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  • MARILIA GOMES HENRIQUE

    O REALISMO CRTICO-ENCANTATRIO DE JOO DAS NEVES

    Dissertao apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, para a obteno do Ttulo de Mestre em Artes.

    Orientadora: Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber.

    CAMPINAS 2006

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA

    BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

    Bibliotecrio: Helena Joana Flipsen CRB-8 / 5283

    Ttulo em ingls: The critical realism of Joo das Neves.

    Palavras-chave em ingls (Keywords): Drama - Technique, Drama - 20th century, Brazilian drama, Political drama, Popular culture, Brazil - History - 1964-1985.

    rea de concentrao: Artes.

    Titulao: Mestre em Artes.

    Banca examinadora: Suzi Frankl Sperber, Vernica Fabrini Machado de Almeida, Jos Roberto Zan.

    Data da Defesa: 21-08-2006.

    Henrique, Marilia Gomes. H395r O realismo crtico-encantatrio de Joo das Neves / Marilia Gomes Henrique. -- Campinas, SP : [s.n.], 2006.

    Orientador: Suzi Frankl Sperber. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

    1. Neves, Joo das, 1934- 2. Teatro (Literatura) - Tcnica. Teatro (Literatura) - Sc. XX. 3. Teatro brasileiro. 4. Teatro poltico. 5. Cultura popular. 6. Brasil - Histria - 1964-1985. I. Sperber, Suzi Frankl, 1939- II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo.

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    Ana Lusa por preencher a minha vida de alegria e por me dar fora para enfrentar os meus desafios.

    Ao Danilo, meu companheiro e grande amor, por seu engajamento poltico, por nossas conversas e estmulo dado para o desenvolvimento deste trabalho.

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    Agradecimentos Agradeo orientao de Suzi Frankl Sperber que me aceitou, com muita

    generosidade, como sua orientanda e que, mesmo nos momentos mais difceis, fez preciosas consideraes ao meu trabalho.

    FAPESP pelo apoio financeiro. Aos artistas, professores e amigos que, direta e indiretamente, contriburam

    para a pesquisa:

    Ao Joo das Neves pelas entrevistas, pelo material, pela disposio e por ter acolhido junto com a sua esposa Titane, eu e minha famlia na sua residncia em Lagoa Santa (MG), em 2004.

    Tiche Vianna por suas sbias palavras no meu exame de qualificao. Vernica Fabrini que me estimulou a desenvolver uma pesquisa sobre o

    papel da memria no trabalho do ator. Ao Mrcio Aurlio Pires de Almeida que nas minhas inquietaes acerca do

    teatro pico, me instigou a olhar para o teatro brasileiro. Ao Moacir Ferraz e ao Daves Otani que gentilmente concederam uma

    entrevista.

    Ao Fernando Alves da Silva e ao Andriei Gutierrez que sempre se dispuseram a me ajudar durante esta trajetria.

    Vani Cacilhas e Simone Frangella por terem realizado a traduo do resumo para o ingls.

    Laurene Oliveira, Paulo Santiago, Anabela Leandro e Eduardo Conegundes de Souza por terem cuidado da Ana Lusa nos momentos em que precisei.

    Marina minha grande irm e amiga por nossas conversas a respeito do teatro e da vida.

    Aos meus queridos pais por terem sempre me apoiado nas minhas decises. Aos meus entes queridos (vovs) que se foram durante esse processo. Sonia Estrada pelo processo delicado e precioso que permitiu olhar para

    este trabalho como algo possvel de ser realizado. Aos meus amigos do passado e s novas amizades.

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    Aquilo que vocs representam, procurem represent-lo Como se acontecesse agora. Encantada

    A multido est no escuro, em silncio, transportada De seu cotidiano. Agora

    Trazem mulher do pescador o filho, que Os generais mataram. O que antes aconteceu Neste local, se dissipou. O que aqui acontece,

    Acontece agora, e somente uma vez. A atuar assim Vocs esto habituados, eu lhes aconselho agora

    A juntar um outro hbito a este. Em sua atuao exprimir tambm Que esse instante repetido

    Com freqncia em seu palco, que ainda ontem Foi encenado, e assim tambm amanh

    Bastando que haja espectadores, haver representao. Do mesmo modo, no devem fazer esquecer

    Atravs do Agora, o Antes e o Depois Nem tudo aquilo que agora mesmo acontece

    Fora do teatro, que da mesma espcie Tampouco o que nada tem a ver

    Devem deixar inteiramente esquecer. Devem apenas Destacar o instante, e nisso no esconder

    Aquilo do qual o destacam. Dem atuao aquela Caracterstica de-uma-coisa-aps-a-outra, aquela atitude

    De trabalhar o que se propuseram. Assim Mostram o fluir dos acontecimentos e o decorrer

    De seu trabalho, e permitem ao espectador Vivenciar esse Agora de muitas maneiras, como vindo do Antes e se

    Estendendo no Depois e tendo agora Outras coisas mais ao lado. Ele no est apenas

    Em seu teatro, mas tambm No mundo.

    (Bertolt Brecht. Representao de passado e presente em um)

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    Resumo

    Esta pesquisa analisa a produo dramatrgica de Joo das Neves, compreendendo, assim, os seguintes textos: O ltimo carro (1964), O quintal (1978), Mural mulher (1979), Caf da manh (1980) e A pandorga e a lei (1983-1984), que, na sua totalidade, foram produzidos durante a ditadura militar no Brasil.

    O engajamento poltico de Joo das Neves possibilitou o desenvolvimento de um teatro voltado para os problemas candentes da realidade social brasileira, levando-o a formular uma obra de estrutura pica com suas especificidades prprias. Seu teatro, nesse sentido, procura esclarecer ao pblico certos aspectos da engrenagem social, integrar o espectador no espao cnico e apresentar as personagens a partir de uma tica social - e no individualizada, como o caso do drama burgus.

    Palavras-chaves: Joo das Neves, Teatro brasileiro, Teatro moderno, Teatro pico, Dramaturgia, Teatro poltico, Ditadura militar, Cultura popular, CPC, Grupo Opinio.

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    Abstract

    This research analyses the dramaturgic production of Joo das Neves, encompassing the following plays: O ltimo carro (1964), O quintal (1978), Mural mulher (1979), Caf da manh (1980) e A pandorga e a lei (1983-1984). These works were produced during the military dictatorship in Brazil.

    The political engagement of Joo das Neves made possible the development of a theatre turned to the effervescent problems of the Brazilian social reality, and leading the author to formulate an epic-structured play with its particular specificities. In this sense his dramaturgy aims to enlighten the public about some aspects of the social machinery, integrating the viewer to the scenic space. He also presents the characters

    from a social perspective non-individualized, as it is the case of the bourgeois drama.

    Keywords: Joo das Neves, Brazilian theatre, modern theatre, epic theatre, dramaturgy,

    political theatre, Military Dictatorship, Popular Culture, CPC, Opinio Group.

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    SUMRIO

    INTRODUO 1

    CAPTULO 1: JOO DAS NEVES E O TEATRO NO BRASIL 9 1. Introduo 9 2. O teatro no Brasil: da dcada de 1950 a idos de 1960 10 3. Joo das Neves e o teatro brasileiro na dcada de 70 26

    CAPTULO 2: UMA DRAMATURGIA CONSCIENTE DE SEU TEMPO 31 1. Introduo 31 2. Anti-tragdia brasileira: O ltimo carro ou As 14 estaes 32 3. Um quintal de resistncia 42 4. Um panorama da condio da mulher: Mural mulher 48 5. A revolta abafada: Caf da manh 54 6. A memria de nossa histria brasileira em A pandorga e a lei 59 7. Em resumo... 62

    CAPTULO 3: UMA INVESTIDA PICA NO TEATRO BRASILEIRO 67 1. O teatro como arte autnoma 67 2. O pblico excludo do teatro 71

    3. Ecos de um teatro da resistncia 73 4. O caminho de uma nova conscincia cnica brasileira 76 5. O teatro pico de Brecht 77 6. O teatro pico de Joo das Neves 81 7. O realismo crtico-encantatrio de Joo das Neves 90

    A LTIMA ESTAO 93 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 95

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    INTRODUO

    Tudo comeou com a seguinte frase: Historia do teatro matria para o trabalho expressivo do ator. Esta frase estava cravada num porto de ferro que dava acesso a uma familiar e enigmtica paisagem. Senti-me atrada por ela, como o cheiro de cimento

    molhado atrai as minhas reminiscncias das brincadeiras no quintal da minha infncia. O porto estava envolvido por grossas correntes e um enorme cadeado. Havia, porm, duas grandes chaves delgadas no cho. Estavam elas, postas lado a lado como se esperassem por algum. Na certa, alguma dessas poderia abrir o cadeado, pensei. No antes de desvendar o enigma. Sussurra a voz de um porteiro que aparece ao meu lado. Uma das chaves representa a histria do teatro brasileiro e a outra o trabalho expressivo do ator. Para abrir o porto, continuou o porteiro, voc deve descobrir, em uma nica tentativa, a chave que d acesso a esta paisagem. Mais uma porta, mais uma histria. C estou eu, diante de uma

    escolha: histria do teatro brasileiro ou trabalho expressivo? Espera um pouco. Ai, ai, ai, Alice. Se eu desenvolver a idia da frase colocada no letreiro do porto isso me ajudar na escolha de uma das chaves. Ento, vamos l.

    Como a histria do teatro brasileiro pode ser elemento para o trabalho expressivo do ator? Se pensarmos que, de modo geral, a expresso a relao entre a fonte (a fora motora que desencadeia o movimento expressivo) e a forma (um signo que concretiza a expresso), podemos concluir que, no caso do trabalho do ator, a experincia de vida, aliada ao pensamento e prtica, constitui a fonte que desencadeia um determinado produto artstico. Deste modo, a histria do teatro brasileiro ser matria para o trabalho expressivo do ator, quando este constri uma experincia com a histria, ou melhor, uma experincia com o passado. Chegada esta concluso, percebi que as duas chaves que estavam em minhas mos se encaixavam uma na outra. Ento, eu abri o porto.

    Caminho dois passos naquele jardim colorido e perfumado quando, surpreendentemente, me vejo em uma espcie de mirante onde eu avistava, ao longe, uma imensa e multifacetada paisagem a cu aberto. Era uma mistura de construes e runas de

    antigos e novos edifcios teatrais, havia tambm feiras, praas, parques, arranha-cus,

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    presdio, trem. Floresta, bichos, igrejas e favelas. Havia muitas pessoas, vendedores ambulantes, carnaval de rua, folguedos populares, crianas, homens e mulheres, colinas,

    vales e rios. Tudo isso, embaraadamente, disposto no espao. Avistei, ao longe, uma espcie de desfile de personagens vestidas com roupas das mais diferentes pocas que

    preenchiam uma colina inteira. Estavam eles - recitando, declamando, cantando, narrando, correndo, cantando, chorando para uma multido de pessoas das mais diferentes classes e raas - desde ndios seminus e descalos ao lado de operrios de fbrica a mulheres e homens muito bem vestidos que assistiam, em esplendorosas cadeiras de ouro, parte do espetculo.

    Fiquei um tempo ali, como se contemplasse o pr do sol. Impossvel dimensionar os perigos e aventuras que estavam me aguardando, caso descesse a ribanceira. Uma coisa eu tinha certeza: por estar sempre em movimento e pelos seus

    detalhes, no bastariam dias ou meses para explorar essa paisagem. Percebi que seria um projeto para a vida toda. Propus-me a descer pelo barranco e ver de perto tudo aquilo, mas, de repente, antes de dar o primeiro passo, uma nuvem escura se espalha no cu e por entre todas as coisas. Tudo fica escuro e silencioso. Apio-me em um tronco de rvore e, antes de me desfazer do susto, vejo uma pequenina luz iluminando um pontinho no horizonte escuro que se aproxima de mim. Era uma espcie de anjo.

    Estou aqui para lhe ajudar a mergulhar nessa paisagem. Como talvez j tenha percebido, essa paisagem constituda de vrios episdios e cenas do teatro brasileiro, de seus mais diferentes tipos de espaos, iluminao e de diferentes atuantes da cena entre eles os atores encenadores, figurinistas, dramaturgos, pensadores, crticos e pblico , envolvidos em diferentes situaes e pocas. No entanto, quem dar, novamente, forma a esta paisagem voc. O anjo se ps a explicar. Ele disse que a histria do teatro brasileiro composta por diversas histrias que podem ser vistas por diferentes ngulos e que eu,

    enquanto atriz de teatro, deveria construir a minha experincia com essa histria. Entretanto, para eu ter materiais firmes e consistentes para sustentar a paisagem, o anjo sugeriu que eu lanasse o meu olhar para um atuante da cena. Mas quem? Parecia ser uma escolha no to simples assim, no entanto, como um piscar de olhos, percorri algumas

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    imagens em impresses que me ajudaram nesta escolha.

    Recordei-me do primeiro contato que tive com o diretor e dramaturgo Joo das

    Neves, como espectadora do seu espetculo, Primeiras estrias, visto quando eu entrei na graduao em Artes Cnicas na Unicamp, em 1996. Foi um espetculo que me encantou bastante, porque podamos percorrer pelos diferentes espaos de um parque pblico e participar como integrantes de uma determinada situao proposta. Foi interessante fazer parte da histria e perceber aquele parque com novos olhos. Recordei-me, tambm, de outros encontros com Joo das Neves. Uma performance realizada num evento sobre Brecht. Joo das Neves, em vez de falar do autor alemo, conta, cenicamente, a sua experincia com Brecht. Lembro-me de sua expresso serena, seu andar lento, envolto por um lenol, segurando um cajado, entrando por trs da platia, recitando poesias no apenas de Brecht, para meu espanto, que esperava ouvir uma conferncia terica sobre o artista

    alemo.

    Uma mesa redonda sobre teatro no Departamento de Artes Cnicas, l estava, novamente, Joo das Neves. Ele conviveu com os ndios no Acre, fez teatro para os seringueiros. Disse-me uma amiga. Foi diretor do setor de teatro de rua do Centro Popular de Cultura, disse-me o professor. Ento, Joo das Neves comeou a fazer sua exposio a respeito de seus mais recentes espetculos, realizados na dcada de 1990 a 2000. Um dos pontos que me interessou foi a realizao dos espetculos em diferentes espaos urbanos, o que permite um dilogo com diferentes camadas sociais e etrias. Assim, por exemplo, o espetculo Primeiras estrias, realizado em parques pblicos na cidade de Belo Horizonte e Campinas, revela um envolvimento especfico do espectador com a obra. Ao transitar por vrios contos diferentes de um espao ao outro, o espectador convidado a participar de vrias situaes, como um velrio, e a danar quadrilha. medida que o espectador faz parte do espao cnico dentro de um espetculo com cenas simultneas ou restritas a

    somente alguns espectadores sorteados, ele constri sua prpria narrativa e contribui para o desenvolvimento do espetculo. Outro exemplo significativo seu espetculo Pedro Pramo, encenado em um tnel abandonado, usado antes como desova de cadveres. A transformao do espao pelo espetculo cnico, redimensiona a leitura que o pblico faz

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    do espao urbano e permite ter uma relao diferente com o mesmo, ou seja, o espectador encontra uma nova dimenso daquele espao a partir de sua participao no evento teatral.

    Atravs dessas lembranas, pude perceber um ator, diretor e dramaturgo inquieto e engajado em um tipo de teatro preocupado em dialogar a esfera do esttico com a esfera poltica e social. Mas, como surgiram suas buscas e inquietaes que atualmente desencadeiam sua dramaturgia do espao, como assim definida pelo prprio autor? Como Joo das Neves expressa sua viso de mundo, suas inquietaes polticas? Decidi, ento, investigar quem o artista Joo das Neves. Essa experincia ajudar clarear certos questionamentos presentes no meu atual trabalho de atriz, dentre os quais, como fazer do teatro, mesmo em se tratando da construo de uma outra realidade, forma de conhecimento? Enquanto atriz, tenho uma inquietao em transformar os meus

    posicionamentos polticos em relao, por exemplo, indiferena social, padronizao

    da beleza, busca da fama, ao desemprego, ao individualismo exacerbado, ao machismo, maternidade, educao em fonte de expresso artstica. Quando disse sobre a minha escolha ao anjo, a nuvem escura se desfez e a paisagem se transformou por completo. Embora ainda multifacetada, percebi que estava diante do quintal de Joo das Neves. A presente pesquisa registra o percurso que fiz para construir uma paisagem, fruto da minha experincia com a obra de Joo das Neves, em especial, com seus textos dramticos.

    O primeiro passo foi obter, em mos, os textos e selecionar os que seriam analisados nessa pesquisa.1 Em seguida, para compreender suas opes e investigaes de

    1 As edies de alguns dos textos de Joo das Neves publicados encontram-se esgotadas: O ltimo carro. Rio de Janeiro, Grupo Opinio, 1976 (esta publicao esgotou-se na quinta edio); O quintal In: Carlos Henrique Escobar et al. Feira Brasileira de Opinio. So Paulo, Ed. Global, 1978; e Mural mulher. Rio de Janeiro, Grupo Opinio, 1979 (esta publicao esgotou-se na segunda edio). Alm disso, cabe ressaltar que os acervos das trs universidades pblicas paulistas (Unesp, Unicamp e USP), disponibilizavam, em especial o banco de textos teatrais do departamento de Artes Cnicas da Unicamp, apenas trs textos do dramaturgo: O ltimo carro, O quintal e Yurai: o rio de nosso corpo. Foi somente atravs do contato que iniciei com o autor que pude receber, via correio eletrnico alguns de seus textos. Outros foram entregues pessoalmente quando tive a oportunidade de participar, em outubro de 2004, de uma homenagem feita a Joo das Neves, em Belo Horizonte. Joo das Neves tambm, gentilmente, me entregou a verso original do texto Mural mulher, em junho de 2005, na ocasio em que assisti a sua palestra sobre a sua vivncia no Acre, na dcada de 1980, e sobre o seu projeto, ainda indito, de encenar um texto de sua autoria denominado Yurai: o rio do nosso corpo, em diferentes reservas indgenas do territrio brasileiro no Seminrio das Culturas Populares, promovido pelo SESC Pinheiros, no municpio de So Paulo.

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    um teatro popular foi preciso conhecer sua histria. Nesse sentido, realizei uma entrevista com o autor, em outubro de 2004, ocasio em que foi homenageado na cidade de

    Belo Horizonte pelos seus 70 anos de vida. Na entrevista, Joo das Neves falou de sua trajetria no teatro, em especial, de suas experincias no CPC e no Grupo Opinio. interessante observar que as inquietaes que mobilizam a sua prtica provm de questes que dizem respeito ordem coletiva. Diz o autor:

    Eu no sou uma pessoa solta no mundo; eu sou uma pessoa com meu contexto familiar, com meu contexto municipal, estadual, de pas, de continente, de mundo. Meus prprios problemas existenciais esto impregnados de tudo isso, dentro da sociedade que me envolve. Mesmo ao tratar de problemas existenciais, no estou tratando s dos meus problemas: estou tratando de problemas comuns minha sociedade.2

    E dentro desta perspectiva, a dinmica social afeta sua arte:

    Quando voc escreve para teatro, tudo o que est mais prximo de voc vai aflorar na sua obra, como no romance, como no poema etc. (...) E se as pessoas so indiferentes s pessoas miserveis, pedindo esmola, s crianas trabalhando na rua, ou fazendo malabares na frente dos sinais para ganhar a vida, violncia. Muito bem: eu no sou. Ento claro que meu trabalho vai estar impregnado dessas coisas.3

    possvel dizer que Joo das Neves, ao longo de sua trajetria, procura ser coerente com suas inquietaes que compreende o teatro como meio de conhecimento da realidade. Sua escrita dramtica e cnica preocupa-se em abarcar uma revelao mais ampla do mundo real e provocar uma reflexo, no espectador, sobre a necessidade da transformao social. Desta forma, considerei importante analisar a sua dramaturgia inicial por se tratar do momento privilegiado em que possvel vislumbrar o movimento realizado

    pelo autor a partir de sua experincia como diretor de teatro de rua do CPC e posteriormente na proposta de teatro de resistncia desenvolvida pelo grupo Opinio, a

    partir de 1964, que culminou na produo dramatrgica fruto de sua inquietao entre cena e sociedade. Apesar das transformaes estticas que sofreu a obra de Joo das Neves no

    2 Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004.

    3 Ibidem.

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    decorrer da poca, verifica-se que a representao da coletividade oprimida, bem como a incluso do espectador no espao cnico, esto presentes no conjunto de suas peas. Nesse sentido, definimos um eixo central de investigao: a ligao existente entre a representao das coletividades oprimidas presente em sua dramaturgia e a incluso do

    espectador no espao cnico a partir da anlise dos seus textos escritos no perodo da ditadura militar: O ltimo carro, O quintal, Mural mulher, Caf da manh e A pandorga e a lei. Essa escolha abriria uma possibilidade de melhor compreender como o autor pe em dilogo seu posicionamento poltico e sua manifestao artstica.

    O chamado teatro da resistncia ditadura militar proveniente de uma gerao que mergulhou nas questes referentes s idias de povo, libertao e identidade nacional, a partir do final da dcada de 1950. Uma das caractersticas dessa gerao, romntica e revolucionria,4 foi a fuso entre a vida pblica e privada: colocavam em

    xeque os valores e costumes da ordem burguesa, a liberao sexual, o desejo de renovao, a nsia de viver o momento, a aposta na ao em detrimento da teoria.5 No teatro, o artista

    procurava expressar um ponto de vista da realidade: teatro para qu e para quem? quem era aquele outro com quem dialogava? Aspectos da realidade brasileira at ento pouco difundidos e a busca de um novo pblico que pudessem dialogar melhor com as questes prementes aos artistas daquela poca conduziam as propostas cnicas dos novos grupos e delineavam um novo caminho para o teatro, diferente daquele difundido na poca, calcado

    na proposta esttica difundida pelo Teatro Brasileiro de Comdia (TBC).6 Dentro dessa atmosfera pr-revolucionria, Joo das Neves participa como diretor de teatro de rua do

    4 Segundo o autor Marcelo Ridenti, as lutas pelas reformas e pela revoluo social, na dcada de 1960 e

    princpio de 1970, estavam mergulhadas na utopia revolucionria romntica. Se o adjetivo romntico muitas vezes empregado com conotao pejorativa, o autor no toma o termo romantismo revolucionrio da poca com desdm. Conforme Ridenti: A utopia revolucionria romntica do perodo valorizava acima de tudo a vontade de transformao, a ao dos seres humanos para mudar a Histria, num processo de construo do homem novo (...) Mas o modelo para esse homem novo estava no passado, na idealizao de um autntico homem do povo, com razes rurais, do interior, do corao do Brasil (...) Buscavam-se no passado elementos que permitiriam uma alternativa de modernizao da sociedade que no implicasse a desumanizao, o consumismo, o imprio do fetichismo da mercadoria e do dinheiro. Cf. Marcelo Ridenti. Em busca do povo brasileiro artistas da revoluo, do CPC era da TV. Rio de Janeiro, Record, 2000: 24-25. 5 Quanto liberalizao dos costumes da poca, ver: Ibidem: 48.

    6 Por novos grupos, entendemos: Teatro de Arena, Oficina, Centro Popular de Cultura (CPC), Movimento de

    Cultura Popular de Pernambuco (MCP), bem como, o grupo Opinio, criado posteriormente.

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    Centro Popular de Cultura (CPC). O CPC foi um projeto que utilizou o teatro e outras manifestaes artsticas como instrumento de conscientizao poltica. Sua proposta

    consistia em levar informao para uma maioria analfabeta, desinformada e excluda, sobre a situao poltica e social do pas com o intuito de articular as reformas de base e o

    processo de revoluo brasileira. Com o advento do Golpe Militar, o CPC representava uma agresso ordem pblica e foi extinto. Joo das Neves com os outros artistas do antigo CPC fundam o grupo Opinio. Ao ser veculo de resistncia, a palavra no teatro torna-se fundamental. Porm, mais do que defender reflexes tericas de intelectuais de esquerda,7 o artista busca expressar suas inquietaes diante dessa nova conjuntura e, com o cerceamento da expresso, recorre s estratgias metafricas e alusivas para no sucumbir.

    Para melhor compreender quem foi o artista Joo das Neves e como ele

    aproveita os estmulos de sua poca para criao, foi importante me pautar de uma contextualizao histrica de sua obra.

    Alm disso, no poderia deixar de abordar a influncia do teatro pico de Brecht no desenvolvimento do teatro de Joo das Neves que faz uso de uma estrutura dramtica descontnua, ou como diz o autor um teatro que se inspira na estrutura descontnua dos folguedos populares.8 Nesse sentido, julguei ser importante contextualizar a influncia de Brecht no Brasil, a partir da dcada de 1960, no desenvolvimento de um teatro que permite o espectador refletir sobre os mecanismos sociais. Brecht rompe radicalmente o envolvimento emptico do espectador e desenvolve uma linguagem abertamente teatralizada e narrativa. Com a quebra da 4a. parede, o palco assume a presena do espectador no evento, a histria narrada no tem uma relao causal e a estrutura fragmentada interrompe a ao dramtica, permitindo ao pblico questionar as

    7 Conforme esclarece Ferreira Gullar, um dos fundadores do Opinio: Nosso problema ideolgico era lutar

    contra a ditadura; ns no tnhamos teorias, essas teorias complicadas do nacional-popular, ningum pensava isso. Agora, ns achvamos que devamos valorizar a cultura brasileira, que devamos valorizar um teatro que tivesse razes na cultura brasileira, no povo, na criatividade brasileira. Ferreira Gullar apud: Marcelo Ridenti, op. cit.:128. 8 Joo das Neves apud: Cludia Mesquita. Joo das Neves: o documento como matria teatral In: Revista

    Vintm. So Paulo, Editora Hedra, s/d: 22.

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    personagens. Alm desses mecanismos, aqui brevemente resumidos, Brecht desenvolve um tipo de representao conhecida como gestus, que pode ser compreendido como um

    conjunto de gestos que revelam a situao histrica das atitudes humanas, focando o aspecto social para comentar e criticar uma situao.

    Os elementos do teatro pico esto presentes na estrutura das peas de Joo das Neves no s porque o autor utiliza recursos como a projeo de imagens ou a quebra da 4.parede, mas porque tais recursos permitem revelar o homem em sua face social e histrica. Entretanto, o teatro desenvolvido por Joo das Neves tem suas especificidades no que se refere representao das personagens coletivas e ao espao cnico como meio paradoxal de incluir e distanciar o espectador do universo das personagens. Assim, a contextualizao histrica e os recursos utilizados pelo autor para a realizao de seu teatro pico so elementos importantes para a construo da minha paisagem desenvolvida a

    partir do modo como compreendo suas respostas no confronto com o outro: a ditadura militar.

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    CAPTULO 1: JOO DAS NEVES E O TEATRO NO BRASIL.

    1. Introduo

    Somente em meados de 1950 e incio dos anos de 1960, o teatro brasileiro moderno produz, de modo significativo, uma dramaturgia nacional voltada para os aspectos sociais e culturais do Brasil, possibilitando a incluso do autor nacional no desenvolvimento do teatro no pas. Concomitantemente ao processo de desenvolvimento da dramaturgia nacional, verifica-se, principalmente a partir de 1958, a sensvel modificao no processo de produo do espetculo, como, por exemplo, a insero do teatro nos movimentos culturais populares; a diversificao do espao cnico; o desenvolvimento de novos mtodos de interpretao e encenao; a ampliao do debate sobre o papel da arte e

    do artista; os novos encenadores, grupos, e a formao de um novo pblico. Esta nova configurao do teatro corresponde ao empenho de uma gerao de artistas na efetivao

    de um dilogo entre o evento teatral e os temas que mobilizavam a sociedade civil na poca.

    Entre os artistas envolvidos com a proposta de fazer do teatro instrumento de transformao poltica e cultural destaca-se Joo das Neves. Nascido no Rio de Janeiro, em 1934, ele vive sua infncia no bairro de Copacabana. Segundo o autor, a presena dos operrios da construo civil no bairro de sua infncia, foi fundamental para o contato com a cultura popular do Nordeste, freqentemente presente em suas peas:

    Eu comecei a gostar de ler em funo do que eu ouvia e via na minha prpria casa no Rio de Janeiro, na poca da transformao de Copacabana de um bairro de casas para um bairro de edifcios de 12 andares (...). Eram casas diariamente sendo demolidas e construdos edifcios, na poca da guerra, na dcada de 40. Eu vivi essa poca em Copacabana, como menino, com operrios sempre dentro de casa. No s na minha casa, pois na Praa Serzedelo Correa ocorria, todos os finais de semana, a reunio de operrios da construo civil. Tinha gente vendendo literatura de cordel, desafio, de vez em quando um folguedo qualquer, Folia de Reis (...) Ento, minhas grandes influncias foram essa ligao com as coisas do Nordeste,

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    inicialmente, e o cinema.9

    O cinema foi um outro contato importante que se efetivou nesta poca e que ir influenciar, de certo modo, a linguagem utilizada pelo autor e encenador:

    Quando eu fui para escola, o filho do porteiro do cinema era meu colega. amos primeiro assistir ao filme, de graa, todo dia. Depois do filme, amos para trs da tela do cinema pra brincar de mocinho, essas coisas todas. Todos os filmes dessa poca eu vi: bom, ruim, pssimo, no interessa. (...) Ento, o contato com o cinema tambm foi muito grande. Eu sou um cineasta frustrado (...) frustrado no, mas, quer dizer, seria assim uma coisa que eu teria seguido se no tivesse aparecido o teatro na minha vida. So elementos para mim literrios (...) Eu acho que o teatro surgiu dessas coisas, e obviamente, com tudo isso, eu gostava muito de ler. Lia muito. Eu tinha uma biblioteca razovel e um amigo meu que tinha tudo, mas no lia, quem pegava livro dele pra ler era eu. Basicamente, eu acho que a minha formao literria comeou a - e teatral tambm.10

    Joo das Neves inicia sua atividade artstica, como poeta e contista. Escreve para o jornal A Seiva, fundado por ele e outros colegas na escola onde cursava o cientfico. Em meados dos anos de 1950, Joo das Neves freqenta o curso de preparao de atores na Fundao Brasileira de Teatro, fundada por Dulcina de Morais. Nesta poca, realiza sua primeira experincia profissional na companhia de Lus Lima. O contato com os artistas da poca influenciou Joo das Neves em seu fazer teatral:

    Tive professores maravilhosos, e obviamente, os professores me influenciaram muito. E depois, como parte at do meu interesse poltico, eu comecei a ler coisas de Brecht. As primeiras coisas que surgiram do Brecht, no Brasil, eu li.11

    2. O teatro no Brasil: da dcada de 1950 a idos de 1960.

    A trajetria de Joo das Neves, como diretor e dramaturgo, inicia-se consideravelmente nos anos 60. Joo das Neves, nesse contexto, realizava, com seu grupo de teatro, Os Duendes, em Campo Grande (RJ), um espetculo, cujo repertrio se vinculava

    9 Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004. 10

    Ibidem. 11

    Ibidem.

  • 11

    problemtica social brasileira. No entanto, durante a realizao do espetculo A grande estiagem, de Isaac Gondim Filho, o teatro foi interditado e a pea foi censurada como

    subversiva pelo governo Lacerda.12 Sobre essa questo, assim se referiu Joo das Neves:

    Ns fizemos uma pea que os caras acharam que era uma pea de comunista, (...) uma pea sobre a seca e ns tocvamos na questo do latifndio. Ento, um dia, ns chegamos l, e eles tinham destrudo o cenrio da pea. E a eu fui para o CPC da UNE.13

    Alm de expor os problemas da censura e da represso que iriam se tornar uma prtica poltica freqente, aps 1964, esse relato faz meno tendncia ao engajamento poltico de Joo das Neves e do teatro brasileiro de modo geral, o qual ganha fora a partir do final da dcada de 50, inclusive entre grupos amadores.

    Na dcada de 50, efetivou-se, no pas, um acelerado processo de industrializao que muitos autores denominaram a segunda revoluo industrial do Brasil. O elemento unificador adotado pelos sucessivos governos desta poca, at 1964, consistia na poltica populista de desenvolvimento nacional. De um modo geral, a poltica adotada permitiu a entrada de capital estrangeiro, para atender os interesses de empresas multinacionais, e contribuiu para o acirramento de uma crise econmica caracterizada pelo aumento da inflao, xodo rural e desigualdade social. Em contrapartida, em meados da dcada de 1950, os trabalhadores comearam a obter expresso organizacional e exigir uma mudana social, o que contribuiu para diversos tipos de reivindicaes e protestos.

    Todo esse quadro contribuiu para o desenvolvimento de um esprito nacionalista revolucionrio. Ou seja, as idias de povo, libertao e identidade nacional presentes em outros perodos do processo histrico brasileiro receberam, nesta poca,

    influncias das ideologias de esquerda como alternativa civilizao capitalista moderna. Deste modo, o processo de construo de uma nova organizao social influenciou

    12 Carlos Frederico Lacerda foi o primeiro governador eleito do Estado da Guanabara, em 1960. Nesta poca,

    era conhecido como um dos mais combativos e polmicos lderes conservadores do pas. 13

    Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004.

  • 12

    diferentes manifestaes artsticas empenhadas em trabalhar com temticas que refletissem sobre a sociedade e a cultura brasileiras.14

    Sob este aspecto, a dramaturgia nacional da dcada de 50, ao revelar caractersticas especficas da sociedade brasileira, conquista cada vez mais espao nas

    encenaes brasileiras. Ao explorar uma linguagem calcada nos aspectos regionalistas e da cultura popular, o autor nacional adquire um papel importante no desencadeamento de um estilo brasileiro capaz de preservar a nossa peculiar maneira de ser.15 Segundo Dcio de Almeida Prado, os autores nacionais que despontaram a partir de 1955 tinham em comum a posio nacionalista, seja por inclinao poltica, seja por retratar em cena aspectos menos conhecidos ou menos explorados dramaticamente no Brasil.16 Ilustram esse fato as temticas dos novos textos que retratavam aspectos da realidade brasileira at ento pouco desenvolvidos em nossa dramaturgia. Como observa Prado, comeava-se a apostar no

    autor brasileiro, como antes se apostara na possibilidade de se fazer espetculos modernos entre ns.17 Desse modo, idias que dizem respeito apreenso do popular e do nacional

    tais como, razes populares do nordeste brasileiro, aspectos da sociedade rural brasileira, problemas sociais provocados pela industrializao, desigualdade social, greve e revoluo serviram de temtica a autores como Jorge Andrade, Ariano Suassuna, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho. Esses novos temas inauguram uma prtica de teatro pico no Brasil.

    14 A respeito do esprito nacionalista revolucionrio, Marcelo Ridenti defende a tese segunda a qual os

    movimentos culturais da dcada de 1960 veiculavam-se ao processo de romantismo revolucionrio presente no s nas classes mdias intelectualizadas como nas lutas dos camponeses e operrios. O autor observa que a consolidao da modernidade capitalista, a partir do desenvolvimentismo dos anos 50 e especialmente aps a ditadura militar de 1964, possibilitou a apario de movimentos de via contrria, que se delineavam pelo menos desde da dcada de 20 no Brasil, mas que somente com esse novo contexto histrico encontrou espao material para se intensificar. Desta maneira, se o termo romantismo, em um sentido geral, est associado a uma utopia anti-capitalista, o autor entende que o romantismo das esquerdas da poca era desprendido de uma viso nostlgica do passado, propondo uma ao revolucionria, cujo objetivo era a superao da modernidade capitalista. Como observa o autor: ... a valorizao do povo no significava criar utopias anticapitalistas regressivas, mas progressivas; implicava no paradoxo de buscar no passado (as razes populares nacionais) as bases para construir o futuro de uma revoluo nacional modernizante que, no limite, poderia romper as fronteiras do capitalismo. Cf. Marcelo Ridenti, op.cit: 51. 15

    Cf. Dcio de Almeida Prado. O teatro brasileiro moderno. So Paulo, Perspectiva, 1998: 64. 16

    Ibidem: 61. 17

    Ibidem: 62.

  • 13

    Juntamente com a significativa produo dramatrgica nacional, h um interesse em viabilizar a manifestao teatral para a transformao da sociedade. certo que o teatro poltico desta poca pode ser visto, muitas vezes, como propaganda revolucionria poeticamente pobre, calcada em uma relao vertical e populista. No

    entanto, deve-se considerar que os aspectos sociais e culturais renegados pelo teatro que se fazia at ento foram utilizados em obras que conseguiam escapar da mquina populista.

    Por sua vez, os aspectos polticos e econmicos da conjuntura internacional tambm contriburam para configurar a nova dinmica nacional. O acirramento da Guerra Fria, que ensejou a disputa por reas de influncia entre as potncias norte-americana e sovitica, repercutiu no Brasil. Por um lado, deu-se a expanso do mercado consumidor americano para boa parte do mundo ocidental, incluindo a formao de um mercado para

    os jovens recm-urbanizados do Brasil; por outro lado, o ciclo revolucionrio iniciado na Unio Sovitica contribuiu para as lutas de libertao nacional em Cuba, Arglia e tambm

    a ecloso da revoluo cultural chinesa. No Brasil, essa onda revolucionria repercutiu em determinados setores da sociedade brasileira, os quais vislumbraram a possibilidade de uma mudana histrica e a possibilidade de fazer da arte um instrumento de luta.18

    2.1 Quem usa black-tie? A busca de uma dramaturgia pica.

    Dentro desse contexto, a luta de classes passa a ser um tema atrativo para um novo pblico que se formava, especialmente estudantes, intelectuais e trabalhadores do setor tercirio. Precisamente, neste filo, inaugurado em 1958, o marco do desenvolvimento da dramaturgia poltica e engajada: o espetculo Eles no usam black-tie.19 O espetculo, que se tornou uma referncia importante para o desenvolvimento de um

    18 Edlcio Mostao. Teatro e poltica: Arena, Oficina e Opinio. So Paulo: Proposta Editorial, 1982: 31.

    19 Pea escrita por Gianfrancesco Guarnieri e dirigida em parceria com Jos Renato, apresentada em 1958,

    pelo grupo Teatro de Arena. Devido s dificuldades financeiras que esse grupo passou na poca, havia a expectativa de que o espetculo Eles no usam black-tie marcaria o fechamento do Teatro de Arena. Cabe ressaltar, no entanto, que o espetculo se consagrou como um marco do desenvolvimento do teatro brasileiro moderno.

  • 14

    teatro poltico, confere, de modo indito, ao proletariado o papel de protagonista da histria, s voltas com a luta de classes.

    O sucesso de Eles no usam black-tie pode ser visto com um divisor de guas entre a forma do drama burgus e a busca de novas solues formais que permitisse acolher

    os assuntos relacionados luta de classes. O texto apresenta uma discrepncia entre a forma, mantida ainda no molde do drama burgus, e o contedo pico, abordado atravs da greve de trabalhadores.20 Desse modo, alguns autores de teatro, do final da dcada de 50 at meados da dcada de 60, como, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, e o prprio Gianfrancesco Guarnieri, cada um a seu modo, utilizaram recursos correspondentes a uma proposta de escrita engajada, cuja temtica principal era a relao de personagens de classes populares com a estrutura social dominante.21

    Aps a repercusso de Eles no usam black-tie, o Arena promove, em abril de

    1958, o I Seminrio Nacional de Dramaturgia, no qual se discutiram a necessidade do desenvolvimento e da viabilizao de novos repertrios que abarcassem os assuntos relacionados aos conflitos sociais. Embora o contedo do teatro pico de Brecht no tenha sido visto com muita profundidade na poca do I Seminrio,22 esse autor passa a ser um dos maiores influentes na pesquisa de uma forma teatral aliada a um dilogo crtico com o espectador. De acordo com essa diretriz, estrearia, em 1960, um espetculo como Chapetuba F.C., em maro de 1959, de Oduvaldo Vianna Filho, e A revoluo na Amrica do Sul, em setembro de 1960, de Augusto Boal. Neste ltimo espetculo, verifica-se que Augusto Boal, foi buscar em Brecht e na revista os materiais com que trabalhou.23 O

    20 Segundo In Camargo Costa, a greve no um assunto de ordem dramtica, pois dificilmente os recursos oferecidos pelo dilogo dramtico (...) alcanam sua amplitude (...) poderamos dizer que a extenso (o tamanho) desse assunto maior que o veculo (o dilogo dramtico). Cf. In Camargo Costa. A hora do teatro pico no Brasil. So Paulo, Paz e Terra, 1996: 24. 21

    Augusto Boal, Oduvaldo Vianna e Gianfrancesco Guarnieri eram alguns dos integrantes do Teatro de Arena. O grupo Teatro de Arena, fundado em 1953, apesar de priorizar, em seus primeiros anos, um processo artstico semelhante ao do Teatro Brasileiro de Comdia (TBC), comeava a delinear o seu prprio caminho atravs, por exemplo, da utilizao de um novo espao cnico e da incorporao, em 1955, de jovens atores oriundos do Teatro Paulista dos Estudantes, alm da contratao do diretor Augusto Boal, um ano depois. A partir de 1958, o grupo Teatro de Arena no s encenou e estimulou a criao de textos nacionais, como pesquisou novas formas de encenao e interpretao. 22

    Cf. In Camargo Costa, op. cit.: 43. 23

    Ibidem: 61.

  • 15

    espetculo revelou novas possibilidades de abordar os assuntos referentes luta de classes. A partir de ento, Bertolt Brecht tambm passa a ser uma referncia importante para a

    pesquisa de vrios outros grupos que apostavam no teatro enquanto fenmeno esttico e poltico.24

    Entretanto na estria de A revoluo da Amrica do Sul, Joo das Neves escreveu uma crtica do espetculo intitulada Revoluo e contradio.25 O autor advertia para a contradio existente entre o pblico popular que o texto tinha em vista e ao atingido por este espetculo, geralmente estudantes, intelectuais e trabalhadores do setor tercirio. O autor faz uma crtica, portanto, em relao ao espao cnico inacessvel a uma maioria. A

    crtica de Joo das Neves representava um reflexo da necessidade de vincular efetivamente o pblico popular s novas mudanas estticas que aquele setor do teatro brasileiro se propunha a realizar.

    A necessidade de atingir um novo pblico que no tinha acesso aos espetculos teatrais da poca, passou a ser a principal motivao para a pesquisa de novas formas. Tanto o surgimento de grupos de teatro amador, formados em sua maioria por estudantes, quanto os movimentos culturais da poca foram impulsionados pelos questionamentos que estavam em voga: teatro para qu e para quem?

    2.2 Joo das Neves e o Centro Popular de Cultura (CPC).

    O governo de Joo Goulart, no incio da dcada de 1960, adotou uma poltica nacional antiimperialista formada por um complexo ideolgico que agregava tanto setores

    24 A montagem de Alma boa de Setsuan, em 1958, pelo teatro de Maria Della Costa, considerada o primeiro

    espetculo profissional de um texto de Brecht no Brasil. O atraso da difuso de Brecht no Brasil se deu por alguns motivos: a ditadura do Estado Novo impedia a divulgao de uma dramaturgia como a de Brecht; o nosso teatro dependia do aval francs e Brecht s foi reconhecido na Frana em 1956, com a tourne parisiense do Berliner Ensemble. Para dois de nossos mais renomados crticos do teatro, Dcio de Almeida Prado e Sbato Magaldi, a esttica brechtiana era empobrecedora e panfletria; para os nossos artistas engajados, em princpio, as idias e as peas de Brecht no interessavam aos seus grupos, o que revela a influncia do Partido Comunista no encaminhamento esttico voltada para o realismo socialista. A esse respeito ver: In Camargo Costa, op. cit. 25

    Ibidem: 57.

  • 16

    sociais vinculados ao Partido Comunista Brasileiro, quanto setores da burguesia, representada pelos donos das indstrias nacionais. De um modo geral, o teatro

    comprometido com as questes polticas voltadas para a transformao da sociedade, desenvolveu-se, nesta poca, num momento de comunho de interesses polticos dos

    movimentos de esquerda com o governo populista de Joo Goulart (1961-1964). A ingnua conciliao de ideologias, aparentemente to distintas, fortaleceu o governo populista, ao mesmo tempo que possibilitou significativas manifestaes culturais. Como avalia Roberto Schwarz:

    Durante este breve perodo, em que polcia e justia no estiveram simplesmente a servio da propriedade (notavelmente em Pernambuco), as questes de uma cultura verdadeiramente democrtica brotaram por todo canto, na mais clara incompatibilidade com as formas e o prestgio da cultura burguesa.26

    Como as noes de povo, de direitos dos trabalhadores e da construo de um novo sistema social eram temas centrais das mobilizaes de rua e inspirao para determinados grupos de artistas, no por acaso que sem a censura do governo, os centros populares de cultura se multiplicaram nesta poca. Como observa Silvana Garcia:

    Nos anos imediatamente anteriores ao golpe militar de 1964 (...) acreditava-se que estvamos a um passo de uma mudana histrica e que era preciso usar de todos os recursos para fazer nascer o esprito da luta adormecido na entidade povo. Com garra e iluso, os Centros Populares de Cultura multiplicaram-se rapidamente em menos de trs anos (...).27

    Desse modo, Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha), juntamente com outros artistas fundam o Centro Popular de Cultura (CPC), com sede na Unio Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, que mais tarde, tambm, agrega outras expresses artsticas como cinema, literatura e artes plsticas.

    26 Roberto Schwarz. Cultura e Poltica, 1964-1969 In: O pai de famlia e outros estudos. Rio de Janeiro,

    1978: 69. 27

    Silvana Garcia. Teatro da militncia. So Paulo, Perspectiva, 1990: 89.

  • 17

    Como o objetivo do CPC era de entrar em contato com outros pblicos populares fora do mbito da classe mdia da zona sul carioca,28 definiu-se que um modo

    interessante de atingir esse objetivo seria o desenvolvimento do teatro-ambulante apresentado na rua. Com isso, surge o setor de teatro de rua, dirigido por Joo das Neves, a

    partir de 1961. Basicamente, o recurso utilizado pelo teatro de rua do CPC era a forma de teatro de agit-prop.29 De acordo com Joo das Neves, a utilizao dos recursos de agitao e propaganda foi o modo mais vivel elaborado pelo CPC para atingir uma comunicabilidade gil e ampla com o pblico.30 Dentro desta estrutura, a criao das esquetes privilegia, segundo Joo das Neves, as formas teatrais presentes nas manifestaes populares, tais como o reizado, o bumba-meu-boi, o mamulengo, os palhaos e a commedia dellarte.31

    O CPC foi criado dentro de uma srie de movimentos de cultura e campanha de

    alfabetizao de adultos que utilizavam a cultura popular como ponto de partida e meio para a transformao da sociedade.32 Uma das crticas realizadas ao CPC refere-se, direta

    ou indiretamente, ao Manifesto do CPC da UNE, organizado por Carlos Estevam Martins, em 1962. Uma das interpretaes possveis deste manifesto o cunho vertical e autoritrio com que trabalhavam a idia de povo.33 Cabe ressaltar ainda que nem todos os

    28 Silvana Garcia, op. cit.: 102.

    29 O teatro de agit-prop foi desenvolvido pioneiramente na Unio Sovitica pelos operrios e incorporado

    pelo Estado sovitico, no incio do sculo XX, com o objetivo de educar e mobilizar os agentes para a tarefa revolucionria. Segundo Silvana Garcia: O teatro de agit-prop explicita nos seus procedimentos os seus objetivos: informar e, decorrente da informao, educar e mobilizar para a ao. Para tanto no dissimula a utilizao de recursos cnicos (...) e no esconde sua pretenso de manipular (ou estimular) a vontade do espectador. Ibidem: 20. 30

    Cf. Joo das Neves em entrevista concedida Vera Candido apud: Silvana Garcia, op. cit.: 103. 31

    Cf. Joo das Neves em entrevista concedida Vera Candido apud: Maria do Perptuo S. C. Marques. Yurai: um afluente da dramaturgia de Joo das Neves. So Paulo, Dissertao de Mestrado em Comunicao e Semitica, PUC-SP, 1997: 7. 32

    Esses movimentos foram criados entre 1960 e 1964. Parte deles foi influenciado pelo radicalismo catlico, que concebia a cultura popular, a base e o ponto de partida para conscientizao e politizao das massas. Como exemplo, podemos indicar: o MCP de Pernambuco e o mtodo de alfabetizao de Paulo Freire. A este respeito ver: Vivian Schelling. A presena do povo na cultura brasileira: ensaio sobre o pensamento de Mrio de Andrade e Paulo Freire. Campinas, Editora da Unicamp, 1990. 33

    Vivian Schelling faz a seguinte crtica: Os CPCs se viam, leninistamente, como vanguarda cultural, cuja finalidade era esclarecer o povo sobre seus verdadeiros interesses (...) os CPCs estavam menos preocupados com a atitude autoritria implcita em sua postura. Para os idelogos dos CPCs, a cultura popular diferia da arte do povo (...) Distinguia-se tambm da arte popular, (...) sendo [esta], segundo eles, privada de uma autntica qualidade artstica. Sua funo era de mera distrao e entretenimento (...). A prtica artstica

  • 18

    integrantes do CPC concordavam com a redao do Manifesto. A propsito, citamos a ressalva de Joo das Neves:

    Esse manifesto do CPC, na verdade, foi um manifesto escrito por uma corrente do CPC muito ligada causa de Carlos Estevam Martins. O autor desse projeto-manifesto, alis, o Carlos Estevam Martins. As idias so basicamente dele, e eram idias muito discutidas no CPC, muito criticadas tambm. Tudo o que estava no anteprojeto do manifesto, que era na base da cultura popular, da cultura popular revolucionria, aquilo l tudo furado e, na minha opinio, j era furado desde aquela poca, e havia uma discusso interna. Aquilo era um manifesto para discusso interna. Com o golpe, com o incndio no prdio da UNE, etc., aquele manifesto que estava sendo discutido foi o que sobrou. Ento (...) a maioria das pessoas que tm escrito sobre o CPC, em vez de ir s fontes primrias, se baseiam naquele manifesto pura e simplesmente, como se aquilo fosse a prtica do CPC. No. Aquilo era obviamente uma corrente forte dentro do CPC, uma parte da prtica do CPC, mas no era nem a prtica do CPC na sua totalidade nem era o pensamento majoritrio do CPC. Era uma das correntes de pensamento (...). Como no temos documentos, se perderam no incndio, e como muitas pessoas j desapareceram, alguns at se recusam a falar sobre o CPC, por razes que no me interessam. Renegam, ento fica complicado.34

    A despeito do resultado esttico das suas encenaes e de uma certa indefinio em relao arte popular, o CPC foi um centro que contribuiu para o questionamento da funo da arte e do artista. O papel do CPC, ao levar s classes populares uma idia crtica dos problemas sociais atravs de meios artsticos, corresponde a uma tentativa de avaliar os seguintes questionamentos: como o artista pode expressar seu engajamento? Atravs de que contedos e meios ? Que tipo de identidade deveria assumir o artista num contexto subdesenvolvido?.35 De qualquer forma, essa maneira de fazer arte foi definitivamente proibida, com o golpe militar de 1964. A interrupo abrupta do CPC transformou-o em uma prtica abortada, isto , o projeto ainda em desenvolvimento se extinguiu de um dia

    defendida pelos CPCs, portanto, correspondia a tipos especficos de arte engajada: a cultura popular propriamente dita era definida de modo reducionista como a apropriao dos meios de produo cultural para fins polticos. Ver: Vivian Schelling, op. cit.: 271-272. 34

    Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004. 35

    Estas questes foram levantadas pelos modernistas e surgem, novamente, nesta poca. A esse respeito ver: Vivian Schelling, op. cit:.: 273.

  • 19

    para o outro, o que impediu possveis reflexes e reparos caso tivessem tido a oportunidade de amadurecer sua teoria e prtica.36

    2.3 O golpe militar e a resistncia do grupo Opinio.

    Golpes militares foram articulados em diversos pases da Amrica Latina com o apoio do governo estadunidense, na tentativa de conter o avano sovitico nessa regio, desarticular os movimentos populares e promover o desenvolvimento capitalista. Sob o comando dos militares, o Estado brasileiro deu seqncia poltica de desenvolvimento nacional, inserindo a economia brasileira no processo de internacionalizao do capital, crescimento do mercado interno e fortalecimento do parque industrial.

    Represados os movimentos e centros de cultura popular, o acesso das classes

    populares ao embate poltico-cultural, bem como a sua participao no projeto para a derrubada da ditadura havia sido obliterado.37 Diante disso, os grupos de teatro engajado encontram na classe mdia de esquerda um importante mercado que ir se sustentar pelo menos at o final da dcada de 1960. Como observa Roberto Schwarz:

    Cortadas naquela ocasio as pontes entre o movimento cultural e as massas, o governo Castelo Branco no impediu a circulao do iderio esquerdista, que embora em rea restrita floresceu extraordinariamente.38

    Nesse sentido, de 1964 at 1968, artistas, estudantes e intelectuais, apesar de estarem proibidos de se envolver em projetos culturais para uma maioria, acreditavam na retomada do contato e a rearticulao do movimento para a derrocada da ditadura. Um dos

    autores mais pesquisados pelos artistas, apesar da ditadura conservadora que assolava o

    36 Segundo In Camargo Costa, (...) as histrias disponveis sobre o teatro de agit prop (...) do conta de trs

    momentos: num primeiro, estudantes e intelectuais simpatizantes da causa socialista criam organizaes como o CPC, no segundo, os trabalhadores das mais variadas profisses aderem e os grupos se multiplicam geometricamente. O caso brasileiro tem a singularidade de ter passado para o terceiro momento a derrota sem ter conhecido a experincia especfica do segundo. Cf. In Camargo Costa, op. cit.: 96 37

    Assim, a dissoluo do CPC com o incndio do prdio da UNE e a priso e tortura de diversos membros de organizaes que tinham contato direto com operrios e camponeses, foi uma estratgia fundamental para a consolidao do golpe militar. 38

    Roberto Schwarz, op. cit.: 62.

  • 20

    Brasil, foi Bertolt Brecht. O teatro Oficina, por exemplo, nos primeiros anos da ditadura, mesmo no abordando diretamente os problemas da sociedade brasileira, o que justifica a no incluso de uma dramaturgia nacional em seu repertrio, revela em suas encenaes um teatro com forte preocupao poltica que passa a ter, como uma das principais fontes

    tericas, as peas e textos de Brecht,39 realizando as seguintes montagens: em 1964, Pequenos burgueses, de Gorki, e Andorra, de Max Frisch, que refletiam, indiretamente, a atualidade da realidade brasileira. E, em 1966, aps passar por problemas com a censura, encena Os inimigos, de Gorki.

    Como faltava, aos censores, uma organizao mais eficiente, e o autoritarismo

    ainda no se impunha com toda a sua prepotncia, verifica-se que os quatro primeiros anos de ditadura foram marcados no s pela organizao do movimento estudantil (1967), como tambm por uma efervescncia cultural que alimentou ainda mais o anseio da

    juventude por mudanas de ordem poltica e moral. Como observa Zuenir Ventura:

    a conjuntura poltica ajudava a ascender a imaginao revolucionria: o desgaste do governo militar era crescente (...) no aparecera ainda o milagre brasileiro (...) e uma grande descrena tomava conta da juventude em relao aos partidos polticos legais, o MDB e o Arena (...) o acmulo poltico, cultural, terico, social e emocional, aparentemente consistente, impedia o recuo.40

    Apesar de o autor nacional poder manifestar-se somente atravs de aluses indiretas, analogias e metforas,41 verifica-se que, nessa poca, os grupos de teatro da resistncia concebiam espetculos como uma forma de reao para questes polticas, de modo muito imediato e, ao mesmo tempo, utilizando uma linguagem mais indireta e complexa. Dentro do movimento de espetculos teatrais do eixo Rio-So Paulo, observa-se que, logo aps o golpe, realizam-se espetculos sem a participao de textos de autores

    brasileiros contemporneos.42

    39 Segundo Yan Michalski, em 1965, O Oficina no monta[ou] nenhum espetculo novo: passa[ou] o ano

    viajando com Pequenos burgueses, estudando em profundidade a obra e as teorias de Brecht (...). Cf. Yan Michalski. O teatro sob presso. Rio de Janeiro, Zahar, 1985: 23. 40

    Zuenir Ventura. 1968: o ano que no terminou. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1988: 66. 41

    Cf. Yan Michalski, op.cit.: 27. 42

    Ibidem.

  • 21

    Seria em dezembro de 1964 que apareceria a primeira tentativa de responder ao golpe: a apresentao do Show Opinio, no Rio de Janeiro. O enfoque dado msica

    popular, nesse espetculo, possibilitou relanar compositores, como Joo do Vale e Z Ketti, desconhecidos do pblico que assistia apresentao e al-los ao lado de uma

    intrprete de classe mdia alta, como Nara Leo. A mistura de dois estilos, samba de raiz e bossa-nova, at ento distintos, representou a ruptura que essa gerao, progressivamente proclamava, dos valores e verdades at ento inquestionveis.43 O Show foi dirigido e produzido por diversos artistas do antigo CPC que, a partir de ento, passaram a formar o Teatro Opinio.44 Alm de Joo das Neves, participavam do grupo Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, Denoy de Oliveira, Tereza Arago, entre outros. Dessa formao inicial, Joo das Neves ser o nico que permanecer no grupo at 1980, poca em que o grupo encerra suas atividades.

    A repercusso do Show Opinio representou a abertura do teatro da resistncia, um teatro que, embora cada grupo articulasse sua prpria linguagem da resistncia, tinha

    como base os aspectos da cena poltica da poca. Desse modo, para o coletivo de artistas que dirigiam o Opinio, na dcada de 60, era fundamental responder, em seus espetculos, diretamente ditadura.45 Como salienta Joo das Neves:

    A ditadura obriga a que quase todas as formas de expresses artsticas brasileiras, nos teatros, nas msicas, nas artes plsticas, nos cinemas, se voltem como uma forma de reao para questes sociais muito prementes, imediatas. O aspecto poltico do momento ressalta muito o combate ditadura, a luta pela liberdade, uma srie de coisas muito fortes. (...) Naquele momento, ou voc tinha um

    43 Segundo Helosa Buarque de Hollanda, apesar de o Show manter o iderio populista da poca anterior, o

    pblico que se formara a partir deste show comea, progressivamente, a desconfiar dos discursos fechados e simblicos das certezas, verdades e palavras de ordem. Cf. Helosa Buarque de Hollanda. Impresses de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960/1970). So Paulo, Ed. Brasiliense,1981: 35. 44

    In Camargo Costa observa que o Show foi escrito por um coletivo de artistas, seguindo os moldes de produo do CPC, isto , atravs de colagem, superposio de planos, narrativa e dramatizao. Misturavam-se as influncias do teatro de rua, da poesia oral e do cinema-verdade. Ver: In Camargo Costa, op.cit.. Segundo Yan Michalski, o Show Opinio lanou a frmula de colagem litero-musical que seria cada vez mais utilizada pelo teatro da resistncia. Ver: Yan Michalski, op.cit. 45

    Em relao atitude do artista brasileiro diante do fazer teatral, no final dos anos de 1960, Oduvaldo Vianna Filho esclarece: Consciente de si, do seu mundo, marca sua liberdade, inclusive realizando obras que so necessrias s por um instante (...) deixando para a histria no a obra mas a posio. apud: Fernando Peixoto (org.). Vianinha, teatro, televiso, poltica. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1983: 106-107.

  • 22

    teatro que se engajava cada vez mais num tipo de apresentao que respondia diretamente ditadura, ou voc tinha um teatro que, pelo contrrio, (...) respondia agressivamente a uma situao com a qual ele no concordava. Mas tambm no falavam diretamente, voltando-se contra a classe que, digamos assim, teria gerado essa situao.46

    Nessa perspectiva, os grupos de teatro Arena, Oficina e Opinio se destacaram pelo desenvolvimento de uma pesquisa esttica que, embora distinta para cada grupo, tinha como base os aspectos da cena poltica da poca.47 Verifica-se que, a partir do Show Opinio os espetculos de teatro poltico voltam-se predominantemente para a chamada esquerda festiva, ou seja, o pblico freqentador passa a ser predominantemente de estudantes, artistas e intelectuais.

    Se, por um lado, dentro do golpe, o iderio de esquerda no foi vivel para as massas, por outro, o papel dos estudantes, artistas e intelectuais foi fundamental para

    instaurar um combate incisivo a essas restries, pelo menos, em um determinado perodo da ditadura.

    Com a retomada da organizao estudantil, a esquerda, no Brasil, mesmo sem um projeto comum que unisse as diferentes tendncias, basicamente era composta entre os que defendiam o enfrentamento imediato e os que propunham o acmulo de foras. Esses posicionamentos corresponderam, inclusive, aos adotados pelos representantes da classe teatral, os quais combatiam a ditadura. Nesse sentido, podia-se deparar, de um lado, com o radical Jos Celso e, de outro lado, com o moderado Joo das Neves. At mesmo os artistas que no tomavam partido em relao s correntes de esquerda, os expressivos ou representativos,48 tambm sujeitos a terem seus espetculos censurados, apoiavam as manifestaes contra a ditadura.

    46 Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004.

    47 Destacamos esses trs grupos, tomando como referncia a produo vinculada prtica teatral de grupos

    que buscavam fazer uma crtica incisiva ditadura militar. Logicamente, havia outros grupos e espetculos eminentemente comerciais. A respeito dos espetculos apresentados na dcada de 60, no eixo Rio-So Paulo, ver: Yan Michalski, op.cit. 48

    Os termos radical e moderado, assim como expressivos e representativos so expresses utilizadas por Zuenir Ventura para classificar a tendncia geral do teatro no envolvimento poltico no Brasil. Ver: Zuenir Ventura, op.cit.

  • 23

    A politizao dos artistas, estudantes e intelectuais compunha parte de um quadro combativo ideologia burguesa, que se configurou, de modo geral, no mundo

    ocidental. O debate poltico mobilizava, sobretudo, a juventude, que contestava os valores morais de instncias diversas poltico-ideolgicas, sexuais, comportamentais que

    refletiam os valores burgueses.

    Nesta poca, no grupo Opinio, Joo das Neves exerce sua atividade de ator e faz seu primeiro trabalho de direo em 1966 com o espetculo Jornada de um imbecil at o entendimento (texto de Plnio Marcos) e dois anos depois, em 1968, encena A sada! onde fica a sada? (roteirizado pelo grupo Opinio, formado por: Armando Costa, Denoy de Oliveira, Ferreira Gullar, Joo das Neves, Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Pichin Pl, Tereza Arago).

    Um dos aspectos importantes da organizao do grupo Opinio refere-se ao

    trabalho de direo coletiva, processo que comea a guiar novos grupos a partir da dcada de 60 e ir ser um dos aspectos importantes da formao de novos grupos da dcada de 70. De fato, no Opinio, havia assinatura final do diretor, mas todos os integrantes definiam, de certo modo, a estrutura do espetculo, como observa Joo das Neves:

    Quando saram Vianinha, Armando Costa e o Paulo Pontes do grupo, a gente estava exatamente numa ciso. Ns tnhamos dois espetculos, que eram duas linhas inteiramente diferentes. O Meia-Volta vou ver era um besteirol poltico, digamos assim, e o Sada!, onde fica a sada? tratava da possvel deflagrao da Terceira Guerra Mundial em cima da corrida armamentista nos Estados Unidos, em cima daquele livro do Fred J. Cook. (...) Eu me lembro que eu dirigia essa pea (...) e como dirigi essa encenao no Opinio (...) eu queria colocar muita coisa. No me deixaram colocar, fazer; porque a gente discutia muito, (...) porque a ao artstica era meio coletiva. (...) Ento eu me lembro de uma cena que o [Carlos] Verezza fazia, que eu achava tima. Acho que eles a achavam muito agressiva e no entrou a cena. No entrou: cortaram a cena (...).49

    49 Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004.

  • 24

    2.3.1 Os anos de chumbo e as divergncias do grupo Opinio.

    Se a censura, nos quatro primeiros anos de ditadura militar, no estava to organizada e no havia a quantidade de censores necessria para silenciar todas as

    manifestaes culturais ao mesmo tempo da que os censores alternavam, por pocas, a manifestao artstica a ser censurada50 a partir de 1968, com a implementao do Ato Institucional nmero 5 (AI-5),51 as organizaes de esquerda se desestruturam. O decreto era incisivo ao afirmar que as manifestaes artsticas, assim como outras manifestaes da esfera poltica, passariam a representar um incmodo para a proposta social dos militares.

    No teatro, o AI-5 desencadeou um refluxo da produo cultural engajada, que passou a ser expressamente coibida pela represso ideolgica e poltica que continua a se

    manifestar de forma acentuada no governo Mdici. A censura atuava incisivamente contra determinado tipo de criao teatral e, para impedir a veiculao de um espetculo, recorria

    aos mtodos de perseguies, torturas a artistas e at invases de teatro, como foi o caso do espetculo Roda Viva, encenado por Jos Celso, em 1968. A manuteno dos trs grupos teatrais Arena, Oficina e Opinio e o desenvolvimento de outros grupos com uma perspectiva de crtica social ficaram cada vez mais difceis em face do aumento de conflitos e de violncia impostos pela censura militar.

    Desse modo, o fim da dcada de 60 foi marcado por um nmero pequeno de

    50 Durante o regime militar, a Revista de Cultura Vozes, por exemplo, persistiu em criticar e condenar, em

    seus artigos, certos atos do regime militar, como a censura, a perseguio queles que se manifestavam contra o regime, ou ainda, imposio do AI-5. Esse tipo de posio da Revista podia ser considerado bastante audacioso, tendo em vista as tenses conseqentes desse ato na poca. A explicao para essa manifestao, em regime de silncio, que os censores deixavam passar, por impossibilidade de dar conta de todas as manifestaes culturais em todos os meios, aquela manifestao dos meios que no estava sob sua lupa naquele momento. Isso mudou com o governo Mdici, sobretudo a partir de 1972, quando passou a existir, digamos, uma maior profissionalizao da censura. 51

    O AI-5 foi decretado no dia 13 de dezembro de 1968 pelo governo Costa e Silva (1967-1969). Em 1969, a partir do governo Mdici (1969-1974), a represso, a censura, a tortura e o exlio cresceram de forma acentuada. O perodo deste governo tornou-se conhecido como os anos de chumbo. Segundo Zuenir Ventura: Em dez anos de vigncia (...) o AI-5 desenvolveu um implacvel expurgo nas obras criadas. Em dez anos, cerca de 500 filmes, 450 peas de teatro, 200 livros, dezenas de programa de rdio, 100 revistas, mais de 550 letras de msica e uma dzia de captulos e sinopses de telenovela foram censurados. Cf. Zuenir Ventura, op. cit.: 285-286.

  • 25

    lanamentos teatrais e uma reduzida presena de espectadores. importante ressaltar que o Estado autoritrio, ao mesmo tempo que manteve o seu interesse em eliminar os setores

    que lhe poderiam oferecer alguma resistncia, indiretamente estimulou um determinado uso da manifestao artstica, desassociada da esfera poltica. Assim, a Lei de Segurana

    Nacional, decretada em 18 de setembro de 1969, que previa a moralizao da sociedade, foi uma maneira de tornar legal o controle das atividades sociais e beneficiar determinados produtos industrializados de cunho estritamente comercial que, por sua lgica, baseada na idia de venda, tende a neutralizar questes de cunho poltico. Um dos aspectos significativos do desenvolvimento do Brasil, sob o comando dos militares, foi o crescimento dos produtos industrializados, incluindo-se o aparato da indstria cultural juntamente com o processo de despolitizao da sociedade.52

    Na trajetria do Opinio, alm das divergncias internas que sempre existiram por se tratar de um trabalho coletivo, nem sempre havia um consenso a respeito de um encaminhamento do espetculo , havia tambm a falta de recursos financeiros e a

    dificuldade de lidar com os problemas da censura. A respeito da desintegrao do grupo, Joo das Neves observa seu motivo mais notvel:

    (...) foi a questo econmica, basicamente. A questo econmica, como acontece at com a separao de todo casal, comea a deteriorar o casamento. Muitas vezes o elemento deflagrador de todos os problemas que esto afogados e que pode ser difcil superar. (...) O nosso caso foi exatamente assim. A questo econmica era um (dos motivos), basicamente. E a questo tambm da censura, da perseguio poltica e do cansao tambm, porque a gente ficava 24 horas por dia trabalhando, ou em funo do grupo ou em funo dos problemas polticos, fazendo manifesto. Todo o Opinio, todo mundo, todos os territrios iam pra l, (procurar) o nosso mimeografozinho, que j tinha vindo do CPC. (...) Os

    52 Concomitante ao processo de despolitizao da sociedade de se levar em conta que a poca da ditadura foi

    um momento da histria brasileira quando foram mais produzidos e difundidos os bens culturais. No final dos anos 1960 e incio da dcada de 1970, o crescimento da cultura de massa era percebido em diversos setores. Entre eles se destacavam: o setor livreiro e editorial, a partir do crescimento do mercado de livros e revistas; a produo cinematogrfica e o crescimento das salas de cinema, o desenvolvimento acentuado do mercado fonogrfico e o desenvolvimento da televiso que, atravs de grupos privados e com o investimento do Estado, consolidava, pela primeira vez, a integrao do mercado. Cf. Renato Ortiz. A moderna tradio brasileira. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1988.

  • 26

    manifestos da poca passaram todos por aquele mimegrafo, ou no Opinio ou na casa do Nelson Werneck [Sodr]. (...) Ento, outro motivo foi o cansao tambm, fsico, espiritual, de perseguio.53

    Como a censura aos textos nacionais havia aumentado consideravelmente, percebe-se que, entre os anos de 1969 e 1974, na maioria das montagens dirigidas por Joo das Neves, o autor nacional se ausentava.

    3. Joo das Neves e o teatro brasileiro na dcada de 70.

    A censura aos textos e aos espetculos teatrais, promovida pela ditadura militar, a partir de 68 at meados dos anos 70 fez com que, na concepo de muitos crticos e artistas, a atividade artstica passasse por uma espcie de vazio cultural.54 Apesar de tudo, em meio aos anos de chumbo, o grupo Opinio reerguido, embora no mais com a

    caracterstica de um coletivo de artista. Joo das Neves organiza um concurso nacional de dramaturgia a partir da seleo e leituras pblicas de nove peas eram no total 200 peas, 250, do Brasil inteiro, uma vez que este era o nico concurso de dramaturgia no Brasil.55 Em uma das leituras dessa pea, Joo das Neves conhece pessoas ligadas ao trabalho da Westdeutscher Rundfunk e, a partir de ento, so estabelecidos vnculos entre o grupo Opinio e esta instituio. Algumas peas foram traduzidas e radiofonizadas na Alemanha e, no Brasil. O grupo organiza um seminrio de peas radiofnicas. Segundo o autor:

    O seminrio de peas radiofnicas contou com diretores de radiofonia da Alemanha. Inicialmente, o seminrio era s no Opinio. Depois ns conseguimos contatos com a Rdio e TV Cultura de So Paulo. Fizemos at uma publicao especial com anlise de peas radiofnicas e com uma pea radiofnica traduzida.

    53 Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004.

    54 Como salienta Carlos Nelson Coutinho: Se antes de 67 nunca tivemos propriamente um teatro que falasse

    ao povo, tnhamos ao menos um teatro que falava ou tentava falar do povo, de seus problemas, de suas angstias e aspiraes. De repente, no entanto, mais violento que a censura e os censores baixou em nossos palcos e em nossas cabeas o espectro da auto-censura. Cf. Carlos Nelson Coutinho. No caminho de uma dramaturgia nacional-popular In: O ltimo carro: anti-tragdia brasileira de Joo das Neves (4 ed.). Rio de Janeiro, Grupo Opinio, s/d: 5. Sobre esta questo ver comentrio de Yan Michalski, que considera o ano de 69 como talvez o (...) mais trgico de toda histria do teatro brasileiro. Op. cit.: 33. 55

    Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004.

  • 27

    (...) Conseguimos uma verba da Westdeutscher Rundfunk para fazer isso. Fizemos um seminrio e editamos, em uma revista especial sobre peas radiofnicas, uma pea de Martin Walser traduzida para o portugus. Ento comeou a surgir essa ligao que me levou, depois, pra Alemanha. 56

    Em 1974, Joo das Neves, junto com outros atores, funda, na cidade de Salvador (BA), o Opinio Ncleo 2, instalado no Instituto Goethe. Nesse ncleo, Joo das Neves encena Um homem um homem, de Bertolt Brecht, e A visita, de Martin Walser.57

    Em meados dos anos de 1970, Joo das Neves volta ao Rio de Janeiro para montar O ltimo carro. Esta pea havia sido escrita por ele mesmo, em 1964, logo aps o golpe, e premiada, em 1967, pelo Seminrio Carioca de Dramaturgia, organizado por Luza Barreto Leite. No entanto, a encenao foi realizada pelo prprio autor, doze anos depois da verso original do texto. A grande repercusso e sucesso de pblico e crtica, na poca

    em que o teatro passava por uma fase melanclica, significa um aspecto de que a inquietao nunca deixou de existir.58

    A produo teatral, durante o Governo Mdici (1969-1974), desenvolve-se na ausncia ou na dissoluo de grupos teatrais e num momento no qual se verifica tambm o baixo ndice de espectadores por encenao.59 O teatro poltico sacrificou, a partir do AI-5, o seu discurso combativo. Segundo Maringela Alves de Lima:

    Aos grupos que se formam nesta poca, sobretudo a partir do governo Mdici, restara a dura tarefa de fazer um teatro militante sem a correspondente esperana de uma transformao poltica em

    56 Cf. Joo das Neves em entrevista concedida autora em outubro de 2004. O trabalho a que Joo das Neves

    se refere fazia parte de um projeto mais amplo, patrocinado pela Fundao Konrad Adenauer e desenvolvido junto com o Instituto Goethe, que incluiu vrios seminrios de peas radiofnicas (no Rio de Janeiro, em So Paulo e em Porto Alegre), acompanhados de concursos para autores brasileiros. Os prmios consistiam na compra dos textos pela emissora alem e na sua produo, em verses traduzidas, e sua transmisso pela WDR de Colnia. Outro fruto desse projeto foi o livro de George Bernard Sperber (org.): Introduo Pea Radiofnica. Seleo, traduo e notas de George Bernard Sperber. So Paulo: EPU, 1980. 57

    Esses dados foram obtidos da dissertao de mestrado de Maria do Perptuo S. C. Marques, op. cit.: 8. 58

    Cf. Fernando Peixoto. Teatro em pedaos (2a.ed). So Paulo, Hucitec, 1989: 197. 59 A respeito da crise que se estabeleceu no teatro desta poca ver: Yan Michalski, op.cit.

  • 28

    um futuro prximo.60

    Novos grupos comeam a despontar, em maior escala, somente em meados da dcada de 1970, tendo, em comum, um projeto coletivo de teatro. Verifica-se que os grupos de teatro poltico desenvolvem suas atividades na periferia, como meio de alcanar um pblico popular e de se desviar da censura, uma vez que esta se concentrava no circuito exibidor de espetculos.61

    Em meados da dcada de 1970, Joo das Neves aprofunda o trabalho entre o texto literrio e a cena. importante considerar esse aspecto, pois alm de O ltimo carro, os quatro textos escritos nessa poca O quintal, Mural mulher, Caf da manh, A pandorga e a lei alm de abordarem, ora de modo mais explcito, ora de maneira mais metafrica, um posicionamento pelo fim do golpe ou, ainda, a reivindicao da liberdade

    como direito inalienvel, apresentavam recursos teatrais extra-literrios que ajudariam a compor uma estrutura de teatro pico. Ou seja, a utilizao de recursos cinematogrficos e sonoros, nessas encenaes, forneceria outros pontos de vistas, alm da narrativa do texto literrio. de se notar que os textos produzidos por Joo das Neves, em especial O quintal, Mural mulher e A pandorga e a lei, foram censurados na poca em que foram escritos. O quintal foi encenado pela primeira vez em Londrina, em 1980; Mural mulher tambm foi encenado, em 1979, no Rio de Janeiro; j A pandorga e a lei, ainda no encenada no Brasil, foi apenas radiofonizada na Westdeutscher Rundfunk, em 1987.

    Entre 1978 a 1980, Joo das Neves parte para a Alemanha,62

    quando ganha uma bolsa de estudos fornecida pela Westdeutscher Rundfunk para a sesso de Hrspiel (peas radiofnicas) em Colnia, alm da bolsa de estudos fornecida pela Fundao Konrad Adenauer, para a prtica de cincias teatrais em Berlim, Mnchen e Colnia. Retorna para o Brasil, em 1980, e realiza o ltimo espetculo do grupo Opinio, com a montagem de Caf da manh.

    60 Cf. Maringela Alves de Lima. Os grupos ideolgicos e o teatro na dcada de 1970 In: Carlinda F. P.

    Nuez et al. (org.). O teatro atravs da histria. Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil,1994: 238-239. 61

    Ibidem. 62

    Juntamente com Germano Blum e Fernando Peixoto.

  • 29

    3.1 Anos 60 e 70: a matriz do processo de criao de Joo das Neves.

    Como foi visto, Joo das Neves inicia sua atividade no teatro numa poca de grandes transformaes sociais. A poltica populista e o desenvolvimento industrial, da

    dcada de 50, culminaram em intensas manifestaes populares de forte cunho nacionalista. No teatro, a busca da fuso da esfera esttica com a esfera poltica coloca questes ao artista, referentes funo e produo da arte. Nesse processo, a dramaturgia nacional se destaca e privilegia temas ligados cultura popular e s condies das classes populares. Grupos de teatro, centros culturais e movimentos populares pesquisam novas formas que comportam a temtica social, especialmente no que diz respeito s classes populares, e se dirigem a um novo pblico. O teatro poltico-engajado se delineia como a mais nova tendncia do moderno teatro brasileiro.

    Mesmo na ditadura, acreditava-se, pelo menos nos quatro primeiros anos, na eficcia de um teatro poltico enquanto meio de transformao social ou pelo menos um

    meio questionador da estrutura poltica vigente. Apesar da intensificao da censura, ecos de um teatro crtico da realidade brasileira continuam na dcada posterior, com o destaque para o artista Joo das Neves que, dando continuidade ao grupo Opinio, desenvolve textos e espetculos a partir de temas referentes ao contexto poltico-social dos oprimidos.

    O envolvimento de Joo das Neves com a prtica teatral, no perodo da ditadura militar, revela, de certo modo, a tentativa de estabelecer um dilogo potico e crtico com o espectador. Assim, destacamos o intervalo entre as dcadas de 1960 e 1970, como a conjuntura de formao da matriz que atualmente delineia a dramaturgia e encenao de Joo das Neves. Suas peas escritas nesta poca apontam uma preocupao em fazer do espao cnico uma ponte com a realidade social, convidando o espectador a redimensionar a realidade. A obra dramatrgica de Joo das Neves, provinda de uma prtica de teatro

    poltico e engajada, um meio importante de analisar alguns elementos cnicos que contribuem para uma participao ativa do espectador no s cnico como social.

    Vejamos, como essas questes aparecem nos textos elaborados por Joo das Neves, entre as dcadas de 1960 e incio de 1980.

  • 31

    CAPITULO 2: UMA DRAMATURGIA CONSCIENTE DE SEU TEMPO

    1. Introduo

    Antes de darmos incio s anlises dos textos produzidos por Joo das Neves, entre meados da dcada de 1960 e idos de 1980,63 ressaltamos que a idia de refletir sobre a sua obra tambm motivada pelo fato de ter sido pouco explorada em estudos, a despeito de sua longa trajetria como dramaturgo, ator e encenador.64 H, atualmente, apenas um estudo mais sistematizado sobre a obra de Joo das Neves, realizado por Maria do Perptuo S. C. Marques.65 Nessa pesquisa, a autora registra o processo de criao dos trs textos encenados pelo grupo Poronga, do Estado do Acre, em meados da dcada de 80 e comeo da dcada de 90 Cadernos de Acontecimentos (1987), Tributo a Chico Mendes (1988) e Yurai: o rio do nosso corpo (1992).66 Verifica-se, nessa dissertao, o interesse de Joo das Neves pela utilizao de mdias das comunidades locais, como rdio e jornal, os depoimentos e causos relatados pela populao, para elaborar as suas encenaes. A dissertao revela, tambm, o interesse do dramaturgo pela tematizao dos conflitos polticos e sociais.67

    63 Os textos so os seguintes: O ltimo carro, O quintal, Mural mulher, Caf da manh e A pandorga e a lei.

    64 A produo de Joo das Neves bastante extensa e diversificada. Alm dos textos acima citados, a partir da

    dcada de 1990, Joo das Neves passa a encenar seus espetculos a partir de adaptao de livros e contos como: Primeiras estrias (1992 e 1995) Pedro Pramo, Trocos e destroos (1998), O homem da cabea de papelo (2001) e Cassandra (2002). O autor dedica-se tambm sua produo para o pblico infantil, escrevendo teatro e prosa para crianas, como, por exemplo: A lenda do Vale da Lua (1975), O leiteiro e a menina noite (1980), Leonardo e o p grande (1983), A histria do boizinho estrela (1984), A rvore cheia de estrelas (1987), entre outros. Alm de espetculos e da produo dramatrgica, Joo das Neves encena peras, assina a direo artstica de shows e poeta. 65

    Maria do Perptuo S. C. Marques, op. cit. 66

    Em 1987, Joo das Neves parte para a cidade de Rio Branco (AC), para realizar uma oficina de teatro. Em sua estada nessa cidade, ele escreve Cadernos de acontecimentos que encenado no encerramento da oficina neste mesmo ano. Com a morte do lder sindicalista Chico Mendes, em 1988, o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) solicita ao dramaturgo um texto referente a este assunto. Nesse ano, Joo das Neves escreve e encena Tributo a Chico Mendes e, com esse espetculo, funda o Grupo Poronga de Teatro. No mesmo ano, Joo das Neves retorna ao Rio de Janeiro e encena A missa dos quilombos, de Milton Nascimento, Pedro Tierra e D. Pedro Casaldglia. Ao retornar para o Acre, aps ter obtido uma bolsa da Fundao Vitae, parte para uma vivncia na aldeia dos ndios Caxinauw, que culminou na criao do texto Yurai o rio do nosso corpo. 67

    Ver: Maria do Perptuo S. C. Marques, op. cit.

  • 32

    Entretanto, essa nica pesquisa, realizada quando Joo das Neves trabalhou durante alguns anos no Estado do Acre, deixa em aberto a investigao mais aprofundada

    sobre os recursos que o autor utiliza, em outras obras para evocar uma tomada de posio poltica e tambm para representar coletividades oprimidas. Assim, tentaremos relacionar

    aqui os recursos tanto aqueles que fazem parte da prpria estrutura dos textos, bem como os recursos extra-literrios utilizados pelo autor que contribuem para o desenvolvimento de sua dramaturgia do espao, como assim definida pelo prprio autor.68 Feitas essas observaes, tratemos de realizar a anlise dos textos.

    2. Anti-tragdia brasileira: O ltimo carro ou As 14 estaes.

    O ltimo carro uma das obras de Joo das Neves de maior sucesso e repercusso. Foi escrita em 1964,69 premiada em 1967 e encenada, pela primeira vez, em 1976, no Teatro Opinio no Rio de Janeiro. Um dos mritos que consagrou esta encenao reside no espao cnico do espetculo. Indita em nossos palcos, a disposio espacial de O ltimo carro inaugura um novo contato com os espectadores ao dispor o cenrio do trem em volta da platia e posicionando o pblico em bancos que faziam parte dos vages contribuindo, desta forma, para o desenvolvimento da encenao e para o teatro brasileiro

    como arte especfica.70

    68 O termo dramaturgia do espao foi utilizado por Joo da Neves em sua exposio proferida no evento Em

    Cena a Arte da Cena em comemorao aos 20 anos do grupo LUME, em outubro de 2005. 69

    Em diversos textos da historiografia do teatro brasileiro, a pea O ltimo carro aparece com a data de criao entre os anos de 1965 e 1967. Entretanto, decidimos manter a data de 1964, por ser esta a data declarada por Joo das Neves na entrevista em que ele nos concedeu: (...) quando houve o golpe, ns todos obviamente fugimos, alguns saram mais para longe, eu sa s da minha casa, na Tijuca, e todo dia ia passear na Floresta da Tijuca e l eu escrevi minha primeira pea infantil, escrevi O ltimo carro, que foi minha vivncia nesses trs anos de Central do Brasil. (...) ficou na gaveta uns anos, depois, em 67, a Lusa Barreto Leite e o Jos Sanches fizeram o Seminrio Carioca da Dramaturgia. Na verdade, era um concurso de dramaturgia, e tinha duas vertentes, a vertente dramtica, de texto, e a musical. Eu me lembro que todos ns do Opinio, em 67, concorremos. Eu concorri com O ltimo carro. 70 Segundo Sbato Magaldi: O ltimo Carro ou As 14 Estaes, de Joo das Neves, representou a quarta proposta de inovao do espao cnico (...) Ele anteciparia as outras realizaes do gnero, se, escrito o texto em 1965-1966, e refeito em 1967, por ocasio do 1.(e nico) Seminrio Carioca de Dramaturgia, do qual foi vencedor, no sofresse durante nove anos o veto da Censura. Sob a direo do autor, o cengrafo Germano Blum construiu um espao em que o trem do subrbio carioca se espraiava num retngulo que envolvia a platia, e alguns espectadores postavam-se em bancos que pareciam fazer parte dos vages. A composio se

  • 33

    2.1 Uma viagem no limite entre a vida e a morte.

    Um trem suburbano, de uma cidade grande, locomove-se com seus habituais usurios pertencentes s mais variadas categorias dos setores populares: mendigos,

    trabalhadores, assaltantes, vendedores ambulantes, prostitutas, donas de casa, desempregados, velhos, crianas e jovens. madrugada, e o trem, de estao em estao, carrega pessoas que se apertam, dormem, suspiram para mais um dia de trabalho, mais um dia sem emprego, mais um dia de espera. Sobreviver a nica possibilidade. Assim, irnica a frase A coisa que mais prezo no mundo a minha liberdade dita por Z, um mendigo bbado, maltrapilho, que sobrevive de esmolas e que por elas briga at o final da cena com sua companheira, Zefa, uma mulher to abandonada quanto ele. Mas, haver algum eco? Surpreendentemente, o trem comea a correr sem rumo, sem maquinista, sem

    freios. Todos abruptamente saem do torpor de suas rotinas e integram-se em uma viagem radical, limiar, definidora de posies e atitudes, causadora de desespero, pnico, perdas e

    tambm de uma intensa luta por uma sada ao trem desgovernado. Uma sada para a vida. Deolindo, um operrio, sugere desprender o ltimo carro do restante da composio. Uma criana jogada acidentalmente do trem. Um marginal se suicida pulando do trem. Um beato anuncia o juzo final e conclama a populao para desistirem de qualquer tipo de sada, seno aquela da orao e do arrependimento de seus pecados. Trava-se uma luta

    entre os dois grupos. Deolindo morto. Uma prostituta, que acaba de ser violentada, ampara a cabea de Deolindo em seus joelhos. As pessoas do ltimo carro tentam desvencilhar o vago; os demais rezam. Um enorme estrondo domina a cena. O ltimo carro lentamente pra. Imagens de desastre de trem, corpos mutilados. Diante das imagens, todos velam o corpo de Deolindo. Um coro de mulheres dirige-se ao pblico. Mulheres vivas, mulheres sem pais, sem filhos. O texto se encerra com as seguintes indagaes:

    Ele tinha defeitos, moo. O senhor no tem? Ele era to diverso do senhor, moo, e, no entanto, igual. Ele ia para o trabalho de trem. E o senhor, moo, permita, Como viaja?

    deslocava, simblica e vertiginosamente (...). Cf. Sbato Magaldi. Depois do espetculo. So Paulo, Perspectiva, 2003: 59-60.

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    De nibus, carro, avio? Seu trem tem rumo? Aonde o conduz? estao mais prxima? O senhor, moo, perdoe. Qual a estao mais prxima? A mesma de ontem? A mesma de ontem