Historia Comparada
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UMA HISTÓRIA DA HISTÓRIA COMPARADA:
Entre críticas e possibilidades de um profícuo campo metodológico
Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira
Doutoranda pelo PROLAM-USP
Resumo: Este artigo se dedica a traçar a trajetória dos estudos comparados de história, e
percorre propostas apresentadas desde o início do século XX até os dias de hoje. Se refere às
elaborações de cientistas sociais do porte de Émile Durkheim e Max Weber, pouco
conhecidos pelos historiadores brasileiros. Trabalha também historiadores contemporâneos
dos annalistas franceses, mas que tiveram propostas distintas para o tratamento comparativo
porque desejaram, diferentemente dos representantes da chamada Nova História, compor uma
História Mundial, História das Civilizações – foco Oswald Spengler e Arnold Toynbee. Aqui
também abordo, é claro, as propostas de Marc Bloch, representante da École des Annales que
mais se interessou pela História Comparada; e, em seguida, críticas a ele destinadas por
Marcel Detienne. Por fim, esboço considerações sobre novas possibilidades para o
comparativismo para pesquisas na área da História.
Abstract: This paper is dedicated to trace the history of comparative studies; and it analyzes
proposals submitted since the beginning of the twentieth century until the present day. It
refers to the elaborations of social scientists of the stature of Émile Durkheim and Max
Weber, both not well known by Brazilian historians. It also refers to contemporary historians
of Annales that (unlike Annales) wanted to compose a World History, or a History of
Civilizations – Oswald Spengler and Arnold Toynbee. Here I approach, of course, the
proposals of Marc Bloch, representative of the École des Annales who was interested
in Comparative History; and then, I analyze the Marcel Detienne’s review. Finally, this paper
presents considerations about new possibilities for comparative studies for research in history.
Palavras-chaves: História Comparada, Durkheim, Weber, Spengler, Toynbee, Marc Bloch,
Detienne, História e Ciências Sociais, História e Antropologia, História e Estudos Literários,
História dos Conceitos.
Keywords: Comparative History, Durkheim, Weber, Spengler, Toynbee, Marc Bloch,
Detienne, History and Social Sciences, History and Anthropology, History and Literacy
Studies, History of Concepts.
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Introdução
Quase sempre, quando se aborda a história da História Comparada, se fala do trajeto
cumprido por pesquisadores, sobretudo europeus e norte-americanos, explorando
possibilidades e a necessidade de se produzir estudos que associassem, integrassem,
sintetizassem dados obtidos através da análise de fontes. Essa análise de fontes, concebida em
geral como anterior ao procedimento comparativo, se daria conforme uma dada metodologia,
essa em geral bem consolidada nas universidades do Centro. Quer dizer: o próprio
procedimento comparativo não chegaria, nesses casos, a ser considerado uma opção
propriamente metodológica, mas sim uma ação comum e característica do trabalho
acadêmico.
Efetivamente, como veremos, os historiadores mais reputados no Brasil e no mundo,
ligados à célebre École das Annales, não tendem a reconhecer o comparativismo como campo
metodológico. Dois exemplos de pesquisadores brasileiros bastante referenciados quando se
trata de História Comparada no Brasil, Boris Fausto e o argentino Fernando Devoto, por
exemplo, em livro recentemente publicado nos informam que aos olhos de um dos fundadores
dos Annales que mais se interessou pela História Comparada, Marc Bloch, ela corresponderia
a instrumento e não a uma teoria – seria instrumental, ocasional, focada, e limitada; talvez
fundamental para escolha dos objetos, mas não estruturadora de todo o universo da pesquisa.1
Outro nome bastante importante do comparativismo brasileiro também se filia a
Bloch: a professora uspiana Maria Ligia Coelho Prado. Ela, porém, considera as proposições
do annalista, para a História Comparada, como proposições tipicamente metodológicas –
escreveu que, para Bloch, “o método comparativo supunha determinados procedimentos...”
(PRADO: 17). Julgaria a mesma, também ou por isso, que é possível sim se fundar a História
Comparada como campo caracterizado por critérios rigorosos e fecundos.2
Entretanto, devo fazer notar que mesmo Prado reconhece que são pouco expressivos
os trabalhos em História Comparada no Brasil e na América Hispânica.3
Particularmente, considero que outras referências de uso do comparativismo, distintas
aquelas feitas pelos e sob inspiração dos annales, poderiam enriquecer o debate, e a análise
delas poderia levar à consolidação crítica da metodologia da comparação em História; para
desfrute de acadêmicos e não-acadêmicos, para desfrute de europeus e não europeus.
1 FAUSTO, Boris & DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada. São Paulo: Editora 34, s/d. p. 13.
2 PRADO, Mª Ligia Coelho. Repensando a História Comparada da América Latina. Revista de História. v. 153. n. 2. 2005. Capturado em 9 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/H59. p. 30.
3 Idem, p. 29.
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O presente texto dedica-se, assim, a avaliar lugares comuns da redigida História da
História Comparada, e a avaliar a possibilidade e importância da estruturação dos campos
metodológicos denomináveis: História Comparada dos Conceitos, e História Comparada dos
Conceitos de Identidade.
Começo, então, citando alguns célebres autores europeus que, antes da chegada do
século XX, utilizaram a comparação quando elaboraram estudos até hoje considerados
relevantes. Depois, abordo a sistematização do comparativismo por grandes nomes das
Ciências Sociais: Durkheim, Weber e Marx. Em seguida, trato de autores não-franceses que
teriam apresentado contribuições importantes ao debate sobre a comparação como método:
Spengler e Toynbee. Parto, então, para abordar a visão da École des Annales e de seu
principal crítico, Marcel Detienne. E, por fim, avalio possibilidades para a História
Comparada, hoje.
1. Comparação nas Ciências Sociais: sobretudo Durkheim, Weber e outros
A comparação faz parte de toda reflexão mais articulada, e é indício de erudição. Foi
praticada por renomados pensadores século XIX, como o francês Alexis de Tocqueville e o
inglês John Stuart Mill. Antes disso, tendeu a ser muito explorada por autores europeus que
pensavam o Novo Mundo, a América, mas também a África e a Ásia. Não existia uma
formalização do procedimento comparativo, é claro, mas ele serviu para melhor se pensar os
países da Europa, diferenças e identificações, e para melhor pensar o ser humano como um
todo, quando do contato com os homens e mulheres americanos, africanos e asiáticos que
tinham outros estilos de vida e de pensamento.
A comparação, até esse momento, não corresponde a um método, mas a uma opção
tomada pelos estudiosos que pretendem abordar mais de uma comunidade, um povo, uma
nação, integrando os elementos estudados. A idéia era, em última instância, compor-se uma
“quadro geral”.
Fausto e Devoto apontam intelectuais que antes do século XX trabalhavam com
comparativismo em análises históricas: o francês Charles Victor Langlois, o inglês lorde
Acton, e o alemão Otto Hintze. Contudo, Fausto e Devoto afirmam que esses autores
utilizaram a comparação mais como base do que ferramenta de reflexão mais orgânica. Ao ver
desses dois estudiosos latino-americanos, apenas no século XX intelectuais interessados em
história foram além da justaposição de dadas características dos elementos comparados.4
4 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 9.
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Conforme Fausto e Devoto, não podia ser fácil, para os historiadores, trabalhar
sistematicamente qualquer modelo de comparação que acreditassem ser científico. Desde a
historiografia positiva, fundada na Alemanha por nomes como Leopold Ranke, entendia-se a
História como uma ciência do único, do irrepetível. Como pontuou ironicamente o sociólogo
francês François Simiand, que viveu na transição do século XIX ao XX, essa noção era tabu;
o fato histórico singular era o ídolo maior da tribo dos historiadores. Seria possível pensar
semelhanças, diferenças e relações entre fatos históricos de maneira que eles seguissem sendo
concebidos como singulares? Parecia uma tarefa muito difícil. Generalizar e formular leis
eram consideradas funções não de historiadores; mas de cientistas sociais, filósofos, ensaístas
– tais como Tocqueville, Mill, Langlois, Acton, Hintze.5
Mesmo hoje, se Prado categoriza que “o historiador não está à procura de
generalizações e não constrói suas análises a partir de modelos elaborados a priori”,6 Fausto e
Devoto pontuam que se apóiam “na sensatez do historiador, mais do que nas sofisticadas
teorias das vizinhas ciências sociais”.7
Por isso, por essa questão de “princípios”, os passos iniciais dados no sentido da
conformação de um campo metodológico denominado História Comparada foram dados por
cientistas sociais e/ou por historiadores que militavam pela renovação da História como um
todo.8
Nas Ciências Sociais, o comparativismo ganhou projeção nos trabalhos do francês
Émile Durkheim e do alemão Max Weber. Crítico do evolucionismo, mas indiscutivelmente
herdeiro de Comte, em As regras do método sociológico Durkheim apresentou o
comparativismo como um ponto de partida seguro para análises do social; como o recurso
mais objetivo do qual poderiam dispor os cientistas sociais; como a estratégia de investigação
mais semelhante à experimentação nas Ciências da Natureza.9
Durkheim propôs a comparação como “método das variações concomitantes”, quer
dizer, como maneira de se observar, sistematicamente, empiricamente, transformações
sociais; gerando, por indutivismo, entendimentos em relação às causas dos eventos (FAUSTO
& DEVOTO: 10).
5 Ibidem.6 PRADO. Op. Cir. p. 22.7 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 25.8 Idem, p. 10.9 FRANCO, Maria Ciavatta. Quando nós somos o outro: questões teórico-metodológicas sobre os estudos
comparados. Revista Educação & Sociedade. v. 21. n. 72. 2000. Capturado em 8 de maio de 2000, e disponível na web através do link: http://miud.in/GVZ. p. 213.
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Além disso, Durkheim apresentou, no que diz respeito ao comparativismo, uma
classificação que seria bastante repetida por cientistas sociais e historiadores. Diferenciou a
comparação entre sociedades semelhantes, próximas, vizinhas, da possibilidade de
comparação de sociedades de estruturas distintas, afastadas no tempo/espaço.10
Max Weber propôs a importância do comparativismo para as Ciências Sociais em
diversos livros e artigos publicados na revista que editou junto a Weber Sombart: Arquivos de
História Social e Sócio-Política.11 Sua proposta privilegiava as heterogeneidades,
peculiaridades, excepcionalidades. Ele falava na necessidade do analista mergulhar nas fontes,
definindo parâmetros, selecionando, apontando probabilidades, enfim, formulando e
trabalhando com os chamados “tipos ideais” – célebres conceitos weberianos.12
Não é difícil se encontrar razões bem ponderadas para o fato de que Durkheim tem
sido considerado mais interessante, aos olhos dos historiadores, que Weber. É verdade em
geral pouco se conhece do primeiro deles; porém, é ao segundo que de destinam nossas
críticas mais severas. Ora, como disse acima os especialistas em História tendem se
concentrar no singular; se Durkheim parte de um essencial singular para a conformação
esquemática de respostas, Weber dá destaque às generalizações, parte de generalizações (a
elaboração de “tipos ideais”), e as testa, toma e retoma, dialogando com elas, todo o tempo.13
Entretanto, creio que as generalizações de Weber na composição de “tipos ideais”
podem, sim, ser muito úteis à História. Elas ajudaram o sociólogo alemão a conceber o
desenvolvimento histórico como assimétrico e desigual, no Ocidente e no Oriente. A partir
delas, Weber e muitos outros autores passaram a trabalhar o conceito de “Sonderweg”, quer
dizer, do peculiar e autêntico desenvolvimento capitalista alemão.14 Isso pode, a meu ver, ser
ricamente inspirador para historiadores interessados na América Latina, que pretendem pensá-
la em suas especificidades. Quiçá terá sido esse o aspecto que despertou o interesse de Sergio
Buarque de Holanda por Weber e pelos tipos ideais, quando da escritura do fundamental
Raízes do Brasil.
10 THEML, Neyde & BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. História comparada: olhares plurais. Revista de História Comparada. v. 1. n. 1. 2007. Capturado em 8 de maio de 2011, e disponível na web, através do link: http://miud.in/GVY. p. 4.
11 Idem, p. 5, n. 11.12 Idem, 5 & FRANCO. Op. Cit. p. 215.13 PRADO. Op. Cit. p. 16.14 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 12.
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É preciso ter-se em mente, aqui, que o sociólogo alemão Karl Marx e seus seguidores
já trabalhavam a História de maneira crítica, sistêmica e problematizante, e lançando mão do
comparativismo, desde o século XIX. Usavam-na como via a partir da qual estabeleciam e
testavam leis históricas. Dessa tradição, tornaram-se expressivos os trabalhos dos ingleses
Edward Palmer Thompson e Perry Anderson, e do norte-americano Barrington Moore Jr.15
Cabe aqui lembrar que o historiador norte-americano Raymond Grew afirma que até
hoje pesquisadores de história de todo mundo recorrem à comparação sobretudo em trabalhos
com foco na Economia. Segundo seu ponto de vista, todavia, em geral isso se dá de maneira
limitada: tomando-se a comparação menos como uma metodologia de análise de dados
qualitativos, e mais como uma forma, um esquema para se pensar dados quantitativos.16
Por fim, outro sociólogo que desenvolveu célebres estudos comparados e que muito
influenciou a nós historiadores foi o francês Nobert Elias. Como falta sobre ele um cuidado
maior, por parte dos pesquisadores hoje interessados em História Comparada, passo a bola e o
sugiro como tema para futuras pesquisas.
2. Comparação para historiadores não-franceses: Spengler e Toynbee
Outros pesquisadores que contribuíram bastante para se repensar o comparativismo em
análises históricas foram o alemão Oswald Spengler e o inglês Arnold Toynbee.
Era início do século XX quando Spengler dedicou-se à realização de estudos históricos
comparados, e publicou A decadência do Ocidente. Para utilizar palavras do próprio autor,
podemos dizer que ele partiu do estudo de diversas formas singulares para agrupá-las,
produzindo um sistema, uma “Morfologia da História Mundial”.17
Sua idéia era proceder, comparativamente, da seguinte maneira: analisar diversos
grupos sociais, vasculhando similaridades e disparidades. As semelhanças entre os elementos
comparados lhe fizeram pensar num “ciclo vital” comum a todos; as diferenças, na existência
da “força misteriosa do chão”, quer dizer, em preciosos condicionantes locais.18
Conforme o professor da Universidade Severino Sombra, José D’Assunção Barros,
isso permitiu que Spengler definisse a existência de cinco estágios civilizatórios: o
nascimento, a juventude, a maturidade, a senilidade e a morte. Sob um juízo bem claramente
15 SEAN PURDY, Robert. A História Comparada e o desafio da transnacionalidade. Anais eletrônicos do VII Encontro de ANPHLAC. Campinas, 2006. Capturado em 8 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/GW5. p. 5 & PRADO. Op. Cit. p. 13.
16 GREW, 1980: passim. Apud. PRADO. Op. cit. p. 19.17 SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1964. p. 25 e. 35.18 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 11.
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moral e um tanto subjetivo, e comparativamente, avaliou quais povos correspondiam a tal ou
qual estágio. Concluiu, assim, contrapondo a civilização ocidental a outras espalhadas pelo
mundo, que estaria a primeira delas em fase de franco declínio.19
Atenção para um importante detalhe: Spengler preferiu, para abordar regionalizações,
as designações “Ocidente” e “Oriente”. É que, segundo o uspiano Márcio Santos de Santana,
no sistema-mundo spengleriano o termo “Europa” perdia a validade, na medida em que não
contribuía em nada para a percepção da diversidade; dava a impressão de que correspondia a
um corpo homogêneo e lógico, que contrastava com a pluralidade e desordem do restante do
mundo.20
Entre os anos 1934 e 1961, Toynbee trabalhou em estudos comparados que se
tornaram célebres em todo mundo. Pretendia promover, para além das abordagens com foco
no nacional, o que chamava “História das Civilizações”. Foi radical na crítica aos estudos que
se baseavam em fronteiras das nações. E enxergou um mundo globalizado não apenas na
Antiguidade Clássica, na qual se especializou, mas também no presente e no futuro. Escreveu,
certa feita:
Creio na iminência de um mundo único, e creio que no século XXI a vida humana vai ser novamente uma unidade, em todos os aspectos e atividades. Creio que no campo da religião, o sectarismo vai ser subordinado ao ecumenismo; que no campo da política o nacionalismo vai ficar subordinado ao governo mundial, e que no campo do estudo dos assuntos humanos a especialização vai ser subordinada a uma visão abrangente.21
Leitor de Spengler, Toynbee desejou romper com a visão eurocêntrica e evolucionista;
e denominou “civilização” mais de 20 grupos espalhados pelo mundo, próximos ou distantes
da influência cultural européia.22
Tal como Spengler foi ainda profundamente crítico da cultura ocidental
industrializada, que considerava “pervertida” e “estreita”.23 Foi, contudo, certamente mais
otimista do que o alemão.24
Toynbee defendia ser primordial iniciar as investigações com uma visão do todo, para
em seguida remeter e analisar setores específicos. Porém, foi crítico à idéia spengleriana de
19 BARROS, José D’Assunção. Arnold Toynbee e a História Comparada das Civilizações. Revista Biblos. v. 23. n. 1. 2009. Capturado em 9 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/H58. p. 222.
20 SANTANA, Marcio Santos de. Em busca da especificidade: considerações sobre a História. Revista Opsis. n. 2. 2007. Capturado em 10 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/H5P. p. 103.
21 TOYNBEE, 1953: 43. Apud. BARROS. Op. Cit. p. 225.22 BARROS. Op. Cit. p. 224. n. 9.23 TOYNBEE, 1934-1961: 27. Apud. BARROS. Op. Cit. p. 224.24 BARROS. Op. Cit. p. 222 e 225.
8
“ciclo vital”.25 Herdeiro do empirismo de John Locke, percebia que relações entre os povos
estavam dadas, hoje, e de maneira articulada, mas não se poderia garantir, nem em tese ou por
projeção, uma articulação para além do que nossos olhos vêem, quer dizer, para um tempo
histórico que ainda não se deu.26
De acordo com Fausto e Devoto, o empirismo de Toynbee imprimiu fortes marcas em
suas análises, de tal maneira que resultaram esquemáticas. Ele, na realidade, afirmam esses
autores, recorreria à comparação mais no momento de identificação dos objetos que
compunham um todo a ser investigado, do que ao longo do processo de reflexão sobre o todo.
E assim comporia um “geral” que, em última instância, correspondia a uma fórmula
“genérica”.27
Toynbee arcou com esse risco, por ser muito ambicioso. Seu grande propósito era
chegar a uma visão geral dinâmica, e fazer com que os cidadãos do mundo inteiro
percebessem a si e a seus convivas planetários de forma integrada, holística e pulsante.
A propósito, não me posso furtar a destacar que foi profundamente crítico em relação
ao monografismo, quer dizer, à pulverização das análises históricas em diversos estudos
monográficos realizados por historiadores superespecializados. Como lembra Barros, o inglês,
professor da cátedra de História da Grécia antiga, costumava pontuar que suas viagens ao
redor do mundo, o contato com todo tipo de gente, nos mais diversos lugares, haviam sido tão
senão mais importantes para sua formação intelectual do que seus estudos universitários.28
3. Comparação na historiografia francófona: antes e depois dos Annales
Sim, o comparativismo tem sido explorado pelas mais diversas gerações de
historiadores. Contudo, como pontuam as professoras Neyde Theml e Regina Maria da Cunha
Bustamante, foi apenas no início do século XX que a designação “História Comparada”
passou a ser utilizada mais amplamente por profissionais da História.29
Nessa época, Louis Davillé, combatendo a historiografia tradicional francesa, propôs
que a comparação em análise histórica deixasse de ser mera compilação, sobreposição,
descrição de informação sobre sociedades/nações/povos diversos.30 Porém, não se espere que
ele e outros historiadores seus conterrâneos passassem então, de ímpeto, a se interessarem
por, a partir de comparações, formularem leis – ao gosto dos marxistas –, ou por uma História
25 Idem, p. 223.26 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 11.27 Ibidem.28 BARROS. Op. Cor. p. 223-224. n. 5.29 THEML & BUSTAMANTE. Op. cit. p. 2.30 BARROS. Op. Cit. p. 227 & FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 13.
9
Comparada tipológica – como a de Weber –, morfológica – como a de Spengler –, ou
generalizadora – como a de Toynbee.
Conforme Theml e Bustamante, a chamada École des Annales, famosa por iniciar um
movimento relativamente organizado de transformação das práticas de pesquisa histórica,
sofreu influência do pensamento de Durkheim, pois, dentre os autores aqui tratados, apenas
ele falava na necessidade de se afastar do objeto de análise, e os mobilizava na transição do
descritivo para o explicativo.31
Ora, os Annales tinham como pressuposto a mesma tradicional concepção de que a
História deveria ser pautada no singular, no específico; e que, apenas a partir de então, se
poderia estruturar sínteses mais gerais. Um de seus nomes mais expressivos, Lucien Febre, no
livro A Terra e a evolução humana havia proposto algo como uma “Mega História
Comparada”: o mais interessante para o historiador deveria ser, sob seu ponto de vista, “o
particular, o indivíduo, o irregular”, mas, com a amplas difusão desse tipo de estudo
localizado, quase naturalmente deveriam ser tecidas algumas associações e generalizações.32
Especificamente sobre História Comparada, houve o engajamento sobretudo de dois
annalistas: Henri Pirrene e Marc Bloch. Pirrene se interessou pelo projeto de elaboração de
uma História Européia e, depois, Universal. Com pretensões historiográficas e cívicas,
defendeu que apenas a comparação permitia a execução de sínteses históricas complexas; e
que apenas a comparação permitiria uma reflexão mais crítica e generalizada, em relação aos
patriotismos e às rivalidades entre países.33
A Primeira Guerra Mundial havia desembocado em tantas tragédias, e não era preciso
ser erudito ou acadêmico para compreender que ela tinha ocorrido por razão dos exacerbados
nacionalismos. A idéia de nação havia, além de tudo, conforme muitos pensadores da época,
engessado as reflexões historiográficas, restringindo-as ao que os governos se interessavam
por bancar, ao que as administrações nacionais viabilizavam para acesso nos arquivos, quer
dizer, aos limites do Estado-nação.34
A História acadêmica européia se havia consolidado com apoio dos Estados nacionais,
e se legitimara por meio de um discurso patriótico que inspirava a rejeição cultural e embates
militares contra os vizinhos de continente. A Nova História desejou, de maneira distinta,
31 THELM & BUSTAMANTE. Op. cit. p. 4.32 FEBVRE, 1922: 90. Apud. BARROS. Op. Cit. p. 224-225.33 PRADO. Op. Cit. p. 13 & FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 12 & BARROS, José D’Assunção. História
Comparada: da contribuição de Marc Bloch à constituição de um moderno campo historiográfico. Revista História Social. v. 1. N. 13. 2007. Capturado em 8 de maio de 2005, e disponível na web através do link: http://miud.in/GW1. p. 16.
34 PRADO. Op. Cit. p. 16.
10
apresentar uma Europa de experiências históricas articuladas, de formação multicultural mas
comum, e caracterizada pelo estabelecimento de influências mútuas de região para região. 35 E
a História Comparada, crítica, ajudava a vislumbrar novos objetivos históricos de uma
maneira renovada.
Marc Bloch, na célebre conferência Por uma história comparada das sociedades
européias, resumiu os procedimentos de comparação, conforme Prado, em quatro etapas:
primeiramente, dever-se-ia definir dois ou mais objetos de análise que apresentassem a priori
elementos em comum, que se apresentassem como contíguos; depois, decupar os
desenvolvimentos históricos nos quais se inserem ou a que se referem cada um desses objetos;
em terceiro lugar, caberia ao historiador apontar as semelhanças e diferenças entre um objeto
e outro; por fim, dever-se-ia explicar as razões das semelhanças e diferenças –
“aproximações”, “influências” e “origem comum”.36
Pode-se concluir, a partir disso, que, dentre as duas possibilidades de comparativismo
apontadas por Durkheim e há pouco citadas, Bloch considerou que apenas a primeira poderia
ser proficuamente explorada pelos historiadores – quer dizer, a análise de sociedades vizinhas
e com estruturas semelhantes.37
É verdade que Bloch chegou a esboçar comparações entre o feudalismo europeu e o
feudalismo japonês.38 Porém, considerava muito mais interessante:
estudar paralelamente sociedades vizinhas e contemporâneas, constantemente influenciadas umas pelas outras, sujeitas em seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e sua sincronização, à ação das mesmas grandes causas, e remontando, ao menos parcialmente, a uma origem comum.39
Alguns anos antes, Bloch havia publicado um bom exemplo daquilo que entendia por
História Comparada, Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio na França e
na Inglaterra. Nesse livro, estudara sobre monarcas franceses e ingleses que por volta do ano
1000 e 1100 acreditava-se terem o poder de curar doenças com o toque de suas mãos.
Partindo da percepção de que tanto em uma localidade quanto em outra davam-se fatos
semelhantes, Bloch percorreu as fontes, buscando especificidades.40
35 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 3.36 PRADO. Op. Cit. p. 17-19.37 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 3.38 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 14.39 BLOCH, 1928: 19. Apud. BARROS. Op. Cit. p. 15.40 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio na França e na Inglaterra. São
Paulo: Cia das Letras, 1993, passim.
11
Porém, nessa obra, como lembra o professor da UFRJ Alexandre Santos de Moraes, o
historiador francês não deixou de se fixar e se interessar pelo que há de comum entre a França
e a Inglaterra daquele período; tanto que, em determinado momento, se questiona:
“coincidência ou interação?”.41
Efetivamente, a leitura de Os rei taumaturgos nos faz pensar que a História
Comparada de Bloch é limitada; faltou abordar ali os contatos, quer dizer, faltou propriamente
escapar do nacional, que tanto se criticava e critica na tradicional historiografia
nacionalizante. É verdade que Bloch fala sobre a necessidade de se tratar do transnacional na
conferência Por uma história comparada das civilizações européias,42 mas não é possível vê-
lo fazendo-o em seu célebre livro, acima referido.
Aliás, de fato os estudos medievalistas consagrados de Febvre e Bloch tendiam a
romper com a abordagem nacionalista e nacionalizadora comum entre os pesquisadores do
século XIX. Era natural que, estudando a fragmentada Europa medieval e rompendo com o
anacronismo que dantes caracterizara boa parte dos trabalhos de História, escapassem da
tradicional abordagem do nacional. Porém, ainda estabeleciam seus objetos de análise a partir
do recorte da nação: estudavam, em grande parte das vezes, a França, e um ou outro vizinho
dela.43
Não podemos deixar de lembrar, aqui, do famoso estudo do também annalista francês
Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Nesse
livro as fronteiras nacionais se obscurecem para se falar de eventos, geografia, relações
sociais e mentalidades que caracterizavam os povos que viviam ao derredor daquele mar, no
século XVI. Minha impressão era que o autor havia tomado como referência as proposições
de Bloch para História Comparada, e ido além, estudando comparativamente sociedades
contíguas e não-nacionais, repletas de inter-relações e mútuas influências notáveis.44 Essa
impressão se confirmou ao ver constar, em um livro posterior de Braudel, a referência clara ao
conceito de História Comparada.
Que referência é essa? O que ela nos revela sobre o modo de Braudel ou mesmo Bloch
perceberem a História Comparada? Em Civilização material, economia e capitalismo,
Braudel afirmou que O Mediterrâneo foi concebido “à margem (...) de todas as teorias, 41 MORAES, Alexandre Santos de. Marcel Detienne e os caminhos do comparativismo. Revista de História
Comparada. v. 3. n. 1. 2009. Capturado em 9 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/H55. p. 4.
42 BLOCH, 1928. Apud. PRADO. Op. Cit. p. 17.43 BARROS. Op. Cit. p. 2009.
44 BRAUDEL, Fernand. Mediterraneo y el mundo mediterraneo en la epoca de Felipe II. México: Fondo de
Cultura Económica, 2010, passim.
12
exclusivamente sob o signo da observação e da história comparada”.45 Ora, queria ele dizer
com isso que aos seus olhos a comparação não poderia ser considerada propriamente um
campo teórico? Fausto e Devoto responderiam que sim.
Pontuei, na Introdução deste artigo, que Fausto e Devoto acreditam que Bloch, e eu
diria, por associação, que também Braudel, não percebiam a comparação como
“procedimento teórico”, e sim como “instrumento estreitamente vinculado à prática do
historiador”, presente aqui e ali, sustentando tal ou qual iniciativa, mas não estruturando todo
um aporte teórico e exploratório, em uma pesquisa.46
Cabe aqui questionar a noção de “contiguidade”, proposta por Bloch e desenvolvida
por Braudel. Ora, é mesmo muito óbvio que no ano 1000 França e Inglaterra, e comunidades
mediterrânicas sob controle do rei espanhol Felipe II eram sociedades contíguas, aos olhos
daqueles homens e mulheres, e também a nossos olhos, hoje. Mas, como nos lembra Barros, o
conceito de contiguidade varia com o tempo;47 no mundo globalizado atual, por exemplo,
podemos nos sentir mais próximos de cidadãos que vivem em Paris ou Barcelona do que de
moradores de bairros vizinhos ao nosso.
A Antropologia trouxe contribuições importantes a esse respeito. É dessa área, por
exemplo, o norte-americano Sidney Mintz, que propôs, ao findar da década de 1950, que
embora a História deva dedicar-se a perceber os acontecimentos e culturas como únicos, as
experiências históricas de distintas comunidades, em períodos distintos, podem sim ocorrer de
maneira semelhante. Para esse autor, notar e analisar tal possibilidade é não só importante
como erudição. Tem “valor científico”, na medida em que viabiliza a revisão dos sentidos e
das formas de entendimento antropológicos; na medida em que viabiliza a revisão dos
paradigmas institucionalizados para estudo da história e dos comportamentos históricos.48
Barros e Mintz fazem lembrar, nesse ponto, o ilustre historiador francês Paul Veyne,
que, em O inventário das diferenças, declarara que toda análise histórica é essencialmente um
estudo comparado. Para Veyne, como historiadores profissionais todo o tempo antepomos
nossos entendimentos a entendimentos de homens e mulheres mortos, modos de vista de tal
ou qual grupos humanos, essa ou aquela informação. E o fazemos porque tais procedimentos,
que não deixam de respeitar o arbítrio dos pesquisadores mais do que as fontes, são
politicamente rotulados como convencionais e aceitáveis. Ora, não deve ser considerada
45 BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 13.46 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 13.47 BARROS. Op. Cit. p. 14.48 MINTZ, 1959. Apud. FRENCH: 57. Apud. PRADO. p. 14.
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menor uma abordagem comparativa que deseje contrapor elementos aparentemente bem
desiguais; ela se dá sem dúvida sob a prescrição de um impertinente analista, mas isso não
quer dizer que não tenha serventia investigativa.49
O belga Marcel Detienne nos dá um bom exemplo de quão interessante pode ser
comparar o “incomparável”: em seu livro mais famoso narra que em um grupo de pesquisa
coletiva comparada andavam os investigadores debatendo sobre os conceitos basilares que
deveriam assumir na próxima temporada; estavam chegando, juntos, ao propósito de trabalhar
as idéias de “fundar, fundação, fundador”.
Um dia, dos japonizantes, há muito silenciosos enquanto avançávamos às
apalpadelas, intervieram para nos contar – estavam desolados com isso – que
no Japão, segundo os textos mais antigos, não havia fundação nem fundados.
(...)
[Essa descoberta não ocorreu por acaso. Foi] graças à provocação do
incomparável que uma categoria tão familiar como “fundar” veio a abalar-se,
rachar-se, desagregar-se.50
Detienne, na década de 1960, esteve atento às questões inquiridas por Veyne e, em
Comparar o incomparável, escreveu um manifesto em defesa do resgate da segunda
possibilidade de análise comparativa destacada por Durkheim – aquela entre estruturas
consideradas distintas.51 Detienne percebia as sociedades em si como conjuntos
essencialmente complexos, variáveis, imbricados, que assumem “por natureza” formas
múltiplas, fluidas e não hierarquizáveis; daí que se sentisse à vontade para argumentar que
caberia aos historiadores estabelecer padrões de entendimento para elas, dentre os quais, os
mais diversos padrões comparativos.52
Sean Purdy afirma que pautar diferença dos elementos comparados no espaço,
sobretudo em espaços nacionais, pode resultar em estudos mais alienantes do que pautar em
diferenças temporais; para esse autor, a tradicional História Comparada das Nações tende a
partir de estereotipações vulgares comprometidas com certos grupos políticos.53 Detienne,
apresentou-se como crítico de Bloch por razão semelhante: não apenas porque esse, como
49 VEYNE, Paul. O inventário das diferenças. Lisboa: Gradiva, 1989. p. 6.50 DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. São Paulo: Idéias & Letras, 2004. p. 50.51 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 10.52 Idem, p. 11.53 SEAN PURDY. Op. Cit. p. 10.
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vimos, defendera a tese da comparação de unidades contíguas; mas porque ao belga
incomodava o insistente marco nacional.54
Especialista em História Antiga, Detienne desejou que a História Comparada
ultrapassasse não apenas as fronteiras nacionais, mas também os marcos temporais
tradicionais. Curioso notar que essa idéia hoje inspira historiadores inclusive ligados
intimamente aos Annales, como o norte-americano Robert Darnton, que no artigo O
significado cultural da censura analisa a França do Antigo Regime e na Alemanha Oriental
do século XX.55
Para Detienne, tão errôneo quanto se abordar a Grécia da Antiguidade sem fazer notar
as similitudes entre povos distintos e rivais como atenienses e troianos, é prender-se à noção
de que quase não há nada em comum entre um combatente da Guerra do Peloponeso e um
eleitor de Károlos Papúlias. O estudo dos mitos e mitologias não nos permite vislumbrar
continuidades de interesses através dos séculos?56 Caberia então, creio eu, um diálogo entre os
historiadores e não apenas com a Antropologia, mas também com a Psicologia Analítica de
Jung, que trabalha com arque-tipos? Conforme Moraes quiçá a qualidade mais essencial da
abordagem de Detienne é “mostrar a pertinência que as sociedades antigas possuem para as
reflexões acerca do presente de nossa vida social”, e – Por que não? - individual.57
Mas Detienne propôs um modelo de História Comparada inovador não apenas
metodologicamente mas também organizacionalmente. Pretendia ele que os trabalhos
comparados fossem realizados por equipes, nas quais cada pesquisador se ocuparia de um
corpo temático ou de determinados objetos, atendendo sempre a propósitos investigativos
coletivamente estabelecidos.58
Considero importante, aqui, confessar uma deficiência: ao que me parece, há uma
série de semelhanças entre as experiências acadêmicas e propostas de Toynbee e de Detienne.
Além de especialistas em História Antiga e além de defenderem hábitos acadêmicos mais
irreverentes, eram críticos em relação a se restringir análises comparadas a comparações entre
Estados nacionais. Nada encontrei, porém, nenhum artigo que fosse ou pesquisador, que
contrapusesse diretamente as obras desses dois autores. Eis uma possibilidade de pesquisa,
um vazio no campo da História Comparada a ser preenchido.
54 MORAES. Op. Cit. p. 2.55 BARROS. Op. Cit. p. 14. n. 3.56 MORAES. Op. Cit. p. 7.57 Idem, p. 9.58 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 13 & MORAES. Op. Cit. p. 5.
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Mais uma possibilidade de pesquisa a ser aventada é a adaptação das propostas de
Detienne, voltadas ao tratamento da História Antiga, para o tratamento da História
Contemporânea e da História Recente. Seria possível uma simples aplicação dos
procedimentos estipulados pelo professor belga a uma área com a qual ele não trabalha? São
precisas muitas alterações em seu roteiro, para a abordagem de fontes e temáticas mais atuais?
4. Novidades na História, e possibilidade para a História Comparada
Nos últimos anos, historiadores de todo o mundo têm se interessado pela presença dos
sujeitos na história. Para nós, envolvidos com História Comparada, como essa presença se
poderia fazer mais notável?
Acredito que a comparação como método pode revelar não apenas a singular
importância das subjetividades e das razões dos indivíduos que viveram no período histórico
passado, em análise. Ela dá também voz ao historiador, como sujeito produtor de sentido
histórico.
Sim, para se produzir um bom trabalho em História Comparada é preciso sempre
destacar semelhanças e diversidades entre os objetos selecionados. E isso deve ser feito,
sempre, lembram Theml e Bustamante e concordo em absoluto, a partir de alguns critérios,
claramente definidos antes do início da prospecção das fontes, e criticamente revistos ao
longo da realização da pesquisa.59 Conforme a professora da UFF Maria Ciavatta Franco, a
comparação não é um processo que ocorre no vazio; daí a necessidade dos investigadores da
área deixarem bem claros os paradigmas e critérios dos quais se servem.60
Quanto à preocupação em se fugir a interpretações quantitativas que ofuscam o senso
de humanidade dos personagens anônimos ou não-anônimos da história, quanto à
preocupação em se fugir às grandes sínteses e leis históricas, eu diria que trouxe grande
contribuição, aos estudos comparados, a já referida Antropologia.
Fausto e Devoto afirmam que o professor norte-americano Raymond Grew, na revista
de História Comparada de maior projeção internacional, a Comparative studies in society and
history, afirmou que, há um par de décadas, eram bem comuns, em todo o mundo, análises
comparadas dedicadas ao social; porém, eram bastante raras as análises sobre
“comportamentos”.61 O que Grew quis dizer com isso? Que os modos de ser, de se relacionar,
de se sentir grupo e indivíduo não andavam sendo bem explorados pela História Comparada?
A meu ver, isso vem sendo revertido nos últimos anos.59 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 8.60 FRANCO. Op. Cit. p. 198.61 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 18.
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Considero, na verdade, que é hora do diálogo com outros campos do saber
humanístico, para além da Antropologia, nos trazer novas inspirações para o trabalho
comparado; novas inspirações inclusive para a abordagem comparada dos comportamentos
humanos. Como afirma Moraes, nós comparativistas não deveríamos nos restringir a
considerar palpites vindos das Ciências Sociais, da Economia e da Antropologia; deveríamos
também nos interessar um tanto mais, e mais seriamente, pela Filologia e pela Linguística.62
Fausto e Devoto lembram que o afastamento da História em relação à Linguística pode
ser percebido desde a primeira formação dos Annales. Marc Bloch, conforme os referidos
autores latino-americanos, se teria sentido desencorajado a adotar qualquer proposta de
comparativismo inspirada na História das Línguas Européias, praticada, entre outros, pelo
também francês, seu contemporâneo e amigo, Antoine Meillet. Bloch considerava esse campo
histórico “rígido”, específico e esquemático demais para inspirar algum insight teórico
interessante.63
Já Detienne considera que conhecer um pouco mais de Linguística Comparada poderia
sim inspirar ricamente a nós, historiadores. Escreveu ele que, caso conhecêssemos melhor
essa cadeira universitária, seus propósitos e procedimentos, acabaríamos por,
comparativamente, repensar e bem remodelar a própria cadeira de História. Se todos os
nossos pesquisadores comparativistas tomassem nota de que cotidianamente e proficuamente
linguistas comparam morfologia, fonética e até mesmo vocabulário de sociedades bastante
afastadas no tempo e no espaço, passaríamos a nos sentir todos ridículos por termos
condenado a comparação de sociedades não-contíguas ao limbo acadêmico.64
De minha parte acrescentaria que também deveria incomodar nossa negligência em
relação à Teoria da Literatura (sobretudo a literatura Comparada) e à Filosofia (sobretudo a
Metafísica, a Hermenêutica, e a Filosofia da História). Me pergunto: demasiadamente
concentrados em explorar documentos arquivísticos e singularidades, não estamos, como
historiadores, deixando de perceber a construção narrativa de determinados conceitos, e/ou
determinados conceitos de identidade, e seus desdobramentos?
O historiador francês Serge Gruzinski, um dos mais conhecidos críticos da História
Comparada, afirma que Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, a despeito de ser um
clássico exemplo de comparativismo, tem muita qualidade investigativa; seria uma ótima
exceção à regra.65 Ora, Holanda ali produziu um estudo sobre o comportamento dos
62 MORAES. Op. Cit. p. 8.63 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 13.64 DETIENNE. Op. Cit. p. 9.65 GRUZINSKI, 2001: Apud. PRADO. Op. Cit. p. 26.
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brasileiros, e não o fez sob um viés antropológico, e sim sociológico e psicologizante e, creio
eu, bastante inspirado pelos Estudos Literários.
Holanda se formou intelectualmente não em uma universidade, mas como jornalista e
companheiro dos principais expoentes da vanguarda literária brasileira, o Modernismo. Sua
obra mais famosa é, assim, um misto de preocupações com o presente e formulação de ricas
metáforas.
Essas metáforas ali não se fazem, contudo, sobre uma estrutura comparativa frágil. O
leitor certamente se lembra que o dantes citado cientista social alemão, Max Weber, é uma
das principais referências de Holanda, em Raízes do Brasil. Além de tomar conceitos-chaves
weberianos, como o de “patrimonialismo”, o brasileiro recorre à elaboração dos já
mencionados “tipos ideais”.66
Não sugeri há pouco que seria interessante que envolvêssemos nós, historiadores, em
análises menos tacanhas das propostas do autor de A ética protestante e o espírito do
capitalismo?
Ora, é de meu entendimento que, ao contrário do que se sugere correntemente, e do
que condenam muitos historiadores, Weber não propunha um trabalho de generalização puro
e simples, seguido por esquemática classificação. Ele simplesmente estabelecia, através da
formulação dos “tipos ideais”, padrões de referência de análise. Em outras palavras:
baseando-se no conhecimento das fontes, Weber formulava os chamados “tipos ideais”, que
eram composições generalizantes, sim, mas que não correspondiam de fato o objetivo final do
autor; seu objetivo era usá-los, testá-los, partir deles para a reavaliação de novas fontes, novos
objetivos, novos projetos.67
O que pretendo argumentar por ora é que, para além das Ciências Sociais, os tipos
ideais de Holanda (e eu diria que também de Weber) têm uma profunda carga narrativa e
poética. Quer dizer, se Holanda falava em “homem cordial”, não era apenas por perceber a
existência de tal comportamento em suas fontes; o percebia entre os homens e mulheres com
quem convivia, então, naquelas primeiras décadas do século XX, e o notava circulando nas
ruas, nas cartas, nas obras e estilos literários.
Além do mais, note-se que o termo “cordialidade” não deixou de circular anos e anos
após a primeira publicação de Raízes; e ironicamente seguiu um percurso inusitado mas
bastante compreensível, escapando ao sentido pretendido pelo dito autor – não, o “homem
cordial” de Holanda não é, como muito se imagina, o cidadão gentil e pacífico, e sim o
66 HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2000.67 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
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sorridente e hipócrita defensor de interesses pessoais, a qualquer custo. Raízes do Brasil,
como toda boa idéia literária, não abriga plenamente e sistematicamente todo o corpo social
ao qual remete; é como um quadro modernista, que não traz um retrato preciso da realidade
brasileira, nem respostas prontas – faz pensar.
O historiador inglês Ian Watt, que contribui frequentemente para a Comparative
studies in society and history, em Mitos do individualismo moderno tomou alguns
personagens clássicos da literatura universal, e os trabalhou como típicos. Não se fechou a um
recorte espacial nacional, e abordou o alemão Fausto, os espanhóis Dom Quixote e Dom Juan,
e o inglês Robinson Crusoé como igualmente, embora cada um à sua maneira, mitos
representativos do comportamento individualista moderno. Watt não focou, para tanto, o
período em que esses mitos foram supostamente concebidos; buscou perceber como homens e
mulheres em outra época – o Romântico – retomaram-nos, revalorizaram-nos e
ressignificaram-nos, garantindo a eles, todos eles, um sentido universal.68
Pode parecer desmedido, a uma altura dessa, uma transcrição tão longa, como a que se
seguirá. Mas o fato é que, ao definir sua noção de mito, Watt apresenta um quadro bastante
interessante e lindamente estruturado. Não vejo outra saída senão aqui reproduzi-lo quase
inteiramente:
Neste livro não uso o termo “mito” em seu sentido mais comum de crença falsa ou imprecisa. (...) De outro lado, não concordo com a visão implícita na obra de alguns modernos antropólogos e críticos da cultura, que, partindo da correta crença de que o homem não é um ser inteiramente racional, chegam de um salto à conclusão, nem sempre clara mas nem por isso menos convicta, de que o pensamento mitológico é sob todos os aspectos superior e desejável. (...) Aceito a visão de que histórias míticas são se certa maneira simbólicas; ou seja, tendem a adquirir significados mais duradouros e mais permanentes do que denotam as suas representações cultas; mas esses significados não estariam acima nem além da razão.(...) [Além do mais,] procuro ser mais empírico e descritivo. Meus quatro mitos derivam da transição do sistema social e intelectual da Idade Média para o sistema dominado pelo pensamento individualista moderno, e essa transição foi ela própria marcada pelo notável desenvolvimento de seus significados originalmente renascentistas para os seus atuais significados românticos.69
O “homem cordial”, então, poderia ser considerado um mito conceitual? Um mito,
tipicamente brasileiro, sobre a maneira de expressarmos nossa individualidade, frente Às
imposições do meio social? A idéia de cordialidade não teria sofrido uma “romantização”?
68 WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.69 Idem, p. 15-16.
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Não era isso que Holanda pretendia analisar, revelar, discutir e pôr em pauta? Eu, mesmo
correndo o risco de estar sendo precipitadas, responderia sim a todas essas perguntas.
A filosófica História dos Conceitos, tutoriada pelo historiador alemão Reinhard
Koselleck talvez tenha, neste ínterim, muito a dizer a nós interessados em História
Comparada. Koselleck, durante tantos anos desconhecido no Brasil, tem despertado,
atualmente, interesse de muitos pesquisadores.70
Como abordar a história de um conceito, suas continuidades e descontinuidades? Ora,
me parece evidente que uma idéia, tal como a de nacional, de individualismo, de brasilidade,
de cordialidade, ou mesmo de “jeitinho”, se estabelece por meio de comparação. Um conceito
se estabelece e ganha aplicabilidade pela via relacional, quer dizer, em relação a outros
conceitos... 71
Entretanto, há mais uma questão pertinente a ser explorada, no diálogo entre a História
dos Conceitos e a História Comparada: não é essencial buscar compreender como distintos
grupos sociais concebem, aplicam e significam determinado termo?
Acredito que uma percepção da História Comparada que dê conta de tais questões
deve não apenas agradar a Gruzinski, nosso principal rival, mas ser muito útil a pesquisadores
que não desejam seguir, desavisados, reproduzindo estereótipos acadêmicos. Sobretudo viria
de encontro aos interesses de pesquisadores que percebem que a Academia está repleta de
estereótipos sutis e traiçoeiros que devem também ser constantemente averiguados – clichês
tais como nacional, contiguidade, singular, global, e a aversão à generalização.
70 KOSELLECK, Reinhard. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, passim.71 Ibidem.