso impressa do texto falado (sem a descrio das imagens) publicado vrios anos depois dele retirar de circulao In girum... e todos seus outros filmes. 2Uma campanha publicitria foi exatamente baseada neste slogan idiota. 3 [K] Agentes especializados [na verso inglesa de Knabb, a modern employee]: o termo francs employ(e) aproximadamente equivalente a um trabalhador de colarinho branco [na acepo inglesa do termo, trabalhadores de escritrio em funes tcnicas de pequena responsabilidade]. Neste filme, Debord parece estar usando o termo de uma forma algo mais especfica, para se referir camada ... dos pequenos agentes especializados que ele menciona mais tarde e segue criticando severamente em detalhes. ... Talvez tambm seja digno de nota que a caracterizao de Debord da composio de classe das audincias de filmes naturalmente se refere

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ses diverses tches dencadrement. Au ralisme et aux accomplissements de ce fameux systme, on peut dj connatre les capacits personelles des excutants quil a forms. Et en effet ceux-ci se trompent sur tout, et ne pouvent que draisonner sur des mensonges. Ce sont des salaris pauvres qui se croient des propritaires, des ignorants mystifis qui se croyent instruits, et des morts qui croyent voter. Comme le mode de production les a durement traits! De progrs en promotions, ils ont perdu le peu quils avaient, et gagn ce dont personne ne voulait. Ils collectionnent les misres et les humiliations de tous les systmes dexploitation du pass; ils nen ignorent que la rvolte. Ils ressemblent beaucoup aux esclaves, parce quils sont parqus en masse, et ltroit, dans de mauvaises btisses malsaines et lugubres; mal nourris dune alimentation pollue et sans got; mal soigns dans leur maladies toujours renouveles; continuellement et mesquinement surveills; entretenus dans lalnaphabtisme modernis et les superstitions spectaculaires qui correspondent aux intrts de leurs matres. Ils sont transplants loins de leurs provinces ou de leurs qurtiers, dans un paysage nouveau et hostile, suivant les convenances concentrationnaires de lindustrie prsente. Ils ne sont que des chiffres dans des graphiques que dressent des imbciles. Ils meurent par sries sur les routes, chaque pidmie de grippe, chaque vague de chaleur, chaque erreur de ceux qui falsifient leurs aliments, chaque innovation tchnique profitable aux multiples entrepeneurs dun dcor don ils ensuient les pltres. Leurs prouvantes conditions dexistence entrannent leur dgnrescence physique, intellectuelle, mentale. On leur parle toujours comme des enfants obissants, qui il suffit de dire: il 18

aFotografia publicitria de um casal de assalariados modernos, em sua sala de estar, onde brincam seus dois filhos. [still] bArrumao da mesma sala, vista em uma tomada area total, sem seus moradores. cDanas dos nativos do Tahiti em uma praia.

tarefas de cerceamento. Peloa pragmatismo e pelas realizaes deste famoso sistema, j se pode conhecer as capacidades pessoais dos executantes que formou. E, com efeito, estes se iludem sobre tudo e no conseguem mais que delirar sobre suas mentiras. So os assalariados pobres que se crem proprietrios, os ignorantes mistificados que se crem instrudos, e os mortos que crem votar. Como o modo de produo os tratou duramente! Com o progresso atravs de promoes, perderam o pouco que tinham, e ganharam aquilo que ningum desejaria. Colecionam as misrias e humilhaes de todos sistemas de explorao do passado, ignorando destes apenas a revolta4. Parecem-se muito com os escravos, pois so amontoados em massa, e no aperto, dentro de conjuntos insalubres e lgubres; mal nutridos por uma alimentao poluda; mal curados em suas doenas sempre renovadas; continuamente e mesquinhamente vigiados; mantidos no analfabetismo modernizado5 e nas supersties espetaculares que correspondem ao interesse de seus mestres. So transplantados para longe de suas terras e de seus bairros para uma paisagem nova e hostil, segundo as convenincias concentracionrias da indstria atual. No passam de cifras em grficos planejados por imbecis. Morrem em srie pelos caminhos, a cada epidemia de gripe, a cada onda de calor, a cada erro daqueles que falsificam seus alimentos, a cada inovao tcnica lucrativa para os mltiplos empreendedores das construes das quais eles preparam a argamassa. Suas terrveisb condies de existncia acarretam sua degenerescncia fsica, intelectual, mental. Dirigem-sec a eles sempre como crianas obedientes, a quem basta dizer: preciso e bem querem acreditar. Mas sobretudo so tratados como cri-

Frana de 1978 do que de outras pocas e lugares. Nos Estados Unidos, por exemplo, a qualidade cada vez mais imbecil dos filmes de Holywood parece refletir uma audincia mais jovem e iletrada. (cf nota nota segunte de Debord)) 4 [K] Debord est provavelmente reproduzindo Introduo a uma crtica da filosofia do direito de Hegel, de Marx. Ns alemes partilhamos da poca de restaurao das naes modernas sem ter partilhado de suas revolues. 5 [D] O analfabetismo modernizado no significava nada mais neste momento que a simples cultura espetacular. Alguns anos mais tarde pudemos constatar que esta cultura levava ao analfabetismo propriamente dito, sob uma forma atpica.

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faut, et ils veulent bien le croire. Mais sourtout on les traites comme des enfants stupides, devant qui baffouillent et dlirent des dizaines de spcialisations paternalistes, improviss de la veille, leur faisant admettre nimporte quoi en leur disant nimporte comment; et aussi bien le contraire le lendemain. Spars entre eux par la perte gnrale de tout langage adquat aux faits, perte qui leur interdit le moindre dialogue; spars par leur incessante concurrence, toujours presse par le fouet, dans la consommation ostentatoire du nant, et donc spars par lenvie la moins fonde et la moins capable de trouver quelque satisfaction, ils sont mme spars de leurs propres enfants, nagure encore la seule proprit de ceux qui nont rien. On leur enlve, en bas ge, le contrle de ces enfants, dj leurs rivaux, qui ncoutent plus du tout les opinions informes de leurs parents, et sourient de leur echc flagrant; mprisent non sans raisons leur origine, et se sentent bien davantage les fils du spectacle rgnant que de ceux de ses domestiques qui les ont par hasard engendrs: ils se rvent les mtis de ces ngre-l. Derrire la faade du ravissement simul, dans ces couples comme entre eux et leur prognituir, on nchange que des regards de haine. Cependant, ces travailleurs privilgis de la socite marchande accomplie ne ressemblent pas aux esclaves en ce sens quils doivent pourvoir eux-mmes leur entretien. Leur statut peu tre plutt compar au servage, parce quils sont exclusivement attachs une enterprise et sa bonne marche, quoique sans rciprocit en leur faveur; et sourtout parce quils sont troitement astreints rsider dans un espace unique: le mme circuit des domiciles, bureaux, autoroutes, vacances et

aPlano com aproximao do mesmo casal. bPlano com aproximao de alguns livros da sala. cVasta cama, permitindo, a princpio, acolher dois hipcritas ao mesmo tempo. dPlano com aproximao das crianas vistas anteriormente.

eConsumidora dentro de um supermercado com seu filho; este empurra um carrinho ainda parcialmente vazio. fUm casal de assalariados sobre um sof, com um telefone. gPlano com aproximao da criana no carrinho. hPlano com aproximao da me sorridente. iUm casal de empregados que recebe um outro; seus olhares malevolentes se evitam. jAsslariados viajando a trabalho dentro de um trem. kPanormica descendo sobre a fachada de uma neo-habitao do tipo chamado de torre [como os vrios tower dos lanamentos imobilirios] at uma pequena caixa marcada com a legenda caixa de idias, posta neste lugar para recolher elogi

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anas estpidas, diante das quais so fiadas desvairadamente dzias de tecnicidades paternalistas, improvisadas de vspera, levando-os a aceitar no importa o qu, notificando-os no importa como, para fazer talvez o contrrio no dia seguinte. Separadosa entre si pela perda geral de toda linguagem adequada ao, perda que lhes interdita o mnimo dilogo; separadosb por sua incessante concorrncia, sempre pressionados pelo chicotec, na consumao ostentatria do nada, e assim separados pela cobia o menos justificada e minimamente capaz de fornecer qualquer satisfao, so separadosd mesmo dos prprios filhos, at pouco tempo a nica propriedade daqueles que no possuem nada6. Retira-see, em tenra idade, seu controle dessas crianas, agora seus rivais, que j nem ouvem as opinies informes de seus pais, e se riem de seu fracassof flagrante. Desprezam, no sem razo, sua origem, e se sentemg em vantagem, estes filhos do espetculo reinante, sobre seus conhecidos que por acaso os engendraram: imaginam-se os mestios daqueles crioulos. Por trsh da fachada de arrebatamento simulado nestes casais ou entre eles e sua prole, no so trocados mais que olhares de dio. Enquantoi isso, os trabalhadores privilegiados da sociedade de mercado plena no parecem com os escravos no sentido em que devem eles mesmos providenciar sua manuteno. Seu estatuto talvez seja melhor comparvel servido, porque esto exclusivamente presos a uma empresa e a seu bom andamento, ainda que sem reciprocidade em seu favor. Sobretudo porque esto estreitamente sujeitos a residir em um espao nico: o mesmo circuito de domiclios, escritrios, estradas, colnias e aeroportos semprej idnticos. No entantok, parecem-se tambm aos proletrios

6[D]Aqueles que no possuem nada. Este era o sentido original em latim para a palabra proletarius.

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aroports toujours identiques. Mais ils ressemblent aussi aux proltaires modernes par linsecurit de leurs ressources, qui est en contradiction avec la routine programme de leurs dpences; et par le fait quil leur faut se louer sur un march libre sans rien possder de leur instruments de travail: par le fait quils ont besoin dargent. Il leur faut acheter des merchadises, et lon a fait en sorte quils ne puissent garder de contact avec rien qui ne soit une merchandise. Mais o pourtant leur situation conomique sapparente plus prcisement au systme particulier du ponage, cest en ceci que, cet argent autour duquel tourne leur activit, on ne leur en laisse mme plus de maniement momentan. Ils ne peuvent videmment que le dpenser, e recevant en trop petite quantit pour l accumuler. Mais ils se voient en fin de compte obligs de consommer crdit; et lon retient sur leus salaire le crdit qui leur est consenti, dont ils auront se librer en travaillant encore. Comme toute lorganisation de la distribuition des biens es lie celles de la production et de lstat, on rogne sans gne sur toutes leurs rations, de nourriture comme despace, en quantit et en qualit. Quoique restant formellement des travailleurs et des consommateurs libres, ils ne peuvent sadresser ailleurs, car cest partout que lon se moque deux. Je ne tomberai pas dans lerreur simplificatrice didentifier entirement la condition de ces salaris du premier rang des formes antrieures doppression socio-conomique. Tout dabord, parce que, si lon met de cot leur suplus de fausse conscience et leur participation double ou triple lachat des pacotilles dsolantes qui recrouvent la presque totalit du march, on voit bien quls ne

aPanormica descendo sobre uma fachada similar, at um automvel que sai de seu estacionamento subterrneo. bRecepo levada na casa de assalariados modernos, onde comem enquanto jogam Banco Imobilirio sobre a mesma mesa. cOutra recepo do mesmo tipo, com quatro convidados e duas garrafas. dArrumao de neo-alimentos produzidos pela indstria, mas decorados com um Label Rouge [espcie de selo de qualidade]. eGrande mesa com assalariados, todos alinhados diante de uma televiso, qual oferecem um interesse idntico.

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modernos pela insegurana de seus recursos, que contradiz a rotina programada de suas despesas, e pelo fato de que precisam se alugar em um mercado livre sem possurem nenhum de seus instrumentos de trabalho precisam de dinheiro. Precisama comprar as mercadorias, e de tal forma que no conseguem manter contato com nada que no seja mercadoria. Da, portanto, sua situao econmica se parece mais precisamente ao sistema particular da peonagem7, que aquele em que no se permite manter a posse mais que momentnea do dinheiro ao redor do qual gira toda sua atividade. No podemb, evidente, nada alm de dispend-lo, recebendo-o em quantidade pequena demais para acumul-lo. Vem-se no fim das contas obrigados a consumir a crdito, e retm de seu salrio o crdito que lhes consentido, que precisaro conservar trabalhando mais ainda. Comoc toda organizao da distribuio de bens est ligada quela da produo e do Estado, so cortadas sem constrangimento todas suas raes, de nutrio como de espao, em quantidade e em qualidade. Ainda que permanecendo formalmente como trabalhadores e consumidores livres, no podem circular, pois so ridicularizados por toda parte. No caireid no erro simplificador de identificar inteiramente a condio destes assalariados de primeiro rank a formas anteriores de opresso scio-econmica. Primeiramentee, porque, posto de lado o excedente de falsa conscincia e sua participao em dobro ou em triplo na compra dos pacotinhos desoladores que recobrem a quase totalidade do mercado, percebe-se bem que eles no fazem mais que compartilhar a triste vida da massa de assalariados de hoje em dia: antiga a exasperante trivialidade, dita com a inteno ingnua

7[D]Estatuto particular do peo da Amrica Latina, que a princpio um assalariado, mas que deve comprar tudo a crdito e com prexo fixo sem concorrncia nas vendas que pertencem ao proprietrio da fazenda que o emprega.

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font que partager la triste vie de la grande masse des salaris daujoudhui: cest dailleurs dans lintention nave de faire perdre de vue cette enrageante trivialit, que beaucoup assurent quils se sentent gns de vivre parmi les dlices, alors que le dnuement accables des peuples lointains. Une autre raison de ne pas les confondre avec les malheureux du pass, cest que leus statut spcifique comporte en lui-mme des traits indiscutablements modernes. Pou la premire foi dans lhistoire, voil des agents conomiques hautement spcialiss qui, en dehors de leur travail, doivent faire tout eux mmes: ils conduisent eux-mmes leurs voitures et commencent pomper eux-mmes leur essence, ils font eux-mmes leurs achats ou ce quils appellent de la cuisine, ils se servent eux-mmes dans les supermarchs commme dans ce qui a remplac les wagons-restaurants. Sans doutes leur qualification trs indirectement productive a-t-elle t vite acquise,mais ensuite, quand ils ont fournit leur quotient horaire de ce travail specialis, il leur faut faire de leurs mains toute le reste. Notre poque nen est pas encore venue dpasser la famille, largent, la division du travail; et pourtant on peut dire que pour ceux-l dj la ralit effective sen est presque entirement dissoute, dans la simple dpossession. Ceux qui navaient jamais eu de proie lont lache pour lombre. Le caractre illusoire des richesses que prtend distribuer la socit actuelle, sil navait pas t recconnu en toutes les autres matires, serait suffisament dmontr par cette seule observation que cest la premire fois quun systme de tyrannie entretient aussi mal ses familiers, ses experts, ses bouffons. Serviteurs surmens du vide, le vide les gratifie en monnaie son effigie. Autrement

aSrie de assalariados se servem e consomem diversos neo-alimentos. bAssalariada vestida na moda, em um ambiente correspondente. cCasal de assalariados, com duas crianas, em um banheiro. dCasal de assalariados decadente diante de seu automvel.

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de esconder sua situao, de que certamente eles se sentem constrangidos por viver entre delcias enquanto a misria acaba com povos distantes8. Outraa razo para no confundi-los com os desafortunados do passado que seu estatuto especfico comporta em si traos indiscutivelmente modernos. Pela primeira vez na histria vemos agentes econmicos altamente especializados que, alm de seu trabalho, devem fazer tudo eles prprios: conduzem eles mesmos seus automveis e comeam a abastecer eles mesmos sua essncia, fazem suas prprias compras ou aquilo que chamam de culinria, servem-se eles mesmos nos supermercados assim como naquilo que substituiu os vages restaurantes. Sem dvida sua qualificao muito indiretamente produtiva foi rapidamente adquirida, mas a seguirb, assim que fornecem seu quociente horrio desse trabalho especializado necessrio utilizarem as prprias mos para todo o resto. Nossa poca no mais superar a famlia, o dinheiro, a diviso do trabalho, e portanto podemos dizer que para eles a realidade efetiva est quase inteiramente dissolvida na simples despossesso. Aqueles que nunca chegaram a possuir despojos, perderam-nos para a sombra9. O carterc ilusrio das riquezas que pretende distribuir a sociedade atual, se no for reconhecido nas outras matrias, ser suficientemente demonstrado por esta nica observao: a primeira vez que um sistema de tirania mantm da mesma maneira pssima seus familiares, seus experts e seus bufes. Servidores consumidos pelo vazio, o vazio os gratifica em moeda com sua efgie. Dito de outra forma, a primeira vez que os pobres acreditam fazer parte de uma elite econmica, apesar da evidncia em contrrio. No apenasd trabalham, estes infelizes espectadores, mas ningum trabalha por

8[D] precisamente a esta necessidade social que responde uma bem vasta parte da informao corrente e as atividades sociais das associaes ditas caritativas [as mes das ONGs].

9[D]Evocao retornada da velha expresso proverbial perder os despojos para a sombra.

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dit, cest la premire fois que des pauvres croient faire partie dune lite conomique, malgr lvidence contraire. Non seulement ils travillent, ces malheureux spectateurs, mais personne ne travaille pour eux, et moins que personne les gens quils payent: car leurs fournisseurs mmes se considrent plutt comme leurs contrematres, jugeant sils sont venus assez vaillament au ramasage des ersatz quils ont le devoir dacheter. Rien ne saurait cacher lusure vloce qui est intgre ds la source, non seulement pour chaque objet matriel, mais jusque sur le plan juridique, dans leurs rares proprits. De mme quils nont pas reu dhritages, ils nen laisseront pas. Le public du cinma ayant donc, avant tout, penser des vrits si rudes, et qui le touchent de si prs, et qui lui sont si gnralement caches; on ne peut nier quun film qui, pour une fois, lui rend cet pre service de lui rvler que son mal nest pas si mystrieux quil le croit, et quil nest peut-tre mme pas incurable pour peu que nous parvenions un jour labolition des classes et de ltat; on ne peut nier, dis-je, quun tel film nait, en ceci au moins, un mrite. Il nen aura pas dautre. En effet, ce public qui veut partout se montrer conaisseur et qui en tout justifie ce quil a sufi, qui accepte de voir changer toujours en plus rpugnant le pain quil mange et lair quil respire, aussi bien que ses viandes ou ses maisons, ne rencle au changement que losquil sagit du cinma dont il a lhabitude; et apparemment cest la seule de ses habitudes qui ait t respecte. il ny a peut-tre eu que moi pour loffenser depuis longtemps sur ce point. Car tout le reste, mme modernis parfois jusqu sinsprirer les dbats mis au got du jour par la presse, postule

aasssalariada se esforando para atravessar uma avenida engarrafada. bDois automveis destrudos em uma auto-estrada. cDestruio de um automvel e de seu complemento humano, medido experimentalmente pelo setor de pesquisa dos fabricantes. dRepetio da foto publicitria j

longamente estudada da famlia de asslariados modernos em sua sala de estar, com travelling lento em direo ao centro. eTrailer insignificante, comeando

pelo cartaz brevemente nesta sala, seguido do cartaz-ttulo: A mais belo dia da minha vida e Reencontrar o entusiasmo da sua juventude... fCartaz ttulo: A flecha negra de Robin Hood. Cavaleiros, flechadas, golpes de espada, conversas em castelos e em florestas. gUm cavaleiro cai, acertado por uma flecha. Voz em off Reencontrareis o homem que entrou para a lenda por seus atos temerrios em favor dos oprimidos... A flecha negra de Robin Hood a histria de um homem sem medo, que no hesitou em lutar sozinho contra um tirano. Um senhor encolerizado grita: Saiam! Vo embora! Robin Hood se findou, morreu! Um exrcito avana cantando em direo a baluartes hostis. Sobre uma msica adequada, voz em off: No! Robin Hood est mais vivo que nunca, e vos entusiasmar com sua audcia incomparvel.

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eles, menosa ainda as pessoas que deles recebem: pois seus fornecedores mesmos se consideram contra-mestres, julgando se eles chegaram com vigor o bastante no monturo de ersatz que tm a obigao de comprar. Nadab conseguiria esconder a usura feroz que integrada desde a fonte, no apenas para cada objeto material, mas at no plano jurdicoc, a suas raras posses. Da mesma forma que no receberam herana, no a deixaro. O pblicod do cinema deve ento, antes de qualquer coisa, pensar sobre essas verdades to rudes, e que lhe tocam to de perto, e que lhe so to freqentemente ocultadas. No se pode negar que um filme que, uma nica vez, lhe prestasse o amargo servio de revelar que seu mal no to misterioso quanto cr, e que talvez mesmo no seja incurvel pelo pouco que ns possamos um dia chegar abolio das classes e do Estado; no se pode negar, digo, que um tal filme no possua, nisso ao menos, um mrito. No ter outro. Com efeitoe, esse pblico que quer se mostrar conhecedor de tudo e que em tudo desculpa o que lhe impingiram, que aceita ver o po que come e o ar que respiraf, como sua carne e sua casa, tornados mais e mais repugnantes, no resmunga da transformaog a no ser quando ocorre ao cinema a que se habituou. E, aparentemente, o nico de seus hbitos que foi respeitado10. Haver apenas eu mesmo, dese muito tempo, para ofend-lo nessa matria. Pois todo o resto, ainda que modernizado s vezes por inspirao de alguns debates postos no gosto do dia pela imprensa, postula a inocncia de um tal pblico, e, segundo o costume fundamental do cinema, mostra-lhe o que acontece distncia: diferentes tipos de celebridades que vivem no seu lugar e que tem contemplado pelo buraco da fechadura11 de uma familiaridade canalha.

10[D] Isto cessou de ser verdade. Viuse suprimido pelo progresso econmico, alm de muitas outras coisas, o cinema a que o espectador havia se habtuado. As necessidades novas, das quais este espectador moderno depende integralmente, chegaram a emitir uma mais exata representao de sua racionalidade: agora gostamos de vdeo-clipes. 11[D] Expresso de Hegel; em alemo Flaschenarsch.

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linnocence dun tel public, et lui montre, selon le coutume fondamentale du cinma, ce qui se passe au loin: diffrentes sortes de vedettes qui ont vcu sa place, et quil contemplera par le trou de la serrure dune familiarit canaille. Le cinma qui je parle ici est cette imitation insense dune vie insense, une rpresentation ingnieuse ne rien dire, habile tomper une heure lennui par le reflet du mme ennui; cette lche imitation qui est la dupe du prsent et le faux tmoin de lavenir; qui, par beaucoup de fictions et des grands spectacles, ne fait que se consumer inutilement en amassant des images que le temps emporte. Quel respect denfants pour des images! Il va bien cette plbe des vanits, toujours enthousiaste et toujours due, sans got parce quelle na eu de rien une exprience heureuse, et qui ne reconnat rien des ses expriences malheureuses parce quelle est sans got et sans courage: au point quaucune sorte dimposture, gnrale ou particulire, na jamais pu lasser sa crdulit intresse. Et croirait-on, aprs tout ce que chacun a pu voir, quil existe encore, parmi les spctateurs specialiss qui font la leon aux autres, des tares capables de soutenir quune vrit nonce au cinma, si elle nest pas prouve par des images, aurait quelque chose de dogamtique? Dailleurs la domesticit intellectuelle de cette saison apelle envieusement discours du matre ce qui decrit sa servitude; quant aux dogmes ridicules de ces patrons, elle sidentifie si pleinement quelle ne les connat pas. Que faudrait-il prouver des images? Rien nest jamais prouv que par le mouvement rel qui dissout les conditions existantes, cest-dire lorganisation des rapports de production dune poque, et de les formes de fausse con-

aO trailer completo de alguns westerns. bPanormica sobre os ministros de um governo da Quinta Repblica.

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O cinemaa de que falo aqui esta imitao insensata de uma vida insensata, uma representao engenhosa, para conceder-lhe algo, hbil em enganar por uma hora o tdio atravs do reflexo do mesmo tdio; essa frouxa imitao que a enrolao do presente e o falso testemunho do futuro. Que, por vrias fices e grandes espetculos, no faz mais que se consumir inutilmente acumulando imagens que o tempo carrega12. Que respeito infantil pelas imagens! Cai bem a esta plebe a vaidade, sempre entusiasmada e sempre seduzida, sem sabor porque nunca teve uma experincia feliz, e que no reconhece nenhuma de suas experincias infelizes porque no possui gosto nem coragem, ao ponto que tipo algum de impostura, geral ou particular, pde exaurir sua credulidade interesseira. E se acreditar, aps tudo isso que qualquer um pode ver, que ainda existem entre os espectadores especializados que regulam os outros trabalhos capazes de sustentar que uma verdade enunciada no cinema, se no provada por imagens, teria qualquer coisa de dogmtica? Alis o conformismo intelectual desse tipo13 chama invejosamente de palavra do mestre aquilo que descreve sua servido. Quanto aos dogmas ridculos de seus patronos, ela se identifica to plenamente que no os reconhece. O que ainda necessrio provar atravs de imagens? Nada nunca provado a no ser pelo movimento real que dissolve as condies existentes14, ou seja, a organizao dos rendimentos de produo de uma poca e as formas de falsa conscincia que cresceram sobre essa base. Nuncab vimos um erro se desfazer por falta de uma boa imagem. Aquele que cr que os capitalistas esto bem preparados para gerir de maneira cada vez mais racional a expanso de sua felicidade e os prazeres variados de seu poder de compra re-

12[D] Parfrase de Bossuet, Oraison funbre de Henriette-Anne dAngleterre(A Sabedoria de que fala neste lugar e aquela sabedoria insensata, engenhosa em se atormentar, hbil a se enganar a si-mesma, que se corrompe no presente, que se gasta no devir, que por muitas razes e e grandes esforos, no faz mais que se consumir inutilmente em reunir coisas que o vento carrega.) 13[D] A mdia a chamou por um momento de A Nova Filosofia. 14[D] o movimento real... :Marx: Ns chamamos comunismo... [K] cf. A ideologia alem de Marx e Engels (I.ii.5) Para ns o comunismo no um estado a ser estabelecido, um ideal para o qual a realidade ter de se ajustar. O que chamamos de comunismo o movimento real que est dissolvendo as condies existentes.

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science qui ont grandi sur cette base. On na jamais vu derreur scrouler faute dune bonne image. Celui qui croit que des capitalistes sont bien arms pour grer toujours plus rationellement lexpansion de son bonheur et les plaisirs varis de son pouvoir dachat reconnatra ici des ttes capables dhommes dtat; et celui qui croit que les bureaucrates staliniens constituent le parti du proltariat verra l des belles ttes douvriers. Les images existantes ne prouvent que les mensonges existants. Les anedoctes reprsentes sont les pierres dont tait bti tout ldifice du cinma. On ny retrouve rien dautre que les vieux personnages du thtre, mais sur une scne plus spacieuse et plus mobile, ou du roman, mais dans des vtements et envoronnements plus directement sensibles. Cest une socit, et non une technique, qui ait fait le cinma ainsi. Il aurait pu tre examen historique, thorie, essai, mmoires. Il aurait pu tre le film que je fais en ce moment. Voici par example un film o je ne dis que des vrits sur des images qui, toutes, sont insignifiantes ou fausses; un film qui mprise cette poussire dimages qui le compose. Je ne veux rien conserver du langage de cet art prim, sinon peut-tre le contre-champ du seul monde quil a regard, et un travelling sur les ides passagres dun temps. Oui, je me flatte de faire un film avec nimporte quoi; et je trouve plaisant que sen plaignent ceux qui ont laiss faire de toute leur vie nimporte quoi. Jai mrit la haine universelle de la socit de mon temps, et jaurais t fch davoir dautres mrites aux yeux dune telle socit. Mais jai observ que cest encore dans le cinma que jai

aOs dirigentes stalinistas franceses. bMao Ts Tung prximo do fim de seu reinado. cUm beijo algo longo, trocado em grande plano. dZorro briga em uma via frrea. Seu

p est preso entre os trilhos. O trem se aproxima. O traidor vai embora. Zorro sinaliza inutilmente; v-se seu chicote mo; ele o lana; manobra a alavanca com um golpe hbil. Liberta-se, o trem passa. eLongo travelling acompanhando o desembarque de tropas sobre uma praia, 6 de junho de 1944[O dia D, dia do desembarque na Normandia].

fTravelling sobre a gua; se alongando sobre a ilha de Giudecca, em direo a Veneza.

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conhecer aqui as cabeas capazes dos homens de Estado. E aquelea que cr que os burocratas stalinistas constituem o partido do proletariado enxergar acol as belas cabeas operrias. As imagensb existentes no provam mais que as mentiras existentes. As historietasc reresentadas so a pedra fundamental sobre a qual foi construdo todo o edifcio do cinema. No se encontrar mais nada que os velhos personagens do teatro, apenas sobre uma cena mais arejada e mvel, ou do romance, mas em vestes e ambientes mais diretamente palpveis. uma sociedade, e no uma tcnica, que tornou o cinema assim. Ele poderia ter sido15 escrutnio histrico, teoria, ensaio, memrias. Ele poderia ter sido o filme que fao neste momentod. Ei-lo a, em que no dito nada alm de verdades sobre imagens que so, todas, insignificantes ou falsas. Filme que despreza esta poeira de imagens que o compem16. No quero conservar nada desta arte finada, seno talvez o contra-campoe17 do mesmo mundo que ela observou, e um traveling sobre as idias passageiras de um tempo. Sim, eu me congratulo de fazer um filme com qualquer coisa, e me agrada que reclamem aqueles que permitiram fazer de toda sua vida uma coisa qualquer. Merecif o dio universal da sociedade de meu tempo, e estaria descontente em ter outros mritos aos olhos de uma tal sociedade. Mas pude observar que ainda no cinema que levantei a indignao mais perfeita e unnime. Tal o desgosto que fui copiado18 muito menos neste campo que em outros, at aqui, em todo caso19. A minha prpria existncia permanece uma hiptese geralmente refutada. Encontro-me, assim, posto acima de todas as leis do gnero. Ento, como dizia Swift, no para

15[D] evocao de Lautramont, POSIES: La phrase... 16[D] Saint-Juste (o ltimo ou um dos ltimos discursos diante da Conveno): Desprezo este p que me compe e que vos fala. 17[D] Termo tcnico do cinema, que significa o ponto de vista inverso daquele que a cmera tinha anteriormente. 18[D] [no original piller, pilhado]: no sentido literrio: tomar as idias ou as frases de um autor. 19[D] Algumas pessoas tentaram comear a faz-lo em 1982. Tarde demais, no entanto, para fazer uma carreira nesta arte, logo antes de sua liquidao.

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soulev lindignation la plus parfaite et la plus unanime. On a mme pouss le degot jusqua my piller beuacoup moins souvent quailleurs, jusquici en tout cas. Mon existence mme y reste une hypothse gnralemnt refute. Je me vois donc plac au-dessus de toutes les lois du genre. Aussi, comme le disait Swift ce nest pas une mince satisfaction pour moi que de prsenter un ouvrage absolument au-dessus de toute critique. Pour justifier aussi peu que ce soit lignomie complte de ce que cette poque aura crit ou film, il faudrait un jour pouvoir prtendre quil ny a eu littralement rien dautre, et par l mme que rien dautre, on ne sai trop pouquois, ntait possible. Eh bien! Cette excuse embarsse, moi seul, je suffirai lanantir par lexemple. Et comme je naurais eu besoin dy consacrer que fort peu de temps et de peine, rien ne ma paru devoir me faire renoncer une telle satisfaction. Il nest pas si naturel quon voudrait bien le croire ajourdhui dattendre de nimporte qui, parmi ceux dont le mtier est davoir la parole dans les conditions prsentes, quil apporte ici ou l des naouveauts rvolutionnaires. Une telle capacit nappartient videment qu celui qui a recontr partout lhostilit et la persecution; et non point les crdit de ltat. Et mme, plus profondement, quelle que soit la complicit gnerale pour faire le silence l-dessus, on peut affirmer avec certitude quaucune relle contestation ne saurait tre porte par des individus qui, en lexhibant, sont devenus quelque peu lus levs socialement quils ne lauraient t en sen abstenant. Tout cela ne fait quimiter lexemple bien connu de ce florissant personnel syndical et politique, toujours prt prolonger dun millnaire la plainte du proltaire, seule fin de lui conserver un dfenseur.

aUma dama de Veneza.. bZorro, revlveres em punho, toma satisfaes de seu inimigo. Depois galopa, perseguido pelos cmplices, e os fulmina sem mais como um Parto, sem mesmo se dar ao trabalho de se virar. cTravelling sobre a gua, ao longo de um muro da ilha de San Giorgio.

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mim desprezvel satisafao apresentar uma obra absolutamente superior a toda crtica20. E, para justificar ainda que um pouco a ignonmia completa daquilo que esta poca escreveu ou filmou, ser preciso to s poder fingir que no houve literalmente nenhuma, e nenhuma outra forma possvel, no se sabe bem por qu. Est certo! Esta desculpa embarassada posso eu mesmo refutar com meu exemplo. E como no teria necessidade de consagrar a isso bem pouquinho tempo e esforo, nada apareceu para me fazer renuncaiar a uma tal satisfaoa. Nob to natural assim estarmos dispostos a escutar um destes cujo mister possuir a palavra nas condies atuais, os que apresentam aqui ou ali novidades revolucionrias. Uma tal capacidade no compete, evidentemente, a no ser quele que encontrou por todo lado hostilidade e perseguio, e no queles que obtiveram crditos do Estado. E mesmoc, ainda mais essencial, os que foram geralmente cmplices do silncio. Pode-se afirmar com certeza que nenhuma contestao real estar presente em indivduos que, em exibi-la, tornamse ligeiramente mais elevados socialmente que aqueles que se abstiveram21. Tudo isso no mais que a imitao do exemplo bem conhecido do florescente aparelho poltico e sindical, sempre pronto a multiplicar por mil o sofrimento do proletrio com o nico fim de conservar-se seu defensor. De minha parte, se pude ser to deplorvel no ci-nema porque fui bem mais criminoso fora dele. De sada achei boa coisa frequentar o reverso da sociedade, e agi de acordo. Tomei esta deciso em um momento que quase todos acreditavam que a infmia existente, seja em sua verso burguesa ou burocrtica, tinha o mais belo devir. E desde ento, ao contrrio de outros, no mudei de discurso uma

20[D] Abertura do Irrefutvel ensaio sobre as faculdades da alma 21[D] Esta lei histrica no sofre excesso alguma. Nela reside a dificuldade central das revolues anti-capitalistas, como mostra desde 1912 Robert Meichels em sua obra Inroduo de uma sociologia do partidona democracia moderna (pesquisa sobre as tendncias oligrquicas da vida em grupo).

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Pour ma part, si jai pu tre si dplorable dans le cinma, cest parce que jai t grandement plus criminel ailleurs. De prime abord, jai trouv bon de madonner au reversement de la socit, et jai agi en consquence. Jai pris de ce parti dans un moment o presque tous croyaient que linfamie existante, dans sa version bourgeoise ou dans sa version bureaucratique, avait le plus bel avenir. Et depuis lors, je nai pas, comme les autres, chang davis une ou plusieurs fois, avec le changement des temps; ce sont plutt les temps qui ont chang selon mes avis. Il y a l de quoi dplaire aux contemporains. Aussi donc, au lieu dajouter un film des milliers des films qulconques, je prfre exposer ici pourquoi je ne ferai rien de tel. Ceci revient remplacer les aventures futiles queconte le cinma par lexamen dun sujet important: moi-mme. On mavait parfois reproch, mais tort je crois, de faire des films difficiles: je vais pour finir en faire un. qui se fche de ne pas comprendre toutes les allusions, ou qui mme savoue incapable de distinguer nettement mes intentions, je rpondrai seulement quil doit se dsoler de son inculture et de sa strilit, et no de mes faons; il a perdu son temps lUniversit, o se revendent la sauvette des petits stocks de connaissances abismes. considerer lhistoire de ma vie, je vois bien clairement que je ne peux pas faire ce que lon appelle une oeuvre cinmatographique. Et je crois pouvoir en convaincre aisment nimporte qui, tant par le fond que par la forme de ce discours. Il me faut dabord repousser la plus fausse des lgendes, selon laquelle je serais une sorte de thoricien des rvolutions. Ils ont lair de croire, prsent, les petits hommes, que jai pris les choses

aUm galgo afego manifesta uma repugnncia extrema ao entrar dentro de um automvel. bZorro a cavalo ladeando um trem em movimento, depois salta para o ltimo vago. Escala um muro, se apodera de uma metralhadora. Depois, socorre um homem m oribundo, que pede: Posso saber quem s? Zooro tira sua mscara para se revelar. cPlano generoso e prximo do terreno de um Kriegspiel, onde dois exrcitos esto prontos. dO coronel Custer conduz a ltima

carga do stimo regimento de cavalaria para Litle Big Horn.

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ou muitas vezes com o tempo. Antes o tempo que mudou ao meu redor. do que reclamam os contemporneosa. Entob, em vez de adicionar um filme aos milhares de filmes por a, prefiro expor aqui porque no agirei de tal maneira. Para tal, substituirei as aventuras fteis que narra o cinema pelo exame de um sujeito importante: eu mesmo. Acusaram-mec22, erradamente, creio, de realizar filmes difceis: finalmente, termino por faz-lo. A quem se irrita de no entender todas as aluses, ou mesmo se v incapaz de distinguir claramente as minhas intenes, direi apenas que s lamento: sua incultura, sua esterilidade, mas no minha forma de agir. Este perdeu seu tempo na universidade, onde se vendeu para guardar pequenos estoques de conhecimentos arruinados. Considerando a histria de minha vida, vejo com bastante clareza que no posso fazer o que costuma ser chamado de obra cinematogrfica. E creio poder convencer facilmente qualquer um disso, tanto pelo fundo quanto pela forma deste discurso. Necessito agora repelir a mais falsa das lendas, segundo a qual eu seria uma espcie de terico das revolues. Estes homenzinhos parecem crer, resentemente que tomei as coisas pela teoria, que sou um construtor de teoria, douta arquitetura que basta ser habitada no instante em que sabemos seu lugar, e da qual poderamos mesmo modificar uma ou duas bases dez anos depois substituindo trs folhas de papel a fim de atender perfeio definitiva da teoria que operar sua salvao. Masd as teorias servem apenas para morrer na guerra do tempo: so unidades mais ou menos fortes que deve-se tomar no justo momento do combate e, quaisquer que sejam seus mritos e in-

22[K] Kriegspiel (jogo de guerra): um jogo de tabuleiro inventado por Debord, baseado na estratgia militar da era de Clausewitz e Napoleo. Cf. o livro sobre este jogo por Debord e Alice Becker-Ho (Le jeu de la guerre). [o jogo pode ser encontrado na web em verso eletrnica no site do coletivo de programadores RSG: http://r-s-g.org].

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par la thorie, que je suis un construteur de thorie, savante architecture quil naurait plus qualler habiter du moment quon en connit ladresse, et dont on pourrait mme modifier un peu une ou deux bases, dix ans plus tard et en dplaant trois feuilles de papier, pous atteindre la perfection dfinitive de la thorie qui oprerait leur salut. Mais les thories ne sont faites que pour mourir dans la guerre du temps: ce sont des units plus ou moins fortes quil faut engager au juste moment dans le combar et, quels que soient leurs mrites ou leurs insuffisances, on ne peut assurment employer que celles qui sont l en temps utile. De mme que les thories doivent tre remplaces, parce que leur victoires dcisives, plus encore que leurs dfaites partielles, produisent leur usure, de mme aucune poque vivante nest partie dune thorie: ctait dabord un jeu, un conflit, un voyage. On peut dire de la rvolution aussi ce que Jomini a dit de la guerre; quelle nest point une science positive et dogmatique, mais un art a quelques principes gnraux, et plus que cela encore, un drame passion. Quelles sont nos passions, et o nous ont-elles mens? Les hommes, les plus souvent, sont si ports a obir dimperieuses routines que, lors mme quils se proposent de rvolutioner la vie de fond en comble, de faire table rase et de tout changer, ils ne trouvent pas pour autant anormal de suivre la filire des tudes qui leur sont accesibles, et puis ansuite doccuper qulques fonctions, ou de sadonner divers travaux rmunrs qui sont au niveau de leur comptence, ou mme un peut au-del. Voil pourquoi ceux qui nous exposent diverses penses sur les rvolutions sabstiennent ordinairement de nous faire savoir comment ils ont vcu.

aO regimento, que os cavaleiros indgenas envolvem de todas as partes, pra e desmonta. bTravelling sobre a gua, no canal della Giudecca, em direo a esta ilha. cUm mapa da Europa.

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suficincias, no se pode por certo empregar outra que no aquela que esteja ali em tempo til. De modo que as teorias devem ser substitudas, pois suas vitria decisivas, mais que suas derrotas parciais, produzem sua usura, de modo que nenhuma poca viva se incia com uma teoria: antes por um jogo, um conflito, uma viagem. Podemos dizer da revoluo o mesmo que Jomini23 da guerra, que ela no de forma alguma uma cincia positiva e dogmtica, mas uma arte submetida a alguns princpios gerais, e mais ainda, um drama apaixonado. Quais so nossas paixes, e aonde nos conduziram? O mais das vezes os homens24 esto to prontos a obedecer a rotinas imperiosas que, antes mesmo de se proporem a revolucionar a vida de cabo a rabo, de fazer tabula rasa e de tudo mudar, no acham estranhoa que para isso acompanhem os rosrios de estudos a que tm acesso, e logo em seguida ocupem qualquer funo; ou de se enderearem aos diversos trabalhos remunerados que esto no nvel de sua competncia25, ou mesmo um pouco acima. Eis porqueb aqueles que nos expem diversos pensamentos sobre as revolues ordinariamente se abstm de nos ensinar como viveram. No entanto, eu, de minha parte, no me aparentando a todos esses, poderia narrar apenas as damas, cavalheiros, as armas, amores, as conversas e audaciosas empresas26 de uma poca singular. Outros so capazes de orientar e medir o curso de seu passado segundo sua elevao dentro de uma carreira, a aquisio dos diversos tipos de bens, ou, s vezes, pela acumulao de obras cientficas ou estticas que respondem a uma demanda social. Tendo ignorado toda determinao desta sorte, no vejo na passagem deste tempo desordenado mais que os elementos que efetivamente o consti-

23[D] Frase originada provavel-

mente da Precisa arte da guerra, mas sem dvida intil procur-la, pois creio que Jomini seja muito pouco traduzido; salvo, talvez, em alemo e em ingls. [K] Jomini: Antoine-Henri Jomini, um dos generais de Napoleo. 24[D] Termo, e tom geral da frase, evocando Maquiavel. 25[D] Referncia ao humorstico Princpio de Peter [Laurence J. Peter, estudioso de organizao hierrquica, hierarcologista] sobre o nvel de incompetncia. [K] :Empregados tendem a a ascender a seu nvel de incompetncia (porque se so competentes em um trabalho especfico provavelmente sero promovidos at alcanarem uma posio em que no sero mais competentes, e assim no mais promovidos). 26[D] Evocao dos dois primeiros versos da epopia de Ariosto, Orlando Furioso.

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Mais moi, nayant pas ressembl tous ceux-l, je pourrai seulement dire, mon tour, les dames, les cavaliers, les armes, les amours, les conversations et les audacieuses enterprises dune poque singulire. Dautres sont capables dorienter et de mesurer le cours de leur pass selon leur lvation dans une carrire, lacquisition de diverses sortes des biens, ou parfois laccumulation douvrages scientifiques ou esthtiques qui rpondaient une demande sociale. Ayant ignor toute dtermination de cette sorte, je ne revois, dans la passage de ce temp dsordonn, que les lments qui lont effectivement constitu pour moi - ou bien les mots et les figures qui leur ressemblent: ce sont des jours et des nuits, des villes et des vivants, et au fond de tous cela, une incessante guerre. Jai pass mon temps dans quelques pays de lEurope, et cest au milieu du sicle, quand javais dix-neuf ans, que jai commenc mener une vie pleinement indpendante; et tout de suite je me suis trouv comme chez moi dans la plus mal famme des compagnies. Ctait Paris, une ville qui tait alors si belle que bien des gens ont prfr y tre pauvres, plutt que riches nimporte o ailleurs. Qui pourrait, prsent quil nen reste rien, comprendre cela; hormis ceux qui se souviennent de cette gloire? Qui dautre pourrait savoir les fatigues et les palisirs que nous avons connus dans ces lieux o tout est devenu si mauvais? Ici fut le demeure antique du roi de Ou. Lherbe fleurit en paix sur ses ruines. - L, ce profond palais des Tsin, sompteux jadis et redout. - Tout cela est jamais finis, tout scoule la fois, les vnements et les hommes, - comme ces flots incessants du

aUm mapa da Europa. bDebord com dezenove anos. cUm plano geral de Paris de fins do sculo XIX. dSrie de diversas fotografias areas de Paris, em planos fixos ou percorridos em travelling. e Couperin: 4o concerto real. fAlguns planos da multido sobre o Boulevard du Crime, rexonstitudo por Les enfants du paradis.

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turam para mim, ou ainda as palavras e semblantes que se lhe assemelham: os dias e noites, as cidades e os viventes, e, ao fundo de tudo, uma incessante guerraa. Passei meu tempo dentro de alguns pases da Europa, e no meiob do sculo27, quando tinha dezenove anos, que comecei a levar uma vida plenamente independente. Logo em seguida me encontrei como se em minha prpria casa com a mais mal afamada das companhias. Foi em Parisc, uma cidade que naquele momento era to bela que muitas pessoas preferiam ser pobres ali que ricas em qualquer outro lugard. Quem poderia, agora que no sobrou nada, comprend-lo, exceto aqueles que se lembram daquela glria? Quem mais poderia entender as fadigas e os prazeres que conhecemos nestes lugares onde tudo se tornou to mal28? Aqui foi a morada antiga do rei de Ou. A relva floresce em paz sobre suas runas. - L, este profundo palcio de Tsin, suntuoso outrora, e temido. - Tudo isso findado para nunca mais, tudo escoa em seu tempo, os acontecimentos e os homens, como o fluxo incessantes do Yangts que desaparece no mar29. e Paris ento30, dentro dos limites de seus vinte distritos, nunca chegava a dormir completamente, e permitia festa mudarf trs vezes de bairro a cada noite. Ainda no se havia perseguido e dispersado seus habitantes31. Havia ainda um povo, que por dez vezes fizera barricadas e pusera em fuga reis. Era um povo que no se deixava comprar por imagens. No se ousaria, quando ele ainda estava nesta cidade, faz-lo comer e beber disto que a qumica de substituio ainda no havia ousado inventar.

27[D] 1951. 28[D] Dante, dito por um personagem de que esqueci o nome, evocando, creio, Bolonha. 29[D] Poema de Li-Po, traduzido por Harvey-Saint-Denis. 30[D] Dante, Paraso, discurso de Cacciaguida. 31 [K] Cf. O prncipe, de Maquiavel (V): Quem se torna o soberano de uma cidade acostumada liberdade e no a destri pode esperar ser destrudo por ela, pois essa sempre encontrar um pretexto para rebelio em nome de sua liberdade anterior e antigos costumes, que jamais so esquecidos apesar da passsagem do tempo ou qualquer benefcio recebido. No importa o que o soberano faa ou que precaues tome, os moradores ninca esquecero aquela liberdade de costumes -- ano ser que sejam perseguidos e dispersados... Debord usou esta passagem como epgrafe para o Captulo 7 de Sociedade do espetculo.

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Yang-tseu-kiang, qui vent se predre dans la mer. Paris alors, dans les limites de ses vingt arrondisements, ne dormait jamais tout entier, et permettait la dbauche de changer trois fois de quartier dans chaque nuit. On nen avait pas encore chass et dispers les habitants. Il y restait un peuple, qui avait dix fois barricad ses rues et mis en fuite des rois. Ctait un peuple qui ne se payait pas dimages. On naurait pas os, quand il vivait dans sa ville, lui faire manger ou lui faire boire ce que la chimie de substitution navait pas encore os dinventer. Les maisons n taient pas dsertes dans le centre, ou revendues des spectateurs de cinma qui sont ns ailleurs, sous dautres poutres apparentes. La merchandise moderne n tait pas encore venue nous montrer tout ce que lon peu faire dune rue. Personne, cause des urbanistes, n tait oblig daller dormir au loin. On navait pas encore vu, par la faute du gouvernement, le ciel sobscureir et le beau temps disparitre, er le fausse brume de la pollution couvrir en permanence la circulation mcanique des choses, dans cette valle de la dsolation. Les arbres ntaient pas morts touffs; et les toiles n taient pas teintes par le progrs de lalination. Les menteurs taient, comme toujours, au pouvoir; mais le dvelopement conomique ne leur avait pas encore donn les moyens de mentir sur tous les sujets, ni de confirmer leurs mensonges en falsifiant le contennu effectif de toute production. On aurait t aussi tonns alors de trouver imprims ou construits dans Paris tous ces livres redigs depuis en bton et en amiante, et tous ces btiments maonns en plats sophismes, quon le serait aujourdhui si lon voyait resurgir un Donatello

aConjunto de fotografias areas de Paris. bA manh no distrito de Les Halles. cTravelling mostrando o Sena, sobre uma viso geral de Paris.

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As casas ainda no haviam sido abandonadas no centro, ou vendidas aos espectadores de cinema nascidos em outra parte, sob outras vigas aparentes. A mercadoria moderna ainda no havia nos mostrado tudo aquilo que pode ser feito com uma rua. Ningum, por causa dos urbanistas, era obrigado a dormir longe. No se havia ainda visto, por responsabilidade do governo, o cu se obscurecer e o bom tempo desparecer, e a falsa bruma da poluio cobrir permanentemente a circulao mecnica das coisas neste vale desoladoa32. As rvores ainda no haviam morrido asfixiadas, e as estrelas no estavam extintas pelo progresso da alienao. Os mentirosos estavam, como sempre, no poder. Mas o desenvolvimento econmico no lhes havia dado ainda os meios de mentir sobre todos os assuntos, nem de confirmar suas mentiras falsificando o contedo efetivo de toda produo. Ficaramos ento espantados33 de encontrar impressos nas construes de Paris todos esses livros redigidos34 depois em concreto e amianto, e toda essa alvenaria formada com rasos sofismas, e imaginob o que seria hoje em dia se vssemos surgir um Donatello ou um Tucdides. Musil , em O homem sem qualidades35, nota que no est nas atividades intelectuais que do em grandes livros, masc nos pequenos tratados, a altivez de um homem. Se algum viesse a descobrir, por exemplo, que as pedras, em certas circunstncias at aqui no observadas, pudessem falar, no lhe seria preciso mais que algumas pginas para descrever e explicar um fenmeno to revolucionrio. Eu me limitarei ento a poucas palavras para anunciar que, apesar do que outros digam, Paris no existe mais. A destruio de Paris no passa de uma

32[D] Termo bblico. 33[D] Dante, Paraso, discurso de Cacciaguida. 34[D] Inverso voluntria do emprego ordinrio do material. 35[D] L mas onde, diabo onde ele evoca a inutilidade dos livros dos moralistas.

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natello ou un Thucydide. Musil, dans LHomme sans qualits, note qu il est des activits intellectueles o se ne sont pas les gros livres, mais les petits traits, qui font la fiert dun homme. Si quelquun venait dcrouvir, par example, que les pierres, dans certaines circonstances restes jusqualors inobserves, peuvent parler, il ne lui faudrait que peu de pages pour dcrire et expliquer un phnomne aussi rvolutionnaire. Je me bromerai donc peu de mots pour annoncer que, quoi que dautres veuillent en dire, Paris nexiste plus. La destruction de Paris nest quune illustration exemplaire de la mortelle maladie qui emporte en ce moment toutes les grandes villes, et cette maladie nest elle mme qun des nombreux symptmes de la dcadence matrielle dune socit. Mais Paris avait plus a perdre quaucune autre. Cest une grande chance que davoir t jeune dans cette ville quand, pour la dernire fois, elle a brill dun feu si intense. Il y avait alors, sur la rive gauche du fleuve - on ne peut pas descendre deux fois dans le mme fleuve, ni toucher deux fois une substance prissable dans la mme tat - , un quartier o le ngatif tenait sa cour. Il est banal de remarquer que, mme dans les priodes agites par de grands changements, les espirits les plus novateurs se dfont difficilement de beaucoup de conceptions antrieures devenues incohrentes, et en conservent au moins quelquesunes, parce quil serait impossible de repousser globalement comme fausses et sans valeur des affirmations universelements admises. Il faut pourtant ajouter, quand on connat par la pratique ce genre daffaires, que de telles difficults cessent dencombrer ds le moment o un

aO VI distrito visto do alto, com o sena em primeiro plano. bDanas da juventude. cHistria em quadrinhos: Prncipe Valente em um quadro de A caverna do tempo. Uma moa lhe diz:Esta caverna a sala de trofus do tempo, onde ningum ousa entrar. dInscrio sobre um muro: Jamais trabalhar [Ne travaillez jamais!]

eUm grupo no balco de um caf, no fim da noite.

fPrncipe Valente responde moa:No entendi o sentido de tuas palavras, mas teu vinho forte e a minha cabea gira. gA gente de Saint-Germain-des-Prs na varanda de um caf, e no interior: ar de violo, encontros, conversas.

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ilustrao exemplar da doena mortal que ataca neste momento todas as grandes cidades, e esta doena ela mesma um dos numerosos sintomas da decadncia material de uma sociedade. Mas Paris tinha mais a perder que qualquer outra. uma grande fortuna ter sido jovem nesta cidade quando, pela ltima vez, brilhou com um fogo to intenso. se tocar duas vezes uma mesma substncia perecvel no mesmo estado , um bairro onde o negativo tinha sua corte37. banalb notar que, mesmo durante os perodos agitados por grandes transformaes, os espritos mais inovadores dificilmente se livram de muitas das concepesc38 anteriores tornadas incoerentes, e conservam pelo menos algumas, dado que seria impossvel repelir globalmente como falsas e sem valor afirmaes universalmente aceitas. necessriod39 portanto acrescentar, quando se conhece na prticae este gnero de negcio, que tais dificuldades cessam de obnublar a partirf do momento em que um grupo humano comea a fundar sua existncia real sobre a refutao deliberada daquilo que universalmente aceito, e sobre o desprezo completo do que possa vir por consequnciag. Aqueles que se reuniram assim parecem ter tomado por nico princpio de ao, logo de partida e publicamente, o segredo que o velho da montanha no transmitiu, diz-se, seno na sua hora derradeira, ao mais fiel tenente entre seus fanticos: Nada verdadeiro, tudo permitido. No presente, eles no concedem nenhum tipo de importncia queles que no esto entre eles, e penso que tm razo.E no passado, se algum despertava sua simpatia, este era Arthur Cravan40, desertor de dezessete naHaviaa ento, margem esquerda do rio no pode entrar duas vezes no mesmo rio36, nem

36[D] Citao de Herclito. 37[D] Em 1952, no vi arrondissement./ Shakespeare, pois, na coroa dos reis, a morte tem sua corte. (Henrique IV?) 38[K] Caverna do tempo (Cave du

temps) Apesar da palavra francesa cave geralmente significar subsolo ou inferninho subterrneo, o sentido aqui ralmente caverna. Neste episdio de Prnicipe Valente (23 de abril, 1939) o heri encontrou uma pequena caverna na floresta; a jovem uma bruxa boa; e o tempo a que se refere o prprio Pai Tempo, com o qual Valente luta sem sucesso. O quadrinho original de Hal Foster para esta cena pode ser encontrado na coleo do Prncipe Valente reimpressa por Fantagraphic books (vol3, p.115). 39[D] Este grafite foi pixado por

Debord em 1953. [depois virou um carto postal destes colecionveis por uma editora francesa, ao que Debord respondeu com uma carta aberta irnica; no deixa de ser desanimador imaginar que o destino final destes esforos sejam cartes e camisetas, e que de Marx a Guevara tenhamos uma verdadeirafashionable revolution]. 40[D] Arthur Cravan: poeta, boxeador, proto-dadasta, perpetrador de escndalos e desertor de dezessete naes, despareceu no mar em 1920. Arthur Cravan um prottipo destes sabotadores culturais que se recusaram a jogar o jogo usual dos jogos sociais brilhouy e sumiu, passando pelas zonas mais radioativas do desastre cultural sem deixar atrs de si nenhum legado ou memria. (SI anthology, p. 107)

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groupe humain commence fonder son existence relle sur le refus dlibr de ce qui est universellement admis; et sur le mpris complet de ce qui pourra en advenir. Ceux qui staient assembls l avoir pris pour seul principe daction, dentre de jeu et publiquement, le secret que le Vieux de la Montagne ne transmit, dit-on, qu son heure dernire, au plus fidle lieutenant de ses fanatiques: Rien nest vrai; tout est permis. Dans le prsent, ils naccord aient aucune sorte dimportance ceux qui ntaient pas parmi eux, et je pense quila avaient raison; et dans la pass, si quelquun vellaitleur sympathie, ctait Arthur Cravan, dserteur de dix-sept nations, ou peut-tre aussi Lacenaire, bandit lettr. Dans ce site, lextrmisme stait proclam indpendant de toute cause particulire, et stait superbement affranchi de tout projet. Une socit dj vacillante, mais qui lignorait encore, parce que partout ailleurs les vielles rgles taient encore respectes, avait laiss pour un instant le champ libre ce qui est le plus souvent refoul, et qui pourtant a toujours exist: lintraitable pgre; le sel de la terre; les gens biens sincrement prt a mettre le feu au monde pour quil ait plus dclat.Article 488. La majorit est fixe vingt et un ans accomplis; cet ge un est capable de tous les actes de la vie civile Une science des situations est faire, qui empruntera des lments la psychologie, aux statstiques, lurbanisme et la morale. Ces lments devront concourir un but absolument nouveau: une cration consciente de situations. Mais on ne parle pas de Sade dans son film. Lordre rgne et ne gouverne pas.

aLacenaire diz para alguns proprietrios:Preecisa-se de um tudo para construir um mundo, ou para o desconstruir. Estes respondem:No passa de uma palavra, mas interessante. Muito interessante Realmente. bUma cidade kotoko, sobre o rio Nger. cUma outra. dDe novo, o grupo de bebedores na madrugada.

eConjunto de danas da juventude. fA tela fica branca. gNos balces, a multido indignada grita: A cortina! hUma fbrica moderna emite, de diversas sadas, espessos fumos brancos que preenchem quase inteiramente a tela.

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es, ou talvez Lacenairea41, bandido letrado. Neste lugarb, o extremismo se proclamou independente de toda causa particular, e se fez soberbamente liberadoc de todo projeto. Uma sociedade j vacilante, mas que ainda o ignorava, pois por toda parte as velhas normas ainda eram respeitadas, deixoud por um instante o campo livre quilo que mais normalmente recalcado, e que portanto sempre existiu: a intratvele corja; o sal da terra; as pessoas mais sinceramente prontas a meter fogo no mundo para que ele tenha mais brilho.f42Artigo 488. A maioridade fica fixada em vinte e um anos cumpridos. Nesta idade se capaz de todos os atos da vida civil. Uma cincia das situaes dever ser construda, que emprestar elementos da psicologia, das estatstica, do urbanismo e da moral. Estes elementos devero concorrer para uma meta absolutamente nova: uma criao consciente de situaes. Mas no se fala de Sade neste filme. A ordem reina, mas no governa. 43 O demnio armado44. Vocs se lembram. Est ali. Ningum nos basta. Mesmo assim... Saraivada sobre as vitirnes. Ser lembrado, este planeta. Artigo 489. O adulto que esteja em um estado habitual de imbecilidade, de demncia ou de furor, dever ser recolhido, ainda que apresente intervalos de lucidez. Aps todas as respostas aos contratempos, e da juventude que se fez velha, a noite recai de bem alto. Vivemos como crianas perdidas nossas aventuras incompletas.g45

41[K] Lacenaire: Pierre-Louis Lacenaire (1803-1836), o dndi do crime: ladro, assassino e autor, cujas Memrias foram publicadas aps sua execuo; um dos personagens histricos que aparecem em Les enfants du paradis (1943-5), filme de Marcel Carn. [Boulevard do crime em portugus, histria sobre a boemia e o submundo parisiense do sculo XIX]. 42[D] Os 8 pargrafos seguintes so retirados do filme Hurlements en faveur de Sade [Berros em favor de Sade, filme de Guy Debord realizado em 1952] 43[D] O princpio constitucional ingls: O rei reina, mas no governa. 44[D] Ttulo do filme americano Gun crazy. [mortalmente perigosa, tit. em portugus] 45[D] velha expresso militar para os batedores avanados. Em ingls, existe uma expresso holandesa (ou Boer?) que ainda utilizada hoje em dia.

Um filmeh que fiz nessa poca, e que evidentemente suscitou a clera dos estetas mais avanados, era de uma ponta a outra como isso que precedeu.

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Le Dmon des armes. Vous vous souvenez. Cest cela. Personne ne nes suffisait. Tout de mme... La grle sur les bannires de verre. On sen souviendra, de cette palnte. Article 489. La majeur qui est dans un tat habituel dimbcillit, de dmence ou de fureur, doit tre interdit, mme lorsque cet tat prsente des intervalles lucides. Aprs toutes les rponses contretemps, et la jeunesse qui se fait vieille, la nuit retombe de bien haut. Nous vivons en enfants perdus nos aventures incompltes.

aDebord aos 45 anos. bLacenaire diz a Garance:No sou cruel, sou lgico; aps muito tempo, declarei guerra sociedade. garance pergunta:E mataste muita gente por este tempo, Pierre-Franois? E Lacenaire No, meu anjo, v: nenhum trao de sangue; s algumas manchas de tinta. Mas eu te asseguro, Garance, que preparo qualquer coisa extraordinria... Quando eu era uma criana, eu j era mais lcido, mais inteligente que os outros. No me perdoaram por isso. Realmente uma bela juventude! Mas que destino prodigioso! No possuo vaidade, no tenho orgulho, e sou seguro de mim; absolutamente seguro. Pequeno ladro por necessidade, assassino por vocao, meu caminho est todo traado, e marcharei de cabea erguida. At que ela tombe dentro do cesto, naturalmente! Antes, meu pai me disse: Pierre-Franois, tu acabars no cadafalso. E ela: Tens razo, Pierre-Franois, preciso sempre escutar os pais. cUm ladro chega mesa de um expert para que estime um objeto: lata ou prata?. O expert se dirige em seguida a seu vizinho, recm chegado neste lugar: O que dizes, oh, artista? No falas nada? s um sbio. preciso nunca dizer nada. Um dedo-duro, que tambm pregoeiro, entra e recita sua propaganda:Sonhastes com gatos, sonhastes com cachorros, vistes a gua revoltada? Eis a explicao de todos vossos sonhos, um volume em brochura com figuras. Sada o dono e lhe diz:Lacenaire no est longe com sua boa equipe. Eu te previno. Lacenaire entra com sua boa equipe, e Garance. dServe-se bebida na mesa de Lacenaire.

Un film que je fis ce moment, et qui videmment suscita la colre des esthtes les plus avancs, tait dun bout lautre comme ce qui prcde; et ces pauvres phrases taient pronnonces sur un cran entirement blanc, mais entoures de fort longues squences noires, o rien ntat dit. Certains sans doute voudraient croire que lexprience a pu menrichir en talents ou en bonne volont. Seraitce donc lexprience dune amlioration de ce que je refusais alors? Ne me faites pas rire. Pourquoi celui qui, tant jeune, a voulu tre si insuoportable dans le cinma, savrerait-il plus intressant, tant plus g? Tout ce qui a t si mauvais ne peut jamais tre vraiment meilleur. On a beau dire: Il a vielli; il a chang; il est aussi rest le mme. Dans ce lieu qui fut la brve capitale de la perturbation, sil est vrais que la population choisie comptait un certain nombre de voleurs, et occasionellement de meurtrirs, lexistence de tous tait principalement caracterise par une prodigieuse inactivit; et entre tant des crimes et dlits que les autorits y dnoncrent, cest cela qui fut ressenti comme le plus menaant. Ctait le labyrinthe le mieux fait pour retenir

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E essas pobres frases eram pronunciadas sobre uma tela inteiramente branca, mas rodeadas de sequncias bem longas em negro, em que nada era dito. Alguns sem dvida querem crer que a experincia ter podido me enriquecer em talentos e em boa vontade. Seria isto aqui ento a experincia de uma evoluo daquilo que eu recusava ento? No me faam rir. Por quea aquele que, quando jovem, desejou ser to insuportvel no cinema, se tornaria mais interessante, estando mais velho? Tudo que foi to mal no pode ser nunca verdadeiramente melhor. Diz-se bem: Envelheceu, mudou. Tambm fica-se o mesmo.b46 Neste lugarc que foi a capital efmera da perturbao, se verdade que o povo eleito contava com um certo nmero de ladres, e ocasionalmente de assassinos, a existncia de todos era principalmente caracterizada por uma prodigiosa inatividadec. E entre tantos crimes e delitos que as autoridades denunciaram, este que foi sentido como o mais ameaador. Erad o melhor labirinto para reter os viajantes. Aqueles que ficavam por dois dias ou at menos no partiam mais, pelo tempo que ele existiu. Mas a maior parte percebeu vir o princpio do fim de seus anos pouco numerosos. Ningum abandonava aquelas ruas e aquelas mesas onde o ponto culminante do tempo fora descoberto47.

46[D] Pascal [K] Pensamento #88 de Pascal: Como algum to dbil em sua infncia torna-se to vigoroso quando cresce?... O que foi dbil no pode nunca se tornar realmente forte. Dize, Cresceu, mudou; mas tambm permanece o mesmo. 47[D] Imagem empregada por Thomas Hobbes a respeito de uma poca conturbada. [K] Debord est provavelmente se referindo sentena de abertura para o Behemoth de Hobbes: A histria das causas da guerra civil da Inglaterra: Se no tempo, como no espao, houvesse graus de alto e baixo, eu realmente acredito que o cume do tempo seria aquele passado entre 1640 e 1660.

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les voyageurs. Ceux qui sy arrtrent deux jours nen repartient plus, ou du moins pas tant quil exista; mais la plupart y ont vu venir dabord la fin de leurs annes peu nombreuses. Personne ne quittait ces quelques rues et ces quelques tables o le point culminant du temps avait t dcouvert. Tous sadmiraient davoir soutenu un dfi si magnifiquement dsastreux; et de fait je crois bien quaucun de ceux qui sont passs pa l na jamais acquis la moindre rputation honnte dans le monde. Chacun bouvait quotidiennement plus de verres qun syndicat ne dit de mensonges pendant toute la dure dune grve sauvage. Des bandes de policiers, dont les marches soudaines taient claires par un grand nombre dindicateurs, ne cessaient de lancer des incursions sous tous les prtextes, mais le plus souvent dans lintention de saisir des drogues, et les filles qui navaient pas dix-huit ans. Comment ne me serais-je pas souvenu des charmants voyous et des filles orgueilleuses avec qui jai habit ces bas fonds, lorsque, plus tard, jai entendu une chanson que chantent les prisioners en Italie? - Tout le temps avait pass comme nos nuits dalors, sans renoncer rien. Cest l que sont les petites filles qui te donnent tout, - dabord le bonsoir, et puis la main... - Dans la rue Filagieri, il y a une cloche; - chaque fois quelle sonne, cest une condamnation... - La plus belle jeunesse meurt en prison. Quoique mprisant toutes les illusions idologiques, et assez indiffrents ce qui viendrait plus tard leur donner raison, ces rprouvs navaient pas ddaign dannoncer au-dehors ce qui allait suivre. Achever lart, aller dire en peline cathdrale que Dieu tait mort, entrependre de faire

aGarance pergunta:Em suma, se eu te entendo bem, das coisas que sois, s tambm um filsofo? Lacenaire diz:Por que no? Garance se ri Ah, bem. ela alegre, ela boa, ela prpria, a filosofia! Depois um tenente de Lacenaire lhe prope expulsar algum que no devia estar l. Lacenaire consente. O homem se levanta e vai procurar entre os danarinos a pessoa referida. bO importuno pego e lanado atravs da vitrine. cO dono protesta em seguida:Ai, e meu vidro?. Lacenaire lhe responde de seu lugar:Vai l, patro, no se pode mais se divertir no Rouge Gorge? e com a mo evoca uma faca sobre uma garganta. O dono, conciliador:Ah, senhor Lacenaire, o que eu dizia... dDois carros param diante da varanda de um Caf des Potes. Os policiais correm, impedem a todos de sair, exigem ver seus documentos.

eUma moa passa por uma rua, noite. fUma menor transviada. gVista exterior da priso em que foram assassinados. hAndreas Baader e Gudrun Ensslin. iDentro de uma loja de bebidas de Saint-Germain-des-Prs um homem usando chapu entra e fala longamente com o dono. jAlguns beberres filosofam em um bar.

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se orgulhavam de sustentar uma recusa to magnificamente desastrosa. E de fato acredito que alguns daqueles que j se foram jamais adquiriram uma reputao minimamente honesta sobre a terrac. Cadad um bebia cotidianamente mais copos que um sindicato diz mentiras durante toda a durao de uma greve selvagem. Os bandos de policiais, cujas marchas sbitas eram dirigidas por um grande nmero de delatores, no cessavam de lanar incurses, sob todos os pretextos, mas normalmente com a inteno de apreender drogas e as moas que ainda no tinham dezoito anos. Comoe no lembraria dos bravos vadios e das jovens orgulhosas com quem habitei os covis quando mais tarde ouvi uma cano que cantavam os prisioneiros na Itlia? Todo tempo passou como nossas noites de ento, sem renunciar a nada.f l que esto as garotas que tudo te do/ primeiro boa noite e depois a mo... / gNa rua Filangieri, h um sino/ h48 Cada vez que ele soa, uma condenao... / a mais bela juventude morta na priso. i49 Ainda que desprezando todas as iluses ideolgicas, e assaz indiferentes quilo que viria mais tarde lhes dar razo, estes renegados no haviam desdenhado anunciar a plenos pulmes aquilo que se seguiria. Acabar com a arte, dizer em plena catedral que Deus estava morto, planejar fazer voar a torre Eiffel, tais foram os pequenos escndalos aos quais se entregavam esporadicamente aqueles cuja maneira de viver era permanetemente um to grande escndalo. Tambmj se interrogavam sobre o fracasso de algumas revolues, perguntavam-se se o proletariado realmente existia, e nesse caso o que ele poderia ser.

aTodosb

46[D] Pascal [K] Pensamento #88 de Pascal: Como algum to dbil em sua infncia torna-se to vigoroso quando cresce?... O que foi dbil no pode nunca se tornar realmente forte. Dize, Cresceu, mudou; mas tambm permanece o mesmo. 47[D] Imagem empregada por Thomas Hobbes a respeito de uma poca conturbada. [K] Debord est provavelmente se referindo sentena de abertura para o Behemoth de Hobbes: A histria das causas da guerra civil da Inglaterra: Se no tempo, como no espao, houvesse graus de alto e baixo, eu realmente acredito que o cume do tempo seria aquele passado entre 1640 e 1660. 48[K] Andreas Baader e Gudrun Eslin: membros do grupo terrorista Baader-Meinhof (tambm conhecido como Faco do Excito Vermelho), mortos em uma priso alem em 1977. 49[D] a cano da corja de Milo.

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faire sauter la tour Eiffel, tels furent les petits scandales auxquels se livrrent sporadiquement ceux don la manire de vivre fut en permanence un si grand scandale. Ils sinterrogeaient aussi sur lchec de quelques rvolutions; ils se demandaient si le proltariat existe vraiment, et dans ce cas ce quil pourrait bien tre. Quand je parle de ces gens, jai lair, peut-tre, den sourire; mais il ne faut pas le croire. Jai bu leur vin. Je leur suis fidle. Et je ne crois pas tre devenu para la suite, en quoi que ce soit, mieux que ce quils taient eux-mmes dans ce temps-l. Considrant les grandes forces de lhabitude et de la loi, qui pesaient sans cesse sur nous pour nous disperser, personne ntait sr dtre encore l quand finirait la semaine; et l tait tout ce que nous aimerions jamais. Le temps brlait plus fort quailleurs et manquerait. On sentait trembler la terre. Le suicide en emportait beaucoup. La boisson et le diable ont expdi les autres, comme le dit aussi une chanson. la moiti du chemin de la vraie vie, nous tions environns dune sombre mlancolie, quont exprime tant de mots railleurs et tristes, dans le caf de la jeunesse perdue. Pour parler clairement et sans paraboles, - nous sommes les pices dun jeu que joue le Ciel. - On samuse avec nous sur lchiquier de ltre, - et puis nous retournons un par un dans la bote du Nant.Que de fois dans les ges, ce drame sublime que nou crons sera jou en des langues inconnues, devant des peuples qui ne sont encore! Quest-ce que lcriture? La gardienne de la histoire... Quest-ce que lhomme? Lesclave de la mort, un voyageur qui passe, lhte dun seul lieu...

aUma atriz retoma a discusso em um outro filme:Uns crem que ele pensa em ns, outros que ele nos pensa; outros que ele dorme e que somos seu sonho, seu pesadelo. bTravelling sobre outras mesas ocupadas pela mesma corja. cUma estudante em fuga pelas ruas, noite. dA porta de um caf pobre. eUm conspirador veneziano diz a seu acompanhante:Logo passaremos para a Terrra Firme, e ento poderemos nos ver com mais frequncia fGente em um bar situado em um sub-solo. gUma moa passa diante de uma porta giratria no mesmo distrito. hO ambiente e a companhia, juntos. iUm encontro no bar j visto. jAIvan Chtcheglov jogando xadrez. lGilo J. Wolman. mRobert Fonta. nGhislain de Marbais. oDebord aos vinte anos. pAquela que foi a mais bela naquele ano. qArt Blakey:Whusper not

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falo dessa gente, tenho o ar, quem sabe, de um sorriso. Mas no se deve acreditar nisso. Bebi seu vinho 50. Sou fiel a ela. E no creio ter me tornado mais adiante, em coisa alguma, melhor do que eles foram naquele tempo. Considerandoc as grandes foras da lei e do costume que pesavam sem cessar sobre ns para nos dispersar, ningum estava certo de se manter no posto quando acabasse a semana. Mas l estavad tudo que ns sempre tnhamos amado. O tempo queimava mais forte que em qualquer outro lugar e iria faltar. Sentia-se a terra tremer.e Of suicdio carregou muitos. A bebida e o diabo se livraram dos outros51, como diz uma cano. No meiog do caminho da vera vida52, ns fomos envolvidos por uma sombria melancolia, que exprimiram tantas palavras jocosas e tristes dentroh do caf da juventude perdida53. Tudoi no passa de um tabuleiro de dia e noite/ conosco por peas de um xadrez q