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IMPRENSA PERIÓDICA ILUSTRADA E POLÍTICA: A REVISTA KODAK E OS USOS DAS REPRESENTAÇÕES HUMORÍSTICAS NA CONSTRUÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA. PORTO ALEGRE, 1912-13 Alice D. Trusz Doutora em História UFRGS Pós-doutora pela ECA-USP Publicada em Porto Alegre a partir de 1912, a revista Kodak foi um semanário ilustrado dedicado às artes e à literatura, cuja proposta editorial era dar conta da multiplicidade das manifestações da vida, promovendo as sociabilidades públicas e o mundanismo cosmopolita. Lançada nos moldes da congênere carioca Fon-Fon, a Kodak foi um produto representativo da cultura da belle époque brasileira e defendeu que a linguagem que melhor correspondia aos “elétricos tempos” então vividos, de “cinematografia e de vertigem”, em que tudo devia ser “breve, instantâneo, sintético”, era a visual, tendo, por isso, feito largo uso da fotografia e da ilustração. Na sua primeira edição, a Kodak publicou um editorial explicando o seu título e apresentando o seu programa. Segundo esclareceu, o seu nome de batismo lhe definia previamente a feitura e a destinação: ela seria a fotografia semanal do Estado e da cidade. Seria uma revista “de poucas palavras e de muitas ilustrações”, pois, “como instrumento de luta e propaganda, nada há de mais eficaz e eloquente que a figura geométrica de uma caricatura ou de um cliché.” Por fim, avisava: “Sendo nosso intuito fazer obra de simpatia, de solidariedade e de aperfeiçoamento social, seja muito embora uma revista impressa a cores, fica, desde já, proscrita de suas colunas toda e qualquer cor política, como perniciosa à vista e ao coração.” A Kodak realmente seguiu os seus propósitos editoriais, contrariando apenas a promessa de manter-se monocromática com relação à política. Presente em seus conteúdos textuais e visuais, o tema não chegou a ganhar cores partidárias, mas evidenciou a tendência da publicação e o seu papel no contexto da eleição e posse de Borges de Medeiros ao terceiro mandato no governo estadual.

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IMPRENSA PERIÓDICA ILUSTRADA E POLÍTICA: A REVISTA KODAK E OS

USOS DAS REPRESENTAÇÕES HUMORÍSTICAS NA CONSTRUÇÃO DA

OPINIÃO PÚBLICA. PORTO ALEGRE, 1912-13

Alice D. Trusz

Doutora em História – UFRGS

Pós-doutora pela ECA-USP

Publicada em Porto Alegre a partir de 1912, a revista Kodak foi um semanário

ilustrado dedicado às artes e à literatura, cuja proposta editorial era dar conta da

multiplicidade das manifestações da vida, promovendo as sociabilidades públicas e o

mundanismo cosmopolita. Lançada nos moldes da congênere carioca Fon-Fon, a Kodak

foi um produto representativo da cultura da belle époque brasileira e defendeu que a

linguagem que melhor correspondia aos “elétricos tempos” então vividos, de

“cinematografia e de vertigem”, em que tudo devia ser “breve, instantâneo, sintético”,

era a visual, tendo, por isso, feito largo uso da fotografia e da ilustração.

Na sua primeira edição, a Kodak publicou um editorial explicando o seu título e

apresentando o seu programa. Segundo esclareceu, o seu nome de batismo lhe definia

previamente a feitura e a destinação: ela seria a fotografia semanal do Estado e da

cidade. Seria uma revista “de poucas palavras e de muitas ilustrações”, pois, “como

instrumento de luta e propaganda, nada há de mais eficaz e eloquente que a figura

geométrica de uma caricatura ou de um cliché.” Por fim, avisava: “Sendo nosso intuito

fazer obra de simpatia, de solidariedade e de aperfeiçoamento social, seja muito embora

uma revista impressa a cores, fica, desde já, proscrita de suas colunas toda e qualquer

cor política, como perniciosa à vista e ao coração.”

A Kodak realmente seguiu os seus propósitos editoriais, contrariando apenas a

promessa de manter-se monocromática com relação à política. Presente em seus

conteúdos textuais e visuais, o tema não chegou a ganhar cores partidárias, mas

evidenciou a tendência da publicação e o seu papel no contexto da eleição e posse de

Borges de Medeiros ao terceiro mandato no governo estadual.

Esta comunicação tem por objetivo apresentar algumas das conclusões de uma

investigação que partiu das charges de temática política veiculadas nas capas da revista

entre outubro de 1912 e junho de 1913, mas se estendeu a outros conteúdos do impresso

e o extrapolou. O seu intuito foi identificar como foi abordada a política pela revista por

meio da visualidade e do humor nas charges por ela publicadas no seu espaço nobre, a

capa, que é a porta de entrada e o cartão de apresentação de toda publicação. O exame

dessas representações teve por objetivo identificar os sentidos dessas imagens e o papel

que elas e a revista que as produziu e publicou podem ter desempenhado no seu

contexto de circulação.

Além de revelar algumas das expectativas e preocupações dos contemporâneos

em relação às práticas políticas nos âmbitos local, regional e nacional, o estudo de caso

também permitiu evidenciar aspectos da relação entre a imprensa e a política no Brasil

da Primeira República. Alarga-se, assim, a compreensão da dinâmica da produção

cultural brasileira em um contexto de transformação do jornalismo, que se aperfeiçoou

tecnicamente como indústria gráfica e se racionalizou como empresa comercial, e, nesse

movimento, estabeleceu e desfez compromissos com as elites, barganhando recursos,

prestígio e poder.

Para tal fim, foram examinadas as capas das edições de números 1 a 36, das

quais 17 fizeram referência direta à política, sendo 14 com charges. Desse grupo, 9

tiveram por ilustrador Giga e 5 foram criadas por Nero. Giga (Fig. 1) era o pseudônimo

do artista italiano Giuseppe Gaudenzi, que se estabeleceu em Porto Alegre em 1909 a

convite do engenheiro João Lüderitz, professor do Instituto Técnico Profissional

Parobé, da Escola de Engenharia de Porto Alegre. O convite foi feito e aceito durante a

viagem de Lüderitz à Europa, como enviado do governo gaúcho com a missão de

contratar professores para aquela instituição de ensino. Durante os anos de 1910-12,

Gaudenzi, como professor do curso de modelagem em arte decorativa do Instituto

Profissional, prestigiou, juntamente com seus empregadores e colegas de trabalho, todos

correligionários do PRR, os eventos públicos que envolviam dirigentes da instituição e

políticos do partido.

Nero era o pseudônimo de Orzolino Martins. (Fig. 2) Ilustrador do semanário

humorístico ilustrado local Pau Bate desde 1908, deixou a publicação em dezembro de

1910 para fundar sua própria revista, do mesmo gênero, o 606. O título era emprestado

de um medicamento injetável então em voga, indicado para o tratamento da sífilis. O

semanário teve boa aceitação no meio local, entre o público e órgãos de imprensa de

distintas tendências políticas, o que significa que distribuía democraticamente as suas

críticas. Nero colaborou com a Kodak durante 1913 e 1914, sem abandonar a publicação

do 606.

Fig. 1 – Fotogravura de Giuseppe Gaudenzi (Giga). O Independente, POA, 29/07/1914, p. 1.

Fig. 2 - Caricatura de Orzolino Martins (Nero). Autor: Nero. Kodak, POA, ano 2, n. 52,

11/10/1913.1

As charges publicadas nas capas da Kodak eram policromáticas e ocupavam a

quase totalidade do espaço da página. (Fig. 3) Giga costumava criar cenas que

contavam com a participação de um personagem peculiar, por ele criado, o Zé Gaúcho,

que vestia trajes típicos regionais (à esquerda, na gravura). Ele estava presente nos

acontecimentos como observador, mas costumava fazer comentários ou recomendações.

Desenhado já na primeira capa de Giga, e retomado em outras dez, o personagem foi

inclusive preservado por Nero em quatro capas suas. (Fig. 4).

Fig. 3 – Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 10, 30/11/1912.

Fig. 4 – Charge. Autor: Nero. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 19, 22/02/1913.

A figura do Zé Gaúcho remete diretamente a outro personagem assíduo na

ilustração de humor brasileira da época, o Zé Povo. (Fig. 5) Objeto de representações

visuais diversas desde a década de 1880, ele costumava ser desenhado como tipo

popular, com aspecto desalinhado e vestes remendadas.

1 A presente versão desta comunicação é a mesma que foi apresentada oralmente na Anpuh 2016. Porém,

devido aos limites impostos pelo sistema para o peso dos textos completos destinados à publicação nos

Anais (3MB), a maior parte das figuras exibidas durante a apresentação não pode ser anexada aqui.

Fig. 5 – Charge. Autor: Storni. O malho, RJ, n. 393, 26/03/1910.

Contudo, aqui interessa destacar a concepção que dele fez o ilustrador Lobão

(João Batista Ramos) nas charges de sátira política que desenhou para as capas do

semanário carioca O Malho entre 1905 e 1914. (Fig. 6) Nelas, o Zé Povo aparece como

um tipo urbano, um homem comum que se vestia com simplicidade, mas era uma figura

distinta, que usava sapatos e chapéu de palhinha, e cuja marca registrada era uma

gravada vermelha em laço no pescoço. Ele não era a encarnação da revista, que possuía

sua própria representação (personagem com touca e botas vermelhas). Eles inclusive

contracenaram juntos em diferentes capas.

Fig. 6 – Charge. Autor: J. R. Lobão. Capa. O malho, RJ, n. 412, 6/08/1910.

Segundo Luiz Teixeira (2001), pode-se dizer que o Zé Povo representava todos

os oprimidos, diante de todos os opressores. Sua singularidade estaria em ser mero

espectador, externo à sociedade e à lógica das lutas políticas, não mais que um

comentador de fatos que não lhe diziam diretamente respeito. Ele seria um observador

impotente de uma cena política da qual se sabe e se sente excluído a priori, sempre à

margem. Ele simbolizaria, assim, o permanente desencontro entre elite e povo, povo e

nação, onde um não se reconhece nem se identifica com o outro. Porém, embora

destituído de poder para interferir nos acontecimentos, tinha por característica central a

lucidez (Fig. 7), o que o legitimava como o personagem que, nas charges, colocava em

pauta a isenção, a ética, a concórdia e o equilíbrio, geralmente ausentes nas práticas dos

políticos e dirigentes brasileiros “do passado”. Nos exemplos mostrados, Zé Povo é

representado de braços com o velho bom senso e a pedir juízo aos políticos.

Fig. 7a - Charge. Autor: J. R. Lobão. Capa. O malho, RJ, n. 353, 19/06/1909. Fig. 7b – Charge. Autor: J. R. Lobão. Capa. O malho, RJ, n. 361, 14/08/1909.

Fig. 8 – Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, ano 1, n. 5, 26/10/1912.

Alguns destes traços podem ser percebidos no Zé Gaúcho de Giga (Fig. 8),

artista que deve ter sido leitor d’O Malho, a mais importante revista de crítica à vida

política do país do seu tempo. Ele parece ter partido daquele Zé genérico para criar o

seu tipo regional, o Zé Gaúcho, mas com algumas particularidades, como uma postura

mais irônica e cética frente às políticas nacional e municipal e mais tendenciosa quando

se tratava do âmbito estadual.

As charges publicadas pela Kodak sobre a política nacional foram produzidas e

circuladas durante o governo de Hermes da Fonseca (1910-14) e a ele se referem. A

primeira capa política de Giga para a Kodak não foi uma charge, mas uma alegoria.

(Fig. 9). Nela, a República brasileira é representada como uma mulher altiva e resoluta,

que empunha a bandeira do Brasil e conduz uma biga com determinação. A visão

otimista do regime, então convulsionado por sucessivos movimentos sociais, como a

Guerra do Contestado, e que foram duramente reprimidos pelo marechal Hermes, é

endossada pelo texto da base: “Apesar, afirma o Giga, dos fanáticos do monge

(referência ao Contestado), levada por esta biga, a República há de ir longe...”

Fig. 9 – Ilustração alegórica. Autor: Giga. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 8, 16/11/1912.

Nas cinco charges seguintes sobre o tema, três desenhadas por Giga e duas por

Nero, a política nacional foi objeto de crítica e ironia, mas cuidando-se em distinguir a

Nação das práticas de seus governantes e políticos. Em quatro delas, o senador gaúcho

Pinheiro Machado está presente. (Fig. 10)

Fig. 10a - Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 11, 07/12/1912.

Fig. 10b - Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 22, 15/03/1913.

Pinheiro Machado foi um dos republicanos históricos que lançaram a

candidatura do militar Hermes da Fonseca à presidência da República contra o civilista

Rui Barbosa. As eleições de 1910 foram vencidas por Hermes e a partir de então ganhou

força a influência do senador na direção da política nacional. O controle dos estados por

caciques políticos era a regra, bem como as lutas entre eles pela manutenção deste

domínio. Buscando centralizar o poder, o Marechal Hermes acionou, a partir de 1911, a

política salvacionista, que consistia em depor governadores nos Estados e os substituir

por interventores fiéis ao governo. Ela permitiu que o senador Pinheiro Machado

estabelecesse alianças entre o RS e estados do Norte e Nordeste, apoiando e

manipulando coronéis. Marcadas por forte autoritarismo, tais intervenções provocaram

resistência e conflitos armados, bem como reações no Congresso, no Senado e na

imprensa.

A atuação de Pinheiro Machado na sustentação do governo Hermes, e os

conchavos políticos que manipulou em nível nacional, foram assunto reincidente nas

charges da época. Os exemplos mostrados, desenhados por Giga, remetem às

dificuldades de estabelecer e manter o controle sobre tais alianças. Na primeira charge,

o senador escreve cartas para políticos e é advertido por Zé Gaúcho, respondendo-lhe

com expressão de tédio. Na segunda, o senador, agachado, esforça-se para segurar os

fios de vários balões coloridos representando políticos. Eles tentam escapar e ele

machuca os dedos no esforço, reclamando do seu “peso”.

A percepção de Pinheiro Machado como o presidente de fato, aquele que

realmente governava no lugar de Hermes, o eleito, foi outro aspecto que marcou a

produção humorística do período 1910-14. (Fig. 11) Desde 1909, os chargistas cariocas

se esmeravam na representação do senador como criador e manipulador do marechal. O

primeiro exemplo faz referência direta à obra do escultor Michelângelo, em particular

ao seu Moisés, que se encontra em Roma, e que, de tão perfeito, só falta falar. Pinheiro,

como criador, e Hermes, como criatura, metaforizam a ideia da perfeição da obra,

salientada pela ordem do artista à pequena estatueta: “- Non parla!...”. Contudo,

mantém-se a ambiguidade, como é característico do humor, entre a interpretação

elogiosa da eficiência da manipulação do presidente pelo senador e a crítica à

incapacidade do presidente em agir com autonomia. O segundo exemplo, que representa

Pinheiro Machado com a babá do bebê Hermes, que o guia no aprendizado do caminhar,

devendo evitar as pedras do seu caminho (oposicionismo e desagrado popular), e o

alimenta com uma mamadeira de “conselhos”, é outra representação da mesma ideia.

A charge criada por Giga sobre o tema também é memorável. (Fig. 12)

Intitulada “Esperando a onda...”, a cena de banho de mar mostra Pinheiro segurando

Hermes para que não afunde, ajudando-o a boiar. A profundidade é rasa e mesmo assim

Hermes teme se afogar. O senador o tranquiliza, dizendo que, enquanto ele, Pinheiro

continuar na posição que ocupa, o marechal há de boiar em segurança. Ao fundo, Zé

Gaúcho observa-os, remando em uma canoa da Kodak, e aproveita para avisá-los sobre

a previsão de um temporal e o fato da sua canoa só poder salvar um dos dois.

Fig. 11b – Charge. Autor: K. Lixto. Fon-Fon, RJ, n. 33, 13/08/1910.

Fig. 11a – Charge. Autor: J. Carlos. Careta,

RJ, n. 72, 16/10/1909.

Fig. 12 – Charge. Autor: Giga. Capa.

Kodak, POA, ano 1, n. 18, 15/02/1913.

Ainda que Hermes fosse gaúcho e tivesse sido apoiado pelo RS na campanha

eleitoral de 1909, torna-se objeto de riso, no que Giga se alinha à percepção nacional

acerca do seu governo. Contudo, inverte essa percepção quando se trata do outro

político gaúcho, Pinheiro Machado, do qual é feita uma imagem até certo ponto

positiva, revelando uma concepção oposta àquela corrente nas charges cariocas, nas

quais o senador era comumente representado como figura prepotente e ambiciosa e

denominado o Chantecler, o galo dos terreiros. (Fig. 13) Chamo a atenção para a

charge, do monumento, em que o senador galináceo apoia-se em um queijo e segura

uma faca. Para endosso, lê-se na placa afixada ao pedestal: “L’etat c’est moi”.

Fig. 13a – Caricatura de Pinheiro Machado. Autor: J. Carlos. Careta, RJ, n. 92, 5/03/1910.

Fig. 13b – Charge/caricatura de Pinheiro Machado. Autor: J. Carlos. Careta, RJ, n. 102,

14/05/1910.

No que respeita à política municipal, observa-se que a administração do “eterno

intendente” Montaury foi objeto de críticas sucessivas tanto em ilustrações de humor

quanto em crônicas. Por outro lado, fotografias dele e dos conselheiros municipais

foram publicadas na Kodak com certa solenidade, demonstrando a ambiguidade ou zelo

da revista no tratamento da questão.

José Montaury administrou Porto Alegre entre 1897 e 1923 rigidamente dentro

dos preceitos positivistas, que primavam pelo lema “conservar, melhorando” e

orientavam-se pela necessidade de manter o equilíbrio orçamentário. Ele era um

republicano, membro do PRR e figura de confiança do governo do Estado. Em sua

administração, empreendeu medidas estruturais de urbanização, mas foram obras

morosas e comedidas, de pouca visibilidade, que motivaram reclamações recorrentes na

imprensa. (Fig. 14) A charge de Nero dá conta da percepção dos contemporâneos sobre

o ritmo dos “Melhoramentos de Porto Alegre” sob a condução de Montaury.

Questionado por Zé Gaúcho sobre a lentidão do processo, o intendente justifica-se

dizendo que “devagar se vai mais longe” e é mais seguro.

Fig. 14 – Charge. Autor: Nero. Kodak, POA, ano 1, n. 32, 24/05/1913.

Na capa criada por Giga sobre o tema (Fig. 15), Montaury é representado no

interior do seu gabinete, telefonando para Deus. Zé Gaúcho, sofrendo com o forte calor,

acompanha o drama do administrador. Ele pede chuva e atribui à estiagem a interrupção

das obras. Zé está justamente sentado sobre uma pilha de documentos municipais, como

o relatório e projetos de obras públicas, de modo que a própria imagem expressa a sua

perda de utilidade e função: de vetores de obras, tornaram-se assento. Ironizando a

situação, Zé sugere ao intendente que aproveite o telefonema para pedir a Deus que

“extermine o trust do açúcar, senão este ano os presos da cadeia não comem

marmelada.”

Fig. 15 – Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, Porto Alegre, ano 1, n. 20, 01/03/1913.

Nos dois casos, a abordagem humorística procura amenizar as críticas a

Montaury, cujo poder era, afinal, legitimado pelo PRR e renovado a cada reeleição.

Assim, o Intendente é representado como uma figura quase infantilizada, um incapaz, e

menos como um administrador ineficiente. A recorrência ao divino, nesse sentido, é

acionada como último recurso, já que não há esperança de ação humana na reversão do

quadro de inoperância.

Já o poder estadual foi abordado nas charges das capas da Kodak por meio de

uma representação positiva, destinada a legitimá-lo simbolicamente. Das cinco

ilustrações identificadas, três assinadas por Giga e duas por Nero, foram selecionadas

duas por suas referências diretas à eleição e posse de Borges de Medeiros no governo do

estado. (Fig. 16)

Tendo ocupado tal cargo por dois mandatos consecutivos entre 1898 e 1908,

Borges retornou à administração direta do Rio Grande do Sul em 1913, sucedendo a

Carlos Barbosa, também do PRR. A charge que vemos foi publicada logo após a

divulgação dos resultados da eleição, em novembro de 1912. Na cena, destaca-se a

figura do homem gigante, alto e forte, já grisalho e bem vestido, que representa o PRR.

Ele ergue Borges de Medeiros com uma das mãos, enquanto que, com a outra, sustenta

a cadeira da presidência. Borges é elevado às alturas pelo partido, e, por sua vez, segura

uma balança, símbolo da justiça, enfatizando o caráter legal e constitucional de sua

vitória eleitoral, respaldada em sólida base política (inscrita na figura do velho,

representando tradição e força). Assim eram contestadas as acusações da oposição sobre

as fraudes eleitorais e o abuso de poder, que de fato caracterizavam as eleições no

Estado. Zé Gaúcho observa a cena, desenhado na mesma escala reduzida de Borges. As

legendas, revelando o seu diálogo com o partido, orientam a interpretação sobre o papel

do personagem na cena como avalista do processo eleitoral.

Fig. 16 – Charge. Autor: Giga. Capa.

Kodak, POA, ano 1, n. 9, 23/11/1912.

PRR (para Borges): - Equilibre-se nessa

posição, seu chefe!... olhe que em tal altura

nem todos se aguentam!...

Zé Gaúcho – Nada de posição. Aqui não há

disso. “Quem está montado na razão, não

precisa de esporas.”

Fig. 17 – Charge. Autor: Giga. Capa.

Kodak, POA, ano 1, n. 17, 25/01/1913.

Dr. Borges de Medeiros: - Olha, Zé, ao

sentar-me, novamente, nesta cadeira, tenho

na frente a visão querida do Mestre.

Zé Gaúcho: - É a confirmação da sentença

do Grande filósofo, dr.: “os vivos são cada

vez mais governados pelos mortos.”

Já a capa seguinte (Fig. 17) foi publicada no dia da posse de Borges, em

25/01/1913, data em que também foi inaugurado oficialmente o monumento a Júlio de

Castilhos na Praça da Matriz. Na cena, Borges, trajando gala, segue pelo tapete

vermelho que leva à cadeira presidencial, em cujo encosto estão gravados os símbolos

da República rio-grandense. A figura gigantesca e espectral de Júlio de Castilhos paira

sobre o encosto da cadeira e a oferece a Borges, demonstrando que a lembrança do

“Grande Morto” continuava presente, orientando e protegendo a atuação do seu

discípulo e sucessor. As legendas novamente ancoram a imagem, enfatizando a ideia.

Didático, Zé Gaúcho se refere a Augusto Comte e aos princípios que inspiraram

Júlio de Castilhos na elaboração de doutrina política positivista. Tratava-se de dar nova

expressão à recorrente evocação da figura de Castilhos pelos republicanos gaúchos, uma

figura política menos disponível a críticas, pois glorificada pela morte prematura e

inesperada, como justificativa para legitimar Borges como seu herdeiro político.

Procurando-se sintetizar o que foi apresentado, observa-se que a Kodak, por

meio das charges sobre política que veiculou em suas capas, expressou uma visão crítica

sobre as práticas de políticos e governantes aos níveis nacional e municipal, mas

assumiu posição de adesão e propaganda da política estadual. Tais manifestações

apareceram também em outros tipos de conteúdos, visuais e textuais, publicados no

interior da revista. Retratos de políticos do PRR e panoramas de obras do governo

estadual também serviram para dar visibilidade e promover pessoas e iniciativas,

distinguindo-as frente à comunidade leitora da revista, cujas expectativas estavam

representadas nessas ações.

A esse respeito, vale destacar um aspecto até aqui omitido, mas que contribui

para ampliar a compreensão sobre as práticas editoriais do periódico e as relações entre

a imprensa e a política. Na sua edição inaugural, de 28/09/1912, a capa da Kodak foi

inteiramente ocupada pela fotogravura de um monumento que acabara de ser concluído

em uma praça da cidade, mas que ainda não havia sido inaugurado. (Fig. 18) A

princípio, ao publicar uma fotogravura em cores da obra, que acabara de ficar livre dos

tapumes que ocultaram a sua construção da população, a revista estava cumprindo o seu

programa como impresso ilustrado de variedades, mostrando-se tecnicamente

capacitada e tematicamente atualizada como veículo de comunicação.

Mas se formos um pouco mais longe e considerarmos que este monumento era

uma encomenda do governo do Estado para glorificar em bronze a memória de

Castilhos e que ele havia sido construído na principal praça da cidade, centro dos

poderes executivo, judiciário e religioso, e que Lourival Cunha, fundador e diretor-

proprietário da revista, também era correligionário da Federação e militante do PRR, o

significado da seleção desta imagem como a primeira que o comprador da primeira

Kodak veria se modifica.

Fig. 18 – Fotogravura. Capa. Kodak, Porto Alegre, ano 1, n. 1, 28/09/1912.

Lourival Cunha, que começou sua carreira como jornalista em Jaguarão, em

1907, dirigindo um jornal da situação, manteve estreita convivência com o alto escalão

republicano gaúcho nos anos que precederam o lançamento da Kodak. Desde fevereiro

de 1912, ele atuava como secretário geral da ‘Junta Central Popular Pró-Borges’, órgão

que reunia a “mocidade castilhista” e cujo objetivo era fazer a propaganda organizada

da candidatura de Borges à presidência do Estado.

Lançada no final de setembro de 1912, a Kodak surgiu, portanto, às vésperas da

eleição, que seria realizada em 25 de outubro, e com Lourival envolvido na campanha

governista. Assim sendo, é pertinente perceber a veiculação da fotografia do

monumento a Castilhos na capa da Kodak n. 1 também como uma declaração de opção

política, uma declaração de voto.

Além dos compromissos políticos dos seus produtores, a presença das ‘cores

políticas’ na publicação também se explica por ter sido de praxe em vários outros

periódicos nacionais do gênero, nos quais a política marcou presença, ganhando

fluência sob a expressão mais coloquial, lúdica e libertária da ilustração de humor. A

partir dessas colocações, acredita-se terem sido evidenciadas algumas das relações nas

quais estavam inscritos os produtores da revista Kodak, bem como os compromissos

políticos que em algum grau orientaram as temáticas reunidas na revista e as formas

como foram abordadas. Trata-se de fazer emergir o diálogo entre a revista e a sociedade

e o papel da imprensa na expressão, dinamização e construção da realidade.

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