HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS
-
Upload
alves-machado -
Category
Documents
-
view
581 -
download
0
description
Transcript of HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS
Coletânea de Contos
HISTÓRIAS DOS TRÊS MACHADOS
Incluíndo:
Missa do Galo(Machado de Assis)
Gaetaninho(Alcântara Machado)
Terror de Banheiro(Alves Machado)
Organizadora: Ilma Pereira da Silva Machado2008
ÍNDICE:
Alves Machado
Terror de Banheiro (04)
O Golpe da Rosa (08)
A Milésima Alma (13)
Santo Antônio do Rio Abaixo: O Milagre (16)
Sineiro das Almas (22)
Alcântara Machado
Gaetaninho (26)
Carmela (30)
Lisseta (38)
Corinthians (2) vs. Palestra (1) (41)
O Filósofo Platão (48)
Machado de Assis
Missa do Galo (56)
O Espelho (64)
A Cartomante (74)
O Enfermeiro (85)
2
A Igreja do Diabo (94)
Em Busca do Prazer
A leitura é uma das formas mais saudáveis e construtivas de lazer que existe.
Nos dias atuais, a leitura, muitas vezes, parece estar ligada apenas aos estudos e ao
trabalho, subtraindo dela sua principal função: o lazer.
Entendo que o leitor tem, normalmente, dificuldade de acesso a uma
literatura de qualidade, tanto no aspecto econômico como relativo à linguagem, já que o
Português Padrão (da escrita) é um tanto distante da linguagem falada, hoje, no Brasil.
Portanto, quando o cidadão comum a busca, frustra-se ao perceber que esta não lhe é muito
acessível.
Foi nesse intuito que propusemos esta coletânea, buscando despertar o prazer
pela leitura, através de excelentes textos desde a contemporaneidade até o século XIX.
Representando a contemporaneidade, apresentamos um escritor ainda inédito
nas editoras, mas de alta qualidade de produção: Alves Machado; representando o
modernismo brasileiro do início do século XX, trazemos o irreverente Alcântara Machado
e, para encerrar a coletânea, temos o mais importante escritor brasileiro (e quem sabe do
idioma Português) Machado de Assis.
A coincidência, por serem ambos contistas e carregarem o mesmo nome
(Machado), fez-nos perceber que esse era o caminho certo em busca de um despertar pelo
prazer da leitura.
Divirtam-se!
3
Ilma Pereira da Silva Machado (organizadora)
Alves Machado
TERROR DE BANHEIRO
Lembro-me que, aos sete anos, eu detestava ter que ir ao
banheiro da escola. O mau cheiro era percebido há muitos metros de
distância. O interior do lugar era deprimente, com muitos aparelhos
quebrados, vazamentos, bacias entupidas, detritos nas latrinas e uma
mistura de água, urina e barro que recobria todo o piso do banheiro.
Apesar da total falta de higiene, que não parece ter mudado nos últimos
trinta anos, não era exatamente o motivo da minha total aversão ao
banheiro da escola.
Eu não era o único. Na verdade, tornara-se um problema
social naquele lugar. Maria Dolores fez pipi pernas abaixo na sala de
aula mesmo, após ter segurado o quanto pôde. Os garotos
despachavam no tronco das árvores e sempre havia alguém que fazia
seu cocô nas calças após um imenso suplício. O motivo de todo esse
vexame, que para nós não era nada natural, era o banheiro da escola,
ou melhor, algo que havia lá.
Corria o boato de que, naquele banheiro, muitas crianças
viam uma mulher vestida de branco, como uma noiva, com as narinas
todas entupidas de algodão; ela era pálida como uma defunta, mas
parecia estar viva e surpreendia, vez por outra, um estudante. Era
comum que crianças saíssem correndo desesperadas do banheiro,
jurando tê-la visto.
Íamos ao banheiro aos pares, mas não era o suficiente para
que superássemos o medo, pois aquilo era alimentado o tempo todo
4
pelos professores, funcionários e alunos mais velhos. Se alguém estava
se divertindo com aquela história, certamente não éramos nós.
Estranhamente, o fenômeno ocorria tanto no banheiro dos meninos
quanto o das meninas, já que todos os dias assistíamos a garotas que
gritavam de desespero e, aos prantos, saiam correndo daquele lugar.
Lembro-me que minha bexiga já estava preste a estourar e
ainda faltava muito tempo para o esperado “último sinal”. Maurício era
um bom companheiro, já que sempre fazíamos nossos exercícios e
brincávamos juntos no recreio. Cochichei:
- Maurício, tô com vontade de mijar!
- Fala pra Dona Fátima pra ela deixar você ir ao banheiro.
Eu não sabia o que era pior: sentir aquela dor, ir ao banheiro,
ou ter que pedir para a Dona Fátima que era nossa professora. Ela era
muito brava e sempre achava que a gente estava era querendo passear
no corredor. E ela nunca acreditava em mim. Não sei porquê, se eu não
me lembro de ter pedido para ir ao banheiro e ter ido fazer outra coisa.
Acho que a professora não ia com a minha cara. Mas o Maurício era o
xodó da professora que sempre atendia aos seus pedidos.
- Pede pra ela deixar a gente ir ao banheiro!
- Deixa eu terminar de copiar mais esse parágrafo.
- Cara, eu vou mijar nas calças!
- Dona Fátima, o Henrique tá precisando ir ao banheiro e
está com vergonha de falar!
A professora olhou desconfiada para mim. Pensei que ela
não fosse liberar, mas eu acho que já estava quase chorando.
- Vá, mas não demore!
- Posso ir com ele, Dona Fátima? Ele tem medo de ir ao
banheiro!
- Pode sim, mas não vão ficar de brincadeira por esse
corredor.
5
Não gostei daquela última argumentação do Maurício: “Ele
tem medo de ir ao banheiro...” até parece que aquele cara não tinha
medo de ir sozinho ao banheiro também.
Quando tomamos o corredor, a dor parece ter aliviado um
pouco. Acho que era medo de chega ao banheiro. Puxei uma conversa
sobre figurinhas e, como sempre, Maurício veio com aquela conversa
fiada da figurinha rara que ele chegou a ter em suas mãos, mas que a
havia dado a outro guri. Eu ficava fulo da vida: porque não a dera para
mim? Lembro de ter reparado no teto da escola que parecia preste a
cair. Não era só o banheiro que precisava urgentemente ser refeito, toda
a escola parecia estar a um minuto da ruína. Imaginei que já era um
prédio muito velho e que devia ter sido a escola de pessoas que já
haviam morrido e talvez voltassem para revê-la. Senti mais medo ainda.
Imaginei um mundo invisível paralelo ao meu, onde criaturas invisíveis
transitavam por aqueles corredores fantasmagóricos. E se a moça do
banheiro quisesse arrastar a gente para o outro lado da vida? Não podia
nem pensar naquilo. Minhas pernas endureciam.
Naquele tempo, estava em cartaz o filmo “O exorcista” e
minha prima, que já era de maior, fora assistir e contara-me tudo: o
demônio tinha o poder de tomar o corpo das pessoas e transformá-las
em monstros horrendos. A música “Don’t Cry for Me, Argentina” era,
para mim, uma trilha sonora de terror. Não sei ao certo porque associei
aquela música a Dama do Banheiro, mas a verdade é que, sempre que a
ouvia, sentia um arrepio ruim e vontade de esconder-me embaixo de
alguma coisa.
Quem conheceu o “Patronato Bom Jesus” de Três Lagoas
sabe que bem ao lado do banheiro havia o “Cine Lapa”. Àquela hora da
manhã não havia sessão, mas acho que estavam dando alguma
manutenção no som. O fato é que, quando íamos entrar no banheiro,
“Don’t Cry for Me, Argentina” começou a tocar em alto e bom som. Olhei
para o Maurício e o vi amarelo, calado e sério. Nada cooperava para nos
6
fazer deixar o medo, pois o encanamento velho do banheiro fazia um
barulho pra lá de estranho e, naquele dia, parecia que estava pior. Meu
colega disse que não entraria de jeito nenhum. Implorei pela sua ajuda e
o pobre coitado entrou pra que eu não urinasse nas calças. Entramos
naquele lugar inóspito, há tempos a última lâmpada queimara e o dia
nublado e frio mergulhava o ambiente em quase trevas.
Dirigi-me ao urinol menor, destinado aos pequenos como eu,
e desabotoando a braguilha fui logo despachando. Um segundo a mais e
seria um vexame. Foi quando a porta de um dos boxes se abriu, num de
repente, e algo vivo se movimentou. O susto cortou a urina e, sem por
as vergonhas para dentro, saímos em disparada. Apavorado, meu
companheiro escorregou naquele caldo e caiu sujando a roupa. Quando
cheguei lá fora ouvi seu choro aos gritos e senti que infelizmente teria
que voltar. Foi quando vi, no meio daquela escuridão, um moço muito
grande e cabeludo ajudando-o a se levantar todo sujo e chorando. Era
um aluno do ginásio que ria da desgraça do pobre garoto. Tive ódio dele,
pois sabia que fizera tudo aquilo de propósito para nos assustar. Queria
ter algum primo grande naquela escola só para pedir para lhe dar um
corretivo, mas eu só tinha duas primas, que eram boas de briga
também, apesar de não poderem com aquele grandalhão.
Depois disso o Maurício nunca mais foi o mesmo comigo. O
incidente do banheiro o fez se afastar de mim. Coitado! Não gostaria de
estar no lugar dele: todo melecado com aquela coisa que sempre me
causou muito asco. E o medo da Dama do Banheiro continuou por muito
tempo ainda. Certa noite, tive um sonho medonho com ela: no fundo
daquele banheiro escuro, ela flutuava com sua camisola esvoaçante e
cantava, com sua boca pálida de defunta, “don’t cry for me,
Argentina...” suave como um soprano. Ao ver-me, sua cabeça deu uma
volta inteira sobre o pescoço e a voz, outrora suave, tornou-se rouca e
grossa, dizendo:
- Venha comigo, meu anjo! Meu senhor quer ver você!
7
Tive vontade de correr, mas minhas pernas não me
obedeciam. Acordei com meu próprio grito e o meu pavor piorou ainda
mais.
Na verdade, esse medo só desapareceu com o tempo,
depois de ver que em toda escola havia aquela estória boba para meter
medo nos pequenos. Mas ainda muito tempo depois, morando em uma
casa cujo banheiro ficava do lado de fora, eu detestava acordar de noite
e ter que atravessar a escuridão para ir até lá. Medo de reencontrar,
talvez, uma velha conhecida.
O GOLPE DA ROSA
O ônibus parou no ponto lotado. Agripina desceu xingando o
infeliz que tinha bulido com ela a viajem toda.
- Vai esfregar no rabo da tua mãe! Dizia.
Já não bastava a Rosa ter morrido, devendo um montão para ela,
ainda tinha correr atrás do prejuízo e agüentar marmanjo tirando uma
“casca”. “Pobre, Rosa!” pensava “mas tinha que morrer justo agora,
antes de terminar de pagar o produtos?”.
Agripina seguia apressada, rumo ao velório municipal. O coração
quase saía pela boca, não parava de pensar nas contas, para as quais já
contava com o lucro da venda.
Naquela manhã, ela estava no trabalho, dando duro em uma
cozinha emporcalhada de gordura, quando a Jorgete ligou no seu celular
– chamada a cobrar, quase não atendeu – dizendo que a Rosa havia
morrido. A diarista, também “consultora de perfumes e cosméticos”,
ameaçou desmaiar, entretanto não exatamente pela perda da amiga de
tantos anos, mas pela perda da cliente e do dinheiro. Acabou fazendo o
serviço meia boca, para ir ao velório. Droga! Gastando o vale transporte,
teria que sair mais cedo de casa, no outro dia, para seguir a pé até o
serviço. Mas fazer o quê? Merdas acontecem.
8
Naquele momento ela adentrava o velório municipal. O recinto em
questão fora construído em forma de uma cruz: a nave central dava em
uma capela, ladeada por outras duas, menores. Agripina seguiu reto, até
encontrar o corpo moribundo da amiga, velada por uma única pessoa.
- O senhor é parente dela?
- Não senhora! Sou o agente funerário. Estou aguardando a
chegada da família. E a senhora? É parente?
- Não. Apenas amiga.
- Sinto muito.
- Ela era tão forte...
O agente tornou a ficar quieto no seu canto. Deixando a amiga
entregue aos seus sentimentos.
Agripina achou a colega muito abatida e inchada. Nunca fora
bonita, mas, se a vida não lhe havia premiado com a beleza, a morte lhe
fora ainda mais cruel. Nem parecia a Rosa.
Elas se conheceram trabalhando na casa de D. Fé (Maria da Fé
Carrancudo). Era uma casa imensa, com dez suítes, além de três
banheiros sociais, três salas, duas copas, salão de jogos e varanda
social. Para dar conta de tudo isso, apenas três faxineiras, uma
cozinheira, um jardineiro e dois porteiros. Na verdade quem trabalhava
mais mesmo eram a faxineiras (Agripina, Jucineide e Rosa) e, das três,
quem trabalhava mais era a Rosa. Os patrões pediam para deixar todo o
peso para ela. Tinha um tapete pesado para levar para fora? Chamem a
Rosa; é para levantar os móveis? Deixem para a Rosa.
Surpreendentemente, ela suportava tudo com muita resignação. Parecia
até que não lhe era nada pesado. A mulher era um pé de boi. Nunca
falou muito. Gostava de ouvir as conversas das colegas e ria uma risada
muito feia e grossa. As colegas se divertiam com seu jeito
desengonçado.
Trabalharam vários anos ali, mas, apesar dos patrões
ficarem mais ricos, a cada dia, o salário delas nunca aumentava; na
9
verdade só aumentava mesmo o serviço, com as festas e jantares de
negócio. Foi aí que elas conheceram a Jorgete que era diarista e
ganhava bastante dinheiro com isso. Serviço não faltava, pagava-se
melhor do que na D. Fé e, muitas vezes, o serviço era mais leve.
Disseram adeus a mansão dos Carrancudo e tornaram-se autônomas.
A vida, naquele momento, não era nenhuma maravilha,
porém libertarem-se daqueles patrões para servirem a vários fez muito
bem para elas, já que, a partir dali, conseguiram construir suas humildes
casinhas, apenas com o dinheiro das diárias. O mais surpreendente de
tudo é que a Rosa foi a engenheira-construtora. É!!! A Rosa não era
meia-colher. Não senhores! Ela era pedreira de colher cheia e ensinou às
colegas a profissão. Trabalharam em mutirão até terminarem as três
casas, sem ajuda de homem nenhum. Foi uma conquista e tanto na vida
delas. Quando a coisa apertava, Rosa gritava grosso, com seu jeito
desajeitado:
- Corre logo, menina!
E lá vinha um carrinho de massa, ou de tijolo, ou uma
ferramenta qualquer. Quando terminaram tudo, comemoraram com uma
cervejinha gelada até mais tarde. Aquilo serviu para unir ainda mais o
grupo e aumentar a admiração pela estranha amiga. Quando, no
entanto, falavam de homens, Rosa ficava quieta e bem calada; parecia
não ter interesse por aquele assunto. Agripina e Jucineide já
suspeitavam de sua sexualidade, até que tiveram coragem de fazer-lhe
perguntas indiscretas. Rosa riu do seu jeito engraçado, surpreendida
com aquelas perguntas.
- Claro que não!
- Você já teve namorado?
- Uma vez, eu transei com um homem, mas não gostei.
- Como assim?
- Foi ruim.
- Ele deve ter machucado você. Deve ter sido isso.
10
- Mas você não gosta de homem?
- Gosto de apreciar os homens, mas não gosto que eles se
aproximem de mim.
- E de mulher? Perguntou a segunda amiga.
- De mulher, eu só gosto da companhia e de ficar ouvindo
essas histórias besta que vocês contam.
E ria de maneira expansiva junto às amigas.
Ninguém conhecia parentes da Rosa. Ela mesma só falava,
de vez em quando, da mãe. Ninguém sabia se ela conhecia o pai ou se
já tivera algum filho. Era uma semente que nasceu do vento. Na verdade
não se sabia muita coisa dela, nem mesmo o nome. Para todos era
sempre Rosa e nada mais. Nos últimos anos, como Agripina se tornara
“consultora de perfumes e cosméticos”, pusera na cabeça da
desajeitada mulher que deveria se cuidar. Fez regime, surpreendendo as
companheiras com sua capacidade de emagrecer, mas não ficou mais
bonita. Ficou muito comprida e ainda mais desajeitada. Depois começou
a usar cosméticos (coisa que jamais fizera na vida). Não melhorou nada
e sua beleza aumentou tanto quanto seu interesse pelos homens.
Jucineide e Agripina armaram uma roubada pra a pobre
mulher. Convenceram o Chicão (um tipo vulgar, mas que encarava
qualquer parada) de que ela era um fogo só. Na primeira investida, o
homem arrependeu-se como nunca em sua vida, pois Rosa despachou-o
a socos e ponta-pés. Essa aversão, no entanto, não diminuía seu
entusiasmo com os cosméticos, já que estava sempre investigando
sobre “as novidades”. Para a última remessa, ela encomendou um
salário mínimo de cremes e perfumes. A amiga havia parcelado o
pagamento em duas prestações, mas só recebera a primeira parcela.
Agripina estava torcendo para que ela não houvesse usado todos os
produtos. Talvez ainda pudesse reaver a mercadoria e a vendesse,
quem sabe ainda, por um preço promocional.
11
Nesse instante uma jovem e elegante senhora entra
transtornada pela capela e, chorando, abraça o caixão. Junto dela uma
dezena de pessoas parece estar ali para apoiá-la. Agripina fica um pouco
espantada com a emoção da mulher. Quem sabe fosse uma patroa da
Rosa, mas ela nunca havia mencionado uma patroa assim: tão ligada a
ela. A diarista – “e consultora de perfumes e cosméticos” – tenta mostrar
sua solidariedade abraçando a elegante mulher.
- Ela era tão querida!
A mulher retribui o abraço, aceitando a solidariedade.
Emocionada comentou:
- Ela era tudo para mim!
Inoportunamente, mas ainda chorando, Agripina direciona o
assunto para seu foco:
- Sabe, antes de falecer, coitadinha, ela guardou algumas
coisas minhas na sua casa e... sabe... eu estou até sem jeito, mas eu
precisava pegar algumas coisas minhas que estão na casa dela.
A mulher se assusta.
- Pegar o quê na casa da minha mãe?!
- Mãe! A Rosa era sua... mãe!
- Minha mãe se chama Mariana Brandão!
Ao perceber o fiasco, Agripina simula um choro convulsivo e
se afasta rapidamente do velório. Mas, ao andar em direção a saída e
passando em frente a uma das capelas laterais, vê a D. Fé, além de
vários trabalhadores do lar conhecidos e um bando de gente
desconhecida. Todos estavam com uma expressão de espanto no olhar.
Aqui e ali pessoas cochichavam, alguns riam e outros simplesmente
miravam Rosa no caixão com uma cara de meu-deus-o-que-é-isso.
A Jucineide veio logo encontrar a amiga cheia de faniquitos.
- Agripina! Amiga, você não sabe da maior...
- Tenha compostura, Jucineide. É o velório da Rosa e você já
me vem com suas fofocas?
12
- Que isso, amiga! Tá estressada é?
- Não. É que já aconteceu tanta coisa hoje... me conta: do
que foi que a Rosa morreu.
- Um ataque do coração. Dizem que foi um só.
- Coitadinha! A chave do barraco dela está com quem?
- Sei lá.
- Merda!
- Que foi?
- Nada.
De repente irrompe um riso tão escandaloso que incomoda
Agripina.
- Ô gente baixa, hein?! Falta de respeito com a falecida.
- Também... numa situação dessas...
- Do que é que você está falando?
- Tô tentando te contar: Rosa era homem!
- Quê? Tá doida?!
Jucineide ri a valer.
- Depois que ela morreu, a gente foi dar o banho e
descobriu: Rosa tinha tudinho que um homem tem. Acredita?
- Não.
Agripina não tinha nem o que dizer. Foi até o caixão e olhou
bem para o rosto da amiga falecida, percebendo que o queixo e o
espaço entre o nariz e o lábio superior eram até azuis: marca que
revelava o cuidado dela em se barbear todos os dias. Apesar da
“amizade” parece que nunca alguém reparou direito naquela pessoa. D.
Fé disse que já sabia, mas que não tinha nada a ver com a vida dela.
Sendo assim, nunca disse nada a ninguém.
A diarista estava transtornada era muito para um dia só.
Queria encarar logo o ônibus lotado. Talvez em casa, depois de um bom
banho, ela pudesse descansar um pouco para encarar o trabalho no dia
seguinte. Quanto à dívida: impossível pensar nisso agora. Rosa era
13
homem! Talvez ela precisasse de um gole, depois pensava na questão
da chave, nos produtos. Já não dava para confiar em mais nada. Que dia
horrível!
A MILÉSIMA ALMA
Minha avó tinha devoção pelas almas. Não havia santo, para ela,
mais importante que as novecentas e noventa e nove almas do
purgatório. Era estranho, mas minha avó era muito correta naquela
devoção. Toda sexta-feira, ela rezava novena para “as arma”. Dizia ela
que esses espíritos visitavam-na, que sonhava com eles quando alguma
coisa ia acontecer. Também enfrentava momentos difíceis, como da vez
que os espíritos não a deixaram dormir a noite, levantando a cama e
largando-a com força no chão.
Todos estranhavam aquela devoção sinistra, mas ela não se
importava, pois dizia que era sua missão. Apesar do medo e do repúdio,
as pessoas a procuravam para encaminhar pedidos para as almas, pois,
diziam, suas orações eram tiro e queda. Políticos, jovens apaixonados,
pessoas em crise no casamento, moribundos, todos procuravam minha
avó, para que ela pedisse às almas. Porém, um dia repentinamente, ela
abandonou a devoção e informava a todos que a procuravam que não
mexia mais com isso.
- Virou crente, Bastiana?
- Não. Só não mexo mais com isso.
Era estranho tanta fé desaparecer assim, de uma hora pra outra.
Mas a verdade é que minha avó, já não queria nem ouvir falar mais das
novecentas e noventa e nove almas do purgatório. A gente perguntava,
mas ela não queria dar explicações. Porém, um dia, estando somente eu
e minha mãe conversando sobre o assunto, ela nos fez uma revelação.
Disse-nos que a devoção aparecera em sua vida quando um dos
filhos esteve muito doente e preste a morte. Preocupada com a saúde
14
do menino, ela adormeceu e sonhou que uma criança aconselhou-a a
rezar para as novecentas e noventa e nove almas do purgatório e que
fosse dado para o garoto o chá de uma tal raiz, encontrada em tal lugar.
Quando acordou, ela fez conforme se lembrava de ter sido
aconselhada no sonho. No mesmo dia, o menino levantou da cama e foi
brincar. Depois disso, ela contava que sonhou várias vezes com a
criança que lhe ensinava remédios e orações milagrosas. Certa noite,
alguém bateu na porta. Era uma figura de capa e chapéu, cuja luz da
lamparina não podia revelar seu rosto, que lhe disse que tudo o que
pedisse às almas seria atendido, pois ela havia alcançado graça diante
delas. Enquanto fora passar um café, a visita desapareceu sem que ela
soubesse, ao menos, o nome. Minha avó acreditava ter sido uma delas
que estivera ali.
O seu irmão se candidatou para a câmara e ela pedira às almas.
Foi o mais votado daquela eleição; na falta de médico (e como faltava)
era a Tiana, com seus chás e benzimentos que dava jeito nas
enfermidades. Um sujeito acertou a perna com um machado; Tiana deu
banho de barbatimão com arnica, benzeu sete dias seguidos e a ferida
fechou. Um garoto se queimou da cabeça aos pés; Tiana bezuntou seu
corpo com clara de ovo, misturado com um analgésico líquido, rezou
para as almas e o menino sarou. Os médicos a parabenizavam pela sua
capacidade terapêutica. Ela dizia que ninguém lhe havia ensinado nada,
apenas as almas.
Dinheiro ela só recebia dos políticos e das pessoas apaixonadas
que a procuravam. De gente doente nunca recebeu um tostão. Toda
sexta-feira, ela acendia as nove velas em um pequeno cruzeiro que
colocara no fundo do quintal e rezava nove terços pelas 999 almas do
purgatório. Quando alguém morria, ela era a primeira pessoa que
aparecia pelo velório. As pessoas acreditavam que ela era capaz de
encomendar a alma para ser conduzida ao paraíso. Com o passar do
tempo, essa sua mania começou a ser repudiada pelas pessoas que
15
diziam ser ela um mau agouro. Os médicos, os farmacêuticos foram
chegando e a velha Tiana foi, aos poucos, esquecida.
Numa certa manhã, minha avó acordou de um sonho muito
realista: o homem de capa e chapéu pedia-lhe que acendesse agora dez
velas e rezasse uma dezena no cruzeiro do Cemitério da Piedade. Ela foi
sozinha. O cemitério estava praticamente deserto. Ela fez o sinal-da-cruz
e atravessou o portão, caminhando por entre as tumbas. Aqui e ali
deparava com algum nome conhecido e parava para rezar pela sua
alma. Já passava das dez da manhã e ela se lembrava de que não havia
ainda arrumado sua casa e aquele serviço religioso tomaria muito
tempo. Por que agora dez velas? Por que uma dezena? Por que ali
naquele cemitério? Ela aproximou-se do cruzeiro, acendeu as velas e
iniciou sua reza. O tempo fechou de repente, formando para chuva, e
um vento frio começou a incomodá-la. Uma a uma, pessoas se juntavam
a ela naquela rezação. Parecia até que haviam combinado; sem olhar
pra trás ela sentiu que havia uma multidão naquele lugar e todos
rezavam juntos de maneira estranha. Quando voltou seu rosto, percebeu
que estava rodeada pelas novecentas e noventa e nove almas do
purgatório. Ao seu lado o estranho homem de capa e chapéu.
- Quem é você?
- A nonocentésima nonagésima nona alma.
- E por que a minha devoção mudou?
- Por que mais uma alma está entrando no purgatório: a sua.
Minha avó disse que não deu mais trela àquela conversa. Foi
abrindo passagem por aquela multidão de mortos até chegar à porta do
cemitério, fez o sinal e partiu sem olhar para trás até entrar dentro de
casa. Lá caiu de joelhos em plena sala, pedindo perdão a Deus e jurando
jamais rezar por nada que não fosse o próprio Deus. Ela repetia
emocionada que só Deus tem poder e só ele é bom para o ser humano.
Eu duvidei muitas vezes das histórias fantásticas da minha avó,
mas havia medo e convicção naquela sua história mais recente. Ao
16
morrer, ela foi rapidamente sepultada, atendendo a um pedido seu
ainda em vida. Quanto às orações só pediu que clamássemos pela
misericórdia divina. Difícil de entender, mas foi assim.
SANTO ANTÔNIO DO RIO ABAIXA: O MILAGRE
Frei José era um italianinho de vinte e cinco anos,
aparentando, no entanto, ser senhor de seus trinta e tantos. Estava ali
naquela balsa numa missão muito triste: dar extrema unção aos
viajantes moribundos. Até aquele momento, já havia sido obrigado a
fazê-lo em duas ocasiões; todas elas por uma única causa: afogamento.
Havia seis meses, saíram de São Paulo, tomando o rio Tietê – o estranho
rio que sai de bem próximo do litoral e corre para o interior – depois
foram parar em um outro muito grande, chamado Paraná; desceram até
as terras da coroa espanhola, subiram por outro chamado Paraguai e
agora navegavam por um rio tortuoso e cheio de armadilhas, chamado
Rio Cuiabá. Os perigos maiores daquela viagem eram os selvagens da
terra e as maleitas.
Aqueles homens não era o que se poderia chamar “civilizados”.
Tinham um único propósito na vida que era o de ficarem ricos o mais
rápido possível. E, em nome desse ideal faziam loucuras como aquela,
ficar de seis meses a cinco anos no sertão, voltando, muitas vezes, de
mãos vazias, ou mesmo jamais retornando ao lar.
Era como uma guerra. Tudo era precário, sem conforto. Aquelas
pessoas desiludidas já não respeitavam nada. Somente as armas
impunham respeito ali. À religião, recorriam em caso de morte, doença
ou perigo iminente. Frei José não se sentia nada confortável junto
àquelas criaturas brutalizadas. Ele fora um menino mimoso, educado
numa excelente escola de Florença. Aos quinze anos já era professor de
latim, escrevera ensaios elogiados sobre história e sobre a arte
renascentista, trabalhara no Vaticano e agora estava ali naquele fim de
17
mundo, junto a homens que não sabiam sequer o que fora o
renascimento. Na tentativa de cativá-los, o jovem monge carregava
junto a sua bagagem uma imagem de Santo Antônio, o santo português.
Sendo eles portugueses ou descendentes diretos desses, frei José
acreditou que aquela imagem os tornaria mansos, mas aquela gente já
não respeitava nada: eram adeptos da luxúria e da libertinagem. Esta
imagem de Santo Antônio, no entanto servia de companhia a pobre
figura do frade franciscano, ao menos dois franciscanos ali, tementes a
Deus.
O sol já começava a declinar quando passaram pela aldeia dos
Bororos. Isso significava que estavam há duas milhas do arraial do Rio
Abaixo. A tripulação ficara alvoroçada ao se aproximar da aldeia;
certamente loucos para tomarem liberdades com as mulheres selvagens
– conhecidas pela beleza de seus corpos, bem como pelos seus cabelos
muito negros e escorridos – mas era melhor se apressarem para chegar
ao arraial, onde era a parada de costume. Ali descansariam dormindo
em terra, comeriam a mujica de peixe feita por “nhá Mariquinha”, ou “xá
Mariquinha”, como preferia os aldeões, e depois seguiriam até Lavras do
Sutil.
Porém, em boa hora, aportavam no Rio Abaixo, já que os Guatós
(índios inimigos) montavam emboscadas no trecho entre Rio Abaixo e
Lavras. A notícia foi recebida com decepção pela maioria já contaminada
pela febre do ouro e ansiosa por encontrar logo sua fortuna para
empreender o quanto antes à viagem de volta. Frei José era um desses,
tão logo chegasse às Lavras e recebesse a devida esmola por seus
serviços religiosos, retornaria na próxima balsa para São Paulo e dali só
sairia se fosse para retornar a velha e boa Itália; do contrário, passaria o
resto da vida limpando o chão de algum liceu, mas nunca mais
retornaria àqueles sertões.
Em terra, os homens pareciam recobrar sua humanidade: alguns
faziam a barba, lavavam as roupas para irem a missa, usavam um
18
vocabulário mais cristão e chegam mesmo a fazer pé-de-alferes a
alguma rapariga do povo. Tão diferentes daqueles animais que viajavam
em companhia de um frei assustado com tamanha selvageria. E assim
passaram três dias; o Franciscano chegou mesmo a rezar missa no
arraial, enchendo de esperança o coração dos aldeões que há muito
imploravam por um padre. Mas eis que as balsas começaram a descer e
a trazer notícias de que um tal comandante José Maria afugentara os
selvagens, expulsando-os para muitas léguas de distância. Tão logo
souberam, os viajantes deixaram suas ocupações temporárias para
voltarem à balsa.
Creio ter-me esquecido de dizer que os viajantes haviam chegado
num dia de muita chuva, encontrando um rio bastante ressaqueado,
cheio e furioso. Três dias depois, ele estava bem mais calmo e o nível
das águas abaixara um pouco. Pois reside aí a segunda grande
frustração dos aventureiros: a balsa chata estava encalhada em um
banco de areia.
Mestre Vasques, aldeão e canoeiro velho, coçou a cabeça
cabeluda e sentenciou:
- É ter paciência e esperar o estio.
Antônio Golvea ficou furioso:
- Arrelio! É alugar os burros e seguir por terra.
Gomes era um homem alto, moreno de olhos muito negros e barba
cerrada. Era a figura mais robusta daquela comitiva. Amarrou uma corda
à cintura e a atou ao barco, lançando-se, em seguida, ao rio. Frei José
pensou consigo: “Mais uma vítima para esse rio-serpente!” Crendo que
Gomes também morresse afogado, mas o musculoso jovem teve
sucesso no seu trabalho.
- Só a frente está encalhada.
- Arrumem então um cavalo! Disse Manoel Dias.
- Matam-me todos os cavalos e burros sem sucesso. Respondeu
Mestre Vasques.
19
Gomes tinha um plano: primeiro aliviar toda a carga da chata e
depois rebocá-la com três canoas indígenas (cada uma com três
remadores), puxando-a a favor da correnteza. O trabalho era arriscado,
no entanto, para os rebocadores que poderiam ser atropelados pela
balsa. Porém Gomes garantia que tão logo a embarcação fosse
desencravada, as cordas seriam cortadas para que as canoas fugissem
do rebote da chata, enquanto os homens em terra a seguravam. E assim
fizeram.
Tudo fora retirado da embarcação, até mesmo o pequeno Santo
Antônio que fora imediatamente levado para o interior da casa mais
próxima. Os aldeões tinham veneração por imagem de santos e não
poderia deixá-la ali, no meio dos cacarecos imundos.
Gomes estava pronto para executar o trabalho, não estava, no
entanto, seguro do sucesso e temeroso de uma tragédia. Os
companheiros de empreitada também temiam pelo pior e, assim, logo
ouviu-se:
- Valei-nos Nossa Senhora!
Mas Gomes era Espanhol e moçárabe. Sua história estava mais
voltada ao islão que ao cristianismo. Com todo o respeito à mãe de
Jesus, mas não era esse grito que lhe vinha à garganta.
- Deus é grande! Gritou finalmente.
E ao som daquela invocação do nome de Deus os esquifes
dispararam puxando com força. Gomes liderava, no remo, um dos
esquifes. Suor e água misturavam-se naquela jornada perigosa e brutal.
Eis que o mouro sentiu a embarcação deslizando lentamente.
- Mais forças, homens lá!
A madeira da embarcação cantou escorregando do barro para a
água profunda.
- Corta agora! Gritou o mouro.
20
A chata, como se esperava, avançou contra as canoas com
ferocidade. A de Gomes, que estava no meio, sofreu o golpe da
embarcação maior. Xá Mariquinha já gritava chorando:
- Oh Jesus, que eu encomendo! Meu sonho ruim! Ai! Ai!
- Homem na água!
- Não carece desespero. O homem está com vida. Disse mestre
Vasques.
Gomes quebrara a perna, mas não havia nada que o fizesse ficar
ali, queria ir para Lavras com os companheiros. O desfecho dramático
não foi empecilho, para os viajantes ansiosos por chegar ao “El Dorado”;
de forma que recomeçaram a viagem tão logo a tala foi colocada em
Gomes. Frei José nem conseguiu terminar o chá de ervas que a velha
Mariana fizera para o seu resfriado.
- Embora, padre de Deus!
O frade entrou na embarcação, rebuçou e dormiu um sono pesado
sob o balanço das remadas da galé. Quando acordou já era noite e
alguns dormiam enquanto outros montavam guarda à embarcação,
bebendo aguardente e fumando seus cachimbos. Frei José procurou a
companhia do ilustre franciscano, mas não o encontrou. A imagem de
Santo Antônio ficara no arraial do Rio Abaixo para alegria dos aldeões e
tristeza do pobre frade.
Frei José ficou ainda uma semana nas Lavras do Sutil, também
conhecido pelo nome do rio: Cuiabá. Mas não houve como se adaptar,
tão logo recebeu um bom número de recompensas, tratou logo de se
retirar. Ao pararem no arraial do Rio Abaixo, frei José constatou com
alívio que os aldeões haviam cuidado muito bem da imagem do santo; e
o devolveram com tristeza. Porém, ao embarcarem para continuar a
viagem, eis que a balsa encalha novamente, por sorte havia outra balsa
que, bem atrelada à outra por uma trave, fez o reboque de maneira
menos dramática que a anterior. Os passageiros, no entanto, estavam
indignados, dizendo que a culpa era do padre, “designo de Deus”;
21
“Nosso Senhor quer que ele fique!” E não o aceitavam na embarcação.
Mas o capitão, usando de muita perspicácia e bom senso, sentenciou
com cara de piedade:
- É o santinho! O santo quer ficar! Deixe a imagem, bom padre, e
vamos seguir viagem.
Os passageiros esperavam a decisão do franciscano com
ansiedade e ele entendeu que era a única maneira de seguir para a
civilização. Beijou a imagem e pediu desculpas em latim, entregando-o a
xá Mariquinha.
- Cuide bem desse santinho, nhá!
Ela, com lágrima nos olhos:
- Com a minha vida, meu bom padre.
O frei embarcou muito triste e nunca mais foi visto por aquele
povoado. Mas, quando a balsa desapareceu no rio, mestre Vasques
comemorou:
- O santo quis ficar com a gente! Viva nosso santo milagreiro! Viva
Santo Antônio do Rio Abaixo.
SINEIRO DAS ALMAS
Existem demônios. Há anjos também, mas as pessoas preferem os
demônios. Quantos comprariam um livro sobre anjos? Quantos
comprariam um sobre demônios? Quantos iriam ao cinema pra ver anjos
ajudando pessoas? E quantos vão para ver demônios atormentando a
espécie humana?
Imaginemos uma manchete: “Família se emociona ao adquirir a
casa própria”. É, no mínimo, careta. Mas “Neto mata a avó para herdar
bicicleta” dá uma vontade de ler, não é?
22
Eu só sei que voltávamos, Maria e eu, de um jantar naquela sexta-
feira. Não, não nos divertíamos; trabalhávamos em um buffet. Eu tinha
19 e Maria 23; eu era garçon e Maria auxiliar de cozinha. Ela era
deliciosa e eu, um jovem faminto. A noite estava muito fria e deserta,
além de um denso nevoeiro que cobria a cidade de Três Lagoas. Na rua
não se via viva-alma e o relógio do centro marcava duas horas da
madrugada. Na estação, a última composição já havia saído e a próxima
ainda demoraria.
Apesar do frio, eu voltava feliz: com gorjeta no bolso e ao lado de
Maria. Eu fazia companhia a ela, em contrapartida, ela suportava minhas
investidas. A moça era medrosa, mas o que presenciamos foi de meter
medo a qualquer um. Quando cruzávamos a Praça das Bandeiras, Maria
parecia não ter resistido ao frio e estatelou ali, parecendo congelada.
- Anda, Maria! Parar é pior, que o corpo esfria!
- Perai!
- Quê foi?
- O sino da Igrejinha tá tocando?
Pois é! O sino da Igrejinha de Santo Antônio tocava um discreto e
longo toque que cortava o silêncio da madrugada. Estatelamos ali os
dois a ouvir o sinistro e impróprio sino.
- Legião das arma!
Senti meus cabelos arrepiando. Quem, por Deus, havia dito aquilo?
Os olhos de Maria quase caíram fora do rosto e a pobre já não sentiu as
pernas.
- Os condenado do inferno e um preto que, com seu único braço,
conduz essa legião de armas, pela escuridão da noite.
Quando consegui voltar meu rosto, vi um senhor alto e magro,
porém forte, com boné de charreteiro na cabeça e um cachecol que lhe
cobria do pescoço até o nariz.
Naquele tempo, corriam pela cidade rumores de que o lobisomem
andava a solta pela madrugadas da cidade. Havia muito medo,
23
sobretudo na periferia, e o medo é algo contagioso. Não era preciso
muito para meter medo à Maria, mas confesso que mesmo eu, que não
dava crédito aos boatos, tive medo de estar diante do monstro.
- Isso é assombração, meus fi! Vamo andano que eu conto.
Acompanhamos o estranho no nosso trajeto, mesmo suspeitando
de suas intenções.
O homem contou que, antes da ferrovia chegar à região, os índios
Ofaié viviam ali e tinha uma religião muito rica no aspecto sobrenatural,
com seus encantamentos e rituais mágicos. Acreditavam, por exemplo,
que tudo tinha duas origens: vinha da terra ou vinha das árvores. Era
como se o céu fosse no interior da terra e o inferno no interior das
árvores, apesar de ser quase impossível alguma comparação. Os
primeiros Ofaiés, segundo eles próprios, tinham vindo do interior da
terra.
Durante a guerra do Paraguai, um soldado desertor teria anotado
detalhes sobre essa religião. Ele teria vivido seus últimos dias entre os
indígenas e, tendo falecido, deixou para eles suas anotações: uma
pequena pilha de papeis pardos e amarrotados, mas que continha todas
as tradições que o desertor pôde aprender durante sua estadia.
Quando os mineiros chegaram à região, onde futuramente seria a
cidade, conheceram os manuscritos e adotaram as práticas religiosas
prescritas nele, tendo se tornado tão popular, quanto os ritos católicos.
Muitas décadas mais tarde, um vigário da região teria considerado
oficialmente as práticas como heréticas e recolhido os papéis. Conta-se
que eles foram trancados em uma caixa de bronze e guardados na
sacristia da Igrejinha de Santo Antônio, a espera de uma missão que os
levasse para o Vaticano.
Porém, um jovem comerciante sírio, entregue a ambição de fazer-
se rico em pouco tempo e tendo tomado conhecimento de que o
manuscrito continha o “segredo da fortuna”, contratou um facínora para
subtrair a relíquia da guarda da igreja. Entretanto, essa igreja era
24
guardada por uma atalaia singular: um jovem homem negro, cujo braço
fora-lhe amputado por um homem perverso que se dizia “seu
proprietário”. Após o ato brutal, a comunidade o resgatou dando-lhe
como casa a própria Igrejinha, da qual ele cuidava com carinho e muito
zelo. Seu nome era José Maria de Jesus (um sobrenome arranjado,
certamente, já que todo o conjunto reporta à sagrada família) era o
sacristão residente, fazia de tudo e dormia embolado na minúscula
sacristia. A morada, no entanto, dava-lhe muito orgulho, pois dizia que
sua casa era na “portinha do céu”. Todos diziam que o rapaz era um
anjinho de Deus, sem boca para responder, ou maltratar. Ás ave-marias,
domingos e velórios, seu único e vigoroso braço fazia soar o sino a
quase uma légua. Era calado e tímido, mas um homem de fé, para quem
a oração era um dever constante. Mas nosso mundo não gosta dos bons
e o bondoso homem foi cruelmente assassinado na sacristia, enquanto
dormia. O mal-feitor levou consigo duas caixas: a da oferta e a que
continha o manuscrito.
O sírio a recebeu longe dali num porto do Rio Paraná, de onde o
assassino seguiria para o Paraguai.
O crime abalou o pequeno lugar que velou com pesar o pobre
sacristão; o sírio, pelo visto, conseguiu o que queria, tendo se tornado
senhor de grandes bens e tendo entrado para a história do lugar, mas
até hoje o sacristão volta para tocar o sino da igrejinha para as almas
que foram condenadas ao inferno antes do juízo final: os assassinos, os
que roubam os órfãos inocentes, os agiotas e os soberbos.
Quando aquele senhor terminou de contar essa história, Maria e
eu estávamos petrificados. Ele falara o tempo todo, de forma que, ao
percebermos, já estávamos nos confins do bairro Nossa Senhora
Aparecida. A escuridão nos banhava de medo e congelava mais que o
frio. Parecia haver algo ali.
Foi então que do meio do nevoeiro saiu uma fera semelhante a um
porco, porém mais ágil e peluda. Eu confesso que achei que era meu
25
fim, Maria encostou-se a mim e desabou, mas a fera queria mesmo era
aquele senhor que nos havia contado uma estranha história.
A criatura preparou o bote e o atacou; ele defendeu-se colocando
um braço à frente da jugular. Ela, porém, arrancou-o com facilidade e o
levou para a escuridão, sumindo-se enfim. O homem ficou ali caído,
acompanhando a mim e Maria, que nos entregamos ao medo
totalmente. Eu acreditei que ele estava morto, dada a violência com que
fora mutilado, mas o homem começou a se mexer e a levantar-se com
naturalidade.
- Como você está, amigo?
- Tô bem.
- E o braço?
- Era uma prótese. O braço mermo, eu já perdi faiz hora.
- O que era aquilo?
- O dimonho!
Maria parecia morta e eu estava atônito olhando aquele homem,
pensando sobre o ocorrido. Só agora é que eu pude ver seu rosto negro
que já não se ocultava sob o boné e o cachecol. Ele olhava firme para
algo atrás de mim. Quando, voltando-me, vi uma imensa procissão
desfilava através do nevoeiro que se abria, muito maior que qualquer
uma que eu já tenha visto: “a procissão dos penados”. Foi então que ele
retirou debaixo da sua capa um sinete e o fez vibrar. A procissão o
seguiu, deixando-nos ali, entregues ao medo enlouquecedor.
Despertei na minha cama. Não. Não foi um sonho, mas como eu
havia chegado ali? Eu não me lembrava de ter andado nem mais um
passo até chegar a casa! E Maria? O que fora feito dela? Peguei a
bicicleta e fui à sua casa imediatamente. Ao chegar, seus parentes
disseram-me que a garota estava fora de seu normal, empenhada em
uma novena desde que chegara durante a madrugada. Eu quis vê-la e
foi deveras enigmático ver a pobre Maria, que não era de religião,
26
ajoelhada, com véu na cabeça, terço nas mãos, rezando, alheia a tudo a
sua volta.
ALVES MACHADO
Paulo Henrique Alves Machado nasceu em Três Lagoas – Mato Grosso do Sul – em 1970. Graduou-se em Letras, pela Universidade Federal de seu estado, em 1995. Fez carreira com professor (sobretudo de Língua Portuguesa) em Cuiabá.
Apesar da formação acadêmica e a nítida influência de autores como Machado de Assis e Alcântara Machado, diz ter se inspirado pelas narrativas orais da avó paterna (Sebastiana Rita do Carmo), além de outros contadores de “causos” que conheceu na infância.
Tem inúmeros trabalhos publicados em sites da Internet e um livro (ainda inédito) intitulado “COMBOIO DE CAUSOS”.
(***)
Alcântara Machado
GAETANINHO
- Xi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford
quase o derrubou e ele não viu o Ford.
O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
- Eh! Gaetaninho! Vem prá dentro.
27
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão
feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
- Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo
beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou.
Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a
direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta
adentro.
Êta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De
automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de
casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização
muito difícil. Um sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde
atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se
mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos
empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre.
Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do
carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco
onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de
roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera
da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro
28
do carro o pai os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha
outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas
calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro.
Sobretudo admirando o Caetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir
carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem
por um instantinho só.
Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de
cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do
sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego
da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por
outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e
escolheu o acendedor da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez
lhe deu um cocre danado de doído.
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram
arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram
loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar
de dar a vaca mesmo.
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora
Gaetaninho não estava ligando.
- Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
- Meu pai deu uma vez na cara dele.
- Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
29
O Vicente protestou indignado:
- Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio
de responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem
perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços
estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
- Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o
muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
- Vá dar tiro no inferno!
- Cala a boca, palestrino!
- Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um
bonde o pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.
- Sabe o Gaetaninho?
- Que é que tem?
- Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
30
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua
do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do
acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com
flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas
não levava a palhetinha.
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia
soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
CARMELA
Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a
madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca
vem ao seu lado.
A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de
automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO
PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as
costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como
gangorras.
- Espia se ele está na esquina.
- Não está.
- Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente
mesmo.
- Que fiteiro!
31
O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde.
Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva
Marengo maduro para os lábios dos amadores.
- Ai que rico corpinho!
- Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!
Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a
boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os
fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das
orelhas descobertas.
Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.
- Olha o automóvel do outro dia.
- O caixa-d'óculos?
- Com uma bruta luva vermelha.
O caixa-d'óculos pára o Buick de propósito na esquina da
praça.
- Pode passar.
- Muito obrigada.
Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.
- Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!
Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo
Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas,
gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um
32
botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspecionar a
Rua Barão de Itapetininga.
- O Ângelo!
- Dê o fora.
Bianca retarda o passo.
Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E
o Ângelo junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só que
sorri.
- Já acabou o romance?
- A madama não deixa a gente ler na oficina.
- É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.
- Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não
segura no braço!
- Enjoada!
Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a
passar.
- Quem é aquele cara?
- Como é que eu hei de saber?
- Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não
olha pra ele que eu armo já uma encrenca!
33
Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick
guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à calçada. E
estacam.
- Boa tarde, belezinha...
- Quem? Eu?
- Por que não? Você mesma...
Bianca rói as unhas com apetite.
- Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?
- Ao lado de minha casa.
- Onde é sua casa?
- Não é de sua conta.
O caixa-d'óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um
traquejado.
- Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.
- Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida n.0 4.
Carmela mora com a família dela no 5.
- Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Você é capaz de lhe
dar um recado?
Bianca rói as unhas.
34
- Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas,
na rua... na.... atrás da Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha,
hein? Sem você. O barbeirinho também pode ficar em casa.
- Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!
- É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, as
oito horas, atrás da igreja.
- Vá saindo que pode vir gente conhecida.
Também o grilo já havia apitado.
- Ele falou com você. Pensa que eu não vi?
O Ângelo também viu. Ficou danado.
- Que me importa? O caixa-d'óculos disse que espera você
amanhã de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja.
- Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!
- Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.
- Ele disse?
- Gosta pra burro.
- Não vou na onda.
- Que fingida que você é!
- Ciao.
- Ciao.
35
Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro
Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a
Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo II.
Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é
linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a
íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa
disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula
do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E
atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada
entregando ao vento os cabelos cor de carambola.
Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o
castelo não é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe
Santini berra no corredor:
- Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa
principessa!
E - raatá! - uma cusparada daquelas.
- Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou
avisando.
- Trouxa. Que tem?
No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d'óculos sem
tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez:
- Uma voltinha de cinco minutos só... Ninguém nos verá.
Você verá. Não seja má. Suba aqui.
36
Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a
do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez,
levantando e descendo a cinta. Bianca rói as unhas.
- Só com a Bianca...
- Não. Para quê? Venha você sozinha.
- Sem a Bianca não vou.
- Está bem. Não vale a pena brigar por isso.
- Você vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás.
- Mas cinco minutos só. O senhor falou...
- Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.
Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana.
Só pára no Jardim América.
Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a
penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha denticulada
do tripeiro Giuseppe Santini.
- Xi, quanta cousa pra ficar bonita!
- Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.
- Que é?
- Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que
disse.
- Pirata!
37
- Pirata por quê? Você está ficando boba, Bianca.
- É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por
isso é que o Ângelo me disse que você está ficando mesmo uma vaca.
- Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me
conhece.
- Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo
mesmo.
Saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. No
degrau de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a
belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe.
- Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?
- Andiamo.
Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito
vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar
um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosissima.
Logo encontra a Ernestina. Conta tudo ã Ernestina.
- E o Ângelo, Bianca?
- O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. E pra casar.
- Há!...
38
LISETTA
Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo
o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.
Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.
Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na
boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus
olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo da menina de
pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz.
- Olha o ursinho que lindo, mamãe!
- Stai zitta!
A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de
brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do
bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima,
depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada.
E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a
importância.
Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam,
se cruzam, batem umas nas outras.
- As patas também mexem, mamã. Olha lá!
- Stai ferma!
39
Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho.
Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a
coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o
bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.
- Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?
- Ah!
- Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas
crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe.
A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho
da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a
bolsa e olhou o espelho.
Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido
da filha:
- In casa me lo pagherai!
E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um
beliscão daqueles.
Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou.
Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.
- Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe!
Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!
- Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!
- Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...
- Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!
40
Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro
testemunhou o feio que Lisetta fez.
O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para
a direita, para cima e para baixo.
- Non piangere più adesso!
Impossível.
O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má,
antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e
agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.
Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os
passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem!
- Olha à direita!
Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona
Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro
beliscão.
A entrada de Lisetta em casa marcou época na história
dramática da família Garbone.
Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no
corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para
remate. Que não acabava mais.
O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas,
suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.
Mas o Ugo chegou da oficina.
41
- Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!
Também Lisetta já não agüentava mais.
- Toma pra você. Mas não escache.
Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho
e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso.
Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo
pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como
uma desesperada:
- Ele é meu! O Ugo me deu!
Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.
CORINTHIANS (2) vs. PALESTRA (1)
Prrrrii!
- Aí, Heitor!
A bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou
com ela.
A arquibancada pôs-se em pé. Conteve a respiração.
Suspirou:
- Aaaah!
42
Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em
torno do trapézio verde a ânsia de vinte mi1 pessoas. De olhos ávidos.
De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque Antártica.
Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam,
chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-
se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que
não parava um minuto, um segundo. Não parava.
- Neco! Neco!
Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu.
Parou. Chutou.
- Gooool! Gooool!
Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando.
Achando aquilo um desaforo, um absurdo.
Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Hurra! Hurra! Corinthians!
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam.
Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:
- Go-o-o-o-o-o-ol!
Miquelina fechou os olhos de ódio.
- Corinthians! Corinthians!
Tapou os ouvidos.
- Já me estou deixando ficar com raiva!
43
A exaltação decresceu como um trovão.
- O Rocco é que está garantindo o Palestra. Aí, Rocco!
Quebra eles sem dó!
A Iolanda achou graça. Deu risada.
- Você está ficando maluca, Miquelina. Puxa! Que bruta
paixão!
Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora no Biagio
(o jovem e esperançoso esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar
da firma desta praça G. Gasparoni & Filhos e denodado meia-direita do
S. C. Corinthians Paulista, campeão do Centenário) só por causa dele.
- Juiz ladrão, indecente! Larga o apito. gatuno!
Na Sociedade Beneficente e Recreativa do Bexiga toda a
gente sabia de sua história com o Biagio. Só porque ele era freqüentador
dos bailes dominicais da Sociedade não pôs mais os pés lá. E passou a
torcer para O Palestra. E começou a namorar o Rocco.
- O Palestra não dá pro pulo!
- Fecha essa latrina, seu burro!
Miquelina ergueu-se na ponta dos pés. Ergueu os braços.
Ergueu a voz:
- Centra, Matias! Centra, Matias!
Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A
assistência berrou.
- Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra Aleguá! Aleguá!
44
O italianinho sem dentes com um soco furou a palheta
Ramenzoni de contentamento. Miquelina nem podia falar. E o menino de
ligas saiu de seu lugar. todo ofegante, todo vermelho, todo triunfante, e
foi dizer para os primos corinthianos na última fileira da arquibancada:
- Conheceram, seus canjas?
O campo ficou vazio.
- Ó... lh'a gasosa!
Moças comiam amendoim torrado sentadas nas capotas dos
automóveis. A sombra avançava no gramado maltratado. Mulatas de
vestidos azuis ganham beliscões. E riam. Torcedores discutiam com
gestos.
- Ó... lh'a gasosa!
Um aeroplano passeou sobre o campo.
Miquelina mandou pelo irmão um recado ao Rocco.
- Diga pra ele quebrar o Biagio que é o perigo do Corinthians.
Filipino mergulhou na multidão.
Palmas saudaram os jogadores de cabelos molhados.
Prrrrii!
- O Rocco disse pra você ficar sossegada.
Amilcar deu uma cabeçada. A bola foi bater em Tedesco que
saiu correndo com ela. E a linha toda avançou.
45
- Costura, macacada
Mas o juiz marcou um impedimento.
- Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a
escada.
- Não pode! Põe pra fora! Não pode!
Turumbamba na geral. A cavalaria movimentou-se.
Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino.
Miquelina protestou baixinho:
- Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi!
- Quantos minutos ainda?
- Oito.
Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando.
Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a
vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou.
Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se.
Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco! Caiu.
- CA-VA-LO!
Prrrrii!
- Pênalti!
46
Miquelina pôs a mão no coração. Depois fechou os olhos.
Depois perguntou:
- Quem é que vai bater, Iolanda?
- O Biagio mesmo.
- Desgraçado.
O medo fez silêncio.
Prrrrii!
Pan!
- Go-o-o-o-ol! Corinthians!
- Quantos minutos ainda?
Pri-pri-pri!
- Acabou, Nossa Senhora!
Acabou.
As árvores da geral derrubaram gente.
- Abr'a porteira! Rá! Fech'a porteira! Prá!
O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos
braços.
- Solt'o rojão! Fiu! Rebent'a bomba! Pum! CORINTHIANS!
O ruído dos automóveis festejava a vitória. O campo foi-se
esvaziando como um tanque. Miquelina murchou dentro de sua tristeza.
47
- Que é - que é? É jacaré? Não é!
Miquelina nem sentia os empurrões.
- Que é - que é? É tubarão? Não é!
Miquelina não sentia nada.
- Então que é? CORINTHIANS!
Miquelina não vivia.
Na Avenida Água Branca os bondes formando cordão
esperavam campainhando o zé-pereira.
- Aqui, Miquelina.
Os três espremeram-se no banco onde já havia três. E gente
no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado
da entrevia.
A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando,
assobiando e cantando. O mulato com a mão no guindaste é quem
puxava a ladainha:
- O Palestra levou na testa!
E o pessoal entoava:
- Ora pro nobis!
Ao lado de Miquelina o gordo de lenço no pescoço
desabafou:
- Tudo culpa daquela besta do Rocco!
48
Ouviu, não é Miquelina? Você ouviu?
- Não liga pra esses trouxas, Miquelina.
Como não liga?
- O Palestra levou na testa!
Cretinos.
- Ora pro nobis!
Só a tiro.
- Diga uma cousa, Iolanda. Você vai hoje na Sociedade?
- Vou com o meu irmão.
- Então passa por casa que eu também vou.
- Não!
- Que bruta admiração! Por que não?
- E o Biagio?
- Não é de sua conta.
Os pingentes mexiam com as moças de braço dado nas
calçadas.
O FILÓSOFO PLATÃO
(Senhor Platão Soares)
49
Fechou a porta da rua. Deu dois passos. E se lembrou de que
havia fechado com uma volta só. Voltou. Deu outra volta. Então se
lembrou de que havia esquecido a carta de apresentação para o diretor
do Serviço Sanitário de São Paulo. Deu uma volta na chave. Nada. É
verdade: deu mais uma.
- Nhana! Nhana! Nhana!
Nhana apareceu sem meias no alto da escada.
- Estou vendo tudo.
- Ora vá amolar o boi! Que é que você quer?
- Na gaveta do criado-mudo tem uma carta. Dentro de um
envelope da Câmara dos Deputados. Você me traga por favor. Não. Eu
mesmo vou buscar. Prefiro.
- Como queira.
E foi buscar. Saiu do quarto e parou na sala de jantar.
- Ainda tem geléia ai, Nhana?
- No armário debaixo de uma folha de papel.
- Obrigado.
Escolheu cuidadosamente o cálice. Limpou a colherinha no
lenço. Nhana ia passando com o ferro de passar. Mas não se conteve.
- Platão, Platão, você não vai falar com o homem, Platão?
- Calma. Muita calma. Glorinha entregou o ordenado?
50
Nhana sacudiu a cabeça:
- Sim senhor!
Fingiu que não compreendeu. Raspado o fundo do cálice
lavou meticulosamente as mãos. E enxugou sem pressa. Dedo por dedo.
Abriu a porta. Fechou. Vinha vindo um bonde a duzentos metros.
Esperou. Agora o ônibus. Esperou. Agora um automóvel do lado
contrário. Esperou. Olhou bem de um lado. Olhou bem de outro.
Certificou-se das condições atmosféricas de nariz para o ar.
Marcialmente atravessou a rua.
O poste cintado esperava os bondes com gente em volta.
Platão quando ia chegando escorregou numa casca de laranja. Todos
olharam. Platão equilibrou-se que nem japonês. Encarou os presentes
vitoriosamente. Na lata, seus cretinos. Esfregou a sola do sapato na
calçada e foi esperar em outro poste. Chegou de cabeça baixa.
- Boa tarde, Platão.
- O mesmo, Argemiro, como vai você?
- Aqui neste solão esperando o maldito 19 que não chega!
Platão cavou um arzinho risonho. Acendeu um cigarro. Disse
sem olhar:
- Eu espero o ônibus da Light.
- Milionário é assim.
Primeiro deu um puxão nos punhos postiços. Depois
respondeu:
51
- Nem tanto...
O19 passou abarrotado. Argemiro não falava. Platão sim de
vez em quando:
- Esse é um dos motivos por que eu prefiro o ônibus da Light
apesar do preço. Tem sempre lugar. Depois é um Patek.
Mas era só para moer.
Argemiro deu adeusinho e aboletou-se à larga num 19 vazio.
Então Platão soltou um suspiro e pongou o 13 que vinha atrás.
Ficou no estribo. Agarrado no balaustre. Imaginando
desastres medonhos. Por exemplo: cabeçada num poste. Escapando do
primeiro no segundo. Impossível evitar. Era fatal. Uma sacudidela do
bonde e pronto. Miolos à mostra. E será que a Nhana casaria de novo?
- O senhor dá licença?
- Toda.
Não tinha visto o lugar. Pois a mulher viu. Que danada. Toda
a gente passava na frente dele. Triste sina. Tomava cocaína. Ora que
bobagem.
- Ô Seu Platãozinho!
A voz do Argemiro. Enfiou o rosto dentro do bonde.
- Ô seu pândego!
O cavalheiro do balaústre foi amável:
- Parece que é com o senhor.
52
- Olá, Argemiro, como vai você?
- Te gozando, Platãozinho querido!
Resolveu a situação descendo.
- Não tem nada de extraordinário3 Argemiro. Não precisava
lazer tanto escândalo. Homessa! Então eu sou obrigado a andar de
ônibus só? E ainda por cima da Light? E não tendo dinheiro trocado no
bolso? Homessa agora! Homessa agora!
- Até outra vez, seu bocó!
Profunda humilhação com o sol assando as costas.
Mas não é que tinha de descer ali mesmo? Praça da
República, Rua do Ipiranga, Serviço Sanitário. Esta agora é de
primeiríssima ordem. Argemiro sem querer fez um favor. Um grande?
Um grandérrimo.
Para a satisfação consigo mesmo ser completa só faltava
abrir o guarda-sol. Você não quer abrir. desgraçado? Você abre,
desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Abre nada. Nunca viu, seu
italianinho de borra? Guarda-sol, guarda-sol, não me provoque que é
pior. Desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Platão heroicamente fez
mais três tentativas. Qual o quê. Foi andando. Batia duro com a ponteira
na calçada de quadrados. De vingança. Se duvidarem muito as costas já
estão fumegando. Depois asfalto foi feito ES-PE-CI-AL-MEN-TE para
aumentar o calor da gente. Platão parou. Concentrou toda a sua
habilidade na ponta dos dedos. É agora. Não e não. Vamos ver se vai
com jeito. Guarda-solzinho de meu coração, abra, sim meu bem? Com
delicadeza se faz tudo. Você não quer mesmo abrir, meu amorzinho?
53
Está bem. Está bem. Paciência. Fica para outra vez. Você volta pro
cabide. Cabide é o braço. Que cousa mais engraçada.
Rua do Ipiranga. Êta zona perigosa. Platão não tirava os
olhos das venezianas. Só mulatas. Êta zona estragada.
- Entra, cheiroso!
- Sai, fedida!
Que resposta mais na hora, Nossa Senhora. É longe como o
diabo esse tal de Serviço Sanitário. Pensando bem.
- Boa tarde, Seu Platão, como vai o senhor? Ó Dona Eurídice,
como vai passando a senho... ora que se fomente!
Olhou para trás. Não ouviu. Que ouvisse. Parou diante da
placa dourada. Sem saber se entrava ou não. Não será melhor não?
Tanta escada para subir, meu Deus.
O tição fardado chegou na porta contando dinheiro.
- O doutor diretor já terá chegado?
- Parece que ainda não chegou, não senhor.
Aí resolveu subir.
- O doutor diretor ainda não chegou?
O cabeça-chata custou para responder.
- Chegou, sim senhor. Quer falar com ele?
- Ah, chegou?
54
O cabeça-chata papou uma pastilha de hortelã-pimenta e
falou:
- Agora é que eu estou reparando... o Seu Platão Soares...
Sim senhor, Seu Platão. Desta vez o senhor teve sorte mesmo:
encontrou o homem. Vá se sentando que o bicho hoje atende.
Platão deu uma espiada na sala.
- Xi! Tem uns dez antes de mim.
- Paciência, não é?
Platão se abanava com o chapéu-coco. Triste. Triste. Triste.
- Que é que você está chupando?
- Eu? Eunãoestouchupandonadanãosenhor!
Platão deu um balanço na cabeça.
- Sabe de uma cousa? Aai!.. . Eu volto amanhã...
- O senhor dá licença de um aparte, Seu Platão? Eu se fosse
o senhor não deixava para amanhã não. O senhor já veio aqui umas dez
vezes?
- Não tem importância. Eu volto amanhã.
- Admiro o senhor, Seu Platão. O senhor é um FI-LÓ-SO-FO,
Seu Platão, um grande FI-LÓ-SO-FO!
- Até amanhã.
- Se Deus quiser.
55
Desceu a escada devagarzinho. Tirando a sorte. Pé direito:
volto. Pé esquerdo: não volto. Foi descendo. Volto, não volto, volto, não
volto, vol.... to, não vol... to, vol... to! Parou. Virou-se. Mediu a escada.
Virou-se. Olhou a rua. É verdade: e o degrau da soleira da porta? Mais
um não-volto. Mais um. Porém para chegar até ele justamente um
passo: volto. Ai está. Azar. O que se chama azar. Platão retesou os
músculos armando o pulo. Deu. De costas na calçada. A mocinha que ia
chegando com a velhinha suspendeu o chapéu. A velhinha suspendeu o
guarda-sol. O chofer do outro lado da rua suspendeu o olhar. Platão
Soares finalmente suspendeu o corpo. Ficou tudo suspenso. Até que
Platão muito digno pegou o chapéu. Agradeceu. Ia pegando o guarda-
sol. A velhinha quis fechá-lo primeiro.
- Não, minha senhora! Prefiro assim mesmo aberto, por
favor. Muito agradecido. Muito agradecido.
De guarda-sol em punho deu uns tapinhas nas calças.
Depois atravessou a rua. Parou diante do chofer. Cousa mais
interessante ver mudar um pneumático.
E não demorou muito.
- Eu se fosse o senhor levantava um pouquinho mais o
macaco, não acredita?
ALCÂNTARA MACHADO
Antônio Castilho de Alcântara Machado d'Oliveira (São Paulo, 25 de maio de 1901 — Rio de Janeiro, 14 de abril de 1935) foi um jornalista, político e escritor brasileiro. Apesar de não ter participado da
56
Semana de 1922, Alcântara Machado escreveu diversos contos e crônicas modernistas, além de um romance inacabado.
Formou-se em direito no ano de 1924, na Faculdade de Direito de São Paulo. Estreou na literatura primeiramente ao escrever críticas de peças de teatro para o jornal. No ano de 1925, viajou à Europa, onde já estivera quando criança, e de onde se inspirou para escrever crônicas e reportagens que viriam a dar origem ao seu primeiro livro, Pathé-Baby (primeiramente publicado em 1926), o qual recebeu um prefácio de Oswald de Andrade, este que estreitava os laços de amizade com Alcântara.
Brás, Bexiga e Barra Funda Uma de suas obras mais conhecidas é Brás, Bexiga e Barra Funda, uma coletânea de contos. Publicada em 1928, trata do quotidiano dos imigrantes italianos e dos ítalo-descendentes na cidade de São Paulo, expressando-se a narrativa numa linguagem livre, próxima da coloquial. Mostrava as impressões duma São Paulo imersa na experiência da imigração, que então vinha modificando os trejeitos da cidade.
Obra:
Pathé-Baby (1926), romance Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), contos Laranja da China (1928), contos Mana Maria (inacabado), romance Cavaquinho e saxofone (1940, póstuma), crônicas e ensaios Contos Avulsos (1961, póstuma), contos
Extraído da “Wikipédia: a enciclopédia livre” http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_de_Alc%C3%A2ntara_Machado
(***)
Machado de Assis
MISSA DO GALO
57
Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há
muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal.
Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não
dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses,
que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A
segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando
vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar
preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do
Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família
era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes
velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e
meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez,
ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse
consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à
socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã
seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em
ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e
dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a
princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se,
acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão
facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um
temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem
grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria
um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal.
Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem
bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia
mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não
soubesse amar.
58
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de
1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei
até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à
hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali
passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha
três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a
terceira ficava em casa.
- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me
a mãe de Conceição.
- Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução
creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da
sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia,
trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às
aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os
minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de
espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso.
Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da
leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de
jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto
de Conceição.
- Ainda não foi? Perguntou ela.
- Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
- Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova.
Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha
um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de
aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte
de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia
acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
- Não! qual! Acordei por acordar.
59
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de
pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no
sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro
espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse
justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou
aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
- Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho
dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu
cuidei que se assustasse quando me viu.
- Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos
Mosqueteiros.
- Justamente: é muito bonito.
- Gosta de romances?
- Gosto.
- Já leu a Moreninha?
- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo.
Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a
cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras
meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua
pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse
nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a
cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os
cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes
olhos espertos.
- Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
E logo alto:
- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
60
- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e
meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de
dia?
- Já tenho feito isso.
- Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e,
meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando
velha.
- Que velha o quê, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha
os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se
rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos,
entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o
desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra
embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar
o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite.
Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou
consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se,
ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas
idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o
que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não
queria perdê-la.
- É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
- Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também.
Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não
digo, nem Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore
da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando
abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos
braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A
vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele
momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão
61
azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A
presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a
dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas
que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber
por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la
sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os
olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um
tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu
alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:
- Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto
ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser
ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais;
ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida.
Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio
sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico
das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão
era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição
disse baixinho:
- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse
agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
- Eu também sou assim.
- O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a
palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos
três sonos leves.
- Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me
dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio,
torno a deitar-me, e nada.
- Foi o que lhe aconteceu hoje.
- Não, não, atalhou ela.
62
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a
entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os
joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas.
Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um
pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se
assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela
missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela
inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na
palavra. De quando em quando, reprimia-me:
- Mais baixo, mais baixo...
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a
via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem
sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor.
Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e
lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou
vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem
truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que
ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas
simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados;
eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das
mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer
alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio,
voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali
relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de
duas gravuras que pendiam da parede.
- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para
comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio
deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto
do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me
pareciam feios.
63
- São bonitos, disse eu.
- Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu
preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala
de rapaz ou de barbeiro.
- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
- Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de
moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles
com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que
eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não
gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha
madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede,
nem eu quero. Está no meu oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser
tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei
para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza
que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja.
Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas
anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá,
tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado,
falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que
lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me
contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra
da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a
olhar à toa para as paredes.
- Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se
falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono
magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos.
Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os
olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de
64
parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos
outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era
completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, -
inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de
camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de
sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia
estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado
de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"
- Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é
que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de
ser horas; adeus.
- Já serão horas? perguntei.
- Naturalmente.
- Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
-Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor
dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava.
Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição
interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos
meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do
galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de
Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem
nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui
para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o
escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho
Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara
com o escrevente juramentado do marido.
65
O ESPELHO
Esboço de uma nova teoria da alma humana
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias
questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos
trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de
Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se
misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as
suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam,
através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos
quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo
amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que
falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado,
pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou
outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos
companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano,
capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e
cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um
paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto
batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e
acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e,
aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma
resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a
demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele)
refletiu um instante, e respondeu:
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este
casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou
66
quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da
alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça,
cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se
difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se
deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência
dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma
opinião, - uma conjetura, ao menos.
- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra
pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se
querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em
que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se
trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz
duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha
de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca
aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem,
acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um
fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos,
por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de
uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma
máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro
que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as
duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma
laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da
existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior
implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior
aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer.
"Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me
67
enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma
exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma
exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a
certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões
que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell.
São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de
natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos
primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde
uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço
uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior
cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a
estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do
Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
- Perdão; essa senhora quem é?
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome;
chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho
experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-
me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco
anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso
prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só
a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de
outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco
ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos
68
estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as
memórias. Eis aqui como ele começou a narração:
- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser
nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento
que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão
contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria
sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e
ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que
o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho
também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da
simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo,
e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em
compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a
nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos...
Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha,
que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou
ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui,
acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia
Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo
que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me!
Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito.
Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da
moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a
província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre
alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu
pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a
cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado
dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de
outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à
vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na
69
mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam.
Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de
mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica,
que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era
um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o
comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI.
Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava
naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte
pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura,
uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho,
mas bom...
- Espelho grande?
- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o
espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve
forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta,
que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes"
merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos,
atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural
sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?
- Não.
- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas
naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à
outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que
a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças,
mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo
o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única
parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o
70
exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-
lhes acreditar, não?
- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos:
os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de
moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o
movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em
que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva
e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal
obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim
de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente
alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de
suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas,
estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe
extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com
ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a
aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o
certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes
que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao
efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em
torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada
a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim,
embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os
escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de
certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade
doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles
redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto
a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô
alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de
71
louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia
eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.
- Matá-lo?
- Antes assim fosse.
- Coisa pior?
- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos,
seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir
durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre
quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada.
Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um
molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas,
que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos
cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes
que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-
lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti
nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano
causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não
sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar
tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar
a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente
aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que
o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha
saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio
dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse
perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação
muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro,
nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes.
Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com
72
uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no
velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma
interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos
depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este
famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que
tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente
assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever,
never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um
cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais
silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra,
era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac.
Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém
em parte nenhuma... Riem-se?
- Sim, parece que tinha um pouco de medo.
- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o
característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo,
isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável.
Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico.
Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão
comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar
assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma
exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me
orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o
garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e
prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo
isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o
sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior
perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em
não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se
73
descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu
rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada
mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para
casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-
tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas,
assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um
artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente;
sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para
intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar.
Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a
tinta e alvejar o papel.
- Mas não comia?
- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes
tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a
terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos,
trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma
antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava
beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou
de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme,
infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-
tac...
- Na verdade, era de enlouquecer.
- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que
ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção
deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de
achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal
explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana,
porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho
74
com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro
parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura
nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A
realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-
me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter
sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o
fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo,
e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com
gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o
vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a
vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa
com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma
coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a
imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de
contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração
inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem
capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...
- Diga.
- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de
desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e
inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o
pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.
- Mas, diga, diga.
- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me
de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não
lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma
linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que
achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio,
75
dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai
um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos
sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas
não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é
Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta
ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia
de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia
tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante,
fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-
me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três
horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis
dias de solidão sem os sentir...
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as
escadas.
A CARTOMANTE
Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na
terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a
bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869,
quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante;
a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada.
Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes
mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as
cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim,
e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-
76
me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era
verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho
andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não
ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo.
Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em
todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele
mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por
essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém
nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar,
disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo.
Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante
adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e
satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-
lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi
77
supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe
incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair
toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como
tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma
dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava
em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento;
limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele
não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em
levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava
certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e
arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a
repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do
encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma
comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na
direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha,
olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma
explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de
infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no
funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o
pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou
um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província,
onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura
e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados
de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não
imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
78
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos
deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela
não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos
gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha
que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e
seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a
mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática.
Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a
natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem
experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco
depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois
mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos
sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e
ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A
verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua
enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e
bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para
incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e
passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites;
— ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as
cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que
procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao
marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos,
recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um
cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler
no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho.
Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,
79
deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste
com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim
é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como
uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os
ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado
e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura;
mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não
tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada
fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e
pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando
estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela
continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe
chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos.
Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as
visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu
que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As
ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser
que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de
diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do
ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu
à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do
procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a
confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram
ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas
anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por
80
outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude
é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo
e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o
anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio.
Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a
letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a
e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou
a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se
pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é
que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até
que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo
divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou
denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas
semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de
necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este
bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem
demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que
teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo
indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-
se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da
véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, —
repetia ele com os olhos no papel.
81
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita
subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo
o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo
estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso
repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se
de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo.
Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem
descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma
denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia
ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas
visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria
confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete,
mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então,
— o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a
própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem
demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e
ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A
comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria
passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a
cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia,
e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si
mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para
entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar
assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O
tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim
da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava
82
atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou
o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à
esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita
consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas.
Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas
e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do
indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação
dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais
emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as
superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e
ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-
se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir
a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas
cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro;
mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros
concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os
olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe
às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do
drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e
entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou
rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe
uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de
Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do
que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
83
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que
esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era
pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não
viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve
idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as
fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio
uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo
entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira
e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma
janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes
sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o
prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do
lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de
fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um
baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava,
rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos.
Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com
grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-
lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem
um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma
coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
84
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido
pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de
unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três
vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso
e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então
ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a
um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era
indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do
amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A
cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele
estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo
estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se
também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com
passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las,
mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa
mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso
por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira.
Quantas quer mandar buscar?
85
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da
cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela
gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha
o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia
com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela
embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante
alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo
achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote
largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam
outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos
seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela
e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe
descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera
mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou
qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o
incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos,
reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela
adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um
terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale
o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz
iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de
86
ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher,
as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá,
ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta
e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os
antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando
nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela
Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a
água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do
futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a
porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis
degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e
apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-
lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde
sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita
morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de
revólver, estirou-o morto no chão.
O ENFERMEIRO
PARECE-LHE ENTÃO que o que se deu comigo em 1860, pode
entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que
87
não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito,
pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em
que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo,
ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo
assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia,
um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor,
leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não
maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um
documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-
Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos
de defunto e não os dou a ninguém mais.
Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de
agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer,
copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo
companheiro de colégio, que assim me dava, delicadamente, casa,
cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta
de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa
entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao
coronel
Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me,
aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações
latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e
segui para a vila.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem
insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios
amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou
a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de
doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as
notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a
residência do coronel.
88
Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando
muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim
dous olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno
alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum
dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram
respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos!
— Você é gatuno?
— Não, senhor.
Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um
gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo.
Valongo? achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-
somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu
agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-
lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao
coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o
mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos
uma lua-de-mel de sete dias.
No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma
vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e,
às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei
que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e
do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de
aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha
perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a
vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau,
deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses
estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião.
Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo
uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes.
Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala.
89
Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena
zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.
— Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não
posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao
meu enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao
pé da minha sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de
noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo,
Procópio?
— Qual o quê!
— E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu
vivamente, arregalando os olhos.
Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das
bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com
o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo,
pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais
gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes;
tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de
julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e
nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para
um dicionário inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo
vigário, ia ficando.
Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu
estava ansioso por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que
havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente
bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu
nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao
coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para
a Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário.
Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e
tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir
dissipá-los aqui.
90
Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava
pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim.
O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se
raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que
me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um
fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi
definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram-
me que ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um
mês viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário
tratou de procurar-me substituto.
Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de
agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me
muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um
prato de mingau, que achou frio, o prato foi cair na parede onde se fez
em pedaços.
— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.
Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo
sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance
de d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo
quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite
para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de
chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos
do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar,
continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e
arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa
bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-
me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o.
Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e
dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para
chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel
morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao
91
quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo.
Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as
paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima,
antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim,
e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de
convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe
que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino!
assassino!
Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento,
igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do
quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria,
qualquer coisa que significasse a vida, e me restituísse a paz à
consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte,
cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa na sala,
sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. —
"Maldita a hora em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E
descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me
arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo.
Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.
Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das
janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite
ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que
tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra
coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir
a uma recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só
então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um
crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso.
Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro
vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada;
recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.
92
Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei
voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda
assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração
batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao
contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o
cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando
passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?"
Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei
ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe
que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao
médico.
A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter
meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias
antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada
imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo
amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí
da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma cousa.
Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar
ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que
entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário.
Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que
uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade:
— Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito
sentido.
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado.
Saímos à rua. A passagem da meia escuridão da casa para a claridade
da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o
crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou,
respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a
consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassossego
e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem
93
que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco,
mal comia, tinha alucinações, pesadelos...
— Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para
tanta melancolia.
E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto,
chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração
de ouro. E elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns
instantes. Outro fenômeno interessante, e que talvez lhe possa
aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo
eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites,
não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o
tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí
esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os
homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei
que nunca aludia ao coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale n’alma!" E
contava dele algumas anedotas alegres, rompantes engraçados...
Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta
do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento
do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo.
Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a
mesma cousa. Estava escrito; era eu o herdeiro universal do coronel.
Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia
outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais,
eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser
instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.
— Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.
— Não sei, mas era rico.
— Realmente, provou que era teu amigo.
— Era... Era...
Assim por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham
parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso
94
receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro
alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de
que a recusa podia fazer desconfiar alguma cousa. No fim dos três dias,
assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos
bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de
resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de
contas saldas.
Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção
que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila
tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me
surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os
gestos, toda a noite horrenda do crime...
Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em que eu, atacado,
defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade.
Fixei-me nessa idéia. E balanceava os agravos, punha no ativo as
pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da
moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava
tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei também
que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo
o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até
que menos. Já não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se
podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E quem sabe
mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser,
era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixei-me também nessa
idéia...
Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas
dominei-me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as
disposições do testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a
mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de
áspero e duro, soube ser grato.
95
— Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.
Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a
paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum
tempo na vila. Constituí advogado; as cousas correram placidamente.
Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me
cousas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava
algumas virtudes, era austero...
— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.
E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas
extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de
curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu
sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o,
atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um
pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me
o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a
mesma coisa; e vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto.
Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer
íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral,
que por mais que a arrancasse aos pedaços recompunha-se logo e ia
ficando.
As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado
a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi
perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles.
Entrando na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram
então passados muitos meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas
e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo
que era afetação. Restringi o plano primitivo: distribuí alguma cousa aos
pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à
Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dous contos. Mandei
também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um
napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no
96
Paraguai.
Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e
desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos
primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram
acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido
tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a
descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer,
ainda que não fosse aquela fatalidade...
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos
valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore,
ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão
da montanha: "Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão
consolados."
A IGREJA DO DIABO
I - DE UMA IDÉIA MIRÍFICA
CONTA um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em
certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja.Embora os seus lucros
fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso
que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones,
sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos,
dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que
não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de
combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra
Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e
pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais
aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos,
97
a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras
religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não
acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de
afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os
braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir
ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos,
acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo.
E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as
províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.
II - ENTRE DEUS E O DIABO
DEUS recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os
serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o
Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
- Que me queres tu? perguntou este.
- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo
rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
- Explica-te.
- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga:
recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as
mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos
cheios de doçura.
98
- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter
convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa
vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria
barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da
minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de
obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade,
para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de
ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso
de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou
lançar a minha pedra fundamental.
- Vai.
- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo,
cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar
uma igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha
alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de
memória, qualquer cousa que, nesse breve instante da eternidade, o
fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns
séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número
comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de
algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las
todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
99
- Velho retórico! murmurou o Senhor.
- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos
templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos
tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as
pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o
bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que
esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente
espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas
matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho
em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz
de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso
amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono.
Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus
interrompeu o Diabo.
- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito
da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está
dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens
força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que
te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os
sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e
sabes tu o que ele fez?
- Já vos disse que não.
- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime.
Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de
noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a
100
tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água
e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
- Negas esta morte?
- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade;
deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-
los...
- Retórico e subtil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua
igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos
os homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus
impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu
com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se
achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
III - A BOA NOVA AOS HOMENS
UMA VEZ na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e
entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que
reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e
fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos.
Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção
que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito
contavam as velhas beatas.
101
- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites
sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo
verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele
nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso.
Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado
para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei
tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo,
espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si.
E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A
doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso
quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes subtil,
outras cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas
por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a
preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou
não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era
robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na
existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada:
"Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da
gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons
versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das
batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez
imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou
histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem
negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os
bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva
do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor,
expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira,
102
pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do
mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal,
origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a
suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-
lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de cousas,
trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele
dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço
direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo.
Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista.
Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os
que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e
profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar
que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o
exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a
tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, cousas que são tuas por
uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti,
como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a
tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua própria
consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no
contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode
um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro
homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um
privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem?
Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as
vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que,
à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um
103
direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a
hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro
que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e
cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a
exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos
casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força
imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia
a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram
condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro
social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do
interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela
consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples
adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria
cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo
era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra
era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se
devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou
desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo
era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e
letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen:
"Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele
permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas
alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser
outra cousa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns
discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à
compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas
tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada
104
acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que
acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
IV - FRANJAS E FRANJAS
A PREVISÃO do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja
capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela
franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova.
Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A
igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do
globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça
que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que
muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes.
Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes,
e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer
frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de
preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas
mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas
quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas
mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que
estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais
diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até
incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara
longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria
os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que
tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de
105
uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali
roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo
e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O
manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias,
entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus
melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne
falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha
romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa;
chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois
esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações
aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as
semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não
lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas
vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha
aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de
refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa
análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de
conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com
infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não
triunfou, sequer, daquela agonia satânica.
Pôs os olhos nele, e disse:
- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão.
Que queres tu? É a eterna contradição humana.
MACHADO DE ASSIS
106
Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908) foi um escritor brasileiro, considerado um dos mais importantes nomes da literatura desse país e identificado, pelo crítico Harold Bloom, como o maior escritor negro de todos os tempos.
De sua vasta obra, que inclui ainda poesias, peças de teatro e crítica literária, destacam-se o romance e o conto. É considerado um dos criadores da crônica no país, além de ser importante tradutor, vertendo para o português obras como Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo e o poema O Corvo, de Edgar Allan Poe. Foi também um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e seu primeiro presidente, também chamada de Casa de Machado de Assis.
Livros de Contos:
Contos Fluminenses, 1870
Histórias da Meia-Noite, 1873
Papéis Avulsos, 1882
Histórias sem Data, 1884
Várias Histórias, 1896
Páginas Recolhidas, 1899
Relíquias da Casa Velha, 1906
Extraído da “Wikipédia: a enciclopédia livre” http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_assis
107
(***)
108