Imprensa alternativa, contracultura e produção de subjetividade
Transcript of Imprensa alternativa, contracultura e produção de subjetividade
Imprensa alternativa, contracultura e produção de subjetividade
AGUIAR, Leonel Doutor em Comunicação/UFRJDepartamento de Comunicação/PUC-RioRio de [email protected]
GT: História da mídia alternativa
Resumo
A proposta deste artigo é pensar as relações entre mídia, poder e produção
de subjetividade, a partir do estudo de caso do jornal alternativo Luta & Prazer,
editado na cidade do Rio de Janeiro e que circulou entre 1981 e 1983. A linha
editorial do tablóide estava voltada para a divulgação das propostas da política do
cotidiano: os ideais do movimento da contracultura, as terapias psicológicas
centradas no corpo, o ativismo ambientalista, a medicina alternativa e as práticas
de origem oriental.
A análise que empreendemos aponta que o jornal Luta & Prazer visava
construir estratégias específicas de luta que significavam questionar como o poder
se exerce e quais são as relações da produção de subjetividade com o poder. A
partir dos conceitos de Foucault e Guattari, entendemos que nosso enfoque de
mídia alternativa – uma prática micropolítica como resistência ao exercício do
poder – ressalta que os campos de luta contra as experiências fundamentais de
dominação são as problematizações na ordem da subjetividade. Portanto, a
dominação na ordem da subjetividade surge como problema político central na
cultura contemporânea.
Palavras-chave: imprensa alternativa; micropolítica; novas subjetividades.
Introdução
Podemos delimitar, de uma maneira genérica, a imprensa alternativa como
um conjunto de jornais – geralmente em formato tablóide – e revistas que não se
enquadram dentro dos esquemas econômicos e políticos da indústria cultural,
conforme esse conceito foi formulado por Adorno e Horkheimer (2002:7-74).
Segundo Kucinski (2003:14-15), no Brasil, existiram basicamente duas
modalidades de jornais alternativos: surgidos na década de 60, os de cunho
político, com seus ideais nacionalistas e populares ou marxistas; e, a partir dos
anos 70, também as publicações influenciadas pelos movimentos de contracultura
norte-americanos.
De acordo com esse autor, que pesquisou a imprensa alternativa entre 1964
e 1980, circularam no país, nesse período, cerca de 150 periódicos de vários tipos
que tinham, em comum, o embate político e editorial contra a ditadura militar.
Contrapor-se aos interesses dominantes e ao discurso oficial dos governos
militares foi também outro eixo em comum da imprensa alternativa – batizada
assim em 1975 pelo jornalista Alberto Dines e que já tinha sido chamada de
imprensa underground e nanica. Desse total, apenas 25 jornais ultrapassaram a
marca de cinco anos de edição contínua; entretanto, o fechamento dos alternativos
não se vincula apenas ao fim da ditadura. “Podemos entender o próprio
surgimento da imprensa alternativa dos anos 70 como uma das últimas grandes
manifestações da utopia no Brasil” (Kucinski, 2003: 27). Ou por outra: a extinção
dos jornais alternativos está inserida no próprio fim da idéia de utopia.
Projeto cultural
Entre 1981 e 1983, o jornal Luta & Prazer torna-se mais uma
possibilidade para se realizar essa experiência do jornalismo alternativo.
Produzido no Rio de Janeiro pela editora Rádice – que antes havia publicado a
revista Rádice, com informações sobre a área psi –, o periódico mensal teve uma
linha editorial voltada, principalmente, para a “política do cotidiano”, com suas
“práticas alternativas” na vida social – na saúde, educação, moradia, transporte,
meio ambiente, alimentação. Com redações no Rio, São Paulo e Belo Horizonte,
além de correspondentes em várias capitais, o primeiro número foi lançado em
agosto de 81, com 28 páginas, e estampava a seguinte manchete: “Como a
esquerda vai pra cama?”. Com uma tiragem de 35 mil exemplares, esse número
trouxe ainda matérias sobre as alternativas de militância política, as creches e
escolas experimentais, as comunidades alternativas, as clínicas sociais de
psicologia e os novos artistas. “Tribos urbanas” foi o título da manchete de capa
do segundo número, que trouxe dez páginas de reportagens e artigos sobre essa
inovadora forma de habitação comunitária – os jovens de classe média que
deixavam as casas familiares para se agruparem em comunidades mais do que em
“repúblicas estudantis” ou simples moradias coletivas. “Pensava numa revolução
molecular a partir dessas pequenas células sociais” (Kehl, 1981:7).
Já o número 8 do Luta & Prazer, de abril de 1982, com 24 páginas,
apresentou três chamadas de capa sobre temas políticos: “Temas malditos nos
partidos políticos”; “Eleição é papo de cartomante” – artigo sobre as eleições
estaduais de 82 – e “Diálogo de gerações”, entrevista com quatro ex-guerrilheiros
urbanos. Atravessando o fundo vermelho da capa, um machado cravado no toco
que restou de uma árvore. Logo abaixo do título do jornal, o lema que norteia o
trabalho editorial: “este número está de rachar”. Em um dos artigos desse número,
intitulado “Estômago, sexo e fantasia”, o autor discute a conceituação de poder
para além dos aparelhos ideológicos de Estado e as reivindicações de grupos
sociais politicamente minoritários que não encontram acolhimento nos partidos
políticos tradicionais. “As bandeiras levantadas pelas chamadas ‘minorias’ são
questões diretamente políticas que, combatendo a opressão ao nível da vida
cotidiana, lutam por um novo modo de vida” (Vieira, 1982:15).
Em seu número 13, de outubro de 1982, o jornal teve tiragem anunciada de
20 mil exemplares, circulando com 12 páginas e um anúncio dos candidatos do
PT para as eleições estaduais ocupando a contracapa. Na capa, apenas a manchete
– “Nossas eleições” – e um desenho com cinco bucólicos animais e uma legenda
onde se lê “para colorir”. Logo abaixo do título do jornal, o lema editorial: “paca,
tatu, cotia não”. Um dos artigos, com o título “Sem anos de eleição”, no qual o
autor realiza um balanço histórico das eleições desde a época do Império, aponta a
novidade da experiência eleitoral de 1982. “A força das eleições depende do grau
e qualidade da luta social, desde os moradores de bairros, dos trabalhadores nos
sindicatos e fábricas, dos estudantes e dos movimentos sociais mais diversos”
(Serra, 1982:3).
O número 18, o último do jornal, saiu em maio de 83, com 30 mil
exemplares e distribuição gratuita, mesmo mantendo a venda de assinaturas e
venda em bancas. Na capa, nenhuma manchete: apenas uma foto com vários tipos
de calçados enfileirados e uma grafia de pés descalços saindo da página. Na
penúltima página, uma declaração da política editorial – “o Luta & Prazer não é
só um jornal: é um projeto cultural” – e a saudação entusiasmada pelo surgimento
de um novo informativo – o Comum-Unidade – editado pela Associação
Brasileira de Comunidades Alternativas. Nenhum aviso sobre a possibilidade de
encerramento das atividades.
A apresentação de alguns exemplos de matérias jornalísticas do Luta &
Prazer, voltadas para a divulgação e o debate das propostas de uma política do
cotidiano, serve exatamente para a discussão da hipótese que permeia a produção
deste artigo. Enfim: o jornal tornou-se um dispositivo para a construção de
estratégias de lutas políticas visando questionar como o poder se exerce no
cotidiano e quais as suas relações com a produção de subjetividade.
Perspectiva teórica
A proposta desse artigo é realizar a análise da imprensa alternativa pela
perspectiva teórica dos autores que elaboraram os conceitos que criam as
condições de possibilidade para pensar a crise global que afeta a nossa
Contemporaneidade para além das discussões voltadas para as relações sociais
explícitas. A inovação teórica desses autores se dá exatamente por mostrá-la em
sua abrangência enquanto “crise dos modos de subjetivação, dos modos de
organização e de sociabilidade, das formas de investimento coletivo de formações
do inconsciente” (Guattari e Rolnik, 1986:191). A atual crise é a dos modos de
semiotização do capitalismo, que envolve as semióticas de modelização da
produção de subjetividade indicadas para o controle social, superando o nível das
semióticas econômicas. Isto significa que essas crises não conseguem mais ser
explicadas por teorias tradicionais, sejam sociológicas ou econômicas. Por outro
lado, a emergência da singularidade como processo semiótico tenta romper com
determinadas categorias da tradição filosófica e científica, recusando tanto a
privatização capitalista pressuposta pela noção de indivíduo quanto o papel
constituinte da consciência, isto é, do sujeito como faculdade soberana de
representação e de simbolização.
Podemos afirmar, seguindo este caminho teórico através do qual nos
estenderemos analisando a cultura contemporânea, que os modos de produção do
capitalismo extrapolam a ordem do capital e abrangem, principalmente, o modo
de controle da produção de subjetivação. “O capital ocupa-se da sujeição
econômica e a cultura, da sujeição subjetiva” (idem, 16). Neste sentido, os termos
“comunicação de massa” ou “cultura de massa” devem ser compreendidos como
dispositivos que operam a compartimentação do modo de produção de
subjetividades, fabricando individualidades serializadas: a “comunicação de
massa” é, portanto, o elemento fundamental da produção de subjetividade nos
modelos capitalistas, fabricando indivíduos normalizados e articulados segundo
sistemas de valores hierárquicos e de submissão. No capitalismo contemporâneo,
a questão política central é a produção de subjetividade, que vai além da produção
da subjetividade individuada e abrange uma produção de subjetividade social:
uma produção de subjetividade encontrada em todos os níveis da produção e do
consumo.
É neste quadro que a emergência dos novos sujeitos da Histórica implica
na construção de linhas de fuga ao poder ubíquo dessa máquina capitalista de
produção de subjetividade, enxergando – nas rupturas abertas pelos processos de
singularização – uma recusa que visa construir novos modos de sensibilidade e
criatividade, produtores de uma subjetividade singular. Tais processos de
singularização, ao desenharem novas cartografias do desejo, irredutíveis ao
controle centralizado, criam condições de possibilidade para a emergência de
revoluções moleculares, constituindo micropolíticas. “Toda problemática
micropolítica consistiria, exatamente, em tentar agenciar os processos de
singularidade no próprio nível de onde eles emergem” (idem, 130).
Os processos de singularização abrem rupturas na individualidade
serializada produzida pela “cultura de massa”, nesta subjetividade normalizada
que é a de um sujeito-objeto da administração e da organização capitalistas. Já o
devir liga-se à possibilidade ou não de um processo de singularização, no qual
singularidades podem entrar em ruptura com as estratificações dominantes. Os
novos movimentos sociais – e também inúmeros jornais alternativos – sempre
apostaram na multiplicidade e na pluralidade, rompendo com as propostas de
proteção da identidade cultural, pois a identidade significa o retorno ao Mesmo,
ao Idêntico. Enquanto atuarem como processos de singularização, de autonomia
ou de micropolítica em suas diferentes formas de resistência molecular, esses
movimentos podem manter, em permanente questionamento, o projeto de controle
social em escala planetária.
Para Guattari e Rolnik, a micropolítica implica, enquanto uma cartografia
do desejo, na invenção da autonomia que não se circunscreve apenas às práticas
alternativas, aos movimentos das “minorias” organizadas ou às ações de revolta,
resistência e contestação. Partindo desses territórios de existência, esta cartografia
os ultrapassa e desenha novos campos de ação e de vida, produzindo autonomias
que podem alterar a relação de poder na sociedade. Entretanto, apesar da
possibilidade de rupturas, os novos movimentos sociais – e, consequentemente, a
imprensa alternativa – correm o risco da reiteração do que combatem,
aprisionando os novos territórios vitais nas antigas territorialidades do já pensado
e do já desejado.
Em oposição, há uma visão teórica que descreve os novos movimentos
sociais como meras formas arcaicas e residuais de modos de subjetivação,
devendo ser superadas ou reutilizadas de um modo moderno. Esta é a visão da
hegemonia neoliberal da Escola de Chicago e de Freedman, que propõe uma
política de “darwinismo social” para superação dos arcaísmos, onde a “seleção”
tem por base uma axiomática fundada na propriedade privada, no lucro e na
segregação social. Já outra visão – tipo “terceira via” social-democrata de
Giddens (1996) – aposta na “recuperação” dos novos movimentos sociais através
do deslocamento da política do eixo leste/oeste para o eixo norte/sul, reduzindo a
problemática a uma geopolítica e a um “assistencialismo” cultural para
“modernizar” os segmentos desfavorecidos.
Por outro lado, enquanto processo de singularização que assume a finitude
humana, a produção de cartografias do desejo aponta para o provisório, o precário
e o contingente. Assumir, entretanto, que os processos históricos também são
finitos e falíveis, não significa que esta constatação acarrete em perda de
importância para um acontecimento emergente. Se a imprensa alternativa tornou-
se um domínio capaz de provocar uma ruptura radical nas significações
dominantes, também nos novos movimentos sociais se encontram os núcleos de
resistência “ao rolo compressor da subjetividade capitalística, da
unidimensionalidade, do equivaler generalizado, da segregação, da surdez para a
alteridade” (Guattari, 1992:115).
Neste caso, podemos seguir a proposta de Guattari para a construção de
uma ecologia do virtual que vise promover paradigmas ético-estéticos para o
campo social, apontando para a dimensão da criatividade nas práticas sociais.
Além da micropolítica, outros domínios como a Filosofia e a ciência, também
podem se constituir em lugares de resistência às redes de significações
dominantes:“A potência estética de sentir, embora em igual direito às outras – potências de pensar
filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir politicamente – talvez esteja em
vias de ocupar uma posição privilegiada no seio dos agenciamentos coletivos de
enunciação de nossa época” (idem, 130).
Em suma: a ecologia do virtual se propõe a funcionar como um dispositivo
de criação de novos modos de subjetivação. Esta ecologia do virtual – tal como
exercido em sua prática teórica pelo jornal Luta & Prazer, enquanto uma
dimensão possível da imprensa alternativa – terá por tarefa preservar “as espécies
ameaçadas da vida cultural cotidiana” e ainda engendrar “as condições de criação
e de desenvolvimento de formações de subjetividade inusitadas” (idem, 116). Ou
seja, se assume como produção de subjetividade.
Para esses pensadores contemporâneos, os acontecimentos da década de 60
abriram um novo ciclo revolucionário, instaurando processos que permitiram a
tomada de consciência da transformação da qualidade social da produção e dos
processos de trabalhos; entretanto, foram exatamente os partidos comunistas e
socialistas tradicionais que não perceberam a força dos novos modos de produção
social emergentes com o capitalismo mundial integrado. Essa nova forma do
capital como força transformadora do social tornou-se capacitada para traduzir
qualquer seqüência da vida em termos de troca e de sobredeterminação com a
urgência e a necessidade das operações de quantificação econômica e de comando
político. A integração mundial veio possibilitar ao capital um controle de todos os
tempos singulares da vida: “a família, a vida pessoal, o tempo livre e talvez os
fantasmas e o sonho, tudo está a partir de então sujeito às semióticas do capital”
(Guattari e Negri, 1987:15). Este contexto de assimilação progressiva da
sociedade à lógica do capital e de desterritorialização dos processos produtivos
acaba por converter as classes operárias em “massa” de consumo.
É também a partir da década de 60 que os novos modos de subjetivação
acabam por deslocar os antigos cenários de luta de classes, instaurando-se no
imaginário e no campo cognitivo da Contemporaneidade. A manifestação do
singular como multiplicidade afirma que só as singularidades são capazes de
movimentos criadores das diferenças e de romperem com a lógica redutora da
dominação capitalista. Este é o contexto de produção das novas subjetividades,
que devem ser pensadas a partir das noções de micropolítica e revolução
molecular, relacionadas com as concepções inovadoras da noção de poder. Isto é,
pensar as singularidades significa criar condições de possibilidades para a
construção das subjetividades coletivas, tomando como ponto de partida os
universos dos desejos. Se o poder emerge e sustenta-se por uma rede múltipla e
dispersa que abarca todos os estratos da vida, a luta política deve procurar também
múltiplos pontos de rupturas. O campo da política não pode mais ser reduzido à
luta de classes: uma “micropolítica do desejo” deve investir em uma
multiplicidade de objetivos ao alcance imediato dos mais diversos conjuntos
sociais. O acúmulo de lutas parciais pode ou não desencadear lutas coletivas
gerais.
É esta analítica das formações do desejo no campo social – a micropolítica
– que realiza o cruzamento entre o nível das diferenças sociais mais amplas – o
nível molar – com o nível molecular. As lutas sociais são, simultaneamente,
molares e moleculares, não existindo entre estes dois níveis uma distinção
opositiva. No nível molecular, o poder lança sua estratégia, faz agenciamentos e
modeliza o desejo; no nível molar, o que se tem é o efeito global do poder, a partir
dessa captura ao nível molecular:“A ordem molar corresponde às estratificações que delimitam objetos, sujeitos,
representações e seus sistemas de referência; a ordem molecular é a dos fluxos, dos
devires, das transições de fases, das intensidades” (Guattari e Rolnik, 1986:321).
A partir dos marcos teóricos de Foucault, Deleuze e Guattari, nossa análise
apresenta-se, portanto, em dois eixos: reconhece o processo de produção de
subjetividades através dos dispositivos de comunicação de massa como uma
modalidade de “indústria de base” do capitalismo mundial integrado e destaca os
pontos de ruptura nos modos de subjetivação hegemônicos, linhas de fugas onde
pode emergir uma multiplicidade de singularizações.
É neste sentido que entendemos a noção de máquina desejante ou
produção desejante como multiplicidade pura que supera as categorias do múltiplo
e do Uno, rompendo com o conceito freudiano de desejo enquanto produção do
inconsciente e associado à representação:“O inconsciente funciona como uma usina e não como um teatro (questão de produção e
não de representação); o delírio, ou o romance, é histórico-mundial, e não familiar
(deliram-se as raças, as tribos, os continentes, as culturas, as posições sociais); há
exatamente uma história universal, mas é a da contingência (como os fluxos, que são o
objeto da História, passam por códigos primitivos, sobrecodificações despóticas e
decodificações capitalistas que tornam impossível uma conjunção de fluxos
independentes)” (Deleuze e Guattari, 1995:7).
O desejo é uma produção: tem a capacidade de produzir seus objetos e os
modos de subjetivação que lhes correspondem. São as “máquinas desejantes”,
forças que investem o mundo social, que percorrem os acontecimentos sociais e
produzem as subjetividades. As estratégias do poder passam pela captura dos
investimentos desejantes: é no nível do desejo que se dá o funcionamento do
poder, pois administrar o desejo é fundamental para um sistema totalizante. Por
ser uma força capaz de dar sentido ao mundo, capturar o desejo torna-se uma
condição indispensável para o funcionamento do poder da máquina capitalista. O
capital aparece como o pressuposto natural do trabalho, mas não é o produto do
trabalho; além de se opor às forças produtivas, o capital rebate-se sobre toda a
produção e constitui uma superfície onde se distribuem as forças e os agentes de
produção, que se tornam o seu poder:“O inconsciente, o desejo não tem complexos, ele produz. O quê? Sujeito? Algumas
vezes, em determinadas conjunturas, mas não necessariamente. O inconsciente maquínico
produz tudo: a terra, os homens sobre a terra, suas relações, territórios com múltiplos
devires possíveis” (Ewald, 1991:90).
No campo da política, as novas singularidades propostas pelos diversos
movimentos sociais emergem como resistência e ruptura em relação aos processos
de usinagem homogeneizante das subjetividades submetidas à ordem do capital.
As possibilidades de construção de outras subjetividades, que se produzam como
ruptura na subjetividade dominante de "massa-consumidora", são múltiplas e
várias, não se limitando ao campo dos novos movimentos sociais.
Como um operador semiótico a serviço de formações sociais
determinadas, o capital assume a regulagem e a sobrecodificação das relações de
poder próprias às sociedades contemporâneas. Para manter sua reprodução, o
capitalismo é obrigado a construir e impor seus próprios modelos de desejo,
produzindo um “inconsciente maquínico” (Guattari, 1988) que se expande muito
além dos limites do inconsciente psicanalítico como dispositivo intrapsíquico. A
mídia, a publicidade e os equipamentos coletivos reportam-se incessantemente às
técnicas de recentralização do inconsciente no sujeito individuado, mas produzem,
de fato, um “inconsciente maquínico” que, além de abranger as individualidades,
também produz intensamente as forças sociais e as realidades históricas.
Mas o “inconsciente maquínico” também pode reterritorializar novas
formas de singularidades. São “fluxos esquizo" que abrem as possibilidades de
novos agenciamentos de enunciação: simultaneidade de sujeito, objeto e meio de
expressão, ruptura da tripartição entre o campo da realidade, o campo da
representação e o campo da subjetividade. Os agenciamentos coletivos de
enunciação produzem seus próprios meios de expressão, pois trabalham
simultaneamente os fluxos semióticos, os fluxos materiais e os fluxos sociais. Por
não coincidirem com as individualidades biológicas, os agenciamentos coletivos
de enunciação possuem um caráter diferente de uma enunciação individuada,
instância reificadora da significação dominante. A enunciação maquínica
circunscreve grupos-sujeitos que atravessam ordens diferentes, possibilitando a
proliferação de um conjunto de máquinas desejantes, produções singulares e
heterogêneas: os novos movimentos sociais. “Só um grupo-sujeito pode trabalhar
fluxos semióticos, quebrar as significações, abrir a linguagem para outros desejos
e forjar outras realidades" (Guattari, 1981:179).
A emergência das lutas pela afirmação das novas subjetividades e o fim
dos projetos totalizantes revolucionários são alguns dos sintomas da perda dos
pressupostos ético-políticos referenciais das democracias modernas. A
Contemporaneidade defronta-se com a construção do processo histórico, pois,
com o declínio dos ideais de “bem supremo” e de “ser supremo”, não há mais
origem – passado – ou finalidade – futuro – que possam dar conta do tempo
presente, de responder às nossas questões do presente.
Conclusão
O processo de globalização veio consolidar o capitalismo mundial
integrado, que tende cada vez mais a descentrar seus focos de poder das estruturas
de produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signos, de
sintaxe e de subjetividade, especialmente pelo controle que exerce sobre a mídia,
a publicidade e as sondagens de opinião. Na Contemporaneidade, o capitalismo
se sustenta sobre diversos instrumentos, agrupados principalmente em quatro
regimes semióticos: econômico, jurídico, técnico-científico e de subjetivação,
sendo estes centralizados nas máquinas midiáticas e os demais, em outras
máquinas, tais como aquelas relativas à arquitetura, ao urbanismo, aos
equipamentos coletivos.
A articulação ético-estético promovida pelo registro da ecologia do virtual,
que teve entre suas estratégias os jornais alternativos com linha editorial vinculada
a políticas do cotidiano, nos permite pensar as implicações de uma perspectiva
ecosófica sobre a concepção da subjetividade. Também possibilita colocar a
comunicação midiática como campo político hegemônico da Contemporaneidade,
por funcionar como máquina de produção de subjetividades moduladas pelo
capitalismo global. Uma das tarefas da ecologia do virtual consiste em fazer
atravessar a sociedade capitalista da era da mídia para uma era pós-mídia, na qual
os grupos-sujeito serão capazes de uma reapropriação da mídia para geri-la em um
processo de singularização. Outra tarefa é produzir linhas de rupturas no projeto
de uniformização midiática, reinventando a relação com o corpo, o tempo e os
espaços da vida cotidiana.
As problemáticas produzidas pelos novos movimentos sociais – dentre as
quais, a questão da mídia alternativa – resultam da ultrapassagem dos
antagonismos de classe do século XIX com seus campos homogêneos e
bipolarizados de subjetividade para o contexto contemporâneo de multiplicação
dos antagonismos, de rupturas, descentramentos e processos de singularização.
Coube às primeiras formas de sociedade industrial serializar a subjetividade das
classes trabalhadoras. A solidez da consciência de classe do operariado
desmanchou-se no decorrer da segunda metade do século XX, quando a sedução
da máquina midiática diluiu as resistências aos valores unidimensionalizantes do
capital e produziu um difuso sentimento de pertinência social, que acabou
descontraindo as polarizações modernas. O capitalismo global só potencializa a
produção de subjetividades para serem colocadas a serviço da nova ordem social:
uma subjetividade serial para as classes assalariadas; uma outra subjetividade
correspondendo à massa de não-garantidos nos direitos sociais básicos; e uma
subjetividade de padrão elitista, às classes dirigentes.
A adoção de uma nova ética implica em distinguir os agregados
imaginários de massa dos agenciamentos coletivos de enunciação, opondo os
mecanismos de repetição vazia aos maquinismos vivos “autopoiéticos” (Varela,
1989). Discutir as relações entre comunicação midiática e crise global é fazer do
diagrama da imprensa alternativa uma “caixa de ferramentas” teóricas para pensar
questões contemporâneas. A perspectiva de uma ecologia do virtual engendra
novos universos de referência e novos territórios existenciais, diferentes da visão
reducionista correlativa ao primado da informação como trânsito incessante nos
sistemas midiáticos.
Bibliografia
ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. A indústria cultural – o Iluminismo como mistificação das massas. In: ADORNO, T. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 07-74.DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. EWALD, François. A esquizo-análise. In: ESCOBAR, Carlos Henrique. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991.FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.____. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. ____. História da sexualidade I: vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1980.GIDDENS, Antony. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Ed. UNESP, 1996.GUATTARI, F. Revolução molecular: as pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. ____. O inconsciente maquínico. Campinas: Papirus, 1988.____. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
____. Oralidade maquínica e ecologia do virtual. In: ____. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p. 113-122.
____ e NEGRI, Antonio. Os novos espaços da liberdade. Coimbra: Centelha, 1987.____ e ROLNIK, Sueli. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.KHEL, Maria Rita. Morar junto é. Luta & Prazer. Rio de Janeiro, set. 1981. p. 7.KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Edusp, 2003.SERRA, Antonio. Sem anos de eleição. Luta & Prazer. Rio de Janeiro, out. 1982. p. 2.VARELA, Francisco. Autonomie et connaissance. Paris: Seuil, 1989.VIEIRA, Liszt. Estômago, sexo e fantasia. Luta & Prazer. Rio de Janeiro, maio 1982. p. 15.