Henry James - O Desenho Do Tapete

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(.ol)yrighr da tradução O 1993 by Companhia das Letras (.r,1ìyÍÍfilÌr rfc "O mestre e suas lições" @ 1993 by Josê Geraldo Couto Títulos originais: Tlte /esson of the master The rea/ tltìng Greaìlle Fane The deatl: of the /ìon Tlte figure in the carp'et Capa: Moerna Caaa/cantì Preparação: Stella Werss Revisão: Sandra Garcìa Ana Marìa Barbosa Dados Intenacionaìs de Catalogação na Publicação (crr) (Câmara Bruileira do Livro, sr, Brcil) Jmes, Henry, 1841,1!16. Á morte do leão : Histórir de artistc e cscrì- tores / HenryJames ; tradução Paulo Hcnriques Brito. - São Paulo : Companhia d6 lÉrÍas, 1993. rsBN 8t-7164-100-8 1. Contos norte-amerìcanos i- ïtulo. 93-0216 cDD-8lJ Indices para catálogo sistemático I Contos : Literatura nofte-ame(icana 813 r993 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCH\JYÀRCZ LTDÁ. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - sp ïblefone: (0rr) 826-1822 kx: (011) 826-5523 íNorcn A lição do mestre 9 A coisa autêntica 68 Greville Fane ... 93 A morte do leão .......... 1og O desenho do tapete .........144 O mestre e suas lições - Josê Gera/do Couïo .... ...... 181

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Page 1: Henry James - O Desenho Do Tapete

(.ol)yrighr da tradução O 1993 by Companhia das Letras(.r,1ìyÍÍfilÌr rfc "O mestre e suas lições" @ 1993 by Josê Geraldo Couto

Títulos originais:Tlte /esson of the master

The rea/ tltìngGreaìlle Fane

The deatl: of the /ìonTlte figure in the carp'et

Capa:Moerna Caaa/cantì

Preparação:

Stella Werss

Revisão:

Sandra Garcìa

Ana Marìa Barbosa

Dados Intenacionaìs de Catalogação na Publicação (crr)(Câmara Bruileira do Livro, sr, Brcil)

Jmes, Henry, 1841,1!16.

Á morte do leão : Histórir de artistc e cscrì-

tores / HenryJames ; tradução Paulo Hcnriques Brito.

- São Paulo : Companhia d6 lÉrÍas, 1993.

rsBN 8t-7164-100-8

1. Contos norte-amerìcanos i- ïtulo.

93-0216 cDD-8lJ

Indices para catálogo sistemático

I Contos : Literatura nofte-ame(icana 813

r993

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SCH\JYÀRCZ LTDÁ.

Rua Tupi, 52201233-000 - São Paulo - sp

ïblefone: (0rr) 826-1822

kx: (011) 826-5523

íNorcn

A lição do mestre 9

A coisa autêntica 68

Greville Fane ... 93

A morte do leão .......... 1og

O desenho do tapete .........144

O mestre e suas lições - Josê Gera/do Couïo .... ...... 181

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O DESENHO DO TAPETE

I

Eu já' havia feito algumas coisas e ganho alguns rostões - haviamesmo, talvez, tido tempo de começar a me achar melhor do que jul-gavam os condescendentes; porém quando reavalio minha trajetória (umhábito nervoso, pois que ela ainda é bem curta), considero meu verda-deiro ponto de panida a noite em que George Corvick, ofegante e preo-cupado, veio pedir-me um favor. Ele játinhafeito mais coisas, e ganhomais tostões, que eu, embora por vezes me desse a impressão de queperdia oportunidades de agir com inteligência. Porém naquela noitenão pude deixar de lhe dizer que ele jamais perdia uma oportunidadede fazer uma gentileza. Fiquei quase em êxtase quando me foi propos-to que preparasse para O Meío - o 619ão de nossas elucubrações, cujonome aludia à posição ocupada na semana pelo dia em que ele era pos-to à venda - um artigo pelo qual Corvick havia se responsabilizado,e cujo tema, bem amarrado com barbante forte, ele colocou em minhamesa. Apossei-me da oportunidade - ou melhor, do primeiro volumedela - e dei pouca atenção à explicação que meu amigo me dava paraseu pedido. Que explicação poderia ser mais relevante que o fato óbviode que eu et^ a pessoa adequada para assumir a tarefa? Eu já havia es-

crito a respeito de Hugh Vereker, mas nunca para O Meìo, onde meocupava sobretudo com as damas e os poetas menores. O que estavaà minha frçnte era seu novo romance, um exempÌar de divulgação, e

independentemente do que ele pudesse vir a representar para a repu-tação do autor, de imediato percebi qual seria seu efeito sobre a mi-nha. Âlém disso, eu, que lia todas as suas obras tão logo as obtinha,tinha agora um motivo em particular para querer lê-las: fora convida-

do a ir a Bridges no domingo seguinte, e o bilhete de ladyJane dizia

que o senhor Vereker estaria presente. Eu era.fovem o bastante para

me empolgar com a perspectiva de conhecer um homem renomado co-

mo ele , e ingênuo o bastante paraachar que a ocasião exigiria de mim

demonstrar conhecimento de sua última pubÌicação.

Corvick, que prometera uma resenha do livro, sequer tivera tem-

po de lê-lo; entrara em pânico ao receber uma notícia que o levara -precipitadamente - a resolver tomar o correio noturno rumo a Paris.

Chegara-lhe às mãos um telegrama de Gwendolen Erme em resposta

à caita em que ele se propunha a it aiuàâ-la imediatamente ' Eu iá ou-

virafalar de Gwendolen Erme; jamais a vira, mas tinhalíminhas idéias

a seu respeito, basicamente a de que corvick haveria de casat-se com

ela tão lógo falecesse a mãe da iovem. A senhora em questão parecia

presres afazer sua vonrade; após uma decisão terrivelmente equivoca-

àa a respeito de um clima ou um rratamento, ela adoecera de súbito

ao voltai do estrangeiro. Sua filha, sozinha e assustada, querendo vol-

tü paracasa de imediato, mas hesitante diante do risco envolvido, acei-

tariaoferta de aiuda de meu amigo; e eu tinha a convicção secreta

de que, tão logo o visse , a senhora Erme se recuperaria' Jâ a convicção

de meu amigo nada tinha de secreta, e era bem diversa da minha' EÌe

me havia mostrado a foto de Gwendolen, comentando que ela não eÍa

bonita mas era interessantíssima: havia publicado aos dezenove anos

de idade um romance em ttês volumes, No fundo, que ele resenhara,

em O Meio, de modo muito favorável. Agradeceu a presteza com que

assumi o encargo e garantiu-me que o periódico em questão me seria

igualmente grato; por fim,16rcom a mão na poÍta, disse: "E claro que

uãi d", tudo cefto". Percebendo que eu não entendera bem o sentido

de seu comentário, acrescentou: "Quero dizer que você não vai escre-

ver tolices"."Tolices? A respeito de Vereker? Ora essa! Eu, que acho tudo que

ele escreve inteligentíssimo!""Pois está aí um bom exemplo do que chamo de tolice ! Âfinal,

o que quer dizer isso de 'inteligentíssimo'? Pelo amor de Deus' tente

chãgar ao àmago do autor. Não quero que ele seja prejudicado por esta

substituição. Fale dele , se você conseguir, coÍno eu o faria'"Hesitei pot um momento. "Ou seja, devo dizer que ele é de lon-

ge o maior de todos... esse tipo de coisa?"

Corvick quase gemeu. "Ah, você sabe que eu não faço nenhuma

comparação desse tipo; isto é o bè-a-bâ da crítica! Mas ele me dá um

pÍazer tão raro, uma sensação de..." - e ficou a pensar por um mo-

mento - "sabe-se lá o quê."

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ril

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Hesitei de novo. ,,Sensação de quê, afinal?,,

'.'Meu caro, é justamente isto qie lhe peço que digal ,,

,. ,tntes mesmo que a porta batesse, eu jahaviâ.o_."ç"do, .o_ olivro.na mão, apreparar-me para dizê_lo. passei metade da noite lendovereker; o próprio corvick não poderia ter feito -.l}ror. o. r".o, ï.reker era inteligentíssimo, mas não "."

de modo algum o -rio. i" ,o_dos. Porém não frz alus.ão aos outros; congratulavalme por h;;;""seguido, nesta ocasião , ir a'êm do bê-a-báã a cr'nica. "Não está mau,,afirmanm com veemência na redação; . qr".rdo o artìgo ,"i;,-;"",ique já tinha uma base para encontrar_me com o grande lã_"_. Aqrri-lo deu-me confiança por um ou dois dias _ e então a confiança desa-pareceu' Eu o imaginara lendo o artigo com prazer, mas se corvick nãoficasse satisfeito, como poderia ficar"o próprìo Vereker? Cheguei a re-fletir que o ardor do aãmirador .ra àr'veies ainda _"ir-";;;-;;; .apetite do escrevinhador. De qualquer modo, Corvick mandou_me deParis uma catta um pouco mal-humorada. Â senhora Erme estava serecuperando, e eu não conseguira exprimir de modo algum a,""r"çr"que Vereker lhe dava.

a

Minha visita a Bridges levou_me a tomat a decisão de aprofundar_me mais. Hugh Vereke. _.{oi esta a impressão que me der, _ permi_tia um conraro tão desprovido de ângulãs que me fazia emubescer aopensar na pobreza de imaginação qui haviaem minhas p.qu.nru prl-cauções' se ele esrava bem-humorado, não era por ter lidì minha Ëse-nha; aliâs, na manhã de domingo.onuenci-me de que ele não

^n^rolido, embora o Meìo tivesse sidã publicad o hjn i^três dias e florescessc

- conforme eu havia verificado - no duro jardim a" f..i.aiiãr-iïàtransformava uma das mesas douradm nu-^.rpécie de banca de jfr_nais de estação ferroviária. Â impressão pessoal lue o es.rito, -lJ*-sou foi tal que me levou a desejar q.r. .È lesse meu a.rgo, e com estefim corrigi, sub-repticiamenre, a posição pouco conspícua da folha emquestão em meio às outras. confesso que fiquei a ob^servar o ..r.rtiJoj:^:ïn" manobra, mas aré a hora do almoço _"., esforço foi desper_qrÇaclo.

Mais tarde, quando me vi, no decorrer de uma caminhada sresá_ta, por meìa hora - e talvez como resuÌtado de ourra _;À;"ï;lado do grande homem, o resultado de sua afabilidade foi inspirar emmim um desejo ainda mais vivo de que ele viesse a conhecer o texto

em que eu fazia justiça a seu talento. Não que ele parecesse ansiar porjustiça; pelo contrário, em nada que o ouvira dizer eu havia percebidoo mais sutil sinal de rancor - uma nota que minha experiência, aindaque pouca, já me ensinara a identifìcat. Recentemente seu reconheci-mento vinha aumentando, e era agtadâvel - como dizíamos na reda-

ção de O Meio - vê-lo desabrochar. Vereker não era popuÌar, é claro;mas parecia-me que uma das fontes de seu bom humor era precisamente

o fato de que seu sucesso não dependia da popularidade. Não obstan-

te, havia se tornado, de certo modo, um escritor da moda; a critica,ao menos, tinha acelerado o passo atê alcançá-lo. Afinal havíamos des-

coberto o quanto Vereker era inteligente, e agora ele teria de fazer opossível para compensar a perda de seu mistério. Caminhando a seu

lado, sentia-me tentado a dizer-lhe que aquele desvendamento fora emparte obra minha; e houve um momento em que eu provavelmenteo teria feito, não houvesse uma das damas de nosso grupo se aproxima-do do escritor pelo lado oposto e lhe dirigido um apelo um tanto egoís-

ta. Fiquei muito desanimado: era quase como se aquela liberdade ti-vesse sido tomada comigo.

De minha parte, eu tinha na ponta da língua uma ou duas ex-

pressões a respeito dapalavra certa dita na hora certa; mais tarde, po-rém, achei bom não ter falado, pois quando, voltando do passeio, nos

reunimos para tomar chá, vi ladyJane, que não havia saído conosco,brandindo O Meio com o braço espichado. À falta do que fazer, elao pegara para folhear e aàorara o que lera; e percebi que, assim comoum defeito num homem pode muitas vezes ser uma qualidade numamulher, ela faria por mim quase exatame nte aquilo que eu não conse-

guirafazer por mim mesmo. "Âlgumas pequenas verdades agradáveis

que precisavam ser ditas", ouvi-a afirmar, impondo a folha a um casal

um tanto perplexo que estava sentado ao pé do fogo. Tomou-lhes devolta o periódico quando reapareceu Hugh Vereker, que após o passeio

havia subido paÍa ffoc r alguma peça de indumentária. ' 'Sei que o se-

nhor em geral não lê esse tipo de coisa, mas trata-se de uma ocasião

em que realmente vale a pena fazê-lo. O senhor não leu? Então precisaler. O homem de fato chegou ao àmago, exprimiu o que eu sempresenti. " Lady Jane assumiu um olhar que claramente pretendia dar umaidéia do que ela sentia sempre; porém acrescentou que seria incapazde exprimi-lo. O articulista o fazia de modo notável. "Veja aqui, e ali,onde eu sublinhei, como ele consegue captar o sentido. " Ela havia li-teralmente destacado para ele as passagens mais felizes de meu texto,e se eu achava um pouco de graça naquilo é bem possível que Verekertambém sentisse o mesmo. E ele demonstrou o quanto aquilo o diver-

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E

tia quando, diante de todos, ladyJane se propôs a ler algo emvoz a\ta.Gostei de vê-lo impedir que ela realizasse seu intento, arrancando-lheo jornal das mãos com um gesto afetuoso. Ele levaria o artigo para lerquando fosse se vestir. Foi o que fez meia hora depois - vi-o em suamão quando subiu para seu quarro. Foi então que, pensando em darprazer a ladyJane , afirmei que era eu o auror da resenha. Dei-lhe pra-zer, àe fato, mas talvez não tanto quanto esp€rava. Se o autor não eraninguém mais do que eu, então a coisa não parecia. tão notável assim.Não tive eu o efeito de diminuir o brilho do artigo ao invés de lhe acres-centar meu próprio brilho? O humor de ladyJane era sujeito às flutua-ções mais extraordinárias. Não importava; o único efeito que me inte-t€ssava era o que o artigo teria sobre Vereker, sentado ao lado dalareiracle seu quatto.

Durante o jantar, tentei encontrar sinais da impressão que minhacrítica causara, algum brilho mais alegre nos olhos de Vereker; mas pa-ra minha decepção lady Jane não me deu oportunidade de verificá-lo.Eu tinha esperanças de que ela perguntasse em voz alta, à mesa, publi-camente, se não tivera mesmo razão. O grupo era numeroso - haviapessoas de fora, também - mas eu jamais vira uma mesa tão grandeque impedisse ladyJane de proclamar seu triunfo. Estava justamentea refletir que esta mesa interminável me impediria de proclamar o meutriunfo quando a pessoa sentada a meu lado - rcre_ a querida senhoritaPoyle, a irmã do vigá'rio, uma mulher robusra e desprovida de modula-ções - teve a feliz inspiração e

^ raÍ^ coragem de dirigir-se a Vereker,

que estava do outro lado da mesa, mas não diretamente em frente aela, de modo que, quando ele respondeu, ambos tiveram que se de-bruçar p^Ía afÍr.-nte. A senhorita Poyle pergunrou, em sua santa inge-nuidade, o que ele achara do "panegírico" de lady Jane, o qual elaprópria lera - sem, no entanto, estabelecer qualquer ligação entre oartigo em questão e seu vizinho de mesa; e quando me esforcei paraouvir a resposra, Vereker, para minha estupefação, respondeu alegre,com a boca cheia de pão: "Âh, nada mau... a mesma bobagem desempre!".

Ao falar, Vereker olhou para mim, mas felizmente a surpresa dasenhorita Poyle encobriu a minha. "O senhor acha que ele não lhe fezjustiça?", perguntou a excelente criatura.

Vereker riu, e tive o pÍazeÍ de conseguir fazer o mesmo. "É .r-artigo encantador", disse-nos ele.

A senhorita Poyle espichou um queixo que chegava até a metadeda largura da mesa. "Âh, o senhor é impenetrável!", alfinetou ela.

"Como o Saara! Só estou dizendo que o autor não percebe...,'

Mas nesse ponto uma travessa foi colocada à sua frente, e tivemos que

esperar enquanto ele se servia'"Não percebe o quê?", insistiu minha vizinha."Não percebe coisa alguma.""Então ele há de ser muito obtuso!""Absolutamente", disse Vereker, e riu de novo. "Ninguém per-

cebe nada."A senhora sentada a seu lado dirigiu-se a ele, e a senhorita Poyle

recorreu a mim. "Ninguém percebe nadat", proclamou ela, animada;

respondi eu que muitas vezes esta iàêiaiá me ocorrera' só que de al-

gum modo eu a interpretava como prova de que a minha percepção,

em particular, era das mais aguçadas. Não lhe disse que o artigo em

-.rr; . observei que ladyJane, ocupada, à cabeceira da mesa' não ti-nha ouvido as palavras de Vereker.

Após o jantar passei a evitá-lo, pois confesso que ele me pareceu

cruelmente presunçoso, e esta revelação era dolorosa' "A mesma bo-

bagem de sempre" - meu artigo tão perceptivo! Então irritava-o de

tal modo vef que a aàmíração de um crítico continha uma ou duas res-

salvas? Eu o julgara cheio de si, e era verdade; tal eraa dura superfície

de vidro polido que encerrav a a j6ía Ï>arata de sua vaidade. Sentia-me

deveras irìitado, e o único pensamento que me confortava era o de que,

se ninguém percebia nada, então George Corvick percebia tão pouco

quant; err. Eìte conforto, porém, não bastou para me fazer enuar, àe-

pois qu. as senhoras se dispersaram, da maneira correta - ou sela, com

um paletó de bolinhas, cantarolando -' no salão de fumar' Subi em

direção a meu quano. um ranto abarido; mas no corredor encontre i

o ,..rho, Verekeì, que havia subido mais uma vez para uocar-se' E/e

estava cantarolando, com um paletó de bolinhas, e assim que me viu

sobressaÌtou-se."Meu caro iovem", exclamou ele, "que bom encontrá-lo aqui!

Creio que o magoei sem querer com o que disse à senhorita Poyle hoie

no ia.riar. Foi só meia hora atrás que fiquei sabendo' através de lady

Jane , que o senhor é o autor da pequena resenha que saiu em O Meio '"Argumentei que não sofrera nenhum ferimento maìs grave , mas

ele levou-me até minha porta, com a mâo em meu ombro' delicada-

mente tentando localizar alguma fratura; e ao ser informado de que

eu ia deitar-me pediu-me permissão para entrar em meu quarto e me

dizer em poucas palavras o que representava sua qualificação de meus

comentários. Sem dúvida alguma, ele temia ter me magoado, e esta

sua solicitude de repente mudou toda a situação para mim. Minha po-

bre resenha desapareceu no espaço, e as melhores coisas que nela eu

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dissera pareciam insossas diante daquela presença brilhante a meu la-do. Ainda o vejo, em pé sobre o tapere, à luz do fogo, com seu paletóde bolinhas, seu rosto belo e límpido iluminado pelo desejo de ser de-licado com minha juventude. Não sei o que ele pretendia me dizer deinício, mas creio que meu alívio comoveu-o, excitou-o, trouxe_lhe a<_rs

lábios paÌavras vindas das profundezas. Estas palavras exprimiram paramim algo que, como vim a saber depois, ele jamais dissera a .ringuém.sempre reconheci o impulso generoso que o levou afarar;.r",rmã si--ples compunção despertada pela humilhação que ele infligira sem que_rer a um homem de letras em posição inferior à sua, o qual, além disso,tivera precisamente a intenção de elogiá-lo. para compensar, ele dirigiu-sea mim exatamente como um igual, e com base nas coisas qu. nós doismais amávamos. Â hora, o lugar, o inesperado do gesto, tiveram o efei-to de aprofundar a impressão: ele não poderia ter agido de modo maiseftcaz.

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"Não sei muito bem como explicar", disse ele, ,,mas foi iustamenteo fato de que sua resenha de meu livro tinha o brirho da inteligência,foi justamente a sua aryíciaexcepcional que inspirou em mim o senti-mento - que costuma acometer_me de longa data, peço_lhe que meacredite - sob cuja influência temporária eu proferi,

"o di.igi._-. aqrr._

la boa senhora, as palavras que o senhor, com toda ^

r^rio, achou tãoofensivas' Nunca leio as coisas que saem nos jornais a menos que al-guém me obrigue a lê-las; e é sempre o nosso melhor amigo que o fazlMas antes eu lia, às vezes... dez anos atrás. Eu diria que, demodo geral,eram bem mais obrusas antigamente que agora; seja como for, sempreme surpreendi de constatar que elas distorciam minha despretensiosaintenção com uma perfeição admjrável, que eram absolutamente idên_ticas tanto quando me davam um tapinha nas costas como quando mechutavam as canelas. Desde então, sempre que dou uma olhada nessasresenhas constato que elas continuam com a mesma pontaria de antes:ou seja, sempre errando o alvo, de modo delicioro. É o q.,. o sen/tor faz,meu caÍo jovem, com uma confìança absoluta; e o fato de o senhorser inteligentíssimo e de seu artigo ser simpaticíssimo não faz a menordiferença. É principalmente vendo vocês, .io:vens em ascensão,', disse Ve-reker, rindo, "que mais cÌaro fica para mìm o meu fracasso!,'

Eu ouvia-o com muito interesse, e meu interesse crescia à medida

que ele filava. " O senhor, um fracasso? Meu Deus! Mas então, quaÌ

é a sua 'despretensiosa intenção', afinal?""Será que eu tenho de lhe dizer o que é, depois de tantos anos

e tanto trabalho?" Havia naquela repreensão arnigâvel - iocosamenteexagerada - algo que fez com que eu, um iovem ardoroso em busca

da verdade, corasse atê araiz dos cabelos. Continuo até hoje no escuro,

tanto quanto naquele dia, ainda que de certo modo tenha me acostu-

mado à minha obtusidade; no momento em questão, porém, o tomalegre de Vereker teve o efeito defazer com que eu me visse, e provavel-

mente com que ele também me visse, como o mais rematado paspa-

lhão. Estava eu a ponto de exclamar: "Âh, não o diga: por minha hon-

ra, e pela honra de nosso oírcio, não o diga!", quando Vereker passou

a demonstrar que havia lido meus pensamentos e que tinha lá sua pró-

pria visão da possibilidade de que algum dia nós pudéssemos nos redi-

mir. "Minha despretensiosa intenção é - como dizê-lo? - o motivobásico pelo qual escrevi meus livtos. Não terá cada escritor algo de es-

pecífico, a coisa que mais o leva a esforçar-se, a coisa que, não fosse o

esforço àe realizâ-la, ele simplesmente não escreveria, a própria paixão

de sua paixão, a patte de seu trabalho na qual, para ele, a chama àa

arte arde com mais intensidade? Pois bem, ê ìssol."

Fiquei a pensar por um momento - melhor dizendo, acompa-

nhei-o a uma distância respeitosa, um tanto esbaforido. Eu estava fasci-

nado; o leitor dirá que me fascino por pouco, mas não deixei que ele

me levasse de roldão. "Sua explicação é sem dúvida bela, mas ela não

explica nada com muita clareza.""Garanto-lhe que estaria bem clara se o senhor pudesse apreendê-

la." Vi que o encanto daquele tema de meu interlocutor transbordava

numa emoção tão vívida quanto a minha. ''Seja como for", prosseguiu

ele, "falo por mim: há em minha obra uma idéia sem a qual eu não

daria a menot importância a nada do que faço. É a mais bela e mais

plena de todas as intenções, e sua aplicação tem sido, creio eu, um triunfoda paciência, do engenho. Estas coisas, eu devia deixá-las para que os

outros as dissessem; mas o problema é precisamente o fato de que nin-guém as diz. Este meu pequeno truque passa de livro a livro, e tudoo mais, relativamente falando, são apenas lampejos sobre sua superfí-

cie. A ordem, a. forma, a textura de meus livros algum dia talvez ve-

nham a constituir para os iniciados uma completa representação desta

idéia. Assim, naturalmente deveria caber à crítica procurá-la. Eu diriaaté", actescentou meu visitante, com um sorriso, "que caberia à crítica

encontrá-1a."

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Isto me pareceu uma tremenda responsabilidade. "O senhor dizque é um pequeno truque?"

"Isto é apenas modéstia minha. Na verdade trata-se de um planosofisticado. "

"E o senhor acha que conseguiu realizâ-lo?""O modo como o realizei é a ítnica coisa em minha vida que me

faz ter um conceito razoâvel de mim mesmo."Fiz uma pausa. "O senhor não acha que deveria. .. {uàar a críti-

ca, só um pouquinho?""Ajudar a critica? E o que mais tenho feito cada vez que tomo

a pena? Não faço outra coisa senão gritar minha intenção na cafa apaÍ-valhada da cirticat" Âo dizê-lo, rindo de novo, Vereker pôs a mão emmeu ombro para àar a entender que não estava fazendo qualquer refe-rëncia a minha aparëncia pessoal.

"Mas o senhor fala nos iniciados. Neste caso, tem que haver umainiciação. "

"E o que deve ser a círtica, homem de Deus, senão uma inicia-ção?" Confesso que corei ao ouvir isto, também; porém esquivei-merepetindo que à explicação que ele apresentarafaltava algo, sabe-se láo quê, por meio do qual um homem comum pudesse reconhecer as

coisas. "Isto é só porque o senhor jamais a vislumbrou", retrucou ele."Se o senhor apreendesse o elemento em questão, praticamente nãoconseguiria ver mais nada. Para mim, é algo tão palpável quanto o máÍ-more desta chaminé. Além do que, o crítico não é um homem comum:se fosse, o que estaria ele fazendo no iardim dos outros? O senhor estálonge de ser um homem comum, e araison d'être de todos vocês é pre-cisamente o fato de serem verdadeiros demônios de sutileza. Se meugrande proieto é um segredo, trata-se de um segredo nza/grê /uì - umevento extraordinário transformou-o em segredo. Eu não apenas jamais

tomei qualquer precaução no sentido de mantê-lo em segredo, comotambém jamais sonhei com a possibilidade de um tal acidente. Casocontrário, não teria tido ânimo de seguir em frente. Na verdade, só

fui tomando consciência da situação pouco a pouco, e quando dei pormim havia realizado minha obra."

"E agora o senhor a admira?" , arrisquei."Minha obra?""Sua idéia. Seu segredo. É a m.sma coisa.""Esta sua constatação", replicou Vereker, "é prova de que o se-

nhor é mesmo tão inteligente quanto afirmeil" Este comentárioincentivou-me a dizer que ele claramente não gostaria de abrir mão deste

segredo, e ele confessou-me que este tornara-se de fato o maior pÍazer

de sua vida. "Quase chego a dizer que vivo na expectativa de que um

dia alguém o descobrirá. " Olhou-me como se me desafiasse de modo

jocoso-: algo no fundo de seus olhos parecia vir à tona' "Mas não tenho

por que me preocupar; isto não há de acontecer nunca!"- ;'O senhor me provoca como nunca fui provocado antes", afir-

mei; ,,inspira-me a determinação de descobrir o segredo ou morter ten-

tando." Èm seguida perguntei: "Trata-se de uma espécie de mensa-

gem esotéfica?".Âo ouvir isso, seu rosto exprimiu desânimo; ofereceu-me a mão

como se para despedir-se de mim. "Ah, meu caro. não é coisa que possa

se exprimir em jornalês barato!"Éu sabia, é claro, que ele seria terrivelmente sensível, mas nossa

conversa mostrou-me que seus nervos estavam à flor da pele. Eu estava

insatisfeito; continuei segurando-lhe a mão. "Então não usarei a ex-

pressão", disse eu, "no artigo em que algum dia anunciarei minha des-

.oberta, embora pafeça-me que será difícil safar-me sem ela. Mas neste

ínterim, só para apressar este parto dificil, o senhor não poderia me

dar uma pista?" Eu estava bem mais à vontade .

"Toão meu esforço consciente consiste em dar pistas - em cada

pâgina, cada linha, cadaleua. Â coisa estítão concretamente plesente

irrãt,o um pássaro numa gaiola, uma isca num anzol, um pedaço de

queijo numa ratoeira. Estí dentro de cada volume , tal como seu pé es-

tã dentro do sapato. Governa cada linha, escolhe cada paÌavra, põe o

pingo em caàa i, coloca cada virgula."Cocei a cabeça. "É algo ligado ao estilo ou ao pensamento? Um

elemento de forma ou de sentimento?"Ele apertou-me ^

mão de novo, indulgente, e senti que minhas

perguntas eram obtusas, minhas distinções eram patéticas' "Boa noi-

te, meu lovem; não se preocupe com isso. O importante é que me tem

afeto. ""E um pouco de inteligência poderia estragá-lo?" Eu ainda o

detinha.Ele hesitou. "Bem, o senhor tem coração. Será isto um elemento

de forma ou de sentimento? O que afirmo que ninguém jamais men-

cionou em minha obra é o 619ão da vida.""Entendo... trata-se de uma idêia a respeito da vida, uma espécie

de fìlosofia. A menos", actescentei' ansioso por exprimir um pensa-

mento quiçá ainda mais feliz, "que seja uma espécie de jogo que o

senhor está fazendo com seu estilo, algo que o senhor procufa na lin-

guagem. Talvez seja a predileção pela letra pê!", arrisquei, irreveren-

t". iPrpai, palmeira, polenta... esse tipo de coisa?" Ele foi indulgen-

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te, como exigia a ocasião: disse apenas que eu não encontran aleuacerta. Mas já. não achava mais graça naquilo; percebi que estava ente-diado. Não obstante , havia ainda uma coisa que era muito importanteeu saber. "Seria possível para o senhot, com a caneta, exprimi-la comclareza para si próprio? Identificá-la, exprimi-la, formulâ-la?"

"Âh", suspirou ele, quase passional, "se eu fosse, com a caneta,um de uocêsl"

"Seria uma grande oportunidade para o senhor, é claro. Mas co-mo pode o senhor desprezar-nos por fazer algo que o senhor não é ca-

paz de fazer?""Não sou capaz de fazer?" Ele abriu os olhos. "Então não o fn

em vinte volumes? Eu faço a meu modo", prosseguiu ele. "Vocês quefaçam segundo o seu."

"O nosso é terrivelmente diÍícil", foi minha débil observação."O meu também! Cada um escolhe o seu. Não há obrigação. O

senhor não desce para fumar?""Não. Quero pensar nessa questão.""Então o senhor me dirá amanhã de manhã que conseguiu me

destrinchar?' '"Vou ver o que posso fazer; amanhã é outro dia. Só mais uma

coisa", acrescentei. Havíamos saído do quarto, e caminhei com ele umpouco pelo corredor. "Esta sua extraordinária 'intenção geraÌ', comoo senhoÍ a chama - pois foi essa a definição mais clara que conseguiextrair do senhor - é então, por assim dizer, uma espécie de tesouroenterrado ? ' '

Seu rosto iluminou-se. "É, pode encará-la assim, se bem que eutalvez não possa."

"Ora, qual!", exclamei, rindo. "O senhor sabe que se orgulhamuito dela."

"Eu não pretendia dizer-lhe isto, mas ê a alegria de minha alma! ""Por ser de uma beleza tão ra:la,, tão grande?"Ele fez uma pausa novamente. "Â coisa mais bela do mundo!"

Havíamos parado, e com estas palavras ele afastou-se ; mas no final docorredor, enquanto eu o contemplava com um olhar um tanto curioso,ele virou-se e viu minha expressão perplexa. Isto o fez sacudir a cabeçae o dedo com uma ênfase que me pareceu um tanto ansiosa: "Desista,desista! ".

Aquilo não era um desafio; era um conselho paterno. Se tivesseem minhas mãos um de seus livros, teria repetido meu recente ato defé, passando metade da noite lendo-o. Às três da manhã, insone , pen-sando além disso no quanto Vereker era indispensâvel para ladyJane,

fui pé ante pê atê a biblioteca com uma vela. Não consegui encontrar

na casa absolutamente nada escrito por ele.

De volta à cidade, iuntei febrilmente todos os seus escritos;

esquadrinhei-os frase por frase. Este trabalho enlouquecedor ocupou-

me por um mês, durante o qual diversas coisas ocorreram. Uma delas'

a última, ê talvez a primeira que devo mencionar: segui o conselho do

autor e abandonei minha ridícula empresa. Âquilo não estava levando

a nada; era pura perda de tempo. Âfìnal de contas, eu sempre gostara

de Vereker, como elc próprio observara; e agora o fato novo de que

eu ficara sabendo e meu empenho vão estavarn preiudicando este meu

sentimento. Não apenas não consegui encontrar a intenção geral que

procurava como também deixei de desfrutar as intenções subordinadas

que antes me deleitavam. Seus livros perderam o encanto para mim;a frustração de minha busca fez-me perder o alto conceito em que os

tinha. Não eram mais para mim um prazer adicional, e sim um recurso

a menos; pois a partir do momento em que constatei não ser capa'z àe

seguir a pista que me dera o autor, ê claro que passou a ser uma ques-

tão de honra não usar profissionalmente o conhecimento que eu tinhade sua obra. Eu não sabia nada - nem eu nem ninguém. Era humi-lhante, porém suportável; seus livros agora apenas me incomodavam.

Por fim, aborreciam-me, e expliquei a confusão em que me via - de

modo um tanto irracional, reconheço - dizendo a mim mesmo que

Vereker havia zombado de mim. O tesouro enterrado era uma brinca-

deira de mau gosto; a intenção geral não passava de uma pose mons-

truosa.O mais importante de tudo isso, porém, é que contei a George

Corvick o que me havia ocorrido, e esta informação teve um efeito tre-

mendo sobre ele. Ele havia voltado, mas infelizmente a senhora Erme

voltara também, e por enquanto não havia possibilidade de seu casa-

mento realizar-se . Corvick ficou muitíssimo intrigado com o episódio

ocorrido em Bridges; aquilo se coadunava perfeitamente com a impres-

são, a qual ele tivera.desde o início, de que havia mais em Vereker do

que era visível. Quando observei que a página impressa fora feita pata

ser visível, Corvick de imediato acusou-me de estar sendo despeitado

por ter sido derrotado. Nosso relacionamento sempre permitia estas agra-

dáveis liberdades. Era precisamente a respeito da coisa à quaÌ Vereker

aludia que ele me pedira que eu falasse em minha resenha. Quando

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retruquei que, com base na ajuda que eu lhe àera agora, ele própriocom cefteza estaria preparado pata falar a respeito dela, Corvick reco-nheceu prontamente que para tal ainda precisava compreender muitascoisas. O que ele teria dito, se tivesse escrito a resenha do novo livro,era que havia sem dúvida algo no ãmago da arte daquele escritor queprecisava ser compreendido. Eu sequer tocara nesra questão; não ad-mirava que o autor não se sentisse lisonjeado! Perguntei-lhe o que elede fato queria dizer com esta sua extrema sutileza, e ele respondeu,visivelmente excitado: "Não é para qualquer um! Não é para qualquerum!". Ele havia agarrado algo pela cauda, e ia puxá-lo para fora, se

ial Fez-me relatar nos menores detalhes a estranha confidência de Ve-reker, e qualificando-me de o mais venturoso dos mortais mencionoumeia dú.zia de perguntas que lamentav^ não haver eu tido coragem defazer. Por outro Ìado, porém, não queria que eu lhe dissesse demais,o que poderia estragar-lhe o prazt-r de descobrir o que esrava por vir.Quanto ao n eu pta,zer, naquele momento ainda não estava todo estra-gado, mas eu sabia que isto não demoraria para acontecer; e Corvicksabia que eu o sabia. De minha parte, eu sabia também que uma dasprimeiras coisas que ele faria era conrâr minha história a Gwendolen.

No dia seguinte após esta conversa, surpreendi-me ao receber umbilhete de Hugh Vereker, que havia se lembrado de nosso encontro emBridges, segundo ele, ao se deparar, numa revista, com um artigo assi-nado por mim. "Li-o com grande prazeÍ", escreveu ele, "e, sob a in-fluência desta leitura, lembrei-me de nossa interessante conversa ao pédalarcira de seu quano. Como conseqüência, comecei a dar-me contada minha temeridade ao lhe comunicar uma informação que poderiatornar-se um ônus paÍa o senhor. Findo o momento de entusiasmo,não entendo como pude me empolgar de um modo que me é tão pou-co costumeiro. Mesmo em meus momentos mais expansivos, jamaismencionara antes meu pequeno segredo, e jamais voltarei a falar nestemistério. Por acidente, acabei sendo muito mais explícito com o senhordo que pretendia ser, a taÌ ponto que meu pequeno jogo

- ou seja,o plazer de jogâ-lo

- foi consideravelmenre prejudicado. Em suma:se o senhor entendeu o segredo, estraguei meu jogo. Não desejo demodo algum dar 'deixas' a ninguém, para usar o termo que julgo serempregado por jovens inteligentes como o senhor. Trata-se, natural-mente, de uma consideração bem egoísta, e revelo-a ao senhor pelo quepossa vir a ser-lhe útil. Se quer fazer minha vontade, não transmira a

terceiros minha revelação. Julgue-me louco; é seu direito. Mas não di-ga a ninguém por quê,"

Em resposta a este bilhete, na manhã seguinte , parti o mais cedo

que ousei em direção à casa do senhor Vereker. Naquela época ele mo-rava numa das casas velhas e honestas de Kensington Square. Recebeu-

me de imediato, e assim que entrei percebi que não havia perdido meupoder de diveni-lo. Vereker começou a rir Íão logo se deparou com meurosto, o qual sem dúvida exprimia minha penurbação. Eu fora indis-creto; era grande minha compunção. "Contei a uma pessoa", fui di-zendo, ofegante, "e estou certo de que a esta altura ela jâterâcontadoa uma outra pessoa! Que é uma mulher, ainda por cima."

"A pessoa a quem o senhor contou?""Não, a outra. Estou certo de que ele falou com ela.""O que não muda as coisas em nada para ela - nem para mimt.

Uma mulher jamais descobriria.""Não, mas ela há de contar a todo mundo; farájustamente o que

o senhor não queria que acontecesse."Vereker pensou por um momento, mas não estava tão desconcer-

tado quanto eu temeta; sentia que, se o mal estava feito, então era bemfeito para ele. "Não impona; não se preocupe."

"Prometo fazer o que for possível para que o teor de nossa con-

versa não se espalhe ainda mais.""Muito bem; faça o que puder.""Por outro lado", prossegui, "pode ser que George Corvick, co-

nhecendo a deixa, chegue a alguma descobena.""E ver para crer."Falei-lhe da perspicácia de Corvick, sua admiração, seu vivo inte-

resse por meu relato; e sem dat muita ênfase à divergência entre minhaavaliação e a dele , observei que meu amigo julgava entender bem me-

lhor uma determinada questão do que a maioria das pessoas. Estava tão

empolgado quanto eu próprio ficara em Bridges. Ademais, estava apai-xonado pela jovem; talvez os dois juntos tesolvessem o enigma.

Isto pareceu impressionar Vereker. "Quer dizer que eles vão se

casaÍ?""Creio que é o que vai terminar acontecendo.""Isto pode ajudá-los", reconheceu ele , "mas temos de lhes dar

tempo!"Falei de minhas tentativas renovadas e confessei minhas dificulda-

des; ele repetiu seu conselho: "Desista! Desista! ". Estava claro que não

me considerava intelectualmente à altura da façanha. Fiquei com Ve-reker meia hora, e ele foi muito simpático; mas não pude deixar dejulgá-lo um homem de humor instável. Havia se aberto comigo nummomento; arrependera-se em outro momento; e agora tornava-se indi-ferente . Esta sua inconstância aiudou a convencer-me de que a tal dei-

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xa não Ìevaria a nad'- de muito importante. Não obstante , consegui fazê-lo responder a mais algumas perguntas referentes à questão, ainda quecom uma impaciência indisfarçável. para ele, sem dúvida alguma, a coisaque nos parecia tão obscura era evidente. A meu ver, devia estar emprimeiro plano, como o desenho complexo de um tapete persa. Ele apro_vou enfaticamente esta imagem quando a usei, e propôs or.rt.", ,iÉ

ofio onde estão enfiadas minhas pérolas!". Se me escrevera o bilhete,fora porque na verdade não queria nos dar a menor pista: nossa obtusi-dade era algo tão perfeito, à sua maneira, que não se devia perturbá-la. Esta idéia dava-Ìhe sustenro, e se o encantamenro viesse ã se que-brar, seria por obra de uma força endógena. euando penso em Vere_ker neste nosso último encontro - pois nunca mais vim a falar comele - vejo-o como um homem que possuía um refúgio protegido on_de se divertia. Âo ir embora, fiquei a pergunrar-me onde teria ele en-contrado a sua deixa.

Quando faÌei a George Corvick da advertência que me fora feita,ele me fez sentir que qualquer dúvida quanto a sua discrição seria qua-se um insulto. Ele havia contado a Gwendolen quase de imediato, masGwendolen em resposta se comprometrra a guardar o segredo. A ques_tão os absorveria e lhes ofereceria um passatempo precioso demais paraser compartilhado com as multidões. Aparentemente, os dois haviamcaptado de modo instintivo o sentido lúdico de vereker. porém seu or-guÌho intelectual não era tanto que os tornasse indiferentes a quais-quer esclarecimentos adicionais que eu lhes pudesse proporcionar emreÌação ao problema. Eram dotados do verdadeiro "temperamento ar-tístico", e mais uma vez impressionou-me o poder q.r. ii.rh" meu co_lega de empolgar-se com problemas estéticos. Ele diria que era umaquestão de literatura, ou diria que é uma questão de vida, mas davano mesmo. Ouvindo-o agora, entendi que falava tambêm por Gwen_dolen, a quem, tão logo o permitiu a saúde da senhora Erme , ele fezquestão de me apresentar. Lembro que fomos juntos, num domingode agosto, a uma casa apertada em Chelsea, e que mais uma vez sentiinveja de corvick por rer ele uma amiga para aludá,-lo a tentaÍ elucidaro enigma. A ela podia dizer coisas que eu jamais poderia dizer a ele.Na verdade, Gwendolen era totalmente desprovida de senso de humor;com seu jeito de manter a cabeça inclinada para o lado, era uma dessaspessoas que, como se diz, nos dão ganas de estrangulá-las, mas que

são capazes de aprender o húngaro por conta própria. Talvez ela con-versasse em húngaro com Corvick, pois disse muito pouco em inglêsao amigo de seu namorado. Mais tarde Corvick explicou-me que eu lhedes4gradara por parecer não lhes queÍer dar mais detalhes a respeitodo que Vereker me dissera. Justifiquei-me com a observação de que,a meu ver, eu jâ pensara demais naquele assunro; pois não chegara atêmesmo à conclusão de que o esforço era inútil e não levaria a nada?A importância que os dois lhe davam irrìtava-me e inspirava-me dúvi-das venenosas.

 afirmativa acima ê um ranto biliosa, e o que provavelmente acon-teceu foi que me senti humilhado ao ver outras pessoas absolutamentefascinadas por algo que só me proporcionara mortificação. Eu perma-necia ao relento enquanro os dois, ao pé do fogo, à luz do lampião,ava.nçavam na caçada que eu próprio inaugurara com um toque de trom-beta. Puseram-se afazer o mesmo que eu ftzera, porêm de modo maisponderado e a dois; repassavam a obra do escritor desde o início. Nãohavia pressa, disse Corvick; tinham todo o futuro pela frente, e o fascí-nio daquele projeto s6 faria crescer; leriam tudo, página a pá,gina, co-mo quem lê um clássico, lenramente inalando aquela obra, impreg-nando-se dela. Não teriam se absorvido de tal modo nesta tarefa, creioeu, se não estivessem apaixonados: o significado secreto do pobre Ve-reker dava-lhes infinitos prerexros para aproximarem suas cabeças.f uve-nis. Assim mesmo, tratava-se do tipo de problema apropriado às apti-dões de Corvick, que nele despertava aquela paciência concentrada daqual, se tivesse vivido mais tempo, ele teria fornecido mais exemplos;e exemplos mais frutíferos, era de se esperar. De qualquer modo, Cor-vick era - p^ra usar a expressão de Vereker - um demônio de sutiÌe-za. Hav-ramos começado com uma disputa, porém logo percebi que semminha intervenção aquela sua obsessão teria seus maus momentos. Talcomo eu, ele seguiria pistas falsas; fecharia as mãos em concha sobrenovas luzes que seriam apagadas pelo ato de virar apágina. Ele era exa-tamente, disse-Ìhe eu, como os monomaníacos que abtaçam algumateorìa maluca a respeito do sentido oculto da obra de Shakespeare.Respondeu-me Corvick que se o próprio Shakespeare tivesse afirmadoque sua obra guardava um sentido oculto, ele acreditaria sem qualquerhesitação. Mas o caso era bem diferente; só quem via sentidos ocultosem Shakespeare eÍa- o senhor Fulustreco. Retorqui que estava estupefa-to de vê-lo dar tal vaÌor à palavra do senhor Vereker. Em resposta, eleperguntou-me se eu achava que o senhor Vereker era um mentiroso.Não estava eu pronto para defender a tal ponto meu infeliz argumen-to, porém insisti que, até prova em contrário, eu diria que a imagina-

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ção do escritor era demasiadamente fénil. confesso que não disse - co-mo aliás naquela época eu não sabia - tudo que sentia. No fundo,como diria a senhorita Erme, eu estava intranqüilo, na expectativa. Noãmago de meu estado de incerteza - pois minha curiosiãade habituarainda vivia em meio a suas próprias cinzas - havìa a nítida conviccãode que corvick terminaria por encontrar alguma coisa em algum lugar.Em defesa de sua credulidade , ele argumenrou que de longã data,-emsuas leituras da obra do genial autor, ele vinha percebendo laivos e in-sinuações - do quê, ele não sabia; vagas notas errantes de uma melo-dia oculta. Era juçtamente isto o que havìa de raro, de fascinante: poiscoadunava-se à perfeição com o que eu lhe havia relatado.

Se voltei várìas vezes à casinha em chelsea, creio que foi para ternotícias tanto de vereker quanto da mãe adoentada dà senhJrita Er-me. As horas que Corvick lâ passava eram, na minha imaginação, co_mo as que passa um jogador de xadrez, silencioso, de cenho ftanzid.o,duranre todo o inverno, à luz do lampião, debruçado sobre o tabulei-ro, a lucubrar jogadas. À medida que minha imaginação ia completan-do este quadro, mais e mais ele intrigava-m.. oo t"dò oposro dã tabu-leiro havia uma figura mais espectral, os vagos contornos de um anta-gonista, tranqüilo e bem-humorado, porém um pouco cansado _ umadversário que se refestelava em sua cadeira com as mãos no bolso eum sorriso no rosto belo e límpido. Âtrás de corvick havia uma jovemque começava a me parecer um tanto pálida e abatida, e até mesmo,quando jâ me familìarizara mais com ela, bela, e que ficava apoiadaem seu ombro, observando cada jogada sua. corvick tomava urÌìa peçae segurava-a por algum rempo acima de um quadrado; depois recolã_cav^-ano lugar de anres com um prolongado suspiro de desânimo. Nestemomento a jovem mudava de posição, com um gesto quase impercep_tível, porém inquieto, e voltava um olhar m.rito fi*o, m.rito d.-oà_do, muito estranho, para o adversário indistinto. Ainda no início doprocesso, perguntei-Ìhes se não seria útil manter alguma espécie de con-tato com o escritor. Dadas as circunstâncias especiais, com cefteza eutinha o direito de apresentá-los a ele . corvick respondeu de imediatoque não sentia nenhuma vontade de se aproximar do altar enquantonão estivesse preparado para o sacrifício. Estava de pleno acordã comnosso amigo quanto

^o pÍazer e à honra daquela caçada; ele derrubaria

o animal com seu próprio rifle . euando lhe perguntei se a senhoritaErme era uma atiradora tão entusiasmada quanto ele , corvick pensouum pouco e respondeu: "Não; tenho vergonha de confessar que elaquer armar uma arapuca. Darja tudo para falar com ele ; diz que exigemais uma pista. Chega a ser mórbida quanto a este ponro. Mas teiá

que jogar limpo: não vai falar com ele !,,, acrescentou, caregórico. Te-ria a questão provocado algum arrufo entre eles? Esta ,,.rrp."ir" não foidissipada pelo comentário que ele me fez mais de uma vez: "Ela é ex-traordinariamente, fantasticarnente liteúria! " . rJ ma v e z comentou queeÌa sentia em itálico e pensava em maiúsculas. "Ah, depois qrr..,,.or-seguir destrinchá-Io", disse ele também, "então vou bãter à rrr" pon".ora se não vou! Pode crer - ainda hei de ouvi-lo dizer: 'Isso m-esmo,mev Íapaz; desta vez você acertou!' EIe há de me coroar vencedor. como louro da crítica.

Enquanto isso, corvick fazia questão de evitar as oportunidadessociais de encontrar-se com o eminente romancista; este perigo, porém,desapareceu quando Vereker ausentou-se da Inglaterra porl.mpo irr-determinado, conforme anunciaram os jornais

- foi..n àireçao "o

srrt,por motivos ligados à saúde de sua esposa, que havia muito tempoobrigava-a a Tevar uma vida retirada. Um ano - mais de um

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tinha se passado desde o incidente de Bridges, mas eu nunca mais ovira' creio que na verdade eu estava um taÍÌto envergonhado; não queriaadveni-lo de que , ainda que eu tivesse fracassado pãr completo, alguémconhecido por sua argúcìa estava avançando rapiãam..rtJ ..n -.",, .r-caÌço. Eçte escrúpulo me fez dançar uma dança complicada; impediu-me de freqüentaÍ

^ casa de ladyJane , levou-me atê i declina. rÀ .o.r_

vite, gentilmente repetido, para que eu me instalasse em seu belo ca-marote' apesar de minha indelicadeza. uma vez divisei-a ao lado deVereker num conc€rto, e percebi que fora visto por eles, mas corueguiescapulir. L6,fora, na chuva, chapinhando as poças da calçada, pen-seique não poderia ter agido de outra forma; assim mesmo, lembro quedisse a mim mesmo que fora duro, até m€smo cruel. Eu p.rd.r. ,rãoapenas os livros, mas também o homem: obra e autor haviam se estra-gado para mim. Âlém disso, sabia também qual das perdas mais medoía. Eu gostara do homem mais ainda do qr'r. dos livros.

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Seis meses depois que nosso amigo partiu da Inglaterra, GeorgeCorvick, que vivia da pena, assumiu um compromissolrofissiorr"l qi.lhe impunha uma ausência prolongada e uma viagem,l- t".rto difí;il,e que muito me surpreendeu. seu cunhado havia se tornado diretorde um grande jornal interiorano, e o grande jornal interiorano, numyô?.d.-imaginação, resolvera destacar um ,,enviado

especial" para ^India. Na "imprensa metropolitan a,, esÍavacomeçando a moda d^o, .rr_

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vlados especlars' e o órgão em questão devia estar cansado de ser vistocomo um mero primo da roça. corvick não tinha o toque necessário,eu sabia, para manusear o grande pincel do correspondinte, mas issoera problema de seu cunhado, e o fato de uma determi nada tarefa estarfora de sua alçada eÍa para ele, no mais das vezes, precisamente um mo-tivo para aceitá,-la. EÌe estava preparado para ser mais metroporitanoque toda a imprensa metropolitana; tomou precauções solenes contrao provincianismo, e sutilmente afrontou o gosto dominante. Ninguémjamais o percebeu; o alvo da afronta .." ,rà princípio p.r."*..r,ã r.,r.Além de ter cobertas todas as suas despesas, .1. ,"ii" àeq.radamentepago, e nesre ponto constatei que eu poderia ajudá_lo a fechar, pelogordo livro de praxe, um bom contrato com o gordo editor de pr'axe.Inferi, naturalmente, que seu óbvio desejo de ganhar um dinheirinhonão estaria desvinculado da perspectiva de casar-se com Gwendolen Er-me. Tinha eu consciência de que o principal morivo pelo qual a mãeda jovem opunha-se a esta união

"a" ,,r, ausência d. ,".ur.o, financei-

ros e qualificações lucrativas; quando, porém, na última vez em quefalei com corvick, mencionei que ele ia afastar-se da iovem. -.r, "Ài-go excÌamou, com uma ênfase que me surpreend.rl i,Or",

não somosnoìvos nem nadal.".

"Não expÌicitamente ", retruquei, ,,porque a mãe delanão gostade você. Mas sempre imaginei que houvesse um entendim..rro ,.I..roentre vocês dois."

"E havia, sim. Mas agora não há mais.,' Foi tudo que ele disse,salvo um comentário adicional no sentido de que a senhora Erme havìase recuperado de modo extraordinário _ cujo sentido, interpretei, erao de que os entendimentos secretos de nada adiantavam quando o mé-dico não estava de acordo. Tomei a liberdade de inferir, nà ír,ti-o. q.r.de algum modo a jovem lhe teria alienado os senrimentos. se era umaquestão

_de ciúme, por exemplo, ceftamente que ele não estaria com

ciúmes de mim. Nesre caso - deixando-se de Ìado o absurdo da hioó-tese - corvick não iria ausenrar-se e deìxar-nos os dois junros. Antesde sua panida, havia algum tempo que já não faziamosnenhuma alu-são ao resouro enterrado, e o silêncio de corvick, do qual o meu nãog.as.ava de uma emulação, levara-me a tirar uma conclusão categírica.Ele havia perdido a coragem; seu ardor havia esfriado tanto q.rã.r,o o

ou pelo m€nos ele dava espaço para que eu dvesse.ra" i-p..r_são. Mais do que isso não poderia fazer; nãopoderia suportar o âr d.triunfo com que eu reagiria caso ele -..onf.rr"sre sua capitulação. Masmeu pobre amigo não tinha por que nutrir tais temoràs, poi,

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altura eu já perdera a necessidade de triunfar. Na verdade, j.rìg"u" .star

sendo magnânimo ao abster-me de criticá-lo por seu fracasso, pois aosentir que ele havia desistido dei-me conta, mais do que nunca, do quan-to eu terminara dependendo dele. se corvick de fato se consideravaderrotado, eu jamais saberia; se e/e fracassara, ninguém mais teria su-cesso. Não era de modo algum verdade que eu havia perdido o interes-se pela questão; pouco a pouco minha curiosidade havia não abenasvoltado a incomodar-me como também se tornado a rortura haÈitualde meus dias e noites. sem dúvida, pessoas havetá.para quem tais tor-mentos devem parecer tão pouco naturais quanto os sofrimentos causa-dos por uma doença; mas pensando bem não vejo sentido em sequermencioná-las neste contexto. Pata as poucas pessoas, anormais ou não,a quem minha pequena nanativa se dirige, a literatura era um jogo queexigia perícia, e perícia implicava coragem, e.coragem implicava Éonìa,e honra implicava paixão, vida. O que estava em jogo ." ^.r" era umasubstância especial; nossa roleta era a menre, a rodopiar; poróm em tornoda mesa verde estávamos tão absortos quanto os mais iérios jogadoresem Monte cado. Âliás, Gwendolen Erme, com seu rosto alvo e seu olhosfixos, era bem do tipo das damas magras que vemos nesses templos dasorte. Na ausência de corvick, percebi o quanto ela dava vida a estaan-alogia. Reconheço que era extravagante o modo como ela vivia paraa ìiteratura. Esta paixão claramente a consumia, e em sua presença meuinteresse parecia quase tépido. Relì No fando: eraum deieno no quala autora' se perdera, mas em que ela cavara um maravilhoso buracá naarcia - e o mais notável de tudo era que corvick conseguira tirá-lade dentro dele.

início de março, recebi um telegrama de Gwendolen que mefez ir a Chelsea imediatamente. Quando cheguei, a primeira.oir" qrr.ela me disse foi: "Ele descobriu! Ele descobriu!,,.

Era tão profunda sua comoção, percebi, que ela só poderia estarse referindo à grande questão. 'A idéia de Vereker?"

'A intenção geral dele. George mandou-me um cabograma deBombaim."

Á mensagem estava aberta à sua frente; era enfâtjca, embora con_cisa. "Eureca. Enorme." Era tudo - ele sequer assinara, para econo_mizar. companilhei a emoção de Gwendolen, porém estú decepcio-nado. "Ele não diz o que é."

''Como poderia fazê-lo num telegram a? Hâ de mandar uma cafta.' '"Mas como ele pode ter certeza?""Que descobriu mesmo? Âh, tenho ceÍtez^ que quando a gente

descobre, não rem nenhuma dúvida. Vera incessi panil dea!,,-'A senhorita tambóm é uma aera dea por me dar esta notícia!,'

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Minha alegria não conhecia limites. "Mas quem diria que enconrraría-mos nossa deusa no templo de vishnu! eue estranho, G"org" ter reto-mado sua investigação no meio de tantas ocupações diferÃtes e im-portantes! "

"Eìe não retomou coisa alguma, eu sei; foí a jàêia em si que. de-pois de permanecer absolutamente intata por seis meses, brotou d. r.-pente, num salto, como uma tigresa no meio da floresta. Ele não levounenhum lìvro, de propósito; aliás, nem precisava, pois conhece de cortodas as páginas, como eu. Elas todas atu ramsobre ele, em conjunto,e algum dia, em algum lugar, quando ele nem estava pensando nisso,juntaram-se na única combinação correta, formando uÀa soberba e in-tricada tessitura. Surgiu o desenho do tapete. Era assim que ele sabiaque surgiria, e foi esse o verdadeiro motivo - o senhor não fazia a me-nor idéia, mas agora acho que já posso lhe dizer - que o levou a irparalá' e que me levou a aceitar que ele fosse. Nós r"bí"^o, que estamrrdança resolveria o problema; que a diferença de pensamento, deamiiente, seria o toque necessário, a sacudidela mágrca. calculamostudo com uma perfeição admirável. os elementos estavam todos emsua cabeça, e com a tecoas,e de uma experiência nova e intensa elesgeÍaram a luz-" Ela própria parecia ge:a luz - esrava literalmente,facialmente, luminosa. Gaguejei algum comentário a respeito da..r._bração inconsciente , e ela prosseguiu: "Ele vai voltar imìdiatamente:só faltava isso".

"Para ter com Vereker?""Com Vereker, e comigo. pense no que ele terá a me dizer!"Hesitei. "Sobre a Índia?""Qual Índia! Sobre Vereker, sobre o desenho do tapete.""Mas a senhorita disse que ele certamente dirá tudo numa carta.,,Ela pensou, como se estivesse inspirada, e lembrei-me que Cor_

vick dissera, muito tempo antes, que seu rosto era interessant.. "t"l-vez não caiba numa cafta, se for algo de ,enorme'."

"Talvez não, se for uma enorme bobagem. Se ele captou algo quenão pode ser dito numa carta, então não caprou nada. O qr.r. úr"i.,me disse foi precisamente que o tal 'desenho'caberia numa cafta."

"Pois mandei um telegrama para George há uma hora: duas pa-lavras", disse Gwendolen.

"Seria indiscrição minha pergunrar quais eram elas?"Ela fez uma pausa, mas por fim disse: .,,Anjo,

escreva, ;;;ilii,;l -.,-"

mensagem."

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Minhas palavras, porém, não foram exatamente as mesmas: useioutra em lugar de " anjo" ; e à luz do que ocorreu em seguida meuepíteto revelou-se mais apropriado, pois a caÍta. que nosso viajante en-viou tinha o único intuito de nos espicaçar cruelmente a curiosidade.Magn-fico em seu triunfo, ele qualificava de estupenda sua vitória; masseu êxtase apenas a obscurecia: só apresentaria detalhes depois que sub-metesse sua idéia à suprema autoridade. Havia abandonado seu cargo,havia abandonado seu livro, havia abandonado tudo, menos a necessi-dade premente de ir a Rapallo, na costa de Gênova, onde Vereker esta-va passando uma temporada. Escrevi-lhe uma carta que o esperaria emÂden, pedindo-lhe encarecidamente que aliviasse meu suspense. eueele havia recebido minha carta, indicava-o um telegrama que, chegan-do a minhas mãos após dias de espera nervosa e na ausência de qual-quer resposta à lacônica mensagem por mim enviada a Bombaim, cla-ramente deveria ser tomado como resposta a ambas as comunicações.Estas poucas palavras vinham em francês comum, o francês da época,que Corvick usava com freqüência para mostrar que não era pedante.Sobre algumas pessoas, tinha o efeito oposto; mas sua mensagem podeser parafraseada mais ou menos como se segue: "Tenha paciência; façoquestão de ver a cara que você vai fazer quando ouvir!". "Te//ernentenuie de aoìr ta têtel" - foi o que tive de engolir enquanto esperâvasentado. Esperar sentado certamente não foi o que fi2, pois lembro-meque nessa época eu vivia zanzando da casinha em Chelsea para a mi-nha e vice-versa. Nossa impaciência - a minha e a de Gwendolen -eta a mesma, porém eu sempre tinha esperanças de que ela saberia maisdo que eu. No decorrer deste episódio, gastamos uma quantia vultosa,para nós, em telegramas e táxis, e eu esperava receber notícias de Ra-pallo tão logo ocorresse o encontro do descobridor com o descoberto.A espera parecia imensa, porém um dia, à tardinha, ouvi um fiacrechegar à minha pofta com a rapidez que só se torna possível com umpouco de generosidade. Eu vivia com o coração nas mãos, e portantocorri até a janela, de onde vi uma jovem em pé no estribo do veículo,olhando para minha casa com ansiedade . Ao ver-me, ela brandiu umpapel de tal modo que me fez descer num átimo: é assim que, nos me-lodramas, se brandem lenços e comutações de penas ao pé do cadafalso.

"Acabo falar com Vereker. Tudo exato. Âbraçou-me forte. Ficoaqui um mês. " Foi o que li no papel enquanto o cocheiro, do alto daboléia, sorria irônico. Excitado, recompensei-o generosamente ; excita-da, ela não opôs resistência; então, enquanto o fìacre se afastava, fica-

f!.

t

164I6s

Page 13: Henry James - O Desenho Do Tapete

mos a andar de um lado para o outro, conversando. Já havíamos con-versado juntos muitas e muitas vezes, mas aquera vez'foiespecial. Ima-ginávamos a cena.em Rapallo, de onde ele teria enviado um bilhere,mencionando meu nome, pedindo permissão para visitá_lo; melhor di_zendo, assìm eu imaginava a cena, fois tinha mais materia I para a ima-ginação do que a jovem, a qual, percebi, bebia minha, p"fru.", 1,r".,_do parávamos de propósito dianà de vitrines sem olhar para elas. Deuma coisa estávamos ceftos: se ele ia permanecer em RapaÌlo por aÌ-gum tempo pafa conversar melhor, receberíamos ao menos vma c rt,que nos ajudasse a suportar a espera. Entendiamos por que eÌe resolve-ra ftcar, porém creio que um sabia que o outro odjìva,". q.r.

"rp.."r.A cana que estávamos ceftos de re.eÈer de fato chegou: ,r^p^r^ô*..,dolen' e fui visitá-la a tempo de poupar-lhe o trabalho de vir mostrá-raa mim. Não a leu para mim, .o-o .à de se esperar; poróm transmitiu_me a substância de seu conteúdo, que se resumia na extraord inária afir-mação de que ele só lhe diria exatamente o que ela queria ,"1.. a.foi,que se casassem.

"E o mesmo que dizer - não é? _ que eu tenho qrr. rn.'."r"r .o_ele imediatamente!" Gwendolen sorri,., p"ra mim, e corei de ;;.;;;"com a perspectiva de ter de esperar mais, a qual fez com que d. hàonão me desse conta da surpresa que sentia. Âquilo p"r".à__. um si_nal bem claro de que ele imporia também

" -ì- uÀa condiça. i;;_moda. De súbito, enquanto a jovem falava-me de mais .oir", .orrtiá",n^ carta,lembrei-me de algo que ele me dissera anres de partir. Haviaachado o senhor Vereker tremendamente interessante ; e a sensação deconhecer o segredo era uma verdadeira embriaguez. o tesouro enterra-do era só ouro e pedras preciosas. Âgora que o tinha diante dos olhor,parecia crescef mais e mais; seria, no d..orr.r das eras, tr"drrzido eÃtodas as línguas, uma das mais maravilhosas flores da arte literária. Dian-te dele, nada parecia mais perfeitam ente elaborado. euando ..u.tJo,seu esplendot era tal que inspirava vergonha; e não havia outro motivoque não a infinita vulgaridade de nosso rempo, a corrupção generilìza-da do gosto, para que atê agoraninguém o ,il.rr. d.r.oúnol il;";_de, porém simplicíssimo; simples,lorém enorme ; e esta revelação erauma experiência à parte. Corvick dava aenrender que o encant; i.;;;experiência, o desejo de bebê-la, em todo s.., fr"r.àr,

",é ";il^;;;:ta' era o que o mantinha lá, junto à fonte. Gwendolen, radiante ,lo_gando-me estas migalhas, demonstrava o júbilo de perspectivr, _"i,seguras que as minhas. Ìsto levantava de novo a questão de seu casa_

mento, e Ìevou-me a perguntar se o que ela queria dizer com a notkjacom que acabava de surpreender-me era que estava noiva.

"Claro que estou!", respondeu. "O senhor não sabia?,' pareciaatônita, mas eu o estava ainda mais, por Corvick me ter dito exatamen-te o contrário. Não mencionei este fato, no entanto: limitei-me a ob-servar que eu recebera poucas confidências dela, e mesmo de Corvick,com relação a este assunto, e que ademais estava ciente da oposição desua mãe . Na verdade , intrigava-me a discrepância entre os dois relatos;mas após aÌgum rempo senti que o de Corvick era o que me inspiravamenos dúvidas. Isto levava-me a perguntar a mim mesmo se a jovemhavia inventado ali mesmo um noivado - ressuscitando um antigo oufabricando um novo - a fim de chegar à satisfação que desejava sen-tir. Sem dúvida, ela teria recursos que me faltavam, mas pouco depoistornou sua posição um pouco mais inteligível, dizendo-me: '.4 nossasituação, naturalmente , era a àe não podermos nos comprometer a na-da enquanto mamãe estivesse viva".

"Mas agora a senhorita pretende dispensar a permissão de suamáe?"

"Ah, pode não chegar a isso!" Não entendi a quê, nesre caso,a coisa chegaria; ela prosseguiu: "Coitada, talvez ela engula a pílula.Âliás, sabe ", acrescenrou ela, rindo, "elauaì rerque engolir! " - umaproposição cuja verdade eu, em nome de todas as partes envolvidas,reconhecia plenamente.

I

Jamais me ocorrera algo tão aflitivo quanto saber, antes da chega-da de Corvick na Inglaterra, que eu não poderia estar present, pàr^recebê-lo. Subitamente vi-me obrigado a ir à Alemanha, onde adoe-cera gravemente m€u irmão mais moço, o qual, contra minha vontade,forapara Munique com o fim de estudar, com um grande mestre, ébem verdade , a artr- de pintar retratos a óleo. Â parenta próxima queÌhe enviava uma mesada havia ameaçado suspendê-la caso ele decidis-se, com argumentos especiosos, buscar verdades superiores em paris _pois por algum motivo, para uma tia de Cheltenham, paris era a escolado mal, o abismo. Na época, critiquei este preconceito, e suas profun-das conseqüências agora estavam claras - primeiro, porque não haviasalvo o pobre rapaz, que era inteligente, frágll e sem juízo, de umacongestão dos pulmões, e segundo, porque agora obrigava-me

^me afas-

tar mais ainda de Londres. Confesso que a idéia que mais me preocu-

r66 167

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pou durante várias semanas'ansiosas foi a de que, se estivéssemos emFaris, talvez eu pudesse correr até Londres p^ríf^I"rcom Corvick. Masesta possibilidade estava fora de questão lor todo, o, ,.rotiuo, forriveis:lneu irmão, cuja recuperação nos d,ava aambos muito o q,r. f"-zer, ficou doente por três meses, período durante o quaÌ permaneci to-do o tempo a seu lado e ao fim áo qual nos vimos absolutamente im_pedidos de voltar paÍa a Inglaterra. Era necessário levar em conra oproblema do clima, e meu irmão não podia de modo,fg"_ fi;r*l_nho' Levei-o a Merano e Iá passei o verão com ere, tentando mostrar-lhe , através de meu exemplo, como retomar o trabalho, e alimentandouma raiva bem diversa, que eu tentava não lhe mostrar.. -

T9d" esta situação terminou configurando o primeiro de uma sé_rie de fenômenos tão estranhamente .ntllaçados qrr., tom"d.r.;;;;_iunto - e eu não poderia tomá-los d. orrt." forma _, perfazem o me_lhor exemplo que conheço do modo como, sem dúvidi para. ;;-à.nossa alma, o destino por vezes impõe freios a nossa avidez. Estes inci-denres com ceftez^tiveram implicaçães mais sérias do que

".orrr"que*i"relativamente menor de que estafilos tratando aqui - embora assimmesmo ela me pareça merecedora de certo ..rp"ito. Seja como fo.,.o.r_fesso que é sobretudo à luz deste fato que o f"io f-ro d. _";;;ít"se me afigur^

^goí^. E mesmo no início o modo como minha avrdez

- foi este o tefmo que empreguei - me levava a€ncarar esta minha

estada não foi em absoluto atenuado pelo fato de que, "rrr.,

a. uotir.de Rapallo, George Corvick dirigiu-se a mim de rr^" _".r.i.";;.;me agradou. Sua carta não reve , em absoluto, o efeito ,.a"riuo q*,hoje parece-me ciaro, fora sua intenção proporcionar-me, e o,

".o*.-cimentos que se sucederam enrão não puderam suprir esta deficiência.corvick havia imediaramenre começadã a escrever, para umarevista ri-terârìa, um grande estudo sobre a obra de Vereker, que seria d.fú;-vo, o único que teria importância, o único que exìstirìa, q.r.

^..rd.ri^uma.luz-nova, que proferiria _ e com que àiscriçaot _ a u.rdad. iJmaginada. Em outras palavras, ,.., .r,.rào destacaria o desenho do ta_pete com todas as suas circunvoluções, reproduzi-lo-ia com todos os szustons. O resuÌtado, dizia meu amigo, ,.ii" o maior retrato lrtrrarlio-j)_maìs pintado, e o que me pedia

"i" "p.r", que eu Ìhe fizesse o obsé_quio de não importuná-lo com p..g.r.r,r, ..rq.r".rro ele não penduras-se sua obra-prìma diante de meus olhos. Fez-me a honra de declararque, afora o grande homem que lhe servia de modelo, . q.," p"iãu"nas alturas, indiferente, era eu, mais do que qualquer outro, o con-naisseur para quem ele escrevia. eue eu -. .o_po*"sse, pois, e não

tentasse espiar atrás da cortina antes da hora de o espetáculo ter início:se fìcasse quietinho agora, eu me divertiria muito mais depois.

Tentei com todas as forças ficar quieto, mas não pude conter umsalto ao let no Tirnes, uma ou duas semanas depois de chegar em Mu-nique e, como eu sabia, antes que Corvick tivesse tido tempo de voltara Londres, ano(rcrado súbito falecimento da pobre senhora Erme. Ime-diatamente despachei uma carta a Gwendolin, pedindo-lhe deralhes,e ela escreveu-me que sua mãe havia sucumbido a um ataque cardiacoque se anunciava havia muito. Â jovem não disse, porém tomei a li-berdade de ler nas entrelinhas de sua carta, que do ponto de vista deseu casamento e também de sua ansiedade, que eratão grande quantoa minha, aquela era uma solução mais rápida do que se esperava, emais radical do que aguardar até que a pobre senhora engolisse a pílu-la. Confesso, com roda franqueza, que nessa época - pois recebi ou-tras comunicações suas - li coisas singulares nas palavras de Gwendo-len, e outras ainda mais extraordinárias em seus silêncios. Âgora, coma pena na mão, revivo aqueles momentos, o que redesperta em mima curiosa sensação de ter sido, durante meses e contra a minha vonta-de, uma espécie de espectador involuntário. Toda a minha vida haviase refugiado em meus olhos, que a sucessão de eventos parecia estardecidida a manrer sempre bem abertos. Por vezes eu chegava a pensarem escrever a Hugh Vereker e simplesmente apelar para sua misericór-dia. Porém no fundo sentia que não seria capaz de tamanha humilha-ção - e além disso ele cerramente, e com toda razão, me mandariaàs favas. Â morte da senhora Erme apressou a volta de Corvick, e ummês depois ele jâhavia se casado "com muira discrição" - tal como,pensei eu, ele pretendia revelar sua lrouaai//e em seu artigo - coma jovem que amava e de quem havia se separado. Uso esta palavra, acres-cento entre parênteses, porque em seguida convenci-me de que, quandoCorvick enviou a grande ootícia de Bombaim , nãohavia qualquer com-promisso definitivo entre os dois namorados. Não havia qualquercompromisso entre eles no exato momento em que Gwendolen tenta-va convencer-me do contrário. Por ourro lado, sem dúvida ele pediu-aem casamento no dia em que chegou de viagem. O feliz casal foi pas-sar a lua-de-mel em Torquay, e lá, num momenro de imprudência,o prbre Corvick resolveu dar um passeio com sua jovem esposa, ele pró-prio assumindo as rédeas. Não tinha ele competência para tal, o queficara claro para mim uma vez, havia muitoi anos, quando nós dìisde'nos uma volta numa carruagem leve. Foi num veículo da mesmar;pécie que levou sua mulher para dar uma volta nas serras de Devon-shire, e foi lá que freou seu cavalo - o qual, é bem verdade, havia dis-

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parado - com tal violência.que os passageiros foram jogados longe;

ele caiu de cabeça numa posição horiível ã rno.r.., na hora. Gwendo_len escapou incólume.

Passo rapidamenre por cima desta tragédia irremediável, do querepresentou para mim a perda de meu melhor amigo, e encerro

".,rìr"história de minha paciência e minha dor confessanão.o,o toda sinceri-dade que, num pós-escrito à primeira cafta que lhe escrevi após recebera pavorosa notícia, perguntei à senhora corvick se seu maridì não teriaao menos terminado seu grande artigo sobre vereker. A resposta veiotão imediata quanro a pergunra: o ,.iigo. que mal fora começado, nãopassava de um melancólico fragmento. Explìcou_me ela que ntsso ami_go' no estrangeiro, malhavia começado a escrevê-lo quando foi inter-rompido pela morte da senhora Erme, e que depois, ao uolt"r, foi impedido de prosseguir pelos afazere, q,r" ,. fir..am necessários por cau-sa da calamidade. As primeiras páginas eram as únicas que .lì.g"r"_a ser escritas; eram notáveis, eram promissoras, mas não desvelavam oídolo. Este grande feito intelectual teria, sem dúvida, sido o clímax doestudo. Ela não me disse mais nada, nada que me esclarecesse a respei_to da extensão de seus próprios conhecimentos

- conheci-..rto, qì",julgava eu, ela agira de modo prodigioso para adquirir. Mais do quetudo, era isto que eu queria saber: afinal, ieria ela uirro o iaofoì.J _

lado? Teria corvick realizado uma cerimônia privada para uma pra'Éiaansiosa composta de uma só pessoa? pois com que fim, se nãã este,se tealizara aquele casamento? Não quis pressioná-la tão cedo, muitoembora seu silêncio me surpreendesse quãndo eu recordava o que ha-via se passado enrre nós na ausência de òorvick. ponanro, foi só muitodepois, já em Merano, que arrisquei enviar-lhe outro apelo, com certatrepidação, pois ela conrinuava a não me dizer nada. iNaqueles

bre_ves dias de felicidade", escrevi eu, "teria a senhora ouvido

"tgo "."r-peito daquilo que ranto nos inreressava?,' Disse .,nos,, à guisaãe meia

palavra; e ela revelou-se boa entendedora. ,,Ouvi t.rdo,;, respondeu.me, "e pretendo guardá-lo s6 para mim!,'

9

Era impossível não sentir por ela a mais profunda compaixão; eao voltar para a rnglaterra manifestei minha cànsideração de todas asmaneiras a meu alcance. com a morte da mãe sua renda tornara-se sa-tisfatória, e Gwendolen fora morar num bairro mais conveniente. po-rém a perda fora grande, sua aflição era profunda; ademais, nunca me

ocorreria que ela pudesse encaïar o conhecimento de uma pista tócni-ca, do fragmento de uma experiêncialiterãria,como algo q,i..o-p..r_sasse sua dor. Não obstante, por estranho que pareça, depois de ve-taalgumas vezes não pude deixar de sentir que eu per.ebera nela algoassim. Apresso-me a acrescentar que já me acontecera antes não poderdeixar de sentir, ou ao menos imaginar, algumas coisas; e .o-ì .^relação a elas nunca pude ter c..tt..za absoluta, quero crer que, no casoem paura' minha impressão foi enganosa. Abaladae solitária, altamenteprendada e

^gor,,t de luto fechado, com sua graça mais madura e sua

dor contida, indubitavelmente bela, elaparecialevar uma vida de umadignidade e uma beleza singulares. De início eu havia encontrado umamaneira de convencer a mim mesmo de que em pouco tempo me seriapossível contornar a reserva com que, na semana após a caiástrofe, eÌarespondera a minha pergunta, a qual, eu sabia, talvez lhe tivesse pare-cido intempestiva. Sem dúvida, esta reserva causava-me cefto esbanto

- intrigava-me mais quanto mais eu pensava ne la, mesmo qrr..u ,.n_tasse expÌicá-la (conseguindo-o, por alguns instantes) imputando-lhesentimentos exaltados, escúpulos supersticiosos, uma leaidade refina-díssima. Sem dúvida, ao mesmo tempo sua reserva aumentava em muitoo preço do segredo de Vereker, por mais precioso que esse mistério jáme parecesse . E desde já confesso, sem nenhum pudor, que a atitudeinesperada da senhora corvick foi a gota d'âgua que faltava para fazertransbordar minha infeliz idéia, convertê-la naobsessão da qual jamaisme esqueço.

Mas isto apenas teve o efeito de tornar-me mais ardiloso, mais há-bil, deixar passar algum rempo antes de retomar o ataque. Havia mui-to o que especular neste ínterim, e uma das questões era profundamenteabsorvente. corvick só revelara seu segredo a sua jovem amiga depoisque caiu a última barreira à sua intimidade - só então exibira ,.,, ,.-souro. seria a intenção de Gwendolen, imitando a atitude de corvick,só dar acesso a quem renovasse esta relação? seria o desenho do tapetealgo que só podia ser mostrado ou descrito a cônjuges - ^

p.rro". q,-,.o amor conduzira à união suprema? Volta-me à mente a lembrança ìn_trigante de que em Kensington Square, quando comentei que Corvickdeveria ter contado o segredo à jovem que ere

^mava, vereker dissera

algo que tornava mais plausível esta possibilidade. Talvez ela fosse re-mota' nÌas não o suficiente para impedir-me de cogitar a hipótese deter de me casar com a senhora corvick para obter o que euì.sejava.Estaria eu disposto a oferecer-lhe este preço em rroca áa dádiva de seuconhecimento? Âh, isto seria loucura! - era, ao menos, o que eu medizia nas minhas horas de perplexidade. Neste ínterim, eu via o archo-

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te que ela se recusava a passar adiante extinguindo-se na câmara de suamemória - seus olhos deixando escapar uma luz que brilhava em seular solitário. Ao Íìnal de seis meses, eu não tinha dúvida quanto à per-da que esta presença cálida compensava para ela. Havíamos falado muitase muitas vezes do homem através do qual nos conhecêramos - de seutalento, seu caráter, seu encanto pessoal, a caneira que certamente teriatido, seu pavoroso destino, e até mesmo da clareza com que empreen-dera aquele grande estudo que teria sido um retrato literário supremo,uma espécie de Van Dyck ou Yelâzquez crítico. Elahaviame transmiti-do, de modo inequívoco, a idêia de que se senria impedida de falar porsua obstinação, sua fidelidade, sua convicção de que jamai.s revelaria osegredo que não pudera ser desvendado pela "pessoa certa", como eladizia. Porém ahota afrnal chegara. Uma noite em qu€ eu Íìcara a con-versar com ela mais tempo do que de costume, pus a mão em seu braçocom firmeza. "Mas, aÍrnal, o que ê?"

Ela já esperava por aquilo, e esrava pronra. Sacudiu a cabeça, Ìen-ta, demorada e silenciosamente; de misericordioso naquele gesto haviaapenas o fato de que fora mudo. Porém nem isto impediu que ele re-presentasse o maior, o mais belo, o mais frio de todos os 'Jamaisl,, que,no decorrer de uma existência que conhecera mais de uma recusa, eujâ recebera em cheio no rosto. Recebi-o, e percebi que, com

^ nrdeza

do golpe, meus olhos haviam se enchido de lágrimas. Assim, ficamosimóveis por algum rempo, um olhando para o ourro; em seguida, len-tamente levantei-me. Perguntava-me se algum dia ela me aceitaria; masnão foi isto que eu disse, e sim, enquanto alisava o chapéu: ,.Então

já sei o que pensar. Não é nada!".Havia em seu vago sofriso um pouco de pena, remota e desdenho-

sa, dirigida a mim; depois ela faÌou, com uma voz que ouço ainda ho-je. "E minha uidal" Detive-me à porta, e ela acrescentou: ,,O

senhoro insultou!".

"Refere-se a Vereker?"' Âo falecido!"Áo chegar à rua, reconheci que sua acusação fora justa. Sim, era

a sua vida; também isso reconheci. Não obstante, havia lugar em suavida para outros interesses. Um ano e meio ap6s a morte de Corvickela publicou, em volume único, seu segundo romance, A denora, queÌi com sofreguidão na esperança de nele encontraÍ algum eco sugestivo,algum rosto à espreita. Tudo que encontrei foi um livro muito melhordo que o que ela havia publicado quando mais jovem, o que me pare-ceu ser conseqüência das melhores companhias com que andara desdeentão. Tinha uma tessitura bastante intricada - rcÍa um rapere com

desenho próprio; mas não era o desenho que eu procurava. Âo enviaruma resenha para O Meìo, fuì informado, para surpresa minha, de quejá fora publicada uma crítica do livro. Quando a revista saiu, não hesi-tei em atribuir o aftigo, que me pareceu de um exagero um tanto l'ul-gar, aDrayton Deane, que fora ourrora uma espécie de amigo de Cor-vick, mas que havia apenas algumas semanas tÍavaraconhecimento coma viúva. Eu recebera um exemplar de divulgação do romance, mas semdúvida Deane recebera o seu ainda mais cedo. Fosse como fosse, faltava-lhe o toque leve com que anres Corvick dosava seus enfeites - Deanedespejava punhados de lantejoulas a torro e a direito.

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Seis meses depois foi publicado Dìreito de passagenz, que seria aúltima oportunidade - embora ainda não o soubéssemos - de nosredimirmos. Todo escrito durante a estada de Vereker no estrangeiro,o livro fora saudado, em cem pará.grafos, com as tolices de sempre. Ir-vei um exemplar - desta vez um dos primeiros, eu me orgulhava -direto à senhora Corvick. Era a única s€rventia que o livro tinha paramim; deixei o inevitável tributo de O Meio a c tgo de algum espíritomais engenhoso e algum temperamento menos irritado. "Mas eu já te-nho", disse Gwendolen. "Drayton Deane teve a bondade de me trazerum exemplar ontem, e acabo de terminar de lê-1o."

"Ontem? Como ele o obteve tão depressa?""Ele recebe tudo muito depressa! Vai resenhá-lo para O Meio.""Ele - Drayton Deane - vai resenhar Vereker?" Eu não acreâi-

tava no que estava ouvindo."Por que não? Uma ignorância vale ranto quanto outra qualquer."O comentário atingiu-me, mas em seguida retruquei: "Â senhora

é que devia escrever a ciítical"."Não sou c(rtica", eÌa riu. "Sou criticada!"Neste exato momento a potta se escancarou. "Ah, eis o seu críti-

col" Lâ estava Drayton Deane, com suas pernas compridas e sua testaalta'. viera para saber o que ela achara de Direito de passagem e p^ratfazer uma notícia da maior relevância. Os vespertinos acabavam de sair,com um telegrama a respeito do autor da obra em questão, o qual, emRoma, estava havia alguns dias atacado àe malâria. De início o mal nãoparecera grave, porém houvera complicações, que talvez tornassem a si-tuação preocupante . E agora, nas últimas horas, havia de fato motivopara preocupação.

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Âo receber esra notícia, impressionou-me a indiferença fundamen-tal. que as manifestações de solicitude da senhora corvict ,ao .o*.guiram em absoluto ocultar: percebi então como era completa sua inde-pendência. Esta independência baseava-se no conhecim..rro q.r. ela de-tinha, o conhecimento. que agora nada poderia destruir, .

""a" foJ.-ria modificar. O desenho do tapete poderia ganhar uma ou duas volu_tas a mais, porém a senrença jâ estava praticamente escrita. o escritorpoderia muito bem recolher-se à sua sepultura: em todo o mundo, elaera a pessoa a quem _ como se fosse sua herdeira favorita _ menosimportava que ele continuasse vivo. Isto trouxe-me à Ìembrança o fatoque eu observara' num momento específico - após a morte de cor-vick: a extinção de seu desejo de vê-Ìó face aface.Èt".onr"g,rl." o q.r.queria sem precisar disso. Eu estava certo de que, se não o tivesse con-seguido, não a impediriam de ir sondá_lo pesioalmente aqueles escú_pulos superiores, mais concebíveis num homem que numa mulher, queem meu caso fizeram-me hesitar. Não que _ apresso-me a acrescen-tar' apesar desta comparação odiosa - meu .^ro .rão fosse também bas_tante ambíguo. Âo pensar que Vereker poderia estar morrendo naoue-le exato momenro, fui engolido por uma onda de angúsria _ p.;.;;;_ciência pungente de que eu, incoerente que efa,

"i.rd" d"p..rdia dele .

Uma delicadeza a que me submetia - . q.r" era minha únìca comoen-sação - mantinha os Âlpes e os Âpeninos entre nós, mas a consciêïciade que a oportunidade estava se esgotando lev<-ru_me a pensar que, emmeu desespero, eu afinal poderia ter ido visitá_lo. É .t.. qu",'nr'*r_dade, não fariatal coisa de modo algum. Fiquei aÌi por.i.r.o ,.i.rrrtol,enquanto os outros dois conversavam sobre o novo livro, e quando Dray-ton Deane quis saber minha opinião, respondi, leuantando-m.. or.detestava Hugh Vereker e simpìesm.rrr. ,ião conseguia l,_i;. Ç;;_ralmente convicto de que, tão logo a pofta se fechasse, Deane me rotu-laria de superficial demais. Âo menãs Lrro sua anfitiã nao negaria.

Continuo a relatat em linhas mais gerais os eventos muito estra_nhos que se sucederam. Três semanas depois deste encontro Vereker mor_reu, e antes do fim do ano era sua esposa que morria. Eu nunca chegaraa conhecer esta pobre senhora, mas nutria a teoria fútil de qrr", ,"".i,sobrevivesse a ele por um intervalo de tempo suficiente prr";;;;.;tir procurá-la sem maiores consrrangimentás, talvez eu lËe dirigis;. ;;"dóbil apelo. Saberia ela? E, ,. ro,rÈ"rr", {alaria? Era de r..rp"..". q,r.,por mais de um motivo, ela nada tivesse a dìzer; mas q,r".do r.r" _àrt.tornou qualquer aproximação impossível, senti que a renúncia era mes_mo meu destino. Fiquei trancado dentro de minha obsessão Dara sem-pre - meus carcereiros tinham ido embora com a chave . Tal como um

homem preso há muito numa masmorra, não saberia dizer quanto tem-po se passou até a senhora corvick casar-se com Drayton Deane. Detrásdas grades, eu havia previsto este desfecho, mas a coisa não se deu comuma pressa indecorosa, e alêm disso nossa amìzade estava um tanto min_guada. Os dois eram "muitíssimo intelectuais,', de modo que

", p.r_

soas julgavam a união acertada, porém eu havia compreendião -.iho,do.q.ue ninguêm a riqueza de conhecimenros com que a noiva contri_buiria. Jamais, num casamenro em círculos literárioi - diziam os ior-nais - uma noiva viera acompanhada de dote tão vuhoso. Mais quedepressa comecei a procurar o fruto daquera ariança- refiro-me

"o frutu

cujos sinais premonitórios seriam visíveis no marido. cônscio do espren-dor do presenre nupcial que lhe dera sua cônjuge, esperava eu que eÌedesse mostra do aumento de seus recursos. Éu sabia q.,"i, .r"À s..r,recufsos anres - seu artigo sobre Dìreìto de passagem deixara isso bemclaro. Como ele estava agota exatamente na situação em que eu, aindamais exatamente, não estava, todos os meses eu folheava ás periódicos,à procura da mensagem ponderosa que o pobre Corvick .rao p.rd"raentregaÍ, e pela qual seu sucessor eÍa

^gora responsável. A viúva e es_

posa teria quebrado, .iunto à lareira reacesa, o silêncio que só uma viú-va e- esposa poderia quebrar, e Deane frcaria tão inflamado com aqueleconhecimento quanro ficara Corvick anres, e Gwendolen

"- ,.grid^.Sem dúvida ele estava inflamado, mas pelo visto aqueÌe fogo nãã seriapúblico. Em vão eu vasculhava os periódicos: Drayton Deane enchia-oscom páginas exuberantes, porém guardavapara si apâginaque rantosanseios despertava em mim. Escrevia sobre mil . ,r..'"rlr.r.rror. mas ia-mais sobre Hugh Vereker. Sua prática era revelar verdades que os ou-tros ou "não ousavam dizer" , segundo ele, ou então não percebiam;mas jamais revelou a únicaverdade que imponava a mim, ,"qrr.l. t..rr-po. Encontrava-me com o casal nos tais círculos literários de que fala-vamos jornais: já deixei claro que era apenas nestes círculo, qu. todo,nós fôramos feitos para circular. Gwendolen estava mais do qre n,rn."comprometida com eles desde que publicara seu rerceiro ,o-"n.., .fiquei definitivamente estigmatizado ao manifestar a opinião de queesta obra era inferior à que a precedera. seria pior porque ,r^ agor^andava em piores companhias2 se seu segredo era, tal como me di-sse-ra' sua vida - fato este que se manifestava em sua bereza cada vez maior,um ar de privilégio conscienre que, corrigido com sagacidade por deli_cados atos de caridade, dava-lhe uma aparência de dlstinçao I não ti-vera ainda influência direta sobre sua obra. Este fato .r" L"i, um mo-tivo - tudo era mais um motivo - p^ra eu ansiar ainda mais pelosegredo, e o revestia de um mistério mais fino, mais sutil.

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Âssim, era de seu marido que €u não conseguia drar os olhos: meuassédio era tamanho que poderia tê-lo constrangido. Cheguei mesmoa puxar conversa com ele . saberia? Teria recebido a informação de mo-do perfeitamente natural? Essa pergunta zumbiana minha cabeça. claroque ele sabia; caso contrário não reagiria a meus olhares de modo tãoestranho. sua mulher lhe dissera o que eu queria, e ele achava graçade minha impotência. Não ria - não era o tipo de homem q.r. ú ,.r.,sistema era confronrar minha irritação, de modo a me obrigar a expor-me da maneira mais indisfarçada, com uma falta de assunto tão enor-me quanto sua testa alta e nua. Eu sempre terminava me afastando con-victo de que eram inteiramente despovoadas esras vasras regiões, quepareciam completar-se uma a outra geograficamente e simboli zar, jun_tas, a ausência de voz e de forma que caracterizavamDrayton Deane.Simplesmente faltava-lhe aÍrc p'o usar o que ele sabia; o homem eraliteralmente desprovido da competência necessária para levar adiantea tarefa do ponto em que Corvick havia parado. Fui ainda mais longe

- foi este o único lampejo de felicidade que tive. convenci-me d. qrr.esta obrigação não lhe dizia nada. Ele não esrava inreressado, não seimportava. sim, confortava-me a idéia de que ele era parvo demais pa-ra desfrutar a alegria que não me e ra dado gozar . continuava tão parvoquanto anres, e isto tinha para mim o efeito de aprofundar ainda maisa gl6rìa dourada que envolvia o mistério. NaturaÌmente, tinha eu tam-bóm de levar em conta a possibilidade de que sua esposa lhe houvesseimposto condições e exigências. Âcima.de tudo, tinha de lembrar a mimmesmo de que, com a morte de Vereker, o principal incentivo desapa_recera. Ele permanecia como um nome a ser honrado pelo que fossedescoberto - mas não mais como uma pessoa que sancionaria a desco-berta. Quem, senão ele, teria esta autoridade?

O casal teve dois filhos, mas o segundo custou à mãe sua vida.Depois deste goÌpe, julguei divisar mais uma vaga possibilidade . Emmeu pensamento, saÌtei sobre ela de imediato, mas por uma questãode delicadeza esperei algum tempo, e por fim minha oportunidade sur-giu, de forma lucrativa. Um ano depois da morte de sua mulher, en_contrei Drayton Deane no salão de fumar de um pequeno clube doqual nós dois éramos sócios, mas onde havia talvez por ìr lâraras vezes - eu não o via. A sala estava vazia e a ocasião era propícia.Deliberadamente ofereci-lhe, para resoÌver aquele assunto de uma vez

por todas, aquela vanragem pela qual, parecia-me, ele vinha esperan-do havia muito tempo.

"Como conhecia sua falecida esposa há mais rempo até que o se-nhor", comecei, "peço-lhe que me deixe dizer-lhe algumas coisas. Euteria o maìot prazer de lhe dar qualquer espécie de compensação queo senhor julgar adequada em troca da informação que lhe foi com cer-teza transmitida por George Corvick, informação essa que , como o se-nhor sabe, o pobre rapaz recebeu, num dos momentos mais felizes desua vida, diretamente de Hugh Vereker. "

Ele me encaÍave- como um desses bustos usados pelos frenologis-tas. "Informação...?"

"O segredo de Vereker, meu caro - a intenção geral de suas obras,o fio em que ele enfiava suas pérolas, o tesouro enterrado, o desenhodo tapete."

Ele começou a enrubescer; os números das bossas cranianas come-ç Íam a se tornar visíveis. "Os livros de Vereker tinham uma intençãogeral?"

Foi minha vez de ficar perplexo. "O senhor está me dizendo quenão sabia?" Por um momento pensei que ele estivesse zombando demim. "Sua esposa sabia; como já disse, quem contou a elafoj Corvick,que após infinitas pesquisas chegou, com a aprovação de Vereker, à en.trada da caverna. Onde fica a tal caverna? Depois do casamento, elecontou - e com exclusividade - à pessoa que, quando as circunstân-cias se repetiram, sem dúvida contou ao senhor. Estarei equivocado aopresumir que ela revelou ao senhor, como um dos mais elevados privi-légios que lhe cabiam como seu marido, a informação que, após a moftede Corvick, somenre ela detinha? Tudo que eu sei ê que esra informa-ção é infinitamente preciosa, e o que eu gostaria que o senhor enten-desse é que se, por sua vez, o senhor a revelar a mim, estará me pres-tando um favor pelo qual lhe serei eternamente grato."

A esta altura ele jâ estava escadate; tenho a impressão de que elecomeçara achando que eu estava louco. Pouco a pouco foi entendendominha argumentação; eu, por minha vez, estava de olhar fixo, surpre-so. Então ele disse: "Não sei do que o senhor está falando,'.

Ele não estava fingindo; era a verdade, a absurda verdade. ,,Ela

não lhe contou...?""Nada a respeito de Hugh Vereker."Eu estava estupefato; a sala. girava a meu redor. Â coisa eraboa

demais para isso! "Palawa de honra?""Palavra de honra. Que diabo deu no senhor?", rosnou ele.

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"Estou estupefato. Estou decepcionado. Eu queria extrair a infor-mação do senhor. "

"Mas ela não está em miml", ele riu, constrangido. ,,E mesmo

se estivesse... ""Se estivesse, o senhor me diria, ah, me diria, sim, por uma sim-ples questão de humanidade. Mas acredito no senhor. Entendo. En_tendo!", prossegui, cônscio, agora que a roda dera

"_" ã;;;p].-ta, de minha grande ilusão, da minha visão errônea da atitude do.fobre homem. O que eu entendia _ mas isto eu não podia dizer _ eraque sua esposa não o julgaramerecedor daquela informação. Isto parecia-me esrranho, já que ela o julgara -.r...dãr de ser seu marido. por fim,concluí que ela ceftamente não teriase casado com eÌe o* ,.r" inì.ti-gêncìa, e sim por ourro morjvo

. Áté certo ponto, ele agora estava informado, porém ainda maisatônito, maìs desconcertado: levou alguns instantes para comparar mi_nha história com suas lembranças r.aiiu"d"r. O resultado d.'rr", _._ditações foi ele me dizer, a seu modo um ranto debil, ,:É

^;ã;i;^vez que ouço falar deste assunto- creio que o senhor a.u. .rà, .rrg^_nado se imagina que minha mulher tinha algum conhecimento irreve_lado - e menos ainda irrevelável _ a ."rpãiro de Hugh V...f..r. S.fosse algo de relevância rìterâria, nao haviaï menor driüda d. qrr.

"1"faria questão de usá-lo"."Pois ela o usoa. Ela própria o [ez. Elame disse pessoalmente que

este conhecimento era sua ,vida,."Mal a_cabei de pronunciar essas palavras e arrependi-me de ter fa_

1..9o' .t. ficou pálido,_como se eu o tiv.sse golpeado. ..Ah, sua .vi_

da'...1", murmurou ele. desviando o .orao. '

.. Minha compunção era genuína; pus a mão em seu ombro. ,,peço_lhe que me perdoe ... comeri u- .rro. O senhor não sabe o qr.r.

"u lul_gava que soubesse. Se soubesse, o senhor poderia rer_me p.ârr"ao ï^favor; e eu tinha motivos par,a achar q,.r" o 's"rrhor

poderia àjrrd"r_-._;,"Motivos?", repetiu ele. ,,eui motivos?,,

Olhei-o bem; hesitei; pensei. ,,Venha sentar_se comigo aqui que

eu Ìhe conto. " Levei-o atê o sofã. Acendi outro charut. ",;;;;;;co.m

9 episódio em que, pela única vez, Vereker desceu a", .rr;u"rì

relatei-lhe toda a extrao rdinãriaseqüência de acidentes q,r., ^p.r".ì.meu vislumbre inicial, mantinha-me até aquele -o^..r,o .o

"r..rÁ.Contei-lhe, em poucas palavras, tudo que .ontei aqui. Ele ouviu_mecom arenção crescente, e percebi, para minha surpresa, através db suasinterjeições, suas perguntas, que, afinal de contas, ele não era indignoda confiança de sua esposa. Â súbita revelação de que ,.r" rn,.rtir.. iãã

confiara nele tinha agora um efeito perturbador sobre Deane; mas vique o choque imediato pouco a pouco foi morrendo, e depois ressur-giu em forma de ondas de espanro e curiosidade - ondas qrr. p.o-._tiam, eu percebia perfeitamente, explodir no final .o- ,rÁ" fúria se_melhante à das minhas marés mais altas. Hoje, como vítimas de deseioinsatisfeito, ele e eu somos exatamente iguais. o esrado do pobre ho-mem é quase um consolo para mim; há mesmo momentos em que pa_rece ser minha justa vingança.

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