HOMENS DE OURO: Trabalho e Conhecimento … Aos velhos amigos: Bráulio, Fabrício (Bidu),...
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LUCIANO RODRIGUES COSTA
HOMENS DE OURO:
Trabalho e Conhecimento entre os Garimpeiros Clandestinos de Ouro da
Região de Mariana
Tese apresentada à Universidade Federal
de Viçosa, como parte das exigências do
Programa de Pós-Graduação em Extensão
Rural, para obtenção do título de
“Magister Scientiae”.
VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2002
ii
AGRADECIMENTOS
Nestes dois anos várias pessoas contribuíram para este novo aprendizado
que se estabeleceu desde a minha chegada à Viçosa.
Em primeiro lugar agradeço aos garimpeiros de Monsenhor Horta pela
acolhida sempre calorosa e pela disponibilidade em responder as minhas
incessantes dúvidas. Sem esta relação amigável seria impossível a realização da
pesquisa de campo.
Ao meu orientador Prof. Fábio Faria Mendes, pela sua acolhida na UFV e
pela sua orientação sensata, serena, generosa e sempre disponível, com quem
pude estabelecer uma amizade fraternal. Sua dedicação, compreensão,
disponibilidade e respeito me fizeram acreditar que ser professor vale a pena.
Ao Prof. Antônio Tomasi, conselheiro deste trabalho, que vem
acompanhando minha trajetória acadêmica, e que sempre se colocou a disposição
para ajudar no que fosse possível, mostrando sempre uma grande confiança no
meu trabalho.
A Prof. Sheilla Maria Doula, também conselheira deste trabalho, pela sua
orientação sincera e sempre muito enriquecedora para o resultado desta pesquisa.
Ao Professor José Ambrósio, pelo incentivo, respeito e confiança em mim
demonstrado.
Ao Prof Herbert Martins, que leu o projeto deste trabalho e deu
importantes sugestões. Amigo antigo, incentivador constante que sempre
acreditou no meu desempenho. Obrigado Amigo!
Aos funcionários da DER Graça, Tedinha e Rita pela convivência sempre
amistosa durante esses dois anos.
Aos amigos que tive o prazer de conviver em Viçosa: Marcelo, Mariana,
Nunes, Regis e Alessandra.
iii
Aos velhos amigos: Bráulio, Fabrício (Bidu), Samuelson, Marthinha e
Lourdes.
A Eliana, minha mãe que sempre me apoiou nas complicadas decisões e
sempre se interessou em ajudar nas primeiras versões do texto. Seu apoio e
compreensão foram fundamentais.
E por último minha avó Ivone, que sempre leu e corrigiu as primeiras
versões, mas que não pode ver o resultado final. A ela dedico este trabalho.
iv
Selvas, montanhas e rios
Estão transidos de pasmo
É que avançam, terra dentro,
Os homens alucinados.
Levam guampas, levam cuias,
levam flechas levam arcos;
Atolam-se na lama negra,
Escorregam por penhascos,
Morrem de audácia e miséria
Nesse temerário assalto,
Ambiciosos e avarentos
Abomináveis e bravos,
Por fortuitas riquezas
Estendendo inquietos braços.
_os olhos já sem clareza,
_ os lábios secos e amargos.
(que é feito de vós, ó sombras
que o tempo leva de rastro?)
E, atrás deles, filhos, netos ,
Seguindo os antepassados ,
Vêm deixar a sua vida ,
Caindo nos mesmos laços ,
Perdidos na mesma sede
teimosos, desesperados,
por minas de prata e de ouro,
curtindo destino ingrato,
emaranhado seus nomes
para a glória e o desamparo,
quando, dos perigos de hoje,
outros nascem, mais altos.
Que a sede de ouro é sem cura,
E, por ela subalugados ,
Os homens matam-se e morrem,
Ficam mortos, mas não fartos.
( Ai, Ouro Preto, Ouro Preto,
e assim fostes revelado)
Cecília Meireles, em ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA
v
ÍNDICE
Resumo................................................................................................................viii
Abstract.................................................................................................................ix
Introdução..............................................................................................................1
Capítulo I
Uma Visão Histórica Sobre os Garimpos de Ouro no Brasil.................................7
1. Origens do Garimpo de Ouro no Brasil: Séculos XVIII e XIX .......................7
2. O Garimpo de Ouro no Século XX.................................................................19
3. As diversas Formas da Extração do Ouro.......................................................31
Capítulo II
O “Métier” e as Formas de Conhecimento no Trabalho......................................43
1. O “Métier”.......................................................................................................44
2. Trabalho, Conhecimento e a Noção de Competência......................................50
3. O “Métier” de Garimpeiro...............................................................................63
Capítulo III
O Mundo do Trabalho Garimpeiro em Monsenhor Horta....................................67
1. O Garimpo no Distrito de Monsenhor Horta..................................................69
2. O Garimpo Artesanal Tradicional e as Técnicas de Extração do Ouro
........................................................................................................................72
3. A Atividade Garimpeira Semi-Mecanizada em Monsenhor Horta e as
Mudanças no “Métier” de Garimpeiro...........................................................78
A Escolha do Terreno.................................................................................80
A Abertura da Cava...................................................................................84
A Apuração do Ouro.................................................................................90
4. A Organização do Trabalho na Atividade Garimpeira...................................93
4.1. A Gestão no Trabalho Garimpeiro.....................................................93
4.2. A Divisão do Trabalho na Atividade Garimpeira..............................98
4.3. A Remuneração na Atividade Garimpeira.......................................103
vi
4.4. O Caráter Ilegal da Atividade...........................................................106
4.5. As Relações de Confiança na Atividade Garimpeira........................111
Discussão Final...................................................................................................115
Referência Bibliográfica............................................................................................117
Anexos...........................................................................................................................121
vii
INDICE DE TABELAS
1: Taxa De Rendimento Anual Das Oito Mais Rentáveis Empresas De Capital
Britânico Instalados No Brasil..............................................................................18
2: Formas de Organização Produtiva na Extração Mineral..................................38
viii
RESUMO
COSTA, Luciano Rodrigues, M.S., Universidade Federal de Viçosa, fevereiro de
2002. Homens de Ouro: Trabalho e Conhecimento entre os Garimpeiros
Clandestinos de Ouro da Região de Mariana. Orientador: Fábio Faria
Mendes. Conselheiros: Sheila Maria Doula e Antônio de Pádua Nunes
Tomasi.
Pretendeu-se com este trabalho fazer um estudo sobre os garimpos
clandestinos de ouro no Estado de Minas Gerais. A região escolhida foi o em
torno das cidades de e Mariana, especialmente o distrito de Monsenhor Horta
núcleo inicial do ciclo do ouro no Brasil. A atividade garimpeira clandestina teve
sua origem no século XVIII e, longe de desaparecer, perdura ainda hoje, com
características distintas de seu surgimento, mas sempre à margem da lei. Em
algumas regiões do Estado, como é o caso da região estudada, se caracteriza
como a principal base da economia e responsável por uma grande absorção de
mão de obra. A partir da década de 1980, um conjunto de mudanças
institucionais, organizacionais e técnicas transformou radicalmente as condições
de organização do trabalho da atividade garimpeira na região. Neste sentido, toda
a pesquisa foi movida no intuito de penetrar e dar sentido a este novo universo do
trabalho garimpeiro. Assim, o objetivo da pesquisa foi investigar quais foram as
transformações ocorridas nos contextos e circunstâncias (naturais, políticas,
culturais), que fizeram com que os elementos que compõe o “métier” de
garimpeiro (competências, conhecimento da atividade, constituição do “métier”,
produtividade, aprendizado da atividade, ilegalidade as relações de confiança) se
transformassem. Procurou-se combinar temas da sociologia do trabalho, da
sociologia da vida econômica e da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz.
Os conceitos de “métier” e competência foram definidos como as claves
analíticas centrais que permitem relacionar formas de conhecimento e processos
de trabalho na atividade garimpeira.
ix
ABSTRACT
COSTA, Luciano Rodrigues, M.S., Universidade Federal de Viçosa, February
2002. Goldwasher: Work and knowledge in clandestine garimpos of gold
around the cities of Mariana. Adviser: Fábio Faria Mendes. Committee
Members: Sheila Maria Doula and Antônio de Pádua Nunes Tomasi.
It was intended with this work to make a study on the clandestine
garimpos of gold in the State of Minas Gerais. The chosen region was around the
cities of and Mariana, especially the district of Monsenhor Horta initial nucleus
of the cycle of the gold in Brazil. The activity clandestine goldwasher had its
origin in century XVIII e, far to disappear, still lasts today, with distinct
characteristics of it’s sprouting, but always to the edge of the law. In some
regions of the State, as it is the case of the studied region, if it characterizes as the
main base of the responsible economy and for a great absorption of workmanship
hand.
From the decade of 1980, a set of institutional, organizacionais changes
and techniques radically transformed the conditions of organization of the work
of the activity goldwasher into the region. In this direction, all the research was
moved in intention to penetrate and to give sensible to this new universe of the
work goldwasher. Thus, the objective of the research was to investigate which
had been the occured transformations in the contexts and circumstances (natural,
politics, cultural), that they had made with that the elements that “métier”
composes. of goldwasher (abilities, knowledge of the activity, constitution of
“métier”., productivity, learning of the activity, illegality the relations reliable) if
they transformed. It was looked to combine subjects of the sociology of the work,
the sociology of the economic life and the fenomenológica sociology of Alfred
Schutz. The concepts of “métier”. e ability analytical central offices had been
defined as claves that allow to relate forms of knowledge and processes of work
in the activity goldwasher.
1
Introdução
A história antiga e recente, e a própria identidade dos sertões que passaram a
ser conhecidos como as Minas Gerais, é profundamente marcada pela presença
continuada da extração de produtos minerais. Particularmente, a região em torno das
cidades de Ouro Preto e Mariana, núcleo inicial do ciclo do ouro, teve sua
fisionomia moldada pela extração de ouro e de diamantes nas margens do Ribeirão
do Carmo e córregos que o alimentam. Do século XVIII até os dias de hoje, toda a
vida regional se estruturou em torno da exploração mineral. O ouro deixou suas
marcas na paisagem característica dos núcleos urbanos, das serras e dos rios
submetidos a séculos de atividades extrativas. Também o fez nos contornos da vida
econômica e, nas não menos importantes, formas de pensar, de sentir e de sonhar de
seus habitantes. Há, sem sombra de dúvida, um “imaginário do ouro” que preenche
os poros da vida e a memória desta região.
Desde muito cedo, a atividade mineradora nas Minas Gerais representou um
foco de tensões e conflitos: de um lado, as pretensões de um Estado distante, mas
ávido por mapear, mensurar, documentar, controlar as concessões de mercês e,
especialmente, tributar pesadamente, e de outro, os interesses dos descobridores e
exploradores de jazidas, ciosos em guardar para si, ocultar e garantir a posse daquilo
que consideravam fruto do próprio empenho e sorte. De um lado, em um jogo de
muitos artifícios, conflitos, alinhamentos e realinhamentos contínuos, a atividade foi
se organizando a partir da clivagem entre concessões reconhecidas legalmente e de
largo cabedal, do outro lado, um mundo clandestino e sempre movente - o dos
garimpos.
Longe de desaparecer, o mundo do garimpo perdura ainda, sempre à margem
da lei. Continua presente naquela região, assim como em outras partes do Estado,
2
como uma das principais bases da economia local, sendo o responsável por grande
absorção de mão-de-obra.
Apesar da reconhecida importância da atividade garimpeira desde o período
colonial, ela ainda não foi objeto de estudos em profundidade. Poucos foram os
pesquisadores que se aventuraram no mundo relativamente fechado da atividade
garimpeira. O garimpo da região de Mariana e Ouro Preto não é exceção a essa
regra.
Dentre as fontes disponíveis, estão os relatos de viajantes1 do século XIX,
que, embora tenham descrito minuciosamente as técnicas de extração, deixaram
poucas indicações acerca da organização social do trabalho da garimpagem. Quando
abordado, o mundo social do garimpo é reduzido a um esquema idealizado, em que
emerge o tipo romantizado do “aventureiro” em descrições distorcidas e muitas
vezes preconceituosas. Em outra ponta, estão os relatórios técnicos de pesquisa de
órgãos como o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), FEAM
(Fundação Estadual do Meio Ambiente) e a COMIG (Comissão Mineira de
Mineração). Esses relatórios normalmente enfocam aspectos econômicos e
tecnológicos, deixando de lado as análises socioculturais.
Entretanto, uma série de estudos, dissertações e teses recentes, MARTINS
(1997), PEREIRA (1990), SALOMÃO (1984) e CLEARY (1990), combinando
cuidadosa pesquisa de campo e rigor analítico, abordaram a garimpagem em outras
regiões do país, especialmente a da Amazônia.
O garimpo de ouro e diamantes foi historicamente organizado segundo
padrões tecnológicos e gerenciais muito rudimentares, com o predomínio de
relações de trabalho não-salariadas e uma reduzida divisão do trabalho. Durante a
década de 1980, entretanto, um conjunto de mudanças institucionais,
1 FERRAND, Paul. O ouro em Minas Gerais. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1998.
COURCY, Ernest de, Visconde. Seis semanas nas Minas de ouro do Brasil. Belo Horizonte, Fundação João
Pinheiro, 1997.
RUGENDAS, Johann M. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo, Círculo do Livro 1835,1984.
3
organizacionais e técnicas transformaram radicalmente as condições de organização
do trabalho da atividade garimpeira.
Em quase todos os setores da extração de produtos minerais, a década de 80
marcou a incorporação de novos equipamentos mais eficientes, tanto nas grandes
empresas mineradoras como nos garimpos clandestinos de pequeno porte.
Atualmente existe, em todo o Brasil, um número elevado de pequenos
empreendimentos dessa natureza espalhados por todo o país. Em sua grande maioria
são clandestinos e utilizam motores e bombas hidráulicas na extração do ouro e
mercúrio na sua apuração. Com estas novas técnicas, a extração tornou-se muito
mais eficaz, mas ao mesmo tempo, foi introduzido no processo de trabalho, um
elemento químico de extrema periculosidade para a saúde humana e fator de
degradação ambiental: o mercúrio.
Com essas mudanças, o mundo do trabalho garimpeiro transformou-se
profundamente. O métier, característica fundamental deste tipo de atividade e
estruturador das relações produtivas, adquiriu contornos diversos na atividade
garimpeira.
A sociologia clássica do trabalho ensina que as ações de trabalhadores no seu
dia a dia são estruturadas a partir de três sistemas de relevância básicos: gestão,
divisão do trabalho e remuneração. Assistiu-se, a partir da década de 80, à profunda
mudança nos sistemas de relevância do mundo do garimpo, reposicionando o
trabalhador dentro de sua atividade.
Assim, toda a pesquisa foi movida pela intenção de penetrar e dar sentido a
este novo universo do trabalho garimpeiro. Partindo da sociologia fenomenológica
de Alfred Schutz, foram investigadas as formas de conhecimento e as categorias
centrais que estruturam e definem o mundo da vida cotidiana do garimpeiro, a partir
de seus esquemas de relevância e significado.
Dessa forma, foi elaborado o problema: como se estruturam, na atividade
garimpeira, os sistemas de relevância (remuneração, gestão e divisão do trabalho) e
4
as competências, devido às mudanças institucionais, organizacionais e técnicas
ocorridas no início dos anos 80?
O objetivo desta pesquisa foi investigar quais foram às transformações
ocorridas nos contextos e circunstâncias (naturais, políticas e culturais), que fizeram
com que os elementos que compõem o métier de garimpeiro (constituição do métier,
aprendizado da atividade, conhecimento, competências, produtividade, ilegalidade, e
relações de confiança) se transformassem. Por conseguinte, algumas perguntas
foram inevitáveis: como as mudanças institucionais influenciaram na reestruturação
da atividade garimpeira? Como as relações sociais de trabalho se alteraram? Como
se apresentam as competências dos trabalhadores? Como se dá a gestão, a
remuneração e a divisão do trabalho na atividade?
Para elaboração desta pesquisa, foram realizadas entrevistas semi-
estruturadas em profundidade com os garimpeiros e donos de garimpos de
Monsenhor Horta, distrito de Mariana, assim como a observação participante.
Muitas das informações foram obtidas através de conversas informais, em
decorrência da desconfiança gerada pela clandestinidade da atividade. Também foi
realizada uma pesquisa histórica, uma vez que essa abordagem requeria um
delineamento da evolução do garimpo no Brasil, principalmente no que se refere à
legislação e ao tratamento dado à questão pelo Estado.
A estrutura do trabalho foi delineada em três capítulos.
No capítulo 1, faz-se um levantamento histórico sobre a trajetória da
atividade garimpeira no Brasil, a constituição de suas características organizativas
fundamentais e a cristalização da peculiar estrutura das suas relações sociais de
trabalho. Procura-se compreender também o contexto institucional que circunscreve
a atividade, através de uma investigação das transformações na legislação que a
regula, do surgimento até os dias atuais. Nesse contexto, revelam-se a ambigüidade
e a incerteza produzida pelo tratamento dado à atividade pelo Estado, ora tolerada,
ora perseguida.
5
Argumenta-se que a instabilidade do contexto institucional mais amplo da
atividade garimpeira traz profundas implicações para sua estrutura organizacional,
caracterizando-a como uma atividade do setor informal.
Uma ênfase maior é dada às mudanças ocorridas a partir da década de 80,
marcada por um novo “boom” da atividade, simbolizado por Serra Pelada, o que
acarreta modificações em sua estrutura por todo o país. Ao final do primeiro
capítulo, são caracterizadas as principais diferenças entre os tipos de garimpo de
ouro, visando a delimitar o objeto de estudo: os garimpos semimecanizados.
No capítulo 2, procura-se explicitar o conjunto de referências teórico-
conceituais que inspiram a nossa interpretação sobre o mundo do garimpo. Procura-
se combinar temas da sociologia do trabalho, da sociologia da vida econômica e da
sociologia fenomenológica de Alfred Schutz2. Os conceitos de métier e competência
são definidos como as claves analíticas centrais que permitem relacionar formas de
conhecimento e processos de trabalho na atividade garimpeira. Em seguida, busca-se
entender esta atividade como um métier, ressaltando suas categorias estruturantes e
distintivas. Assim, é construída a figura do garimpeiro competente, levando-se em
conta a forma pela qual ele se destaca no grupo e é por ele reconhecido. Buscou-se
construí-la a partir de suas tipificações e relevâncias, visando compreender a sua
habilidade na “navegação” neste mundo que é o métier de garimpeiro.
O capítulo 3 tenta reconstruir os contornos gerais do mundo do garimpo, a
partir da pesquisa de campo conduzida em Monsenhor Horta. Através dos relatos de
antigos garimpeiros, procura-se delinear os contornos do garimpo antes da
mecanização, contrastando-os com as formas de organização social da atividade
existente atualmente.
Com base nos relatos dos garimpeiros e na observação do processo de
trabalho, são analisadas as suas formas de organização, ou seja, a estruturação dos
2 SCHUTZ. Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Textos escolhidos. Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1977. SCHUTZ. Alfred. Estudios sobre teoria social. Buenos Aires, Amorrortu, 1974. SCHUTZ. Alfred. El
problema de la realidad social. Buenos Aires, Amorrortu, 1974.
6
sistemas de relevâncias e as competências presentes na atividade atualmente. A
análise aponta o papel central das relações de confiança na composição das relações
de trabalho e das redes sociais em que está imersa a atividade garimpeira, num
padrão que reproduz elementos típicos de informalidade em outros setores da vida
econômica.
Na última parte desse capítulo, foi abordado o caráter clandestino da
atividade, enfatizando o relacionamento dos trabalhadores com os órgãos
fiscalizadores, ou seja, da atividade com o Estado. Foram também ressaltadas as
formas de organização por parte dos trabalhadores, que visam burlar a fiscalização e
continuar o trabalho ilegal de extração.
Por fim, na discussão final, faz-se um balanço dos principais pontos
ressaltados no trabalho. Mostra-se a viabilidade de associar os recentes estudos
sobre competência profissional com a sociologia fenomenológica de Alfred Schutz.
Também levanta-se o problema da permanência desta atividade na
clandestinidade e ainda submetida a uma legislação confusa, com níveis de
exigências para a regulamentação incompatíveis com a realidade do garimpo.
7
Capítulo I
Uma Visão Histórica Sobre os Garimpos de Ouro no Brasil
“Muitos se espantam em saber que o ouro, em si mesmo um bem tão inútil, goze de tamanha estima em toda parte,
que mesmo os homens para quem foi feito e pelos quais o
valor lhe é atribuído sejam concebidos como dotados de menor valor que o próprio ouro”
Sir Thomas More (1478-1535) Utopia
1. Origens do Garimpo de Ouro no Brasil: Séculos XVIII e XIX
A história dos garimpos de ouro e diamantes no Brasil é marcada, desde o
início do século XVIII, por tensões, ambigüidades e constantes atritos com o
poder instituído. Basta lembrar o vasto número de conflitos em torno do fisco
opondo representantes da Coroa e interesses mineradores durante todo o século
XVIII3. A fluidez, o potencial de desordem, a incerteza dos resultados e a
mobilidade geográfica da atividade foram sempre altamente problemáticas para o
Estado. Enquanto tal, o garimpo representava uma situação de relativa
ilegibilidade frente às pretensões de controle, registro e extração de recursos pelo
Estado4. Em muitos aspectos cruciais, o Estado conhecia (e conhece)
relativamente pouco acerca da composição social, das intenções, das posses, da
localização e da própria identidade dos garimpeiros. Daí o privilégio aos
empreendimentos mineradores de larga escala, cuja visibilidade e permanência
garantiam maior controle, e às tentativas continuadas de combater e eliminar ou,
3Vasconcelos, Diogo de. História Média de Minas Gerais. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1918. Cf.
também Maxwell, Kenneth. A Devassa da Devassa: A Inconfidência Mineira, Brasil e Portugal: 1750-1808.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. 4O conceito de legibilidade estatal é sugerido por Scott, James. Seeing Like a State:How Certain Schemes to
Improve the Human Condition Have Failed. New Haven, Yale University Press, 1998.
8
inversamente, incorporar o garimpo à ordem legal. Nem por isso o garimpo
deixou de florescer à margem dos contornos da economia formal.
Neste capítulo procura-se mostrar que a história do garimpo no Brasil, desde
o seu surgimento, foi profundamente marcada pelas flutuações e ambigüidades do
estatuto institucional a ele imposto pelo Estado. Reconstruindo a trajetória
histórica desses empreendimentos de mineração, podem-se encontrar vários
momentos em que a atividade garimpeira seria intensamente perseguida pelos
órgãos fiscais como um trabalho ilegal. Em outros, no entanto, a atividade seria
tolerada e até mesmo estimulada como geradora de riquezas e emprego. Estas
instabilidades definiram, já em sua constituição, a estrutura organizacional do
garimpo, bem como as representações sobre o tipo social do garimpeiro.
A busca por ouro e pedras preciosas no Brasil se inicia desde o descobrimento.
Já nos séculos XVI e XVII, inúmeras expedições de pesquisa mineral (as Entradas)
foram promovidas diretamente pela metrópole ou por seus prepostos. À margem
destes movimentos de penetração, coexistiu também o “aventureirismo”: indivíduos,
que por sua conta e risco, enfrentavam os perigos dos sertões em busca de riqueza e
sustento próprio. Segundo o historiador inglês Charles BOXER (1969), o ouro foi
encontrado quase simultaneamente em diversas regiões correspondentes à atual
Minas Gerais, por diferentes grupos paulistas. Com estas descobertas e a abertura
das minas, no final do século XVII, a região, antes praticamente deserta ,vai sendo
gradativamente povoada. O desenvolvimento da mineração determinou os ritmos e
os modelos de povoamento, fixando os trabalhadores e incentivando o comércio e a
agricultura. Esta crescente urbanização foi incentivada pelo Estado, visando à
consolidação de seu poder. Este fato pode ser percebido na carta de nomeação de
Antônio de Albuquerque como administrador colonial, em 9 de novembro de 1709,
em que um de seus itens era a alusão à normalização e à necessidade de fundar
cidades. Neste sentido:
“Por volta de 1711, vários arraiais já tinham se consolidado para serem
elevados à condição de vila: Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo
de Albuquerque (Mariana, 08 de abril de 1711) Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Albuquerque (Ouro Preto, 08 de Junho de 1711) e Vila Real de
Nossa senhora da Conceição de Sabará (17 de junho de 1711).”5
(MARTINS, 1992: 42)
9
Os objetivos básicos desta política de urbanização eram estabelecer a ordem e
permitir maior controle sobre a população flutuante dos mineradores, facilitando o
controle fiscal da extração por parte da Coroa. Por volta de 1720, mais de 120 mil
habitantes espalhavam-se por Minas Gerais, fazendo crescer as cidades do ouro.
Segundo MELLO E SOUSA:
“Mesmo que, nos primeiros tempos, os arraiais tenham sido semeados ao
léu, acompanhando os trabalhos da mineração, é importante ressaltar que, a
partir do governo de Albuquerque, o Estado tomou as rédeas do processo.
Isto não fez com que as cidades mineiras fossem melhor ordenadas(...) e no
entanto, serviram muito bem ao propósito que as criara: a consolidação do poder metropolitano no seio do sertão das Minas” MELLO E SOUSA (1986
: 104)
Com o rush estabelecido na região das minas, a partir de 1697, dá-se
rapidamente a substituição da mão-de-obra indígena pela africana. Entre outras
razões, a troca se dava pela prática da extração já adquirida na África, pelos negros.
Este fato, somado ao rápido aumento da escala de produção, fez com que o preço
dos escravos subisse a níveis então nunca vistos. Minas Gerais passou a contar com
o maior contingente de escravos do Brasil.
Em minas razoavelmente grandes, a exploração era feita de forma organizada,
reunindo-se, sob uma única direção, numerosos trabalhadores, geralmente escravos,
que utilizavam instrumentos especializados. As lavras menores, com baixa
perspectiva de produção, bem como aquelas abandonadas após estarem praticamente
esgotadas, eram exploradas individualmente, com recursos e instrumentos precários.
No início, estes instrumentos consistiam em pratos de estanho. Coube aos negros,
logo em seguida, o ensino do uso de bateia (espécie de bacia de madeira, redonda e
achatada, de 2 a 3 palmos de diâmetro) com a qual se encontrou ouro no Tripuí em
1696.
Em 1700, chegam a Minas Gerais quatro mineradores do Reino que,
juntamente com mineradores paulistas, desenvolvem, em 1707, a técnica de
10
“desmontar as terras com água superior aos tabuleiros altos”6. Em 1711, foram
desenvolvidas por um clérigo, as “rodas para esvaziamento das catas, método
aperfeiçoado e produzido em escala a partir de 1725” 7.
Em 1721, inicia-se o trabalho nas encostas das montanhas e a abertura de
poços, que se distanciavam quarenta palmos um do outro. Em 1733, já se verifica
o emprego do engenho de pilões. Segundo MARTINS (1984), o uso desse tipo de
engenho estabelece um divisor de águas da exploração aurífera, não só no que
concerne à forma de extração, mas, sobretudo pelo surgimento mais acelerado de
grupos marginais.
“Ocorre que o maquinário hidráulico vai selecionar os mineradores, pois
nem todos os proprietários de minas podem ser mineiros de „roda‟. Neste
sentido, para o pequeno minerador, até possuir escravos passa a ser dispendioso, capital imobilizado do qual foi mais oportuno desvencilhar-se.”
(MARTINS, 1984:192)
Não se tem notícia do uso de mercúrio no primeiro ciclo do ouro no Brasil,
esgotado por volta de 1750.
A dinâmica da ocupação da colônia, e especialmente nas Minas Gerais, cedo
transborda os limites do fomentalismo metropolitano. Ao lado da rígida estrutura
que opõe senhores e escravos, como na plantation do nordeste açucareiro, emergem
outras categorias, “que não eram de escravos nem poderiam ser de senhores” 8. Estes
homens mal situados na estrutura hierárquica da sociedade escravista, quase que
desnecessários, constituirão gradativamente o mundo dos homens livres pobres no
interior da ordem escravista, CARVALHO FRANCO, (1983). Em meio à
abundância de terras e recursos, com técnicas rudimentares e uma cultura material
sumária, garimpeiros, tropeiros, vendeiros, sitiantes, agregados, camaradas, ou
simplesmente “vadios”, frente à vastidão dos sertões e à indiferença ou hostilidade
do Estado, gradativamente estruturarão configurações sociais caracterizadas por
mecanismos de integração social e códigos de conduta próprios.
6 MARTINS, Ana Luiza. Breve história dos garimpos de ouro no Brasil. In: ROCHA, Gerôncio. Em busca
do ouro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1984. 7 Ibidem. 8 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 13 ed. São Paulo, Brasiliense, 1989. 359 p.
11
Os garimpeiros, excluídos das concessões e mercês oficiais de datas
minerárias, procurariam os locais mais isolados para tentar a sorte, longe dos olhos
do fisco. Extremamente carentes de recursos, foram quase sempre duramente
perseguidos pela administração colonial. Segundo MELLO E SOUSA (1986),
durante o século XVIII, a distribuição das datas minerárias regia-se antes pela lógica
da construção de redes clientelares que soldavam relações de poder e obrigação do
que por quaisquer critérios de eqüidade ou racionalidade econômica, o que
preocupava as autoridades reais. Nessa situação,
“A principal resposta dos homens livres pobres ante a situação foi, ao que tudo indica, o garimpo e a faiscagem, que mal davam para a subsistência.
Os „homens faiscadores‟ trabalhavam nos rios com uns poucos escravos, e
muitos deixavam esse tipo de atividade por não poderem se manter, nem a seus negros”(MELLO E SOUSA, 1986: 70)
O termo garimpeiro emergira na região das minas em inícios do século XVIII,
e designava aqueles que, desrespeitando a legislação da coroa portuguesa,
mineravam as jazidas localizadas em pontos ermos do território, escondidas nas
“grimpas” das serras. Neste sentido, a própria etimologia da palavra garimpeiro já
denotava ilegalidade, marginalidade e repressão da força de trabalho.9
O surgimento da figura do garimpeiro, personagem que se configura já em
meados do séc XVIII, está ligado essencialmente a dois fatores: o primeiro é que as
jazidas de ouro e diamantes tinham características que facilitavam a mineração
ilegal, ou seja, eram essencialmente aluvionares. Assim, o homem isolado ou em
pequenos grupos poderia se empenhar na busca de ouro, em Minas Gerais, usando
somente a bateia, o almoclave, o corumbé e outras ferramentas nas áreas livres. O
9 Segundo Aurélio Buarque de Hollanda, o vocábulo garimpo é derivado regressivo de garimpeiro.
Garimpeiro (grimpa + eiro) . Grimpa significa "o ponto mais alto: cocuruto, crista", ou seja, cume, cima etc.,
de montanha ou serra. Assim garimpeiro é aquele que sobe, trepa, galga montanha, monte ou serra alta.
Garimpeiro com a supressão da letra a . "Aquele que anda à cata de metais e pedras preciosas." "Tudo indica que a conotação com grimpa deve-se ao fato da procura do ouro e das gemas ter se iniciado - pelo menos no
Brasil - em lugares altos e ermos, cheios de esconderijos. Há também ponderável fator histórico brasileiro:
durante muito tempo, garimpar e garimpagem foram proibidos”.
Aurélio Buarque de Hollanda menciona três definições de Garimpo. As duas primeiras relacionadas a
clandestinidade e as outras: 1) “Mina de diamante ou carbonados. 2) Lugar onde se encontra tais minas. 3)
12
segundo foi a presença de uma legislação rigorosa, fiscalização intensiva, conflitos,
arbitrariedades, desigualdades e injustiças na distribuição das datas minerárias, que
não privilegiavam os pequenos mineradores: “A lavra clandestina era a única
sobrevivência numa região onde só era permitido minerar. Assim, onde não
chegavam as redes do poder, surgiram os primeiros garimpeiros.” 10
Durante o século XVIII havia se formado, pois, um sistema minerário
dicotômico, com profundas conseqüências para a organização subseqüente da
atividade minerária no Brasil. De um lado, figurava a mineração organizada,
representada pela alta capacidade extrativa e econômica, conforme a ordem legal
(compra das datas, pagamento dos impostos e taxas de escravos); de outro lado, os
garimpos exercidos ilegalmente por mestiços, aventureiros, negros alforriados, ou
mesmo mineradores que não tiveram como arcar com os extorsivos preços das datas
minerárias. Expressivo desta situação é o relato que nos oferece Joaquim Felício dos
Santos, acerca da condição dos garimpeiros no distrito diamantino durante o século
XVIII:
“O garimpeiro tornava-se muitas vezes aquele que, obrigado a expatriar-se, ou a passar uma vida de misérias, porque, com a proibição da mineração se
lhe tirava o único meio de subsistência ia exercer uma indústria, a
mineração clandestina, era finalmente o audaz, intrépido e ambicioso
aventureiro que ia buscar fortuna numa vida cheia de riscos, perigos e emoções.” (SANTOS, 1924: 403)
Também o desembargador Viera Couto, na sua Memória sobre a capitania de
Minas Gerais (1801), definia o garimpeiro como “o nome com que se apelida neste
Lugar onde existem explorações diamantinas ou auríferas. Pode-se notar que a definição para garimpo é uma
só, tanto para o local de extração de diamantes quanto para a extração de ouro. 10MARTINS, Ana Luiza. Breve história dos garimpos de ouro no Brasil. In: Rocha, Gerôncio. Em busca do
ouro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1984. 189 p.
13
país aos que mineram furtivamente as terras diamantinas, e que assim são chamados
por viverem e andarem escondidos pelas grimpas das serras” 11
.
Durante todo o século XVIII, os garimpeiros giravam de mina em mina,
procurando locais onde os resultados fossem compensadores e a concorrência
menor. Geralmente eram livres e trabalhavam por conta própria, o que não
impedia que escravos se dedicassem também a essa atividade, devendo entregar
uma quantidade fixa de ouro ao seu senhor, podendo ficar com o restante. Com a
decadência das minas, esta foi, muitas vezes, a saída possível para que os
pequenos empreendedores pudessem manter parte de seu antigo capital.
A partir da segunda metade do século XVIII, inicia-se a decadência dos
núcleos mineradores de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, onde a extração se
limitava a terrenos de aluvião. Segundo MARTINS (1984), várias causas podem
ser atribuídas à decadência das minas, sendo todas elas associadas às políticas
econômicas da metrópole:
“Legislação confusa e repressora, administração inadequada,
esgotamento do ouro aluvionar, emprego de técnicas deficientes, mão-de-obra elevada, alto custo dos artigos indispensáveis às lides
minerárias e, conforme a crítica mais corrente entre os contemporâneos,
ao declínio aurífero, à falta de espírito associativo dos proprietários das
lavras” (MARTINS, 1984: 202)
Este espírito associativo citado seria fundamental, no sentido de que, apesar do
esgotamento do ouro aluvionar, a mineração de subsolo ainda seria possível no
interior das montanhas. No entanto, tal empreendimento exigia altos capitais,
homens e maquinário elevado.
Com o processo de decadência das minas, a Coroa começa a ver seus rendimentos
tributários gradativamente diminuídos. Aumenta a pressão, já extremamente
elevada, nos núcleos mineradores, visando recuperar recursos. Na verdade, o
Estado português não admitia a queda da produção, justificando tal fato na
alegação de contrabando. Assim, recrudesce consideravelmente a repressão ao
contrabando e à extração clandestina. Para combater estes extraviadores de ouro e
garimpeiros clandestinos, a Coroa empreendeu uma luta extremamente violenta,
gerando o pânico e o hábito de delação entre os habitantes.
“Não podia, pois, haver ouro que chegasse para a voracidade do fisco, e
a maior quantidade de ouro encontrada não significava, obrigatoriamente riqueza. Quase nada escapava às malhas do sistema
colonial: fisco voraz, tributação sobre escravos, sistema monetário
11 Ibidem. 189 p.
14
específico e importações feitas pelo exclusivo de comércio eram os meios
de que se servia a Metrópole para a retirada do ouro.” (MELLO E
SOUSA, 1986: 40)
Felício dos Santos também descreveu em suas “Memórias” as perseguições aos
garimpeiros pelo despotismo de um Estado fiscalista:
“A caça que se dava ao garimpeiro era cruel, desapiedada, encarniçada:
eram perseguidos e se procurava exterminá-los como animais ferozes. As
partidas do rei disseminadas por todo o Distrito (Diamantino) patrulhavam os córregos, os campos, as serras, os montes, sem cessar dia e noite,
rendendo-se, renovando-se, se encontravam o garimpeiro desprevenido, sua
captura devia ser feita a todo o transe. Quando ainda os campos
diamantinos alvejavam com os ossos infelizes patrícios, testemunhando a bárbara tirania que sobre nós pesou outrora” (SANTOS, 1924: 404)
Como uma tentativa de reação a esta decadência, Portugal, em 1776, funda a
Real Academia de Lisboa com o objetivo de estudar os problemas sociais da
nação. Foram produzidas, nesta época, várias obras no intuito de explicar os
motivos da decadência das minas, destacando-se um discurso que atravessaria
todo o século XIX: a importância da atividade agrícola em detrimento da
atividade mineral.
É importante ressaltar que a decadência da mineração no Brasil coincide com o
momento de grandes transformações no quadro econômico europeu. Os
mercados fechados das colônias ibéricas vão de encontro ao aumento da
produção gerado pela Revolução Industrial Inglesa. As críticas ao sistema
colonial se intensificam, condenando os monopólios, os tratados de comércio e o
trabalho escravo, propondo o livre-cambismo e, por conseqüência, a livre
concorrência.
As pressões da Inglaterra, que dependia do metal brasileiro, sobre Portugal,
somadas aos relatórios da Real Academia que ressaltavam a necessidade de
associações para enfrentar os altos custos da exploração subterrânea, resultaram
em uma legislação destinada a promover o melhor rendimento das minas. No dia
13 de maio de 1803, foi editado por Dom João VI um alvará que estimulava a
formação de associações de mineração visando a exploração das minas. A partir
deste alvará é contratado o Engenheiro Wilhelm Ludwig Von Eschewege com a
incumbência de dirigir o Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro.
Eschewege estudou cientificamente as áreas mineradoras e introduziu novas
técnicas na extração do ouro: “Introduziu baterias de pilões para trabalhar sob
lençóis d’água, verificando o baixo rendimento do cascalho aurífero, empenhou-se
15
na criação de companhias, única saída para trabalhar as jazidas subterrâneas.”12
A
partir de seus estudos no Brasil, publica “Pluto Brasiliensis”.
“A criação de companhias já era uma idéia presente na política econômica do Príncipe Regente D. João, proposta desde o Alvará de
1803 e persistindo no Alvará de 1811 (recomenda a criação de
companhias com auxílio de máquinas); no Alvará de 17/11/1813
(conferia privilégios aos proprietários de trinta escravos), na Carta Régia de 04/12/1816 (distribuía datas auríferas a quem solicitasse, na
proporção de 33 metros quadrados por trabalhador ou escravo livre) e
finalmente a Carta Régia de 16/01/1817 aprovando a 1ª Companhia de Mineração de Cuiabá” (MARTINS, 1984: 204)
Com a Carta Régia de 12 de agosto de 1817, que estabelecia os estatutos para a
sociedade de lavras, era dado novo direcionamento à questão mineral, iniciando
um novo ciclo de exploração mineral que iria perdurar até a República Velha. A
partir daí, dá-se início à prospecção do ouro privilegiando grupos capitalizados e
marginalizando o pequeno proprietário de minas e, conseqüentemente a mão-de-
obra mineradora.
Eschewege torna-se o primeiro a fazer uso desta nova legislação e adquire,
em 1819, a Sociedade Mineralógica da Passagem, próximo a Vila Rica. Com isto,
ocorre uma redirecionamento da mineração no Brasil. Passa-se de uma exploração
aluvionar e predatória das jazidas a uma extração mais organizada em função de
uma racionalidade econômica maior; sobressaindo-se os investimentos ingleses. É
importante ressaltar que toda a legislação do século XIX não irá favorecer o
garimpeiro isolado.
O Brasil, neste período, em função de sua dependência do capital inglês e
pelos custos do processo de independência de Portugal, recém decretada,
encontrava-se extremamente endividado. Por conseguinte não havia recurso para
amparar a formação de empresas de mineração, que pela legislação da época só
poderiam ser nacionais. Com o decreto de 16 de abril de 1824 foi permitido ao
capital inglês explorar jazidas no Brasil. É importante lembrar que a Inglaterra, nesta
época, adotava oficialmente o padrão ouro, e lhe convinha investir nas jazidas
12 Ibidem.
16
brasileiras. O Brasil, e principalmente Minas Gerais, vê o estabelecimento de várias
companhias, entre elas:
“1830 – Imperial Mining Association.
1832/1844 – Brazilian Company.
1833/1851 – Nacional Brazilian Mining Association
1844/1850 – The candola Gold Mining
1861/1876 – Eart d‟El Rey Mining Company Limited
1862/1900 – D. Pedro North d‟El Rey Gold Mining Company Limited
1862/1898 – Santa Barbara Gold Mining Company Limited
1863/1873 – Anglo Brazilian Gold Mining Company Limited
1864 – Roça Grande Gold Mining Company Limited
1873 – Brazilian Counsols Gold Mining Company Limited
1876/1887 – Pitangui Gold Mining Company Limited
1880/1883 – Brazilian Gold Mining Limited
1884 – Ouro Preto Gold Mines of Brazil Limited13
”
Todas estas empresas operavam com mão-de-obra escrava. No século XIX,
as maiores concentrações de escravos em Minas Gerais encontravam-se nas
empresas inglesas de mineração; no entanto, a grande maioria delas não obteve
sucesso. As mais bens sucedidas foram A Imperial Braziliam Mining Association
(Gongo Soco) (1825 a 1855), The Ouro Preto Golden Mining of Brazil (Passagem
13 MARTINS,1984: 206
17
de Mariana) e a Saint John Del Rey Mining Company (Morro Velho), a mais
lucrativa de todas essas companhias inglesas.
LIBBY (1984) estabelece três motivos pelo fracasso generalizado das
companhias inglesas. O primeiro deles foi a dispersão do capital, em razão do
grande número de Companhias, acrescida dos investimentos desordenados com
operações especulativas na Bolsa de Londres. O segundo, conforme este autor, está
relacionado à inadequação das técnicas e métodos de segurança disponíveis no
século XIX. O terceiro motivo está relacionado ao fato de que a maioria das jazidas
trabalhadas pelas minerações estrangeiras já estavam esgotadas, ou eram pobres em
teor aurífero.
No entanto, como mostra a tabela abaixo, os rendimentos das maiores
Companhias foram extremamente lucrativos:
Tabela 1: TAXA DE RENDIMENTO ANUAL DAS OITO MAIS RENTÁVEIS EMPRESAS DE
CAPITAL BRITÂNICO INSTALADOS NO BRASIL
EMPRESA /PERÍODO CALCULADO TAXA DE RENDIMENTO
São Paulo Railway Company (1876-1830)
The London & Brazilian Bank (1873-1893)
The English Bank of Rio de Janeiro (1874-1892)
Rio de Janeiro Gas Company (1865-1886)
San Paulo Gas Company ( 1882- 1912)
Bahia Gas Company (1880- 1894)
Santa Bárbara Gold Mining Company (1876-1886)
St John d’El Rey Mining Company (1835-1886)
11,2%
9,0%
9,5%
10,0%
9,0%
8,0%
14,0%
18,0%
Fonte: Rippy, J. F. (1959) – British investments in Latin América, 1822-1949.
In: LIBBY,1984 : p.34
Após decretada a Lei Áurea (1888), nota-se nos primeiros anos uma
transformação no setor mineral: torna-se inviável para as companhias mineradoras,
acostumadas a operar com mão-de-obra escrava, arcar, pelo menos de imediato, com
18
os custos de um trabalhador assalariado; e os negros, muitas vezes, excluídos do
processo de trabalho nas minas, transformam-se em garimpeiros clandestinos.
A constituição de 1891 estabeleceu, em seu artigo 72, parágrafo 17, o direito
fundiário para a mineração. Este fato dava aos proprietários de terras o direito às
minas. Assim, os mineradores eram obrigados a adquirir terras onde pudessem haver
jazidas ou tinham que promover acordos com os proprietários. Esta necessidade de
acordos esteve presente em dispositivos constitucionais durante toda a vida
republicana brasileira.
É importante ressaltar que toda a legislação que decorre a partir da Carta Régia
de 181714
, não favorece o garimpeiro isolado, ao contrário, marginaliza-o. Aliás, nos
séculos XVIII e XIX, os garimpeiros foram tratados como marginais ou
desclassificados sociais. Neste sentido dependeram:
“dos humores dos Intendentes e Ouvidores, ora ferozmente caçados pelos
capitães do mato, ora tolerados como agentes mineradores, permitindo-se
até mesmo ao garimpeiro residir nas vilas. Sempre clandestino, diferenciou-se do minerador não pelo modo como extraía o bem mineral – ambos braçais
e de pouca técnica - mas pela condição de ilegalidade” (SALOMÃO, 1984:
44)
Durante o século XX, as circunstâncias de instabilidade na atividade foram
ainda mais intensas, culminando em toda a reestruturação ocorrida a partir da década
de 80.
2. O Garimpo de Ouro no Século XX
De meados do século XIX até o fim da República Velha, o produto mineral
perde importância na economia brasileira, que passa a se estruturar em torno da
plantation cafeeira. Neste período, a atividade garimpeira torna-se praticamente
invisível, e não se constitui motivo de consideração dos legisladores.
14 “Documento que ao estabelecer os estatutos para a sociedade de lavra dá outro direcionamento à questão
mineral; encerra a fase de extração aluvionar e dá início à prospecção de ouro(...) ibidem
19
Somente em 1930, com Getúlio Vargas como chefe do Governo Provisório, e
como parte de seu programa de governo, que se pretendia popular e nacionalista, foi
estabelecido um direcionamento distinto à questão mineral e, por conseqüência, ao
garimpeiro.
O processo de transição da economia agroexportadora para a industrialização,
iniciada na década de 1930, despertava o Estado para a importância estratégica da
produção mineral, o que iria resultar no Código Mineral de 1934. As décadas
seguintes assistiriam, dependendo da conjuntura política e econômica, a um
movimento pendular de iniciativas estatais, ora procurando incluir, ora excluir os
garimpeiros da economia formal.
Pelo Decreto 23.979 de 8 de março de 1934, foi criado o DNPM
(Departamento Nacional de Produção Mineral), órgão específico de formulação da
política mineral e regulação do setor. Antes estes encargos eram delegados a uma
simples seção do Ministério da Agricultura.
O Código Mineral de 3 de maio de 1934 regulamentava a indústria de
faiscação de ouro aluvionar e a garimpagem de pedras preciosas, e estabelecia, pela
primeira vez, uma política mineral mais ampla, não se limitando às políticas de
extração e monopólio, ou à proibição dos direitos de lavra a grupos estrangeiros.
Dois elementos são fundamentais neste código: o primeiro ponto obsoleto da
legislação anterior, é a separação entre o direito de exploração do solo e do subsolo,
fato que tolhia os investimentos na mineração; o segundo é o reconhecimento
institucional da garimpagem e a definição de seu espaço de atuação. O direito
adquirido pelos donos de terra, que também eram proprietários das minas e jazidas,
foi resguardado pela Constituição de 1934.
O Decreto de 1934, como parte do projeto corporativo do Estado Novo,
traduzia uma visão bastante favorável ao garimpeiro e o entendia dentro de uma
dimensão bastante realista, sendo o primeiro documento oficial a valorizar a sua
atividade, embora com uma boa dose de paternalismo. No preâmbulo do decreto,
Vargas afirmava:
20
“é necessário congraçar os faiscadores e garimpeiros nos moldes do
sindicalismo – cooperativas para a defesa dos seus interesses, a prática de
melhores métodos de trabalho e a melhoria de seus proventos.” 15
A definição de garimpagem do Decreto 24.193 é aperfeiçoada pelo Decreto
1.374, editado em 26 de junho de 1939, que se apresentava mais sintonizado com a
realidade da atividade garimpeira da época.
No Decreto de 1934, o garimpo é reconhecido como atividade coletiva:
“O faiscador ou garimpeiro terá o direito de faiscar ou garimpar na zona indicada no seu certificado, podendo trabalhar conjuntamente com outros e
usar instalações provisórias e aparelhos simples”.
Neste mesmo decreto é definido, com maior precisão, o processo de trabalho
que caracteriza a garimpagem:
“Caracterizam-se a faiscação, a garimpagem e a catação, sobretudo pela simplicidade da utilização dos depósitos minerais, isto é, pela natureza dos
processos, aparelhos e dispositivos empregados – bateias, rokers, slices,
bateias mecânicas, e também pela quantidade de material extraído e tratado em 24 horas”.
O governo Vargas foi preciso em alocar para a garimpagem um conjunto de
áreas que compreendiam todas as terras devolutas e rios da nação (Art 5º/ Par. 1º):
22 zonas, sendo 8 de garimpagem de ouro e 14 de pedras preciosas. Como já foi
dito, em terras particulares a garimpagem seria permitida desde que houvesse
consentimento dos donos ou arrendatários (Art.5º/ Par 2º).
Em 1957, no governo Juscelino Kubistschek, com base na Lei 3.295 de 1957,
foi criada a FAG (Fundação de Assistência aos Garimpeiros) que retoma a proposta
corporativa do Estado Novo, e propõe assistência ao garimpo, vinculando-o à
Previdência Social. Conforme o Artigo 2º da referida lei, a FAG tinha como
objetivo:
15 Ibidem.
21
“A prestação de serviços sociais nas regiões garimpeiras que visem à
melhoria das condições de vida das suas populações, notadamente no que diz respeito:
a) à saúde, educação e assistência sanitária;
b) à habitação, alimentação e ao vestuário; c) ao incentivo à atividade extrativo-produtora e a quaisquer
empreendimentos que visem ao amparo, assistência e valorização do
garimpeiro;
I - a vinculação do garimpeiro ao regime de Previdência Social; II – Promover a aprendizagem e o aperfeiçoamento das técnicas do trabalho
no que se relacione à faiscação e à garimpagem.
III – Fomentar, nas regiões garimpeiras, a produção agropastoril, especialmente com o objetivo do auto-abastecimento, e atividades
domésticas.
IV –Estimular o cooperativismo e o espírito associativo.
V – Realizar inquéritos e estudos para o conhecimento e a divulgação das necessidades sócioeconômicas do homem do garimpo.
VI – Desbravar zonas garimpeiras inóspitas colonizando, com o concurso do
INIC, as que se prestem ao objetivo. VII – Fornecer, semestralmente e quando solicitados, ao serviço de
Estatística da Previdência e Trabalho, dados estatísticos relacionados à
remuneração dos garimpeiros.”
As metas propostas pela FAG não foram cumpridas, sendo extintas através do
Decreto 75.208 de 1975 no governo Geisel, repassando as responsabilidades
previdenciárias para o Pró-Rural, e as cooperativas para o INCRA.
A proposta desenvolvimentista do governo Juscelino imprimiu um ritmo mais
acelerado na captação de bens minerais, oferecendo oportunidades para um melhor
conhecimento do solo brasileiro. O ouro, entretanto, não estava incluído nos
22
programas específicos. Nesta mesma época, foi criado o primeiro curso de Geologia
no Brasil.16
É interessante ressaltar que toda a legislação sobre garimpagem, até a década
de 1960, caracterizava o garimpo como um trabalho extremamente rudimentar e de
pequena escala, praticado às margens dos rios e chapadas. Todavia, a partir de então,
altera-se rapidamente o quadro da extração aurífera no Brasil, com as descobertas
dos mananciais auríferos da região amazônica, principalmente o da Bacia do rio
Tapajós. Começava a emergir um novo padrão de garimpagem com base tecnológica
e relações distintas de produção.
Com o regime militar iniciado em abril de 1964, o setor mineral ganhou uma
nova dimensão na estratégia de acumulação definida pelo I PND (Programa
Nacional de Desenvolvimento): “O setor mineral não só passa a ter o papel de
fornecer parte da base material para a conclusão do processo de substituição de
importações, como também, o de gerar excedentes para a exportação.
Diferentemente dos governos populistas anteriores, o capital estrangeiro ao lado de
empresas estatais do setor eram os agentes desta estratégia.” PEREIRA (1990)
No ano de 1967, o Código de Mineração é editado (Decreto nº 227 de fevereiro
de 67) e é regulamentado em 24 de junho de 1968, suprimindo a prioridade antes
assegurada ao proprietário do solo; tornava-se livre o requerimento de pesquisa
mineral. A independência da autorização do dono da terra para a exploração
favorecia, sem dúvida, as grandes empresas mineradoras.
Dentro de uma perspectiva de centralização e fortalecimento dos instrumentos
de atuação do governo federal, esse código colocava o DNPM em uma posição de
amplos poderes na regulamentação da atividade mineradora. Todos os recursos
contra os atos deste órgão eram julgados pelo diretor geral do próprio órgão; e suas
decisões, pelo ministro das Minas e Energia.
A própria definição de garimpeiro presente no artigo 72, já mostra uma
alteração em relação a todo o aparato jurídico presente até então:
16 O curso de Engenharia de Minas havia sido criado em Ouro Preto já em 1872.
23
“Caracteriza-se a garimpagem, a faiscação e a cata:
I- Pela forma rudimentar de mineração;
II- Pela natureza dos depósitos trabalhados; e III- Pelo caráter individual do trabalho, sempre por conta própria”
No entanto, esta conceituação se mostrava claramente inadequada, uma vez
que, em todo o Brasil, os garimpos se estruturavam por meio de uma organização
essencialmente grupal, com relações verticalizadas. O trabalho por conta própria era
meramente circunstancial. Embora os garimpos fossem ainda essencialmente
manuais quando da publicação da lei, em curto prazo se iniciaria a apropriação
tecnológica, que viria a transformá-lo em algo bastante distinto da imagem
conduzida pelos dispositivos legais.
O Código de 1967 definia que a realização das atividades de garimpagem,
faiscação e cata dependia de permissão do governo federal. Esta lei punha fim ao
dispositivo, presente no artigo 62 do Decreto Lei 1.985 de 1940, que afirmava serem
livres os trabalhos de garimpagem em terras e águas do domínio público; o artigo
75, de modo semelhante, restringia o acesso ao subsolo, com a proibição da
garimpagem em áreas de concessão para pesquisa ou lavra. O mesmo Código, em
seu cap. II criava imensas facilidades para a requisição de áreas de pesquisa para
pessoas jurídicas:
“Em 1986, conforme dados do CNPq, virtualmente todas as áreas em
potencial mineral estavam requeridas. Somavam 1624.555 Km², cerca de
19% do território brasileiro e deste total 65% se localizavam nas regiões norte e centro oeste.” (PEREIRA, 1990: 129)
Com isto, as oportunidades abertas à atividade garimpeira tornavam-se, do
ponto de vista legal, extremamente restritivas. As áreas reservadas à garimpagem
pela legislação anterior foram canceladas. Existia ainda um outro recurso no artigo
113 da regulamentação do Código Mineral de 24 de junho de 1968, que controlava
ainda mais a atividade garimpeira:
24
“por motivo de ordem pública, ou do malbarateamento de determinada
riqueza mineral, poderá o Ministro das Minas e Energia, por proposta do
diretor geral do DNPM, determinar o fechamento de certas áreas às atividades de garimpagem, faiscação ou cata, ou excluir destas a extração de
determinado mineral”
Segundo PEREIRA, os diretores do DNPM eram homens em perfeita sintonia
com as grandes empresas do setor, quando não oriundos delas:
“O corpo técnico do órgão, salvo raras exceções, desenvolveu uma ideologia
de repúdio à garimpagem, patente nos documentos do Departamento e nas declarações para a imprensa. As denúncias de favorecimento a empresas
foram muitas, especialmente por parte de informações privilegiadas”
(PERREIRA 1990: 129)
De 1934 a 1967, o proprietário da terra tinha a preferência para a pesquisa e a
extração do minério encontrado em sua terra, além do direito de participação nos
lucros da lavra. Somente com a Constituição de 1988, os minérios foram
considerados bens da União. Atualmente, no entanto, em quase todas as regiões de
garimpo no Brasil, são estabelecidos acordos entre os proprietários de terras e os
garimpeiros, uma vez que estes não possuem a concessão de lavra. Os contratos
informais foram a forma encontrada para burlar a legislação e continuar a
garimpagem.
O que se viu nos anos 80 foi uma enorme expansão do garimpo. Esse
crescimento gerou um choque direto contra o aparato do Estado que não previa a
dimensão que este adquiria. Essa década foi marcada por um grande aumento do
número de garimpeiros no Brasil:
“Para se ter uma idéia, até 1983, de acordo com fonte do DNPM, havia
300.000 garimpeiros em 30 frentes de serviços, além de 18 projetos de
mineração em 30 áreas. Só no Pará, concentravam-se 150.000 garimpeiros,
sendo 40.000 em Serra Pelada, 45.000 no Cuamuru e 35.000 em Tapajós; no Mato Grosso, 50.000; em Goiás, 30.000, e na Bahia, 20.000.”(MARTINS,
1984: 215)
25
As causas e as condições que determinaram o boom garimpeiro dos anos 80
foram se gestando nas décadas anteriores. Na década de 70, atendendo aos interesses
das grandes empresas do setor mineral, praticamente foi fechado o acesso dos
indivíduos e das pequenas empresas à exploração econômica dos bens minerais.
Acompanhando o processo de modernização conservadora da agricultura brasileira
durante os anos 70 e 80, um vasto contingente de migrantes fluiu para as áreas de
fronteira da região amazônica em busca de melhores oportunidades. Migrantes
vindos das mais diversas regiões do país se engajariam na abertura de fazendas, nas
frentes de trabalho, na construção de estradas e grandes obras, em projetos de
colonização oficial, no extrativismo de madeira e de outros recursos vegetais, assim
como em novas e promissoras áreas de garimpo.
A descoberta de um grande número de jazidas minerais na região amazônica,
especialmente as de ouro, combinada com o enorme e repentino afluxo de população
nessas áreas, aumentava a tensão pela apropriação desses recursos. A elevação do
preço do ouro nos mercados internacionais funcionou como um catalisador do
surgimento de novos garimpos em quase todas as regiões.
O final da década de 70 foi marcado pela descoberta de Serra Pelada, na zona
aurífera de Carajás, chamando a atenção do Brasil e do mundo para as dramáticas
condições de trabalho e para a imensa riqueza que ali eram geradas 17
. Segundo
PEREIRA (1990), em poucos dias, a fofoca 18
de Serra Pelada espalhava-se em toda a
região, e dois meses depois da descoberta, Serra Pelada já contava com um
contingente de aproximadamente 20.000 garimpeiros, apesar das dificuldades de
acesso ao local.
O governo federal, através do SNI (Serviço Nacional de Informação), se
encarregou, nas palavras do Major Curió, de “controlar o garimpo”. O esquema
17 O ouro em Serra Pelada “fora encontrado, provavelmente, em dezembro de 1979, na fazenda de Genésio
Ferreira da Silva. PEREIRA (1990: 173) 18 Segundo CLEARY (1990), fofoca na gíria garimpeira corresponde ao processo de nascimento ou
renascimento de um garimpo. Ou seja a notícia de uma descoberta circula e atrai a chegada de garimpeiros de
outras regiões, comerciantes, prostitutas. Em alguns casos específico existe uma certa organização na
26
específico de gestão que foi implantado em Serra Pelada marcou o início de um
novo tipo de garimpo, diferente de todos os outros existentes. O SNI impôs critérios
bastante peculiares de organização e funcionamento da atividade, tais como:
controle do acesso ao garimpo, monopólio da compra do ouro pela Caixa
Econômica Federal, abastecimento de gêneros de consumo feito pela COBAL,
supervisão técnica da extração pelo DNPM, assistência médica pela fundação SESP,
policiamento pela Polícia Federal e Militar do Pará e comunicação telefônica e
postal pela Telepará e ECT. Através de Serra Pelada, percebe-se uma reação do
Estado, que para controlar toda a produção do ouro, retoma atitudes típicas da Coroa
no século XVIII.
O dono do terreno perde o direito a qualquer porcentagem de ouro extraída;
são proibidas a entrada de mulheres, de bebidas e de armas. Os esquemas
tradicionais de organização do trabalho, divisão do produto e gestão da atividade são
substituídos pelas regras ditadas pelo SNI, personificadas pelo Major Curió:
“Vigorava uma disciplina de campo de concentração; o hasteamento da
bandeira nacional ,no início e no fim dos trabalhos diários, contava com a presença de dezenas de milhares de homens que cantavam patrioticamente o
hino nacional com as mãos no peito. Num momento em que se avolumavam
as pressões da sociedade civil pelo desmantelamento do SNI e do aparato do autoritarismo, parecia que o SNI conseguia montar, em meio à selva
Paraense, o seu micro ideal de sociedade política” (PEREIRA, 1990: 176)
A partir de 1985, entretanto, inicia-se a fase de exaustão e decadência da jazida
e começam a aparecer os conflitos pela administração do garimpo. As pressões eram
grandes para o seu fechamento, principalmente por parte da detentora dos direitos de
pesquisa, CVRD (Companhia Vale do Rio Doce), que pretendia explorar o ouro
mais profundamente. No entanto, tal medida foi sendo adiada, dado o temor ao
potencial de reação que o fechamento de Serra Pelada poderia causar. Sob pressão e
lobby dos garimpeiros, o projeto do Curió, então deputado, que ampliava o prazo de
distribuição desta informação. A “fofoca” costuma ser coordenada pelo dono do terra ou pelo descobridor da
jazida que, a quem os garimpeiros pagam uma taxa de 10%.
27
fechamento de Serra Pelada para 1988, foi aprovado. Como reação, o governo
federal transferiu o encargo de gerir o garimpo ao DNPM.
Em 27 de outubro 1984, sob pressões de órgãos estatais, mineradoras e
associações de geólogos, o Presidente Figueiredo vetou o projeto. No entanto,
novamente sob enorme pressão dos garimpeiros, desta vez com atos de extrema
violência, como a depredação de equipamentos da CVRD, o Presidente Figueiredo
assinou o Decreto 7.194 assegurando a continuidade do garimpo, estabelecendo uma
indenização de U$$ 60 milhões à CVRD a ser paga pelo Tesouro Nacional, e um
novo prazo até 1987, para a garimpagem manual. Entretanto, os problemas
continuaram em relação ao manejo das cavas, que necessitavam de reparos
impraticáveis aos garimpeiros. Os conflitos continuaram até 1988, visando a obras
que facilitassem a extração manual e à posse definitiva da jazida:
“Embora tenham conseguido a posse definitiva da jazida, a situação dos
garimpeiros remanescentes em Serra Pelada piorou desde então. As obras de
rebaixamento não foram realizadas, o pouco ouro extraído resulta da repassagem de restos de minério já lavados, os escândalos de corrupção na
COOGAR (cooperativas dos garimpeiros) não pareciam ter fim.”
(PEREIRA, 1990: 184)
Na época da corrida do ouro de Serra Pelada, surgem também as primeiras
preocupações com a contaminação por mercúrio, devido ao aparecimento de seus
sintomas em grande número de garimpeiros.
É importante ressaltar que, além de Serra Pelada, outros garimpos de grande
porte também foram significativos na década de 80 na região amazônica. Entre
eles, podemos destacar o de Camaru e o de Tucumã. Este rush ocorria também
em outras regiões do Pará e em outros estados e territórios, como era o caso da
região de Gurupi e Viseu, nos Estados do Maranhão e do Pará, descritos
minuciosamente por CLEARY (1990), e em várias partes do Amapá, de Goiás e
de Minas Gerais.
Em 1983, Serra Pelada contava com aproximadamente 80.000
trabalhadores, número próximo ao das minas da região de Ouro Preto quando em
plena atividade. Estima-se que, até 1985, mais de 37 toneladas de ouro tenham
sido extraídas em Serra Pelada.
Durante o governo Figueiredo, o cenário político havia se transformado
profundamente. Na área econômica, instalava-se uma crescente crise inflacionária
28
e cambial. Assim, todo o processo de redemocratização ocorria em um cenário de
crise econômica latente. O governo passou a encarar o potencial explosivo dos
garimpos, principalmente os da Amazônia, caso a caso, conforme as
circunstâncias e condicionantes, não demonstrando nenhuma estratégia de longo
prazo. Neste período, o garimpo, apesar de seu potencial desestabilizador,
funcionou como uma alternativa para a população de baixa renda:
“Como não podia proceder à redefinição institucional de forma global,
possibilidade postergada a uma futura Assembléia Constituinte, passou-se a contornar os conflitos pela adoção de medidas emergenciais em cada um dos
diversos casos. Exemplo desta estratégia, ou falta de estratégia, foi a
intervenção militar em Serra Pelada e Camuru” (PEREIRA, 1990: 244)
No início da década de 80, o Ministério das Minas e Energia chegou a apostar
no garimpo como solução para o aumento da extração do ouro. Esta aposta, além de
reduzir a tensão social no nordeste e no norte do País, tinha como vantagem
adicional possibilitar que fossem poupados investimentos em infra-estrutura e
incentivos fiscais por parte do governo. Esta proposta foi discutida no I Encontro do
Ouro, realizado em Brasília, em junho de 1983, cujo objetivo era traçar as bases da
política minerária após o reconhecimento da importância da atividade garimpeira, a
partir do impacto gerado por Serra Pelada.
O documento produzido neste encontro reconhecia a agilidade e a eficiência
dos garimpeiros na descoberta e exploração do ouro, embora ressaltasse que a
atividade garimpeira não deveria ser considerada como o regime ideal de
aproveitamento mineral. No próprio texto lia-se:
“A exploração por garimpagem possibilita, em maior escala, a diminuição de problemas sociais decorrentes do desemprego, com a utilização de um
contingente maior de trabalhadores. Com a força propulsora da
garimpagem, áreas ainda não desbravadas de nosso território podem conhecer, a curto prazo, o desenvolvimento através de uma política
complementar de assentamento” 19
Um ponto interessante a ser observado nessa conjuntura é a ascensão da
atividade garimpeira ao status de atividade mineradora. Isto ocorria em um
29
momento particularmente favorável, no qual conjugava-se a excitação causada pela
propaganda de Serra Pelada às dificuldades de investimento, em virtude das
condições econômicas do país, e à necessidade desesperada de divisas. A partir daí,
o Ministério das Minas e Energia desenhou uma política para o ouro, cuja premissa
básica era o aumento da produção a curto prazo. O garimpo passava a ser tolerado
sob a justificativa da mitigação dos problemas sociais decorrentes do desemprego.
Com o estímulo oferecido pela ação governamental, foram introduzidas
mudanças nas relações básicas de produção, determinando novas formas de relações
de trabalho. Segundo SALOMÃO (1984), em três anos, praticamente se extingue,
no país o garimpo manual, base anterior do sistema produtivo:
“A força braçal é substituída por sistemas de desmonte hidráulico e bombas
de sucção por tratores, moinhos, caminhões e todo um universo de
apropriações tecnológicas, tornando o homem um agente complementar na
produção, a qual é, na verdade, realizada pela máquina. (SALOMÃO. 1984: 65)
As deliberações do Encontro do Ouro favorecem o surgimento de um novo tipo
de garimpeiro, o chamado garimpeiro empresário, que se caracteriza pela posse de
um empreendimento mecanizado, normalmente com dois motores de sucção, e pelo
poder de contratar garimpeiros para as novas funções exigidas.
Com o fracasso dos objetivos do governo de aumentar significativamente a
produção do ouro via garimpo, não se restaurou, como desejavam os empresários
mineradores, o cumprimento da lei. Assim, a repressão ostensiva ao garimpo
nunca mais se restabeleceu.
Assim, durante o resto da década de 80, o garimpo passa a ser visto
novamente pelo Estado como um problema de múltiplas dimensões. Encarado
como um acidente social e foco potencial de agitação, o garimpo deveria, na
melhor das hipóteses, ser transformado em um outro tipo de estrutura social,
como uma cooperativa ou mesmo uma pequena empresa de mineração. Outra
hipótese era a sua eliminação definitiva.
A Constituição de 1988 deu um destaque importante à questão mineral,
concedendo o monopólio de extração às empresas de capital nacional e
19 Ministério das Minas e Energia. Ouro – bases para uma nova política. Brasília, 1983. p. 25-6 Cit por
PEREIRA (1990)
30
reconhecendo, de fato, o espaço que o garimpo ocupava. As áreas dos garimpos,
quando da publicação da Constituição, foram reconhecidas como áreas reservadas
à garimpagem. A Constituição estabelecia ainda, através do artigo XXV, a
possibilidade da União criar novas reservas garimpeiras. O parágrafo 4º do Artigo
174 favorecia e assegurava ao garimpeiro a “prioridade na autorização ou
concessão para a pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais
garimpáveis”.
Atualmente, a atividade garimpeira de ouro no Brasil, principalmente a de
extração aluvionar, continua como um importante segmento da mineração, tanto do
ponto de vista da produção aurífera20
como o da absorção de mão-de-obra. Nos
últimos quinze anos, ocorreram transformações profundas na organização da
atividade. Os garimpos artesanais de subsistência praticamente desapareceram,
emergindo um tipo estruturado em bases quase empresariais. Estes novos garimpos
são mecanizados, caracterizando novas relações de trabalho em sua divisão,
organização e gestão. Como será demonstrado no terceiro capítulo, através da
pesquisa de campo, a atividade exige atualmente do trabalhador maior
especialização, uma vez que se tornou mais complexa. É imprescindível, por
exemplo, o conhecimento de mecânica, de utilização do mercúrio e de drenagem das
cavas.
3. As Diversas Formas de Extração do Ouro.
As colocações anteriores tornam claro que não se pode compreender a
estrutura do mundo do garimpo sem o referencial das configurações institucionais
que o englobam. O papel do Estado, e em particular, a natureza e a abrangência de
sua capacidade regulatória definirão o campo de possibilidades e limites em que se
desenrolará a atividade garimpeira. Tanto as formas de organização do trabalho,
quanto a natureza das redes de transações econômicas em que se situa o garimpo
20 Segundo estimativa do DNPM (Departamento Nacional da Produção Mineral), os garimpeiros foram
responsáveis por 44% do ouro extraído no Brasil em 1993 (estima-se que o garimpo deva responder
atualmente por mais de 1/5 da produção mineral brasileira, excluído o petróleo).
31
serão profundamente marcadas pelas formas de confiança interpessoal e
previsibilidade criadas pelo contexto geral em que se insere a atividade.
Vale a pena salientar como a literatura recente sobre economias informais é
capaz de lançar luz sobre as formas de estruturação do garimpo. Alejandro PORTES
(1994) entende por informalidade “uma ação econômica desenvolvida à margem do
poder legalmente instituído, sendo neste sentido excluída da proteção das leis, ou
seja, uma atividade produtiva de bens e serviços que se desenvolve paralelamente à
economia formal”.
É importante distinguir conceitualmente atividades econômicas informais e
ilegais. A incapacidade de marcar analiticamente a distinção conduz,
freqüentemente, a interpretações equivocadas do fenômeno da informalidade.
Segundo PORTES (1994), “o empreendimento ilegal envolve a produção e a
comercialização de bens que são definidos, em um determinado lugar e tempo, como
ilícitos”. No empreendimento informal, ao contrário, os acordos são realizados na
sua maioria como bens lícitos, embora sob modalidades de ação econômica não
sujeitas (ou resistentes) à regulação estatal. Assim, pode-se afirmar que a diferença
básica entre economia formal e informal não está no caráter final do produto, mas
sim, na maneira como ele é produzido e trocado.
Segundo PORTES (1994), as relações entre a regulação estatal e a
informalidade estariam submetidas a uma série de paradoxos. Um deles tem, como
ponto de partida, a crítica a certas interpretações21
que vêem na economia informal a
concretização espontânea de um verdadeiro mercado puro, sem as intervenções
distorsivas da regulação estatal. O paradoxo, segundo Portes, é que quanto mais a
economia informal se aproxima do modelo de “verdadeiro mercado”, mais
dependente ela se torna de fortes laços sociais, que permitam a continuidade das
transações em um contexto onde estão ausentes garantias formais. O vácuo da
regulação estatal deve ser preenchido por mecanismos de mobilização de recursos e
21 DE SOTO (1989)
32
estabilização das transações baseadas em networks sociais específicas. Nas palavras
de PORTES:
“Trust in informal exchange is generated both by shared identities and
feelings and by the expectation that fraudulent actions will be penalized by
the exclusion of the violator from key social networks” (1994: 432)
Outro paradoxo diz respeito ao tratamento dado pelo Estado à economia
informal, ou seja, esforços para impedir ou limitar a expansão das regras e controles
dessa economia podem exacerbar várias dessas condições e, muitas vezes, dar
origem a essas atividades. Neste sentido, o que pode acontecer é que a regulação
estatal, apesar de não criar a economia informal ipso facto, gera oportunidades para
o seu desenvolvimento. Isto pode ser percebido no fato de muitas comunidades se
organizarem, resistindo ao controle do Estado e, simultaneamente, tendo vantagens e
oportunidades por ele criadas. Segundo PORTES:
“The informal economy can be viewed as a constructed response on the part
of civil society to unwanted state interference. The universal character of the phenomenon reflects the considerable capacity of resistance in most societies
to the exercise of state power” (1994: 444)
As implicações desta análise para o entendimento da atividade garimpeira são
extremamente importantes. O garimpo esteve, desde o seu surgimento, imerso na
economia informal, em que estão ausentes as garantias formais do direito de
propriedade; sempre à margem da ordem legalmente constituída. Esta marginalidade
foi fundamental na constituição do ambiente de trabalho, definindo as bases de toda
a sua estrutura a partir de uma lógica organizacional totalmente diversa das
organizações burocráticas convencionais. Toda a sua organização é estruturada
provisoriamente, seja em função da imprevisibilidade gerada pela fiscalização, seja
pelas características naturais e próprias da atividade. De um lado, a profunda
instabilidade e incerteza, que sempre envolveram a atividade, fizeram com que
fossem reduzidos, drasticamente, os horizontes temporais dos garimpeiros, inibindo
33
investimentos com base em capital fixo de longo prazo. De outro lado, a
improbabilidade da regulação estatal determina que as transações econômicas se
desenrolem em um contexto de ausência de garantias de enforcement, tornando os
atos contratuais excessivamente dependentes de um elevado grau de confiança
interpessoal. Ambas as circunstâncias concorrem para tornar as relações da
garimpagem marcadas por elevada tensão e desconfiança. Esse ambiente de
contingência exacerbada é, sem dúvida, um elemento de extrema importância na
moldagem da organização do trabalho.
Esses fatores fizeram com que o garimpo se estruturasse em torno de uma
cultura muito peculiar, solidificando uma organização dinâmica e específica de
desenvolvimento. Esta cultura garimpeira é percebida no que se convencionou
chamar de “lei do garimpo,”22
identificada como o principal sistema de organização
da atividade. É em torno desse código tácito que se estruturam as relações sociais
no mundo do garimpo, baseadas em um conjunto de normas éticas pactuadas.
A lei do garimpo estrutura as relações de trabalho, as formas de gestão, os
direitos e deveres dos trabalhadores, os mecanismos de recrutamento, a divisão do
produto extraído, os direitos de exploração de uma determinada área e as relações
com os compradores de ouro; ou seja, a lei do garimpo regula as condições morais
das relações de confiança de uma forma geral, num contexto em que prevalecem
contratos informais e em que os prejuízos trazidos pelo comportamento
oportunístico são, potencialmente, muito grandes.
Se por um lado a atividade garimpeira se desenrola em um ambiente de
confiança reduzida e elevado potencial de conflito, por outro, a própria natureza da
atividade supõe elevado grau de cooperação, tanto no processo de trabalho, quanto
na cumplicidade tácita frente a outras categorias sociais definidas como “estranhos”.
22 Segundo Mariane SCHMINK 1985 citado por PEREIRA (1990) a “lei do garimpo” pode ser entendida
como: “A well developed set of norms and beliefs (...)A complex system of labor relations and its
accompanying ideology enphasing both independence and solidarity”
34
Segundo MELLO E SOUSA (1986), os garimpeiros foram os primeiros homens
livres e pobres da colônia a desenvolver um certo esprit de corps:
“O grupo de garimpeiros foi um dos mais solidários de que se teve notícia no período colonial. Gerados pelo processo de desclassificação que o
fiscalismo desvairado – “o gênio migalheiro do despotismo” – tornou
particularmente intenso na demarcação diamantina(...). Não se confundiam com o bandido, apresentando um código próprio de conduta pautado na
lealdade; limitavam-se a trabalhar em terras vedadas, e este era o seu único
crime, pois respeitavam a vida, os direitos, as propriedades de seus concidadãos” (MELLO E SOUSA, 1986: 203 )
Essa solidariedade grupal é uma característica fundamental nos garimpos
brasileiros. A conduta baseada na lealdade se apresenta, entre outros aspectos, na
distribuição do produto da extração, e também é percebida na sua organização em
função da clandestinidade. Vítimas da coerção estatal unem-se para antecipar a
fiscalização e se organizam em função dela. Dessa forma, a lei do garimpo foi quem
garantiu o funcionamento desse empreendimento caracterizado pelo excessivo risco
de toda a informalidade em que sempre se encontrou.
Em torno dessa cultura garimpeira, cristalizou-se uma representação mítica do
garimpeiro estribada nas idéias de sorte, aventura e jogo, e corporificada em torno
de uma série de lendas, mitos e histórias de grandes bamburros seguidos de falência.
Esta representação, presente desde o surgimento da figura do garimpeiro, foi se
fortalecendo gradualmente no imaginário popular e, por quê não dizer, alimentada
pelos próprios garimpeiros. Assim, o garimpeiro era aquele aventureiro, audaz,
ambicioso, jogador intrépido, que buscava fortuna numa vida cheia de riscos,
perigos e emoções. A literatura produzida, principalmente nas regiões garimpeiras,
só veio fortalecer esse imaginário. Nas palavras de Bernardo Guimarães em 1872:
“O garimpeiro é como um jogador; sua esperança está sempre no seio da
grupiara, como a do jogador nas cartas do baralho, nos dados ou no tabuleiro verde do bilhar; isto é, sua felicidade dorme na urna do acaso de
35
onde as mais das vezes nunca sai. Por mais que sejam os revezes com que a
fortuna os maltrate, por mais que repila e os calque os pés, esses cegos e
pertinazes amantes estão sempre de rojo a mendigar favores aos pés daquela
cruel e caprichosa amásia” 23
(p. 91)
Ou ainda:
“É o garimpo que seduz e cega o homem mais do que a mesa de jogo ou a
meretriz artificiosa. Venderei meu cavalo, meus arreios, minha faca de
prata, e darei tudo ainda a devorar a esse maldito garimpo”24
(p. 49)
Para Joaquim Felício dos Santos, os valores centrais da vida do garimpeiro
eram o gosto pela vida livre e aventureira. Na sua obra “Cenas da vida do
garimpeiro João Costa”, ele diz:
“Será para outros um triste viver andar sempre proscrito, foragido,
perseguido, exposto à morte a cada momento, não tendo um abrigo certo,
dormindo ao relento ou disputando os covis às feras, hoje na abundância, amanhã sofrendo frio, a fome, a sede... mas para mim não: encontro prazer
nessa vida. Aqui ao menos respiro o ar da liberdade” (SANTOS, 1976: 99)
Podem ainda ser citados autores como Mata Machado e Helena Morley, que
em suas obras fortalecem a imagem do garimpeiro aventureiro, ambicioso,
hospitaleiro, leal com os companheiros, imprevidente no trato com o dinheiro, crente
em superstições etc. MATA MACHADO (1964) relaciona uma série de mitos e
crenças que, em sua opinião, são elementos que servem de estímulo à permanência
do trabalhador neste ambiente de elevado risco. Frases como: “os primeiros
bamburros só vêm depois de um longo azar”, “o que tem de ser meu está debaixo
da terra”, ou “serviço de muita ganga entra vestido e sai de tanga” são
comprovações desse fato.
Essa distinção está presente até hoje nas áreas de garimpo em todo o Estado de
Minas Gerais. Muitas vezes, os defeitos atribuídos ao garimpeiro, como o de gastar
todo o ouro achado em futilidades é, na verdade, considerado uma qualidade dentro
23 GUIMARÃES, Bernardo. O garimpeiro. São Paulo, Ática, (1872) 1993.
36
de seu grupo social. No capítulo seguinte, serão tratadas essas especificidades
quando da abordagem do métier de garimpeiro.
A análise da trajetória histórica do garimpo permite perceber que as formas de
organização do trabalho de garimpagem apresentam diferenças marcantes em
relação a outras formas de organização do trabalho de mineração. Constata-se o fato
de que, desde o século XVIII, a extração mineral é caracterizada por duas formas
distintas de organização do trabalho: os empreendimentos de pequena escala do
garimpo e as lavras de grande escala. A análise apontou também que, durante a
década de 80, o garimpo transforma-se de tal monta que dá origem a uma forma de
organização do trabalho com novos contornos: o garimpo semimecanizado.
Por conseguinte, torna-se importante distinguir as características estruturais de
cada um destes formatos produtivos. A partir de construções de tipos ideais, como
recurso heurístico, decidiu-se marcar mais claramente as semelhanças e os
contrastes entre os vários modelos de organização produtiva da extração mineral.
Como acontece sempre com os tipos ideais, tais constructos são apenas
aproximações imperfeitas da imensa complexidade e heterogeneidade das situações
reais da extração minerária, que permitem organizar gradientes e conjuntos
significativos de características estruturais.
Delineavam-se assim, pois, três grupos de formas predominantes de
organização produtiva da extração mineral experimentadas historicamente no
contexto brasileiro: o garimpo artesanal, o garimpo semimecanizado e as grandes
empresas mineradoras, cada qual apresentando processos de trabalho, formas de
conhecimento e estruturas de cooperação e autoridade particulares. As principais
diferenças são tematizadas no Quadro 1, adaptando as classificações propostas por
Tilly & Tilly (1998):
24 Ibidem p. 80
37
Quadro 1. Formas de Organização Produtiva na Extração Mineral
Garimpo
Artesanal
Garimpo
SemiMecanizado Empresa Mineradora
Escala Individual/Familiar Pequenos Grupos/
Familiar Grandes Números
Divisão do
Trabalho
Unidade do Processo de Trabalho/ Estruturada
pelo métier
Divisão do Trabalho
estruturada pelo métier
Divisão Taylorista do
Trabalho
Controle do
Processo de
Trabalho
Trabalhador Negociações entre
Trabalhador/Gerência
Gerência e
organização hierárquica
Base Técnica Técnicas Rústicas
Tradicionais
Técnicas artesanais e
desmonte mecânico/ sondagem precária
Mecanização/
Sondagem
Formas de
Conhecimento
Experiência Prudencial
e Critérios de
Julgamento
Experiência Prudencial e Rotinas
Rotinização e Prescrição Prévia
Previsibilidade
dos Resultados Reduzida Reduzida Elevada
Estruturas de
Incentivos Redes sociais informais
Compensação material
Redes sociais informais
Compensação
Material
Relações de
Trabalho Horizontais
Verticalizadas, mas
dependentes de
cooperação.
Verticais
Networks Família e Trabalho Família, Trabalho e
Localidade. Trabalho e Hierarquias
Contexto
Institucional Informalidade Informalidade Formalidade
O garimpo artesanal ou manual constitui uma atividade econômica
tipicamente orientada à subsistência, mantendo-se ainda na marginalidade de forma
residual em algumas regiões. Caracteriza-se pela ausência completa de máquinas e
de sondagem. Utiliza algumas ferramentas como a bateia e, atualmente, faz uso do
mercúrio para a apuração do ouro. É uma atividade que requer baixíssimo capital.
38
Obviamente, não detém a concessão da área de exploração25
e continua na
clandestinidade, atuando nos rios e nas suas margens. Mantém quase intactas as
mesmas técnicas utilizadas nos séculos passados. É um empreendimento individual,
itinerante e realizado por grupos independentes, muitas vezes familiares.
Este não é o grupo mais perseguido pelos órgãos fiscalizadores, pois o seu
poder de degradação ambiental não é grande. Muitas vezes, trabalha
clandestinamente nos esgotos das grandes mineradoras, onde explora os resquícios
de uma extração mais racional. Normalmente os donos dos garimpos
semimecanizados permitem que estes grupos se aloquem ao lado de suas cavas.
O garimpo semimecanizado também possui um caráter itinerante,
principalmente nos garimpos com sistema de balsas, em que a extração é feita dentro
do leito do rio, tornando desnecessários os acordos com os donos dos terrenos. São
formados por grupos que variam entre 5 e 10 trabalhadores, sendo os donos
normalmente familiares, que contratam outros trabalhadores. Os garimpeiros, via de
regra, lavram terras de terceiros. Em função disto, são estabelecidos acordos entre os
garimpeiros e os proprietários ou entre os garimpeiros e os financiadores do
empreendimento, o que ocasionalmente, gera conflitos. Estão ausentes as técnicas de
sondagem, portanto é baixo o índice de previsibilidade.
Este tipo de garimpo emergiu a partir dos anos 80 em razão do
desenvolvimento das técnicas e processos de trabalho dos garimpos artesanais. O
principal elemento que o diferencia do garimpo manual é o uso de motores na
extração, equipamentos que não foram desenvolvidos pelos próprios trabalhadores,
pois são motores adaptados à atividade garimpeira em momentos circunstanciais
favoráveis, podendo ser encontrados em outros tipos de atividade extrativa, como a
de diamantes e a de areia. O uso de tais motores modificou radicalmente a extração
aurífera, tornando a atividade muito mais dinâmica e eficaz.
25 Esta concessão é fornecida pelo DNPM, e se trata de um processo lento e oneroso, o que desmotiva o
garimpeiro a buscá-lo, e desta forma, dar o primeiro passo a sua legalização.
39
A produtividade é mais elevada se comparada aos garimpos artesanais, pois,
com os motores, maiores profundidades são atingidas. No entanto, em termos gerais,
a extração é pequena, uma vez que as áreas de maior ocorrência já foram bastante
exploradas pelas grandes empresas possuidoras das concessões de extração. A
utilização de motores também passou a envolver maior número de trabalhadores e a
exigir um nível de especialização mais elevado. Com isto, surge uma divisão maior
do trabalho que, pelas próprias características da atividade, não é muito rígida.
As relações de trabalho são estabelecidas em um sistema de confiança mútua e
a remuneração é por porcentagem do total de minério extraído. São relações
verticalizadas mas sem rigidez, ou seja, com mecanismos de coordenação em que os
donos dos motores determinam as tarefas a serem executadas, e os trabalhadores as
executam em conjunto com os garimpeiros mais experientes.
Os garimpos semi-mecanizados possuem um investimento de capital fixo
considerável para os padrões locais, aplicados essencialmente em motores, e em
alguns casos, em tratores.
Estes garimpos são alvo de uma fiscalização intensiva dos órgãos ambientais,
em razão do elevado poder de destruição do meio ambiente pela ação dos motores,
pela utilização do mercúrio e pela maior visibilidade da degradação provocada.
Os locais de extração, tal como os dos garimpos artesanais, são determinados
por saberes adquiridos no trabalho. Muitas vezes, as orientações são fornecidas por
garimpeiros mais velhos, detentores reconhecidos destas competências.
Um terceiro tipo de extração de ouro é o realizado pelas empresas
mineradoras. Estas empresas são altamente mecanizadas, com sistemas de dragas
flutuantes que retiram elevadas quantidades de cascalho para a apuração e atuam
com um sofisticado sistema de apuração química do ouro, em alguns casos sem a
utilização de mercúrio. Através da prospecção geológica, avaliam a jazida em seu
prognóstico e diagnóstico, o que lhes possibilita extrair grande quantidade de ouro.
Além disso, a prospecção restringe as incertezas do terreno, permite o planejamento
e a projeção dos resultados econômicos da lavra e reduz os riscos do
40
empreendimento; conseqüentemente, aumenta a possibilidade de um êxito
compensador. Submetidas a uma racionalidade capitalista, estas empresas tentam de
todas as formas, minimizar e tornar controláveis os imprevistos característicos da
extração.
Estas empresas se diferenciam radicalmente dos garimpos anteriormente
descritos, pois adquirem a concessão de grandes extensões de terras onde existem
jazidas conhecidas ou supostas.
As relações de trabalho se assemelham às de quaisquer empreendimentos
capitalistas: os trabalhadores são assalariados, submetidos à gerência, etc. Este
grupo possui um elevado potencial de degradação ambiental, que é fiscalizada pelos
órgãos ambientais dos Estados.
Este trabalho pretendeu investigar o mundo do trabalho dos garimpos
semimecanizados, que comporta a caracterização de um híbrido intermediário entre
o garimpo artesanal e as empresas mineradoras.
Neste tipo de garimpo estão presentes vários elementos do garimpo artesanal,
como por exemplo, a baixa previsibilidade da extração, as relações de trabalho
marcadas por um elevado grau de porosidade e a divisão percentual do produto
extraído entre os participantes. Também se assemelha aos garimpos tradicionais em
relação à reduzida extração e ao caráter de ilegalidade a que ambos estão
submetidos. No entanto, também se aproxima das empresas mineradoras pela
orientação empresarial, pela presença da mecanização com uma especialização e
uma divisão do trabalho não muito rígida.
Um dos fatores importantes da extração garimpeira atual, tanto artesanal
quanto mecanizada, é o fato desta se basear quase sempre nos resquícios de ouro não
extraído pelas grandes empresas de mineração. Esta atividade tem a característica
peculiar de conseguir viabilizar o aproveitamento de ocorrências do ouro, na maioria
dos casos desinteressantes para as empresas de mineração. As próprias
características geológicas desses depósitos, muitas vezes, não justificam maiores
investimentos nas fases de pesquisa mineral e de lavra.
41
A exploração aurífera em várias regiões é fortalecida pelo desemprego, que em
geral é alto nas regiões exploradas. Garimpar torna-se praticamente a única forma de
trabalho remunerado possível.
Este estudo investiga, pois, a atividade garimpeira na região de Mariana,
tomando-a como um exemplo representativo da organização social e das principais
transformações sofridas pela atividade nas últimas décadas, sem esquecer as
especificidades regionais. O garimpo será considerado como um métier em
transformação que estrutura a vida de homens e mulheres da região. Torna-se
necessário, pois, uma discussão conceitual das noções teóricas fundamentais, a partir
de um diálogo com a sociologia do trabalho, começando pela noção de métier.
42
Capítulo II
O Métier e as Formas de Conhecimento no Trabalho
No que se segue, procura-se conduzir a discussão no sentido de explicitar o
referencial teórico-conceitual que embasa nossas interpretações sobre o universo da
atividade garimpeira. Busca-se também articular elementos convergentes das
tradições analíticas corporificadas na sociologia do trabalho, na sociologia da vida
econômica e na fenomenologia da vida cotidiana de Alfred Schutz. Os conceitos
centrais de métier e de competência permitem cristalizar o entendimento da lógica
do trabalho do garimpo.
Na primeira parte, é explicitado o conceito de métier, entendendo-o como um
modo particular de organização e de divisão do trabalho. Em seguida, o foco é sobre
a noção de competência, com destaque para o tema das relações entre o processo de
trabalho e as formas de conhecimento. Embora o uso recente da noção de
competência a vincule ao problema da pane em ambientes industriais avançados,
procura-se ressaltar a fertilidade de sua aplicação em ambientes de trabalho, nos
quais o métier é o estruturador das respectivas relações. De um modo diverso da
forma como a tradição francesa tem lidado com o conceito de competência, foi
realizado um turn fenomenológico, recorrendo às interpretações de Alfred Schutz
sobre a construção social do conhecimento.
43
Na terceira e última parte, é desenvolvida uma narrativa sobre o métier de
garimpeiro, ressaltando as razões pelas quais essa atividade pode ser entendida como
um métier. Percebe-se que o mundo do garimpo é constituído por uma série de
estruturas de relevância e por competências específicas. Assim, procura-se
demonstrar como o estoque de conhecimentos pode enfeixar e dar sentido a todo o
universo de práticas, saberes e sociabilidades da vida do garimpo.
1. O Métier
O métier se apresenta como um elemento estruturante das organizações
produtivas, ou ainda, como um conjunto de conhecimentos e de “savoir-faire”
ligados às atividades do trabalho, que evoluem ou se modificam com o tempo
(TOMASI, 1996).
O termo métier emergiu no século X para caracterizar a especialização da
metalurgia que se desenvolvia na Idade Média, a partir do artesanato e da divisão do
trabalho entre cidade e campo. Já então, a noção de métier era acompanhada de um
certo reconhecimento e prestígio social, no interior do quadro da prática profissional
artesanal.
No entanto, a etimologia da palavra denota, também, uma conotação
pejorativa, associada à servidão e à escravidão. O campo semântico de métier
emerge pela deformação das antigas palavras menestier, mistier, service, office, que
são contrações do latim ministerium, que está na raiz de mistério que, por sua vez,
vem de minus, o menos, o inferior. ROBERT (1966) A ambigüidade se resolve,
quando lembramos que, no imaginário medieval das três ordens, o trabalho, por
mais virtuosismo que revelasse, não atingia a dignidade das atividades daqueles que
rezavam e combatiam.
A noção moderna de métier formou-se nos meios industriais, no início do
século XX, e, sobretudo, a partir da 2ª Guerra Mundial, época em que se torna
44
sinônimo de qualificação e formação profissional. A noção de métier remete,
atualmente, ao conjunto de habilidades técnicas, intelectuais e manuais associadas à
experiência prática. Segundo DADOY (1989), o métier moderno é estruturado em
torno da formação inicial que vai substituir a noção de métier artesanal:
“O métier consiste no reconhecimento social e na possessão de um saber, de uma identidade construída a partir da experiência. Atualmente ele faz
referência a um lugar dentro da divisão do trabalho, a um setor da atividade
econômica e às formas e às condições do emprego” DADOY (1989)
A porta de acesso ao métier é sempre o aprendizado e a experiência prática
em uma atividade complexa e mutável, que exige elevado grau de discrição e
discernimento por parte do trabalhador. Assim, o métier pode ser entendido como
uma forma específica de estruturar a divisão do trabalho e os seus mercados,
estabelecendo uma forma particular de redução da contingência, ou seja, uma
redução dos riscos de um processo de seleção dos trabalhadores. Em muitos
ambientes industriais da era moderna, a presença de elementos de métier (ou craft)
no processo de trabalho esteve historicamente associada à presença de modalidades
de subcontratação e organização de equipes de trabalho, de natureza
fundamentalmente diversa das hierarquias e formas de recrutamento do trabalho de
outras ocupações 26
.
O métier confere ao trabalhador uma certa identidade e prestígio, e é
responsável também pela estruturação de uma forma específica de divisão do
trabalho. De modo típico, embora não exclusivo, atividades estruturadas pelo métier
tendem a se enraizar profundamente em certos contextos sociais específicos, em que
pertencimentos e identificações de família, trabalho, localidade ou etnicidade jogam
um papel decisivo na moldagem de um certo esprit de corps. Por outro lado, o
elevado grau de julgamento prudencial e a necessidade de cooperação, que
caracterizam a maior parte dos processos de trabalho típicos do métier, supõem
26 STINCHCOMBE, Arthur. (1990) e TILLY & TILLY.(1998)
45
maior autonomia no controle do processo de trabalho, com relações mais
horizontalizadas e sujeitas à permanente negociação.
O termo métier foi sempre associado ao trabalho artesanal, no qual o atelier é
a referência fundamental. Neste atelier artesanal, as diferentes operações de
elaboração de um produto são divididas entre os membros, segundo suas
características intrínsecas, sua complexidade e o conhecimento prático do operador,
sendo desenvolvidas de acordo com os ritmos e habilidades adquiridas pelo
indivíduo.
Quando se fala de métier, é importante contrastá-lo com o seu oposto, os
modelos de trabalho do mundo fabril, sempre envolvido pela dinâmica taylorista.
ZARIFIAN (2001) estabelece diferenças importantes, opondo o modelo de operação
associado ao mundo fabril taylorizado ao modelo de métier27
em vários níveis, tais
como: a aquisição do métier, a aprendizagem do métier, e o modelo do métier.
Segundo esse autor, a aquisição do métier não está relacionada
prioritariamente às operações no trabalho, mas fundamentalmente às regras de ação,
em que a base de julgamento é o produto final. Essas regras se assemelhariam às da
arte, pois não é a simples repetição mecânica e predeterminada das regras que conta,
mas a incorporação dos efeitos que se possam relacionar a elas. No contexto do
métier, as regras não são auto-aplicáveis, mas dependem de uma complexa avaliação
das contingências da situação:
“A utilização da palavra „arte‟ indica o fato de que, entre a aplicação da regra e seus efeitos, interpõe-se alguma coisa que é totalmente impossível
definir (certa habilidade particular). Porque a regra aponta apenas as
diretrizes da ação, e não o seu conteúdo preciso. A ação não racionalizada
no sentido taylorista do termo.” ZARIFIAN (2001: 157)
A aprendizagem do métier não tem como finalidade exclusiva ensinar a
reproduzir determinadas rotinas e produtos. Essa reprodução é somente uma
estratégia de aprendizagem, mas não a verdadeira finalidade. Esta se faz pela
27 Na edição brasileira, apesar da ressalva no pé de página, esta expressão é traduzida, ao meu ver,
erroneamente, como “modelo da ocupação”. Preferiu-se usar a expressão modelo do “métier.”
46
particularização do processo e do produto, o que implica uma criatividade do autor.
No caso dos garimpos de ouro, abrindo um parêntese nesta discussão, o que se nota
é uma particularização do processo de trabalho, mas não do produto, uma vez que
este é tipicamente divisível e homogêneo, o que, como se verá , não descaracteriza o
garimpo enquanto métier.
A repetição das atividades de trabalho é algo secundário no métier, que
requer, ao contrário, uma compreensão das razões dessas regras, ou seja, um
trabalhador de métier sabe o por quê proceder desta maneira e não de outra para
alcançar um resultado. Neste sentido, a relação entre mestre e aprendiz é diferente
daquela que impõe o instrutor taylorista. O mestre é rigoroso no resultado, pois este
depende do entendimento prático do indivíduo no que concerne ao código de
referência do trabalho:
“A aprendizagem do métier é a aprendizagem da diferenciação: alguém
domina inteiramente seu „métier‟ quando reconhece sua maneira particular de trabalhar, quando se pode descobrir nela uma contribuição original. (...)
Se a aprendizagem é, em geral longa, é porque é preciso, ao mesmo tempo
ter tomado conhecimento das“boas”regras existentes, é preciso tê-las
assimilado totalmente, ter dominado a “habilidade específica” necessária (e certo “modo de pensar”) que não é objetivada, mas a qual é preciso ter
conseguido agregar originalidade.” ZARIFIAN (2001: 158)
O modelo do métier é, por ele, associado de maneira decisiva ao meio social
da comunidade profissional, que é onde se estrutura e valida a aquisição do saber-
fazer. Assim, o métier:
“Tem igualmente por objeto regras de comportamento, que se referem, em
especial, ao respeito aos antigos, a valores éticos explícitos (de honestidade,
de lealdade, por exemplo), à demonstração de uma disposição para vencer as diversas provas a que a progressão do métier implica.” ZARIFIAN
(2001:158)
Segundo Zarifian, o métier está aberto à inovação, mas resiste às rupturas que
questionam o prestígio das regras estabelecidas. O métier sempre recorre à tradição,
inserindo, na sua estrutura, o significado do tempo histórico. Mas, no entanto, resiste
à abertura dessa tradição a fatores estranhos, que poderiam desestabilizá-lo.
47
Em seu livro Information and Organizations (1990), Arthur Stinchcombe
oferece uma análise particularmente arguta das relações entre rotina e discrição nos
processos de trabalho e ajuda a marcar a especificidade do métier. Stinchcombe
entende o trabalhador como um processador de informações dentro de seu ambiente
de trabalho, combinando decisões e tarefas. Desta forma, ele analisa os processos de
trabalho a partir da analogia com a programação de computadores, que define dois
sistemas possíveis de rotinas, chamados por ele de batch computer routines e
interative computer routines.
No primeiro tipo, batch computer routines, todas as contingências possíveis
foram pré-arranjadas em uma só formada pelo programador, e tudo o que o
trabalhador faz é seguir um conjunto de instruções claras e precisas que conduzem a
um resultado final pré-determinado. Ação e decisão humanas, por conseqüência, são
uma simples atualização da programação corporificada na máquina, e todo desvio
conduz à pane.
Já no segundo tipo, interative computer routines, as rotinas possíveis são
arranjadas na forma de um diagrama-árvore: cada passo e cada decisão tomada pelo
usuário abrem um conjunto de possibilidades que é path dependent, mas que
pressupõe sempre novas decisões passo a passo. Para Stinchcombe, as rotinas de
trabalho podem ser pensadas a partir de uma distinção semelhante. Como nas
“rotinas de fornada”, os processos de trabalho podem ser especificados a priori. O
exemplo clássico seria a linha de montagem fordista, na qual as descrições e a
divisão do trabalho são desenhadas pela gerência, sem interatividade entre o
trabalhador e o seu trabalho.
O processo produtivo se realiza em um ambiente artificial e fechado, e todo
seu desenvolvimento é moldado através de uma estrutura burocrática verticalizada.
Esta dinâmica é direcionada a agilizar o processo de trabalho, tendo como referência
fundamental a maximização dos lucros. Neste sentido, tem-se uma radical separação
entre o trabalho, ou seja, uma lista de operações que devem ser executadas no posto
48
de trabalho, e o trabalhador, com um conjunto de capacidades que o tornam apto a
ocupar este posto.
De outro lado, rotinas interativas caracterizam processos e ambientes de
trabalho não rotinizados ou rotinizáveis, em que ambientes mutáveis, contingências
derivadas de fontes múltiplas e objetivos complexos impõem novas decisões passo a
passo. Nesse sentido, embora o processo de trabalho continue sendo composto de
uma série de rotinas aplicáveis, é sempre necessário decidir qual rotina aplicar às
circunstâncias em questão. O julgamento prudencial alimentado pela experiência
torna-se decisivo. Uma interação entre conhecimento e trabalho dessa natureza tende
a emergir precisamente nas atividades em que o métier é o estruturador das relações
de trabalho, sendo também envolvido pela noção de “événement”28
, ou seja, pelo
incidente, pelo imprevisto, pelo não programado. A flexibilidade da divisão do
trabalho e uma distribuição social do conhecimento diverso são decorrências diretas
de tais condições.
A aprendizagem de uma atividade estruturada em torno do métier é
constituída dentro do ambiente de trabalho em anos de atividade, e se caracteriza
pela experiência na resolução de imprevistos da atividade. Quase sempre, o saber
exigido está ligado a um conhecimento tácito e a saberes empíricos, como ressaltou
Zarifian, e é reconhecido dentro do grupo como um valor e um orgulho para quem
os detém. São esses saberes práticos, ligados às “manhas do ofício” e irreprodutíveis
pela educação formal, transmitidos pelos mais experientes e consolidados pela
experiência, que constituem a base do métier. Saberes esses que também
proporcionam poder para quem os detém, e são de fundamental importância na
compreensão da dinâmica de uma atividade e das classificações hierárquicas dentro
e fora do ambiente de trabalho.
49
2. Trabalho, Conhecimento e a Noção de Competência.
A um métier determinado está associado um certo conjunto de competências
específicas. Acredita-se que o conceito de competência pode servir como uma
ferramenta analítica importante na compreensão dos processos de trabalho
estruturados pelo métier. O conceito de competência, assim como o de qualificação,
foi gestado no contexto de intensos debates que pretendiam lançar luz sobre a forma
e o conteúdo do trabalho do mundo fabril do capitalismo avançado. Paradoxalmente,
no entanto, o uso do conceito de competência parece mais rentável analiticamente,
precisamente onde ele tem sido menos lembrado: nos contextos em que o processo
de trabalho é organizado sob a forma de métier.
Todavia, não há como discutir o conceito sociológico de competência sem
traçar sua linhagem, diferenças e relações com o conceito de qualificação.
O conceito de qualificação sempre mereceu uma posição de destaque dentro
dos estudos de sociologia do trabalho. No entanto, sua definição é controversa,
sendo dessa forma, um conceito em aberto e em evolução permanente, porque tem
na noção de trabalho, esta também em aberto, uma referência fundamental. Vale
lembrar que esse conceito, como tantos outros na sociologia do trabalho, foi
construído tendo como referência central o trabalho industrial moderno, no qual os
processos de qualificação profissional são bem definidos.
A noção de qualificação tem sido tematizada a partir de duas clássicas
perspectivas divergentes: a primeira delas, de viés substantivista, foi desenvolvida
por Georges Friedmann, um dos pioneiros da sociologia do trabalho. Friedmann via,
dentro do trabalho artesanal, a forma perfeita do trabalho qualificado. Assim, a
28 ZARIFIAN, Philippe. Objetivo Competência: Por Uma Nova Lógica. São Paulo, Editora Atlas, 2001.
50
divisão do trabalho constituía a degradação de uma unidade anterior, a do artesanato.
Esta degradação, na sua perspectiva, referia-se às contradições fundamentais da
sociedade e da organização industrial. Friedmann definia a qualificação pelo saber e
pelo saber-fazer adquiridos no trabalho e na sua aprendizagem sistemática. Essa
qualificação seria construída a partir do posto de trabalho, mas se encontrava no
trabalhador. Assim, a intervenção no posto de trabalho definirá a qualificação.
A segunda perspectiva foi desenvolvida por Pierre Naville, outro pioneiro da
sociologia do trabalho. Em sua perspectiva relativista, a qualificação é o resultado de
um processo de formação autônomo, ou seja, independente da formação espontânea
no trabalho. Em seu livro pioneiro sobre o assunto, Essai sur la qualification du
travail (1956)29
o autor se recusa a reduzir a qualificação às virtudes intrínsecas do
indivíduo, às suas habilidades e ao seu “savoir-faire”. Dentro de suas análises, a
qualificação iria além muros, dependeria de elementos presentes no ambiente social
do trabalhador e seria relativa. Suas formas dependeriam também do estado de
forças produtivas e das estruturas sócio-econômicas nas quais os trabalhadores
estivessem inseridos, tais como o tempo de escolarização, o salário, as operações de
classificação e a hierarquia do trabalho.
Mais recentemente, Pierre Rolle, Pierre Tripier e Mateo Alaluf prolongaram e
reafirmaram os argumentos de Naville. O mesmo conceito, entretanto, continua não
mensurável, podendo ser relacionado a vários fatores, tais como a escolarização, a
complexidade das tarefas, a formação, o salário, a classificação, as atividades
intelectuais e manuais, a divisão do trabalho, o comportamento, o posto de trabalho
etc. Dentro dessa perspectiva, a qualificação não é determinada pela tecnologia, mas
construída socialmente, e só será compreendida a partir dela mesma, ou seja, não é
automaticamente determinada pelo conteúdo do trabalho. Assim, é importante
avaliar as atividades fora do trabalho para definí-la.
A noção de competência é relativamente recente dentro dos estudos
sociológicos sobre o trabalho, mas a sua difusão tem uma clara relação com as
51
recentes transformações do trabalho fabril, principalmente no que diz respeito à
gestão da mão-de-obra. Esta noção tem ocupado espaço significativo dentro dos
estudos da sociologia do trabalho, especialmente na escola francesa. A noção de
competência chega aos meios acadêmicos através de empresários e industriais, ou
seja, empregadores preocupados com as transformações no mundo do trabalho. Que
transformações estariam ocorrendo que exigiriam uma nova noção? A emergência da
noção de competência assinala o fim da noção de qualificação?
Para ISAMBER-JAMATI (1994), o termo competência tem origem nos
meios jurídicos, onde ficou inicialmente restrito. Mais tarde, foi incorporado por
outras profissões, mas seu uso ficou limitado a uma elite intelectual, visto que uma
certa competência é exigida para julgar a competência de alguém. Ainda segundo
essa autora, o mesmo termo aparece nas literaturas sociológica e educacional de
forma polissêmica nos anos 70, e na década de 80, adquire o seu sentido atual.
Assim, segundo ISAMBER-JAMATI:
“Aquele que é (que é reconhecido como...) competente, em relação ao que
não o é, ou que o é menos, é aquele que domina suficientemente a área na qual intervém para identificar todos os aspectos de uma situação nessa
área e para revelar eventualmente as disfunções dessa situação. Mas,
para ser “competente”, deve também, munido desse conhecimento, poder decidir a maneira de intervir a fim de obter tal resultado com eficácia e
economia de meios.” ISAMBER-JAMATI (1994: 104)
A competência não pode ser encontrada em todos os indivíduos, pois não é
uma característica do indivíduo. Ela também não se confunde com o talento dos
artistas, precisamente porque o homem competente utiliza técnicas pré-existentes, e
a competência diz respeito ao uso de técnicas que, embora não sejam criadas por ele,
podem ser adaptadas às novas situações. A competência aparece, assim, inseparável
da ação e só pode ser apreciada ou medida numa situação dada:
“As competências dizem respeito ao uso de técnicas definidas que, embora
não tenham sido criadas pelo indivíduo, são por ele usadas e podem ser
29 NAVILLE, Pierre. Essai sur la qualification du travail. Paris, Librairie Riviere et cia, 1956.
52
adaptadas às novas situações. A noção de competência está associada à
execução de tarefas complexas, organizadas e que exigem uma atividade
intelectual importante. Tarefas são realizadas por especialistas. O
incompetente não possui o saber e o saber-fazer, ou possui incompletamente” (TOMASI. 2000)
Tanto na construção da noção de qualificação como na de competência, o
saber se mostra como um dos elementos fundamentais para a construção destas
noções. Mas como definir saber?
Para Marcelle STROOBANTS (1994), a cognição é um elemento
fundamental para se entender a noção de competência, no sentido de melhor definir
as questões ligadas aos saberes das atividades profissionais, que podem ser
encontradas fora da sociologia do trabalho, como por exemplo, nos aspectos
cognitivos da tarefa. Nessa perspectiva, a competência seria gerada pela capacidade
cognitiva do indivíduo de mobilizar conhecimentos, visando fazer face a um dado
problema, ou seja, a competência é definida como conhecimento e qualidades
contextualizadas. Dando ênfase aos aspectos cognitivos do trabalho, e tentando
ampliar a discussão para fora da sociologia do trabalho, STROOBANTS inicia seu
artigo sobre competência com a seguinte explicação:
“Os aspectos cognitivos do trabalho não constituem tradicionalmente objetos de estudo específico em sociologia do trabalho. É indiretamente que
a capacidade dos trabalhadores intervém na análise, por meio de seu
reconhecimento no mercado de trabalho. Da mesma maneira, os saberes associados às atividades profissionais foram geralmente abordados a partir
de sua valorização. A organização do trabalho pôde, dessa forma, ser
encarada como uma maneira de codificar os conhecimentos, separando o
saber - a concepção dos métodos – e o fazer – a execução das instruções”. STROOBANTS (1994: 135)
Viviane Isanbert-Jamati também reconhece a existência de elementos na
fronteira da sociologia, mas não dá garantias de que eles possam esclarecer as
definições de competência.
STROOBANTS (1994) afirma que as competências são relativas, porque
dependem da maneira como são vistas e reconhecidas socialmente, mas também são
53
reais, podendo ser caracterizadas por um tipo de saber (o saber-fazer e seus recortes
específicos, ou seja: saber + um verbo que denote ação). Estes saberes se definem
em oposição aos saberes aprendidos na escola; são adquiridos diretamente no
trabalho. Assim, é na dimensão individual do ato humano, na execução das tarefas,
ou seja, é no indivíduo e não no posto de trabalho, que se podem encontrar as noções
de competência. “A questão parece ser não do conteúdo das competências, mas da
mobilização dessas, que seria feita através dos saberes, saber-fazer e saber-ser”
TOMASI (2000).
Uma outra perspectiva é apresentada por ZARIFIAN (2001), que associa o
conceito de competência às recentes mudanças ocorridas no processo de produção
com o fim do fordismo-taylorismo. Este fato teria levado a um grande número de
disfunções e imprevistos, acarretando grandes mutações do trabalho. Estas
mudanças são interpretadas, por ele, através dos conceitos de événement.30
Événement é definido como o que ocorre de maneira parcialmente imprevista
e inesperada, como por exemplo, a pane, que desestrutura o desenrolar normal do
sistema de produção e supera a capacidade da máquina de assegurar a sua auto-
regulagem. Desta forma, o conceito de événement tem profundo impacto na
definição do conceito de competência:
“O événement significa que a competência profissional não pode mais ser
enclausurada em definições prévias de tarefas a executar em um posto de trabalho. Sobretudo ela não pode ser mais incluída no trabalho prescrito. A
competência profissional consiste em fazer frente ao événement de maneira
pertinente e com conhecimento de causa. E essa competência é propriedade
particular do indivíduo, e não do posto de trabalho. Seria, aliás, absurdo
falar de um posto de trabalho competente” ZARIFIAN 2001: 41)
Segundo este autor, com o esgotamento do modelo taylorista tem-se uma
mudança no paradigma da produção, passando-se desta para o “événement”. Com
isso, para Zarifian, o conceito de trabalho retorna ao trabalhador, ou seja, trabalho
30 Na edição brasileira, esta expressão é traduzida como “eventos”. Preferiu-se manter este conceito no
original sem tradução.
54
seria a ação competente do indivíduo diante de uma situação de événement. Assim,
por outra via, retornaríamos a situações próximas da atividade camponesa
tradicional, sempre sensível aos acasos do clima, ao comportamento das plantas e
dos animais, e sempre guiada pelo saber tácito do trabalhador.
M. DADOY (1989) também partilha da opinião de que a noção de
competência, tanto quanto a de qualificação, emerge em momentos de profundas
transformações no aparelho de produção e nas políticas de mão-de-obra.
TOMASI (2000) nota que a construção do conceito de competência,
elaborado tanto por DADOY como por ZARIFIAN, está imbuído de um outro tipo
de determinismo: o do posto de trabalho; ou seja, essa construção está baseada nos
processos de desestabilização do sistema de produção procedentes do grande
número de disfunções e imprevistos, decorrentes do fim do taylorismo-fordismo.
No entanto, entende-se que o posto de trabalho e todos os imprevistos que
nele possam ocorrer não determinam a competência; são somente referenciais nos
quais ela se revela.
“Ora, é preciso que uma referência seja construída na relação do trabalhador no trabalho. Nunca se é competente no abstrato. Sempre se é
competente em „relação a .“ ZARIFIAN (2001: 28)
Segundo ZARIFIAN (2001), na tentativa de elaboração desse conceito:
“Não há exercício da competência sem um lastro de conhecimentos que
poderá ser mobilizado em situação de trabalho. A analogia entre esses conhecimentos e a situação de trabalho dependem do grau das situações de
“événement” e da singularidade da situação que a pessoa tem que enfrentar.
Quanto maiores as dimensões de “événement” e a singularidade da situação,
mais os esquemas de conhecimento e de ação que o indivíduo já tiver
incorporado deverão ser mobilizados de maneira reflexiva, ou seja,
questionando-se sua validade e o fato de serem insuficientes diante da situação” ZARIFIAN (2001: 73)
A competência é, sem sombra de dúvida, do trabalhador. Na verdade, ela é
construída socialmente em vários âmbitos da vida cotidiana, não sendo somente uma
competência técnica do posto de trabalho, mas nele revelada, ou seja, o trabalhador é
55
competente em relação ao seu posto de trabalho, mas não é somente nele que a
competência é constituída. Assim, pode-se entender a competência como uma
excelência na navegação em meio às contingências que apresenta atualmente o
mundo fabril, e que também – e aí reside nosso interesse – é uma característica dos
contextos de trabalho em que o métier é o estruturador das relações de trabalho.
O conceito de competência foi gestado na sociologia do trabalho tendo como
referência a imagética do trabalho industrial contemporâneo, suas mutações e
problemas. No entanto, procura-se demonstrar que as tentativas de construção desse
conceito apontam muito mais para a imagem do artesão e para os profissionais de
métier que para o assalariado de chão de fábrica como referência de trabalhador. Se
o conjunto de conhecimentos tácitos adquiridos experiencialmente e a excelência na
solução do imprevisto distinguem o conceito de competência, esta pode estar
presente nos mais diversos ambientes de trabalho, dentro e fora do mundo fabril.
Assim o conceito de competência remete a questões sociológicas e filosóficas mais
universais, e aos problemas do conhecimento e da razão prática.
Voltando à pergunta anterior: o que é o saber? Como se constitui e se
transmite o conhecimento? Dentro dessa perspectiva pode-se indagar: como
entender a construção deste saber no mundo da vida cotidiana?
A sociologia fenomenológica de Alfred Schutz apresenta uma das
formulações mais originais e instigantes da teoria social moderna das relações entre
as configurações dos diversos “mundos da vida” possíveis e o problema do
conhecimento.
O método fenomenológico de Schutz põe “entre parênteses” os pressupostos
tácitos e não notados da atitude natural ,que constituem as regras vistas, mas não
notadas, de toda interação social ,e os examina em profundidade. Para SCHUTZ
(1971), a atribuição de significado e a interpretação do sentido de nossas ações e de
outros, estão presentes nas atividades mais corriqueiras da vida ordinária. O “mundo
da vida cotidiana” é o mundo intersubjetivo vivenciado pelos indivíduos na atitude
natural. Assim, as experiências subjetivas, socialmente constituídas, são a base de
56
toda sociologia fenomenológica, sendo identificadas com o processo de
externalização e objetivação dos indivíduos, através do qual o mundo social é
produzido na forma de sociedade, comunidade ou organização. Neste sentido, o foco
de investigação recai sobre o que é mundano, corriqueiro e aceito sem exame, em
oposição ao que é raro, irregular, controverso e intrigante.
O mundo da vida cotidiana é definido por SCHUTZ (1979) como “o mundo
intersubjetivo que já existia muito antes do nosso nascimento vivenciado e
interpretado pelos nossos predecessores, e que agora se dá a nossa interpretação” 31
.
Somente uma parte muito pequena do nosso conhecimento do mundo tem origem na
nossa própria experiência; em sua maior parte é de origem social e nos é transmitido
pelos nossos pais, amigos, mestres, etc. Todo conhecimento se produz em
circunstâncias particulares, um “aqui”, uma situação biográfica específica que
representa o nosso horizonte de familiaridade. Nossa interpretação do mundo da
vida cotidiana baseia-se em um estoque de experiências anteriores a nós, das nossas
próprias experiências e das que nos são transmitidas. Esse conjunto de experiências
constitui o estoque de “conhecimento à mão” que funciona como nossos códigos de
referência. Os “conhecimentos à mão” representam uma série de tipificações que
nos orientam e pelos quais podemos agir.
Schutz focalizou este mundo da vida de várias formas: a primeira é a “atitude
natural”, essencialmente pragmática, que permite ao sujeito operar no mundo ao
imunizá-lo contra a dúvida cética. O mundo intersubjetivo da atitude natural é
aquele em que nossas estruturas de relevância são moldadas por interesses
eminentemente práticos, sem colocar em questão as bases de nosso conhecimento do
mundo.
Mundos da vida intersubjetivos particulares constituem sistemas de
coordenadas. Todo momento da vida de um homem é uma situação biográfica
determinada, ou seja, seu ambiente físico e sócio-cultural, dentro do qual ele tem a
31 SCHUTZ. Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Textos escolhidos. Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1977.
57
sua posição, não só física, como também moral e ideológica. A situação biográfica é
a sedimentação de todas as experiências anteriores de um sujeito, dispostas a partir
de tipificações e esquematas que organizam e dão sentido a estas experiências.
O mundo social é, pois, interpretado através da experiência de seus membros
como tendo significado e sendo inteligível em termos de categorias sociais e
construções teóricas. Assim, todo homem na vida diária, tem a qualquer momento,
um estoque de “conhecimento à mão” que serve como um código de interpretações
de suas experiências passadas, presentes e futuras. Este estoque de conhecimento foi
constituído por atividades anteriores a experiências de nossa consciência. A partir
deste estoque de conhecimento acumulado em sua existência, os indivíduos
conseguem antecipar acontecimentos futuros. Estas antecipações são determinantes
para seus planos, projetos e motivos de ação. É por isso que o homem na vida
cotidiana se interessa pelo que prevê, pois são estas previsões que o orientarão, com
um certo pragmatismo, em sua vida cotidiana.
Todavia, esse estoque de “conhecimento à mão” não é homogêneo. Há
somente um núcleo do conhecimento que é claro, distinto e consistente e que é
cercado por zonas de vagueza, obscuridade e ambigüidade. Para Schutz, é um
problema em particular, com o qual nos ocupamos, que vai subdividir o nosso
estoque de “conhecimento à mão” em diferentes zonas de relevância para a sua
solução, estabelecendo os limites das várias zonas do nosso conhecimento, ou seja,
zonas de nitidez e de vagueza, de clareza e de obscuridade, de precisão e de
ambigüidade. Na verdade, o conhecimento do homem que age dentro do mundo
cotidiano é incoerente, apenas parcialmente claro, não estando livre de contradições.
Assim, deve-se salientar que o estoque de conhecimento existe em um fluxo
contínuo:
58
“Está claro que qualquer experiência posterior o enriquece e o alarga.
Através da referência ao estoque de conhecimento à mão, num determinado
Agora, a experiência atual em curso aparece como “familiar”, se está
relacionada por meio de uma “síntese de reconhecimento” a alguma experiência anterior, nos modos de “igualdade”, “semelhança”,
“similaridade”, “analogia”, etc. A experiência em curso pode, por exemplo,
ser identificada com uma experiência anterior “igual mais modificada”, ou ainda, como uma experiência de um tipo semelhante ao de alguma já
vivenciada, e assim por diante.” SCHUTZ (1979 : 75)
Este acervo de “conhecimento à mão” não consiste exclusivamente nas
experiências vividas diretamente pelo indivíduo. Ele tem origem social, ou seja,
consiste também nas experiências vividas diretamente pelos membros do grupo a
que este indivíduo pertence. Neste sentido, o “conhecimento à mão” dos integrantes
de um determinado grupo é congruente, o que é válido não somente em relação ao
mundo natural, mas também aos conhecimentos do mundo social e cultural deste
grupo. Esta interpretação baseia-se no pressuposto de que os membros de um
determinado grupo encontram, em seu acervo de “conhecimento à mão”, elementos
tipicamente similares, e estes determinam os motivos de sua ação.
Para Schutz, é esta congruência e similaridade que nos permite, sobretudo no
que concerne ao mundo social, antecipar fatos com uma certa seguridade, o que
orienta a forma pela qual devemos agir. A experiência nova que o indivíduo
encontra em sua vida cotidiana pode ser concebida como algo igual ao já
experimentado, não só por ele, mas pelo grupo ao qual pertence. Neste sentido, o
acervo de “conhecimento à mão” serve como esquema para interpretar a experiência
emergente orientando a sua ação. Percebe-se que Schutz parte do pressuposto de que
o conhecimento da realidade até então adequado na orientação de uma determinada
ação será confirmado no futuro. Desta forma, determinada ação pode provocar
situações e resultados semelhantes aos obtidos por uma ação similar anterior.
59
Segundo Schutz, cada experiência é única, e nem mesmo a que se repete é a
mesma, pois é vivenciada como tal em contextos e circunstâncias diferentes.
“Experimentamos o mundo, desde o começo, não como uma intrincada e ruidosa confusão de dados sensoriais, nem como um conjunto de objetos
particulares isolados, sem relação entre si, nem como fatos isolados que se
podem separar de seu contexto, mas em sua estruturação segundo tipos e relações típicas entre tipos” SCHUTZ (1974 p.262)
As nossas experiências presentes não se referem, por meio de retenção e
lembranças, somente às anteriores. Toda experiência se refere também ao futuro, ou
seja, a forma como se antecipa também está relacionada com as nossas experiências
presentes. Assim, no pensar de sentido comum, essas antecipações e expectativas
seguem basicamente as estruturas típicas que até então, sendo válidas para nossas
experiências anteriores, vão sendo incorporadas em nosso acervo de “conhecimento
à mão”.
Para Schutz, não só o alcance, mas também a estruturação desse
“conhecimento à mão” está em mudança constante. Por exemplo, quando ocorre
uma nova experiência, e freqüentemente isso acontece, há uma mudança em nosso
sistema de relevância, o qual determina a estruturação do acervo do “conhecimento
à mão” e o divide em zonas de diferentes graus de claridade e nitidez. Segundo
Schutz: “O sistema de relevância determina, ademais o sistema de tipos no qual se
organiza nosso acervo de “conhecimento à mão”32
, ou ainda:
“Empregando os termos em seu significado mais estrito, podemos dizer de uma forma paradoxal que o pensar de senso comum da vida cotidiana no
que acontece não pode ter sido previsto exatamente como acontece, e o que
se prevê que aconteça nunca acontecerá como previsto. Isto não contradiz o fato de que a vida diária para muitos fins úteis, podemos antecipar e, com
efeito, antecipamos corretamente o que está por vir. Uma análise mais
minuciosa nos mostra que, em tais casos, nos interessa somente a tipicidade
dos fatos futuros. Pode-se dizer que um fato era previsto se o que realmente sucede corresponde, em sua tipicidade ao conhecimento à mão em nosso
acervo de conhecimento no momento em que antecipamos o fato.” SCHUTZ
(1974 p..263)
32 SCHUTZ, Alfred. Tirésias, o nuestro conocimento de sucesos futuros. In: Estúdios Sobre Teoria Social. Buenos Aires, Amorrortu, 1974.
60
Ainda segundo SCHUTZ (1971), todo o conhecimento do mundo, seja na
vida ordinária, seja na ciência, supõe constructos: generalizações, formalizações,
idealizações. Desta forma, as modalidades de conhecimento dependeriam de
tipificações que são produzidas a partir da combinação específica do conhecimento e
da ignorância sempre presentes nas interações sociais da vida mundana 33
.
A perspectiva fenomenológica de Schutz permite entender a excelência de
alguns indivíduos na navegação em ambientes circunstanciais. Seja nas fábricas
modernas, nas atividades de métier ou em qualquer outra atividade em que as
relações de trabalho se dão em ambientes de elevada contingência, a competência
profissional pode ser revelada. O conceito de competência ganha maior
inteligibilidade, se vinculado à perspectiva fenomenológica, ou seja, a partir da
construção social do conhecimento.
O mundo do garimpo estrutura formas muito particulares de produção,
distribuição e transmissão do conhecimento, que são partilhados tacitamente
(embora assimetricamente) no contexto de um certo horizonte de familiaridade. Os
garimpeiros partilham certas experiências comuns que aproximam suas situações
biográficas específicas, e que representam um “conhecimento à mão” disponível em
grau variável. Este cabedal de conhecimento diferenciado cristaliza-se num conjunto
de tipificações e esquematas, um modo particular de ver, sentir e interpretar a vida,
que dá sentido a suas experiências concretas, inclusive suas atividades de trabalho. É
neste sentido que se pode entender as categorias associadas ao garimpo, que muitas
vezes são fortalecidas pelos próprios garimpeiros, tal como o caráter totalmente
aleatório da descoberta, ou seja, a sorte e trabalhar no escuro como elementos
preponderantes para o sucesso extrativo. No entanto, esta aparente aleatoriedade está
associada a um certo “conhecimento à mão” não disponível igualmente entre os
33 SIMMEL, Georg. Knowledge, Truth and Falsity in Human Relations. In: Wolff, Kurt. (ed.). The Sociology
of Georg Simmel. New York, Free Press, 1950.
61
participantes do processo extrativo; ou seja, a sorte, em certa medida, depende de
conhecimentos acumulados pela experiência.
“O estoque social do conhecimento fornece os esquemas tipificadores
exigidos para as principais rotinas da vida cotidiana, e de todas as espécies de acontecimentos e experiências tanto sociais quanto naturais. (...) O
conhecimento na vida cotidiana está socialmente distribuído, isto é, possuído
diferentemente por diversos indivíduos e tipos de indivíduos. Não partilho meu conhecimento igualmente com todos os meus semelhantes e pode haver
algum conhecimento que não compartilho com ninguém.” BERGER &
LUCKMANN (1966 : 64, 67)
A sociologia fenomenológica sugere que o pesquisador, em sua postura
teórica, ponha “entre parênteses” os pressupostos, entendimentos tácitos e
suposições implícitas que constituem a “atitude natural” do mundo da vida
cotidiana, para que se possa examinar detalhadamente as condições em que se
desenrola a ação. Assim, deve tornar explícita a consciência daquilo que está latente
na vida cotidiana:
“O que se procura, então, é o reconhecimento franco de uma infra-estrutura formada de suposições de senso comum, no trabalho do sociólogo, e que não
diferem das formuladas pelos membros da sociedade, no mundo cotidiano, e
que deve ser levantada e estudada” SMART (1976: 105)
Portanto, do ponto de vista fenomenológico, a base de qualquer pesquisa é na
verdade uma interpretação da vida cotidiana, na qual está a fonte de significados
sociais; sendo essa interpretação também central e implícita à pesquisa. Assim, para
Schutz, o pesquisador deve deslocar a pesquisa até o nível das atividades do
indivíduo, ou seja, deve fazer uma tentativa de fundamentar suas interpretações nos
atos subjetivos dos indivíduos que constróem a situação.
62
3. O Métier de Garimpeiro
Como argumentamos na primeira parte deste capítulo, o métier é entendido
como uma forma específica de organização e divisão do trabalho. Nele está contido
um conjunto de conhecimentos e de savoir-faire inerentes às atividades do trabalho,
conhecimentos tácitos e saberes empíricos ligados essencialmente às “manhas do
ofício”. Estes conhecimentos, constituídos não só na educação formal, são
responsáveis pela formação da identidade do trabalhador, evoluindo ou se
modificando através do tempo.
A atividade garimpeira é desenvolvida em um ambiente natural aberto e
mutável no tempo e no espaço. Cada cava, cada barranco, cada curva do rio
apresenta situações distintas e em permanente transformação; tais circunstâncias
ecológicas particulares impõem contínua adaptação, ajustamento e improvisação dos
procedimentos rotineiros e das técnicas de extração. Toda decisão no processo de
trabalho depende de uma cuidadosa avaliação das circunstâncias em questão.
Ademais, os resultados da atividade são marcados por uma imprevisibilidade
irredutível, apenas imperfeitamente contornada por uma razão prática que interpreta
pistas proporcionadas por um ambiente complexo. A atividade faz-se acompanhar,
pois, de uma série de conhecimentos tácitos, saberes empíricos incorporados à
experiência e associados às circunstâncias típicas deste ambiente, que são
corporificadas e representadas na sorte.
Neste contexto, revela-se a forte dimensão subjetiva presente na constituição
desse métier, tanto pelo caráter eminentemente oculto do ouro como pelas incertezas
do sucesso extrativo. O caráter probabilístico e a elevada conseqüencialidade do
empreendimento aproximam-no, em certa medida, do estado de espírito e da postura
63
típica do jogador. 34
A atividade garimpeira, envolvida pelo incidente, pelo
imprevisto, pelo não programado, resulta em rotinas interativas, que, aliás, não estão
presentes somente nela própria, mas também nos ambientes de trabalho em que o
métier é o estruturador das relações sociais. É neste ambiente que a pane se torna
muito mais freqüente. A noção de événement, que nos remete aos imprevistos
ocasionais do mundo fabril, é muito freqüente no garimpo e nos revela, com maior
clareza, a competência de trabalhadores.
À contingência do ambiente natural em que se desenrola o garimpo, soma-se
um contexto institucional de incertezas, de legislação confusa e de imprevisibilidade
da fiscalização, que favorecem a constituição de um ambiente extremamente
conflituoso. Como pôde ser percebido no primeiro capítulo, o garimpo foi, desde o
seu surgimento, ora extremamente perseguido, ora incentivado como uma
importante forma de geração de recursos, cristalizando este ambiente de incertezas
que caracterizam a atividade.
Tudo isso faz com que a atividade garimpeira seja organizada
provisoriamente, sem grandes investimentos em capital fixo, assemelhando-se por
exemplo, à pesca artesanal, à coleta vegetal, ou mesmo a atividades camponesas,
que são sempre sensíveis às incertezas do ambiente de trabalho. Neste sentido, opõe-
se radicalmente ao ambiente fechado e artificial de uma fábrica, onde todas as
tarefas devem ser gerenciadas visando a uma racionalização maior das atividades do
trabalhador e à maximização dos lucros.
É possível que tudo isso tenha favorecido o surgimento de um esprit de corps,
perceptível nos atos de lealdade e de solidariedade dentro do grupo. No entanto, é a
confiança interpessoal o elemento de maior importância na estruturação das relações
sociais de trabalho. Esta importância crucial deriva-se fundamentalmente das
incertezas criadas pela condição de clandestinidade do garimpo, considerado uma
atividade ilegal, carente das garantias da regulamentação estatal e cujo produto é
34 GOFFMAN, E. Interaction Ritual: Essays in Face-to-Face Behavior. In: Interaction Ritual:Essay on face-
to-face Chicago, Aldine, 1967.
64
extremamente valioso. A confiança interpessoal baseada em laços prévios é a base
do processo de seleção de trabalhadores e estrutura também a própria formação dos
grupos, muitas vezes formados por familiares na tentativa de diminuir as
contingências e conseqüentemente as possibilidades de conflitos neste ambiente de
elevado risco. O fato de ser o garimpo uma atividade ilegal produz um forte
sentimento de insegurança decorrente da repressão, e elimina a possibilidade de uma
organização rígida, um dos fatores determinantes para uma divisão flexível do
trabalho. Este fato requer das pessoas envolvidas uma organização do trabalho muito
peculiar, inclusive uma cumplicidade com a comunidade na qual estão inseridos.
Os envolvidos sentem-se participantes da mesma aposta num ambiente
marcado por expectativas e incertezas. Este sentimento compartilhado ameniza as
relações hierárquicas entre os trabalhadores, revelando relações de parcerias, de
solidariedade nos trabalhos e de amizade fraternal dentro do grupo. Isso dá ao
garimpeiro a agradável sensação de que é um trabalhador autônomo e lhe propicia
um certo orgulho por não estar sob o jugo de um patrão. Todo esse conjunto de
normas pactuadas nas relações de hierarquia é chamado por alguns autores, como
CLEARY (1990), de lei do garimpo, considerada a responsável pelas estruturações
das relações sociais neste ambiente instável.
O conhecimento e os saberes presentes na atividade estão fortemente ligados
à sua tradição; são aprendidos em anos de atividade e num ambiente de trabalho
extremamente mutável, exigindo do trabalhador discrição e discernimento. A
criatividade é, sem dúvida, fator preponderante e de suma importância, devido às
várias e inesperadas situações que, freqüentemente, surgem no dia-a-dia do seu
trabalho. As rotinas repetitivas do trabalho são algo secundário, e o que realmente
sobressai é a verdadeira compreensão de suas ações em função do objetivo: a
descoberta do ouro. Todo o cabedal de conhecimentos do garimpeiro passa também
pelo domínio de histórias antigas do garimpo sobre as imperícias e o sucesso de
outros garimpeiros, e a posse das áreas que as frentes de extração do passado
ignoraram. Estes saberes, passados de pai para filho e aprendidos no cotidiano do
65
trabalho, são chamados jogo do rio, e é através de seu domínio que os garimpeiros
têm suporte para lançamento de seus palpites e escolha do local onde se deve abrir
uma cava.
Dentro do ambiente de contingências que caracterizam o garimpo, existem os
trabalhadores reconhecidos como virtuosi. Na região de Diamantina, este
trabalhador é conhecido como o garimpeiro sabido 35
, isto é, aquele que parece ser
“iluminado” para o garimpo. Este fato, muitas vezes, constitui razão de autoridade e
posição de ascendência sobre os demais membros do grupo. Esta dimensão subjetiva
também está presente na expectativa da descoberta, fortalecendo o imaginário do
garimpeiro e de quem pretende sê-lo. Nele, constituindo os elementos norteadores,
estão presentes o sonho de enriquecer abruptamente, o descrédito nos mecanismos
de sondagem do terreno e a crença na intuição, nas lendas e mitos.
O rico histórico da atividade garimpeira é um elemento de extremo orgulho
para os trabalhadores que o defendem de qualquer influência externa. O garimpeiro
é extremamente avesso a rupturas nesta estrutura solidificada pela tradição. Sua
aversão é expressa na resistência a elementos estranhos ao seu ambiente de trabalho,
como por exemplo, os órgãos públicos. A presença destes órgãos ou mesmo a de
ambientalistas que podem denunciá-los é vista com desconfiança e está associada ao
poder coercitivo da Polícia Florestal. Por conseguinte, tentam continuamente
escapar do raio de ação da esfera governamental. Hoje, para os garimpeiros, o
Estado ainda é o mesmo dos tempos coloniais, quando seguia-se, ao menor sinal de
sua presença, o ato de se esconder nas grimpas, para evitar qualquer ato de repressão
que os pudesse atingir.
Com isto, pode-se perceber que o elemento preponderante e definidor do
métier de garimpeiro é estar inserido em um ambiente de extrema contingência, seja
pelas próprias características do processo extrativo, pelo caráter oculto do produto
ou pela sua ilegalidade. Assim, este ambiente mutável e de incertezas é uma
35 Ver. MARTINS (1997: 78)
66
característica fundamental para o entendimento da estrutura do métier de
garimpeiro.
Capítulo III
O Mundo do Trabalho Garimpeiro em Monsenhor Horta
“Cê trabalhar no ouro, rapaz, é uma emoção muito grande, cê tá doido, coisa boa. Quando você acha o
ouro então, aí nossa senhora, é coisa boa demais, é
uma emoção danada, não troco essa emoção do garimpo por nenhum outro trabalho.”
Gustavo Ventura. (Primeiro garimpeiro a trabalhar
com motores em Monsenhor Horta.)
Neste capítulo são explorados os resultados da pesquisa de campo realizada
entre os garimpeiros do Distrito de Monsenhor Horta, e desenhados os contornos
gerais da realidade cotidiana do mundo do garimpo. Através dos relatos de
garimpeiros mais velhos que vivenciaram vários momentos distintos da atividade,
tentou-se reconstruir e contrastar a dinâmica do garimpo tradicional com a realidade
atual dos garimpos semimecanizados, buscando evidenciar continuidades e rupturas
entre os antigos sistemas de organização do trabalho do garimpo e os atuais.
A estratégia de investigação foi a do estudo de caso. Com ela pretendeu-se
chegar a uma compreensão abrangente do grupo em estudo, visando a entender os
tipos de interação local e o seu relacionamento com o mundo.
67
Para a realização deste estudo de caso fez-se necessária a aplicação de
algumas técnicas específicas de coleta e análise de dados. As técnicas aplicadas
foram a observação participante e a realização de 16 entrevistas semiestruturadas em
profundidade, somando mais de 20 horas de gravação, imprescindíveis ao
entendimento dos melindres da atividade garimpeira. As entrevistas permitiram a
apreensão dos aspectos essenciais relativos à pesquisa, que foi direcionada para a
obtenção de informações sobre as novas formas de remuneração, gestão, divisão do
trabalho e competências na atividade garimpeira e suas transformações ao longo do
tempo.
A parte mais difícil do processo foi a conquista da confiança dos garimpeiros
para a realização das entrevistas. Neste sentido, optou-se pelo acompanhamento dos
trabalhos de três grupos num total de 25 garimpeiros, no período de julho a agosto
de 2001, visando um entendimento direto do processo de extração. Assim, foram
realizadas entrevistas em profundidade com antigos garimpeiros, 5 no total, que
tendo trabalhado no início da década de 80, presenciaram as mudanças ocorridas.
Os donos dos garimpos foram essenciais para a obtenção das informações sobre os
saberes específicos da atividade, assim como os garimpeiros mais experientes,
reconhecidamente detentores dessas competências.
Por tudo isso, a presença continuada na região escolhida foi de extrema
importância para a observação de todos os aspectos da vida cotidiana da
comunidade, o que possibilitou o entendimento das principais relações e da
produção dos conhecimentos da atividade garimpeira ali existentes.
Na primeira seção são descritas a trajetória e as particularidades da atividade
garimpeira no Distrito de Monsenhor Horta. Na segunda, através dos depoimentos e
da memória dos antigos garimpeiros, procurou-se reconstituir os processos de
trabalho e as formas de gestão vinculadas às antigas técnicas de extração, bem como
investigar o período de transição para a extração com motores. Em seguida, também
são descritas as formas atuais de extração, marcando o contraste entre estas e as
formas de organização do trabalho anteriores à mecanização. Procurou-se então
68
ressaltar as principais diferenças nos sistemas de relevância apontados pela
sociologia do trabalho: remuneração, gestão e divisão do trabalho.
Combinando os relatos dos garimpeiros obtidos nos períodos de permanência
com a observação de todo o processo de trabalho no garimpo, procurou-se analisar
todo o sistema de organização do trabalho. Buscou-se assim, compreender a
estruturação dos sistemas de relevância e as competências dos atuais trabalhadores
do garimpo. Esta pesquisa ressalta também o papel central das relações de confiança
na estruturação das relações de trabalho em um contexto de informalidade.
1. O Garimpo no Distrito de Monsenhor Horta
Para a realização desta pesquisa, foi definida como unidade de análise os
garimpos do Distrito de Monsenhor Horta, município de Mariana, Minas Gerais.
Três razões justificam esta decisão. A primeira é que este distrito é uma região
ligada tradicionalmente à extração aurífera sob a forma de garimpo, praticado
continuadamente desde o século XVIII. Sendo esta a principal atividade econômica
local poderia permitir a observação dos dilemas típicos das formas de extração
artesanal do ouro. Consubstanciou a decisão a possibilidade de estudar a atividade
garimpeira de uma localidade pequena, onde a maior parte dos garimpeiros não
eram forasteiros, e de entender a atividade e a importância crucial das relações locais
de confiança interpessoal na estabilização das rotinas da atividade. A segunda é que
a maior parte dos estudos sobre a atividade garimpeira no Brasil tem se concentrado
na região amazônica, onde o ambiente natural, as formas de exploração, a escala dos
empreendimentos e a composição social dos garimpos são marcadamente distintos.
Por fim, as relações de confiança com os garimpeiros da região, fundamentais para a
realização da pesquisa de campo, já existiam. Estas relações foram se estabelecendo
em função de uma série de contatos anteriores decorrentes da nossa participação em
69
um projeto de pesquisa anterior iniciado em 1996. Desde então, este grupo de
trabalhadores esteve sempre presente em nossos estudos acadêmicos, dando base a
uma monografia do bacharelado.
Foi esta convivência que permitiu um acesso em condições de abertura e
confiança, que seriam muito difíceis de construir em outros contextos.
O Distrito de Monsenhor Horta está localizado a 20 km da cidade de Mariana e a
140 km de Belo Horizonte. Seu relevo é montanhoso e com resquícios do que foi
mata no passado. Algumas construções denunciam a fase áurea da extração do ouro
nos séculos anteriores.
Como em quase todas as pequenas cidades do Brasil, é difícil traçar um histórico
da localidade. No entanto sabe-se, por inúmeros trabalhos, que a exploração do ouro
no Brasil teve início em 1693, quando Antônio Rodrigues Arazão, um paulista de
Taubaté, o descobriu na região de Caeté. Em 1699, também foi encontrado em Vila
Rica, hoje Ouro Preto, e a partir daí, as pesquisas se estendem por toda a área do
estado de Minas Gerais.
Com um grande potencial de reservas auríferas, a ocupação da região de Mariana
se consolidaria ainda na primeira fase do ciclo do ouro. A chegada de inúmeros
exploradores ocasionou a formação de um centro populoso, considerável o
suficiente para que se lançassem os fundamentos de uma vila. Em 1711, recebeu o
nome de Vila do Carmo, e pela Carta Régia de 23 de abril de 1745, foi elevada à
cidade com o nome de Mariana, em homenagem à rainha D. Mariana da Áustria,
esposa de D. João V, quando da criação de um bispado em Minas. Com seu rápido
crescimento, tornou-se a primeira capital da Capitania de Minas Gerais.
O nome de fundação do vilarejo de Monsenhor Horta foi São Caetano, em
homenagem a um rico proprietário de terras, chamado Caetano, principal fundador
do povoado, que surgiu no séc. XVII, no auge do descobrimento das minas. Em
1703, a população era tão grande e a garimpagem tão frutífera, que foi elevada,
junto com Ouro Preto, à Paróquia, título dado pela Igreja Católica e de importante
significado para a hierarquia das cidades da época. Em 1797 foi concluída a matriz
70
local, que até hoje impressiona pelas suas dimensões e riqueza interior. Foi elevado
a Distrito de Mariana, em 1705.
Com a decadência da mineração, no final do séc XVIII, diversificaram-se as
atividades e as ocupações na região:
"Não se tratando mais de mineração, era a ocupação dos homens
trabalhar pelo oficio de ferreiro, de alfaiate, muitos eram tropeiros, outros faiscadores, outros faziam plantações, etc. As mulheres fiavam
algodão e lã, outras teciam o pano, outras costuravam à mão camisas e
ceroulas, etc. Com a lã teciam cortes que tingiam e faziam roupas para homens e também cobertores. Toda menina daquele tempo sabia fiar e as
que não sabiam escaroçavam o algodão, tendo para isto escaroçador, e
outras abriam a lã que depois de passá-la na corda ou escovas de arame ...”
36
Nas primeiras décadas deste século, para homenagear um antigo vigário, a quem
são atribuídos vários milagres, e que é até hoje bastante cultuado naquela região,
passou-se a designar o então Distrito de São Caetano, de Monsenhor Horta.
O distrito possui uma população de 1850 habitantes (IBGE 2000) que vive, tanto
financeira como culturalmente, em torno da garimpagem do ouro ou dos
resquícios que sobraram após tantos anos de exploração das margens do Ribeirão
do Carmo. O comércio é precário e o atendimento à saúde é quase inexistente;
depende quase que por completo da cidade de Mariana.
A partir das observações foi possível constatar a existência, apesar da gradual
diminuição, de uma média de 300 pessoas envolvidas diretamente na atividade
garimpeira em todo o município de Mariana: garimpeiros, compradores de ouro e
proprietários das áreas onde são feitas as extrações. Esta média é extremamente
variável, devido à rotatividade do processo de extração e à vinda de forasteiros, em
épocas de estiagem. Nestas ocasiões, pode ser encontrada na região uma quantidade
muito grande de novos garimpos, mas estes têm curta permanência. A exploração,
entretanto, nunca se encerra, sustentada pelos garimpeiros moradores do distrito, que
estão permanentemente envolvidos com a atividade, mesmo quando desenvolvem
simultaneamente outras ocupações.
36 Fonte primária. Manuscrito encontrado na casa paroquial da igreja matriz de Monsenhor Horta e que traz
inúmeras descrições sobre a região.
71
Durante a pesquisa, constatou-se a presença de pelo menos 15 pontos de garimpo
em todo o município; são eles a principal fonte de renda e, conseqüentemente, de
subsistência para os trabalhadores envolvidos. A maioria dos garimpos
pesquisados estão hoje localizados, numa faixa de cerca de 10 Km, ao longo das
margens do Ribeirão do Carmo, que passa atrás das residências do distrito.
2. O Garimpo Artesanal Tradicional e as Técnicas de Extração do Ouro.
A extração de ouro em Monsenhor Horta se manteve desde as primeiras
descobertas. Gerações têm sobrevivido ali, direta ou indiretamente, da extração
aluvionar do ouro, cada vez mais escasso. Do início da extração do ouro, no final do
século XVII, até o século XVIII, quando surge a figura do garimpeiro, a extração
aurífera se mantém, mas muda toda a sua estrutura de funcionamento. Na verdade,
até a introdução dos motores, as técnicas de extração na região mostravam uma
notável continuidade em relação aos séculos anteriores. Os relatos acerca dos
processos de extração obtidos junto aos garimpeiros da região, que trabalham na
atividade desde meados do século XX, reproduzem com fidelidade as mesmas
técnicas descritas pelos naturalistas e viajantes que visitaram Minas Gerais no início
do século XIX.
Antes dos motores, eram praticados quatro tipos de garimpo na região37
: a
bateia, a canoa, o canal e a bica. A canoa, o canal e a bica eram os mais utilizados,
e a escolha de cada tipo de técnica estava associada à diversidade das circunstâncias
em que ocorria a atividade, tais como o tipo do terreno, o número de pessoas
envolvidas, a quantidade de material que se queria lavrar, etc.
O uso da bateia foi predominante nos séculos XVIII e XIX, quando a
extração garimpeira era feita de uma forma completamente artesanal. Sua utilização
37 Estes tipos de garimpo foram descritos de uma forma extremamente detalhada e rica por Paul Ferrand. O
ouro em Minas Gerais. 1894. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1998.
72
era eficiente devido à abundância de ouro em forma de pepitas ou mesmo em pó.
Segundo o relato dos garimpeiros mais antigos de Monsenhor Horta, o uso da bateia
persistiu residualmente ainda no século XX, mas aos poucos foi desaparecendo, na
medida em que o ouro se tornava mais escasso.
Mais que qualquer outro instrumento, a bateia simboliza a base artesanal das
primeiras técnicas utilizadas na atividade garimpeira aluvionar. A extração acontecia
normalmente nas margens dos rios onde o ouro poderia ser encontrado em forma de
pepitas, isto é, em pedra, ou mesmo em pó. Na forma de pepitas, a extração do ouro
era muito fácil, e somente o uso da bateia prescindia de qualquer outro aparato
técnico ou de uma radical remodelação do terreno. A extração se dava da seguinte
forma: o garimpeiro enchia a bateia de cascalho retirado das margens dos rios, ou
mesmo do fundo destes, e conservando-a na superfície, imprimia-lhe contínuos e
apropriados movimentos giratórios, inclinando-a de vez em quando para receber
uma dose de água enquanto ia mexendo, com a outra mão, o conteúdo. De tempo em
tempo, espalhava o conteúdo pela borda da bateia, observando-o cuidadosamente,
depois o atirava fora, caso não surgisse o tão desejado metal.
Apesar da maior quantidade de ouro em tempos passados, a descoberta de uma
pepita era um evento raro. O ouro era captado principalmente em forma de pó, o que
exigia vários processos posteriores para sua total apuração. Nesta forma, o ouro
aparece na bateia juntamente com outros minérios, como, por exemplo, o minério de
ferro. Para separá-lo dos demais materiais utilizavam-se ímãs que retiravam as
partículas de minério de ferro, deixando somente o ouro. Segundo os garimpeiros da
região, este método não era muito eficaz, o que ocasionava grandes perdas.
Utilizava-se também a folha do maracujazeiro da seguinte forma: apurada a mistura
de ouro e impurezas, após muito tempo de bateamento, deixava-se esta mistura secar
ao sol. Seca, batia-se a folha em cima da mistura; por ser áspera, a folha retinha as
impurezas mais leves, e desta forma o ouro era apurado. O ouro era vendido na sua
forma em pó.
73
É importante ressaltar que a bateia, mutatis mutantis, continua sendo utilizada
nos atuais garimpos semimecanizados. No entanto, seu uso é restrito ao momento de
“tirar a prova” do terreno (decidir se o local é rentável o suficiente para iniciar a
extração) e à fase final de apuração. Atualmente, na região de Monsenhor Horta e
mesmo em outras regiões do Brasil, devido à escassez do ouro, o garimpo feito
exclusivamente com bateia já não existe mais, ou é muito raro.
No uso da canoa, do canal e da bica, o início do processo é idêntico, assim
como nos atuais garimpos semimecanizados. A pesquisa inicial consiste no
bateamento do material nos lugares em que a experiência do garimpeiro indica
maior probabilidade de haver ouro. Os locais escolhidos são normalmente aqueles
onde a água é mais parada, nas curvas de rios, etc. A decisão de trabalhar em um
determinado local dependerá da quantidade de “pintas” de ouro encontradas em cada
bateada.
O garimpo de canoa era feito nas margens dos rios, e normalmente o lugar
escolhido levava em conta a existência de uma pequena ilha ou mesmo a margem do
rio em lugares onde existisse um pequeno aclive. A canoa consistia em um fosso não
muito profundo, onde se realizaria a lavagem do cascalho. Abria-se um fosso
retangular - normalmente de 1,00 a 1,50m de comprimento, por 0,50 a 0,70m de
largura e 0,10 a 0,60m de profundidade. As dimensões da canoa estavam associadas
à quantidade e à natureza do material que seria apurado. O fundo deste fosso era
ligeiramente inclinado, ou seja, um canal inclinado por onde o material desceria. Um
pequeno canal era então aberto para desviar a água do rio, que passava a cair
diretamente no fosso. Ali eram colocados tapetes, o lado externo do couro de boi, ou
pedaços de tecido de lã grossa para melhor reter os fragmentos pesados. Assim, o
cascalho era conduzido em carrinhos de mão das margens ou mesmo dos leitos dos
rios e jogado nesse pequeno fosso. Depois de aproximadamente 20 a 30 carrinhos,
liberava-se a água para que ela lavasse o material. A água do rio dissolvia esse
material que corria para a bica (plano inclinado), onde o material mais pesado, no
caso o ouro, ficava retido nos pedaços de carpetes, tecidos ou lã ali fixados. Quando
74
se tinha um ouro muito fino, costumava-se colocar várias canoas dispostas em
cascata umas sobre as outras, visando a maior eficácia na retenção do metal. Em
locais onde a lavagem do material era constante, costumava-se construir canoas de
pedra.
Ao final do dia de trabalho, passava-se à apuração do ouro. Começava-se com
a lavagem em um pequeno tambor, ou mesmo em um pequeno fosso construído no
chão. Os tapetes ou a lã eram batidos várias vezes, com o objetivo de liberar o fino
ouro que nele se aderia. O procedimento seguinte era o mais antigo utilizado na
extração, ou seja, o uso da bateia como forma de selecionar ainda mais o material
rico em ouro. A apuração final com a bateia era idêntica à relatada anteriormente. O
final da apuração se dava com a secagem do material selecionado e com a utilização
de um imã para retirar as partículas de minério de ferro ou esmeril, partes mais
pesadas, obtendo-se, desta forma, o ouro em forma de pó ou de pequenas pintas.
Utilizava-se também para a apuração final as folhas de maracujazeiro, como já
relatado.
Em Monsenhor Horta, somente no final da década de 70 inicia-se a utilização
do mercúrio nas apurações mais difíceis de ouro. Segundo relato de um antigo
garimpeiro, a aprendizagem do uso do mercúrio veio através de garimpeiros
forasteiros que trouxeram este conhecimento de outras regiões. O mercúrio substitui
com vantagem o imã e as folhas do maracujazeiro. Em sua forma líquida, o mercúrio
forma uma amálgama com as partículas de ouro, mas não com os outros metais e
impurezas. Após a amalgamação e a separação de outros materiais, ouro e mercúrio
são novamente separados submetendo a mistura a altas temperaturas: o mercúrio se
evapora e a apuração do ouro se faz de uma forma muito mais eficiente. Costumava-
se também colocar folhas verdes de figueira em cima do amálgama quando era
levado ao fogo, com o intuito de que o mercúrio em evaporação se condensasse ao
contato com a folha. Esta era substituída de tempos em tempos por uma nova, e
assim o mercúrio era recolhido em um recipiente para reaproveitamento. Este
processo era extremamente rudimentar e causava grandes perdas de mercúrio. No
75
entanto, o mais comum era, sem dúvida, a simples queima a céu aberto, ou seja, sem
nenhuma preocupação com o reaproveitamento deste metal.
O uso do canal consistia em desviar uma parte do leito do rio com uma
barragem de terra e pedras no leito descoberto, para que somente uma certa
quantidade de água entrasse no canal para lavagem do material. Com o avião -
espécie de enxada grande - os garimpeiros castelavam (puxavam) todo o cascalho
deste leito descoberto jogando-o no canal, onde se colocavam panos e lãs na fenda
aberta, sempre com o cuidado de retirar as pedras maiores. A lógica do processo se
assemelha à da canoa. A diferença é que o canal é feito dentro do rio e não se
carrega o material; este é puxado pelos garimpeiros para o canal aberto, para onde
um filete da água do rio é desviado para operar a lavagem. Quando se percebia que
uma grande quantidade de material já havia sido lavada e uma boa quantidade de
ouro já havia sido retida, estancava-se a água e, com uma enxada, raspava-se todo o
cascalho mais fino que sobrava no fundo do canal. Este era removido para um outro
recipiente, juntamente com os panos, lãs etc., para o processamento da apuração.
Os métodos de apuração eram os mesmos descritos na canoa, ou seja,
apurava-se na bateia, utilizavam-se imãs para a apuração final, e mais recentemente,
já se fazia o uso do mercúrio para amalgamação.
A bica é o sistema de extração manual que mais se aproxima da lógica do
processo de produção dos garimpos semi-mecanizados atuais, e segundo alguns
garimpeiros, esse era o sistema manual mais prático. Na bica, montava-se uma
peneira grossa feita de latão, colocada a uma certa altura e seguida de uma bica, ou
seja, um plano inclinado. Na bica são também instalados carpetes, lãs ou panos, com
o objetivo de reter as partículas de ouro mais pesadas. O cascalho rico é colocado
nesta peneira e, em seguida, joga-se água para que se dissolva e caia na bica, onde o
ouro será retido. Normalmente colocava-se a banca em uma parte mais baixa,
visando a aproveitar a água do rio e evitar o esforço de carregá-la. Assim, o próprio
rio fazia a lavagem do material, tendo o garimpeiro, nesta fase, somente de colocar o
cascalho rico na peneira.
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O processo de apuração era idêntico aos descritos nos sistemas anteriores.
Ainda hoje é possível encontrar garimpeiros usando esse sistema na região de
Monsenhor Horta. Os garimpeiros, sem recursos suficientes para adquirir os motores
de garimpo, encontram nesta técnica rudimentar a fonte de sua sobrevivência.
Contudo, diferentemente do passado, praticamente todos os micro-empreendimentos
de extração do ouro utilizam o mercúrio para a apuração.
No garimpo de bateia e outras ferramentas, a extração era feita normalmente
por garimpeiros isolados ou por pequenos grupos familiares, pois os investimentos
em equipamentos eram reduzidos. Muito freqüentemente, tais garimpeiros
trabalhavam apurando os resquícios de um empreendimento maior já encerrado.
Muitas vezes foram chamados de faiscadores, uma vez que visavam às faíscas de
ouro. Acontecia também de fazerem acordos com os donos de garimpo ou de
mineradoras. Estes acordos, muitas vezes, consistiam, por parte do garimpeiro, na
permissão de exploração do material já lavrado; em troca, os faiscadores cediam
algum tempo de trabalho no garimpo. Este é o tipo de atividade essencialmente de
subsistência.
Nos sistemas de canoa, canal e bica a escala do empreendimento e a
organização do trabalho eram diferentes. Normalmente havia um número elevado de
trabalhadores envolvidos na atividade, em média, 20 a 25 garimpeiros. Estes
empreendimentos pertenciam a um dono ou a uma sociedade, que contratava outros
trabalhadores para as funções que a atividade exigia. No entanto, estas contratações
ocorriam de modo diverso de outros sistemas de remuneração praticados na
atividade garimpeira. Nos empreendimentos maiores, havia a contratação de
trabalhadores que recebiam um salário fixo; nos de pequeno porte, não sendo
necessária a contratação de outros trabalhadores, o produto final era dividido entre
os proprietários. A prática de reunir grupos de 6 ou 7 pessoas para montar um canal,
canoa ou bica, onde o produto era dividido em partes iguais, era o sistema mais
comum. A divisão do trabalho era muito reduzida, uma vez que a maioria dos
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trabalhadores estavam, quase todo o tempo, envolvidos na remoção do cascalho para
a lavagem.
3. A Atividade Garimpeira Semimecanizada em Monsenhor Horta e as
Transformações no Métier de Garimpeiro
Atualmente, os garimpos de ouro de Monsenhor Horta se estruturam de uma
forma bastante diversa da que eram no passado. As mudanças são nítidas: esta
atividade eminentemente artesanal, de subsistência, marcada pelos imprevistos,
tendo na bateia o principal símbolo e no garimpeiro o principal personagem, hoje se
estrutura de uma forma completamente diferente desta visão tradicional; ficou mais
complexa, e o uso dos motores passou a exigir novas habilidades para a sua
operação.
Diferentemente do que aconteceu nos setores produtivos clássicos, o aumento
da complexidade trazida pela introdução dos motores no garimpo não foi
acompanhado pela introdução de uma divisão do trabalho rígida no interior do
processo de trabalho. No garimpo semimecanizado, a maior parte dos trabalhadores
exercem dentro da cava de extração quase todas as funções que a atividade requer. A
introdução dos motores ampliou o escopo de habilidades e saberes necessários à
atividade garimpeira, sem, entretanto, produzir especializações estanques. Tais
mudanças introduziram significativas transformações nas relações de produção e nas
sociabilidades da atividade garimpeira durante a década de 80.
A introdução dos motores de garimpo na extração de ouro no Brasil se inicia
nas décadas de 60 e 70 do século XX, com grande impacto na eficiência da extração.
A mudança no perfil dos empreendedores, a escala dos empreendimentos e a nova
combinação de conhecimentos necessários favoreceram a adoção de novas formas
de organização e divisão do trabalho.
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Até o início da década de 80, o garimpo apresentava uma base técnica
rudimentar. Os motores eram muito raros, e existiam, quando muito, algumas
bombas para a sucção da água. Os equipamentos se resumiam à bateia, enxadas e
pás. O mercúrio, atualmente de uso indiscriminado e responsável por terríveis danos
ao ambiente e à saúde, era então muito pouco utilizado. A separação de impurezas
do ouro era feita, também, de uma forma extremamente primitiva, e estava longe dos
níveis atuais de exigência gerados pelas novas características operacionais da
atividade, como por exemplo, os dos compradores de ouro, que passaram a exigí-lo
já queimado e sem resquícios de mercúrio.
Na região de Monsenhor Horta, a atividade garimpeira se desenrola hoje
fundamentalmente no contexto do aproveitamento de ocorrências de ouro
economicamente desinteressantes para as grandes empresas de mineração. Isto
ocorre devido às próprias características geológicas desses depósitos e à intensa
exploração feita em muitos anos de degradação. Não se justificam, portanto, maiores
investimentos nas fases de pesquisa mineral e de lavra.
O que se percebe atualmente é uma transformação do garimpeiro de
subsistência em grupos de extração com equipamentos mais sofisticados, liderados
pelo que podemos chamar de garimpeiros empresários, que se caracterizam por
possuir um empreendimento mecanizado, normalmente com dois motores de sucção,
e pelo poder de contratar demais garimpeiros para as novas funções exigidas.
Normalmente, não existem contratos formais, sendo os acordos de trabalho
baseados em um sistema de confiança mútua, em que o garimpeiro recebe uma
determinada porcentagem do total do ouro extraído semanalmente. Apesar do caráter
clandestino da atividade, os donos dos motores agem como pequenos empresários,
detendo, vez por outra, mais de um ponto de extração. Na maior parte das vezes, são
os próprios donos que selecionam os trabalhadores e negociam os contratos
informais de trabalho, além de coordenar e gerenciar todas as atividades.
A extração feita nos garimpos semimecanizados se dá de uma forma contínua.
No entanto, para facilitar o entendimento, o processo extrativo será dividido em três
79
momentos. Em todas essas fases, o saber-fazer do trabalhador garimpeiro é de
extrema importância para o desenvolvimento da atividade; em decorrência disto,
alguns se destacam como os detentores mais notáveis de tais saberes. Poderiam ser
chamados de garimpeiros competentes, ou, como na região de Diamantina, de
“garimpeiros sabidos”. Reconhecidos pelo grupo como os que têm mais “sorte”, por
obterem grande sucesso na extração, são seguidos pelos demais na esperança de
também serem bem sucedidos na escolha de um determinado local.
O saber adquirido pelo garimpeiro se dá no trabalho e em anos de experiência
na extração. É reconhecido como um valor e um orgulho para quem o detém, e é a
característica fundamental de seu métier. No garimpo clandestino, tendo os de
Mariana como referência, todo o saber exigido está ligado a um conhecimento tácito
e a saberes empíricos. Estes saberes práticos, ligados às “manhas do ofício” e que
não se encontram na educação formal, constituem a base do métier.
Dessa forma, ao descrever os diversos momentos da extração, procurou-se
ressaltar o conjunto de conhecimentos corporificados em cada um deles. O primeiro
momento é o da escolha do terreno a ser garimpado. O segundo revela a dinâmica
da extração propriamente dita: inicia-se com a abertura das cavas e segue até
chegar ao material mais rico – piçarra – no qual é maior a probabilidade de se
encontrar o metal. O terceiro e último momento é o da apuração do ouro, seguido da
partilha e da venda.
A Escolha do Terreno
A primeira fase do processo começa com a escolha do terreno a ser aberta a
cava. Esta escolha, diferentemente das empresas de mineração, não segue nenhuma
pesquisa mineralógica ou sondagem anterior.
Nesta fase percebe-se claramente o saber-fazer característico da atividade. A
escolha do terreno é fundamental para o sucesso ou fracasso do empreendimento,
80
definindo o futuro do grupo. Muitos garimpeiros se orientam pela opinião dos mais
velhos. Estes, muitas vezes, como é o caso de Monsenhor Horta, orientam para os
locais pouco explorados pelas empresas ou mesmo por outras frentes de
garimpagem. Assim, somente os que vivenciaram a extração, em anos anteriores,
têm esta informação. A escolha pode também estar associada a um conhecimento
tácito formado no trabalho e também ligado ao imponderável.
A escolha é feita considerando-se vários fatores, que não diferem muito da
forma descrita nos garimpos manuais: como por exemplo, a localização do terreno
em função do curso fluvial, os possíveis acordos com o dono desse terreno, os locais
de difícil acesso, visando a dificultar a ação da polícia, e ainda um conhecimento
intuitivo presente em quase todo trabalhador garimpeiro.
Dá para perceber que o conhecimento sobre os locais onde pode ser
encontrado ouro é um conhecimento técnico sobre as características naturais do
terreno. Assim, os garimpeiros preferem abrir suas cavas nos locais menos
explorados, evitando garimpar onde as dragas das mineradoras passaram, ou mesmo
onde existem muitos resquícios do trabalho de antigos garimpeiros. No entanto,
procuram indícios de extração feita pelos escravos, pois acreditam que eles, com
suas técnicas manuais, não retiraram totalmente o ouro. Como diz o garimpeiro Edu:
“Eu só queria que voltasse só um escravo para dizer aonde ficou um resto daquele ouro que eles tiravam, só um só”
Segundo o garimpeiro Jésus, no garimpo:
“Geralmente a gente olha o lugar que a água é mais parada, porque dificilmente os antigos mexeram, é uma curva de rio, é um lugar em que
a água não tem caída, porque quando se trabalhava com canoa
precisava de uma caidinha”
A referência às dragas de empresas mineradoras está sempre presente na fala
dos garimpeiros. A última passagem de uma draga desse tipo por Monsenhor Horta
foi no início da década de 1980 a qual, segundo eles, conseguiu retirar uma
81
quantidade muito grande de ouro. Por conseguinte, procuram os lugares onde as
dragas não tenham passado, buscando informações dos mais velhos, ou mesmo de
antigos funcionários que trabalhavam na época nessas empresas de mineração.
Muitos garimpeiros procuram determinado material no solo em que a draga não
conseguia penetrar, como é o caso da canga, uma espécie de rocha muito dura.
Segundo informações dos garimpeiros, a draga abandonava o terreno rico em canga
para não danificar seus equipamentos, sendo estes locais os alvos atuais dos
garimpeiros. Outros terrenos visados são os de barro, pois, segundo o conhecimento
local, a draga atolava e não conseguia extrair o material. Dessa forma, os locais mais
evitados na região são aqueles já explorados pela draga, sendo a ela imputada a atual
ausência do ouro.
Um outro procedimento, utilizado com o intuito de detectar o metal e
minimizar os riscos do empreendimento, é “tirar a prova” de onde se pretende abrir
a cava: abre-se um pequeno fosso no terreno e retira-se um pouco de material;
depois, com a bateia, apura-se. Se a amostra contiver partículas de ouro, pode-se
abrir a cava, pois há a probabilidade de que ainda exista uma boa quantidade de ouro
no subsolo. Segundo o garimpeiro Assis:
“Geralmente tira uma prova mais ou menos para ver né, se por cima der
fraquim, por baixo ainda tem. Mas engana muito... a gente vai mais é no
escuro mesmo, teve lugar que eu fiz 6 furos não achei nada (...) porque
não dá para saber onde tá o ouro, tem que tentar, pelo material a gente segue pelo lado que está indo na verdade a gente cisma com aquele lugar
e diz: “vou furar ali porque ali deve ter” às vezes dá sorte, eu já cismei
com um lugar e o resultado não foi bom não”
A intuição associada à sorte é sempre citada quando se pergunta dos locais
onde se pode encontrar ouro. Quase todos reconhecem que o conhecimento técnico
dos locais para se abrir uma cava são muito falhos, e que alguns trabalhadores têm
mais sorte do que outros na escolha do terreno, como descreve o garimpeiro Assis:
“Para achar o ouro é sorte mesmo, não tem outra coisa não, porque a
gente tá procurando uma coisa que não guardou.”
82
Ou para o garimpeiro Gustavo:
“o ouro também é muita sorte né. Costuma você bater o furo aí, acertar na veia e costuma você trabalhar dois três meses aí e não achar nada.
Demanda muita sorte. O cara acertar uma área que tem ouro aí”
É também uma intuição em relação ao conhecimento técnico, conforme a explicação
do garimpeiro Jésus:
“Sonho a gente não tem não mais intuição a gente tem, a gente olha o curso do rio onde o rio tá passando se tem alguma possibilidade dos
antigos já terem mexido, é mais ou menos por aí, se a água tiver bem
mansa. Mas a gente vai muito no escuro mesmo, porque as vezes hoje ela tá passando mansa e 100 anos atrás ela num tava né, na hora que a
gente apura que a gente vai ver.”
O que se pode perceber é que a sorte é uma das categorias pelas quais os
garimpeiros interpretam e explicam a realidade cotidiana de seu trabalho. No
entanto, quando analisa-se essa categoria, nota-se que ela não está disponível a todos
os que se aventuram a se tornar garimpeiros. Na verdade, a sorte é um dos elementos
que compõem o métier de garimpeiro e, neste sentido, está totalmente atrelada ao
“conhecimento à mão” e às habilidades dos indivíduos adquiridas nas experiências
cotidianas de seu trabalho. O meio natural fornece algumas pistas para se achar o
ouro, no entanto, achá-las não depende de dons individuais, ou de qualquer
conhecimento inato, mas está disponível somente para os que fazem parte deste
métier. O que se quer deixar bem claro é que a categoria sorte, no mundo do
garimpo, não é tão aleatória como os próprios garimpeiros afirmam, ela depende de
um cabedal de conhecimentos e habilidades disponível somente aos envolvidos
diretamente na atividade.
Outro fator relevante na escolha da área para abrir uma cava são os acordos
com os donos dos terrenos, uma vez que muitos proprietários não permitem a
extração em suas propriedades, e quando o fazem, exigem uma porcentagem muito
alta que inibe a iniciativa do grupo de garimpeiros. Normalmente, os donos dos
terrenos exigem de 10 a 20% do ouro extraído semanalmente para autorizar a
83
extração em seus terrenos, o que, muitas vezes, gera grande desconfiança e atritos
entre esses e os garimpeiros, como será exposto mais adiante. Essas negociações são
inteiramente verbais, não existindo qualquer tipo de contrato registrado. Para o dono
do terreno, torna-se uma atividade extremamente lucrativa, devido ao fato de “nada
perder e só lucrar.”
A extração começa com a limpeza do terreno e a remoção da cobertura
vegetal, não terminando aí, a primeira fase da garimpagem. A terra é removida, até
que se encontre um determinado tipo de argila e de cascalho que possam indicar a
possibilidade da ocorrência de ouro. É importante ressaltar que as informações
passadas para os garimpeiros por estes indícios, embora preciosos, não são
infalíveis. Trata-se de uma prospecção extremamente rudimentar, feita com a
própria bateia ou com uma vara de sondagem, como será descrito na segunda fase.
No entanto, estas técnicas de sondagem, segundo os próprios garimpeiros, não
quebram a característica de aleatoriedade da extração nos garimpos rudimentares,
apesar de serem informações adquiridas através de muita experiência e de muitos
anos de ofício, não estando, portanto, ao alcance de estreantes, neófitos,
inexperientes e inábeis.
A Abertura da Cava
A segunda fase da extração consiste na abertura da cava e na extração
propriamente dita. A abertura de uma cava é feita utilizando, no mínimo, um motor
de automóvel, mas quase sempre é feita com dois. Esses motores são normalmente
comprados em ferros-velhos e adaptados para utilizar gás de cozinha ou mesmo óleo
diesel como combustível. Um desses motores é o responsável pela sucção da água
do rio. Através de sua pressão, direcionada por um garimpeiro (jateiro, ou bico-
jateiro), faz-se o desmonte hidráulico da cobertura vegetal e abre-se o solo com a
ajuda de outros garimpeiros que auxiliam com cavadeiras e enxadas. O outro motor,
normalmente mais possante, é utilizado para sugar, no início, a cobertura de terra.
84
Com o aumento da profundidade da cava, o cascalho e a areia mais fina aparecem e
a possibilidade de encontrar o ouro vai se tornando cada vez maior. O equipamento
de sucção é operado por um garimpeiro, conhecido como maraqueiro, devido à boca
de sucção do cascalho ser denominada maraca.
A terra misturada à água é succionada por este motor-bomba e drenada para
uma caixa de metal, onde uma espécie de ralo retém os materiais mais pesados. O
resto do material é jorrado para um equipamento rudimentar denominado mesa
coletora ou bica, que serve para fazer a primeira separação do cascalho, areia e água
do ouro fino.
A mesa coletora, normalmente utilizada, é formada de uma caixa de metal
onde é feita a filtragem do material mais grosso. À altura de sua borda, segue uma
rampa, também em formato de caixa, medindo cerca de 70 cm de largura por 2
metros de comprimento, em declive de aproximadamente 45º, cercada nas
extremidades por pedaços de madeira cuja função é a de auxiliar na retenção do
ouro. Toda a mistura mais leve segue, levada pela pressão da água, para a mesa em
plano inclinado. Esta mesa é forrada por carpetes que têm a função principal de reter
o ouro em pó. Em alguns garimpos visitados, o mercúrio já é colocado nesta mesa
para facilitar a extração; entretanto, este não é o procedimento mais comum entre os
garimpos da região. A mesa é o local onde o ouro fica retido. Nas partes mais altas
perto da caixa o ouro se concentra, ficando mais raro nas partes mais baixas da
calha.
As condições de trabalho, nesta etapa, exigem o maior esforço físico de todo
o processo de extração. Os garimpeiros são obrigados a ficar operando os
equipamentos dentro d’água, submetidos à contaminação por microorganismos que
estão presentes nos rios, normalmente poluídos.
O saber-fazer presente nesta fase é caracterizado pela habilidade de
manipulação dos equipamentos e dos motores, e no direcionamento dado ao jato e à
maraca para os lugares mais ricos do subsolo. Para isto, devem ser bem conhecidos
os tipos de solos mais prováveis de associação do ouro para melhor direcionar a
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sucção do material. Também nesta fase pode ser utilizada uma sondagem rústica
com uma vara, para melhor orientar a busca do ouro. Este tipo de associação é de
extrema importância para o trabalhador. Faz parte de seu métier acreditar nestes
“avisos”, fortalecendo a crença da descoberta e do saber que possui de sua atividade.
Este tipo de conhecimento está associado diretamente às habilidades adquiridas no
trabalho e é compartilhado pela grande maioria dos garimpeiros da região. Nem
sempre estas técnicas, segundo os próprios garimpeiros, são totalmente eficientes,
mas esta ineficiência parcial não é suficiente para desacreditá-la. É possível
perceber aqui, baseado nas interpretações de Alfred Schutz, o projetar, ou seja, a
tentativa de antecipar os fatos futuros. No entanto, é inevitável para o garimpeiro,
que o sentido do ato projetado muitas vezes difira do sentido do ato realizado. No
entanto, este projetar do garimpeiro está baseado no “conhecimento à mão” formado
na sua vida cotidiana, sobretudo no trabalho.
Na explicação do garimpeiro Jésus:
“Geralmente quando a gente começa a furar naquele lugar que não foi
mexido, a gente acha uma camada de barro, é um barro folhento, preto,
folhento tipo um compensado escuro, escuro bem escuro mesmo, o barro tipo um madeirite mesmo podre o barro. Geralmente quando a gente
acha aquele barro, ali por baixo tem ouro, o lugar que a gente tá furando
que não encontra aquele barro dificilmente tem, porque já trabalharam lá. Dentro da cava dá para saber mais ou menos, a gente fura um metro
se chegou no barro, se não chegou no barro a gente bate um vergalhão e
se ele descer macio é por porque tem barro, se descer esbarrando em pedra é por que não tem barro, ai gente continua teimando, que as vezes
tem outro tipo de material mas é mais fácil para gente quando a gente
acha o barro, a gente já desce animado, que lugar que dá esse barro não
foi trabalhado ainda. Barro folhento, é uma camada de folhas podre memo que vem acumulando em cima da piçarra”.
Ainda sobre esta sondagem precária, o garimpeiro Juscelino descreve:
“a gente faz um mucado de sondagem. Pega um ferro aí, um pedaço de ferragem, xuxa ali, aí conforme fô o material qui tivé socando no fundo,
né cê sabe mais ô meno se é uma pedra, se é um material mesmo de ouro,
um materialzinho, né qui é provável qui dê ouro. Aí tem tudo isso né. Qui a gente coisa... Qui a gente não tem material de sondagem mesmo, a
gente não tem, mas as vezes engana bem. É, engana um pouquinho”
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Como dá para perceber a imprevisibilidade no garimpo é uma constante.
Uma vez que não se faz uma sondagem mais precisa, não se tem a exata localização
e nem a dimensão do depósito aurífero. O garimpeiro Assis explica ainda melhor o
procedimento técnico dentro da cava:
“você vai lavando quando chega num material, aí você vê a cara do material, aí você fala assim: “vou tirar a prova deste material bom,” aí
você prova, ali tá ruim, ali tá ruim, ali na frente tá melhor, aí vamos
virar pró lado de cá, ou pró lado de lá. O tempo todo você vai provando um pouquinho para ver como é que tá, quando tá no começo tem que
provar todo lado. Semana passada a gente tava do lado de lá. Tava ruim,
esta semana viemos pro lado de cá, melhorou um pouco.”
Nesta fase, o que orienta o garimpeiro é o tipo de material encontrado dentro
da cava e o resultado das provas que são regularmente feitas pelos donos dos
garimpos. Essas provas, como já relatado, são feitas com o material retirado de
dentro da cava e da caixa coletora. São esses indícios que determinam a
permanência ou o abandono de determinada área de garimpagem. No entanto esses
métodos ainda são muito falhos, e como dizem os garimpeiros: “trabalham no
escuro”. O que se pode perceber é que os demais garimpeiros não fazem essas
provas, ficando tal tarefa ao encargo do dono. Não que sejam proibidos ou que não
estejam curiosos para saber a probabilidade do terreno que está sendo explorado,
mas por uma contenção da ansiedade, o que é característico na atividade; como eles
mesmos dizem: “eu não sou fominha.” Na verdade, o que existe praticamente em
todos eles é uma expectativa, que é muito forte mas sempre velada.
O ouro é apurado normalmente no sábado; assim, durante a semana não se
tem a noção exata da quantidade de ouro que está sendo extraído. A expectativa
para saber como está a extração é percebida no fim do dia de trabalho, ou mesmo
nos momentos em que o motor pára de jogar o material para a caixa. Neste
momento os garimpeiros sobem até a caixa e começam a procurar as pintas de ouro
retidas na caixa e no carpete e fazem algumas previsões.
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Nota-se que, através do conhecimento sobre os locais em que já garimparam,
acumulado em anos de extração, alguns garimpeiros fazem uma espécie de mapa
geológico imaginário do terreno, que os orienta no processo extrativo. Mais uma
vez percebe-se que a aparente aleatoriedade do processo extrativo do ouro é na
verdade sustentada por um cabedal de conhecimentos muito bem estruturado entre
os participantes deste complexo métier. A escolha do local para se abrir uma cava
não é totalmente aleatória, ou seja, nunca se trabalha totalmente no escuro. O que se
percebe é a existência de uma série de fatores que podem eliminar a possibilidade
de se investir em um determinado local, como por exemplo, a exploração anterior
por outras frentes de garimpagem, conhecimento não acessível a todos. A
perspectiva de achar o ouro está vinculada a descobertas anteriores. Assim, ao
analisar atentamente a categoria sorte, pode-se perceber que ela está quase que
totalmente vinculada a conhecimentos prévios de uma série de elementos que a
determinam.
Nesta fase as habilidades e os conhecimentos dos garimpeiros se revelam a
todo momento, seja pelas características de um tipo de barro rico em ouro, seja
pelas características de um barranco prestes a desmoronar. Quando o
desmoronamento é iminente, começa a descer com uma certa regularidade, muita
areia. Assim, os garimpeiros ficam extremamente atentos dentro da cava e um deles
é deslocado para o alto da mesma para vigiá-la e avisar aos demais a hora em que
houver o deslize, evitando acidentes que podem ser graves.
Este processo de abertura da cava é um momento de enorme ansiedade para
os garimpeiros, uma vez que estão investindo em um empreendimento de alto risco.
Esta ansiedade é bem demonstrada pela fala do garimpeiro Edu quando perguntado
sobre o lado bom e o lado ruim do garimpo:
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“O pior de tudo é quando você está abrindo uma cava, você tem que furar para você saber, e dentro de 10 a 12 metros a gente torce para
chegar dentro de 1 mês. Costuma você gastar 3 meses para chegar no
fundo. E dentro desses 3 meses você teria que estar tirando algo para repor. Pagar óleo, pagar trabalhador, não deixar faltar nada dentro de
casa... é igual eu tinha mencionado uma cooperativa, porque assim você
teria a cooperativa para estar te ajudando, colocando alguma coisa dentro da sua casa, então é isso que é ruim no garimpo. E o bom é
quando você está achando ouro porque os funcionários ficam todos
alegres, porque você vê no semblante deles, no rosto dele, isso aí é o
bom. Agora quando se fala em mudança de lugar, muitos te enrolam aqueles que estão ali, muitos já te enrolam já começam a sair.”
A utilização dos motores de garimpo tornou muito mais eficaz a extração do
ouro, porém aumentou os gastos com combustíveis, lubrificantes etc. Novas
habilidades foram exigidas dos trabalhadores. Agora, é necessário saber mexer nos
motores; caso estraguem, o conserto deve ser feito de forma rápida para não parar o
processo extrativo. Nesse contexto, a operação do maquinário é mais um
conhecimento demandado nesta fase da atividade: a aceleração do motor, o tempo
certo para o acelerar e o parar, evitando que pedras grandes sejam sugadas e
danifiquem o equipamento etc.
Edu, um dos mais competentes garimpeiros em atividade em Monsenhor
Horta, descreve seu conhecimento do equipamento dentro da cava, mostrando
inclusive a sua liderança em relação aos demais:
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“Porque quando agarrou lá hoje, eu fui pegando a maraca porque o
Geraldo falou comigo "pega o jato ali" e ele foi falando assim "ô Vicente segura a maraca" ... e eu virei as costas para pegar o jato, que eu achei
que o Assis estava lavando no lugar errado. Aí eu senti a diferença no
motor, eu pelo menos que estou no garimpo há muito tempo, você conhece a rotação do motor quando muda. Aí eu senti quando a rotação
do motor mudou, aumentou mais a aceleração, aí eu fui e falei assim
"olha o som da maraca". Porque o meu sogro não tinha assim o jeito certo de acelerar o motor, aí eu fui e falei com ele "olha o meu sogro na
maraca" ali ele foi e falou assim "deixa eu puxar um pouco", aí eu fui e
não deixei não. Aí com um pouco ele parou, quando ele parou, eu vi que
tinha uma pedra agarrada que eu vi que ela não subia, não passava naquele cano chupão e a curva ele não estava passando, ela virava a
pedra, a pedra virava e deixava agarrar o material. Aí daquela hora em
diante nós paramos e tivemos que desmontar a maraca para retirar a pedra. E para você ver, foi tudo em quanto eu parei para pegar o jato,
afundei a maraca e deixei ele e o Vicente na maraca. Porque é igual eu
estou te falando, é eu que tenho que estar em cima, que tenho que saber tudo. É eu, o Geraldo e o Assis, porque eles estão aprendendo né só tem
duas semanas.”
A Apuração do Ouro
A última fase é a da depuração do ouro, ou seja, o processo de concentração,
de amalgamação do ouro com o mercúrio e de queima do material amalgamado. É
importante ressaltar que o emprego do mercúrio é relativamente recente nos
garimpos de Monsenhor Horta/Mariana. A sua introdução na região se deu
aproximadamente na década de 70, um pouco antes da introdução dos motores de
garimpo.
Esta fase tem início com a lavagem da caixa coletora. Este procedimento é
feito com o motor ligado, bombeando água para a caixa, enquanto um garimpeiro
puxa com uma enxada toda o material nela contido. Este material, que é o mais rico,
desce pela bica e o ouro é retido pelo carpete no fundo. Depois de limpa a caixa, faz-
se a remoção do carpete da mesa coletora. Este procedimento é feito normalmente
uma vez por semana, quase sempre no sábado, quando o produto do trabalho é
90
repartido entre as pessoas envolvidas na atividade. No entanto, caso o dono do
garimpo precise de dinheiro, eles “queimam” durante a semana. Normalmente
escolhem um carpete mais concentrado. Depois de removido, o carpete é levado
para uma pequena caixa, onde é lavado e batido várias vezes com o objetivo de
liberar o ouro fino nele aderido. O procedimento seguinte é o uso da bateia para
selecionar ainda mais o material que receberá o mercúrio. A forma de utilização da
bateia é a mesma empregada nos garimpos manuais, como já relatado. No entanto
não há a necessidade de que seja extremamente rigorosa para a liberação do
excedente, uma vez que, retirado o material mais pesado, introduz-se o mercúrio,
produto que reage com o ouro e forma um amálgama. Para a atividade, é uma
descoberta ímpar, uma vez que poupa muitas outras etapas da apuração.
Introduzido o mercúrio na caixa onde se encontra o material selecionado pela
bateia, é necessário imprimir movimentos giratórios para se garantir a certeza da
amalgamação. O amálgama, massa gelatinosa e porosa, é retirado e colocado em um
pano, que é torcido com a finalidade de liberar o excesso de mercúrio e transformar
o amálgama em um material mais rígido.
O processo que se segue, é a etapa mais perigosa de toda a extração: a queima
do amálgama formado por ouro e mercúrio, através do uso de um maçarico pelo
tempo de 15 a 20 minutos. Muitas vezes, a queima é feita em uma pequena fogueira
acesa nas proximidades da cava. O aumento da temperatura faz evaporar o mercúrio
e fica o ouro. Esta evaporação é extremamente danosa à saúde humana e ao meio
ambiente. A operação normalmente é feita pelo próprio dono do garimpo ou por um
garimpeiro por ele designado, uma vez que necessita do controle de toda a produção.
Isto significa, a priori, que os donos de garimpos têm maior possibilidade de
contaminação que os garimpeiros que estão dentro da cava extraindo o cascalho.
Uma das habilidades exigidas nesta fase é a seleção do material que será
amalgamado e a manipulação do mercúrio. Esta seleção, como foi descrito, é feita
com a bateia e requer a habilidade de sua manipulação. Quanto ao emprego do
mercúrio, é essencial o uso da quantidade certa para evitar desperdício. Além disso,
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sua aplicação só deve ser feita no final da apuração, sob pena de sua pouca eficácia
e, conseqüentemente, a perda de ouro. Nesta fase, outro elemento que compõe uma
série de saberes construídos no trabalho do garimpo é o ponto ideal da queima do
ouro. Nesta etapa, o mercúrio utilizado é totalmente separado, e requer um “golpe de
vista” e habilidades muito específicas para saber a hora certa de tirar o amálgama do
fogo e fazer assim, uma queima ótima.
Em alguns garimpos utiliza-se a retorta, um equipamento bastante simples,
mas extremamente útil para evitar a contaminação pelos vapores de mercúrio.
Consiste num vaso de gargalo estreito e curvo empregado para a destilação. No
garimpo, ela é utilizada nesta fase da extração. Sua principal função é permitir a
queima do amálgama ouro/mercúrio em circuito fechado, eliminando desta forma,
qualquer possibilidade de que os vapores de mercúrio contaminem o meio ambiente,
o homem e toda a cadeia alimentar.
Sua utilização é feita da seguinte forma: depois de lavado o carpete onde o ouro
se encontrava depositado, utiliza-se o mercúrio para a amalgamação, como foi
relatado. Pronto o amálgama, ao invés de queimá-lo no maçarico, como
normalmente é feito na maioria dos garimpos, ele é enrolado em um pedaço de papel
e colocado dentro da retorta, para evitar que o ouro fique retido no fundo. Fecha-se
o equipamento e este é levado ao fogo. Depois de 10 a 15 minutos, o mercúrio
começa a ser eliminado por destilação na sua forma líquida. Passados 30 a 40
minutos, o mercúrio já foi quase todo recuperado. Esta técnica gasta de 20 a 30
minutos a mais que a queima feita com maçarico. Após um determinado tempo de
esfriamento, abre-se a retorta e retira-se o ouro. Segundo o garimpeiro Edu, após ser
utilizado por sete vezes, o mercúrio perde o seu poder de amalgamação; para fazê-lo
retornar o seu potencial, álcool e limão lhe são adicionados.
A utilização da retorta não tem o poder de fazer aumentar a produção; contudo,
constitui uma nova forma de garimpagem, menos degradadora em termos
ambientais, pois elimina completamente o risco de contaminação por mercúrio.
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A atividade garimpeira gera riscos sempre crescentes aos trabalhadores.
Aliás, todas as três fases descritas da atividade contêm elementos de periculosidade
com os quais os garimpeiros são obrigados a conviver, diariamente. Estes riscos
estão descritos de forma minuciosa num quadro elaborado pelos médicos e
pesquisadores CÂMARA & COREY no livro: “O caso dos garimpos de ouro no
Brasil.” (Vide Anexo).
4. A Organização do Trabalho na Atividade Garimpeira
A Sociologia do Trabalho, clássica, ensina que as ações de trabalhadores no
seu dia a dia acontecem dentro de sistemas de relevância, tais como: gestão, divisão
do trabalho e remuneração. O conceito chave desta disciplina é o da relação social
do trabalho, que é a maneira pela qual o relacionamento entre o trabalhador e o seu
trabalho é gerenciado (Dwyer 1993). Nela, as definições dos sistemas de relevância
têm a indústria como ponto de partida, no entanto, estes sistemas já estavam
presentes nos trabalhos artesanais. A gestão do trabalho no garimpo será a primeira a
ser abordada.
4.1. A Gestão no Trabalho Garimpeiro
No trabalho artesanal, o controle da atividade era submetido aos produtores,
aos quais estavam ligados o conhecimento tradicional e as perícias dos ofícios. Tão
logo os artesãos se reúnem, surge o problema da gerência em forma rudimentar
(BRAVERMAN, 1974). Assim, até mesmo um grupo de artesãos atuando
independentemente, exigia uma coordenação. As fábricas surgiram requerendo a
mistura, muitas vezes complexa, de diferentes tipos de trabalho. Eram demandadas
funções de concepção e de coordenação, e esta assumia a forma de gerência. O
capitalista, em função da propriedade do capital, assumiu essas funções, visando a
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impor aos trabalhadores as suas vontades. Criadas as novas relações sociais de
produção, os capitalistas se viram diante de problemas de administração e buscaram
uma teoria e prática da gerência, que teve em Taylor seu principal expoente, no final
do século XIX. O conceito fundamental para se entender a gestão do trabalho é o de
controle. Ele está presente nos sistemas gerenciais e é elemento essencial para a
compreensão das novas relações sociais, surgidas com a aglomeração de
trabalhadores na realização de uma determinada tarefa.
O que identifica o dono de garimpo é a propriedade dos motores.
Normalmente, ele não só trabalha ativamente nas cavas de extração, como também
participa, com outros trabalhadores, das demais funções da atividade; cabe a ele
entretanto, a coordenação de todo o trabalho. Esta diferenciação se expressa tanto
nas pequenas decisões cotidianas, quanto na escolha dos locais de extração e nas
divisões do produto. É importante ressaltar que os garimpeiros quase nunca têm
salários fixos, e a renda depende diretamente da quantidade de ouro extraído.
A relação do dono do motor com os demais garimpeiros é normalmente
amistosa, caracterizada mais como uma parceria do que uma relação formal entre
trabalhador e empregado. Este fato é notado na própria justificação da escolha do
garimpo como profissão, ou seja, uma certa sensação de liberdade que esta atividade
provoca: a de trabalhar sem possuir um patrão. Nenhum garimpeiro se considera
empregado de outro. Neste sentido, percebe-se que, diferentemente das análises
clássicas da gestão do trabalho, o controle não é um elemento fundamental no
garimpo, seja em relação ao dono seja em relação à gerência.
O garimpeiro Gustavo, dono de garimpo, explica como é a gestão do trabalho
na atividade:
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“No garimpo, se você exigir muito, você acaba prejudicando a turma,
sabe. Você tem que deixar. Você não pode ser muito enérgico no garimpo
não, se não você perde os companheiros. Tem que trabalhar em parceria, não adianta você querer tirar muito de um, o cara pega serviço 7 horas,
aí quer ir até 7 da noite, até oito. Isso aí é explorar o trabalhador. Tem
que deixar o camarada trabalhar de acordo com o corpo dele né. Igual no meu caso, no meu caso lá, quando eu trabalhava com a turma lá nós
pegava 5 horas, meio dia a gente tava liberado, não trabalhava sábado”
Ou como diz o jovem garimpeiro Noé, também dono de
garimpo: “A gente só fala com eles assim "oh gente vocês vão fazer isso, isso e isso e vamos pegar junto para ver se dá resultado" para não precisar de
ninguém ficar pegando no pé de ninguém”
E o garimpeiro Totonho, falando sobre o dono do garimpo onde trabalha:
“Ele é dono mas ele não gosta que chame ele de dono que ele fica bravo. Não é só porque ele é dono ele manda sozinho, sempre ele pede opinião
da gente no que vai fazer.”
Estes relatos são muito significativos sobre a forma como se dá a gestão do
trabalho no garimpo. Pelas próprias características deste tipo de atividade, não
existe um controle e nem uma rígida determinação de tarefas. O que ocorre é que os
donos dos motores, normalmente os garimpeiros mais experientes, orientam os
outros na direção em que se deve investir mais. Desta forma, o dono divide a
responsabilidade das principais decisões com todo o grupo, o que normalmente
acontece, uma vez que todos têm interesse no sucesso da extração.
Na montagem de um garimpo é o dono do motor que normalmente convida
três ou quatro trabalhadores para montar um grupo. Esta escolha tem como critérios
a experiência, a honestidade e uma certa disposição, motivação e crença na
descoberta do ouro, demonstrada pelo trabalhador. O último critério é essencial, pois
tal atitude estimula os demais a acreditarem e a se empenharem na atividade.
A motivação dos trabalhadores é um dos elementos essenciais para a coesão
do grupo. Nos momentos em que se encontra pouco ouro, e o capital vai acabando,
muitos garimpeiros desanimam e isso desmotiva os outros. Este fato pode ser um
95
dos fatores de exclusão do trabalhador do grupo. Normalmente, para que continuem
unidos, o elemento desestabilizador deve sair. Como relata o garimpeiro Juscelino:
“Ah se vê que o camarada tá com má vontade sem vontade de trabalhar
e ainda tá desanimando ainda os companheiro aquilo ali então o camarada num tá afim mesmo de trabalhar, então a gente acha que
quando a pessoa tá assim ela não precisa nem de ir no garimpo.”
Nos momentos de pouca extração, alguns estímulos são dados aos
trabalhadores para que estes não busquem outros garimpos que estejam extraindo
mais. Estes estímulos vão desde uma porcentagem maior para os trabalhadores até a
permissão para que eles utilizem todo o equipamento em um dia da semana para a
extração, sendo o gasto efetuado de total responsabilidade dos mesmos, como
também, todo o lucro obtido.
O fundamental nesta relação é o pacto de confiança mútua que se estabelece
entre eles. Qualquer fator que quebre a confiança é motivo para a exclusão de um
determinado elemento do grupo, ou, muitas vezes, de dissolução do próprio grupo.
Os trabalhadores entram no grupo somente com a sua força de trabalho, não tendo
nenhum compromisso com os gastos que o garimpo demanda. Normalmente, 20%
do total de ouro extraído semanalmente fica com os garimpeiros, que participam do
grupo somente com o seu trabalho; 80% fica para o dono dos motores, que assume
toda a responsabilidade da atividade, ou seja, os gastos com combustíveis,
lubrificantes, peças etc. É importante ressaltar que o número de membros em cada
garimpo é variável.
Muitas vezes, os garimpeiros preferem que o dono não fique presente o
tempo todo dentro da cava. Este fato demonstra uma certa necessidade de
autonomia do grupo, que tendo também suas próprias intuições e conhecimentos,
está ávido para pô-los em prática; e muitas vezes eles não são compatíveis com os
dos donos do empreendimento. Na verdade, no garimpo, cada trabalhador possui o
seu conhecimento e todos têm o direito de dizê-lo e de colocá-lo em prática, ou pelo
menos, os mais reconhecidamente experientes. Assim, a determinação ou opinião do
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dono do garimpo não é necessariamente seguida todo o tempo. No entanto, alguns
donos de garimpo fazem questão de ficar presentes o tempo todo e em todo o
processo extrativo, como demonstra o garimpeiro Edu:
“Quando eu estou lá dentro do buraco parece que eles trabalham
melhor, porque tem hora que um para, põe a mão nas cadeiras e ficam
assim olhando e quando eu estou lá embaixo, aí eles ficam doido, um tira pedra, o outro corta o barro e o outro segura o jato. Comigo lá dentro
funciona melhor. Mas eu converso com eles normal, brinco muito com
eles, só que eu trabalho mais sério porque se eu brincar com eles lá dentro aí eles começam a brincadeira demais né, aí eu olho pra ele mais
sério.”
No trabalho garimpeiro, a experiência, o conhecimento e o saber-fazer são os
principais fatores de distinção hierárquica. Dentro da cava, os mais experientes
normalmente são os mais ouvidos. No entanto, como se verá mais adiante, a
hierarquia no trabalho não influencia e nem é influenciada pela divisão das tarefas
dentro da cava. Os donos dos motores normalmente escolhem o mais experiente ou
o que tem mais tempo de trabalho no grupo para ser o “braço direito”, ou seja, uma
espécie de gerente da atividade na ausência do dono do garimpo. A escolha de um
“braço direito” está ligada, com certeza, ao intenso sentimento de desconfiança
característico deste trabalho.
O papel deste gerente não difere muito da função do dono dos motores. Ele é
responsável, nos momentos em que o dono não está presente no garimpo, por
coordenar, orientar e fiscalizar as atividades do trabalho. Em alguns garimpos, a sua
porcentagem de ouro não é diferente da dos demais trabalhadores, mas
normalmente ele recebe um pouco mais.
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4.2. A Divisão do Trabalho na Atividade Garimpeira
Segundo MARGLIN (1980), a divisão social do trabalho caracterizada na
especialização de tarefas não é produto das sociedades industrializadas, mas sim
uma característica de todas as sociedades complexas. Naquelas onde prevalecia o
sistema corporativo, já existia uma divisão controlada por especialistas. No entanto,
ela sucumbiu à divisão do trabalho do tipo capitalista, aparentemente pensada, não
só como uma forma de aumentar a eficiência do trabalho, mas principalmente, para
garantir ao empresário maior controle e coordenação do processo de produção.
Assim, a divisão do trabalho, imposta pelo planejamento e controle, funciona como
um instrumento de hierarquização social.
Com o parcelamento do trabalho foi criada uma especialização; com isto
obteve-se uma produção quantitativamente maior e qualitativamente melhor.
Entretanto, o efeito desta divisão foi a destruição dos métiers pela perda do saber
dos trabalhadores através da excessiva especialização, o que não acontecia nos
sistemas corporativos. Desta forma, o trabalhador tornou-se inapto a acompanhar o
processo completo da produção.
No entanto, ainda existem atividades em que a divisão não aconteceu de
forma rígida, e que são similares às formas de trabalhos cooperativos. Pode ser
citado, além dos garimpos semimecanizados, o caso da construção civil tradicional.
Nestas duas atividades, apesar de haver uma divisão de tarefas, ela não é muito
rígida, e ainda permite que os trabalhadores acompanhem o processo completo da
atividade.
A divisão do trabalho talvez tenha sido o elemento que mais sofreu alterações
na atividade garimpeira semimecanizada. Uma nova variedade de funções passou a
ser exigida e com ela, novos conhecimentos e habilidades.
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As funções foram completamente alteradas: surgiram grupos fixos de
garimpeiros, normalmente trabalhando com os donos dos motores e recebendo uma
porcentagem do total de ouro extraído em um determinado tempo de extração. Com
a introdução dos motores, quase desapareceu aquele garimpeiro isolado que, sozinho
ou com alguns membros de sua família, ia para as margens dos rios tentar a sorte na
garimpagem manual. Estes, em sua maioria, foram absorvidos pelos novos grupos
de garimpagem, utilizando o saber adquirido no processo anterior.
A introdução dos motores de garimpo no processo de extração fez com que a
atividade se tornasse mais complexa. Apesar de exigir um menor número de pessoas
trabalhando, estas, agora, precisam possuir um conhecimento de mecânica, pois,
caso os motores estraguem, os consertos podem ser mais rápidos, sem prejuízo para
a extração. Ou seja, com a entrada dos motores de garimpo, foi exigido do
trabalhador habilidade para operar os equipamentos.
Os que resistiram a se adaptar às novas técnicas, acabaram abandonando a
atividade ou insistindo em trabalhar solitariamente. Mas um fato é certo: o ouro de
superfície, principal alvo dos mineradores manuais, foi quase esgotado devido aos
vários anos de extração feita pelos motores ou mesmo pelas grandes empresas de
mineração.
No entanto, estas mudanças não melhoraram as condições de trabalho no
garimpo. O tempo diário de atividade, a que estão submetidos os garimpeiros de
Monsenhor Horta, não difere muito da média geral dos brasileiros; a grande maioria
trabalha mais de 9 horas por dia no garimpo. Quase todos têm um dia de folga
durante a semana e poucos desenvolvem outra atividade além do garimpo. As
péssimas condições de trabalho se revelam mesmo no ambiente da atividade.
A totalidade dos garimpeiros de Monsenhor Horta não utiliza equipamentos
de segurança, tais como botas, luvas, etc. Tendo em vista a periculosidade do
trabalho, isto se torna um grave problema. A esta periculosidade deve-se somar,
além das contaminações pelo mercúrio, pois a grande maioria não utiliza a retorta,
os altos índices de contaminação por microorganismos do Ribeirão do Carmo que
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recebe diretamente todo o esgoto da cidade de Mariana e de Monsenhor Horta. O
ribeirão contribui para o surgimento de um grande número de doenças, tais como: a
esquistossomose, a gastroenterite e outros tipos de doenças de veiculação hídrica.
Um grande risco também presente são os deslizamentos dos barrancos que podem
soterrar os trabalhadores que estão dentro da cava realizando a extração. Este tipo de
acidente, apesar de não ser muito comum, já aconteceu algumas vezes. A
justificativa para a não utilização dos equipamentos de segurança é a de que eles
atrapalham a mobilidade dentro da cava. Outros não acham importante ou mesmo
necessário.
Atualmente, os garimpos semimecanizados de Monsenhor Horta possuem uma
diversidade de funções muito maior do que no processo anterior. As principais
funções exercidas nos garimpos são:
1) Maraqueiro: opera a maraca, ou seja, o sugador do cascalho. Sua função é
conduzir a maraca para que aspire a maior quantidade de cascalho possível e
evitar que pedras muito grandes sejam sugadas e a danifiquem.
2) Galfiador: tem a função de retirar, com um garfo, as pedras maiores dos locais
onde a maraca está agindo.
3) Jateador: opera um jato d’água extremamente possante que fura o solo,
permitindo a extração em maiores profundidades.
4) Lavador: executa a lavagem do carpete onde se encontra o ouro em forma de pó.
Normalmente é ele quem introduz o mercúrio para a elaboração do amálgama.
5) Operador: opera os motores de extração e controla a sua aceleração. Esta função
requer grande atenção, uma vez que a potência do motor deve ser diminuída caso
uma pedra grande seja sugada pela maraca.
6) Atirador de pedras: retira da cava as pedras que estão no solo.
7) Puxador: auxilia, com uma enxada, o jateador no processo de desmonte dos
barrancos.
8) Queimador: responsável pela queima do amálgama e pela apuração do ouro.
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No processo mecanizado, que normalmente é formado por grupos de 5 a 10
pessoas, cada garimpeiro, em determinado momento, é responsável por uma função.
Dentro do garimpo mecanizado não existe a especialização de determinado
trabalhador para o desempenho de uma única função. Todos os trabalhadores que
estão dentro da cava se revezam nas tarefas. Tal fato pode ser percebido nas falas
dos irmãos garimpeiros Totó e Noé, sócios em um garimpo:
“Assim preferência certa não tem, pra mim tanto faz. Por exemplo se tem uma turma com 5 trabalhador e tiver dando saída, qualquer coisa eu
faço, aí só revezando de vez em quando pra um descansar o outro, uma
coisa assim.”
Ou:
“não tenho preferência, qualquer coisa eu faço, mas o que eles falam que tem muita gente que gosta, só que eu não gosto porque molha mais é o
jato. Mas eu não tenho preferências não, qualquer um é isso mesmo.”
Alguns experientes donos de garimpo demonstram a preferência por exercer as
tarefas que exigem maior habilidade durante o processo, como a manipulação da
maraca e do jato. O experiente garimpeiro Edu explica a sua preferência:
“Eu gosto de ficar na maraca porque eu acho que na maraca eu controlo
melhor o acelerador. O Geraldo mesmo gosta que eu trabalho no jato
porque quando ele está na maraca e o Assis está no jato, o Assis molha ele. E se eu estou no jato e o Geraldo na maraca eu não gosto de molhar
ninguém, então diz que tem que ter um padrão para tudo né? Então essa
é a forma de segura o jato, se não souber bate no barro duro ou em uma pedra, espirra água para traz e molha o companheiro todo. E eu nisso aí,
eu seguro o jato, levo a mão na água para não molhar os companheiros
e vou cortando o barro sem que pegue neles porque eles acham ruim. No entanto quando respinga água no outro, o outro fala "foi mal aí" mas
você vê que o outro fica contrariado”
No entanto, alguns donos, ou representantes destes, podem determinar as funções
que cada um deve exercer, dependendo do tipo de material que está sendo extraído.
Isto se dá especificamente em relação à operação da maraca que, segundo eles, exige
uma habilidade maior e é um fator determinante para o sucesso da extração.
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O garimpeiro Edu, dono de um garimpo, demonstra a sua habilidade falando
como determina quem deve realizar tal função em determinado momento:
“Eu escolho dois que trabalha melhor na maraca, porque o ouro ele
sendo fino, o motor tem que trabalhar numa rotação só porque se ele ficar repicando o acelerador do motor, ele sendo fino, ele não pára no
carpete, ele desce muito. Então eu escolho ou eu, ou o Assis ou o Geraldo
para trabalhar na maraca, porque aqueles dois que eu arrumei, o Vicente nesse ouro assim mais fino, eu não gosto que eles trabalham na
maraca, porque eles trabalham repicando o acelerador, aí o ouro vai
embora.”
A divisão das tarefas no garimpo exige uma interdependência entre os
trabalhadores para que haja uma certa sincronia nas operações. Esta se dá
principalmente entre o jateador e o maraqueiro. O jateador deve mandar a
quantidade certa de material, evitando o acúmulo na boca da maraca; assim, a
comunicação entre eles é fundamental. Em alguns grupos nota-se que maraqueiro e
jateador estão sempre juntos; inclusive este par pode ser determinado pelo próprio
dono do garimpo, visando a uma agilidade maior nos trabalhos.
Como já foi dito, existe uma grande rotatividade nas tarefas do garimpo; no
entanto, um fato é certo: o garimpeiro mais inexperiente ou o iniciante no garimpo
raramente opera a maraca, pois esta função exige uma habilidade maior no controle
do acelerador, e que, somente pode ser adquirida com um tempo de experiência. O
jato é outra função que raramente é atribuída aos mais inexperientes, uma vez que,
além de não dominarem exatamente os lugares para onde se deve direcioná-lo,
molham os outros trabalhadores, fato que não é bem visto pelo grupo e passível de
advertência. Normalmente, os mais inexperientes, na maioria das vezes, realizam a
função de atirar pedra, a que menos exige um conhecimento específico.
A atividade garimpeira realizada mecanicamente também possui características
externas que influem na divisão do trabalho, como por exemplo, o caráter ilegal da
atividade. Este fato exige uma organização muito específica dos trabalhadores. O
medo da aparição dos órgãos fiscalizadores, principalmente da Polícia Militar, faz
com que se tenha uma característica de trabalho muito eficiente. É necessário
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trabalhar o máximo possível, pois caso haja autuação da Polícia, os equipamentos
são apreendidos, impossibilitando, por algum tempo, o trabalho de extração.
Como é possível perceber, ocorreu um grande aprofundamento na divisão do
trabalho quando se compara a extração feita antes e depois da utilização dos motores
de garimpo. No entanto, a semimecanização na atividade garimpeira, tanto em
Monsenhor Horta como na região amazônica,38
embora pudesse substituir a força de
trabalho em larga escala, não provocou o desemprego dos garimpeiros, antes
alocados nos garimpos manuais. O que se pôde perceber na região é a gradual
diminuição do número de garimpeiros em atividade; no entanto, este fato está ligado
ao crescente esgotamento do ouro após tantos anos de extração ininterrupta.
4.3. A Remuneração na Atividade Garimpeira.
Na sociologia do trabalho, o salário é a referência fundamental para o estudo
da remuneração, sendo o trabalho entendido como uma relação de troca, ou seja, o
uso da força de trabalho tem como contrapartida uma retribuição. Segundo
NAVILLE (1962), as escalas de avaliação do valor do trabalho, cujos critérios são o
interesse, a satisfação, o prestígio ou o status, derivam dos cálculos do grau de
utilidade dos bens. Desta forma, o salário é entendido como uma forma de
retribuição ao trabalho que pesa sobre toda a existência dos indivíduos que dele
vivem, e sua incidência atinge um domínio que ultrapassa o do trabalho. O salário é
uma remuneração direta do trabalho prestado; sendo assim, não varia com o preço
do produto obtido, mas é estabelecido segundo características internas desta
prestação de serviço, como a qualificação.
No garimpo temos uma realidade diferente. O salário não é a forma de
remuneração, mas sim o resultado da divisão, por cotas, do produto extraído. É na
divisão do produto final do trabalho que se torna mais nítida a hierarquia da
103
atividade. Os donos dos motores têm uma porcentagem muito maior, cabendo-lhes a
média de 50 a 60% do total de ouro extraído. Estas quantias, no entanto, são
extremamente variáveis, não exigindo um padrão rígido para a divisão do produto.
Normalmente os grupos de garimpagem têm em média de quatro a seis
garimpeiros. O dono do garimpo, ou seja, o dono do motor, é o responsável por toda
a atividade. Os outros garimpeiros entram somente com a força de trabalho. Assim, é
do dono toda a responsabilidade pelo custo da atividade, tais como a manutenção do
equipamento e o combustível utilizado; normalmente 75% do total de ouro extraído
na semana é seu. Os outros 25% são divididos entre os trabalhadores, 5% para cada
um. No entanto, estas cifras são extremamente variáveis, não existindo rigor na
divisão entre os garimpos da região. Um fator que pode exercer influência na divisão
do ouro encontrado é a porcentagem paga ao dono do terreno onde está situado o
garimpo, ou ainda uma cota maior ao encarregado ou “gerente” do grupo.
A divisão do produto, no entanto, não segue um padrão muito rigoroso, como
demonstra o relato do garimpeiro Edu:
“Semana passada nós fizemos 23 a 25 gramas, para eles na lógica a porcentagem normal seria 5%, então daria 1 grama e 3 décimos e eu
tirei para eles em torno de R$24,00 para cada um. Eu tirei R$24,00 na
quarta porque quinta-feira eu não trabalhei, aí eu tirei R$24,00 para cada um deles e quando foi no sábado que eu calculei deu 3 gramas e 8
décimos e eu tirei para eles mais R$10,00. Quer dizer, eu dei muito mais
do que a porcentagem do que devia dar. Aí as vezes se o ouro der 50 gramas eu costumo tirar para eles quase 5 gramas para cada um, quer
dizer, aí eu estou dando quase a meia.”
Mas a característica fundamental da atividade é o seu caráter de incerteza
quanto ao resultado da extração. Durante o trabalho, nunca se sabe exatamente a
quantidade de ouro que está sendo extraída. A incerteza pode ser um fator de
desânimo, para aqueles grupos que, envolvidos no trabalho, demoram a encontrar
ou até mesmo não acham o tão pretendido metal. No entanto, estas incertezas não
são, pelo menos para a maioria, suficientes para desestruturar um grupo de
38 Ver Cleary (1990)
104
trabalhadores que ainda prefere esse tipo de recompensa ao salário fixo. Sobre estas
incertezas e as vantagens do garimpo, Edu explica:
“Eu acho assim que quando costuma chegar um dia que eu tirar num dia
100 gramas, costuma você ganhar o que você perdeu em 3 a 4 meses ali.
Agora costuma você em uma semana ganhar, tirar um lucro do que
faltou em 1 ano. Aí só com uma semana você recupera um ano perdido,
aí até para eles (os trabalhadores) é muito melhor do que se eles estivessem fichado. Para eles que no garimpo eu acho mais vantajoso
porque assim costuma chegar aí dentro de 1 mês, se deixar, se tivé bom
costuma com 1 semana eles fazerem aí 200, 300 reais”
No entanto, nem todos os garimpeiros têm essa visão otimista sobre os lucros
do trabalho no garimpo. O garimpeiro Juscelino revela porque acredita ser melhor
receber um salário fixo:
“porque o salário pode ser pouco mais você tem a certeza que todo mês
ele vai vim, né. Agora o ouro, cê tá alí, ce num sabe quando você tá nele,
e amanhã ele pode acabar, é uma coisa incerta e a gente tá alí, porque, é porque não tem outra atividade mesmo”
Contrariando a tendência ao assalariamento apontado por CLEARY (1990), nos
garimpos pesquisados não foi encontrado nenhum tipo de trabalho assalariado.
Segundo PEREIRA (1990), tal interpretação feita por Cleary se deveu ao fato de sua
observação ter se limitado a uma região de garimpo fraco, de ocupação agrícola
antiga e com particular interação entre o garimpo e a lavoura. Os assalariados que
Cleary observou eram, de fato, camponeses sem tradição e com incursões
esporádicas no garimpo como forma de complementação de renda; para estes, o
sistema de porcentagem não é interessante.
A totalidade dos garimpeiros de Monsenhor Horta trabalha exclusivamente no
garimpo. Nas épocas em que há excesso de chuva ou pelo contrário, um longo
período de escassez, o grupo se desfaz e os garimpeiros buscam outras fontes de
renda. As atividades mais procuradas são os trabalhos agrícolas, área em que ainda é
possível encontrar emprego na região. No entanto, ficam esperando uma nova
oportunidade para retornarem ao garimpo.
105
O aumento no valor do capital necessário à lavra semimecanizada reduziu a
parcela dos ganhos auferidos pelos trabalhadores. No entanto, não foram encontrados
nas observações feitas e nem na literatura indícios de que os ganhos individuais
absolutos tenham se reduzido, uma vez que a produtividade média aumentou.
Com certeza a mobilidade social foi reduzida em função da demanda de maior
capital, para a posse de um garimpo semimecanizado, no entanto, ela não deixou de
existir. Neste sentido, segundo estudos de PEREIRA (1990), na região amazônica
não é muito diferente de Monsenhor Horta:
“A chance de um garimpeiro porcentista alçar à condição de dono de garimpo é ainda muito maior que, por exemplo, a de um diarista na
agricultura se tornar médio ou a de um operador de moto serra alcançar
a posição de dono de uma serraria ou, ainda a de um operador de “sonda banka” montar a sua própria empresa de mineração” PEREIRA
(1990 : 210)
4.4. O Caráter Ilegal da Atividade
Uma característica marcante da organização da atividade garimpeira em
Monsenhor Horta é a ilegalidade que ainda gera um medo constante de repressão e
requer das pessoas envolvidas, uma organização muito peculiar. O garimpo, como
visto no primeiro capítulo deste trabalho, desde o seu surgimento tem como
característica ser uma atividade ilegal, o que pode ser percebido na própria origem
da palavra garimpeiro. A legalização deste tipo de atividade esbarra sempre na
burocracia do Estado. Quase sempre os terrenos, onde são realizadas as extrações,
são áreas já requeridas junto ao DNPM por grandes empresas. Estas, por não se
interessarem pelas áreas de pequenas jazidas, abrem espaço aos pequenos
empreendimentos. Assim, o dono do terreno também comete o delito de arrendar,
para a garimpagem, o subsolo que pertence à União e que deve ter licença do DNPM
(Departamento Nacional de Produção Mineral) para exploração; o que ele não faz.
106
Muitas vezes os proprietários de garimpo escolhem um determinado terreno para
abrir uma cava, dependendo do valor cobrado pelo proprietário da terra para a sua
utilização. Desta forma, ambos, garimpeiros e proprietários, estão na ilegalidade;
entretanto, somente o garimpeiro é vítima do poder repressivo da Polícia Florestal.
Quando em Monsenhor Horta se fazia uma garimpagem manual, usando
somente ferramentas e sendo o uso do mercúrio muito raro, era incomum a presença
de órgãos fiscalizadores. As transformações técnicas ocorridas na década de 80
aumentaram o potencial lucrativo da extração, todavia a degradação ambiental se
tornou visivelmente mais forte, o que intensificou a coerção exercida.
A questão ambiental é sem dúvida fundamental para se entender atualmente
a ilegalidade e a intensificação da fiscalização da atividade garimpeira, tal como
ocorre em Monsenhor Horta. Com o surgimento de uma consciência ecológica no
país, o garimpo de ouro passou a ser um dos principais vilões do meio ambiente, um
mal que, no mínimo, deve ser controlado. No início da década de 80, quando os
garimpos semimecanizados começavam a se espalhar, o Brasil foi alvo das atenções
internacionais devido ao desmatamento da Amazônia e, também, às imagens
chocantes das condições de trabalho dos garimpeiros de Serra Pelada. A mídia
brasileira e mesmo a internacional, apoiada pelos ecologistas, ainda que sem a
intenção de fazê-lo, apontou os culpados pelas degradações ambientais. Os
garimpeiros estavam entre eles e foram responsabilizados pela grande contaminação
mercurial e pela destruição das sociedades indígenas.
“Nas manchetes dos jornais e nas reportagens da televisão, entre 1987 e
1992, o garimpo e os garimpeiros surgiram como símbolo privilegiado
do Brasil arcaico que se deve deixar para trás, em razão das características da ordem moderna deste fim de século, que se pretende
ecocapitalista. A atividade garimpeira passou a ser considerada na
contra mão da história. Para a opinião pública, o que ela tem a oferecer não é considerado suficientemente valioso em vista do que ela destrói.”
MARTINS (1997: 98)
Esta visão do garimpeiro degradador, formada a partir dos garimpeiros da
Amazônia e também dos garimpos de grande porte como os de Serra Pelada e
107
Poconé, foi difundida para o mundo todo e, logicamente, para todas as áreas de
garimpo no Brasil. As ações de denúncia realizadas pelas organizações civis
passaram a ser constantes. Em Minas Gerais, destacam-se as ações promovidas pela
AMDA (Associação Mineira de Defesa do Meio Ambiente) e pela FEAM
(Fundação Estadual do Meio Ambiente). Desta forma, quase todas as regiões
tradicionais de garimpagem de ouro e de diamantes foram vítimas de constantes
denúncias aos órgãos públicos. Antes de existirem órgãos específicos de
fiscalização, como é o caso da FEAM, essas regiões sofriam apenas as violentas
ações da Polícia Florestal.
Neste contexto, foi realizado em Belo Horizonte em 1985, coordenada pelo
então Secretário de Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente, Otávio Elísio Alves de
Brito, um ciclo de debates entre ambientalistas e agentes mineradores sobre os
problemas da atividade mineradora em Minas Gerais. A conclusão, nas palavras de
Lobato, foi a “de que o garimpo artesanal ou manual não seria fator de degradação
ambiental, ao contrário do garimpo semimecanizado e da ação das grandes empresas
de mineração. (Essa tese foi defendida pelos representantes dos garimpos da região
de Teófilo Otoni.)” MARTINS (1997)
Atualmente, o garimpo é fiscalizado pela Polícia Florestal, que atua
ocasionalmente apreendendo motores e, muitas vezes, prendendo os reincidentes.
Em Monsenhor Horta, este ambiente de tensão exige uma organização complexa e
um alto grau de cooperação entre os garimpeiros, objetivando burlar as leis e manter
a clandestinidade. Consolidou-se entre os garimpeiros e a comunidade uma
cumplicidade que faz com que todos os garimpos sejam informados da presença
desse órgão na região. Em tempos de maior concentração de garimpeiros, um deles
atua como vigia; com motocicleta, percorre a estrada de acesso ao distrito,
recebendo por esta função a mesma porcentagem de ouro atribuída aos demais.
Outros meios também utilizados com o mesmo intuito são a queima de fogos de
artifício, e o uso de telefones celulares. Esta solidariedade é estimulada, na região,
pelo caráter mais fixo da atividade, que favorece o estabelecimento de vínculos
108
estáveis e duradouros, necessários à cristalização destes modelos tradicionais de
atividade. No entanto, esta cumplicidade é um fato recente na região; segundo
alguns garimpeiros, na época em que o garimpo era exclusivamente manual, tal fato
não ocorria, como demonstra o experiente garimpeiro Gustavo:
“Garimpeiro nunca foi unido. Agora é que tá unido, garimpeiro não tinha união não, um vez eu fui multado aí o cara viu primeiro que eu e
veio para ver a polícia me pegar, não tinha união né. Garimpeiro não
tinha união. Pegava ele lá, o cara vinha para ver a polícia pegar o outro companheiro. Eu mesmo fui pego ai desprevenido, o cara escondeu para
ver a polícia me pegar, atualmente nós somos mais unidos. Às vezes a
gente fica sabendo quando eles vem, porque sempre tem um camarada, tem uns policiais camaradas. O cara não quer ver você preso. Tem muito
polícia que é camarada”
Como em toda atividade do setor informal, a sonegação fiscal é uma regra no
garimpo. Assim, a atividade garimpeira é reprimida tanto por ser degradadora do
meio ambiente, como por fazer parte do setor informal, não participando da
arrecadação tributária do Estado.
O que se percebe é que todos os garimpeiros reclamam da atuação da polícia
na região. Estas reclamações se referem principalmente ao tipo de abordagem
realizada, particularmente após o início da mecanização, como explica mais uma
vez o Sr. Gustavo:
“Hoje melhorou, porque no começo aí, a polícia vinha para destruir,
dando tiro né, passando o tempo eles viram que o garimpeiro não era o bicho que eles pintavam né. Eles achavam que o garimpeiro tava
armado, que ia enfrentar a polícia com arma, eles vinham para quebrar
mesmo. Não tinha chance de ficar nada não, hoje não, hoje eles estão
mais calmo com a gente. Agora, antes dos motores eles não amolavam não.”
O que muitas vezes acontece é a não compreensão, por parte dos
garimpeiros, dos reais motivos pelos quais o garimpo é ilegal. Definitivamente, a
questão ambiental não se constitui um verdadeiro problema para eles, assim como
os riscos causados pela utilização do mercúrio, como demonstra o garimpeiro Totó:
109
“às vezes eles falam assim por exemplo, que eles vem alegando tal certa
degradação de ambiente e às vezes a gente acaba reconhecendo que na
hora está tendo, tem sim degradação do meio ambiente com certeza mas às vezes na hora acaba tendo mas então tudo é uma questão de tempo
por exemplo se você está trabalhando hoje num certo local por exemplo
a margem de um rio aí quando chega o mês da chuva eu posso fazer aquele buraco ali, quando chegar o mês da chuva aquilo ali tampa
tudo.”
Argumento como este do senhor Gustavo é típico de um garimpeiro revoltado por
ver o seu trabalho ser perseguido pela polícia, sem entender a necessidade de tal
ação:
“Eles deixa de pegar um assaltante que tá roubando aí, um assassino
para poder pegar o garimpeiro, né? Que tá aí ganhando o pão de cada dia aí, acontece isso.”
A ação da polícia gera um sentimento de revolta, compartilhado por todos,
principalmente nos momentos em que chega e apreende os motores. Muitas vezes
alguns grupos, durante a escolha do local da extração, já levam em conta o caráter
ilegal, optando pelas áreas de mais difícil acesso.
Na região de Monsenhor Horta, alguns grupos escolhem trabalhar em
terrenos de companhias que exploram carvão mineral. Esta escolha é justificada
pela inexistência da porcentagem obrigatória para o dono do terreno, além de maior
segurança, pois segundo eles, essas companhias também realizam uma atividade
clandestina e não teriam o interesse em denunciá-los. No entanto, a perseguição
passa a ser não somente da Polícia, mas também dos próprios vigias destas
empresas. Conforme alguns garimpeiros, esses vigias são delatores e exercem uma
enorme pressão para que eles saiam dos terrenos; muitos denunciam os garimpeiros
à Policia, sem maiores danos às empresas.
110
4.5. As Relações de Confiança na Atividade Garimpeira
No garimpo a confiança tem uma importância fundamental. Ela é, sem
dúvida, um dos fatores estruturantes das relações sociais no trabalho. Muitas vezes,
sua necessidade faz com que a atividade se organize em grupos familiares, como
tentativa de diminuir o sentimento de desconfiança tão presente nessa atividade. As
próprias características da atividade fazem com que as relações de confiança
adquiram esta importância tão fundamental: ilegalidade, ausência das garantias da
regulamentação estatal e produto do trabalho extremamente valioso. A ausência de
garantias formais de direito faz com que toda a atividade se estruture no sentido de
estabelecer redes de confiança de natureza eminentemente personalizadas. Nesta
rede, estão todos os envolvidos direta e indiretamente na extração: o fazendeiro, que
ilegalmente permite a extração em suas terras e recebe uma porcentagem do ouro
extraído, o comprador de ouro que leva o mercúrio para os garimpeiros, e a
comunidade, que informa aos garimpeiros a chegada da polícia na cidade.
Os grupos de garimpo em Monsenhor Horta normalmente são formados de 3
a 4 irmãos ou parentes próximos, que contratam informalmente outros trabalhadores.
Segundo o garimpeiro Totó, o garimpo:
“Se trata de uma sociedade praticamente familiar, porque você vê que
entre irmão é uma coisa que como se diz que garimpo dá muito
desentendimento porque às vezes uma pessoa trabalha mais que a outra,
outra já fica mais na mordomia e é um tipo de coisa que não funciona assim. Então por exemplo com meu irmão já está tudo combinado, ah não
então vamos trabalhar juntos porque já que é uma atividade em grupo
vamos fazer todo mundo junto, é uma certa confiança a mais né? Porque se é da família se é meu irmão eu não acho que ele vai querer me dar um
tombo de todo tamanho”
Em alguns casos, as condutas cotidianas são referências na escolha dos
trabalhadores. Em uma nítida tentativa de diminuir as contingências naturais de uma
111
seleção de trabalhadores, são escolhidos aqueles que, nas palavras dos donos de
garimpo, não possuem vícios, ou são, reconhecidamente, de confiança. O garimpeiro
Totó, dono de um garimpo, explica o que leva em conta no processo de seleção no
seu garimpo, onde a confiança é um dos elementos fundamentais.
“Às vezes você já conhece a pessoa e sabe se ela é de confiança ou não. E
agora muitas vezes acontece de você já ter visto ou ter visto falar que fulano fez isso e isso, ah não, fulano pegou isso e isso de mim, ah não,
essa pessoa esteve aqui roubou tanto de ouro meu, ah não, essa pessoa
esteve aqui mas teve um deslize de ouro assim e assim. Então é um tipo de coisa chata, então todo serviço tem que ter uma confiança. Então por
exemplo você pega uma pessoa lá e ele é de confiança, ele é bom de
serviço? Ah não, então eu faço questão que ele não trabalhe comigo né? É uma coisa assim como se diz né mesmo que a pessoa... não adianta a
pessoa ser boa de serviço e ter um certo defeito porque acho que esse
negócio não funciona de que quem rouba mais faz, não tem jeito. Então a
pessoa tem que fazer e ser honesta.”
No entanto, tais precauções não evitam os conflitos. Estes se dão entre grupos
em função das prioridades do terreno de extração. As disputas são comuns entre os
garimpeiros e os compradores de ouro, que sempre pagam um preço muito abaixo
do mercado, e em alguns casos, entre os primeiros e os financiadores do
empreendimento. Normalmente, o dono do terreno vai aos garimpos nos dias de
apuração para receber sua parcela na partilha. Ainda segundo Totó:
“Tem uns donos que ficam mais desconfiados. Então, toda vez que o cara
vai arrumar um ouro chega o final de semana o cara vai e já está lá de cima esperando pra ver quanto que vai dar, como é que é... Agora quando
o cara não é desconfiado, ele já confia mais, ele nem esquenta a cabeça
então a pessoa chega lá e fala a porcentagem foi X então o seu é tanto e pronto. Então o cara fica naquela o meu é meu e o dele é dele. Agora tem
outros mais desconfiados que coloca até gente dentro do garimpo pra
acompanhar a atividade toda. Então eu estou com o garimpo lá por exemplo aí você é um parente ou um amigo dele e está parado então ah
não eu vou trabalhar com o fulano lá pra mim saber como está indo,
então fica lá.”
A quebra do sentimento de confiança em relação a qualquer um dos membros
de um grupo é o principal fator de exclusão, ou até mesmo de desestruturação do
grupo. Segundo o garimpeiro Totonho:
112
“O que pode vir acabar com o grupo é o dono, por exemplo, abaixar a
porcentagem de ouro. Você chegar trabalhando para o cara com 5, 6 % e quando chega no fundo que tem ouro o cara abaixa para 3 %. Eu
sinceramente, pode tá tirando 1 kg de ouro que eu não fico, é uma coisa
muito ruim uma desigualdade muito grande com o trabalhador. O cara trabalha e acha que vai ganhar dinheiro bom mas na hora não ganha o
dele. Isso é uma coisa que eu não concordo mesmo.”
Este sentimento de desconfiança se manifesta diariamente no ambiente de
trabalho. Ele ocorre não somente em relação aos parceiros de trabalho, mas a todos
os desconhecidos que se aproximem do garimpo, ou mesmo aos que fiquem
observando de longe. Assim, qualquer carro estranho que pare e fique observando o
trabalho é motivo de desconfiança, e rapidamente todos querem saber de quem é , e
do que se trata. Nestes casos, o principal temor é, com certeza, da polícia, ou de
algum delator que possa vir a denunciá-los. Os ambientalistas, pelo mesmo motivo,
também são muito temidos.
Toda essa suspeita exige uma organização muito peculiar do trabalho, no
sentido de evitar os roubos, outrora muito freqüentes, mas que atualmente têm
diminuído, devido às medidas para impedí-los. Estas medidas podem ser desde o
recolhimento diário de todos os carpetes que contêm ouro, nunca deixando nada de
valor no garimpo, como não olhar muito para a caixa e a mesa depois dos trabalhos,
evitando atrair o interesse de outros. Por tudo isso, a atividade garimpeira, em
Monsenhor Horta, se desenvolve em um ambiente muito discreto. Nunca se vê os
garimpeiros contando vantagens de grandes achados; na verdade, quase nunca dizem
o quanto estão retirando de ouro. Quando se toca neste assunto, sempre dizem uma
quantidade muito menor do que realmente estão extraindo. Alguns dizem que quem
fala que está extraindo muito acaba atraindo mau olhado, e é aí que não se
consegue tirar nada mesmo.
Luís, o dono de um garimpo, descreve como são os roubos na região:
113
“Para te falar a verdade eles já me roubaram 8 carpetes. Depois de um
tempo junto deles, os mesmo cara que trabalhavam comigo eles me
roubaram, depois mais 2 me roubaram neste mesmo lugar. Já chegaram a me roubar no terreiro aqui de casa 100 gramas de ouro e é tudo murado,
eles tiveram que pular o muro. Agora ultimamente está difícil porque se
você falar que está tirando muito ouro já fica gente de olho ainda mais nessa crise aí, se você for falar que está com 500 gramas de ouro em casa
eles vem e te roubam.”
Estas relações de confiança ultrapassam o ambiente de trabalho e podem ser
notadas em outros setores da vida do garimpeiro. Um exemplo disto é quando o
garimpeiro, nos momentos de baixa extração, se vê obrigado a comprar o
combustível fiado. Normalmente, os comerciantes não gostam de vender a alguns
garimpeiros, por desconfiarem que não pagarão as dívidas, caso não encontrem
ouro. Como a expectativa da descoberta é constante, as dívidas com combustíveis
podem ficar cada dia maiores, gerando insegurança para os comerciantes locais. Este
receio é ainda maior em relação aos garimpeiros forasteiros, pois estes, caso não
obtenham resultados satisfatórios, podem simplesmente ir embora, deixando as
dívidas. Esses forasteiros, com certeza, contribuem para fortalecer a visão pejorativa
dos comerciantes locais em relação aos garimpeiros.
114
Discussão final
Neste trabalho buscou-se demonstrar as mudanças ocorridas no mundo do
trabalho garimpeiro, principalmente a partir da década de 80, partindo de um estudo
de caso concentrado no Distrito de Monsenhor Horta/Mariana/MG. Verificou-se que
as mudanças institucionais, organizacionais e técnicas tiveram um papel
fundamental na reestruturação da atividade garimpeira, fazendo com que ela se
organize, hoje, de uma maneira totalmente diferente. Também se tentou demonstrar
que toda a instabilidade institucional a que o garimpo de ouro sempre esteve
submetido na história do Brasil foi o elemento chave para a reestruturação de sua
organização. As mudanças incidiram sobre as novas formas de organização, a
divisão do trabalho, e o conhecimento da atividade, ou seja, modificaram
substancialmente toda a estrutura do métier de garimpeiro.
Retrocedendo aos objetivos iniciais deste trabalho, pode-se afirmar que as
mudanças no métier de garimpeiro estão diretamente relacionadas com todo o
contexto institucional que é extremamente contingente, tanto quanto o ambiente de
trabalho do garimpo. Esse contexto, ora proibindo, ora favorecendo o garimpo
artesanal, sempre gerou e continua gerando um gradiente de incertezas quanto ao
futuro desta tradicional atividade. Por conseguinte, o garimpo se mantém na
clandestinidade e ainda submetido a uma legislação confusa e com níveis de
exigências para a regulamentação incompatíveis com a sua realidade. A legalização
desse tipo de atividade esbarra sempre na burocracia do Estado, uma vez que os
terrenos, onde são realizadas as extrações, são áreas já requeridas junto ao DNPM
por grandes empresas. Estas, por não se interessarem pelas áreas de pequenas
jazidas, abrem espaço a estes pequenos empreendimentos.
115
Utilizando o conceito de competência, gestado dentro da sociologia do
trabalho e tradicionalmente associado ao trabalho industrial, tentou-se mostrar que
este conceito é também eficiente para entender o trabalhador artesão e os
profissionais de métier. À propósito, acredita-se que a construção do conceito de
competência tem como referência muito mais o trabalhador de métier que o
trabalhador de “chão de fábrica”. Dentro desta perspectiva, o conhecimento se
tornou, neste trabalho, uma categoria fundamental para a compreensão do mundo do
garimpo. Recorreu-se também à sociologia fenomenológica de Alfred Schutz para
embasar a compreensão sobre a construção do saber do garimpeiro no mundo de sua
vida cotidiana.
Nesta perspectiva, pôde-se perceber que os princípios associados à atividade
garimpeira, tais como “sorte”, “trabalhar no escuro”, ou mesmo o caráter totalmente
aleatório do garimpo - expressões comumente associadas à garimpagem e
confirmadas pelos próprios garimpeiros - na verdade, dependem de um cabedal de
conhecimentos e habilidades disponível somente aos diretamente envolvidos na
atividade. Ou seja, tentou-se demonstrar que o conhecimento das “manhas do
ofício”, a sorte, as habilidades e o saber-fazer que compõem o métier de garimpeiro
são uma construção social, e esta não está disponível, de forma paritária, a todos os
envolvidos na atividade ou àqueles que pretendem se integrar a ela.
É neste sentido que se pode entender o garimpeiro competente como aquele
trabalhador virtuoso, que se destaca no grupo como o mais hábil, ou seja, aquele que
melhor navega neste ambiente de extrema contingência: o garimpo de ouro. Assim,
aponta-se para a eficácia de associar o conceito de competência, bem como o das
habilidades construídas no trabalho, com a construção social do conhecimento,
enfatizado pela fenomenologia de Alfred Schutz.
116
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121
ROTEIRO PARA ENTREVISTA NOS GARIMPOS DE MONSENHOR HORTA
Questões de identificação.
1. Qual o seu nome?
2. Sua idade?
3. Escolaridade?
4. Onde nasceu?
5. Onde mora?
6. Tempo de garimpo?
7. Atividades anteriores antes de trabalhar no garimpo?
8. O senhor já trabalhou em garimpos em outras regiões? Se sim, quais as
diferenças mais notáveis que o senhor observa?
9. Possui outra atividade além do garimpo? Qual?
10. O que levou o senhor a trabalhar no garimpo? Vem de uma família de
garimpeiros?
11. O senhor gosta de trabalhar no garimpo? Gostaria de mudar de atividade?
Porque?
12. Quantas horas trabalha por dia?
Sobre as técnicas e a divisão do trabalho.
13. Descreva a atividade como é feita atualmente? Quais as funções que existem no
garimpo?
14. Quais o senhor exerce?
15. Na opinião do senhor qual fase da atividade exige mais habilidades?
16. Como é o relacionamento dos garimpeiros dentro da cava? O senhor prefere
trabalhar em parceria direta com alguém? (pergunta para os jateadores e os
maraqueiros)
17. Qual das fases da atividade o senhor mais gosta de realizar? Porque?
Sobre a gestão.
122
18. Você se considera empregado de alguém? Descreva a sua relação com o dono do
garimpo.
19. Como o senhor veio trabalhar neste garimpo, como foi selecionado? (caso seja o
dono: como o senhor seleciona os garimpeiros para trabalhar para o senhor?)
20. Quais são as principais qualidades de um garimpeiro? O que o senhor identifica
em um garimpeiro para o considera-lo um bom trabalhador?
21. Porque os garimpos normalmente são formados por grupos familiares?
22. O senhor segue rigorosamente as determinações estabelecida pelo dono do
garimpo?
23. O senhor prefere que ele esteja presente o tempo todo na cava?
24. O senhor acha que o dono do garimpo possui um maior conhecimento da
atividade que o senhor?
25. Como é a sua relação com o dono do garimpo? O que o senhor considera que
seja um bom patrão? O que ele não deve fazer que seria inaceitável para o
senhor?
Remuneração
26. Explique como é feita a divisão do produto?
27. Qual a porcentagem de ouro cabe ao senhor na extração?
28. Quanto o senhor apura em média semanalmente no garimpo?
29. O senhor acha razoável esta divisão?
30. Qual a porcentagem de ouro cabe ao dono do garimpo? E ao dono do terreno?
31. O senhor acha que esta divisão é melhor que receber um salário fixo?
Relações de trabalho
32. Como é o relacionamento dos garimpeiros com os donos do terreno?
33. Como é o relacionamento entre os garimpeiros, dentro e fora do garimpo?
34. O senhor gostaria de possuir um garimpo? (motores)
123
35. Qual o fato que faria com que um garimpeiro fosse excluído do grupo? (o que ele
pode e o que ele não pode fazer. Liberdade?)
36. Existem roubos no garimpo? O que é feito para evita-los?
37. O senhor tem filhos? Eles trabalham no garimpo? Estudam?
38. O senhor gostaria que seu filho seguisse a sua profissão?
39. O que para o senhor é bom e o que é ruim no garimpo?
40. Na opinião do senhor, o que faz as pessoas trabalharem no garimpo? (trabalho
por conta própria, liberdade, jogo (quando parar), vilão)
41. O que os garimpeiros fazem quando não estão garimpando? Lazer?
42. Quando o garimpo para, seja pela chuva ou mesmo pela falta de ouro, como os
garimpeiros fazem para obter dinheiro?
43. Como é o relacionamentos dos garimpeiros de Monsenhor Horta com os
garimpeiros que vêem de outras regiões?
Conhecimentos da atividade. (imaginário)
44. O senhor conhece muitos garimpeiros daqui que foram para outras regiões? O
senhor já foi garimpar em outras regiões?
45. O senhor sabe, mais ou menos, quando o garimpo em Monsenhor Horta passou a
utilizar os motores? E porque o senhor acha que a atividade passou a ser feita
com eles?
46. O senhor trabalhou antes dos motores? Se a resposta for sim: descreva como era
a atividade antes da chegada dos motores.
47. O garimpo, depois da introdução dos motores, melhorou ou piorou para o
senhor? Porque? (o que melhorou e o que piorou?)
48. O que o senhor acha que mudou na atividade depois dos motores?
49. Como é o processo de venda do ouro? A quanto o senhor vende o grama? A
quem?
50. O senhor acredita que tem alguns garimpeiros tem mais conhecimento da
atividade do que outros?
124
51. O senhor acha que tem alguns que possui mais sorte na extração? Porque?
52. Como o senhor identifica o lugar que tem mais possibilidade de encontrar ouro?
Com são estes lugares?
53. O senhor possui crenças, já teve sonho dos locais onde pudesse encontrar ouro?
Qual foi o resultado?
54. O que para o senhor é mais importante para se encontrar ouro? (caráter subjetivo
dos possíveis lugares)
55. Qual a importância do ouro na sua vida? Por que a busca deste metal? somente
pelo que ele vale?
56. Existe alguém que orienta o senhor na abertura de uma cava? Como esta pessoa
sabe dos lugares mais prováveis da ocorrência?
57. Durante a abertura da cava, quando o senhor identifica está no lugar onde existe
maior probabilidade de encontrar o ouro. Existe algum material que o senhor
associa ao ouro?
58. O senhor acredita que de repente pode achar uma grande quantidade de ouro e
mudar a sua vida?
59. O que faria se encontrasse um bom veio?
60. Como o senhor aprendeu a garimpar? Quem ensinou para o senhor os truques da
atividade?
Fiscalização
61. Como é o relacionamento dos garimpeiros com os órgãos fiscalizadores? (Polícia
Florestal)
62. Como os garimpeiros fazem para evitar a ação dos órgãos fiscalizadores? Existe,
ou já existiu alguma organização visando evitar a ação dos policiais?
63. Caso os motores sejam apreendidos como é o processo de liberação?
64. Existe algum acordo informal com os policiais?
65. Os políticos (prefeito, vereadores etc) ajudam na proteção da atividade? Como é
o relacionamento dos garimpeiros com os políticos?
125
Quadro 2:
Principais riscos e efeitos a saúde específica segundo as etapas do processo de trabalho
e outros agentes e efeitos para a saúde relacionada com o processo de trabalho. 39
Etapas do processo
de trabalho
Principais tipos de
agentes etiológicos de
risco
Efeitos específicos
para a saúde
Outros agentes e
efeitos gerais para a
saúde relacionados
com o processo de
trabalho.
Agentes biológicos.
Malária;
Tuberculose;
Leishmaniose;
Doenças
sexualmente
transmissíveis;
Hanseníase;
Verminose;
Enfermidades
digestivas.
Agentes ergonômicos.
Lombardias;
Lesões oste-
articulares.
Agentes físicos.
Lesões por
desconforto térmico;
Lesões por
exposição excessiva
ao sol.
Agentes psicossociais.
Violência física e
mental;
Alcoolismo;
Dependência de
drogas.
1ºfase: Escolha do
terreno
preparo da infra
estrutura dos locais de
garimpo e de moradia.
Tocos e gravetos;
Pás, picaretas e
foices;
Ruídos de moto-
serras.
Lesões
traumáticas;
Surdez;
Lesão por vibração
excessiva;
Tétano;
2ºfase:desmonte
hidráulico de
barrancos.
Ruídos de bomba
hidráulica;
Esforço físico
excessivo;
Óleos e graxas;
Solventes;
Desmoronamento.
Surdez;
Lombardias e
artrose da coluna
vertebral;
Lesões
traumáticas;
Lesões por
vibrações
excessiva;
Dermatoses
ocupacionais;
Câncer de pele.
3ºfase: concentração
de ouro e processo de
amalgamação, e
queima do material
amalgamado.
Ruídos de bomba
hidráulica;
Queda;
Exposição ao
mercúrio;
Corte por pás de
moinhos;
Pó de rochas;
Exposição ao fogo;
Exposição a gases
e vapores;
Exposição
excessiva aos
vapores de
mercúrio.
Surdez
Lesões traumáticas
Intoxicação por
mercúrio;
Lesão ocular por
corpos estranhos;
Dermatoses
ocupacionais.
Queimaduras;
Intoxicação por
gases;
Intoxicação
mercurial.
39 Adaptado de: CÂMARA, Voney de M. e COREY, Germám. O caso dos garimpos de ouro no Brasil,
Metepec, Estado do México, México, 1992. (P. 132)