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Ágora. Estudos Clássicos em Debate 10 (2008) 129-154 — ISSN: 0874-5498 Horace et Lydie de François Ponsard: uma amplificatio da Ode III, 9 de Horácio LIANA ASSUNÇÃO Centro de Línguas e Culturas — Universidade de Aveiro Abstract: Horace et Lydie is a comedy by François Ponsard that constitutes an adaptation of Horace’s ode III, 9. In this article, we carry out an analysis of the Latin sources by means of which we hope to highlight the strategies Ponsard resorts to in order to assimilate not only the above-mentioned ode, but also other general topics pertaining to Horatian lyrical poetry. Therefore, by establishing both the similarities ans differences with the Latin text, we seek to enquire the author’s intention and motivation. Keywords: Horace et Lydie; Ponsard; Horace; amplificatio; intertextuality; humour; Classicism; Romanticism. No dia 22 de Abril de 1843, estreava no teatro do Odéon em Paris, com a assinatura de François Ponsard, a peça Lucrèce, tragédia de inspi- ração clássica cujo assunto ressuscitava um acontecimento das páginas da História Romana, conforme narrado por Tito Lívio 1 . O êxito fervoroso que a representação obteve junto do público em geral e dos críticos e intelectuais, precisamente no mesmo ano em que Victor Hugo vira fracassar o seu drama Les Burgraves, rapidamente foi entendido como uma vitória do teatro clássico sobre o romântico, numa altura em que as antigas querelas se tinham reanimado. Deste modo, a tragédia Lucrèce marca um ponto de viragem no drama francês 2 , assinalando o triunfo da Texto recebido em 12.11.2007 e aceite em 22.01.2008. Bolseira de Doutoramento da FCT. 1 Lucrécia era mulher de Tarquínio Colatino, famosa pela sua beleza e, mais ainda, pela sua virtude. Tendo sido violada por Sexto, um dos filhos do rei Tarquínio o Soberbo, Lucrécia não conseguiu conviver com a vergonha e, depois de revelar ao seu pai e ao seu marido o sucedido, deu a morte a si própria com um punhal. 2 Não deixa de ser interessante notar que esta espécie de contra-revolução no teatro tenha sido protagonizada por um homem que se dizia seguidor dos ideais românticos e se confessava admirador exclusivo de Victor Hugo. Inicialmente, Ponsard era um romântico convicto, que escrevia para a Revue de Vienne atacando ferozmente os clássicos, e a sua tragédia Lucrèce nasce não de uma convicção interior, mas do pedido de um amigo que o adverte para as novas tendências literárias.

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    Horace et Lydie de Franois Ponsard: uma amplificatio da Ode III, 9 de Horcio

    LIANA ASSUNO Centro de Lnguas e Culturas Universidade de Aveiro

    Abstract: Horace et Lydie is a comedy by Franois Ponsard that constitutes an adaptation of Horaces ode III, 9. In this article, we carry out an analysis of the Latin sources by means of which we hope to highlight the strategies Ponsard resorts to in order to assimilate not only the above-mentioned ode, but also other general topics pertaining to Horatian lyrical poetry. Therefore, by establishing both the similarities ans differences with the Latin text, we seek to enquire the authors intention and motivation.

    Keywords: Horace et Lydie; Ponsard; Horace; amplificatio; intertextuality; humour; Classicism; Romanticism.

    No dia 22 de Abril de 1843, estreava no teatro do Odon em Paris, com a assinatura de Franois Ponsard, a pea Lucrce, tragdia de inspi-rao clssica cujo assunto ressuscitava um acontecimento das pginas da Histria Romana, conforme narrado por Tito Lvio1. O xito fervoroso que a representao obteve junto do pblico em geral e dos crticos e intelectuais, precisamente no mesmo ano em que Victor Hugo vira fracassar o seu drama Les Burgraves, rapidamente foi entendido como uma vitria do teatro clssico sobre o romntico, numa altura em que as antigas querelas se tinham reanimado. Deste modo, a tragdia Lucrce marca um ponto de viragem no drama francs2, assinalando o triunfo da

    Texto recebido em 12.11.2007 e aceite em 22.01.2008. Bolseira de Doutoramento da FCT. 1 Lucrcia era mulher de Tarqunio Colatino, famosa pela sua beleza e, mais

    ainda, pela sua virtude. Tendo sido violada por Sexto, um dos filhos do rei Tarqunio o Soberbo, Lucrcia no conseguiu conviver com a vergonha e, depois de revelar ao seu pai e ao seu marido o sucedido, deu a morte a si prpria com um punhal.

    2 No deixa de ser interessante notar que esta espcie de contra-revoluo no teatro tenha sido protagonizada por um homem que se dizia seguidor dos ideais romnticos e se confessava admirador exclusivo de Victor Hugo. Inicialmente, Ponsard era um romntico convicto, que escrevia para a Revue de Vienne atacando ferozmente os clssicos, e a sua tragdia Lucrce nasce no de uma convico interior, mas do pedido de um amigo que o adverte para as novas tendncias literrias.

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    cole du bon sens, da qual o seu autor, Franois Ponsard, foi proclamado chef 3.

    A visibilidade alcanada nesta fase pelo teatro clssico, em geral, e por Ponsard, em particular, beneficiou muito das interpretaes da actriz lisabeth Rachel Flix, famosa por desempenhar o papel das heronas clssicas nas tragdias de Corneille, Racine e Voltaire.

    No entanto, o jovem Ponsard, cujo xito da sua primeira produo literria lhe assegurou um lugar na histria da literatura francesa, pagaria caro o preo da fama, pois as duas peas que se seguiram, Agns de Mranie (1846) e Charlotte Corday (1850) parecem ter ficado muito aqum das expectativas do pblico, embora sejam consideradas pelos crticos muito superiores a Lucrce, sobretudo Agns de Mranie4. Ponsard s voltaria a conhecer algum, relativo, sucesso quando se voltou para a comdia de costumes, nomeadamente com a pea lHonneur et lArgent (1853), que, aproveitando os lugares comuns de todos os tempos, apresentava uma crtica moralista sociedade burguesa actual.

    Entretanto, na tentativa de alterar a sua sorte, o dramaturgo retoma-ria as composies de temtica clssica, investindo no estudo sobre Homero, do qual resultaria um poema em cinco cantos (Homre, 1852) e uma tragdia (Ulysse, 1852) baseada na histria da Odisseia e que recuperava um dos elementos fundamentais da tragdia grega o coro.

    Mais curioso ainda o facto de a pea ter sido inicialmente recusada pelo comit de leitura, sendo considerada repleta de romantismo. Cf. Eugne de Mirecourt, Ponsard (Paris 1855) 33-36, 60.

    3 A cole du bon sens, cuja durao no excedeu uma dcada, era um crculo literrio, fundado por Ponsard e seus admiradores, que proclamava a sobriedade contra os excessos dos romnticos, sobrepondo o controlo da razo ao corao. Alm disso, os seus membros acabaram por se envolver na vida poltica, denunciando os exageros dos revolucionrios, o que lhes valeu o proteccionismo do regime de Napoleo Bonaparte. Cf. D. Giovacchini, Bons sens: J.-P. de Beaumarchais, Daniel Couty, Alain Rey, Dictionaire des littratures de langue franaise (Paris 1984) 295.

    4 Cf. Eugne de Mirecourt, op. cit., 72-73; Francisque Sarcey, Quarante ans de thtre: feuilletons dramatiques (Paris 1900-1902) 309-312. A esse propsito, Francisque Sarcey diz que cest un des traits curieux de Ponsard, quil a toujours triomph avec ses moindres pices. Cela seul prouverait quil ntait pas un gnie de trs haute vole. Il na pas su dominer les circonstances ; il en a t le jouet. (op. cit., 313)

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    Apesar da opinio favorvel da imprensa, Ulysse somaria mais um fracasso malfadada carreira do autor, que a partir da seria apelidado de Ponsard-pas-de-chance5, e s teve duas representaes graas msica dos coros.

    No entanto, dois anos antes, em 1850, Ponsard havia levado cena uma outra pea de assunto clssico: tratava-se de Horace et Lydie, uma pequena comdia num acto, escrita para Mlle Rachel a pedido desta, como forma de compensao por lhe ter recusado o papel de Charlotte. Independentemente da reaco do pblico (que Eugne de Mirecourt nos diz ter sido glacial6, enquanto D. Giovanicchini nos fala de algum sucesso7), Horace et Lydie uma pea menor no repertrio do autor, pois no consta nas histrias da literatura nem mereceu dos crticos do autor mais que meia dzia de linhas, quando no a omisso total.

    O nosso interesse nesta obra no se prende com a genialidade e originalidade do seu autor, pelo que no faremos uma anlise do ponto de vista da tcnica dramtica ou do seu valor literrio. Sendo Horace et Lydie uma adaptao de uma ode horaciana, o nosso estudo consistir antes numa anlise das fontes, descortinando a forma como Ponsard se apropria da composio potica de Horcio, a estende e a altera, tendo em vista determinados objectivos.

    A ode III, 9, de estrutura dialogada, apresenta-nos um delicioso quadro amoroso em que dois amantes Ldia e um homem no nomeado, que se costuma identificar com o prprio Horcio aps um breve arrufo de amor, fazem as pazes e tudo acaba bem. Numa tentativa de provocao e cimes, Ldia e o seu antigo amante discutem sobre as suas novas conquistas Calais e Clo, respectivamente, procurando cada um deles demonstrar que as qualidades e virtudes do seu par so superiores. No final, ambos chegam concluso de que o antigo amor

    5 Eugne de Mirecourt, op. cit., 81. 6 Cf. idem, 76. 7 Cf. D. Giovacchini, PONSARD Franois: J.-P. de Beaumarchais, Daniel

    Couty, Alain Rey, Dictionaire des littratures de langue franaise (Paris 1984) 1177.

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    superior e incontornvel e, por isso, decidem aceitar pacificamente as imposies de Vnus.

    Admitindo que o interlocutor de Ldia Horcio, Ponsard pega nesse pequeno dilogo e dramatiza-o, recuperando integralmente todos os tpicos presentes no original. Deste modo, a sua adaptao assume a forma de uma amplificatio8, na medida em que retoma o contedo do poema latino sem o alterar, apenas o alarga, de forma a criar-lhe um con-texto dramtico, em que se acrescentam pormenores aco, se exploram os caracteres das personagens e se introduzem tcnicas humorsticas.

    A grande alterao que se evidencia no texto francs a mudana do modo lrico para o dramtico, que, de certa forma, tambm resulta do desenvolvimento de um recurso existente, de forma mais reduzida, no original o discurso directo. Na verdade, a estrutura dialogada da ode horaciana aproxima-se do carmen amoebeum, forma tpica da poesia buclica, em que dois pastores rivalizam entre si, utilizando um canto alternado9. O objectivo retomar a forma e argumentos de que o outro se serviu anteriormente, mas introduzindo alguma variao, de modo a superar o adversrio10.

    Horace et Lydie11 uma pea num acto e em duas cenas, onde, alm dos protagonistas Horcio e Ldia, intervm uma terceira perso-nagem, ausente no texto latino: Bero, escrava de Ldia. A presena da escrava assume uma funo dramtica, porquanto um elemento muito comum na comdia, sendo fiel confidente da ama e funcionando, muitas

    8 Procedimento originrio da retrica que consiste num aumento gradual do

    que dado, sendo esse alargamento primeiramente vertical, isto , de contedo, e consequentemente horizontal, ou seja de extenso da formulao lingustica. Cf. Heinrich Lausberg, Elementos de retrica literria, trad. R. M. Rosado Fernandes (Lisboa 2004) 71-72.

    9 No despiciendo o facto de Horcio recorrer a esta forma numa ode em que aborda uma peripcia amorosa, uma vez que um dos temas centrais da poesia pastoril o amor, na sua vertente mais desditosa, em que enfrenta problemas e obstculos motivados pela indiferena, pela infidelidade e pela ausncia.

    10 Cf. Richard Lawrence Hunter (ed.), Theocritus: a selection (Cambridge 1999) 6-8.

    11 A edio que seguimos neste trabalho e qual se reportam todas as nossas citaes Oeuvres completes de F. Ponsard. Tome 1 (1865) 361-388.

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    vezes, como fonte de humor. Aqui, ela desempenha esse papel de criada e confidente e facilita a comunicao entre as pessoas do drama, sendo ainda o interlocutor de Ldia na cena que antecede e introduz a intriga. A escolha do nome no fortuita, j que Bere () era na mitologia a escrava de Smele, conforme nos dado a conhecer por Ovdio12. Deste modo, Ponsard recupera o nome duma escrava conhecida da mitologia e literatura latinas, de forma a manter o ambiente histrico do texto, ao mesmo tempo que revela um grande conhecimento dos clssicos, pois Bere uma figura pouco referenciada pelos autores.

    A primeira cena funciona, como j referimos, como uma espcie de introduo pea, localizando a aco no tempo e no espao e apre-sentando os elementos essenciais da intriga.

    Ponsard tenta inserir a obra, por um lado, num contexto histrico que a localize no espao de Roma e no tempo do Imprio de Augusto e, por outro, no co-texto da lrica horaciana, invocando topoi recorrentes da escrita do poeta venusino.

    O primeiro elemento que coloca a obra no espao romano a didasclia inicial, que indica que a aco se passa numa chambre somptueuse, Rome.

    Ao longo da Cena I, a localizao espcio-temporal da pea vai sendo feita, atravs da recuperao de tpicos, hbitos, pessoas e lugares da cultura clssica em geral.

    Um desses exemplos a oposio entre os romanos, smbolo de cultura e gosto, e os estrangeiros brbaros, quando a escrava refere que Horcio gostar certamente do penteado de Ldia:

    Sil nen est pas charm, le pote romain A le got plus grossier quun barbare germain. (vv. 5-6)

    Esta dicotomia cultural entre romanos e brbaros parece ser aproveitada pelo autor como ponto de partida para uma insinuao

    12 Juno, cansada das traies de seu marido Jpiter, decide vingar-se da sua

    amante Smele, que esperava um filho do pai dos deuses. Para tal, tomou a forma da serva desta para lhe poder dar conselhos e, deste modo, atra-la para uma cilada. Cf. Ov., Met. 3.260-310.

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    metapotica da oposio entre as correntes literrias clssica e romntica. Deste modo, a identificao do brbaro com o povo germnico pode ser entendida como uma aluso ao Romantismo, j que o movimento teve origem na Alemanha, ao mesmo tempo que, no verso anterior, o adjectivo romain remete para as fontes latinas do Classicismo.

    Procurando realar a beleza e elegncia do penteado e da indumen-tria de Ldia, o dramaturgo compara-a a personagens da literatura ou da histria clssicas, como Vnus e Helena no primeiro caso, cones da beleza feminina, e s esttuas de Fdias, no segundo caso, maior escultor da Antiguidade:

    LYDIE () Telle apparut, dit-on, Vnus au mont Ida. BERO Mais ainsi se coiffait la fille de Lda. (vv. 9-10)

    LYDIE Ces plis tombent-ils bien? BERO Les divines statues, Dun voile arien par Phidias vtues, Moins purs et moins lgers laissent tomber les plis () (vv. 19-21)

    A nomeao de gentes conhecidas da altura como se fossem pessoas contemporneas das personagens, como, por exemplo, os Drusos e os Pises no verso 41, tambm contribui para a povoao deste universo histrico.

    No que diz respeito a lugares, encontramos menes geogrficas a regies ou rios famosos no mundo romano pelos seus produtos ou caractersticas: tal o caso do mrmore de Paros (v. 22), muito conhecido e apreciado pela sua brancura, que era usado nos templos e esttuas; do Pactolo (v. 35), rio da Ldia que arrastava o ouro e era, por isso, smbolo de riqueza; das ostras do lago Lucrino (v. 54), do qual provinham os melhores mariscos; do bronze de Corinto, considerado pelos clssicos um dos mais valiosos metais, ou das urnas toscanas (v. 60); e ainda das prpuras de Cs (v.65). interessante notar que, apesar de serem de uso comum e de se encontrarem atestadas em vrios autores, todas estas

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    expresses podem ser encontradas entre o lxico horaciano13, cumprindo assim um duplo objectivo de aproximao poca e ao autor.

    Outra funo desempenhada pela primeira cena a apresentao e caracterizao das personagens principais, para a qual Franois Ponsard aproveita algumas informaes presentes de modo disperso no conjunto da obra do poeta latino.

    Assim, Horcio, ainda ausente nesta cena, -nos dado a conhecer pela boca de Ldia, que revela a Bero que o seu amante um poeta pobre, filho de um liberto e instvel no amor:

    Le lierre est le feuillage aim de mon pote. () Cest pour Horace, fils dun esclave affranchi, Que brillent ces bijoux sur mon sein enrichi. () Le volage! partout il soupire de mme. (vv. 24-32)

    A incluso da hera entre os adornos de Ldia uma interessante estratgia de Ponsard para passar subtilmente caracterizao de Horcio, j que esta planta era o smbolo dos poetas na Antiguidade, qual o prprio poeta alude muitas vezes, e com algum destaque logo na ode de abertura14.

    Relativamente pobreza e origem humilde, estas so assumidas pelo poeta latino como uma realidade autobiogrfica em vrios momentos e nos diferentes gneros por ele cultivados15.

    A descrio de Horcio como um vrio, que recorda ao leitor as inmeras paixes do Horcio sujeito lrico, antecipa j o que vai acontecer na cena seguinte. Alm disso, tambm so introduzidos, ainda nesta cena, os rivais Clo e Calais e o tpico do cime de Clo.

    Assume um particular interesse, na parte final da cena, o longo discurso de Ldia acerca do valor da poesia, pela relao que guarda com

    13 Assim, podemos encontrar referncia ao resplendor do Pario marmore

    (Carm. 1. 19. 6), ao Pactolus como metfora de prosperidade (Epod. 15. 20), aos Lucrina conchylia (Epod. 2.49), ao ebur Corinthus (Ep. 2. 1. 193) e s Coae purpurae (Carm. 4. 13. 13).

    14 Cf. Carm. 1.1.29-30. 15 Cf. Carm. 2. 20. 5-6; Carm. 3. 30. 12; S. 1. 6; Ep. 1. 20. 20.

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    a lrica horaciana. Com o intuito de se mostrar uma mulher honrada e que no se deixa corromper pelas riquezas fteis, Ldia comea a discorrer sobre a magnanimidade dos poetas, que, apesar da sua condio humilde, se aproximam, pelo seu canto, dos prprios deuses:

    Il na que ses chansons et ses donne aux chos; Mais les dieux sont pour lui; la Muse dlicate() (vv. 66-67)

    A poesia eleva os poetas acima do comum dos mortais, transfor-mando-os em seres superiores e quase divinizados. Este um topos muito recorrente em Horcio, ao qual dedica vrias composies e reflexes ao longo da sua obra. Ponsard, nestes versos, no s retoma essa ideia, como conserva evidentes ecos verbais de algumas passagens horacianas, nomeadamente quando o poeta se afirma como sacerdote das Musas (Musarum sacerdos16) ou se julga entre os deuses (Me doctarum hederae praemia frontium/ Dis miscent superis17).

    Na sequncia do discurso, Ldia vai mais longe e reconhece, numa interrogao retrica muito expressiva, a imortalidade pela poesia:

    Et puis, Bero, nest-ce pas quelque chose Que limmortalit dont la Muse dispose? (vv. 83-84)

    Facilmente vem memria do leitor, perante estes versos, a famosa ode III, 30 que encerra a primeira srie de trs livros, na qual Horcio proclama com orgulho e solenidade que erigiu um monumento eterno de palavras, que lhe garante que no morrer totalmente. Igualmente lembramos a tambm clausular ode II, 20, em que atravs da metfora da metamorfose num ser hbrido pssaro-homem, o poeta se afirma superior s contingncias terrestres, pois sobreviver enquanto a sua fama se espalhar por toda a parte. No texto francs, toda esta ideia est condensada num nico verso, que no tem um tom to elevado nem um to grande alcance, invocando pelo lxico um outro verso horaciano mais comedido: dignum laude uirum Musa uetat mori18.

    16 Cf. Carm. 3. 1. 3. 17Cf. Carm. 1. 1. 29-30. 18 Cf. Carm. 4. 8. 28.

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    Porm, a imortalidade no um privilgio apenas do poeta, mas tambm de todos aqueles que ele eterniza no seu canto, como o caso de Rmulo, aco, Hrcules, Castor e Plux, apontados por Horcio nessa mesma ode. Do mesmo modo, o dramaturgo coloca na boca de Ldia alguns exemplos de personagens imortalizadas pela poesia:

    Hlne aux beaux cheveux vivra dans tous les ges; Tant quon reconnatra lempire de Vnus, Lesbie et Lycoris auront des noms connus; (vv. 88-90)

    No entanto, ao invs de apresentar exempla mitolgicos, Ponsard nomeia figuras femininas como Helena, smbolo da beleza grega, e Lsbia e Licris, amadas dos poetas latinos Catulo e Galo. Esta alte-rao parece mais adequada temtica amorosa da pea e serve um propsito humorstico, j que Ldia, que se dizia to desinteressada, aproveita para se nomear e antever a sua fama:

    Et, partageant lhonneur de sa muse applaudie, Toujours avec Horace on nommera Lydie. (vv. 91-92)

    Com a apropriao deste tpico horaciano, Ponsard parece querer, alm de aproximar a sua obra s caractersticas lricas do autor latino, expressar a sua opinio sincera acerca da grandeza e perenidade da literatura, pois o tom srio do excerto nem sequer se adequa a uma pea que pretende ser uma comdia.

    A ansiedade e impacincia de Ldia perante o atraso de Horcio permitem regressar aco, fazendo a transio para a segunda cena que, assim, se inicia numa atmosfera humorstica com os queixumes dos amantes. nesta cena que se condensa toda a trama, que, como j dissemos, resulta duma ampliao da ode III, 9, em que aos elementos do original Ponsard acrescenta novos dados circunstanciais ou pequenas alteraes, motivados pela prpria genealogia do texto ou pelo desejo do autor em manter o colorido clssico na pea.

    Assim, Horcio, para tentar acalmar Ldia e mostrar-lhe que no tem por que estar amuada, diz-lhe que por ela deixou Mecenas sua espera e preteriu o Falerno e as novidades do dia sua companhia.

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    Mecenas era, na realidade, protector do poeta e seu amigo verdadeiro19, a quem este dedicou muitas composies. O convvio ntimo entre ambos, que Ponsard invoca como um factor circunstancial, est atestado nalguns poemas, como na ode III, 8, em que Horcio convida o amigo para festejar consigo o facto de ter escapado morte num acidente, ou na ode IV, 11, na qual d a conhecer que oferecer na sua prpria casa a festa de aniversrio do amigo.

    A referncia a Mecenas aproveitada pelo autor francs como mote para, mais uma vez, imergir no contedo da lrica horaciana, evo-cando os preceitos da doutrina epicurista, de que o autor latino era discpulo e pelos quais to conhecido.

    Deste modo, Horcio, a personagem dramtica, inicia um discurso, em que invoca Mecenas recordando-lhe as preocupaes e cuidados que lhe acarreta a governao de Roma:

    Toi, Mcne, charg du poids de nos destins, Tu veilles sur lempire et les peuples lointains; Tu prpares notre aigle aux guerres que projette Le Cantabre indocile ou lerrant Massagte (vv.141-144),

    para depois finalizar com um convite ao aproveitamento dos prazeres da vida, como comer, beber e o amor:

    Il ne ddaigne pas les mets exquis, non plus Qun vin mis au cellier sous le consul Tullus; Mais cest lamour surtout, cest lamour qui lenchante

    (vv. 157-159)

    19 Ao contrrio da amizade com Augusto, que muitos comentadores no

    consideram sincera (Cf. Jos Luis Vidal, La poesia augustea de Horacio: Rosario Corts Tovar y Jos Carlos Fernndez Corte (eds.), Bimilenario de Horacio (Salamanca 1994) 152-153), a relao de Horcio com Mecenas parece ser honesta. Nesse sentido, de sublinhar que Ponsard apenas se refira a essa amizade, quando o nome de Augusto tambm aparece mencionado uns versos mais acima. Joo de Deus faz uma traduo deste mesmo texto de Ponsard, onde substitui Mecenas por Csar Augusto. Cf. Campo de flores: poesias lricas completas (Lisboa 2002) 214-221. Essa alterao no motivada por exigncias de rima, pelo que podemos conjecturar que talvez Joo de Deus achasse a invocao de Augusto mais apropriada temtica da guerra.

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    O modelo para este discurso parece ser a mesma ode III, 8, construda sobre esta estrutura bipartida, em que a bebida evocada como esquecimento das ocupaes pblicas. No entanto, Ponsard, no seu texto, d mais nfase temtica do carpe diem, que desenvolve, ao longo de dez versos, em trs pontos essenciais, tomados todos eles de odes horacianas com as quais estabelecem uma relao de intertextualidade inclusivamente a nvel lexical.

    Assim, o ponto de partida a constatao da ignorncia do ser humano face ao futuro e, portanto, da inutilidade de todas as nossas preocupaes que vo nesse sentido:

    Mai quoi! les dieux prudents nous voilent lavenir. Quel lendemain suivra le jour qui va finir? Nul ne sait; y songer est un souci frivole. (vv. 145-147)

    De igual modo, tentara dissuadir Horcio a Taliarco (quid sit futurum cras fuge quarere20) e a Leucnoe (Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi/ finem di dederint, Leuconoe21).

    A partir da, segue-se uma reflexo sobre a fugacidade do tempo, que parece ter sido decalcada da segunda estrofe da ode II, 11 de Horcio:

    Cependant le temps fuit; la jeunesse senvole, Emportant avec elle et les joyeux discours, Et le sommeil facile, et lge des amours. Donc, puisque la jeunesse est chose si lgre() (vv.148-151)

    As semelhanas de estilo e de linguagem entre o texto francs e os versos latinos so bvias, como se comprova pela recuperao do lxico horaciano, que a seguir assinalamos:

    Fugit retro leuis iuuentas et decor, arida pellente lasciuos amores canitie facilemque somnum. (vv. 5-8)

    20 Cf. Carm. 1. 9. 13. 21 Cf. Carm. 1. 11. 1-2.

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    No final, a exortao ao aproveitamento do momento presente enquadra-se na isotopia do carpe diem horaciano:

    Cueillons, quand il est temps, cette fleur passagre. (v. 152)

    Todavia, a expresso usada por Ponsard apresenta-se como uma variao da metfora carpe diem, na qual o segundo elemento (o dia) substitudo por outro mais esperado, na medida em que se enquadra no campo semntico aceite pelo primeiro termo a flor passageira. Assim, o autor constri uma nova metfora, que resulta da fuso de duas expresses horacianas carpe diem22 e breuis flores23 e, ao mesmo tempo, retoma a linha do collige, uirgo, rosas, verso geralmente atribudo a Ausnio24, responsvel pela continuidade e difuso da filosofia epicurista de Horcio ao longo da Idade Mdia.

    Estas palavras proferidas por Horcio, que aparentemente consti-tuem um parntesis intriga, tm a funo de amolecer o corao de Ldia, atravs da exaltao final do amor. Seguidamente, os amantes trocam juras de amor, um amor intenso e arrebatador, expresso atravs de um jogo de hiprboles, em que cada um tenta superar o que o outro dissera, recuperando a estrutura de carmen amoebeum. O efeito natural-mente cmico:

    HORACE Quand mon cur brlera pour une autre matresse, On verra le Bouvier, connu des matelots, Abandonner le ple et plonger dans les flots. LYDIE Le zphyr soufflera du ct de la Thrace, Avant quun autre amant succde mon Horace. HORACE Mettez-moi sous les bords glacs du Pont-Euxin, Ou sous le char brlant du soleil trop voisin,

    22 Cf. Carm. 1. 11. 8. 23 Cf. Carm. 2. 3. 13-14. 24 Esta expresso oriunda do verso 49 do poema De rosis nascentibus, onde

    se aconselha ao gozo pleno da juventude, simbolizada pela frescura da rosa. Embora se costume identificar Ausnio como o autor do poema, a sua origem espria levou a que fosse por vezes atribudo a Verglio.

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    Partout je taimerai, toi pour qui je respire, Lydie au doux parler, Lydie au doux sourire. (vv.188-196)

    Embevecida, por um lado, e desconfiada, por outro, Ldia quer lavrar os juramentos nas tabuinhas de Horcio, ao que este oferece alguma resistncia, alegando que j l rabiscara um poema. Receando que Ldia descubra que esse canto no dirigido a ela, mas a Clo, Horcio insiste em recitar ele o poema, substituindo o nome de Clo, por Ldia. No entanto, esta teima em l-lo e acaba por descobrir a traio.

    Este poema extremamente importante do ponto de vista dramtico, uma vez que o factor que despoleta a discusso, introdu-zindo de forma natural e verosmil o motivo da infidelidade, que tambm est presente na ode III, 9. H, no entanto, uma diferena a esse nvel, j que no texto francs Horcio quem infiel (o que j tinha sido indiciado na Cena I pela sua caracterizao), ao passo que no texto latino ambos se encontram envolvidos em novas relaes, ainda que Ldia seja a primeira a ser acusada.

    Esta composio potica tambm muito interessante do ponto de vista da intertextualidade literria, porquanto constitui um excurso lrico, no qual Ponsard, apoderando-se de termos, hemistquios ou versos hora-cianos provenientes de diferentes odes, os articula e sintetiza consoante as necessidades mtricas e rtmicas, conferindo-lhes grande unidade. Para uma melhor visualizao das similitudes, transcrevemos o excerto francs acompanhado da citao dos versos latinos nos quais o autor se inspirou (anexo I).

    Formalmente, nota-se uma preocupao de Ponsard em distinguir este pequeno trecho lrico do modo dramtico em que ele aparece inse-rido, j que neste ponto abandona o metro alexandrino e opta por uma estrutura em quadras, constitudas por pares intercalados de versos de doze e de seis slabas, que rimam entre si.

    Quanto ao contedo, podemos identificar duas partes, equitativa-mente compostas por catorze versos cada uma. O poema abre com uma descrio das transformaes naturais e mitolgicas operadas pela chegada da Primavera, que retoma a temtica e o lxico das odes I, 4,

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    IV, 7 e IV, 12. Todavia, a passagem cclica das estaes e a renovao constante da natureza, que em I, 4 e IV, 7 serviam de mote para uma reflexo profunda sobre a inevitabilidade da morte, esto ausentes no texto francs. A paisagem aqui descrita esttica, sendo a Primavera motivo para convite no reflexo, mas ao gozo dos pequenos prazeres, tal como acontece em IV, 12. A segunda parte encerra, ento, uma formu-lao do carpe diem, conforme expresso na ode II, 11, que Horcio dirige a Quinto Hirpino, aconselhando-o a esquecer os assuntos pblicos e a refugiar-se numa vida calma, desfrutando do prazer de um bom vinho e dos amores. As reflexes mais inquietantes acerca da brevidade da vida e da inexorabilidade e imparcialidade da morte seriam demasiado pesadas para um texto humorstico, pelo que foram omitidas e o que resta da filosofia epicurista essa lio quase gnmica do bom viver.

    Na ltima estrofe, a invocao de Clo, ao invs de Ldia (na verso escrita do poema), constitui uma paraprosdokian, na medida em que vai contra as expectativas, no s da personagem Ldia, que esperava que o poema fosse dedicado a ela, como do leitor conhecedor da lrica horaciana, que vinha notando as semelhanas com o ode II, 11. Este efeito ainda reforado, de forma evidente, pela rima, j que o esquema usado em todo o poema pressupunha que a palavra final do terceiro verso rimasse com voh e Lydie no rima, mas sim Chlo.

    Uma vez lanado o pomo da discrdia, Ldia adopta uma atitude derrotista e lamenta a sua desgraa (vv. 264-286), mas logo assume o ataque, maldizendo no s Horcio, como toda a classe de poetas:

    On les croit gnreux, tendres et dlicats; Ils ont un sens exquis que les autres nont pas; Dans un monde inconnu leur amour nous fait vivre Bah! ces enchantements ne sont que dans leur livre. Fiction potique! () Et, tant damour en vers puisant leur vigueur, Limagination a ruin le cur. (vv. 317-326)

    No se deve amar os poetas, porque eles so incapazes de retribuir um amor sincero, tudo no passa de fico. O queixume de Ldia habil-

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    mente aproveitado por Ponsard para fazer uma reflexo metaliterria sobre o processo criador do poeta, o qual faz passar todas as emoes pelo filtro da razo25.

    Por isso, Ldia prefere um moo humilde, mas sincero, que a ame de verdade, como Cerntio ou Calais, filho de Ornito. S agora, Calais aparece como potencial amante, apenas invocado por vingana, ao passo que a traio de Horcio efectiva e admitida por ele.

    Ao descrever a personalidade simples de Calais, Ldia retoma um tpico a que j aludira anteriormente, na Cena I a superioridade e imortalidade dos poetas, mas numa perspectiva diferente. O tom agora de crtica e ironia face ao orgulho e pretenso dos poetas:

    Il [Calas] ne veut pas frapper du front les toits clestes, Pour avoir align deux ou trois anapestes; Il ne se change pas en cygne un beau matin; (vv.343-345)

    Por um lado, este tom mais sarcstico parece ser mais adequado finalidade cmica do texto. Por outro lado, Ponsard parece querer apre-sentar os dois lados da mesma moeda ou duas opinies acerca do mesmo assunto: a sua pessoal e a opinio generalizada ou as duas interpretaes que se podem retirar da lrica de Horcio.

    Nos versos seguintes, a aco centra-se na discusso dos amantes, transformada numa provocao em que cada um tenta fazer cimes ao outro, Ldia convidando Calais para jantar e Horcio oferecendo-se para jantar em casa de Clo.

    Seguidamente, debatem os defeitos de cada um a infidelidade, no caso de Horcio, e o mau feitio, no caso de Ldia. Este dilogo (vv. 359-372) aproxima-se muito da forma paralela do carmen amoebeum, uma vez que cada um se expressa usando o mesmo nmero de versos que o outro usara e recuperando a mesma sintaxe numa

    25 Esta parece ser a opinio do autor, a quem os crticos reconhecem um

    esprito estudioso e racionalista, que compensava a sua falta de gnio e imaginao: Son imagination schauffait lentement; elle procdait par rflexion plutt que par grands coups de lumire. Cf. Francisque Sarcey, op. cit., 309.

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    estrutura anafrica (Enfin.../ Enfin...; Quest-ce que.../ Et quest-ce quun; Pour moi/ Moi).

    Entretanto, a ira dos amantes comea a abrandar quando, num momento de alguma comicidade, Ldia tenta provocar Horcio, fingindo--se arrebatada pelo amor que Calais lhe infunde. Horcio, no resistindo, acaricia-lhe o cabelo26 e beija-lhe a mo, elogiando a brancura dos seus dedos e beleza dos cabelos, com as quais Clo no consegue rivalizar.

    A reconciliao concretiza-se atravs de um dilogo, que constitui nada mais nada menos que uma traduo da ode horaciana III, 9, que serviu de fonte pea. Ao inserir a traduo neste ponto da obra, Ponsard sintetiza os principais elementos da trama, como a referncia aos rivais Clo e Calais e traio, para depois rematar com a declarao de amor eterno de Ldia, que por termo aos desentendimentos dos amantes (anexo II).

    Ponsard apresenta uma traduo integral do poema horaciano, embora formalmente reduza o nmero de versos de cada fala de quatro para trs, ficando a traduo francesa com seis versos a menos. Esta alterao motivada pela exigncia de versos alexandrinos, metro em que est escrita toda a obra, tentando, deste modo, o dramaturgo integrar a composio latina no seu prprio texto como se dele fizesse parte.

    De um modo geral, a traduo est bem conseguida, na medida em que capta as ideias essenciais do original, esforando-se por manter os paralelismos semnticos e sintcticos, sempre que possvel. Nas quatro primeiras estrofes, de acordo com os parmetros do carmen amoebeum, Ldia tenta superar Horcio nas suas palavras, retomando vocbulos e estruturas que ele utilizara, mas alterando-as de forma a terem mais fora ou um maior alcance. Ponsard relativamente bem sucedido na conser-vao desses paralelismos, conforme ilustrmos no texto (onde desta-cmos os termos repetidos e sublinhmos o que constitui variao),

    26 Nesta passagem, a referncia ao penteado de Ldia, o cabelo apanhado num

    nico n, constitui mais um pormenor horaciano com que Ponsard decora a aco, j que este penteado maneira lacedemnia aparece mencionado em Carm. 2. 11. 23-24.

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    embora no consiga manter todas as anforas com as quais Ldia inicia o seu discuro.

    De notar que o epteto de Calais, Thurini Calais filius Ornyti, que marca um importante ponto de vantagem para Ldia, porquanto contrasta a condio de Clo, provavelmente escrava, com a de Calais, descendente de famlias ricas e conhecidas, omitido na traduo. No entanto, Ponsard apresenta este mesmo verso, literalmente traduzido, noutra circunstncia, com algum destaque, pois aparece pela boca de Ldia no momento em que o apresenta como rival de Horcio.

    O ritmo inerente composio latina, criado no s pelos parale-lismos, mas tambm pelo prprio esquema mtrico, de algum modo compensado no texto francs pela rima.

    Uma vez restabelecidos os primitivos laos do amor, Horcio e Ldia rejeitam os pretendentes Clo e Calais, mas tudo acaba bem mesmo para eles, pois Horcio sugere que ambos se juntem para cear.

    A adaptao que Ponsard faz do texto horaciano no conhece qualquer actualizao: ainda que a pea seja escrita no sculo XIX, a aco reporta-se ao mundo romano do sculo I a.C. e o autor esfora-se por manter esse colorido histrico e pr as personagens a agir como se fossem pessoas desse tempo, recorrendo ao uso de uma linguagem que evoca realidades ou hbitos do mundo clssico, em geral, e tpicos da poesia horaciana, em particular.

    O objectivo de Ponsard no inovar, mas criar um texto de inspirao clssica dentro dos parmetros exigidos pelo gnero cmico. A ode III, 9 oferece-lhe todos os recursos necessrios, sem precisar de a alterar. Alm de a estrutura dialogada favorecer a adaptao dramtica, o prprio tom do poema humorstico. Horcio, nesta ode, mostra-se um atento observador da realidade, apresentando-nos uma divertida situao domstica em que brinca com as peripcias do amor e a psicologia dos amantes. Aqui, ele comporta-se como um satirista, um espectador da comdia humana, tornado poeta27. Portanto, apesar das diferenas de

    27 Cf. L. P. Wilkinson, Horace and his lyric poetry (London 1994) 133.

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    gnero, ambos os textos apresentam caractersticas da comdia de costumes, convergindo na sua finalidade irnica e humorstica.

    A adaptao de Ponsard no vale pela sua originalidade e imagi-nao, mas sim pela atenta interpretao que o dramaturgo faz da lrica horaciana e pela capacidade que revela em se apropriar dos mais diversos tpicos e pormenores, conciliando-os e condensando-os num estilo sbrio e homogneo e exprimindo-os num verso espontneo e ritmado.

    Alm disso, a pea, no seu todo, pode ter uma leitura mais profunda, estando imbuda duma dimenso metaliterria que reflecte a oposio das correntes literrias que na poca se digladiavam e em cujo confronto o prprio Ponsard se viu envolvido. A descrio que se faz dos poetas nos versos 316-328, dominados por um excesso de racionalismo que os impede de sentir e exprimir sentimentos ou sensaes reais, pode ser lida como a acusao dos romnticos contra os clssicos, ao passo que estes culpavam aqueles do inverso, duma paixo desenfreada e dum talento sem controlo. Se tivermos em conta que esta queixa apresentada pela boca de Ldia, que em todo o poema manifesta uma paixo mais efusiva e fervorosa do que Horcio, e que no final ela lhe perdoa, apesar da sua culpa, podemos ver aqui a superioridade da sua poesia, isto , da poesia de Horcio, paradigma do Classicismo28.

    Assim, Ponsard pode ter-se servido do tema das discrdias amorosas para deixar transparecer as tenses literrias da poca e, ao mesmo tempo, marcar a sua posio, j que inicialmente era defensor dos ideais romnticos e Horace et Lydie marca o incio duma fase da produo do autor em que este se volta novamente para as peas de assunto clssico.

    28 O prprio poeta caricatura na Ars poetica os poetas insanos e furiosos,

    sendo a sua postura a defesa do equilbrio. Cf. op. cit., 453-467.

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    Horace et Lydie de Franois Ponsard: uma amplificatio da Ode III, 9

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    Bibliografia: D. Giovacchini, Bons sens: J.-P. de Beaumarchais, Daniel Couty, Alain

    Rey, Dictionaire des littratures de langue franaise (Paris 1984) 295

    D. Giovacchini, PONSARD Franois: J.-P. de Beaumarchais, Daniel Couty, Alain Rey, Dictionaire des littratures de langue franaise (Paris 1984) 1177

    Eugne de Mirecourt, Ponsard (Paris 1855) Francisque Sarcey, Quarante ans de thtre: feuilletons dramatiques

    (Paris 1900-1902) Franois Ponsard, Oeuvres completes de F. Ponsard. Tome 1 (1865) Heinrich Lausberg, Elementos de retrica literria, trad. R. M. Rosado

    Fernandes (Lisboa 2004) Horacio Silvestre (ed.), Horacio. Stiras. Epstolas. Arte potica. (Madrid

    2003) Hugh G. Evelyn White (trad), Ausonius (Cambridge 1985) Joo de Deus, Campo de flores: poesias lricas completas (Lisboa 2002) Jos Luis Vidal, La poesia augustea de Horacio: Rosario Corts Tovar

    y Jos Carlos Fernndez Corte (eds.), Bimilenario de Horacio (Salamanca 1994) 151-168.

    L. P. Wilkinson, Horace and his lyric poetry (London 1994) Manuel Fernndez-Galiano y Vicente Cristbal (eds.), Horacio. Odas y

    Epodos (Madrid 2007) R.J. Tarrant (ed.), P. Ovidi Nasonis, Metamorphoses (Oxford 2004) Richard Lawrence Hunter (ed.), Theocritus: a selection (Cambridge

    1999)

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    Anexo I

    Compagnons du printemps, les zphyrs ont souffl Dans les voiles tendues;

    Le Tibre, qui se tait, ne roule plus enfl Par les neiges fondues.

    Dans les prs amollis la nouvelle saison Epaissit lherbe frache,

    Et dj le troupeau, quinvite le gazon, Se plat moins dans la crche.

    Dj, dun pied joyeux, Vnus conduit les churs De la ronde commune

    O la Nymphe, et la Grce unie ses deux surs, Dansent au clair de la lune.

    Le soleil nous ramne avec les jours brlants La soif que rien napaise.

    Couchons-nous sous ces pins ou ces peupliers blancs. Pour y boire notre aise.

    Esclave, rafrachis le falerne chauff, Dans cette eau murmurante;

    Puis apporte des fleurs. Jaime boire, coiff De la rose odorante.

    Toujours ne dure pas la gloire du printemps Qui brille sur la rose.

    A quoi bon les soucis, quand pour si peu dinstants Il faut si peu de chose?

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    Horace et Lydie de Franois Ponsard: uma amplificatio da Ode III, 9

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    Anexo I

    frigora mitescunt Zephyris, uer proterit aestas (4.7.9) Iam ueris comites, quae mare temperant, impellunt animae lintea Thraciae; (4.12.1-2)

    iam nec prata rigent nec fluuii strepunt hiberna niue turgidi. (4.12.3-4)

    (...) redeunt iam gramina campis (4.7.1)

    ac neque iam stabulis gaudet pecus (1.4.3)

    iam Cytherea choros ducit Venus imminente Luna, iunctaeque Nymphis Gratiae decentes

    alterno terram quatiunt pede (1.4.5-7)

    Gratia cum Nymphis geminisque sororibus audet Ducere nuda choros. (4.7.5-6)

    adduxere sitim tempora, Vergili; (4.12.13)

    cur non sub alta uel platano uel hac pinu iacentes sic temere (...) potamus uncti? (2.11.13-17)

    quis puer ocius restinguet ardentis Falerni pocula praetereunte lympha? (2.11.18-20)

    () et rosa canos odorati capillos() uncti (2.11.14-15) non semper idem floribus est honor uernis, neque uno Luna rubens nitet uultu: quid aeternis minorem consiliis animum fatigas?(2.11.9-12)

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    Bacchus verse loubli des chagrins. voh! Esclave, coute encore:

    Dans son rduit connu va-ten chercher Lydie Cest Lydie que jadore. (vv. 205-232)

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    Horace et Lydie de Franois Ponsard: uma amplificatio da Ode III, 9

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    quis deuium scortum eliciet domo Lyden?(2.11.21-22)

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    152 Liana Assuno

    Anexo II

    HORACE Tant que tu mas aim, quand nul autre plus digne Nentourait de ses bras ton cou blanc comme un cygne, Jai vcu plus heureux que Xercs, le grand roi.

    LYDIE Tant que tu nas aim personne plus que moi, Quand Chlo ntait pas prfre Lydie, Jai vcu plus illustre et plus fire quIlie.

    HORACE Jappartiens maintenant la blonde Chlo, Qui plat par sa voix douce et son luth enjou; Je suis prt mourir pour prolonger sa vie.

    LYDIE Calas maintenant tient mon me asservie; Nous brlons tous les deux de mutuels amours, Et je mourrais deux fois pour prolonger ses jours.

    HORACE Mais quoi! si jai regret de ma premire chane? Si Vnus de retour sous son joug nous ramne? Si, ltant Chlo, je te rends mon amour?

    LYDIE Encor que Calas soit plus beau que le jour, Toi, plus tratre que londe et plus lger que lheure, Avec toi que je vive, avec toi que je meure! (vv. 423-440)

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    Horace et Lydie de Franois Ponsard: uma amplificatio da Ode III, 9

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    Anexo II

    Donec gratus eram tibi

    Nec quisquam potior bracchia candidae Ceruici iuuenis dabat,

    Persarum uigui rege beatior.

    Donec non alia magis

    Arsisti neque erat Lydia post Chloen, multi Lydia nominis

    Romana uigui clarior Ilia.

    Me nunc Thraessa Chloe regit,

    Dulcis docta modos et citharae sciens, Pro qua non metuam mori,

    Si parcent animae fata superstiti.

    me torret face mutua

    Thurini Calais filius Ornyti, pro quo bis patiar mori,

    si parcent puero fata superstiti.

    quid si prisca redit Venus

    diductosque iugo cogit aeneo, si flaua excutitur Chloe

    reiectaeque patet ianua Lydiae?

    quamquam sidere pulchrior

    ille est, tu leuior cortice et improbo iracundior Hadria,

    tecum uiuere amem, tecum obeam libens.

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    154 Liana Assuno

    * * * * * * * * *

    Resumo: Horace et Lydie uma comdia de Franois Ponsard que constitui uma adaptao da ode III, 9 de Horcio. Neste trabalho, apresentada uma anlise das fontes latinas, na qual procuramos evidenciar os mecanismos pelos quais Ponsard se apropria no s da referida ode, mas tambm de outros tpicos da lrica horaciana em geral. Assim, estabelecendo as devidas semelhanas e diferenas com o texto latino, tentaremos indagar a cada passo a inteno e motivao do autor.

    Palavras-chave: Horace et Lydie; Ponsard; Horcio; amplificatio; intertextualidade; humor; Classicismo; Romantismo.

    Resumen: Horace et Lydie es una comedia de Franois Ponsard que supone una adaptacin de la oda III.9 de Horacio. En este trabajo se presenta un anlisis de las fuentes latinas, en la que intentamos poner en evidencia los mecanismos a travs de los que se apropia Ponsard no slo de la citada oda sino tambin de otros tpicos de la lrica horaciana en general. De este modo, estableciendo las debidas semejanzas y diferencias con el texto latino, trataremos de indagar en cada pasaje la intencin y motivacin del autor.

    Palabras clave: Horace et Lydie; Ponsard; Horacio; amplificatio; intertextualidad; humor; clasicismo; romanticismo.

    Rsum: La comdie Horace et Lydie, de Franois Ponsard, est une adaptation de lode III, 9 dHorace. Dans ce travail, nous procdons une analyse des sources latines, de faon mettre en relief les mcanismes par lesquels Ponsard sest appropri non seulement de lode, mais aussi dautres topiques de la lyrique horatienne en gnral. Ainsi, nous essayerons, tout en dterminant les ressemblances et les diffrences avec le texte latin, de dcouvrir lintention et la motivation de lauteur.

    Mots-cl: Horace et Lydie; Ponsard; Horace; amplificatio; intertextualit; humour; Classicisme; Romantisme.