II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial2 não ter um caminho diferente. Tal como o...
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II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial
O livro, a ilustração e o diálogo dos signos Rodrigo da Costa Araújo (UFF/FAFIMA)1
Resumo: O livro infanto-juvenil contemporâneo, como um palimpsesto visual e criativo, esconde nos seus múltiplos códigos intricadas relações intersemióticas. O projeto gráfico, a ilustração, o encantamento, o jogo verbo-visual fazem dessas narrativas um entrelaçamento na galáxia de significantes que desenham os contornos sensíveis de um espaço produtivo de significações da leitura contemporânea e do mundo imaginário. Ler e ver nesse tapete tecido/narrativo por mãos alheias, reforçam que, através do jogo incessante dos signos, devemos virar o tecido do avesso e desmanchá-lo, desenredando as tramas desse bordado. Com essas premissas, e norteando-se por uma concepção abrangente do texto literário e do signo,- pautadas na semiologia barthesiana - esta leitura do livro como objeto artístico propõe, através da obra João por um fio (2005), de Roger Mello estabelecer relações interartes, de intertextualidade, de combinação e fusão de códigos que compõem a tessitura verbo-visual. Palavras-chave: Roger Mello; João por um fio; leitura; texto e ilustração
“O texto [...] não é senão a lista aberta dos fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como sementes). O texto tem uma forma humana, é uma figura, um anagrama do corpo? Sim, mas de nosso corpo erótico”. (BARTHES, 2004, p.24)
I. Interfaces entre texto & ilustração
Se o texto quer dizer “tecido”, “hifologia” - “hiphos é o tecido e a teia da aranha” 2 -
segundo o semiólogo Roland Barthes em O Prazer do Texto, - a ilustração, também, parece
1 Professor de Literatura infanto-juvenil na FAFIMA - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé, Mestre em Ciência da Arte, pela UFF e Doutorando em Literatura Comparada, também, pela UFF. E-mail: [email protected] 2 BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. p.75.
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não ter um caminho diferente. Tal como o título que nomeia o livro - João por um fio
(2005) - paratexto3 por excelência - a metáfora do texto como “hifologia” à luz de Barthes
(p.75, 2004) teia e tecido, textura e ilustração podem ser lidos como elementos
significativos, construídos a partir do entrelaçamento de constelações de significantes4, que
desenham os contornos sensíveis de um espaço produtivo de significações do livro infantil
contemporâneo e do mundo imaginário.
Destrinçar os inúmeros fios da ficção de Roger Mello, sempre articulados aos
mundos do verbal e do visual, implicarão, portanto, proceder análises imbricadas, a fim de
fazer articular leituras semiológicas, intertextuais e polifônicas, na acepção, de Bakthin,
atravessadas por diversos registros, outras linguagens, muitos discursos.
A história, imbricada ao mundo do tecido, - já de início com o título metalinguístico
- encerra em si o fim e o caminhar de um ponto a outro como forma de destecer as colchas
ou a arte das fiandeiras, e, dessa massa de fios tecidos, da história contada nos pontos em
cuidados contados, encontrar o motivo primeiro - certo “nó”- a matriz geradora de um
processo, a história de João -o protagonista-pescador.
Se, na atualidade, todos os textos parecem se encontrar (se costurando?), e se o
mundo da imagem parece ganhar inúmeros espaços em maior ou menor grau, urge repensar
os projetos de leitura, principalmente a leitura da ilustração, como possibilidade de eclodir
relações plurais - um entendimento “hifológico” na travessia e acesso a universos
simbólicos: a leitura da ilustração, costurada pelos fios da escrita e pelas vozes subterrâneas
que as entrelaçam.
3 “Um trabalho literário consiste, inteiramente ou essencialmente, de um texto, definido (muito minimamente) como uma sequência mais ou menos longa de declarações verbais que são mais ou menos dotadas de significação. Mas tal texto é raramente apresentado sem estar adornado, reforçado e acompanhado de um certo número de outras produções, verbais ou não, tais como o nome do autor, um título, um prefácio, ilustrações. E apesar de que nós nem sempre saibamos se essas produções devem ou não ser vistas como pertencendo ao texto, em todo o caso elas rodeiam o texto e o estendem, precisamente para apresentá-lo, no sentido usual deste verbo, e num sentido mais forte: fazer presente, garantir a presença do texto no mundo, sua `recepção´ e consumo sob a forma (atualmente, pelo menos) de um livro. Esse tipo de produção, que varia em extensão e aparência, constitui o que eu chamei [...] de paratexto [...]. O paratexto é aquilo que permite que o texto se torne um livro e seja oferecido enquanto tal para seus leitores e para o público de um modo geral [...] (GENETTE, 1982, p. 1).
4 A Semiologia do texto nos ensina que todo discurso (todo texto) é uma malha bem tecida, o que se justifica na própria origem do vocábulo: a primeira acepção do latim textum é tecido. Aqui, nesse caso, a ilustração também será lida como discurso, como malha bem tecida, semelhante a palavra “escritura” usada no sentido barthesiano de palavra movimento, com sentidos espiralados, formando uma escrita-entre e um texto-fruição.
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Fiando, assim, a história e a ilustração, esses “fios” podem ser concebidos como
veículo, além da imagem do texto em si, como para uma viagem ao interior de si mesmo,
promovendo um auto-conhecimento, costurando fios da memória, tanto do protagonista,
como do leitor. Ligados, imbricados, costurados, alinhavados pela linha ao fio, texto e leitor
terão de se aproximar das imagens e das palavras, caminhando entre cores, traços, gestos,
texturas, pontes indispensáveis ao mundo mágico dos tecelões, das escolhas dos matizes.
II. O jogo cifrado e secreto dos signos da vida
“O interstício da fruição, produz-se no volume das linguagens, na enunciação, não na sequência dos enunciados” (BARTHES, 2004, p.19).
Pierre Brunel em Dicionário de Mitos Literários apresenta o mito das fiandeiras
como “aquele que nos prende ainda à dinâmica imaginária mais fecunda” (1997, p. 370). O
trabalho das fiandeiras pode ser associado a tradução criativa. Como em João por um fio
(2005), as ações, pensamentos e modo como vive o personagem estão associados não
somente ao fazer, mas ao refazer, uma re-significação estimulada entre a forma dada ou o
conteúdo do passado e os ajustamentos inevitáveis feitos por um presente em constante
mudança. Nesse sentido, retoma-se aqui a riqueza estética das formas de trabalho das
fiandeiras como recurso ilustrativo do livro para a tradição criativa de narrar a vida do
personagem.
Nessa urdidura textual (ou visual?) a ilustração traduz a memória e a vida pessoal
do protagonista no trabalho da fiação associado entre a gestualidade expressiva da produção
das fiandeiras e a linguagem da literária. A sintaxe visual, nesse sentido, em conjunto com
as palavras, reforçam a conotação ou o “discurso secreto” como quis Roland Barthes. A
imagem, para a semiologia e para Martine Joly é constituída por um discurso secreto, essa
se expõe de forma cifrada, ela “não é um signo [...], mas um texto, tecido misturado de
diferentes tipos de signos e que, com efeito, nos fala “secretamente” (2005, p.179). Por
outras palavras, pautando-se na leitura semiológica, essencialmente a barthesiana, “ a
imagem não se significa ela mesma como objeto do mundo, mas baseia-se num primeiro
nível de significação, a que se chamou denotativo ou referencial, para significar outra coisa
num segundo nível” (2005, p. 179).
Barthes chamou a este segundo discurso “o discurso da conotação”, segundo a
semiologia francesa. Utilizando essa conotação da imagem presente no livro em questão, a
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ilustração torna-se o significante de um outro significado (liberdade, “mundo infantil”,
signos da memória, lembrança), ela entra sempre em ação qualquer que seja a imagem. A
interpretação desse processo iconográfico consiste precisamente em descodificar, para além
do seu aspecto denotativo, o aspecto conotativo da mensagem visual, o seu “discurso
secreto” e lúdico no livro.
De certa forma, a ilustração, atrelada a poesia, suscita os processos artesanais e uma
vida fiada em constantes produções na demanda do tecido, no ritmo “do fazer, do costurar”
que evoca um outro tempo. Assim como o artista criador, a fiandeira fia não apenas porque
quer ou porque gosta, mas porque necessita. O mesmo caso ocorre com o protagonista em
sua arte têxtil, em modos de vida. Em seus gestos e realizações artísticas, através das
imagens, estão sinais de experiências anteriores, que constantemente transformadas fazem
emergir o novo. Sua capacidade, tecida entre a narrativa e a ilustração, e consequentemente
ao mito das fiandeiras, é ser original, recriando incansavelmente o que já é vida.
Fiando a vida ou o oficio de fiar a vida, é uma consciência de várias linhas ou fios
produzidos a partir de uma matéria-prima. No caso aqui da fiação, da vida enquanto forma,
enquanto processo de mudança, enquanto aprimoramento. Fio fiado, fio torcido, fio do
tecer, fio do destino, cordão umbilical, fio da vida, fio do ritmo, tempo, fio invisível entre
duas ou mais pessoas, diz respeito não somente ao presente, mas também ao passado e ao
futuro, elo coletivo da memória coletiva do tempo. Enfim, desenhada, fiada ou enovelada a
ilustração nesse processo da trama, esconde os sentidos da vida, a narrativa dos
acontecimentos, a urdidura e a lembrança do passado, as ações infantis do protagonista
desenhadas em pequenos gestos.
Segundo Chevalier e Gheerbrant, o trabalho de tecelagem é um ato de criação, pois
“quando o tecido está pronto, o tecelão corta os fios que o prendem ao tear” (2001, p. 872).
O tecido, o fio e o tear são símbolos do destino, servem para designar tudo que rege ou
intervém no destino. O simbolismo do fio é o agente que liga todos os estados da existência
entre si, liga um mundo e um ser a outro mundo e outro ser e, sobretudo, liga, conduz e fia
o destino do ser humano.
No plano cósmico, é importante que se faça uma distinção entre o fio da urdidura e o fio da trama: a urdidura liga entre si os mundos e os estados; sendo que o desenvolvimento condicionado e temporal de cada um desses mundos e desses estados é figurado pela trama. [...] O desenrolamento do fio exclusivamente de trama é simbolizado pelas Parcas - pela fiação do tempo ou do destino. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2001, p. 431)
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Tecer, com esses olhos, não significa apenas predestinar o destino, simboliza a
criação de novas formas, e, neste sentido, as fiandeiras e tecelãs abrem e fecham o ciclo da
vida porque tecem e cortam o fio do destino, determinando o momento exato da morte.
Também para Pierre Brunel, as Deusas-Fiandeiras fabricam e rompem os fios como bem
lhes aprouver, pois às fiandeiras é confiado o poder de começar e interromper: “elas fiam o
destino dos homens. Não se deixam mover em suas decisões pela insistência dos pedidos
desses homens e deuses” (BRUNEL, 1998, p. 375). O ato de fiar, segundo essas leituras
míticas, representa um eterno retorno pelo processo de tecer e desfazer o trabalho
começado, recomeçado e interminável.
O esplendor do tecido na ilustração em João por um fio, remete como leu Hugres
Loborel (p.381) ao ser “em estado de renascimento, como o homem ou a mulher que traça
signos e os lê, faz-se papel selado-fio-palimpsesto”. A ilustração, nessa trama, reforça as
inscrições da memória, fios de palavras, vestígios traçados de ausência, expressões do
corpo. Fabricando essas lembranças do mundo infantil, fio por fio, o mito, em forma de
intertextualidade, traça as representações imagéticas e literárias de uma vida.
O historiador Jacques Le Goff vê a memória como um conjunto de funções
psíquicas graças às quais o homem detém a propriedade de conservar certas informações e
atualizar impressões ou informações passadas. Além da capacidade de capturar o passado
no presente, a memória também opera o registro do presente para que a permaneça como
lembrança capaz de ser acionada. Essa lembrança, segundo o estudioso, e também no livro
de Roger Mello, é composta pelo arquivo de coisas que selecionamos.
Para Le Goff construímos, através de fragmentos mnemônicos, o lugar de nosso
cotidiano, que não se limita apenas às fontes oficiais que friamente se ocupam em mostrar
os acontecimentos menos corriqueiros, limitando-se em arquivos e documentos. Segundo
ele, “a memória, como propriedade de conservar certas informações, reenvia-nos em
primeiro lugar para um conjunto de informações passadas, que ele representa como
passadas” (1984, p. 11).
A memória lúdica e intertextual joga com o já dito, o ilustrado e, de certa forma,
retomado como signos que se repetem em forma de re-apropriações múltiplas do já dito ou
visto, tanto pelo leitor como pelo personagem. A ilustração, nesse caso, se inscreve/escreve
com a lembrança daquilo que é, daquilo que foi. Ela mostra sua capacidade de se constituir
em signos espalhados pelo livro que sugerem o imaginário infantil.
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Então, quanto mais se busca na ilustração ou no livro enquanto obra de arte a sua
singularidade, tanto mais se nos depara a realidade complexa e multifacetada que a
constitui. É como ver a infinitude do universo e da memória caleidoscopicamente. Como
num caleidoscópio, cada mudança de ângulo, cada perspectiva, cada nuance, cada forma
transforma nosso ponto de vista de mundo e multiplica nossa cosmovisão. Cabe ao leitor
reconhecer, nesses signos, nesses “discursos secretos” da ilustração, o sinal da força de um
sentido e a direção que esse sentido impõe ativamente no campo das interpretações.
De qualquer forma, segundo Iuri Lotman:
“cada pormenor e o texto no seu conjunto são introduzidos em diferentes sistemas de relação tendo por resultado a recepção simultânea com mais de uma significação. Sendo revelada na metáfora, esta propriedade possui um caráter mais geral” (1978, p.128).
III. Fios de outros tecidos: a arte de tecer e tramar No que se refere à estrutura do livro, parece-nos interessante atentar, para além do
título como pista paratextual, o vasto valor semântico das palavras: “fio”, costura,
fiandeiras, bordados, “colcha”, tapeçaria, alinhavos, pescaria, fiar, desfiar, costurar e etc.
Todas elas remetem-se a figuras retóricas ou remetem o leitor ao território das artes, a
representações pictóricas, como se misturadas e aplicadas a tela do livro, compusessem
belos quadros, retratos e olhares, sínteses da vida e das etapas percorridas por João.
Observa-se, também, como um sensível palimpsesto5, um paralalelo entre o trabalho
do tear e o da escrita: a narrativa metalinguística começa com uma grande rede de pesca e
5 A narrativa é construída, escondendo um palimpsesto. O palimpsesto, segundo o Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés (2004, p. 333) deriva do grego: pálin = novamente, psestos = raspado, borrado. Na antiguidade, como o pergaminho e o couro eram materiais caros os escribas reutilizavam diversas vezes os mesmos manuscritos “colocando-os numa dissolução de água de cal para assim os despojarem das primeiras escritas que eles continham. Tais couros e manuscritos, depois de raspados e alisados com pedra-pomes, eram aproveitados várias vezes para novos escritos”. A escrita palimpséstica desse livro e da ilustração revelam um ruído na mensagem, pois resulta do diálogo simultâneo com textos outros. Não se trata, contudo, de um texto esfinge: “decifra-me ou te devoro”, parafraseando o texto de Édipo. Mas a consequência de um desvelamento ocasionado por marcas ficcionais, que necessitam de um leitor atento para seguir as pistas que indiciam, muitas vezes, um outro gênero, ou uma outra voz. Uma metanarrativa que orquestra subgêneros, quer por engaste, ou como deslocamento paronomástico, quer como cronotopo memorialístico. Desta forma, temos várias camadas textuais que trabalham em simultaneidade. Engaste – o palimpsesto por trabalhar com a curetagem mantém uma relação auto-reflexiva que atua com mais de um signo. Na reescrita do texto reciclado, a narrativa irá apresentar marcas sígnicas, camadas que se engastam à narrativa primeira. O termo engastar é definido por Lucien Dällenbach em Intertexto e autotexto. In: Poétique. Revista de Teoria e Análise Literárias – Intertextualidades, Coimbra,1979, p:56.
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vários signos presos ao mundo bordado (e contado) pela ilustração. A capa já antecipa de
alguma forma, esse enredo, com João preso ao fio narrativo, e ao trabalho de tecelagem nos
fragmentos dos bordados que compõem a capa dura e vermelha. Cor da sedução, o
vermelho indica e promove o caminho do encantamento e do ato de tecer. Ver, tecer e
narrar, nesse sentido, seriam, além de caminhos extremamente sedutores, fragmentos
discursivos e concebidos como semelhantes.
Ilustração 1 Capa do livro João por um fio (2005), de Roger Mello
A montagem do livro sobrepõe os tempos cronológico e psicológico, ambos urdidos
no tear da memória, graças aos recursos do flashback, aos motivos referentes a fragmentos
do passado que vão sendo incorporados por um narrador astuto, confeccionado no tapete,
com frequentes voltas ao tempo presente, ao mundo da infância lúdica e humilde. Um
excitante trabalho de dupla tecelagem. O narrador em terceira pessoa decide começar a
trama, anunciando como um tecelão, as seguintes frases: “Antes de dormir o menino puxa a
coberta:” _ Agora sou só eu comigo?”(MELLO, 2005, p.4).
Como se estivesse tecendo uma colcha que abrigasse o protagonista do frio e da
solidão, a narrativa vai sendo tramada (costurada) com diversas indagações: “De que
tamanho é a colcha que cobre João? /Do tamanho da cama? Ou do tamanho da
noite?”(MELLO, pp. 5-6). Processo semelhante parece ser uma pista de como o leitor-
mirim (e também adulto) mescla os fios da memória à urdidura da trama e desvela os
bastidores do texto e da ilustração. A colcha tecida compõe o corpo da escrita e faz de João,
meio às avessas, veículo para questionar acerca da própria essência da vida. Em paralelo,
emerge a imensa fragilidade dos fios, dos detalhes, das imagens que representam as
relações afetivas do ato de fiar. Os brinquedos, as flores, os peixes promovem, assim, uma
auto-reflexão a partir do contato com a colcha, entrelaçados com o Outro.
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Ilustração 2 Livro João Por um fio, de Roger Mello (pp. 7-8)
João, nesse emaranhado de signos dispersos, tece sua solidão, suas brincadeiras e
desencontros no espaço da noite, sempre com a ajuda do narrador. As estrelas brancas em
contraste com a colcha preta e fundo vermelho (p. 7 e 8) representam o brilho radioso
inscrito na colcha que aponta pela ânsia de liberdade da personagem-protagonista. Bordar e
narrar assemelham-se a um caráter imaginário e ordenador. Ao bordar, ao contar e
reinventar um novo traçado para sua própria história, João pensa, também, em mudar sua
trajetória, reinventar um novo caminho, um outro mundo.
Como Sherazade, a tecelã das mil e uma noites, João entrelaçado em seu mundo
imaginário traça um outro destino para si: “Onde é que se esconde a noite que beija João?”
(MELLO, 2005, p. 8). E, assim, ao enredar e ilustrar sua vida na colcha de sua história
florescida nos variados bordados em preto e branco, o protagonista pensa em outro destino.
“No fio de uma cantiga?” (MELLO, 2005, pp. 9-10). O bordado, o tecido, os recortes, em
vários quadrados e círculos, ora vermelhos, ora brancos, lembram que o resgate da memória
pode ter matizes e significados diferentes de acordo com o contexto no qual estas temáticas
inserem-se. E as narrativas ilustradas e contadas ao ritmo do vai-e-vem da linha e da
agulha, tratam, na maioria dos signos que remetem, às brincadeiras e ao mundo dos signos
do mar, da conquista e da busca pela identidade.
Ilustração 3 Livro João por um fio, de Roger Mello ( pp.9-10)
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A tessitura verbo-visual da colcha aparece na construção analógica ao texto, à
narrativa, ao relato, à história que está sendo contada, numa trama que possibilita o resgate
da memória infantil e do passado humilde. Pelas brincadeiras adentramos no universo
infantil desses “Joões” contemporâneos. E dentro de seus teares, identificando alguns
matizes, encontramos a vida transfigurada na ilustração da rede, da colcha de suas
memórias. “A brincadeira dos pés é fazer terremotos debaixo da colcha. Montanhas trocam
de lugar com vales. Enquanto isso, cidadezinhas de pano tentam prever terremotos. Quem
tem medo de um gigante chamado João?” (MELLO, 2005, pp. 15-16).
Ao abeirar-se da colcha de João, envolto pelo silêncio que a articula, o narrador
reflete: “Quando é que o gigante dorme? Quando seu pai vai pescar?” (MELLO, 2005,
pp.17-18). Orlandi, em As Formas do Silêncio (1992) afirma que o silêncio é “a
possibilidade para o sujeito trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa na relação
de “um” com o “múltiplo”, a que aceita a reduplicação e o deslocamento” (1992, p.23). O
silêncio, atrelado ao sonho e as brincadeiras do protagonista diante dessa colcha ilustrada e
incrustada favorecem indagações do próprio narrador, quando instiga: “Se João cai no sono,
com que paisagens ele sonha? [...] Sonhos molhados de medo? E se o medo derrama, João é
que abre a torneira?” (MELLO, 2005, p.19).
Ilustração 4 Livro João por um fio, de Roger Mello ( pp.17-18)
Esse desfazer (ou desfiar?), trabalho aparentemente negativo, revela-se importante
processo memorial, na medida em que assinala uma recusa a um papel que não deseja
desempenhar. Questiona-se, portanto, a fidelidade ao projeto de construção do rosto
infantil. Sonho e realidade, nesse sentido, é o mesmo que viver duas vidas, é como transitar
os dois planos distintos. O mundo vivido durante o dia e os sonhos durante a noite. Viver
nesses dois mundos, mapeando a realidade e o imaginário é fazer surgir em nossa memória
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a lembrança de ser criança. Nele, o leitor, imerge em uma atmosfera de sonho e realidade,
texto e ilustração, magia e acontecimentos que acompanham a trajetória de João-pescador.
“João deixa escorrer um lago feito de medo, para girinos e conchas. Um lago redondo
inundando o colchão. Peixes deslizam mais que sabonete. Que rede segura um peixe maior
que a gente?” (MELLO, 2005, pp.21-22).
Ilustração 5 Livro João por um fio, de Roger Mello ( pp.21-22)
Há nessa metáfora de rede e peixes o cruzamento entre o reino da imaginação e o da
realidade do protagonista. No limiar de suas memórias, João percebe que esses lugares e
essas situações se criavam através da ausência, do sonho, no espaço novo da noite onde
ensaiava a metáfora de uma metamorfose. Pode-se dizer, assim, que esse “eu” da
colcha/ilustração comunicante emerge, permitindo que partes separadas se comuniquem e
se impregnem da energia que circula. Deambulando pelos meandros do imaginário
ilustrado na estampa da própria colcha, João, como, também, muitos leitores, consegue
recompor as peças do grande e intrincado quebra-cabeças de sua vida. A tapeçaria seria,
então, uma extensão do próprio sujeito, pois através dela o “eu” inquieto da personagem
promove a reflexão do mundo infantil. “De que tamanho é o furo na colcha que cobre
João?” (MELLO, 2005, p. 24).
Fiando e tecendo essa colcha, João “desenha” seu destino, como as fiandeiras que
costuram sua história, seu enredo no seio da noite. O encontro celeste de João e das
fiandeiras confirmam que a tecelagem configura um ritual dos trabalhos noturnos, no
silêncio da noite. João-fiandeiro, pescador e humilde, trava seu conhecimento com sua
própria vida insuflada na rede da colcha entre peixes e linhas, tecido e costura da memória
de pescador. O texto, feito o próprio ato de tecer, com sua música e rituais, “comporta-se
como um organismo vivo que se encontra numa ligação inversa com o leitor e que o
esclarece” (LOTMAN, 1978, p.59)
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Na geografia da colcha, nos alinhavados constantes da memória, João descobre o
seu próprio ato de tecer, costurar, até que o narrador, comunica: “João acordou no susto”
(MELLO, 2005, p.29). A ilustração, nessa página, como se cortasse os elos com o sonho do
protagonista deixa de integrar, como os traços dos pintores impressionistas, os movimentos
fugazes, a luz natural que ilumina os detalhes da colcha, a aparência do mundo imaginário e
caleidoscópico do pescador mirim. E, com um certo ar de tristeza, o próprio narrador,
confessa as feições do personagem: “ De que tamanho é o vazio onde antes estava a colcha
que cobria João?” (MELLO, 2005, p. ) “Quem desfiou minha colcha?” (MELLO, 2005, p.
30).
Sem seu percurso identitário, João vai adquirindo novas nuanças, experimentando
diversas formas de existir no mundo infantil, ensaiando mesmo sua metamorfose no jogo
do sonho e da realidade. Nessa face ou momento, o protagonista transita pela ilustração de
palavras aleatórias que vestem o seu novo percurso. Nesse cenário, as palavras surgem
como significantes, como certo estremecimento do mundo e do jogo metalinguístico da
narrativa, anunciando metaforicamente um nó do mundo imaginário do protagonista.
Sem a colcha e sem o seu sonho, João, nesse instante, apodera-se das palavras para
construir sua vida, esse novo momento. As palavras, como puro jogo estético na página
através da ilustração, assumem visualmente o texto da vida, o poder do discurso, os elos
entre o sonhado e o vivido, a vida e a palavra. “João sem sono não sabe dormir descoberto.
No meio do vazio viu palavras espalhadas no chão” (MELLO, 2005, pp. 33-34).
Ilustração 6 Livro João por um fio, de Roger Mello ( pp.37-38)
Embaralhadas com a ilustração, as palavras e João refletem a correnteza da
memória, a luta entre o equilíbrio de viver e sonhar, a construção da identidade. Nessa
malha textual, João percebe que precisa retomar seu destino, e, novamente, através do
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narrador propõe a seguinte indagação: “Costurou palavras como retalhos numa colcha. Na
falta de agulha, serve um ponto de interrogação?” (MELLO, 2005, pp.35-36).
E como num retorno memorialístico, o protagonista disperso em palavras e espaço
aleatório, entre as cores preta, branca e vermelha, ele deambula pelo espaço da memória
urdindo os fios necessários à trama que tece: “ Enquanto João costura, João inventa uma
cantiga de ninar. De que tamanho é a colcha de palavras que cobre João?” (MELLO, 2005,
pp.37-38).
Além de despertar efeitos de memória, a ilustração em João por um fio, assume a
função estética quando chama a atenção para a forma ou configuração visual. Segundo Luís
Camargo, em Ilustração do livro infantil (1995) a presença da ilustração pode ser tratada
por diferentes posições teóricas, e, ele mesmo, apóia-se em referenciais que a explicam.
Apoiado em Jakobson, ele traça várias categorias para analisar a ilustração e seus
mecanismos retóricos no livro infantil.
Segundo ele, a função estética, através de suas várias configurações, pode ser
representada por efeitos estéticos plásticos provocados por linha, cor, gesto, mancha, luz,
brilho, enquadramentos ou contrastes. O autor ressalta que a função estética não se
identifica com a de ornamentação, seu papel principal é sensibilizar o leitor através de
efeitos estéticos, tais como percebemos na ilustração nesse livro de Roger Mello. O
interesse, porém, não é a descrição das ações ou lembranças de João, mas o modo, os
efeitos, a beleza dos gestos e da infância do menino-pescador, ora lembrando, ora
sonhando, ora se percebendo nessa rede que ele mesmo criou e se percebe envolvido.
A função lúdica, ao mesmo tempo da função poética, seria outro recurso retórico da
ilustração que estabelece um jogo visual na maneira como representa a memória-rede na
trama. A própria ilustração, nesse caso, transforma-se em jogo, em recursos pictóricos
imbricados ao texto. Quando isso acontece, - e nesse caso com o livro todo -, segundo Luís
Camargo, configura-se um gênero híbrido (1995, p.137). Assim, a ilustração pode ser lida
ou vista como um livro-rede, renda, livro-jogo das representações da infância ou do mundo
infantil de um menino-pescador.
Outros elementos, característicos da função lúdica, seriam, além dos recursos
visuais, os tácteis que envolvem a textura do tecido, os sonoros (retomados,
intertextualmente, das rendeiras), os elementos vazados de cada ponto de ligação que se
estabelecem e reforçam a construção da trama em rede. Quanto à técnica utilizada,
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semelhante à fotografia, a obra, além de assumir um recurso gráfico poético, tem um jeito
ou efeito para recuperar o jogo memorial e detalhista de fragmentos do discurso lúdico e
infantil.
Para Lúcia Pimentel Góes, em Olhar da Descoberta (1996), o olhar para a
ilustração caracteriza-se pelo dinamismo que surge da rápida associação de ideias,
concentrando as percepções, filtrando as recordações re-conhecidas. Esse processo ou
postura, ela sintetizou no leitor que consegue perceber as intertextualidades, esse leitor que
“conhece o texto como prática intertextual e inter-semiótica, reconhece a inter-relação e a
dialética da linguagem em movimentos circulares de renovação-revolução” (1996, p.24).
Ao falar da linguagem da ilustração, Rui de Oliveira, em Pelos Jardins Boboli
(2008) reforça, além do simbolismo ou a sintaxe que ela carrega, as diversas alusões à
música, à pintura, à literatura, ao teatro e à ópera no processo interpretativo do ato de ver.
Com essas linguagens, segundo o professor Rui, “vamos completando os espaços teóricos
vazios no mosaico conceitual da ilustração” (2008, p.120).
Em João por um fio, a leitura dos signos presentes na ilustração, funde a
sensibilidade e a decifração de outras linguagens, como disse o estudioso: o mito das
fiandeiras, a música do ato de fiar, os gestos sensíveis do corpo, a pesca e a vida de
pescador. Todas fundam uma recepção, a interação entre as linguagens na produção de
sentido pelo leitor.
Como código de linguagem, então, como cena, a ilustração mostra os efeitos do
designer, através da expressão da obra, ou através das formas visuais que esse livro
estimula e faz desfilar aos olhos, configurando-se, assim, o seu processo. A ilustração e a
maneira de olhá-la implicam, nesse caso, numa ou mais relações culturais, artísticas e
sociais. Instituída, nessas relações, a ilustração se mostra, também, enquanto design, uma
poética (arte) e uma semiótica (sistema de signos) singulares.
IV. O textum, a palavra e a engenharia da ilustração
“O texto já não tem a frase por modelo; é amiúde um potente jato de palavras, uma fita de infralíngua” (BARTHES, 2004, p.13).
A semiologia barthesiana do texto nos ensina que todo discurso (todo texto) - e aqui
imbricados texto e imagem - é uma malha bem tecida, o que justifica na própria origem do
vocábulo: a primeira acepção do latim textum é tecido. Por isso procuramos mostrar aqui as
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peripécias de João que se processa em diversas intertextualidades ao fiar os fios de
inúmeros textos já usados para compor um texto novo: a infância e a memória.
O desfiamento da ilustração/trama fez-se sob a forma da semiologia, mostrando aos
leitores, também tecelões, que o tecido antigo já trazia, em sua trama, a matriz do tecido
produzido. E nesse processo de desfiamento verbo-visual, conduzido pelo leitor e por quem
fiou, configura uma produção que não pode ser considerada apenas uma colcha de retalhos,
mas um outro pano totalmente novo. Nessa urdidura, quando passam pelo tear os fios da
trama, fios de outros discursos aparecem: os desfiados dos textos da lembrança e identidade
do protagonista.
Tecelão, o ilustrador trabalhou com agudeza os panos de que dispunha e, tecendo e
desfiando fios, como uma aranha ( da teoria barthesiana), mostrou que conhecia como
poucos a arte de tecer e tramar. Enfim, bordando, tecendo, texto e ilustração reconstroem,
aos fragmentos e à deriva, a vida de João, consequentemente, o signo da pluralidade e da
ruptura dos nós, dos alinhavados, da mão que avança no risco e nos bordados como motivo
e processo da vida, da fabricação semiológica do texto-tecido.
A metamorfose através da colcha de palavras e da música de João, opera pouco a
pouco o mundo de palavras que somos da colcha de João, e confirmam, assim, que a vida
pode ser encarada como tecelagem, como processo de um tapete ou colcha, ou mesmo rede
de pesca, que, costurados como etapas da vida e da memória refazem nosso sentido da
existência. Sempre ensaiados, e muitas vezes, desdobrados nos desenhos dos tecidos, do
textum enquanto hyfologia barthesiana, nos faz indagar: não seria a vida esse processo
semiológico e hifológico de um texto-tecido?
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