Igreja e Des Rural

download Igreja e Des Rural

of 16

Transcript of Igreja e Des Rural

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    1/16

    AAO DA IGREJA CAT LICA E O DESENVOLVIMENTO RURAL

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 2001 7

    Desenvolvimento rural

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    2/16

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    3/16

    AAO DA IGREJA CAT LICA E O DESENVOLVIMENTO RURAL

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 2001 9

    ARADOMTOMASBALDUNO,presidente da CPT-Nacional (Comisso Pas-toral da Terra), a agricultura no Brasil passa por um processo de empobre-cimento progressivo. Segundo afirmou em depoimento aos editores de

    ESTUDOSAVANADOSno incio deste ano em So Paulo, 81%dos agricultores que

    detm um estabelecimento de 50 hectares esto ganhando menos do que o salriomnimo. Em uma de suas viagens ao Nordeste presenciou uma cena que talvezajude o leitor a entender por que em seu depoimento ele culpa a poltica deabertura neoliberal do governo pela situao dramtica que vive atualmente amaioria dos pequenos agricultores brasileiros. Em Recife aportou um naviocarregado de milho transgnico, mais barato do que o mesmo cereal que elemento cultural da produo do agricultor da regio. A tal abertura neoliberalcolocou, em posio de extrema desigualdade, o pequeno agricultor familiar emface dos seus macroconcorrentes multinacionais. Acrescente-se a isto a grandeexportao agrcola, questo proclamada como de vidaou de morte para a econo-

    mia do pas. Aqui no se poupam recursos nem no incentivo produo, nem nainfra-estrutura viria, at de hidrovias, de escoamentoda mesma.

    A seguir, o leitor poder conferir o resumo das declaraes de Dom TomasBalduno, 78anos, nascido no estado de Gois. Frei dominicano, foi missionrioentre os ndios do sul do Par, bispo diocesano de Gois de 1967 a 1998, almde co-fundador do CIMI (Conselho Indigenista Missionrio) e da CPT (ComissoPastoral da Terra).

    ESTUDOSAVANADOS Dom Tomas, para iniciarmos seu depoimento seriainteressante para os nossos leitores que o senhor falasse alguma coisa sobre a

    evoluo da Comisso da Pastoral da Terra (CPT), e da sua posio atual. Gosta-ramos de ouvi-lo sobre a sua experincia pastoral com os ndios, o que aconteceu:inicialmente a sua histria de vida, para depois entrar na Pastoral da Terra. Osenhor comeou como o organizador, a grande figura do CIMI. Como, a partirda, o senhor evoluiu no seu trabalho para assumir essa posio atual de presidenteda Comisso Pastoral da Terra?

    Dom Tomas Balduno O Conselho Indigenista Missionrio (CIMI)uma boa baliza para clarear um percurso que evoluiu at chegar ComissoPastoral da Terra (CPT). Ambos, embora inseridos em contextos diferentes, esto

    Aao da Igreja Catlicae o desenvolvimento ruralDEPOIMENTO

    P

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    4/16

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 200110

    DE P O I M E N T O DE D O M T OMAS BAL DU NO

    dentro do mesmo esprito, procedem da mesma inspirao. O CIMIpode sertomado como um ponto de partida, mas , por sua vez, um ponto de chegada de

    um importante processo que merece serconsiderado. Trata-se do Conclio VaticanoII e tambm da 2 Conferncia Episcopallatino-americana de Medellin. A grandenovidade que o Conclio introduziu nahistria da Igreja foi, sem dvida, a aberturadesta para o mundo de hoje. Isto ficoumarcado num gesto simblico do papa JooXXIII, quando abriu as janelas do palciopapal em resposta aos cardeais que insistiamna pergunta sobre o porqu do Conclio.Aconteceu ento a irrupo do vento quemexeu com tudo o que havia naquelerecinto. a Igreja que vai ao mundo, tambm o mundo que irrompe dentro daIgreja. O Vaticano II foi, naturalmente, umConclio europeu. A Constituio Gaudiumet Spesfigura como o grande prtico intro-dutrio a este novo universo das realidadesprofanas, reconhecidas agora como valorese como detentoras de plena autonomia. Foi

    coerente com esta viso, portanto, a reconciliao e o pedido de perdo memriade Galileu Galilei. Por outro lado, visto que a Europa no o Mundo todo, estamesma Constituio assumida como um instrumento que no se fecha nesteContinente, mas, pelo contrrio, abrange a Humanidade inteira. O Vaticano IIsignificou, como disse Karl Rahner a deseuropeizao da Igreja.

    Conferncia de Medellin

    Dois anos e meio aps o trmino do Conclio reuniu-se na Colmbia o

    Episcopado latino-americano. Aconteceu, ento, a famosa Conferncia de Medellin,

    inaugurada em agosto de 1968. Os prelados latino-americanos ao voltarem do

    Conclio, empolgados pela extraordinria energia pentecostal daquele evento,redescobriram o mundo do nosso Continente, no dizer de Gustavo Gutirrez,

    el mundo de abajo. Havia entre eles homens de notvel envergadura como, por

    exemplo, Larrain, Lenidas Proao, Hlder Cmara, Fernando Gomes dos Santos,

    Paulo Evaristo Arns, entre outros, que aqui marcaram profundamente a nova

    trajetria da Igreja. At Medellin a Igreja entre ns reproduzia e refletia

    simplesmente o modelo da Igreja europia. A Igreja do nosso Continente no

    tinha identidade prpria, apenas fazia as adaptaes do que era decidido no centro

    da catolicidade. Era uma Igreja que se colocava em posio secundria, de delegada,

    Dom Tomas Balduno

    RosaGauditano/AbrilImagens

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    5/16

    AAO DA IGREJA CAT LICA E O DESENVOLVIMENTO RURAL

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 2001 11

    Pobre sujeito,

    autor e destinatriode sua prpria histria ...

    uma Igreja menor. O Conclio tornou possvel Medellin como um encontro de

    pases da Igreja, envolvidos numa eclesiognese verdadeiramente latino-americana,

    com sua originalidade prpria. Para estes homens irrompeu aqui tambm o Pen-tecostes, que chegou a ns com uma marca inconfundvel: a libertao.

    H um ponto fundamental nesta abertura

    para o nosso Continente de maioria pobre, de

    ndios, negros e camponeses. Aconteceu a

    famosa opo preferencial pelos pobres.

    Ora, a Igreja sempre se relacionou com os mais

    pobres mediante as obras de misericrdia. Aqui,

    porm, ocorreu uma profunda virada. Pobre no mais entendido como objeto

    de nossa ao caritativa. Pobre sujeito, autor e destinatrio de sua prpria histria.

    Em maro de 1971 reuniram-se em Iquitos, na Amaznia peruana, bispose missionrios de cinco pases buscando evidenciar as novas exigncias da missojunto aos povos indgenas. Note-se que em janeiro daquele mesmo ano repercutiufortemente uma declarao de antroplogos reunidos em Barbados. Entre elesfiguravam nosso Darci Ribeiro, o paraguaio Miguel Chase-Sardi, o austraco GeorgGrnberg, entre outros de muito saber e prtica em relao aos povos indgenas.Eles lanaram uma grave recomendao: Que se pusesse fim a toda atividademissionria, visto que as misses se converteram em empresas de recolonizaoem conivncia com os interesses imperialistas dominantes.

    Os prelados e missionrios, reunidos em Iquitos, conheciam muito bemestas concluses, mas, iluminados por outras luzes e movidos por impulsos maisprofundos, eles se perguntavam: O que significa para ns evangelizar, tratando-sede povos, como os ndios, que esto numa situao desesperada, comosobreviventes de cinco sculos de massacre, especialmente aquelas minorias tnicas,que constituem um potencial humano da Amrica Latina e se encontram numacelerado processo de desintegrao? A resposta veio densa e unnime: evange-lizar estes povos ser solidrios com eles. E eles explicitaram claramente o contedodesta solidariedade. Primeiramente, o compromisso de mxima compreenso,respeito e aceitao das culturas autctones. Em segundo lugar, o compromissode assegurar a sobrevivncia biolgica e cultural das comunidades nativas e nossa

    insero no seu processo histrico. Em terceiro, constante avaliao crtica eautocrtica do missionrio e da obra missionria. Em quarto, denncia aberta esistemtica da injustia institucionalizada contra os ndios. Finalmente, apoio sorganizaes dos grupos nativos para que sejam eles mesmos os impulsores doseu prprio desenvolvimento autctone.

    Para quem acompanha a histria da Igreja em nosso Continente fcilimaginar a transformao que isso representou no conjunto da ao pastoral. Foia revoluo copernicana, conforme disse Leonardo Boff. A Igreja mudou radicalmente

    de lugar. Do lugar dopoder para o no-poder, do lugar do ter para o no-ter.

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    6/16

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 200112

    DE P O I M E N T O DE D O M T OMAS BAL DU NO

    Conselho Indigenista Missionrio

    Os missionrios, os agentes de pastoral da rea indgena no Brasil, mesmo

    sem ter estado em Iquitos ou informados do contedo daquela histrica reunio,j vinham realizando sucessivos encontros tendo em vista clarear e aprofundar anossa responsabilidade junto aos ndios, as novas motivaes da misso e o seunovo jeito. A grande mola propulsora desta busca eram principalmente os desafiossurgidos pelo choque da aplicao de uma nova poltica econmica na Amaznia,imposta pela ditadura militar, que via os ndios como um inaceitvel obstculo aodesenvolvimento.

    J vinham acontecendo tambm gestos expressivos da mudana interna damisso. Eu lembraria o desmonte de um antigo modelo de misso indgena, a deUtiariti, no Mato Grosso, pertencente aos padres jesutas. Naquele bem organi-

    zado internato construdo para receber meninos e meninas de diversas tribos,havia a pedagogia de fazer tabula rasada cultura ancestral, manifestada esta nosdistintivos corporais, na lngua, no ritmo de vida, na alimentao, nos costumes,na religio e nos rituais de cada povo, substitudos uniforme e inexoravel-mentepela cultura do branco, e pela catequese religiosa catlica.

    No dizer do padre Uriarte, jesuta do Peru, foi posto abaixo aquele circoe em lugar dele emergiu o universo indgena ocupando o primeiro plano. Emissionrios, antes diretores e chefes daquela obra empolgante, tiveram s vezes,para sobreviver na mata, que depender da ajuda dos ndios com os quais passarama conviver.

    O CIMI nasceu sob esta fecunda e revolucionria inspirao e foi criado emBraslia, em 1972, por um grupo de bispos e missionrios, estando presentetambm o ento presidente da CNBB, Dom Ivo Lorscheider. O cuidado na horade organizar a nova entidade foi imprimir-lhe maior agilidade, com o mnimo deestrutura, inclusive com uma ligao no tanto oficial CNBB, antes do tipo in-formal. O termo Conselho explica bem tal aspecto. Instrumento a servio dosmissionrios e sobretudo a servio dos ndios. Foi convidado a integrar aqueleconselho de bispos, missionrios e missionrias, o Eugnio, velho tuchaua bororo,que nos iluminava com sua sabedoria de contemplativo e nos encantava com seunobre e sereno caminhar descalo pelos ambientes mais requintados das capitais.

    Numa dessas reunies do CIMI, o padre Thomaz Lisboa, jesuta, fez umaproposta: sugerir aos chefes indgenas de diferentes povos um encontro exclusivoentre eles, para que se conhecessem, trocassem idias entre si e decidissem o quequeriam. Ns, missionrios daramos o apoio necessrio. Essa sugesto surpreen-deu a todos por seu carter inslito. Tambm o relacionamento entre gruposindgenas ainda era conflitivo ou pelo menos tenso, mas a proposta era coerentecom a nova concepo do ndio como sujeito. E acabou sendo o ovo deColombo.

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    7/16

    AAO DA IGREJA CAT LICA E O DESENVOLVIMENTO RURAL

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 2001 13

    As assim chamadas Assemblias de chefes indgenas aconteceram numerosasvezes, em vrios pontos do pas, nas mais diversas circunstncias e sobretudo

    com frutos muito concretos. Em uma delas, realizada com 140 tuchauas de vriospovos, s margens do rio Cururu, afluente do Tapajs, morada dos temidosmundurucu, a saudao inicial do chefe anfitrio mundurucu foi assim: Meusamigos, em outros tempos, se a gente se encontrasse na distncia em que nsestamos agora poderamos imaginar o estrago que iria acontecer. Hoje estamosaqui reunidos e unidos porque, como ndios, sabemos que estamos todos dentroda mesma canoa furada.

    Ao terminarem esses encontros os ndios saam convencidos de que osinimigos dos ndios no eram os ndios. Trs decises maiores levavam sempreconsigo e comearam logo a execut-las: a recuperao de suas terras, a recuperao

    de suas culturas e a garantia de sua autonomia.A Primeira Assemblia do CIMI realizou-se em junho de 1975 em Goinia.

    Vale a pena citar o que foi definido, entre outras coisas, sobre a autodeterminaodas populaes indgenas: Procurar por todos os meios devolver aos povosindgenas o direito a serem sujeitos, autores e destinatrios de seu crescimento.Reconhecer que, como pessoas e como povo, so e devem ser aceitos comoadultos, com voz e responsabilidade, sem tutela nem paternalismo, capazes deconstruir sua prpria histria.

    A partir desta atitude da Igreja, de respeito e apoio, muita coisa mudouentre os ndios. A primeira luta que estourou, de recuperao das terras, foi a doskaingang, em Nonoai, com profunda repercusso na sociedade brasileira esobretudo entre os ndios de vrias partes do pas. Comearam tambm asorganizaes indgenas regionais e nacionais. Exemplo eloqente disso foi a grandeAssemblia de todas as naes indgenas realizada em abril de 2000 em CoroaVermelha (BA)celebrando os 500 anos de resistncia indgena, negra e popular.O CIMI figurou a no apoio, respeitando o protagonismo dos ndios. As forasdo governo, no tendo conseguido cooptar aquela Assemblia de trs mil ndios,partiram para o hediondo papel repressor, desmantelando completamente aquelalinda marcha deles, com a utilizao de tropa de choque, bombas, jatos dgua,ces, helicpteros. No tem diferena do que aconteceu no passado na destruio

    dos sete povos guarani, do Quilombo Palmares, de Canudos etc. Quanto aoCIMI, na ocasio foi acusado pelo governo de manipulao dos ndios. A elitebrasileira e o governo, com efeito, no admitem que ndio ou campons pensecom a prpria cabea e ande com as prprias pernas.

    Eu acrescentaria, finalmente, duas observaes: primeira, a Igreja quer seruma presena solidria entre os ndios, com profundo respeito pela cultura eautodeterminao deles, mas sem abdicar do profetismo, que pode s vezes sedeparar com a contradio e a conseqente exigncia do questionamento crtico.

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    8/16

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 200114

    DE P O I M E N T O DE D O M T OMAS BAL DU NO

    No caso de Coroa Vermelha, por exemplo, em virtude da verdade e da justia,ficamos, infelizmente, em lados opostos com relao a alguns ndios e dissemos

    claramente a eles: certas autoridades no tm o menor escrpulo na manipulaoe apelegamento dos ndios. Um ndio tucano dizia chorando numa dasAssemblias do CIMI em Goinia: a minha maior tristeza ver irmo meu sertratado a dlar. Segunda, a Igreja, ao se colocar entre estes povos na posiomais de escuta do que de fala, tem sentido, de fato, a irrupo do Esprito quefala atravs destes pobres. Ns nos temos enriquecido muito com a milenarsabedoria deles. A partir desta nova convivncia aprendemos a fazer uma releiturada prpria Bblia sob uma nova tica e descobrimos toda uma teologia indgena,sinal da presena das sementes do Verbo no seio destes filhos prediletos deDeus.

    Pastoral da TerraDom Pedro Casaldglia, ao ser ungido bispo de So Flix do Araguaia, em

    1971, lanou aquele grito que ecoou fortemente na Igreja e no pas. Foi a cartapastoral Uma Igreja da Amaznia em conflito com o latifndio e a marginalizaosocial. No se tratava de uma situao, nem de um posicionamento isolados.Aquele documento expressava simplesmente, com meridiana clareza e com singularaudcia, as conseqncias da desastrosa poltica do milagre brasileiro levada Amaznia pela ditadura militar em cumplicidade com o empresariado, atropelandondios e posseiros. Nem se tratava apenas da Amaznia. De todas as parteschegavam notcias de represso contra grupos de trabalhadores rurais e contra

    agentes de pastoral que os acompanhassem ou apoiassem.Da a proposta unanimemente aceita da criao de um servio que articulasse

    os diversos grupos de agentes solidrios com os camponeses e prestasse a eles umservio eficaz. Foi o primeiro esboo do que veio a acontecer em Goinia emjunho de 1975, o nascimento da Comisso Pastoral da Terra (CPT), sendo pastordaquela Igreja dom Fernando Gomes dos Santos. A CPT nasceu no momentodo avano do grande capital em direo Amaznia custa do genocdio dospovos indgenas e do massacre dos camponeses, com total impunidade para mili-tares e pistoleiros. A CPT, ao interferir naquele processo brutal, adquiriu uma im-portncia histrica, acima do que poderiam prever os seus agentes de pastoral.Jos de Souza Martins assim escreveu: A fundao da CPT institui uma novamediao na expresso da vontade poltica desse novo agente do processo detransformao social no Brasil, desse novo sujeito de nossa Histria... Estimula oaparecimento dos movimentos sociais... Estimula a que os trabalhadores noabram mo das outras dimenses da sua luta, que no se reduzem ao sindical e aoeconmico, questo da sobrevivncia imediata. Ela proclama que sem dignidadeno h vida verdadeira. E o mesmo autor assim expressa a sua leitura sobre ocarter deste servio pastoral: A CPT no apenas uma Comisso Pastoral daTerra. A CPT sobretudo e fundamentalmente, uma Comisso Pastoral da Vida

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    9/16

    AAO DA IGREJA CAT LICA E O DESENVOLVIMENTO RURAL

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 2001 15

    Eram as populaes pobres que recebiam como remunerao a alimentao necessria subsistncia na

    construo de aude para reteno das guas da chuva na grande seca de 1982-3 no serto do Cear.

    Sebast

    ioSalgado

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    10/16

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 200116

    DE P O I M E N T O DE D O M T OMAS BAL DU NO

    Aquela intuio de Medellin, o pobre sujeito, uma das grandes luzes daCPT. A densa e perigosa experincia dos seus primeiros cinco anos tornou-se

    uma espcie de doutrina social da terra assumida pela CNBB. Com efeito, aAssemblia Geral do Episcopado Brasileiro de 1980 elaborou e aprovou o docu-mento Igreja e os problemas da terra. No posso deixar de citar os trs maiorescompromissos dos bispos:

    Nossa atuao pastoral, cuidando de no substituir as iniciativas do povo,estimular a participao consciente e crtica dos trabalhadores nos sindi-catos, associaes e outras formas de cooperao, para que sejam realmenteorganismos autnomos e livres, defendendo os interesses e coordenandoas reivindicaes de seus membros e de toda sua classe.

    Reafirmamos o nosso apoio s justas iniciativas e organizaes dos traba-

    lhadores, colocando as nossas foras e os nossos meios a servio de suacausa.

    Apoiamos os esforos do homem do campo por uma autntica ReformaAgrria... Apoiamos igualmente a mobilizao dos trabalhadores paraexigirem a aplicao e/ou a reformulao das leis existentes, bem comopara conquistar uma poltica agrria, trabalhista e previdenciria que venhaao encontro dos anseios da populao (p. 34-35).

    CPT e CIMI so pastorais chamadas de fronteira, por atuarem no apenasno seio da Instituio eclesistica, mas no universo profano, social, poltico e

    econmico. Mas ambas tm tido uma benfica influncia na pastoral de conjunto.A CPT, com efeito, mes-mo tendo, por estatuto,um bispo na sua presi-dncia e religiosos entreseus membros, age comoum organismo tipica-mente do laicato. E como

    tal, vive uma sadia autonomia. H um referencial bblico e teolgico, como exi-gncia profunda do seu pessoal engajado de dar razo de sua esperana.

    O grupo move-se entre as lutas de apoio aos oprimidos e a reflexo sobre aTeologia da Terra, de onde nascem as intuies da legitimidade de muitas aesdos camponeses, como, por exemplo, as ocupaes da terra.

    A sacralizao da luta pela terra, que, alis, integra a mstica de todas asRomarias da Terra, hoje tambm chamadas das guas, est em perfeita conti-nuidade com aquela religiosidade dos sertanejos de Canudos, que mantinhamuma profunda harmonia entre as expresses de f e a ao guerreira de defesa dopovo.

    O grupo move-se entre as lutas

    de apoio aos oprimidos

    e a reflexo sobre a Teologia da Terra ...

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    11/16

    AAO DA IGREJA CAT LICA E O DESENVOLVIMENTO RURAL

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 2001 17

    A atuao da CPT

    ESTUDOSAVANADOS Gostaria de fazer algumas perguntas mais conjun-

    turais. A Pastoral da terra tem algumas diretrizes constantes e que est procurandoseguir nas suas reunies, nas suas assemblias? Ela tem algumas prioridades, pelasquais vai combater, ou tem mais uma estrutura reativa: as coisas acontecem, elaanalisa e toma ou no posio e assim as vai levando no plano, vamos dizer,aleatrio? Ela tem atualmente, em face desses conflitos, algumas diretrizes queso seguidas pelos seus agentes? H uma unidade de vistas ou apenas reaes asituaes emergenciais nesses ltimos anos? Quero dizer, desde que o senhorassumiu a coordenao, poder nos responder no s pelo passado, mas pelasituao atual?

    Dom Tomas Balduno O organismo que define as prioridades da CPT a Assemblia anual. Atualmente, tais prioridades so estas trs: Terra, gua eDireitos. Isso, alm da marca fundacional, j mencionada, de respeito e apoio aoprotagonismo dos camponeses, d realmente unidade ao da CPT no grandeleque de 20 regionais em que est distribuda no Brasil inteiro. Estas prioridadesso alimentadas pelo processo de formao, que tem tido um lugar importantena instituio, e integram o planejamento trienal. Tais prioridades se iluminam eanimam necessariamente a agitada conjuntura social e eclesial, e as suas agendas,como, por exemplo, os diversos lances e eventos da poltica agrria, o plebiscitoda dvida, a campanha pelo limite da propriedade, a violncia no campo, violnciaesta objeto de levantamento anual publicado no Caderno de Conflitos, a batalha

    contra o trabalho escravo, a privatizao das guas, as relaes de gnero, Cam-panhas da Fraternidade etc. Acrescente a isto o variadssimo relacionamento comoutras entidades que realizam trabalho solidrio com o povo da terra, com asorganizaes dos trabalhadores, com os rgos do governo, da prpria Igreja,com entidades internacionais de apoio, no sentido da aliana delas em vista notanto da ajuda ao Terceiro Mundo, mas da mudana das estruturas planetriasque so grave ameaa Humanidade e Terra. A CPTvive esta roda viva. Maisainda, sendo o Brasil um conjunto de Brasis, o da Amaznia, o do Semi-rido, odo Centro-Oeste, o do Sul, a CPT pode dar a impresso de serem vrias as CPTs.Mas, a meu ver, uma unidade que esposa naturalmente a rica pluralidade da

    nossa geografia fsica e humana.Mas eu destacaria, entre essas prioridades, uma que tem chamado a nossa

    ateno: as guas. Evidentemente, a dianteira aqui foi tomada pelo Nordeste,com as experincias alternativas de convivncia com o Semi-rido, levando projetosalternativos, com meios pobres, como as cisternas de placas, a criao de caprinos,o que vai realizando o milagre da vida numa regio onde as obras faranicas athoje vm consumindo, na corrupo, o que poderia ter salvo a vida de muitos.Mas h um envolvimento geral nesta questo das guas, seja nos projetos debarragens e hidrovias do Centro-Oeste, seja entre ribeirinhos da Amaznia.

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    12/16

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    13/16

    AAO DA IGREJA CAT LICA E O DESENVOLVIMENTO RURAL

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 2001 19

    da Silva, e por esse motivo caiu. Ele me confidenciou que tinha sido derrubadoda posio de presidente do Incra, no pelos Caiados do meu estado de Gois,

    mas pela presso dos empresrios de So Paulo, hoje os maiores latifundirios dopas. E eu pensando que o atraso maior estava no nosso serto...

    Atualmente exis-tem dois grandes obst-culos na lei, do tamanhoda Serra do Mar, impe-dindo a desapropriaoem vista da reformaagrria: o primeiro oartigo 185, inciso II da

    Constituio, obra pri-ma do Centro; o se-gundo a Medida pro-visria 2109, jia ela-borada por FernandoHenrique Cardoso. NoBrasil, quando no sequer que uma coisaacontea s remet-las calendas do Judici-rio. Pois esta a grandereforma agrria destegoverno. Como resultado, segundo as estatsticas oficiais do Incra, acontece hojeuma maior concentrao de terras. Comparados os anos de 92 e 98, os imveiscom mais de dois mil ha tiveram um acrscimo de rea de 56,3milhes de ha, ouseja, quatro vezes mais do que toda a terra desapropriada para a reforma agrria.

    Falemos agora dos crditos. A poltica de destinao de crditos aosassentados teve xito. Comeou pelo reconhecimento da FAO de que osassentamentos, em geral, deram certo. No se pode chamar isto, como dizia aUDR, de favelizao do campo. Eu presenciei a transfigurao econmica domunicpio de Gois com a movimentao dos financiamentos do Incra em favordos mais de 20 assentamentos daquela rea. claro que h dificuldades. Seempresrios administram mal algum incentivo fiscal, no podemos nos escandalizarquando ocorram falhas por parte de quem sempre foi peo do trabalho escravocratae hoje enfrenta o desafio de lidar com investimentos variados e suas prestaes decontas. Esta injeo de recursos no campo nestes ltimos anos, em favor dosassentados, foi uma obra de justia e de promoo. Justia como ressarcimentoda dvida histrica do Estado para com os ex-escravos e seus descendentes nuncaindenizados pelos sculos de trabalho forado. Promoo, porque permitiu aliberao de um surpreendente potencial das organizaes camponesas.

    RosaGauditano/AbrilImagens

    Dom Tomas: De fato,o socialismo o horizonte.

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    14/16

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 200120

    DE P O I M E N T O DE D O M T OMAS BAL DU NO

    Mas por que a migrao campo-cidade continua? H aquele dado apavoradorde 400 mil pequenos e mdios estabelecimentos rurais extintos entre 95 e 98. Jh 80%da populao brasileira inchando as cidades. Por que? que a agriculturano Brasil vem passando por um pesado processo de empobrecimento progressivo.Com efeito, 81% dos agricultores quedetm um estabelecimento de 50 ha

    esto ganhando menos do que o salriomnimo. Em Recife aportou um naviocarregado de milho transgnico, maisbarato do que o mesmo cereal que elemento cultural da produo do agricultor da regio. A tal abertura neoliberalcolocou, em posio de extrema desigualdade, o pequeno agricultor familiar emface dos seus macroconcorrentes multinacionais. Acrescente-se a isto a grandeexportao agrcola, questo proclamada como de vida ou de morte para aeconomia do pas. Aqui no se poupam recursos nem no incentivo produo,nem na infra-estrutura viria, at de hidrovias, de escoamento da mesma. Com

    relao aos assentamentos, esto amargando o corte no oramento do Incra desteano de 2001. Este oramento o menor em todo o governo FHC. Apenas R$ 1bilho e 227 milhes. Alis, isto vem diminuindo progressivamente desde 1997.Basta visitar os assentamentos, antes to esperanosos, para se perceber o desnimoem que se encontram.

    O agrobusiness

    ESTUDOSAVANADOS Eu queria ouvir sua opinio sobre o seguinte: comoo senhor v a questo do agrobusiness? Para mim, tenho claramente a noo detodos os malefcios ecolgicos, deturpao da ocupao da terra etc. Mas,

    bancando o advogado do diabo, o agrobusiness, as grandes plantaes de soja,milho, arroz e tambm a pecuria, hoje essenciais ao pas do ponto de vista de seconseguir exportar, quer dizer, alm de recurso cambial, tambm do abastecimentodo pas, enfim, como o senhor v o relacionamento com essa coisa tremenda queparece ter chegado para ficar, esse agrobusiness poderosssimo?

    Dom Tomas Balduno O agrobusiness conseqncia lgica do modelocapitalista de produo. A produo associada ao lucro, mas tanto lucro quantoproduo tem sua autonomia prpria, de modo que est tambm na sua lgicaproduzir por produzir.

    J h 80%

    da populao brasileira

    inchando as cidades ...

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    15/16

    AAO DA IGREJA CAT LICA E O DESENVOLVIMENTO RURAL

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 2001 21

    A ningum convence a proposta de se confiar s grandes empresas agrcolasa responsabilidade de acabar com a fome no mundo. J vem acontecendo, h

    muito tempo, a superproduo de alimentos e a fome continua matando maisgente. A concentrao e a partilha so universos que se excluem.

    Duas coisas nos preocupam no agrobusiness: primeiramente, a devastao.Falo sobretudo e com pesar da destruio do Cerrado para o plantio da soja. OCerrado est desaparecendo e com ele aquela biodiversidade fabulosa, sem falarna imensa variedade de frutas gostosssimas que alimentavam as pessoas, os animais,as aves. J foram feitos estudos apontando a importncia do Cerrado, tanto oumais do que a mata amaznica, para o equilbrio ecolgico do continente e doplaneta. E o Cerrado, dada a sua fragilidade, est mais sujeito transformaonum grande deserto. Os efeitos nefastos disso j so constatados na morte do rio

    So Francisco.A segunda preocupao surgiu pelo embate com as empresas produtoras

    de transgnicos, tendo frente a Monsanto, que contam com pleno apoio destegoverno e s no tomaram ainda conta do campo em razo de problemas que searrastam no Judicirio com relao garantia sanitria no que se refere ao consumodos produtos transgnicos.

    Admito que este um problema srio. Mas digo sempre que o maior venenoque trazem estas empresas est precisamente na morte do pequeno agricultorfamiliar. Com efeito, detendo a chave de uma tecnologia inacessvel ao lavrador,de posse do monoplio das sementes, dos adubos e dos agrotxicos, contandocom os subsdios financeiros e todas as facilitaes da poltica oficial, s resta aopequeno agricultor bater em retirada para engrossar as favelas de alguma cidade.

    Terra sem males

    ESTUDOSAVANADOS Nosso tempo est se acabando, mas se o senhorquiser dizer mais alguma coisa...

    Dom Tomas Balduno Lembrei-me da parbola de Jesus sobre o bomSamaritano. Em resumo, o Samaritano levantou um cado no caminho, vtima deuma agresso, e a lio evanglica que este cado, uma vez de p, tornou-se

    capaz de fazer o mesmo, levantar outros cados.Nossa ao pastoral tem sua razo de ser, como disse anteriormente, no

    apoio solidrio aos homens e mulheres da terra, sujeitos de sua prpria histria.No diria que este apoio explica tudo o que aconteceu com as diversas organizaesde camponeses, especialmente o MST, mas boa parte da nossa pastoral. Talvezseja por isso que esta organizao camponesa conserva uma mstica que lhe dgrande energia na luta de resistncia e de conquista. De qualquer forma, nosenchemos de esperana pelo fato de existir hoje em nosso pas uma notvelorganizao do povo da terra, j com 16 anos de existncia. Isto representa uma

  • 7/25/2019 Igreja e Des Rural

    16/16

    ESTUDOSAVANADOS 15 (43), 200122

    DE P O I M E N T O DE D O M T OMAS BAL DU NO

    grande vitria em face da correlao de foras no governo e na sociedade, com amesma vigilante ateno que acabou destruindo Palmares, Canudos, Contestado

    e as Ligas camponesas.Finalmente, gostaria de aludir ao nosso aprendizado, como agentes de

    pastoral, a partir, naturalmente, da leitura bblica e conseqente reflexo sobre aTeologia da Terra, mas tambm nosso aprendizado com a sabedoria dos povosindgenas, de suas organizaes, como a do Exrcito Zapatista de LibertaoNacional de Chiapas, no Mxico, bem como do MST e das diversas organizaescamponesas do Brasil. Trata-se do novo relacionamento com a Terra, no maistida como objeto de explorao, de compra e venda, mas como lugar deconvivncia: a Me Terra. A luta aqui no se enquadra nos estreitos objetivos deconseguir o pedao de cho da sobrevivncia. Terra mais do que Terra. Terra

    a nossa reconciliao com a beleza da Criao, a valorizao de todo homem ede toda mulher, de todos os lugares e culturas. a luta pela democracia, pelaigualdade, pela participao, pela solidariedade, pelo respeito ao diferente. Terratem necessariamente uma dimenso poltica, sem excluir as demais: sociais,culturais, religiosas, econmicas. Terra, numa palavra, o Jubileu. o espao e otempo do mstico reconhecimento do rosto paterno e materno do Deus quecriou este universo e nos criou, como dizem os ndios Guarani, para esta aventurada conquista da Terra sem males.