HELENA MORLEY

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HELENA MORLEY Vera Brant Há mais de um século uma menina de treze anos, em Diamantina, começava a escrever o seu diário, por sugestão do pai, filho de ingleses nobres que vieram para o Brasil em busca de um clima para curar a tuberculose do seu chefe, o médico Dr.John Dayrell. A família esteve, inicialmente, em Nova Lima, na Mina do Morro Velho e, depois, em Diamantina, onde o Dr. John fundou a Santa Casa e ali trabalhou durante toda a vida, até morrer, aos noventa anos. O pai de Alice, Felisberto Dayrell, era minerador. O diário de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, tem a data inicial de 5 de janeiro de 1893.

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HELENA MORLEY

 

                                                   

Vera Brant

 

 

 

 

Há mais de um século uma menina de treze anos, em Diamantina, começava a escrever o seu diário, por sugestão do pai, filho de ingleses nobres que vieram para o Brasil em busca de um clima para curar a tuberculose do seu chefe, o médico Dr.John Dayrell.

A família esteve, inicialmente, em Nova Lima, na Mina do Morro Velho e, depois, em Diamantina, onde o Dr. John fundou a Santa Casa e ali trabalhou durante toda a vida, até morrer, aos noventa anos.

O pai de Alice, Felisberto Dayrell, era minerador.

O diário de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, tem a data inicial de 5 de janeiro de 1893.

Dotada de uma inteligência agudíssima e de uma sensibilidade invulgar, ela foi anotando no seu caderno escolar os acontecimentos que se desenrolavam ao seu redor, naquela cidadezinha mineira de gente simples e extremamente bondosa.

Enquanto seu pai escavava a terra à procura de diamantes e de ouro, ela acompanhava a mãe e os irmãos, atravessando becos e pontes em direção ao

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rio, onde lavavam as roupas da família.

Ela esfregava a roupa com as suas pequenas mãos, enquanto o seu olhar e a sua sensibilidade acompanhavam o que se passava ao redor: o barulho da queda a água naquele pequeno regato de pedrinhas redondas e claras, as borboletas que voavam, o seu irmão Renato pescando lambaris.

E quando chegava em casa anotava tudo, para guardar na lembrança aqueles momentos.

A mestra Joaquininha a considerava a aluna  mais inteligente da escola. Mas ela duvidava, pois não gostava de estudar, só gostava, e muito, de ler histórias e romances, e de escrever.

“Eu acho que se fosse má seria mais feliz”, escrevia ela quando voltava, aos prantos, da casa de duas amigas da mãe, aonde fora levar umas broas de fubá e as encontrara enforcando um gatinho.

 

“Hoje fui chegando para o almoço e encontrando Nhonhô na porta da rua com uma asa do meu curió na mão e dizendo: Olha o que a gata fez; comeu seu curió. Eu não posso dizer o que senti, mas caí na cama com os livros na mão, soluçando tão alto que mamãe veio correndo na cozinha, pensando que tinha havido alguma coisa”.

“ Mamãe diz que não se deve ficar alegre na Semana Santa, porque é a semana do sofrimento de Jesus. Eu creio muito nas outras coisas da religião, mas não acredito que ninguém fique triste do sofrimento de Jesus Cristo, depois de tantos anos, e dele já estar no Céu, ressuscitado e feliz”.

“Meu pai diz sempre que gosta mais do meu gênio que do de Luizinha; que eu sou franca, digo o que penso e o que faço e Luizinha é das caladinhas

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que são mais perigosas”.

A tia Carlota confessando-se com o Bispo e ele fazendo-lhe mil perguntas em lugar de deixá-la à vontade, contando-lhe os seus pecados.

Os tachos  de angu, os leitões nos dias de festa. O tutu de feijão. Os torresmos. As cocadas. As macumbas. As velas acesas. As promessas. A criadagem na ginga.

A tristeza de não compreender as criaturas ao seu redor, com pensamentos e sentimentos limitados, rasos.

A paixão pela avó que vivia exclamando: “Forte coisa!” E que a amava muito e a defendia sempre.

Quando a sua querida avó adoece, ela escreve, sentida, percebendo o perigo de perder a sua protetora:

“Nestes dias da doença de vovó eu me esqueci de todas as felicidades que tenho tido e fico só pensando nos sofrimentos. Quem encontrarei mais na vida para dizer-me que sou inteligente, bonita e boazinha?”.

A dificuldade de entender a decepção do pai quando voltava do garimpo sem encontrar o ouro: “Se ele não guardou o ouro lá, por que se decepcionou?”.

A preocupação com a desigualdade social, com o sofrimento dos pobres.

“Depois do almoço mamãe não nos deixa meter os pés na água porque diz que faz mal. Sempre pergunto que mal faz mas nunca explica. Pergunto por que não faz mal aos mineiros que entram na água até os joelhos logo depois de comerem, e ficam na água o dia inteiro, e ela responde que é por estarem habituados”.

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Quando fui morar no Rio, em 1956, passei a conviver muito com Alice. Ela morava numa bela casa, na Lagoa Rodrigo de Freitas.

Ia à sua casa duas vezes por semana com a Sarita, sua filha.

Aos domingos havia a reunião da família toda, umas quinze pessoas.

Alice sentava-se à cabeceira da mesa com o seu porte elegante e sua personalidade fortíssima e comandava aquele bando de malucos inteligentíssimos, contando histórias extravagantes e muito interessantes.

Falavam quase todos ao mesmo tempo e Abgar Renault, seu genro, casado com a sua filha Ignez, pedia: “Silêncio! Vamos falar só quatro de cada vez, senão ninguém se entende”.

Mas, quando Alice começava a contar as suas histórias, era aquele silêncio. Todos a escutavam, encantados. Eram sempre assuntos diferentes, espirituosos, interessantes. 

Certa vez Alice, que nunca saía de casa, me informou que iria, no dia seguinte, visitar a irmã do meu namorado para ajudar no meu casamento. E queria que eu fosse com ela.

Eu trabalhava no Ministério da Educação e tive que conseguir, com o meu chefe, uma folga para acompanhá-la. Saí mais cedo do serviço e fui para a sua casa.

Ela estava tentando colocar dois lindos brincos de brilhantes. Não entendi bem aqueles brilhantes durante o dia, mas ela insistia tanto que resolvi ajudá-

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la. Os furinhos das orelhas já estavam fechados, cicatrizados, de tanta falta de uso, foi uma luta para abri-los de novo. Depois de muita peleja, ei-la elegante e bela, com um vestido chique, pronta para a aventura.

Lá fomos nós. Eu, meio sem entender nada, imaginando até que ela havia tramado com a Margarida, irmã do namorado, um pedido de noivado.

O apartamento era uma graça.

 A irmã e a sobrinha do meu namorado eram mulheres muito bonitas e prendadas. Mostraram-nos toalhas que elas mesmas bordaram, colchas de tricô que elas mesmas tricotaram e, para o meu desespero, todos os bolos e salgadinhos na mesa do lanche tinham sido preparados pelas duas mais-que-perfeitas.

Entre uma demonstração de habilidade e outra, elogiavam o irmão.

E Alice, nada. Nem um elogiozinho a mim, para equilibrar.

Quando provou o biscoito de nozes que estava mesmo uma delícia, não se conteve e exclamou, constrangida:

_Coitada da Verinha, não vai poder entrar para esta família.  Ela não sabe fazer nada!

Fiquei arrasada.

Na volta para casa, exclamei:

_Mas você, hein, Alice? Vem para ajudar no meu casamento e estraga tudo, acaba com ele.

_Mas o que foi que eu fiz?

_O quê? Não se lembra? Apenas disse, com todas as letras, que eu não sei fazer nada, não sirvo

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para casar.

Ela teve um acesso de riso tão forte que contagiou a mim e ao Rubens, seu motorista. Ele teve que parar o carro, porque não conseguia apertar o acelerador, de tanto rir.

Quando chegamos à sua casa, o seu marido, Augusto Mário, nos esperava na varanda. Estava curioso para saber o resultado da visita e perguntou:

_Como foi o passeio?

A Alice pretendeu dizer que foi uma tragédia mas não conseguiu chegar ao final da frase porque teve outro acesso de riso. E eu, mesmo sendo a prejudicada, também não conseguia parar de rir. Fomos direto para o banheiro.

Quando a Sarita chegou, também curiosa para saber as novidades, o Augusto Mário disse:

_Eu acho que as duas enlouqueceram. Desde que chegaram não pararam de rir e não conseguiram dar uma palavra.

Mas não foi por isso que acabou o namoro. Foi o desencontro das águas. Acho que a minha família não entendeu, até hoje, como foi que eu consegui namorar aquele rapaz, tão pouco inteligente, durante tantos meses e, o pior de tudo, encantada.

 Se eu não freqüentasse uma família tão inteligente e irreverente, aquele namoro talvez até desse certo. Mas era demais. Nunca vi gente tão impaciente com a burrice alheia. O Eduardo, filho da Sarita, e o Flávio, seu irmão, ambos inteligentíssimos, faziam perguntas ao meu namorado só para desmoralizá-lo. As respostas eram trágicas.

Depois dele eu só namorei homens inteligentíssimos, o que também não deu certo.

Quando fui à Europa, pela primeira vez, namorei um rapaz bonito,

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inteligente e culto,  que, meses depois, veio ao Rio passar as férias.  Levei-o para almoçar na casa de Alice, no domingo. Ele falava um italiano misturado com espanhol, mas se fazia entender. E entendia o que falávamos.

Até Augusto Mário, que era uma pessoa cultíssima – fora jornalista, economista, político, escritor, é autor do livro “Viagem à Argentina” – e exigente, ficou impressionado.

Fiquei eufórica. Estava resgatada, junto à família. A minha capacidade de escolher namorados já não estava em baixa. Todos concordaram com a beleza, a cultura e a inteligência. Mas concluíram que eu não tinha interesse definido por determinado tipo físico, nem mental. O Paolo era loiro, olhos azuis, alto, magro, totalmente diferente do Ivan que era moreno.

Só que o italiano ficava à minha disposição dia e noite. Foi me dando um enjôo tão grande que não sabia mais o que fazer.

Resolvi contar a Alice e pedir-lhe um conselho.

Ela ficou horrorizada:

_ Verinha, você vai acabar solteirona. Um rapaz bonito, bem de vida, culto, com aqueles olhos azuis.

Eu disse:

_Eu acho que foram os olhos azuis que me enjoaram, Alice. O céu é azul mas se enche de nuvens,  escurece, chove, anoitece, depois fica azul de novo. Mas, os olhos, não. É aquele azul forte o tempo todo, me olhando. Não estou suportando. Amor não tem nenhum compromisso com inteligência, sabedoria, beleza, nada disso.

Ela me respondeu:

_Com a beleza não tem nada a ver, não. Mas com a inteligência tem, sim. Você não suportaria viver, durante muito tempo, com um homem pouco

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inteligente.

Quando eu adoecia, ia passar uns dias em casa de Alice, pois não tinha ninguém para cuidar de mim. A Hilda, minha empregada, só ia duas vezes por semana.

Alice tinha o hábito de dormir à tarde, mas, naqueles dias, ia para o meu quarto e ficávamos conversando horas seguidas.

Um dia ela me contou que, quando menina, sua tia havia dado uma surra na escrava. A escrava era o dobro da tia, que era franzina e muito brava.

Alice estava louca  para saber como ela havia conseguido aquela proeza, mas tinha muito medo da tia brava.

Certa vez, tomou coragem e perguntou:

_Minha tia, como foi que a senhora conseguiu dar uma surra na fulana que é muito mais forte que a senhora?

A sua tia respondeu:

_Eu experimentei, dando um tapinha.  Ela não reagiu, eu avancei.

Nunca, na vida, me esqueci dessa lição. A qualquer ameaça de tapinha, moral ou física, eu reagia logo, antes que o inimigo avançasse.

A Maria da Penha era uma figura humana interessantíssima. Tinha vinte e poucos anos, era bonita, simpática, excelente empregada. Só tinha um defeito, grave: Não podia acordar sem ser naturalmente. Se alguém a chamasse de manhã, durante o sono, ficava num mau humor de ninguém suportar. Então, a única solução era deixá-la dormir até o sono acabar.

Adorava bichos e resolveu criar gatos. Em

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poucos meses havia mais de dez gatos.

Certa manhã, Alice desceu mais cedo para a cozinha e a gataria toda começou a puxar a sua saia e arranhar as suas pernas, com certeza pedindo leite ou comida.

Lá pelas tantas ela perdeu a paciência e chamou o Rubens, motorista. Ele estava exatamente limpando e lubrificando o carro que Augusto Mário mantinha, sempre, na garagem para, na hipótese de morte de algum amigo, ou de uma autoridade, não ter que incomodar ninguém. Acontece que, quando morria um amigo, ou o carro estava enferrujado ou o Rubens sumido.

Neste dia estava tudo certo: o carro lubrificado e o Rubens ali.

Alice não perdeu tempo: chamou o Rubens e determinou que colocasse todos os gatos num saco e os soltasse no mato. Ele adorou a idéia de poder passear um pouco. Em poucos minutos juntou a gataria ao redor do prato de leite, colocou-os no saco e se mandou para a rua.

Quando a Maria da Penha acordou e soube da confusão toda, abriu o maior berreiro:

_ A senhora é um monstro, como pôde fazer tamanha maldade? E agora, o que vai ser dos pobres gatinhos, quem lhes dará leite. Os pobrezinhos no mato, com cobra e tudo, morrendo de frio à noite. Ai, meu  Deus! E chorava, chorava.

Alice foi entrando em pânico. Acho que já estava arrependida e assim não deu uma palavra e saiu de mansinho para a cozinha, pois já sabia que, naquele dia, não ia ter nem um ovo frito para comer, se dependesse da Maria da Penha.

Quando o Rubens voltou, já era mais de meio dia.

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Alice foi dando ordem:

_ Volte lá e só retorne depois que encontrar o último gato.

Alice havia acordado cedo e o Rubens estava lubrificando o carro, justamente porque havia morrido um amigo do casal. O enterro seria às quatro horas da tarde. Todos prontos para sair e, cadê o Rubens? Nada. Cansaram de esperar e chamaram um táxi.

 Lá pelas sete horas da noite, quando Augusto Mário e Alice já haviam regressado, também de táxi, chegou o Rubens, todo suado e arranhado, e só com dois gatos.

A Maria da Penha brigou com ela e foi embora para a casa da Sarita.

Meses depois,  ela disse à Sarita que queria de volta a Maria da Penha.

Sarita teve um trabalho enorme para substituir a Maria da Penha para trazê-la de volta para a casa da sua mãe. Duas semanas depois, avisou a Alice que traria a empregada no dia seguinte.

Alice, na maior tranqüilidade, respondeu:

_Não traga não, porque não a quero mais.

Sarita, desapontada:

_Mas, mamãe, eu tive um trabalho enorme para conseguir outra empregada e agora você muda de idéia?.

E, Alice, calmamente:

 _E você acha que eu sou mulher para ter uma opinião só a vida inteira?

Num domingo, eu não fui à casa de Alice para o almoço porque estava indisposta, com dor de

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estômago. Na segunda feira ela foi ao meu apartamento, me visitar.

Era um apartamento mínimo,  com quarto e sala, e uma janela enorme, no décimo andar.

Ela foi entrando e dizendo:

_Verinha, que apartamento perigoso! Se você entrar nele com muito entusiasmo, vai sair pela janela.

Ficamos a tarde inteira conversando.  Ela me contou o quanto gostava da minha mãe, sua prima. Que freqüentava muito a nossa casa, quando eu era pequena.

Perdi a minha mãe com oito anos e pedi a Alice que me contasse detalhes de sua personalidade, das coisas das quais eu não podia me lembrar.

Lembro-me de uma das  histórias, ótima: a sua nora, Elza, estava brigando muito com o seu filho Caio e fazendo-lhe muitas críticas. Dizia, no entanto, que o amava.

Alice decidiu:

_Vamos à casa de Amália. Lá você vai ver o que é amor.

Foram. A Elza, uma mulher linda e chique, chegou à nossa casa toda animada para ver o amor de perto. Só encontrou um bando de crianças descabeladas: éramos nove, o mais velho com dezoito anos e a mais nova, recém-nascida.

A mamãe, linda, cuidando dos filhos, fazendo doce de casca de laranja, o que o Zezé mais gostava – dizia com a maior alegria - porque  Zezé pra cá, Zezé pra lá, e contava casos do Zezé. E vinha menino, chateava, ela mandava sair para o jardim, vinha outro, enchia a paciência, ela colocava para dormir. A pequenina chorava, ela ia correndo acudir e já a trazia no peito, continuando as histórias e... mais

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Zezé, mais Zezé.

A Elza, dizia Alice, estava completamente zonza. Ela, que só tinha dois filhos, Felisberto e Arnaldo, que viviam limpos, penteados, com as babás, tudo em ordem, não estava se adaptando àquela bagunça e cutucava Alice para irem embora.

Quando Alice ameaçou sair, a mamãe não deixou:

_De jeito nenhum, vocês vão esperar o Zezé, está na hora dele chegar.

E contou mais histórias para distraí-las enquanto o Zezé não chegava.

E chegou o Zezé, meu pai: baixo, feio, falando tão depressa que não dava para entender nada. 

Os olhos da minha mãe faziam ondas, refletiam  a felicidade. E o Zezé falando duas palavras de cada vez, Alice e Elza não entendendo nada e a minha mãe traduzindo, aquela confusão.

Cansaram de tanta loucura e foram embora, deixando os dois pombinhos com a filharada.

No caminho, Elza quis saber de Alice qual era o sentido daquela visita, o seu vestido branco todo sujo de mão de menino, aquele cansaço de confusão mental completa. E ouviu a resposta:

_Amor é isso, minha filha. A mulher, quando ama, tira de letra um dia como este, que para você pareceu um martírio,  na maior tranqüilidade. Quando o Zezé chega, passa a borracha nas tormentas todas e cai nos seus braços como no primeiro dia de casamento. Você, desocupada do jeito que é, com o marido bonitão que tem, fica botando minhoca na cabeça e criando problema onde não existe. Acho que é desamor. Não tem outra explicação.

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Esta história é uma definição de Alice. Ela  não precisava sair de casa para mostrar o que era o amor. O exemplo era ela própria, com Augusto Mário.

 

 

 

Alice possuía uma memória fantástica. Contava-me episódios da sua infância, no final do século atrasado, pois ela nasceu em 1.880, e eu ficava extasiada com a sua coragem e personalidade.

Sempre havia imaginado que, naquela época, até muitos anos depois, as mulheres eram umas bobocas, fazendo só o que os pais e os maridos permitissem e dizendo amém a todos. Mas, não. Alice dialogava com os pais, dizia-lhes o que bem entendia, discordava, opinava, concordava às vezes, não arredava um milímetro  do que considerava ser o correto.

O namoro com Augusto Mário, seu primo e sua única paixão, começou quando ele voltou de São Paulo, onde passara vários anos estudando Direito e, tendo-se formado, voltara para Diamantina.

Quando estava para voltar, a família toda se organizou para recebê-lo com festas e homenagens.

Alice não tinha uma só roupa que prestasse. Só possuía uma saia nova e não tinha dinheiro para comprar uma blusa.

O seu Luís, que era encantado com ela e queria namorá-la, era filho do seu Mota, dono da loja de tecidos. Quando ela lhe contou o seu aperto, ele se propôs a levá-la à loja e pedir ao pai que desse a ela um pedaço de tecido para fazer a blusa. Foram. Foi feita a blusa.

Vindo de São Paulo, Augusto Mário passou uns

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dias em Belo Horizonte e, lá, quis saber dos primos como estava Diamantina e, principalmente, como estavam as moças que ele havia deixado anos atrás, meninas ainda. 

Um dos primos fez-lhe o relatório de cada uma das moças, umas lindas, outras, estudiosas, interessantes, chiques. Mas... existe uma, a Alice, que não sendo bonita, nem a mais elegante, é a mais encantadora de todas. No ambiente em que ela se encontrar, depois que começa a falar, com tanto espírito, inteligência e simpatia, cresce e supera todas as outras, por mais bonitas que sejam.

Aquilo ficou gravado na memória de Augusto Mário. E ele pensava: Será possível a Alice, aquela menina magrela, agressiva, irreverente, ter se tornado uma mulher tão interessante?

Afinal, chegou a Diamantina.

A família inteira reunida e orgulhosa do seu doutor em Direito, formado em São Paulo.

Foram todos para a casa de seus pais, onde seria a festa. Dois amigos iriam buscá-lo na estação e levá-lo à casa.

Quando ele chegou, foi aquela quantidade de palmas e sorrisos, abraços. Um das primas trouxe-lhe um ramo de flores. Ele, encabulado, sem saber o que fazer com as flores, procurou com os olhos alguém a quem entregá-las e encontrou Alice, que estava próxima, e ofereceu-lhe o ramo de flores.  Foi a conta: o seu Luís ficou morto de ciúmes e queria porque queria que Alice lhe devolvesse a blusa.

Para o sábado seguinte estava programada uma festa com dança e tudo, e o sofrimento de Alice começou de novo. E a roupa?

Depois de muita luta, conseguiu um pano e fez

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um vestido de festa.

As mulheres estavam muito chiques e ela se sentia humilhada. E não conseguiu fazer sucesso porque ficou calada, num canto.

Qual não foi a sua surpresa quando Augusto Mário, depois de dançar com várias moças, foi buscá-la para dançar. Ela ficou encabulada. Seu coração dava pulos no peito e foi uma luta para encontrar o rítmo.

Controlou-se e começaram a conversar. Ele não a deixou mais, até o final da festa.

Naquela noite, quando chegou à casa, ela se ajoelhou

aos pés da cama e pediu a Santo Antônio, com todo o fervor, que, se não fosse para casar com ele, tirasse aquela ilusão de sua cabeça de uma vez por todas, porque não queria sofrer aquele amor que já brotava com tanta força em seu coração e que ela imaginava muito violento.

Mas não era só ela quem estava apaixonada por ele. Uma meia dúzia de moças também. Era, naqueles dias, o assunto de Diamantina.

Ela, então, decidiu sumir da vida dele, para evitar sofrimentos.

Um dia, tendo ido ao armarinho comprar botões e fitas, percebeu que ele a acompanhava. Andou mais rápido e ouviu o barulho de seus passos. Ouviu-lhe a voz, chamando-a .  Apertou os passos e saiu correndo, ele correu atrás.

Quando chegou à porta de casa, já exausta, começou a subir as escadas, com dificuldade.

Foi quando ele, alcançando-a, puxou-a pelos cabelos e lhe deu um beijo.

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Ela ficou tonta, desnorteada, sem entender nada.

_Quer se casar comigo?, sussurrou ele.

_Agora, querendo ou não querendo, temos de nos casar, pois você já me beijou e estou desonrada, respondeu Alice.

Casaram-se. E parece-me que Alice foi, durante toda a vida, a companheira que mais amou o homem com quem se casou.

Um dia, acordei com Alice me passando a maior descompostura:

_Você deve estar pensando que também é rica porque convive com Ignez, Sarita e Yolanda, mas  você é pobre, Verinha. Convença-se disso! Comece a fazer loucuras e depois vai se encalacrar toda, encher-se de dívidas e não vai conseguir pagar com este emprego mixuruca.

Eu, sem entender nada, resmunguei:

_ Ser pobre já é desagradável, mas ter alguém que já, de manhã cedo, vem me xingando de pobre é o fim da picada. O que foi que eu fiz para esse xingatório todo?

_Comprou uma geladeira elétrica a prestações. E não me pergunte quem me contou porque eu estou proibida de dizer, foi falando.

_Mas, Alice, você com esta fama toda de inteligente, não raciocinou ainda que aquela geladeira de gelo que você me deu foi o maior presente de grego do mundo?  Dia sim, dia não, tenho de comprar uma barra enorme de gelo que se derrete e vai para o esgoto. Vou passar a minha vida inteira jogando o meu dinheirinho minguado no esgoto? Já uma geladeira elétrica, com uma prestação um pouquinho mais alta do que as barras de gelo, ficará para a vida toda. Para você ter uma idéia, pretendi dar a geladeira

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de gelo para o porteiro e ele não aceitou. Foi mais inteligente do que eu.

Ela ficou parada, olhando para a minha cara um tempão e saiu com a proposta mais extravagante que já recebi em toda a minha vida:

_Sabe de uma coisa, Verinha? Você é mesmo muito inteligente e não pode continuar nessa pobreza. Vamos escrever um livro, juntas. O José Olympio anda louco para publicar outro livro meu. Aí, ele publica, todos ficam conhecendo o seu talento e você fica rica.

Pela manhã, normalmente, eu sou muito lerda. Me sinto como televisão antiga que, quando a gente ligava, ficava rodando um tempão, até focalizar o mundo.  Por isso não respondi logo à sua sugestão.

À tarde, entreguei-lhe uma pequena carta, demonstrando aceitação à sua proposta.

 

Minha querida Alice:

 

Você diz, entre outras coisas maravilhosas, que a única inteligência importante é a de quem sabe viver.

Tenho pretendido aprender esta arte com você, mas existe uma incapacidade de minha parte que me deixa completamente frustrada.

Gostaria de poder me aprofundar nos pequenos momentos que me dão alegria, fixá-los bem, explorá-los até o último instante e guardá-los na memória, para os dias e as tempestades seguintes.

Mas os trovões só me recordam tormentas e essas me trazem à memória catástrofes, e eu me perco e me desmorono nelas.

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Quantas e quantas noites tentei imitar você, recordando pedaços de vida em que fui feliz. Quantas vezes passei filmes pela minha imaginação, como você faz, procurando me distrair. Mas meus filmes eram sempre tristes e eu tinha logo que matar os personagens, para que eles parassem de sofrer e eu pudesse dormir.

Que inveja sinto de você que, às oito horas da manhã, acorda bem humorada, vai, mentalmente a Paris, passeia, faz compras, visita museus, igrejas e, às onze horas, senta-se à mesa para almoçar, exausta de tanto passear.

Que mágoa eu sinto de não conseguir viajar assim, na recordação, como você faz, ora na sua infância e mocidade em Diamantina, ora no seu exílio na Argentina, em Paris, ou em Portugal, que você tanto adora.

Às vezes exploro as suas histórias para me distrair um pouco, mas nunca consigo me lembrar delas inteiras.

Aquela sua volta da Europa, no navio, com as mulheres francesas, que você considerou ótimas companhias, só ficou na minha lembrança até o momento em que o navio se aproximou de outro, repleto de  marinheiros, a quem elas deram todas as suas conservas, queijos e bebidas e você passou a detestá-las, lembra-se? Como foi que você prosseguiu a viagem? Conte-me.

Empilharei as suas histórias na minha memória para futuras recordações, quando estiver apertada para me lembrar de coisas alegres e engraçadas.

As minhas lembranças não conseguem me distrair.

É que falta a mim o que sobra em você: inteligência para viver.

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                                     Muitos beijos,

                                                                    Vera

 

Alice me respondeu:

 

Verinha querida:

 

 

Como você não compreendeu bem a minha filosofia de vida, venho hoje explicar-lhe.

A vida é sempre cheia de problemas para todos nós, desde a infância. Quando eu me refiro à inteligência para a vida, refiro-me à pessoa que sabe se afastar de todos os problemas e tirar proveito das coisas boas; que nasce com juízo para se afastar dos perigos, que guarda um pouco do que ganha para não passar necessidades, que evita as doenças, as más companhias e sabe tirar proveito da inteligência, como Churchill, por exemplo.

Tenho conhecido homens de nenhum dom intelectual que se transformam em grandes homens, somente pelo trato, talvez adquirido na infância.

E conheço outros, que todos nós sabemos, cujas inteligências só serviram para desmoralizá-los.

Quanto a saber viver, você sabe melhor do que eu. A diferença é que você está vivendo o presente e eu só vivo, hoje, o passado.

Mas eu sei que você, como nenhuma de suas companheiras poderá, no futuro, viver o passado porque não o terão tido.

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A vida na infância só é agradável no campo, com a natureza, os animais, as aves e, acima de tudo, com a liberdade. E quem é que cria os filhos, hoje, com liberdade? A vida das crianças em casa, enquanto pequenas, e nos colégios, quando vão crescendo, cheia de trabalhos e obrigações, é vida? Não, não é vida. E nada disso vai servir para pensar, depois de velha.

Mas eu, com toda a pobreza de meus pais, vivi a minha infância. E, depois de casada, ensinei Augusto Mário a viver.

Hoje quero lhe descrever alguns episódios na minha vida, depois de casada.

Não me cansava de obrigar Augusto Mário a fazer aventuras. Imagine nós dois viajando a cavalo, com uma família de doze pessoas e uma grande carga, com colchões, travesseiros e mantimentos! Isso, com mais três filhos pequenos e mais uma menina que eu criava.

A viagem era de dois dias, dormindo-se no caminho, em ranchos abertos.

Uma vez em que íamos a Santa Bárbara e nos arranchávamos para dormir, a empregada foi afastando uma pedra para fazer a cama dos meninos quando viu, embaixo, um ninho de escorpiões.

Eu estava, nessa hora, no rio, dando banho nos meninos, por isso não vi. Augusto Mário proibiu que me contassem e passou a noite sentado à beira da cama, lendo e vigiando os pequenos.

Hoje estou sem ocupação e vou passar algumas horas me distraindo, recordando o passado.

Para a estação de Santa Bárbara nós tínhamos o hábito de ir uma vez por ano. Aconteceu que, numa das vezes, várias pessoas de Diamantina resolveram

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ir também fazer uso das águas.

Foram Alcídes, Belinha, Dr. Telles com a Donana e duas filhas, Serafim Libano e Dona Augusta e os dois filhos rapazes e Padre Manoel Alves com uma amiga minha, Catarina Neves.

Além desses, foi também um industrial de Montes Claros, com a mulher e dez filhos.

Nossa família, Alcides e Belinha, ficamos no Arraial numa fazenda abandonada. O Dr. Telles, numa única casa que havia no arraial. Os outros companheiros fizeram rancho de sapê, próximo das águas, que formavam um grande poço, espécie de piscina de água quente.

O padre, além do rancho, mandou construir uma capelinha com um altar e todo o necessário.

Todos os domingos nós, do arraial, tínhamos que assistir à missa. Como era longe, íamos a cavalo.

Para assistir à missa, vinha todo o pessoal da redondeza e ia se acampando por fora da Igreja.

Não havia um só domingo que não houvesse casamentos. Lembro-me de uma vez que foram quatro casais e todas as moças se casaram com um só vestido e um só véu. Acabava um casamento e a noiva tirava o vestido e o véu e entregava à outra noiva. E todas nós, animadas com a novidade, ajudando as moças a se vestirem.

Quando ajudávamos a última do grupo, chega na porta do rancho do padre e grita: Ô donas, não vistam a Maria que eu não caso com ela! Que tragédia! A pobrezinha caiu no pranto.

Eu fui lá fora implorar ao João para se casar com a Maria. E ele me respondeu: Se a senhora faz questão de me casar, então me case com a Joana. Ele havia viajado com as duas e, no caminho,

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verificou que a Joana era mais bonita que a Maria.

Não posso, também, deixar de contar as originalidades da mulher do industrial, minha xará: ela criava todos os filhos amamentados por uma cabra, que atendia ao choro da criança, subia na cama e lhe colocava a teta na boca. Um dia, quando chegamos ao poço, ela estava terminando um forno de barro, para assar pão. No dia seguinte, começou a fabricar o pão. Engraçado é que ela manejava tudo com uma cuia. Cuia para encher de barro, cuia para amassar o pão, cuia para lavar a roupa. E era cada cuia do tamanho de uma bacia.

O industrial, marido dela, tinha uma fábrica de tecidos e uma grande fazenda. Mais de uma vez vimos chegar carroça cheia de tudo para eles. Apesar dessa fartura, a mulher era muito miserável. Se jantávamos ou almoçávamos com eles, era sempre a convite do marido.

Um dia, Augusto Mário resolveu ir às águas palestrar com o industrial, que era muito simpático. O homem prendeu-o para jantar. A mesa era debaixo de uma grande árvore e comprida, para caber toda a família. Jantaram. Terminado o jantar, veio o café. O marido perguntou pela sobremesa e ela respondeu: Não tenho. Um dos filhos, de uns cinco ou seis anos, gritou do meio da mesa: E aquelas latas de doce que estão debaixo da cama?

A mulher foi ao quarto, trouxe uma lata, de uns dez quilos, de doce de leite, distribuiu para todos com fartura.

Esse incidente foi um desapontamento para todos nós.

O rancho da dona Augusta era uma simpatia. Os filhos o colocaram num lugar bem agradável. As mesas de jantar de todos os ranchos eram fora de casa, sempre debaixo de uma árvore. E nunca chovia.

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Um dia, chegando nas águas e indo ao rancho de dona Augusta, só encontramos um montão de cinzas. Os filhos embeberam um maço de algodão no álcool, acenderam-no na ponta de um bambu para acabar com uma caixa de marimbondos que estava sobre o rancho! Engraçado é que ninguém comentou a estupidez. Os rapazes fizeram, numa só noite, outro rancho.

Um episódio também marcante em Santa Bárbara deu-se, um dia, comigo: Donana e Belinha descobriram um sítio onde havia frutas. Relacionaram-se com a família e foram lá duas vezes, sem mim.

Quando eu soube, protestei, chamei-as de amigas ursas e me zanguei, deveras.

Donana, mais velha dez anos do que eu, explicou-me: Não te levamos porque sabíamos que, se você fosse lá, inutilizará o nosso passeio. Há coisas que dão vontade de rir e nós nos contemos. Mas você não seria capaz de se conter. Você mesma sabe disso. Eu lhes disse que brigaria se fossem sem mim, de outra vez.

Chegou o dia delas irem atrás das frutas e dos ovos. Chamaram-me e disseram: Hoje nós vamos ao sítio do seu Juca, mas você fique sabendo que ele é assassino e que não pode rir na cara dele.

Eu respondi: Vocês estão me julgando uma louca que não pode conviver com os outros?

Donana retrucou: Se é assim, vamos.

Saímos a três pelo campo. O sítio era distante de nossa casa.

Durante a viagem pela estrada, Donana não fez outra coisa senão me recomendar: Quando você vir que vai cair nos seus acessos de riso, procure antes se lembrar de qualquer coisa triste.

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Eu, então, reclamei: Chega, Donana.

Ela ainda teimava: Não ria, não ria! Estou temendo que você vá nos fazer perder este sítio.

Eu já estava indignada com tanta recomendação e já morta de vontade de rir vendo o medo de Donana.

Fomos andando e chegamos ao sítio. Do lado de fora, próximo à porta, estava um homem gordo, com uma grande barba, amolando um facão, numa pedra. Donana foi dizendo: Boa tarde, seu Juca! O homem levantou a cabeça, com aquele facão na mão e respondeu: boas tardes, madames!

Não foi preciso mais nada para que eu caísse no acesso de riso. As duas, que também caíram no riso, dispararam a correr pelo campo afora me deixando sozinha com o homem. Eu, sem conseguir parar de rir, larguei também o homem e fui brigar com as duas, por terem me abandonado. Mas as encontrei iguais a mim, no mesmo acesso de riso.

Desta estação poderia, ainda, contar muita coisa engraçada.

Mas já escrevi bastante e sei que você não terá paciência de ler.

                                         Um beijo, Alice.

 

 

 

 

Alice querida:

 

Acho que compreendi a sua explicação: saber

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viver é ter capacidade de afastar uma porção de coisas, inclusive problemas.

Você teve tão poucas dificuldades no passado que procurava os perigos para ter do que se afastar.

E não se contentava em ir sozinha: levava o menos aventureiro de todos os homens, que é o Augusto Mário, e com ele se acampavam sobre ninhos de escorpiões.

Você se abasteceu de muita alegria na sua infância e na mocidade, daí a sua capacidade de dominar as tristezas que a vida trouxe, mais tarde, para você.

Não quero me aprofundar nos problemas de infância para não chegar à conclusão de que estou completamente liquidada.

Pelo fato de não ter muito do que lembrar é que peço emprestadas as suas memórias.

Uma das poucas vezes que surpreendi você triste, Alice, foi naquela tarde em que fomos com Felisberto, Duga e Flávio à chácara da Gávea.

Passeamos durante um longo tempo pelo campo, imenso, quase todo plantado por você, descemos uma colina, passamos naquela ponte próxima da piscina e, de repente, você ficou triste.

Corri, apanhei um cajá-manga e dei a você.

Eu nunca soube o que fazer com a tristeza de alguém.

Adoro ouvir os casos lá da chácara. Você me conta alguns?

Como se chamava aquele empregado a quem você deu meia hora para aprender a dirigir o automóvel, porque você precisava sair para fazer umas compras e visitar Augusto Mário na Casa de

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Correção?

E aquele que tocava piano, desenhava, tirava o forro dos sofás, lavava e colocava tudo de novo direitinho?

Conte-me tudo.

                                           Um beijo, Vera

 

 

Verinha, querida:

 

Havia em Belo Horizonte, no meu tempo, um comerciante rico, chamado Avelino Fernandes.

Um jornalista, insaciável por dinheiro, escreveu no Estado de Minas um artigo elogioso ao Avelino, na esperança de arrancar-lhe algum. No dia seguinte à saída do artigo, o Avelino foi ao jornal: Vim lhe agradecer as boas palavras que o senhor disse a meu respeito, mas quero lhe dizer, também, que o senhor exagerou, eu não sou nada daquilo que o senhor

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disse no jornal.

O jornalista: É sim, seu Avelino. O senhor é que é muito modesto e não reconhece.

Qual o quê, Doutor. Eu conheço os meus adjetivos.

Gostei da frase do Avelino e nunca a esqueci.

É muito raro uma pessoa reconhecer os seus “adjetivos”, mas eu reconheço os meus.

Isto vem a propósito da resposta à sua carta. Escrevi ontem e, quando terminei e reli, achei-a sem graça e rasguei-a .

Sou como o Avelino, reconheço quando o que escrevo está sem graça. Mas como você insiste na resposta, vai aí:

A minha época na chácara da Gávea foi a mais divertida possível. Lá havia de tudo: macumbeiros fazendo macumba; criadas surrando umas às outras, baile da criadagem na garagem, enfeitada de bambus e folhagens.

A criadagem se reunia e dava, cada um, certa quantia para as comedorias. Quem fazia os pastéis, sanduíches, batidas e limonada eram as minha empregadas, cozinheiras e a copeira. Elas arranjavam na garagem uma grande mesa e enchiam-na. Nós ficávamos, de nossa varanda, apreciando o baile. Era engraçadíssima a gana do pessoal! Antes do baile avançavam, todos, nas comedorias.

Ignez tinha como ama do Luiz Roberto uma moça clara, de uns trinta anos, metida a importante e ajuizada. Nunca se misturava aos empregados.

Num desses bailes, ela ficou da janela, vendo os criados dançarem e eu verifiquei que ela estava com inveja do pessoal. Perguntei-lhe: Por que você não

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vai, também, dançar, Edite?

E ela: A senhora acha que eu posso me misturar com eles?

Acho. Por que você não pode se misturar se você é empregada como eles?

Ah! Se a senhora pensa assim, então eu vou.

Foi e se divertiu à grande!

Sabe de uma experiência que eu adquiri na Gávea? Verifiquei que muitas vezes a gente se distrai mais vendo os outros se distraírem.

As macumbas eram importantes e dispendiosas. Numa das vezes, o macumbeiro levou um tiro na boca e eu tive de telefonar para a assistência.

Quanto à sua pergunta a respeito do Pedro, quero lhe contar do princípio a história dele.

Augusto Mário mandou fechar o laboratório do Paulo, que estava dando prejuízo. Pedro era empregado do laboratório e ficou sem colocação. Paulo mandou-o para a chácara do Gávea, dizendo: Vocês o puseram na rua sem emprego, agora ele terá de ficar aqui na chácara e receber o mesmo ordenado que recebia lá.

Mas o que farei com ele, já tenho tantos empregados?

E o Paulo: Não precisa fazer nada, é só dar o ordenado e deixá-lo andar pela casa.

Eu disse isso ao Pedro e ele respondeu-me:

_Já vi o que vou fazer. A tinta da casa está precisando de reforma. Dê-me o dinheiro e eu vou à cidade comprá-la. Trouxe a tinta e pintou a casa toda, em pouco tempo.

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Depois disso descoseu os sofás, as cortinas, tirou os panos, lavou tudo e colocou de novo.

Foi indo num crescendo de atividade e habilidade incríveis. Não havia nada que Pedro não fizesse. Fazia malas, era carpinteiro, pedreiro, tudo, tudo.

Não sei se já lhe contei o caso dele copiar, igualzinho, o Cristo de um bom pintor. Quando o motorista encrencava o carro e o deixava na estrada, chamava o Pedro para consertá-lo.

Eu, vendo que ele já havia terminado todos os consertos da casa, resolvi colocá-lo como chofer. Chamei-o e lhe disse:

_Pedro, eu estive pensando que você, que sempre vive consertando o automóvel, poderia ser um bom volante. Por que você não guia?

Ele:

_ Porque nunca encontrei um carro para eu aprender.

_Então, vá aprender no meu. Tome a chave.

Ele foi no alto da Tijuca, exercitou durante uma hora, voltou e entregou-me a chave, dizendo:

_Já sei guiar, se a senhora que ir à cidade, podemos ir.

Fui com ele à Casa de Correção e continuei andando, sem nunca haver atropelo.

                                                                Alice

 

 

 

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Um domingo, Alice resolveu fazer um almoço muito elegante e convidou várias amigas suas, de Ignez e da Sarita. Sarita e eu voltamos da praia e esta pediu-me que colocasse rolinhos nos seus cabelos e fizesse um penteado bem bonito, para o almoço. Fiz tudo direitinho. Sarita sempre foi tão bonita que qualquer penteado lhe ficaria bem.

Quando chegamos para o almoço, onde, dentre várias pessoas, estava a grande poeta Cecília Meireles, amiga da Ignez, todos elogiaram a elegância de Sarita.

_E quem foi que fez o seu cabelo?, perguntou Alice.

_Foi Verinha, disse Sarita.

Mais tarde, quando terminou o almoço, Alice chamou-me num canto e disse:

_Olhe, minha filha, já descobri um jeito de você ficar rica. Vou comprar uma bacia e um secador de cabelos para você fazer os cabelos da Sarita e de todas as suas amigas. Você vai ganhar um dinheirão.

Nesta hora, fiquei um pouco desanimada. Então, o meu talento de escritora era só aquele tiquinho?

Eu estava louca para melhorar de emprego, com um ordenado melhor, e queria fazer concurso para Inspetora de Ensino do Ministério da Educação, mas não havia concurso nenhum a ser feito.

Depois de muito pedir, consegui ser nomeada para uma coisa completamente diferente: Técnica de Seguros do Instituto de Seguros do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários e Aeroviários ( Iapfesp).

Entrei em pânico. Eu não era técnica de coisa alguma, como é que iria tomar posse?

Fui ao Augusto Mário pedir conselhos. Era um homem extremamente culto, sábio. Foi excelente

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jornalista,  vivia no seu escritório lendo e estudando.

Ele me desanimou completamente:

_Minha filha, esse é um cargo da maior importância, você não tem a menor competência para ocupá-lo. Você teria de saber, corretamente, o alemão, o inglês, o francês, corresponder-se constantemente com a Bélgica, Alemanha e Suíça, onde existem os melhores profissionais e escolas do ramo.  Você terá de fazer previsões de quantos operários poderão morrer numa obra de determinado gabarito, quantos aviões poderão cair a cada mil aviões que levantam vôo.

_ Então eu fui nomeada suplente de Deus, disse-lhe eu. Qual é o elemento humano, por mais culto que seja, que tem condições de prever uma coisa dessas? Nem aqui, nem na Alemanha, nem na China, admito que possa haver. Esse cargo não deveria existir. Seria o mais lógico.

Fui ao Ministério da Educação para saber onde havia um curso destes para que eu pudesse fazer, rápido. Não havia. Nunca existira um só registro de um curso dessa natureza.

Cada vez eu me complicava mais.

Foi quando o Eduardo, filho da Sarita, que é extremamente inteligente, raciocinou:

_Se nunca existiu o curso, ninguém é formado. Se foram nomeados vários, vá lá e veja se alguém tomou posse. Se tiver tomado, você toma também. Fui.

O prédio era um horror. Subi e procurei saber onde era que eu deveria me apresentar.

Encontrei um senhor sentado diante de uma mesa enorme, sem um só papel. Ao seu lado, outro senhor. O tal, a quem eu tinha que me apresentar,

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tinha uma cara muito estranha, de pessoa burra. Fui até ele, estendendo-lhe o Diário Oficial.

_ Fui nomeada técnica de seguros e vim tomar posse.

_ Mas... a senhora é técnica?

_Eu, não. O senhor é?

_ Não, mas sou o chefe dos técnicos.

_ Piorou muito, respondi.

O senhor que estava a seu lado soltou uma gargalhada e o chefe dos técnicos ficou furioso.

Tomei posse e fiquei esperando qual o serviço que me caberia para eu não fazer, por incompetência. Não havia serviço nenhum.

Só quem trabalhava lá era uma tal de Teresa, que não era técnica, nem bonita, mas tinha umas lindas pernas. O chefe mandava que ela colocasse os processos sobre um armário, parecendo um guarda-roupa, só para ficar olhando as suas pernas, quando ela subia no banco para apanhá-los.

Um dia, a Teresa faltou ao serviço e ele me chamou e pediu que retirasse um processo sobre o armário.

_ Não pego não, respondi. Eu sou técnica. Me dê um serviço técnico e eu faço.

_ A senhora não vai saber fazer.

_E o senhor não vai saber me dar.

Pedi para ser aproveitada nalguma seção onde eu pudesse encher o tempo, já estava  exausta de ficar à toa.

Mandaram-me para a seção de aposentadoria

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por invalidez. O meu chefe era alto, bem moreno, olhos verdes, camisa colorida, parecia um porta estandarte. Mas era muito melhor que o anterior.

Comecei a folhear alguns processos e, já no segundo, fiquei horrorizada: Num processo em que viúva reclamava que o marido, havia quatro anos, morrera de acidente numa construção e, até aquela data, ela não recebido um só tostão de seguro, ele havia despachado: continue aguardando.

 Corri com o processo ao Departamento Jurídico, para ver o que seria possível fazer pela coitada da viúva. Encontrei um advogado atencioso que deu a maior gargalhada quando leu o despacho. Dias, depois, despachou o processo concedendo a pensão.

Fui fazendo o mesmo com vários processos, com a ajuda do tal advogado. Um dia, o meu chefe pediu-me que despachasse por ele.

Eu levava os processos para casa e pedia ao Eduardo, que estudava Direito, para me ajudar.

Fazia tudo certo, num português correto, e o bandido do meu chefe modificava algumas palavras, para pior, e acrescentava, impreterivelmente, a palavra outrossim.

Eu quase morria de ódio.

Fui à casa de Alice, contei tudo a ela e disse que iria pedir demissão do emprego, não estava suportando tanta burrice.

Ela:

_Verinha, você não pode ser louca ao ponto de perder o emprego por causa de outrossim.

Fui ficando, agüentando a barra e despachando. Até que certa manhã, ele falou outrossim.

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Comecei a gritar:

_ Não, tudo tem um limite na vida: outrossim falado e, pela manhã, é demais para os meus nervos! Eu vou pedir demissão.

O meu chefe me olhava, horrorizado. Acho que ele usava essa palavra até com a sua mulher, na cama, tamanha a naturalidade e insistência com que a pronunciava. Não tinha a menor idéia do porquê do meu ataque de nervos. 

Disse-me:

_ Dona Vera, a senhora está  se sentindo mal?

_ Eu não me dou bem com as manhãs, acordo nervosa, respondi.

_Então, de agora em diante, a senhora só venha à tarde.

Fui direto para casa de Alice para contar-lhe e ouvir as suas gargalhadas. Ela riu bastante e depois, séria, me disse:

_ Verinha, você é a mais louca de toda a família. Controle essa loucura, do contrário a sua vida vai ficar difícil. Você não pode continuar nesse descontrole. 

E contou-me um porção de histórias de pessoas que engoliram sapos e lagartos para continuar no emprego.

Meses depois, o cargo foi extinto, graças a Deus!

Na falta do que fazer, decidi entrar na roda de biriba da Ignez, Yolanda, Sarita e um grupo de desquitadas.

Um dia, uma delas me disse:

_ Vera, você é jovem, hoje é sábado, deveria estar com uns amigos da sua idade se divertindo,

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namorando, e fica aqui jogando biriba com esse bando de mulher desquitada?

Eu respondi:

_ Pois é, vocês namoraram, noivaram, casaram, desquitaram e chegaram à conclusão de que a melhor coisa do mundo  é jogar biriba. Resolvi economizar meu sofrimento e vir direto para o biriba.

 

                                  .................

 

 

Alice contou-me uma história deliciosa, que demonstra bem a diferença de temperamento dela e do Augusto Mário:

Ela estava com ele, à noite, vendo televisão, na biblioteca, e teve vontade de chupar uma manga. Augusto Mário foi logo desanimando-a:

_ Mas, manga, Alice? A essa hora? Aqui em casa nunca houve uma faca amolada. Você não vai conseguir descascar a manga com as facas que existem aqui. Mas, sendo você muito teimosa, vai querer ir ao quintal amolar uma faca na pedra. Choveu muito. Você vai escorregar, vai cair e se machucar e, a essa hora, médico nenhum vem até a Lagoa Rodrigo de Freitas para acudir alguém. Desista, Alice.

Ela desistiu.

Uma outra vez foi o caso do mel. Ela detestava mel. Um dia, Augusto Mário trouxe-lhe uma garrafa de mel e a colocou sobre o móvel da sala.

Quando ela viu a garrafa, foi tomar satisfação com ele:

_ Você comprou o mel, mesmo sabendo que eu

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detesto?

_Ainda detesta? Pensei que tivesse mudado de idéia e já gostasse. Então, para que é que  você está criando abelhas?

_ Para jogar o mel fora, foi a resposta rápida de Alice.

 

 

 O Flávio, um de seus filhos, era muito inteligente e tinha também tiradas incríveis. Ele tinha a mania de casar. Separava de uma mulher e casava com outra. Ao todo, durante a vida,  teve sete esposas.

No aniversário de Alice iam quase todas, que se separavam do Flávio mas continuavam apaixonadas pela sogra. Cada uma com o marido novo, e o Flávio, muito irreverente, dizia:

_Puxa vida, só trombo em mulher minha, nesta noite!

Num dos casamentos do Flávio, fomos todos comemorar a mulher nova, o apartamento novo e os móveis, idem.  Tudo era lindo e a mulher encantadora.  Duas amigas nossas, muito viciadas no jogo de biriba, após o jantar resolveram sentar-se numa poltrona e jogar.

No dia seguinte o Flávio ligou para a Sarita, sua irmã, e foi dizendo:

_Aconteceu um desastre, o meu sofá novo, onde Yolanda e Conceição estavam jogando, amanheceu furado de cigarro. Ou foi a Yolanda, que fuma, ou a Conceição virou vagalume.

Num daqueles movimentados almoços em casa de Alice, o assunto era a paixão do Felisberto, seu neto, filho do Caio e da Elza, a que estivera lá em

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casa para conhecer o amor.

Felisberto namorava uma moça bem mais velha do que ele e, num elegante jantar, já de pileque, viu passar uma mulata linda, nova, de belíssimo corpo e olhando para ele. Acompanhou-a com o olhar e a namora, a seu lado, viu e fez cara de desdém, murmurando:

_Uma mulatinha!

Ao que o Felisberto retrucou:

_É mulatinha mas não é recauchutada!.

Foi a conta. Levou o maior fora da história e caiu de cama apaixonado e foi para a casa de Alice.

Alice fazia-lhe todas as vontades: dava-lhe caldinho o dia inteiro, dizia que paixão dá um nó na garganta e que apaixonado não podia comer coisas sólidas porque engasgava.  Que paixão é a maior doença do mundo, que ele não podia tomar chuva, nem vento, nem sol, que iria piorar. Com aquele apoio moral de Alice, o Felisberto não ia mais ao trabalho, deixou a barba crescer, o olhar entornado, olhava além das pessoas, a coisa foi ficando séria e exigindo um basta. Era a conversa do almoço. O Flávio, que se dizia entendido em medicina, veio com esta de que, num estudo profundo, havia chegado à conclusão de que a vitamina D, misturada com a vitamina B-12  e K, curava qualquer paixão, por mais forte que fosse.

Fomos à Farmácia, compramos as vitaminas e demos ao Felisberto. Nada. O máximo que conseguimos foi tirá-lo da cama e colocá-lo à mesa do almoço.

A Elza, mãe, estava angustiada com o sofrimento do filho.  E disse que, naquela manhã, havia ido à Igreja e colocado uma vela no altar para a namorada voltar.

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E o Flávio:

_ De que lado você botou a vela, do esquerdo ou direito?

_Do esquerdo, disse a Elza.

_ Ah, então foi por isso que o remédio não deu resultado. Lado esquerdo é para a namorada não voltar nunca mais.

O olhar do Felisberto despencou, quase caiu ao chão, de   pânico.

 

 

Um dia, abateu-se sobre aquela casa feliz uma tristeza enorme. O Carlos Alberto, filho da Ignez e do Abgar, morrera num acidente de automóvel nos Estados Unidos. Ele era um rapaz forte, bonito, inteligente, espirituoso. Onde estivesse, animava o ambiente. Vinte anos de idade. Que pena!

Aquelas alegrias todas: vozes, risos, brincadeiras, foram substituídas pelos suspiros. Passamos a escutar até o badalar triste do carrilhão da sala. Nem tínhamos reparado o quanto  era triste o seu badalar. Ou será porque, antes, a alegria não nos deixava escutar?

A casa transformou-se num velório. Visitas e mais visitas, todo mundo suspirando.

A Ignez era a própria dor. Alice e Augusto Mário ficaram mudos. Todos arrasados. Os outros dois filhos da Ignez, Caio Márcio e Luiz, tristíssimos.

O Abgar, extraordinário poeta, fez um belo e sentido poema. Um pequeno trecho:

 

“O que eu choro na sua ausência

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 não é a rosa do teu corpo jovem, abatida no haste,

 nem a tua alegria, que não mais verei:

 doem-me os teus frutos, que, ao caíres, esmagaste sobre ti;

 amarga-me o quinhão de tempo e flor

 arrebatado às tuas mãos de vida”.

 

                   .........................................

 

 

Aquela família passou a ser a minha âncora. Todos eram carinhosos comigo: Alice, Augusto Mário, Paulo e Judith, Caio, Flávio, Sarita, Ignez e Abgar. A Sarita, principalmente. Eu morava perto dela, só tinha empregada duas vezes por semana e ela, preocupada com a minha saúde, chamava-me para jantar quase todas as noites, durante a semana. Aos sábados e domingos, normalmente, íamos para a casa de Alice.

Sarita era uma mulher linda, inteligente, engraçada, bem humorada, um papo excelente. Onde ela chegava, o ambiente virava festa. Extremamente solidária, generosa, bondosa.

Eu sempre tive esperanças de que ela, com o seu talento, escrevesse sobre a sua mãe. Sempre achei que as pessoas que haviam lido “Minha Vida de Menina” teriam curiosidade de saber o que aconteceu, durante a vida, com a menina Helena. E não havia ninguém mais competente para contar esta história do que a Sarita. Escreve muitíssimo bem, é autora do livro “ Contando Histórias”, que foi muito elogiado pela crítica e é, realmente, muito bom.

Esperei que, depois desse livro, viesse aquele que eu aguardava. Ainda espero.

Sarita achava todas as pessoas boas, tinha  a

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maior paciência com o ser humano.

Uma vez eu impliquei com uma amiga sua que era burra, antipática, feia, orgulhosa e boba. Sarita deu-lhe uma carona no carro e, pelo caminho, a mulher vinha dizendo bobagens em série:

_ O meu maridinho, todas as manhãs, acorda me fazendo carinho e perguntando de quem é essa boquinha, esse narizinho.

Uma mulher de mais de quarenta anos, sem o menor censo de ridículo, dizendo essas bobagens e a Sarita ouvindo, sem se revoltar.

Na segunda idiotice eu pedi à Sarita que parasse o carro, eu iria a pé mesmo, não me sentia obrigada a ouvir aquela procissão de asneiras.

A Sarita ficou desorientada com o meu falatório e quase atropelou um homem e, quando chegou à casa de Alice, após ter despejado aquela idiota no final de Copacabana, ainda levei a maior descompostura.

Sarita dizia à Alice:

_Mamãe, a Verinha está seriamente doente. Precisamos conseguir para ela um psicanalista, com urgência. A felicidade dos outros faz um mal tão grande a ela que, só porque a minha amiga está feliz, casada com um  homem carinhoso, ela queria descer no meio do caminho e quase me fez atropelar um homem. 

Quando contei a Alice a quantidade de asneira que a mulher havia dito, ela deu gostosas gargalhadas e me deu total razão.

Sarita tinha dois filhos, um casal. A mais nova , Maria Alice, morreu aos oito anos, atropelada em frente à casa de Alice, na Lagoa.

O outro é o Eduardo. Escritor, advogado,

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jornalista, uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço, pai de três filhas lindas: Ana Cristina, Ana Maria e Ana Luiza. 

Sabia o quanto me sentiria sozinha sem essa família, quando me mudei para Brasília. Quando, durante um almoço, informei que estava disposta a vir para cá, ninguém acreditou. Consideravam Brasília uma loucura, um desterro, nunca podiam acreditar que eu tivesse coragem mesmo de vir para cá. Houve todo tipo de palpite. O Flávio achava que eu devia estar apaixonada por algum engenheiro, ou deputado. Todos concordaram que somente uma paixão me daria forças para largar tudo e começar de novo, num lugar deserto, sem amigos, sem programas, sem o calor humano que sempre me fez falta.

Mas, infelizmente, não havia paixão nenhuma. O que existia era a determinação de dar uma virada na vida, de tentar outros caminhos num lugar novo, de acompanhar o nascimento e o crescimento de uma cidade, de ajudar, se me fosse possível, na concretização do sonho do Juscelino.

O meu irmão, Celso, era deputado federal e eu vim morar com ele. 

 

 

Quando falei com Alice, em 1960, que havia decidido morar em Brasília, ela tentou me desanimar. Quando não teve mais nenhum argumento, saiu com esta:

_Verinha, o que você irá fazer numa terra onde não tem lagartixa?

_E o que eu iria fazer com lagartixa?

Aos domingos, na solidão do Planalto, ficava imaginando o movimento e a alegria daquela casa e

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me dava uma vontade enorme de voltar para o Rio.

À noite, ligava para Alice e ela me contava, detalhadamente, o que eu havia perdido.

Até que, um dia, o Augusto Mário sofreu um derrame e ficou com uma grande parte do corpo paralisado.

Alice ficou arrasada. Aquele homem ágil, inteligente, lúcido, culto, estudioso, ali parado, deitado numa cama, sem ao menos ler um jornal. Ela sentou-se numa poltrona num canto daquele quarto enorme e lendo, tecendo tricô, crochê, fazia companhia ao seu companheiro de toda a vida.

Escreveu-me esta carta:

 

Verinha querida,

 

 

Recebi sua carta e achei engraçado você, uma moça solteira, estar lutando com a falta de empregados.

É cedo, ainda, para isso. Largue o trabalho de casa e vá para qualquer lugar procurar a sua metade.

Lembrei-me, agora, de uma conversa engraçada da Esther. Ela diz que Deus, quando fez o mundo, deixou laranjas partidas ao meio. Quando as duas metades se encontram, o casamento é feliz.  Mas como ela não encontrou a sua metade, que já tinha apodrecido, ela agarrou mesmo uma jaca e está vivendo até hoje. Faça como ela, se não encontrar a sua metade pegue mesmo uma jaca.

Eu acabando de ler sua carta lutando para criar os filhos de seu irmão, tomei do jornal e, por acaso,

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deparei com uma notícia interessante: Um casal de americanos que se hospedou na casa de Maria do Carmo Nabuco, veio aqui para se casar. O homem tem 76 anos e a mulher 79, mais velha de que ele 3 anos.  Ambos apaixonados, um pelo outro.

Ele contou que, ficando viuvo, saiu um dia para o trabalho. Voltando à tarde ao apartamento, encontrou-o todo florido. Sabendo depois que foi a noiva que tinha arranjado as flores, resolveu pedi-la em casamento. 

É assim que se conquista os homens, procurando saber o que lhes agrada. Homem hoje está uma mercadoria muito valorizada. De cem homens, se a gente encontrar cinqüenta que queiram ou possam se casar, é o mais.  A maioria deles só procura moça rica.

Estou escrevendo assentada na cadeira que você conhece e apreciando as artes de um pequeno que o Amaro chamou na rua e mandou apanhar os cocos maduros. O menino subiu até o último galho e, lá de cima, vai atirando os cocos. Já pegou uns quinze.

Quando eu comprei este terreno não havia aqui nem bananeiras. Eu plantei os coqueiros, manga, abacate, fruta do conde, fruta pão, mamão, goiabeira, laranja, grumichama e muita bananeira.

Este prazer de plantar e colher frutos se acabou, com a mudança de casas para apartamentos, o que é bem triste.

Sarita está nos convidando para morar com ela, mas ainda não me decidi. Acho triste trocar casa por apartamento.

 Ando muito aborrecida com a idéia da mudança de Ignez para Brasília.  Não acredito que de lá ela possa vir sempre, como vem agora de Belo Horizonte. As passagens são muito mais caras.

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Será que a vida, aí, anda enjoada como aqui?

A filha de Stalin deu uma entrevista no jornal que saiu da Rússia porque não pode viver sem Deus. Será que ela irá encontrá-Lo nos Estados Unidos?

Aqui, onde o povo só vive rezando, eu acho que quem nos governa é Satanás. Deus anda aborrecido com o Brasil, com tanta moça nua se exibindo na rua e tanto homem furtando.

Eu nunca esperei ficar velha. Mas agora estou convencida que vou até os cem anos.

Yolanda voltou para a vida enjoada com o Guilherme. Ela não se queixa, mas a gente percebe que ela não está feliz.

Os homens estão, como sempre, bem ruins. Mas, felizmente, as mulheres estão lhe tomando a dianteira, cada uma pior que a outra.

Se encontrar mil erros e tudo fora do lugar é porque estou escrevendo sentada e já caducando muito.

Sem mais, um saudoso abraço e um grande beijo de

 

                                                                 Alice

24-4-67

 

Respondi:

 

 

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Alice, minha querida:

 

 

Coisa boa é receber uma carta sua. Tenho vontade de conversar com muito pouca gente, ultimamente. Só ouço bobagem misturada com idiotice e chego a preferir voltar ao meu monólogo com as crianças: Desça daí, não quebre a cabeça, cuidado com isto, com aquilo, e vou emburrecendo também e ficando igual aos outros.

Você diz, com simplicidade, as coisas mais deliciosas. Esta da filha de Stalin sair procurando Deus nos Estados Unidos foi genial! Só mesmo de você!

Deus deixou de ser um elemento espiritual para se transformar num elemento geográfico. Em lugar das criaturas se mergulharem em si mesmas, para encontrar Deus, saem viajando pelo mundo, à sua procura. E, logo nos Estados Unidos?

Por quê não na Índia, lugar de meditação?

Aqui está tão ruim quanto aí, sim. Recordo-me, sempre, daquele amigo do Abgar que todas as noites sentava-se na cama antes de adormecer, e se queixava: tantos anos, tantos dias, tantos meses, tantas horas e esta mesma porcaria!

E você ainda vem com essa bobagem de querer que eu me case. Eu estou a fim é de simplificar a vida, não complicá-la. Nasci sozinha e quero morrer só. Quanto menos chateação, melhor. Imagina se ainda vou me casar com um chato para aborrecer, mais ainda, a minha vida e ainda ter filhos, como se a vida fosse presente que se desse a alguém. Presente de grego, eu acho. Nenhum horizonte, ameaças de todos os lados, guerras atômicas pela frente e uma série de chateações nos intervalos, é a isto que chamam vida?

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E ainda estão nascendo crianças, isto é que me espanta.

Eu também tenho plantado muitas árvores na minha chácara. Cheguei à conclusão de que a única coisa realmente importante e futurosa no nosso País é plantar árvores. Pelo menos elas crescem, dão flores e frutos e ninguém atrapalha.

Depois de uma série de empregadas loucas consegui uma cuja única estranheza é gostar de vestir bonecas. Faz vestidinhos o dia inteiro. Eu nunca achei muito normais as pessoas que aceitam viver numa cozinha de manhã à noite, fazendo comida para os outros e lavando panelas. Acho um ideal tão raso que só combina, mesmo, com loucos. A Consuelita é, apenas, infantil. Além de vestir as bonecas ela gosta de fazer biscoitos. É biscoito de toda a qualidade e gosto, alguns uma delícia. E a criançada adora.

Acho que a Ignez  gostaria de viver aqui, sim. Ela gosta mais ou menos das mesmas coisas que eu gosto: ler, conversar com pessoas inteligentes, ouvir música, jogar um biriba e receber amigos. Tudo isso existe aqui.

E você podia parar com essa mania de detestar Brasília e vir para cá com ela. Você e Augusto Mário.

Vocês ficariam aqui em casa, comigo. Da janela, você avistaria paisagens às pampas, árvores e gramados a perder de vista. Seus coqueirinhos são pinto perto do que existe aqui.

Plantaram árvores e mais árvores, de todas as qualidades, para fazer companhia àquelas que já existiam, secas, retorcidas, sofridas, e compensá-las dos anos e anos de solidão.

E, da janela, só da janela, você terá a impressão de viver num mundo florido, bom e justo. Os carros correndo nas avenidas largas e lindas, as criaturas atravessando parques, as crianças espalhadas,

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brincando nos “play-ground”, onde existem brinquedos de todas as espécies. Os prédios lindos, as tardes maravilhosas, céu vermelho, vidraças vermelhas, lua nascendo com força e clareando tudo, enfeitando o lago, as árvores, as areias e os brinquedos das crianças.

Fico, durante horas e horas na janela olhando, ameaçada de virar estátua. E pensando o quanto o nosso Juscelino foi capaz ao concretizar o seu sonho de criar um cidade. E o quanto o nosso povo foi competente, construindo Brasília em tão pouco tempo.

Você não me falou do Augusto Mário. Tenho uma ternura enorme por ele. É exatamente  a metade da sua laranja. Pouquíssimas laranjas foram recuperadas na Terra, inteiras. Vocês dois conseguiram esse milagre.

Neste exato momento chegaram as crianças no meu quarto e estão fazendo a maior algazarra. Uma delas está chorando.  Já brigaram, com certeza.

Voltarei a escrever e contarei umas novidades daqui para provar a você que a loucura não é privilégio daí.

Um beijo grande e carinhoso para você e Augusto Mário. Abraços para a família e agregados.

                                                                          Vera

12-5-67

 

 

Num dos meus telefonemas para saber notícias do Augusto Mário, fiquei sabendo que o Nhonhô, irmão da Alice, havia morrido e que Alice estava muito triste.

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Mandei-lhe uma carta:

 

 

Alice, minha querida:

 

Sei o quanto você deve estar sofrendo com a morte do seu irmão. Sei com que intensidade você ama as pessoas do seu carinho e o vácuo que deve existir na sua emoção, quando você perde uma delas.

Gostaria que o carinho da gente que a ama tanto pudesse equilibrar, um pouco, este seu sofrimento.

Porque você, Alice, é uma das pessoas mais bonitas que conheço. Foi o que encontrei na vida de mais sensível, humano e generoso.

A humanidade está cada vez pior, concordo.

A salvação é que a gente consegue encontrar criaturas como você, que justificam esta humanidade tão cheia de ambição e tão sem grandeza.

Veja a atual situação do nosso Brasil.

Lembra-se do quanto você e Augusto Mário sofreram, na ditadura do Getúlio, perseguições, exílios, além do sofrimento de ver os amigos sendo presos, torturados, separados de seus filhos?

Pois é. Está tudo igualzinho.

No Brasil, este problema de quartelada é cíclico.

A gente cria os filhos com o maior cuidado, como você criou os seus e eu estou tentando criar os meus. Quando eles ficam rapazes, lá vem quartelada de novo. E todos os sentimentos de amor à pátria, dignidade, bom caráter, lealdade, liberdade de

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pensamento, que lhes ensinamos, fazem deles pessoas perigosas e ... desce pancadaria sobre as suas cabeças.

Mas, se lhe déssemos orientação contrária, eles não seriam visados, mas nós não iríamos suportá-los.

Fica difícil sonhar um futuro brilhante para eles, num País tão pouco amadurecido como é o nosso.

Tenho pensado muito no Nhonhô. Ele me falava de minha mãe com muito carinho e bondade.

Perdi a mamãe muito pequena, mas consegui reencontrá-la, algumas vezes, em alguns olhares, em alguns gestos. Em você, principalmente.

Morrer, para mim, não tem o sentido de acabar. Quantas pessoas vivas morrem dentro de nós! E quantas morreram e deixaram sementes tão bem plantadas no nosso íntimo que, às vezes, não somos senão reflexo do que elas foram, do que nos fizeram ser.

Dê um beijo na Corina, outro na Maria Alice. Breve lhes escreverei.

Espalhe beijos pela família: Sarita, Ignez, Abgar, Iolanda, Augusto Mário.

Escreva-me. E não se esqueça de colocar o endereço.

Afinal, nem eu sou tão grande, nem Brasília é tão pequena.

Num beijo, toda a ternura de

                                                           Vera.

 

 

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Verinha querida:

 

Recebi a sua boa e bonita carta.

Gostei de você ter se lembrado de meu querido irmão.

Lembrei-me dele se referindo a você com simpatia.

Senti ele ter morrido antes de mim, eu o criei desde pequeno e o queria como a um filho.

Graças a Deus, ele teve a morte que merecia, morreu sem sofrer, sem sentir.

Eu não estou podendo, como você, me preocupar com a situação do país. Vivo tão triste, preocupada, vendo Augusto Mário há ano e meio, doente, sem andar.

O que eu mais gostei de sua carta foi saber que você vai recebendo bem a nova vida de mãe de três filhos! Quando, meses atrás, nós conversávamos ao telefone e você me disse que estava com três sobrinhos, eu fiquei triste e com pena de você.

Mas, agora, vi pela sua carta que você está levando bem a nova vida, apesar de trabalhosa. Antes assim.

Só fiquei triste ao pensar que, agora, será mais difícil a sua vinda aqui.

Não me conformo com esta Brasília, tão distante que mais parece um deserto. Quando leio o jornal e vejo o que escrevem contra o Juscelino, eu fico com tanta pena dele que preciso me lembrar que ele fez Brasília, para acabar a pena e me consolar.

Basta de tanta coisa triste.

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Com um saudoso abraço de

 

                                                         Alice

 

 

 

 

Só agora entendo o que Alice quis dizer quando me chamou a atenção para o fato de Brasília não ter lagartixas. Brasília, no início, era uma cidade lisa, fria, sem plantas, sem vegetação.

Agora, deitada na rede de minha varanda, rodeada de plantas, samambaias e trepadeiras, vendo as telhas envelhecidas cheias de lagartixas, entendo que tudo isto significa lar, aconchego, amor, que ela sabia o quanto me fariam falta.

 

  Várias vezes fui ao Rio visitar Alice e Augusto

Mário.

Aquele homem culto, inteligente, afetuoso, que vivia lendo no seu escritório, agora deitado naquela cama, triste, quase sem se movimentar, dava uma tristeza enorme na gente.

Alice não se afastava do quarto. Sentada no sofá, lendo ou tecendo, não se separava do homem que escolheu como companheiro e amou a vida inteira.

Quando Augusto Mário morreu, Alice foi para o

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apartamento da Sarita.

Voltei ao Rio para vê-la.

Ela já não tinha mais entusiasmo para conversar. Quando dizia alguma coisa, era sobre o Augusto Mário. Não conheci, até hoje, alguém tão apaixonado.

Enquanto ela dormia, eu pensava:

Que mulher extraordinária!  Que sorte eu tive de, ainda jovem, quando vim para o Rio, encontrá-la. Eu sozinha, solta na vida, sem rumo e sem prumo, com o caráter ainda em formação, a personalidade, idem, sem ter que prestar contas a ninguém dos meus atos, com aquele sentimento de revolta por ter perdido a mãe muito cedo, ter tido um pai pouco carinhoso e uma madrasta doida, uma bagagem mais para uma descida, um despencar na vida, do que para um equilíbrio, uma subida, encontro esta fortaleza, esta  admirável criatura que me recebeu com um carinho que me era totalmente desconhecido, estranho.

Acho que Alice transferiu para mim o amor que sentia pela minha mãe. No primeiro abraço, percebi isso. Ela me olhava, às vezes, buscando em mim a amiga querida.

Eu nunca havia sentido uma admiração tão grande por alguém. À medida que nos conhecíamos melhor, eu a amava mais ainda. Nunca ouvi Alice falar mal de qualquer pessoa.

Era profundamente amorosa, sem perder a energia. A sua generosidade era discreta. Nada nela era falso. Coerente, sensata, sóbria, solidária, franca. Não dava muita importância ao fato de seu livro estar sendo considerado best-seller em vários países do mundo. O Abgar chegava com um artigo de um jornal dos Estados Unidos, ou da França, ou da Itália,  lia para ouvirmos e ela não demonstrava o menor espanto, nem grande alegria. Dava um sorriso e,

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pronto, já nos chamava para almoçar.

Passei a creditar no ser humano e a ter esperanças, quando conheci Alice. Pensei: Se existe, realmente, uma criatura assim, o mundo não é tão ruim quanto eu achava.

As palavras, os conselhos,  a orientação, o carinho com que transmitia os seus ensinamentos sem a pretensão de estar impondo caminhos ou indicando estradas. Dificuldade, sofrimento, tristeza  ela conhecia bastante. Ao contar, às vezes, estava pretendendo nos ensinar como superá-los ou, no mínimo, sofrer com menor intensidade. Não dizia: Você deve agir assim. Apenas contava. Não desperdiçava palavras. Cada frase que ela pronunciava, tinha um sentido. Cada atitude, idem.

Uma amiga da Ignez, chamada Lurdes,  ia muito à sua casa e contava-lhe horrores do marido, que era uma criatura péssima que a fazia sofrer muito. Quando ele morreu de enfarte, por insistência da Ignez, Alice foi visitá-la.

Quando abriu a porta  do apartamento onde estavam várias pessoas e a Lurdes veio ao seu encontro, aos prantos, Alice foi dizendo:

_ Por quê este choro? Você devia estar feliz, ficou livre daquele bandido que só a fazia sofrer. Eu não vim para visita de pêsames, não. Vim comemorar. 

Era assim, foi assim a vida inteira, desde menina. Não fazia a menor concessão. Não abria uma brecha para os sentimentos menores. Acho que ela demonstrou isso desde menina, no seu diário. Só que as criaturas que se dizem humanas vão se deteriorando, durante a vida.

Alice, não. 

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                           ..........................

 

 

 

 

 

 

 

Minha Vida de Menina

 

 

 

Em 1941 a família Brant morava num apartamento, enquanto a sua casa estava sendo construída na Lagoa Rodrigo de Freitas, perto do Corte Cantagalo onde existe, hoje, o Edifício Helena Morley.

Alice detestava morar em apartamento.

Certa tarde de sábado, para distrair os filhos, pegou dentre os seus guardados o diário que havia escrito quando menina e resolveu ler para eles e para o marido.

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Todos escutavam encantados.

Ao final da leitura o marido Augusto Mário, sugeriu:

_ Por quê não publicamos esse diário? Muita gente iria ter a oportunidade que estamos tendo de ouvir histórias tão interessantes de uma menina inteligente numa cidadezinha mineira, no final do século passado.

Alice não achou muita graça na idéia. Ignez, sua filha, adorou.

Depois de muita discussão, Alice concordou em transformar tudo aquilo num livro, desde que fosse com pseudônimo, do contrário Diamantina inteira iria brigar com ela.

Pensaram vários nomes. Alice preferiu Helena porque achava um nome muito bonito. E o sobrenome Morley, de sua avó materna.

Assim nasceu Helena Morley.

 

O livro foi lançado pela Livraria José Olympio em 1942.

Foi o maior sucesso. O Brasil inteiro comentava e as edições se esgotavam, uma após outra.

 

No Jornal “A Manhã”, dia 19 de junho de 1943, Gilberto Freyre escreveu um longo artigo sobre o livro e dele retiramos o seguinte trecho:

“A narrativa é quase história natural; mas uma história natural de que acabamos não sabendo separar a história pessoal na menina chamada “Helena Morley”, de tal modo nos habituarmos a vê-la, não só como uma menina qualquer – um caso

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sociológico – mas com seus característicos, seus cacoetes, suas sardas, na variedade de situações sociais e psíquicas em que se delicia em retratar-se no diário. Retratos sempre de grupos; grupos de família, grupos de colegiais, procissões até, das quais a autora do diário se destaca sem que deixemos de ver sua mãe, sua avó, seu pai, suas irmãs, suas tias, seus professores, as negras da casa, as visitas.

Daí o interesse sociológico e histórico do diário de menina brasileira agora publicado – mesmo que não seja literalmente diário nem literalmente história. Como a biografia do Barão Geraldo de Rezende por sua filha, Dona Amelia de Rezende, esta quase auto-biografia de menina mineira nascida ainda sob a influência social: São Paulo, Minas, o Norte monocultor”.

 

No Jornal “Folha Carioca” de 29 de Abril de 1944, Raquel de Queiroz escreveu uma bonita crônica e dela retiramos o seguinte trecho:

 

“Se dona Helena Morley fosse mais pretensiosa poderia dar ao seu livro um título mais ou menos assim: “Retrato de uma cidade brasileira nos fins do século XIX” – ou “Memórias do último período do patriarcalismo escravocrata” (esse eu calquei numa frase de Gilberto Freyre) ou qualquer coisa idêntica de sabor sociológico e erudito. Porque esse diário de uma menina representa na verdade um apanhado maravilhoso dos costumes, das tradições, é um retrato a bico de pena da cidade de Diamantina nos fins do século passado, com seus tipos populares, suas festas, seu pitoresco, seu primitivismo de localidade onde não chegou ainda uma ponta de trilho, e está a meio século de distância da primeira asa de avião”.

 

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E Gustavo Capanema, numa carta à sua filha Ignez, em 22 de maio de 1945:

 

Rio de Janeiro, 22 de maio de 1945

Minha cara Ignez,

 

Peço que dê a sua mãe uma informação.

Ontem aqui esteve para se despedir Georges Bernanos, que, varrido pelo nazismo, morou quase sete anos no Brasil e agora volta para a França.

Conversamos muita coisa: o após-guerra, o nosso povo, De Gaulle, Euclides da Cunha, pintura, André Gide ... Tendo eu dito que Gide é muito lido entre nós, principalmente o jornal, Bernanos, numa súbita associação de idéias, disse que um dos livros que já o feriram é o de Helena Morley. Falou com veemência. Guardo algumas: c’est une oeuvre géniale ... um livre unique, impossible à traduire ... c’est um miracle, comme lê miracle de Rimbaud ...

Falei essas coisas ao Abgar. Mas talvez não tenha dito tudo. Depois, você é que é filha.

Tenho ouvido muito elogio ao livro de sua mãe. Nada me parece tão forte como as palavras de Bernanos.

Certamente elas hão de agradar ao seu coração.

Receba as cordiais expressões de amizade do seu velho

                                                                      Capanema

 

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Em seguida, no dia 30 de maio de 1945, Alice recebeu esta carta de Georges Bernanos:

 

 

Prezada Senhora:

 

Muito me emocionou a gentileza de enviardes a mim o vosso livro, pois na verdade acredito que já sabeis quanto o admiro e amo.

Escrevestes um desses livros raros em todas as literaturas, livros que nada devem à experiência, ao talento, mas tudo devem ao ingenium, ao gênio, pois não se deve ter medo dessa palavra tantas vezes desviada do seu significado, ao gênio considerado em sua própria fonte, ao gênio da adolescência. É que aí as recordações de uma simples menina de Minas apresentam o mesmo problema que os fulgurantes poemas de Rimbaud. Por mais prodigiosamente diferentes que pareçam aos imbecis, sabemos que essas recordações pertencem à mesma parte misteriosa – mágica – da vida e da arte.

É provável que ignoreis o valor do que nos destes. Eu, que o sinto tão profundamente, não saberia defini-lo. Conseguis que nós vejamos e amemos tudo o que vistes e amastes naqueles dias distantes, e cada vez que fecho o vosso livro convenço-me de que o espírito dessa narrativa me escapa. Mas que importa?

É bem emocionante que se diga que a menina que fostes, bem como o pequeno universo em que ela viveu, não morrerão nunca.

Peço-vos que aceiteis as minhas homenagens.

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                                    G. Bernanos

 

 

 

Paulo Mendes Campos escreveu num artigo em que conta o seu pressentimento:

 

“Não sou profeta, mas “Minha Vida de Menina” há de ficar na literatura como um desses clássicos peculiares como os diários de Pepys, de Maria Baskirtseff, de Anne Frank. Ao contrário da obra de Lewis Carroll, aí se conta a história de uma menina em um país de verdade. A composição do mural é tão intuitivamente certa que espanta: as experiências se desdobram e completam a pintura com uma naturalidade admirável.

Tenho a pretensão de conhecer melhor Minas Gerais e seu povo depois dessa leitura. Por outro lado, li algumas passagens a uma garota de sete anos, e a sua reação foi exigir um exemplar somente para ela. É a grande doçura do livro: não tem idade. Por isso mesmo, acho que o editor da obra andaria avisado se fizesse publicar um volume ilustrado por um desenhista capaz de traduzir o enternecimento (sem qualquer pieguice) de “Minha Vida de Menina”. Já é tempo de dar essa obra como um esplêndido presente, à infância e à juventude.”

 

 

Guimarães  Rosa escreveu-lhe esta cartinha:

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Rio, 15 de julho de 1958.

 

À ilustre conterrânea e admirável escritora D. Alice Brant, muito e vivamente agradeço o gentil, oferecimento do “Minha Vida de Menina” – que já lera e relera, em outra ocasião, com encantamento e amor, considerando-o como um dos maiores livros brasileiros, dos mais importantes.

E em grata e cordial homenagem beija-lhe as mãos o

 

                                                         Guimarães Rosa.

 

 “... E, vinda de Minas Gerais, também surgiu a extraordinária Helena Morley, com o seu “Minha Vida de Menina”. Esse é um caso único na literatura brasileira, e o seu comentário exige artigo à parte”.

“ Senhores do artifício e da invenção, romancistas do retorcido e do complicado...vinde aprender uma lição de clareza e de simplicidade. Porque este diário de uma menina representa, na verdade, um apanhado maravilhoso dos costumes, das tradições, é um retrato a bico de pena da cidade de Diamantina nos fins do século passado...Poucas vezes, em minha vida, tenho percorrido uma obra impressa com tão integral emoção”.

                                      Rachel de Queiroz

 

“É uma biografia disfarçada, esta, de Helena Morley, mas ao mesmo tempo é uma espécie de

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história natural da vida da família brasileira no último período do patriarcalismo escravocrata e numa região menos conhecida que o nordeste da cana de açúcar. Sob esse aspecto é que o diário de Helena Morley me interessa mais vivamente”.

“Uma série de fatos, aparentemente sem importância, são recordados num português tão simples...que lembra o inglês dos bons e autênticos diários britânicos e norte americanos de moças e mulheres. E através dessa série de fatos miúdos e quotidianos, mas significativos, o leitor se familiariza com a menina-moça... e com o mundo quase completo de sua experiência, de sua vida de família, de seu desenvolvimento de colegial em normalista. Um desenvolvimento a que não faltam situações moderadamente dramáticas: a morte da avó querida, por exemplo”

 

                                                 Gilberto Freyre

                           

 

“ A leitura do livro confirmou minha expectativa, fundada nos elogios que à obra tinham feito homens como Bernanos. Como ele, sinto também que aquele mundo de Diamantina não morrerá jamais. Sinto igualmente que o centro daquele seu mundo é a figura da avó; eis um dos mais fortes e impressionantes retratos da nossa literatura”.

 

                                         Manuel Bandeira

                                                           

 

Uma poetisa norte-americana, distinguida com o

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Prêmio Pulitzer (a maior laurea literária dos Estados Unidos concedida a Hemingway, Thornton, Wilder e outros de igual categoria), veio morar no Brasil.

Chamava-se Elizabeth Bishop.

Fixou sua residência em Petrópolis.

Amiga de Manuel Bandeira, pediu-lhe que lhe indicasse alguns livros capazes de contribuir, eficazmente, para a sua descoberta do Brasil

Um dos livros indicados pelo poeta foi “Minha Vida de Menina” e Elizabeth Bishop ficou de tal maneira encantada que resolveu traduzí-lo;

Foi a Diamantina e conheceu todos os lugares que Alice percorreu na sua infância.

Traduziu o livro com enorme competência e sensibilidade e o sucesso foi enorme.

Eis como o “Time” saudou “The Diary  of Helena Morley”.

 

“O Diário é cheio de graça, da beleza e de alguns dos dissabores da vida de uma cidade provinciana”.

 

 

Em 1958, no “Diário de Notícias” Rubem Braga escreveu esta crônica:

 

  “Não me espanto desse livro estar em quarta edição; se o brasileiro tivesse algum hábito de ler ele devia estar na décima. É difícil imaginar um livro mais macio, mais simples, mais engraçado e comovente, um livro que seja assim capaz de agradar a qualquer

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pessoa, seja qual for seu gosto em leituras. Se você quiser dar um livro de presente, dê esse, porque dá sempre certo: estou falando de “Minha Vida de Menina” de Helena Morley. É o diário verdadeiro de uma menina de Diamantina, no fim do século passado. A autora, que na verdade é a senhora Alice Brant, ordenou os cadernos em que fazia suas composições, na infância, para mostrá-los às suas netas, e daí veio a idéia do livro.

Já está ele traduzido para o inglês pela excelente poetisa norte-americana Elizabeth Bishop, que vive no Brasil; acho que a Divisão Cultural do Itamaraty devia se interessar pela sua tradução em outras línguas, pois é um comovente retrato da vida brasileira em certa época e em certa região.

É um livro, como se costuma dizer, sem literatura; chegará a ser arte o que não é elaborado, o que não sofre nenhuma transposição? Mas aí é que está o milagre da coisa. Muitas outras meninas viviam em Diamantina no fim do século, e o professor de português da Escola Normal obrigava as alunas a fazerem uma composição quase todo dia. A realidade era mais ou menos a mesma para todas. A sensibilidade especial dessa menina, aliada a um jeito natural para escrever, é que permitiu esse milagre de nos trazer até hoje, e para sempre, viva, essa Diamantina de mais de 60 anos atrás. E isso não é arte? E qualquer escritor pode aprender muito aqui e muito tem a invejar, principalmente esse casamento perfeito da linguagem com o assunto. O português não é sempre correto, do ponto de vista gramatical; é corretíssimo, é magistral como expressão do tempo e do meio, e merece todo um estudo de filosofia.

Como eu gostaria de ver esse livro ilustrado! Teria de ser um desenho bem simples, sem nenhuma pretensão, talvez Percy Lau ou Noêmia, em todo caso o desenhista teria de ser documentado sobre Diamantina e assessorado pela autora sobre as modas do tempo e o jeito das pessoas. Faça isso para a quinta edição, José Olímpio, e mesmo que encareça

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o livro não tem importância, ele merece e vale.”

                                                       

                                                         Rubem Braga

 

 

 

 

 

Tribuna da Imprensa, 8 de janeiro de 1958:

 

                                    As evocações de uma menina brasileira, no fim do século passado, no município mineiro de Diamantina, estão apaixonando, cada vez mais, o público norte-americano, advertido por vários críticos categorizados da existência, numa admirável tradução inglesa, de uma obra realmente encantadora, que guarda em suas páginas o encanto mágico da infância.

              A Sra. Alice Caldeira Brant, já cientificada deste e de outros honrosos julgamentos, disse à Tribuna da Imprensa:

 

-                                                                  “Talvez os americanos tenham gostado da simplicidade com que escrevi. É a única explicação que encontro para tudo o que está acontecendo.

-                                                                  Trata-se de registros sentimentais  feitos por uma criança e sujeitos, por isso mesmo, à volubilidade própria da infância. 

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Sempre que eu desejava criticar alguém, meu pai me pedia para não fazer  diante dele ou de mamãe, ou mesmo diante de minhas amigas. Mandava que eu escrevesse tudo, desabafasse diante de uma folha de papel. Anotando os dias, comecei o meu livro aos treze anos de idade. Até a idade adulta, continuei com o hábito. Devo dizer que jamais tive a intenção de publicar coisa alguma. Mas minha família insistiu, convenceu-me de que eu era realmente uma escritora. O livro saiu no Brasil e eu pensei que tudo tivesse acabado aí.  Mas sua história continua...”.

 

 

Julgamentos:

 

Uma nova edição de “The Diary of Helena Morley”, pois as três anteriores se esgotaram, está sendo providenciada pela editora norte-americana que lançou a autora brasileira. Segundo o “Chicago Sunday Tribune” “tem  as raras qualidades da observação, compreensão humana e o inato espírito de descrever com simplicidade tudo o que viu e sentiu”.

E o “Globe Democrat” acentuou que ela “deu ao seu Diário uma duradoura universalidade, um sentimentalismo que rompe as fronteiras de sua pequena cidade e elcança o mundo”.

O “Harper’s Bazaar” proclamou que, graças à tradução de Elizabeth Bishop, Helena Morley “ mantém as  mesmas qualidades humanas que emergem das páginas de seu Diário”.

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No Jornal do Brasil, em 8 de julho de 1958, Fernando Sabino escreveu:

 

“Não fosse o entusiasmo com que o receberam uns poucos escritores de sensibilidade mais apurada, por ocasião de seu lançamento, e o grito transbordante de entusiasmo com que o saudaram Bernanos, então vivendo entre nós, a considerá-lo obra de gênio, e talvez não tivesse sobrevivido à onda de sucessos transitórios que de vez em quando afoga nosso mercado editorial. E ressurge agora, em mais uma edição, depois de inesperado sucesso que foi seu lançamento em inglês, constituído em best-seller e saudado pelos melhores críticos americanos”.

 

 

Ainda em 1958, 2 de fevereiro, o Jornal do Brasil publicou, na coluna do Nelson Coelho:

 

Caminha para o “Best Seller” o Diário da brasileira Helena Morley.

 

Um fator da impressionante aceitação que o livro vem tendo aqui, é por tratar-se de um diário de menina. O tema está na moda. Vejam este trecho de Mildrea Adams, no “New York Times”: “As anotações alegres da jovem anglo-brasileira estão em tempo, circunstâncias e geografia, alguns mundos distanciados das revelações sombrias da alemã Anne Frank. Embora ambas sejam, ostensivamente, produto de adolescentes sensíveis. Tendo aceitado a

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tragédia da realidade de Anne Frank, o leitor precisa agora contrabalançá-la com essa nova afirmação de que a juventude não é sempre torturada”.

Outro fator prende-se ao “exotismo” brasileiro. Observem este trecho de uma crítica que saiu na capa do “Book Review”, do “New York Herald Tribune” entre duas grandes e boas fotos de Diamantina, sob o título de “Menina Encantada, Diário Clássico”, observem o desejo de imprimir ao cenário, costumes, às coisas, aos homens, tons exóticos que lembram folhetos de turismo: “Minas Gerais, maior que o Texas, foi cenário de grandes comoções no século dezoito, quando aventureiros para lá seguiram em busca de ouro e diamante.  São terras misteriosas e perdidas, quase todas circundadas  por montanhas e onde se encontram pequenas e poucas cidades, fundadas nos dias coloniais. De todas elas, Ouro Preto é a mais interessante...” O critico, que é Hubert Herring, prossegue falando das estranhas maravilhas de Ouro Preto, de Aleijadinho, das igrejas barrocas e que conclui que Diamantina é uma cidade pobre, como o era em 1893, quando Helena Morley escreveu o seu diário.

                        

 

                      ...........................

 

Em 1960 o livro já estava na sua sexta edição e, num artigo no Suplemento feminino do “Estado de São Paulo”, Bráulio Pedroso escreveu, dentre outras coisas:

 

“Na verdade o que há nesta obra, além de qualquer comparação de época e costumes, é uma deliciosa evocação do mundo infantil. As impressões da menina

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provinciana de Diamantina ressurgem por vezes as relações de uma sociedade menos complexa, de um Brasil atrasado, sem as formas organizadas de produção, onde permanecia – principalmente na região evocada – um simpático aventureiro a jogar com as dádivas da terra. Mas apesar destas diferenças – que uma atualidade industrializadora exagera – não houve modificações essenciais nos conflitos humanos. Ao se rememorar os tempos passados como os melhores, há apenas um saudosismo que sempre existiu nas gerações mais velhas.

Não é pela simplicidade dos hábitos de Diamantina dos fins do século passado – como promete a autora – que a leitura de ”Minha Vida de Menina” nos seduz. O encantamento está no retorno que empreendemos aos nossos valores infantis, a nossa efabulação descompromissada, no reviver os julgamentos que precederam nosso encontro com a realidade adulta”.

 

“Gazeta de São Paulo”, 1/8/58:

 

Esta “obra prima”, como a classificou Georges Bernanos, traduzida para o inglês pela poetisa Elizabeth Bishop, conquistou o mais alto galardão para as letras femininas do Brasil. Um livro escrito com as tintas indeléveis da poesia e da ternura; um livro que hoje se inclui entre os mais famosos diários jamais escritos em quaisquer idiomas.

Com o lançamento da quarta edição de “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley, a Livraria José Olympio Editora está reapresentando um dos grandes êxitos brasileiros da literatura de memórias. Escrito sob a forma de diário, o livro descreve a vida de uma adolescente brasileira nos fins do século passado, integrada no ambiente típico de uma cidade provinciana da época - a cidade de Diamantina, no

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Estado de Minas Gerais. Relato minucioso da existência quotidiana numa cidade que conhecera os seus dias de glória com a mineração de diamantes, “ Minha Vida de Menina” é portanto um rico manancial de hábitos, costumes e tradições populares e, sobretudo, o retrato fiel de uma família brasileira há quase setenta anos passados. Escrita com admirável simplicidade, graça e emoção, esse diário constitui a mais autêntica revelação de uma escritora.

Helena Morley deu à literatura brasileira o seu livro clássico no gênero, que é ao mesmo tempo um extraordinário documento sociológico. Precisamente o que mais sobressai nesse livro encantador é o seu aspecto humano, o conteúdo psicológico, os retratos admiráveis de homens e mulheres, crianças e adolescentes, que nos chegam do fundo do passado cheios de autenticidade e de calor, mundo recriado pela memória e por sua legítima vocação literária que não precisaria de outras provas para garantir sua própria sobrevivência. “Um milagre, como o de Rimbaud”, asseverou Bernanos: “ um dos mais fortes e impressionantes retratos da nossa literatura”, escreveu Manuel Bandeira.

 

 

Oscar Mendes, na sua coluna  Alma dos Livros escreveu, em 1958:

 

 “ O pai que lhe conhecia bem a vivacidade e a inteligência, aconselhou-a a escrever diáriamente o que visse e sentisse e a menina Helena Morley ( pseudônimo da Sra. Alice Brant), neta de inglês, com treze anos de idade, começou a anotar em seus cadernos de colegial os acontecimentos de sua vida cotidiana, na cidade de Diamantina, aí pelos anos 1893 a 1895.

Quase meio século depois, aparecem em livro essas anotações do dia a dia de uma adolescente. O livro, pelo seu frescor e pelo seu viço, pela sua franqueza, pela sua limpidez, pela sinceridade de seu depoimento, pela veracidade da observação, pela ausência de literatura reformante, pela veracidade da

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observação,  pela ausência da literatura deformante pela vida que nele pulula e vibra torna-se um “best-seller”, na sua quarta edição e arranca de escritores como Bernanos frases assim: “obra genial, livro único, impossível de traduzir, milagre, como o milagre de Rimbaud”, é traduzido para o inglês e os críticos norte americanos aclamam-no com entusiasmo.

Qual o segredo, qual a magia oculta que faz dessas páginas escritas sem intenção de publicadas, uma pequena obra prima de graça, de ingenuidade , de emoção e de poesia? Nelas não há profundezas psicológicas, precocidades geniais, requintes de forma, acontecimentos importantes e sensacionais. Há simplesmente a vida, a vida que flui, no seu cotidianismo, mas a vida vista através da curiosidade e da sensibilidade, da inteligência e do espírito de uma adolescente num meio provinciano, em fins do século passado”. 

Mais adiante: “A vida que flui... eis o segredo da graça e do sabor desse livro. A vida vista pelos olhos de uma menina numa cidade do interior de Minas. Menina viva, inteligente, perspicaz, que vai observando os contrastes, as contradições, as complicações, os absurdos, os enigmas, as desigualdades e as injustiças da nossa decaída condição humana e dando opiniões, apontando ridículos, concenando o que lhe parece errado ou injusto. Nessas opiniões e comentários, predomina a franqueza e há neles, por vezes, uma nota de malícia, de ingênua desfaçatez  dum sabor delicioso”.

E termina o longo artigo:

“Onde está o resto de tão delicioso depoimento?  Existem outros cadernos? E se existem, por quê não publicá-los? Por quê privar-nos de tão puro e refrescante sorvo de vida? “.

 

Foram vários e vários artigos elogiando o livro e, de

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todos, retiramos estes:

 

New York Times:

 

“ Encantador... uma notável evocação da adolescência...um verdadeiro ato de gênio. Plyllis Mc Grinly”.

 

 “O Diário de Helena Morley, traduzido por Elizabeth Bishop, um livro notável... um quadro extraordinariamente detalhado e vívido do mundo de uma pequena cidade visto pelo olhar jovem e agudo de uma jovem que tinha grande entusiasmo pela vida em todas as suas fases...Colocado de maneira deliciosa, de modo vivo e articulado. Rosemary Benet”

 

Tribune- Chicago:

 

“Ela tinha os raros dons de um  olhar perscrutador, um coração compreensivo, e o gênio inato de uma maneira inteiramente natural de escrever o que via e sentia. Fanny Butcher”

 

 

Em 22 de junho de 1960, Maritônio Meira publicava na sua Coluna no Jornal do Brasil:

 

“O livro Minha Vida de Menina, de Helena Morley – pseudônimo da brasileira Alice Brant –foi publicado há

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pouco em  Paris e vem recebendo grandes elogios da imprensa parisiense. A revista feminina Elle está  aconselhando a suas leitoras a leitura das páginas da escritora brasileira, comprando-a a Anne Frank.

Quem nos dá essa informação é o repórter Luis Edgard de Andrade, do JB, que está em Paris”.

PARIS (Via Panair) – Publicando uma seleção do diário de Helena Morley, escrito em Diamantina – Minas Gerais, entre 1893 e 1895, por D. Alice Dayrell Brant, a revista feminina Elle aconselha a suas leitoras francesas: “Leiam algumas páginas. Vocês serão imediatamente conquistadas. A menina Helena se tornará para vocês a irmãzinha de Marie Bashkerstaf e de Anne Frank”.

 

A tradução francesa de Minha Vida de Menina, de Helena Morley – feita pela Sra. Marlyse Meyer – acaba de ser lançada, em Paris, pela editora Calmon-Levy  (a mesma casa que publicou, na França, o diário de Anne Frank), e o seu prefácio é um fac-simile da carta que, em 30 de maio de 1945, Georges Bernanos, então exilado no Rio de Janeiro, dirigiu à sua autora.

 

 

 

O Jornal das Letras, em outubro de 1958, informava:

 

O enorme sucesso de “Minha Vida de Menina” nos Estados Unidos repete-se agora em maior escala na Inglaterra. A versão inglesa do “Diário de Helena Morley foi indicada para a “Escolha de Setembro”,

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pela The Book Society, de Londres. A revista “THE BOOKMAN”, que é o boletim da The Book Society, publica em seu número de julho/agosto o seguinte comentário a respeito de “Minha Vida de Menina” – cuja 4a. edição brasileira esgotou-se em dois meses, estando já em preparo uma 5a. edição

 

Edições no exterior:

 

Edição Norte-Americana:

The Diary of Helena  Morley”

A girlhood journal of life in a mountain town of Brazil at the turn of the century.

Translated, edited and prefaced by Elizabeth Bishop.

New York, Farrar, Strauss and Cudahy, 1957

 

 

 

Edição Inglesa:

 

The Diary of Helena Morley

Translated from the Portuguese by Elizabeth Bishop

London, Victor Gollanck Ltda, 1958

 

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Edição Portuguesa:

Introdução de Alexandre Eulálio

Lisboa, Guimarães Editores, 1959

 

Edição Francesa:

Journal D’Helena Morley

Traduit par Marlyse Meyer, avec une lettre de George Bernanos. Paris, Calmann-Levy, 1960

 

Edição Italiana:

Uma Ragazza in Diamantina

Traduzione di Giuseppe Valdania e Giovanne Visentin

Edirore Officine Grafiche – SEI, 1963

 

 

Alice morreu em 20 de junho de 1970.

 

 

Em 30 de agosto de 1980, Carlos Drummond de Andrade escreveu essa belíssima crônica em sua homenagem.

 

HELENA E ALICE NUM CENTENÁRIO

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Missa no Mosteiro de São Bento, pelo centenário de nascimento de Alice Dayrell Caldeira Brant. Entre parênteses, no convite pelo jornal: Helena Morley. Está dito tudo. Há cem anos nascia a autora de Minha Vida de Menina, livro sem par na literatura brasileira.

Dispomos de outros registros da vida infantil, assinados por pessoas que, chegando à idade madura, se voltaram com nostalgia para que o poeta chamava de “aurora da minha vida”. Nenhum desses testemunhos, entretanto, oferece a singularidade que torna o livro de Helena Morley incomparável: ele não recompõe o passado, com maior ou menor fidelidade; vive-o, respira-o, insere-se nele. Porque se resume na seleção de notas de uma garota do interior, a quem o professor recomendava que fizesse redações. Então a garota foi registrando em cadernos o dia-a-dia familiar. Muitos anos mais tarde, por inciativa do marido e de uma filha, esses apontamentos foram publicados em livro – e com isso ganhamos um texto que conquistou para o Brasil o interesse e a simpatia de inúmeros leitores estrangeiros, à frente dos quais um Georges Bernanos e uma Elizabeth Bishop.

A espontaneidade da expressão é o primeiro trunfo de Helena para conquistar leitores com que ela nunca sonhou. Helena é simples, direta, alheia a literatura, e só conta o que viu e sentiu. Em 24 de agosto de 1893, chega em casa “tão diferente que Renato foi me olhando e dizendo: Olha a cara dela! Luisinha que é melhor mil vezes do que ele disse: Como você ficou bonita, Helena! Quem te arranjou assim? Eu respondi: foi Éster. Conversando com elas na pedreira eu disse que sabia que era feia mas não me incomodava porque mãe Tina me criou sabendo que o feio véve, o bonito véve, todos vévem. Quando eu disse que era feia, Éster exclamou: Você feia? Deixe-me arranja-la e você verá. Consenti, ela pegou na tesoura e cortou-me o topete, penteou-me, depois me pôs pó-de-arroz, e quando eu olhei no espelho vi que não era feia. Elas riram muito quando eu contei o

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nosso sistema aqui de untar o cabelo com enxúdia de galinha até ficar bem empastado. Ela me disse que lavasse os cabelos depois anelasse e fosse lá para me pentear. Que bom eu ter feito amizade com a família de dona Gabriela. Elas são tão boas! Se não fossem elas eu nunca me lembraria de cortar o topete e pentear os cabelos na moda. Éster achou graça de eu lhe contar que mãe Tina dizia que o bonito véve, o feio véve. Ela disse: É verdade, mas o bonito véve melhor. Como estou hoje feliz de ter ficado bonita!”

O livro todo é nessa toada, e precisamente porque não pretende senão o exercício de escrever, numa espécie de diário doméstico, atinge fundo na descrição do ambiente da família brasileira modesta em zona de mineração. Tudo está refletido aí: a pobreza, o sonho de libertação das necessidades, o convívio social, a despreocupação, a alegria, e a tristeza do viver, sobretudo a alegria, pois a infância de Helena “tem o gênio de rir de tudo”. Confissão: “Eu sou impaciente, rebelde, respondona, passeadeira, incapaz de obedecer e tudo o que quiserem que eu seja”. Mas é, principalmente, dona de um espírito vivaz, bem-humorado, que capta o aspecto grotesco das cenas e das coisas e se diverte em passar em revista o minimundo de Diamantina. Seu Broa, Siá Ritinha, Iaiá, Madrinha Quequela, o professor Catãozinho, Tia Madge, o ladrão misterioso que virou cupim, chichi Bombom ... as figuras são reais, as lendas são imaginação mística do povo. Só que Helena, cabecinha crítica, não vai nessa história de ladrão que depois de furtar, vira cupim. Por que não prendem o cupim? – indaga. Pergunta que ainda hoje se pode fazer, sem resposta: por que não descobrem, por que não prendem os que praticam atentados terrorisstas, em tantos lugares diferentes do Brasil?

Quase que eu ia fugindo ao meu assunto, que é o centenário de Helena. Uma data de família que assumiu aspecto de data literária nacional, pois repito, Minha Vida de Menina (que José Olympio teve o faro de identificar e lançar em 1942, hoje em 15a. edição, e

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traduzido para o inglês, francês e italiano, além de publicado igualmente em Portugal) é livro único na galeria de memorialistas nacionais.

Menina de eterno viço, lembro-me de sua autora na última quadra de sua existência: era a criatura encantadora de sempre, com uma verve, uma irreverência intelectual que se manifestava a todo momento. Relembrarei o que ela me contou certa ocasião:

Santo Antônio é o santo de minha antipatia.

Por que, dona Alice?

Eu era garota e apareceu lá em casa um garimpeiro que preveniu mamãe: “Vim aqui para salvar seu marido de fazer sociedade com seu Antonico. As terras em que ele vai trabalhar não têm um tico de diamante. “Mamãe respondeu: “Foi Santo Antônio que mandou você aqui. Acabei de rezar uma novena a ele”. Papai não fez sociedade, e os diamantes estrelaram na bateia. Ficamos os únicos pobres da família. Viu o que Santo Antônio fez com a gente?

Alice Brant e seu pseudônimo Helena Morley formaram uma só pessoa rara, pela sensibilidade e pelo talento.

 

HELENA MORLEY

 

                                                   

Vera Brant

 

 

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Há mais de um século uma menina de treze anos, em Diamantina, começava a escrever o seu diário, por sugestão do pai, filho de ingleses nobres que vieram para o Brasil em busca de um clima para curar a tuberculose do seu chefe, o médico Dr.John Dayrell.

A família esteve, inicialmente, em Nova Lima, na Mina do Morro Velho e, depois, em Diamantina, onde o Dr. John fundou a Santa Casa e ali trabalhou durante toda a vida, até morrer, aos noventa anos.

O pai de Alice, Felisberto Dayrell, era minerador.

O diário de Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, tem a data inicial de 5 de janeiro de 1893.

Dotada de uma inteligência agudíssima e de uma sensibilidade invulgar, ela foi anotando no seu caderno escolar os acontecimentos que se desenrolavam ao seu redor, naquela cidadezinha mineira de gente simples e extremamente bondosa.

Enquanto seu pai escavava a terra à procura de diamantes e de ouro, ela acompanhava a mãe e os irmãos, atravessando becos e pontes em direção ao rio, onde lavavam as roupas da família.

Ela esfregava a roupa com as suas pequenas mãos, enquanto o seu olhar e a sua sensibilidade acompanhavam o que se passava ao redor: o barulho da queda a água naquele pequeno regato de pedrinhas redondas e claras, as borboletas que voavam, o seu irmão Renato pescando lambaris.

E quando chegava em casa anotava tudo, para guardar na lembrança aqueles momentos.

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A mestra Joaquininha a considerava a aluna  mais inteligente da escola. Mas ela duvidava, pois não gostava de estudar, só gostava, e muito, de ler histórias e romances, e de escrever.

“Eu acho que se fosse má seria mais feliz”, escrevia ela quando voltava, aos prantos, da casa de duas amigas da mãe, aonde fora levar umas broas de fubá e as encontrara enforcando um gatinho.

 

“Hoje fui chegando para o almoço e encontrando Nhonhô na porta da rua com uma asa do meu curió na mão e dizendo: Olha o que a gata fez; comeu seu curió. Eu não posso dizer o que senti, mas caí na cama com os livros na mão, soluçando tão alto que mamãe veio correndo na cozinha, pensando que tinha havido alguma coisa”.

“ Mamãe diz que não se deve ficar alegre na Semana Santa, porque é a semana do sofrimento de Jesus. Eu creio muito nas outras coisas da religião, mas não acredito que ninguém fique triste do sofrimento de Jesus Cristo, depois de tantos anos, e dele já estar no Céu, ressuscitado e feliz”.

“Meu pai diz sempre que gosta mais do meu gênio que do de Luizinha; que eu sou franca, digo o que penso e o que faço e Luizinha é das caladinhas que são mais perigosas”.

A tia Carlota confessando-se com o Bispo e ele fazendo-lhe mil perguntas em lugar de deixá-la à vontade, contando-lhe os seus pecados.

Os tachos  de angu, os leitões nos dias de festa. O tutu de feijão. Os torresmos. As cocadas. As macumbas. As velas acesas. As promessas. A criadagem na ginga.

A tristeza de não compreender as criaturas ao seu redor, com pensamentos e sentimentos limitados,

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rasos.

A paixão pela avó que vivia exclamando: “Forte coisa!” E que a amava muito e a defendia sempre.

Quando a sua querida avó adoece, ela escreve, sentida, percebendo o perigo de perder a sua protetora:

“Nestes dias da doença de vovó eu me esqueci de todas as felicidades que tenho tido e fico só pensando nos sofrimentos. Quem encontrarei mais na vida para dizer-me que sou inteligente, bonita e boazinha?”.

A dificuldade de entender a decepção do pai quando voltava do garimpo sem encontrar o ouro: “Se ele não guardou o ouro lá, por que se decepcionou?”.

A preocupação com a desigualdade social, com o sofrimento dos pobres.

“Depois do almoço mamãe não nos deixa meter os pés na água porque diz que faz mal. Sempre pergunto que mal faz mas nunca explica. Pergunto por que não faz mal aos mineiros que entram na água até os joelhos logo depois de comerem, e ficam na água o dia inteiro, e ela responde que é por estarem habituados”.

 

 

Quando fui morar no Rio, em 1956, passei a conviver muito com Alice. Ela morava numa bela casa, na Lagoa Rodrigo de Freitas.

Ia à sua casa duas vezes por semana com a Sarita, sua filha.

Aos domingos havia a reunião da família toda, umas quinze pessoas.

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Alice sentava-se à cabeceira da mesa com o seu porte elegante e sua personalidade fortíssima e comandava aquele bando de malucos inteligentíssimos, contando histórias extravagantes e muito interessantes.

Falavam quase todos ao mesmo tempo e Abgar Renault, seu genro, casado com a sua filha Ignez, pedia: “Silêncio! Vamos falar só quatro de cada vez, senão ninguém se entende”.

Mas, quando Alice começava a contar as suas histórias, era aquele silêncio. Todos a escutavam, encantados. Eram sempre assuntos diferentes, espirituosos, interessantes. 

Certa vez Alice, que nunca saía de casa, me informou que iria, no dia seguinte, visitar a irmã do meu namorado para ajudar no meu casamento. E queria que eu fosse com ela.

Eu trabalhava no Ministério da Educação e tive que conseguir, com o meu chefe, uma folga para acompanhá-la. Saí mais cedo do serviço e fui para a sua casa.

Ela estava tentando colocar dois lindos brincos de brilhantes. Não entendi bem aqueles brilhantes durante o dia, mas ela insistia tanto que resolvi ajudá-la. Os furinhos das orelhas já estavam fechados, cicatrizados, de tanta falta de uso, foi uma luta para abri-los de novo. Depois de muita peleja, ei-la elegante e bela, com um vestido chique, pronta para a aventura.

Lá fomos nós. Eu, meio sem entender nada, imaginando até que ela havia tramado com a Margarida, irmã do namorado, um pedido de noivado.

O apartamento era uma graça.

 A irmã e a sobrinha do meu namorado eram mulheres muito bonitas e prendadas. Mostraram-nos

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toalhas que elas mesmas bordaram, colchas de tricô que elas mesmas tricotaram e, para o meu desespero, todos os bolos e salgadinhos na mesa do lanche tinham sido preparados pelas duas mais-que-perfeitas.

Entre uma demonstração de habilidade e outra, elogiavam o irmão.

E Alice, nada. Nem um elogiozinho a mim, para equilibrar.

Quando provou o biscoito de nozes que estava mesmo uma delícia, não se conteve e exclamou, constrangida:

_Coitada da Verinha, não vai poder entrar para esta família.  Ela não sabe fazer nada!

Fiquei arrasada.

Na volta para casa, exclamei:

_Mas você, hein, Alice? Vem para ajudar no meu casamento e estraga tudo, acaba com ele.

_Mas o que foi que eu fiz?

_O quê? Não se lembra? Apenas disse, com todas as letras, que eu não sei fazer nada, não sirvo para casar.

Ela teve um acesso de riso tão forte que contagiou a mim e ao Rubens, seu motorista. Ele teve que parar o carro, porque não conseguia apertar o acelerador, de tanto rir.

Quando chegamos à sua casa, o seu marido, Augusto Mário, nos esperava na varanda. Estava curioso para saber o resultado da visita e perguntou:

_Como foi o passeio?

A Alice pretendeu dizer que foi uma tragédia mas

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não conseguiu chegar ao final da frase porque teve outro acesso de riso. E eu, mesmo sendo a prejudicada, também não conseguia parar de rir. Fomos direto para o banheiro.

Quando a Sarita chegou, também curiosa para saber as novidades, o Augusto Mário disse:

_Eu acho que as duas enlouqueceram. Desde que chegaram não pararam de rir e não conseguiram dar uma palavra.

Mas não foi por isso que acabou o namoro. Foi o desencontro das águas. Acho que a minha família não entendeu, até hoje, como foi que eu consegui namorar aquele rapaz, tão pouco inteligente, durante tantos meses e, o pior de tudo, encantada.

 Se eu não freqüentasse uma família tão inteligente e irreverente, aquele namoro talvez até desse certo. Mas era demais. Nunca vi gente tão impaciente com a burrice alheia. O Eduardo, filho da Sarita, e o Flávio, seu irmão, ambos inteligentíssimos, faziam perguntas ao meu namorado só para desmoralizá-lo. As respostas eram trágicas.

Depois dele eu só namorei homens inteligentíssimos, o que também não deu certo.

Quando fui à Europa, pela primeira vez, namorei um rapaz bonito, inteligente e culto,  que, meses depois, veio ao Rio passar as férias.  Levei-o para almoçar na casa de Alice, no domingo. Ele falava um italiano misturado com espanhol, mas se fazia entender. E entendia o que falávamos.

Até Augusto Mário, que era uma pessoa cultíssima – fora jornalista, economista, político, escritor, é autor do livro “Viagem à Argentina” – e exigente, ficou impressionado.

Fiquei eufórica. Estava resgatada, junto à família. A minha capacidade de escolher namorados já não estava em baixa. Todos concordaram com a beleza, a cultura e a inteligência. Mas concluíram que eu não

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tinha interesse definido por determinado tipo físico, nem mental. O Paolo era loiro, olhos azuis, alto, magro, totalmente diferente do Ivan que era moreno.

Só que o italiano ficava à minha disposição dia e noite. Foi me dando um enjôo tão grande que não sabia mais o que fazer.

Resolvi contar a Alice e pedir-lhe um conselho.

Ela ficou horrorizada:

_ Verinha, você vai acabar solteirona. Um rapaz bonito, bem de vida, culto, com aqueles olhos azuis.

Eu disse:

_Eu acho que foram os olhos azuis que me enjoaram, Alice. O céu é azul mas se enche de nuvens,  escurece, chove, anoitece, depois fica azul de novo. Mas, os olhos, não. É aquele azul forte o tempo todo, me olhando. Não estou suportando. Amor não tem nenhum compromisso com inteligência, sabedoria, beleza, nada disso.

Ela me respondeu:

_Com a beleza não tem nada a ver, não. Mas com a inteligência tem, sim. Você não suportaria viver, durante muito tempo, com um homem pouco inteligente.

Quando eu adoecia, ia passar uns dias em casa de Alice, pois não tinha ninguém para cuidar de mim. A Hilda, minha empregada, só ia duas vezes por semana.

Alice tinha o hábito de dormir à tarde, mas, naqueles dias, ia para o meu quarto e ficávamos conversando horas seguidas.

Um dia ela me contou que, quando menina, sua tia havia dado uma surra na escrava. A escrava era o

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dobro da tia, que era franzina e muito brava.

Alice estava louca  para saber como ela havia conseguido aquela proeza, mas tinha muito medo da tia brava.

Certa vez, tomou coragem e perguntou:

_Minha tia, como foi que a senhora conseguiu dar uma surra na fulana que é muito mais forte que a senhora?

A sua tia respondeu:

_Eu experimentei, dando um tapinha.  Ela não reagiu, eu avancei.

Nunca, na vida, me esqueci dessa lição. A qualquer ameaça de tapinha, moral ou física, eu reagia logo, antes que o inimigo avançasse.

A Maria da Penha era uma figura humana interessantíssima. Tinha vinte e poucos anos, era bonita, simpática, excelente empregada. Só tinha um defeito, grave: Não podia acordar sem ser naturalmente. Se alguém a chamasse de manhã, durante o sono, ficava num mau humor de ninguém suportar. Então, a única solução era deixá-la dormir até o sono acabar.

Adorava bichos e resolveu criar gatos. Em poucos meses havia mais de dez gatos.

Certa manhã, Alice desceu mais cedo para a cozinha e a gataria toda começou a puxar a sua saia e arranhar as suas pernas, com certeza pedindo leite ou comida.

Lá pelas tantas ela perdeu a paciência e chamou o Rubens, motorista. Ele estava exatamente limpando e lubrificando o carro que Augusto Mário mantinha, sempre, na garagem para, na hipótese de morte de algum amigo, ou de uma autoridade, não ter que

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incomodar ninguém. Acontece que, quando morria um amigo, ou o carro estava enferrujado ou o Rubens sumido.

Neste dia estava tudo certo: o carro lubrificado e o Rubens ali.

Alice não perdeu tempo: chamou o Rubens e determinou que colocasse todos os gatos num saco e os soltasse no mato. Ele adorou a idéia de poder passear um pouco. Em poucos minutos juntou a gataria ao redor do prato de leite, colocou-os no saco e se mandou para a rua.

Quando a Maria da Penha acordou e soube da confusão toda, abriu o maior berreiro:

_ A senhora é um monstro, como pôde fazer tamanha maldade? E agora, o que vai ser dos pobres gatinhos, quem lhes dará leite. Os pobrezinhos no mato, com cobra e tudo, morrendo de frio à noite. Ai, meu  Deus! E chorava, chorava.

Alice foi entrando em pânico. Acho que já estava arrependida e assim não deu uma palavra e saiu de mansinho para a cozinha, pois já sabia que, naquele dia, não ia ter nem um ovo frito para comer, se dependesse da Maria da Penha.

Quando o Rubens voltou, já era mais de meio dia. Alice foi dando ordem:

_ Volte lá e só retorne depois que encontrar o último gato.

Alice havia acordado cedo e o Rubens estava lubrificando o carro, justamente porque havia morrido um amigo do casal. O enterro seria às quatro horas da tarde. Todos prontos para sair e, cadê o Rubens? Nada. Cansaram de esperar e chamaram um táxi.

 Lá pelas sete horas da noite, quando Augusto Mário e Alice já haviam regressado, também de táxi,

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chegou o Rubens, todo suado e arranhado, e só com dois gatos.

A Maria da Penha brigou com ela e foi embora para a casa da Sarita.

Meses depois,  ela disse à Sarita que queria de volta a Maria da Penha.

Sarita teve um trabalho enorme para substituir a Maria da Penha para trazê-la de volta para a casa da sua mãe. Duas semanas depois, avisou a Alice que traria a empregada no dia seguinte.

Alice, na maior tranqüilidade, respondeu:

_Não traga não, porque não a quero mais.

Sarita, desapontada:

_Mas, mamãe, eu tive um trabalho enorme para conseguir outra empregada e agora você muda de idéia?.

E, Alice, calmamente:

 _E você acha que eu sou mulher para ter uma opinião só a vida inteira?

Num domingo, eu não fui à casa de Alice para o almoço porque estava indisposta, com dor de estômago. Na segunda feira ela foi ao meu apartamento, me visitar.

Era um apartamento mínimo,  com quarto e sala, e uma janela enorme, no décimo andar.

Ela foi entrando e dizendo:

_Verinha, que apartamento perigoso! Se você entrar nele com muito entusiasmo, vai sair pela janela.

Ficamos a tarde inteira conversando.  Ela me contou o quanto gostava da minha mãe, sua prima. Que freqüentava muito a nossa casa, quando

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eu era pequena.

Perdi a minha mãe com oito anos e pedi a Alice que me contasse detalhes de sua personalidade, das coisas das quais eu não podia me lembrar.

Lembro-me de uma das  histórias, ótima: a sua nora, Elza, estava brigando muito com o seu filho Caio e fazendo-lhe muitas críticas. Dizia, no entanto, que o amava.

Alice decidiu:

_Vamos à casa de Amália. Lá você vai ver o que é amor.

Foram. A Elza, uma mulher linda e chique, chegou à nossa casa toda animada para ver o amor de perto. Só encontrou um bando de crianças descabeladas: éramos nove, o mais velho com dezoito anos e a mais nova, recém-nascida.

A mamãe, linda, cuidando dos filhos, fazendo doce de casca de laranja, o que o Zezé mais gostava – dizia com a maior alegria - porque  Zezé pra cá, Zezé pra lá, e contava casos do Zezé. E vinha menino, chateava, ela mandava sair para o jardim, vinha outro, enchia a paciência, ela colocava para dormir. A pequenina chorava, ela ia correndo acudir e já a trazia no peito, continuando as histórias e... mais Zezé, mais Zezé.

A Elza, dizia Alice, estava completamente zonza. Ela, que só tinha dois filhos, Felisberto e Arnaldo, que viviam limpos, penteados, com as babás, tudo em ordem, não estava se adaptando àquela bagunça e cutucava Alice para irem embora.

Quando Alice ameaçou sair, a mamãe não deixou:

_De jeito nenhum, vocês vão esperar o Zezé, está na hora dele chegar.

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E contou mais histórias para distraí-las enquanto o Zezé não chegava.

E chegou o Zezé, meu pai: baixo, feio, falando tão depressa que não dava para entender nada. 

Os olhos da minha mãe faziam ondas, refletiam  a felicidade. E o Zezé falando duas palavras de cada vez, Alice e Elza não entendendo nada e a minha mãe traduzindo, aquela confusão.

Cansaram de tanta loucura e foram embora, deixando os dois pombinhos com a filharada.

No caminho, Elza quis saber de Alice qual era o sentido daquela visita, o seu vestido branco todo sujo de mão de menino, aquele cansaço de confusão mental completa. E ouviu a resposta:

_Amor é isso, minha filha. A mulher, quando ama, tira de letra um dia como este, que para você pareceu um martírio,  na maior tranqüilidade. Quando o Zezé chega, passa a borracha nas tormentas todas e cai nos seus braços como no primeiro dia de casamento. Você, desocupada do jeito que é, com o marido bonitão que tem, fica botando minhoca na cabeça e criando problema onde não existe. Acho que é desamor. Não tem outra explicação.

Esta história é uma definição de Alice. Ela  não precisava sair de casa para mostrar o que era o amor. O exemplo era ela própria, com Augusto Mário.

 

 

 

Alice possuía uma memória fantástica. Contava-me episódios da sua infância, no final do século atrasado, pois ela nasceu em 1.880, e eu ficava extasiada com a sua coragem e personalidade.

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Sempre havia imaginado que, naquela época, até muitos anos depois, as mulheres eram umas bobocas, fazendo só o que os pais e os maridos permitissem e dizendo amém a todos. Mas, não. Alice dialogava com os pais, dizia-lhes o que bem entendia, discordava, opinava, concordava às vezes, não arredava um milímetro  do que considerava ser o correto.

O namoro com Augusto Mário, seu primo e sua única paixão, começou quando ele voltou de São Paulo, onde passara vários anos estudando Direito e, tendo-se formado, voltara para Diamantina.

Quando estava para voltar, a família toda se organizou para recebê-lo com festas e homenagens.

Alice não tinha uma só roupa que prestasse. Só possuía uma saia nova e não tinha dinheiro para comprar uma blusa.

O seu Luís, que era encantado com ela e queria namorá-la, era filho do seu Mota, dono da loja de tecidos. Quando ela lhe contou o seu aperto, ele se propôs a levá-la à loja e pedir ao pai que desse a ela um pedaço de tecido para fazer a blusa. Foram. Foi feita a blusa.

Vindo de São Paulo, Augusto Mário passou uns dias em Belo Horizonte e, lá, quis saber dos primos como estava Diamantina e, principalmente, como estavam as moças que ele havia deixado anos atrás, meninas ainda. 

Um dos primos fez-lhe o relatório de cada uma das moças, umas lindas, outras, estudiosas, interessantes, chiques. Mas... existe uma, a Alice, que não sendo bonita, nem a mais elegante, é a mais encantadora de todas. No ambiente em que ela se encontrar, depois que começa a falar, com tanto espírito, inteligência e simpatia, cresce e supera todas as outras, por mais bonitas que sejam.

Aquilo ficou gravado na memória de Augusto

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Mário. E ele pensava: Será possível a Alice, aquela menina magrela, agressiva, irreverente, ter se tornado uma mulher tão interessante?

Afinal, chegou a Diamantina.

A família inteira reunida e orgulhosa do seu doutor em Direito, formado em São Paulo.

Foram todos para a casa de seus pais, onde seria a festa. Dois amigos iriam buscá-lo na estação e levá-lo à casa.

Quando ele chegou, foi aquela quantidade de palmas e sorrisos, abraços. Um das primas trouxe-lhe um ramo de flores. Ele, encabulado, sem saber o que fazer com as flores, procurou com os olhos alguém a quem entregá-las e encontrou Alice, que estava próxima, e ofereceu-lhe o ramo de flores.  Foi a conta: o seu Luís ficou morto de ciúmes e queria porque queria que Alice lhe devolvesse a blusa.

Para o sábado seguinte estava programada uma festa com dança e tudo, e o sofrimento de Alice começou de novo. E a roupa?

Depois de muita luta, conseguiu um pano e fez um vestido de festa.

As mulheres estavam muito chiques e ela se sentia humilhada. E não conseguiu fazer sucesso porque ficou calada, num canto.

Qual não foi a sua surpresa quando Augusto Mário, depois de dançar com várias moças, foi buscá-la para dançar. Ela ficou encabulada. Seu coração dava pulos no peito e foi uma luta para encontrar o rítmo.

Controlou-se e começaram a conversar. Ele não a deixou mais, até o final da festa.

Naquela noite, quando chegou à casa, ela se

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ajoelhou

aos pés da cama e pediu a Santo Antônio, com todo o fervor, que, se não fosse para casar com ele, tirasse aquela ilusão de sua cabeça de uma vez por todas, porque não queria sofrer aquele amor que já brotava com tanta força em seu coração e que ela imaginava muito violento.

Mas não era só ela quem estava apaixonada por ele. Uma meia dúzia de moças também. Era, naqueles dias, o assunto de Diamantina.

Ela, então, decidiu sumir da vida dele, para evitar sofrimentos.

Um dia, tendo ido ao armarinho comprar botões e fitas, percebeu que ele a acompanhava. Andou mais rápido e ouviu o barulho de seus passos. Ouviu-lhe a voz, chamando-a .  Apertou os passos e saiu correndo, ele correu atrás.

Quando chegou à porta de casa, já exausta, começou a subir as escadas, com dificuldade.

Foi quando ele, alcançando-a, puxou-a pelos cabelos e lhe deu um beijo.

Ela ficou tonta, desnorteada, sem entender nada.

_Quer se casar comigo?, sussurrou ele.

_Agora, querendo ou não querendo, temos de nos casar, pois você já me beijou e estou desonrada, respondeu Alice.

Casaram-se. E parece-me que Alice foi, durante toda a vida, a companheira que mais amou o homem com quem se casou.

Um dia, acordei com Alice me passando a maior descompostura:

_Você deve estar pensando que também é rica

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porque convive com Ignez, Sarita e Yolanda, mas  você é pobre, Verinha. Convença-se disso! Comece a fazer loucuras e depois vai se encalacrar toda, encher-se de dívidas e não vai conseguir pagar com este emprego mixuruca.

Eu, sem entender nada, resmunguei:

_ Ser pobre já é desagradável, mas ter alguém que já, de manhã cedo, vem me xingando de pobre é o fim da picada. O que foi que eu fiz para esse xingatório todo?

_Comprou uma geladeira elétrica a prestações. E não me pergunte quem me contou porque eu estou proibida de dizer, foi falando.

_Mas, Alice, você com esta fama toda de inteligente, não raciocinou ainda que aquela geladeira de gelo que você me deu foi o maior presente de grego do mundo?  Dia sim, dia não, tenho de comprar uma barra enorme de gelo que se derrete e vai para o esgoto. Vou passar a minha vida inteira jogando o meu dinheirinho minguado no esgoto? Já uma geladeira elétrica, com uma prestação um pouquinho mais alta do que as barras de gelo, ficará para a vida toda. Para você ter uma idéia, pretendi dar a geladeira de gelo para o porteiro e ele não aceitou. Foi mais inteligente do que eu.

Ela ficou parada, olhando para a minha cara um tempão e saiu com a proposta mais extravagante que já recebi em toda a minha vida:

_Sabe de uma coisa, Verinha? Você é mesmo muito inteligente e não pode continuar nessa pobreza. Vamos escrever um livro, juntas. O José Olympio anda louco para publicar outro livro meu. Aí, ele publica, todos ficam conhecendo o seu talento e você fica rica.

Pela manhã, normalmente, eu sou muito lerda. Me sinto como televisão antiga que, quando a gente

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ligava, ficava rodando um tempão, até focalizar o mundo.  Por isso não respondi logo à sua sugestão.

À tarde, entreguei-lhe uma pequena carta, demonstrando aceitação à sua proposta.

 

Minha querida Alice:

 

Você diz, entre outras coisas maravilhosas, que a única inteligência importante é a de quem sabe viver.

Tenho pretendido aprender esta arte com você, mas existe uma incapacidade de minha parte que me deixa completamente frustrada.

Gostaria de poder me aprofundar nos pequenos momentos que me dão alegria, fixá-los bem, explorá-los até o último instante e guardá-los na memória, para os dias e as tempestades seguintes.

Mas os trovões só me recordam tormentas e essas me trazem à memória catástrofes, e eu me perco e me desmorono nelas.

Quantas e quantas noites tentei imitar você, recordando pedaços de vida em que fui feliz. Quantas vezes passei filmes pela minha imaginação, como você faz, procurando me distrair. Mas meus filmes eram sempre tristes e eu tinha logo que matar os personagens, para que eles parassem de sofrer e eu pudesse dormir.

Que inveja sinto de você que, às oito horas da manhã, acorda bem humorada, vai, mentalmente a Paris, passeia, faz compras, visita museus, igrejas e, às onze horas, senta-se à mesa para almoçar, exausta de tanto passear.

Que mágoa eu sinto de não conseguir viajar assim, na recordação, como você faz, ora na sua

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infância e mocidade em Diamantina, ora no seu exílio na Argentina, em Paris, ou em Portugal, que você tanto adora.

Às vezes exploro as suas histórias para me distrair um pouco, mas nunca consigo me lembrar delas inteiras.

Aquela sua volta da Europa, no navio, com as mulheres francesas, que você considerou ótimas companhias, só ficou na minha lembrança até o momento em que o navio se aproximou de outro, repleto de  marinheiros, a quem elas deram todas as suas conservas, queijos e bebidas e você passou a detestá-las, lembra-se? Como foi que você prosseguiu a viagem? Conte-me.

Empilharei as suas histórias na minha memória para futuras recordações, quando estiver apertada para me lembrar de coisas alegres e engraçadas.

As minhas lembranças não conseguem me distrair.

É que falta a mim o que sobra em você: inteligência para viver.

                                     Muitos beijos,

                                                                    Vera

 

Alice me respondeu:

 

Verinha querida:

 

 

Como você não compreendeu bem a minha

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filosofia de vida, venho hoje explicar-lhe.

A vida é sempre cheia de problemas para todos nós, desde a infância. Quando eu me refiro à inteligência para a vida, refiro-me à pessoa que sabe se afastar de todos os problemas e tirar proveito das coisas boas; que nasce com juízo para se afastar dos perigos, que guarda um pouco do que ganha para não passar necessidades, que evita as doenças, as más companhias e sabe tirar proveito da inteligência, como Churchill, por exemplo.

Tenho conhecido homens de nenhum dom intelectual que se transformam em grandes homens, somente pelo trato, talvez adquirido na infância.

E conheço outros, que todos nós sabemos, cujas inteligências só serviram para desmoralizá-los.

Quanto a saber viver, você sabe melhor do que eu. A diferença é que você está vivendo o presente e eu só vivo, hoje, o passado.

Mas eu sei que você, como nenhuma de suas companheiras poderá, no futuro, viver o passado porque não o terão tido.

A vida na infância só é agradável no campo, com a natureza, os animais, as aves e, acima de tudo, com a liberdade. E quem é que cria os filhos, hoje, com liberdade? A vida das crianças em casa, enquanto pequenas, e nos colégios, quando vão crescendo, cheia de trabalhos e obrigações, é vida? Não, não é vida. E nada disso vai servir para pensar, depois de velha.

Mas eu, com toda a pobreza de meus pais, vivi a minha infância. E, depois de casada, ensinei Augusto Mário a viver.

Hoje quero lhe descrever alguns episódios na minha vida, depois de casada.

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Não me cansava de obrigar Augusto Mário a fazer aventuras. Imagine nós dois viajando a cavalo, com uma família de doze pessoas e uma grande carga, com colchões, travesseiros e mantimentos! Isso, com mais três filhos pequenos e mais uma menina que eu criava.

A viagem era de dois dias, dormindo-se no caminho, em ranchos abertos.

Uma vez em que íamos a Santa Bárbara e nos arranchávamos para dormir, a empregada foi afastando uma pedra para fazer a cama dos meninos quando viu, embaixo, um ninho de escorpiões.

Eu estava, nessa hora, no rio, dando banho nos meninos, por isso não vi. Augusto Mário proibiu que me contassem e passou a noite sentado à beira da cama, lendo e vigiando os pequenos.

Hoje estou sem ocupação e vou passar algumas horas me distraindo, recordando o passado.

Para a estação de Santa Bárbara nós tínhamos o hábito de ir uma vez por ano. Aconteceu que, numa das vezes, várias pessoas de Diamantina resolveram ir também fazer uso das águas.

Foram Alcídes, Belinha, Dr. Telles com a Donana e duas filhas, Serafim Libano e Dona Augusta e os dois filhos rapazes e Padre Manoel Alves com uma amiga minha, Catarina Neves.

Além desses, foi também um industrial de Montes Claros, com a mulher e dez filhos.

Nossa família, Alcides e Belinha, ficamos no Arraial numa fazenda abandonada. O Dr. Telles, numa única casa que havia no arraial. Os outros companheiros fizeram rancho de sapê, próximo das águas, que formavam um grande poço, espécie de piscina de água quente.

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O padre, além do rancho, mandou construir uma capelinha com um altar e todo o necessário.

Todos os domingos nós, do arraial, tínhamos que assistir à missa. Como era longe, íamos a cavalo.

Para assistir à missa, vinha todo o pessoal da redondeza e ia se acampando por fora da Igreja.

Não havia um só domingo que não houvesse casamentos. Lembro-me de uma vez que foram quatro casais e todas as moças se casaram com um só vestido e um só véu. Acabava um casamento e a noiva tirava o vestido e o véu e entregava à outra noiva. E todas nós, animadas com a novidade, ajudando as moças a se vestirem.

Quando ajudávamos a última do grupo, chega na porta do rancho do padre e grita: Ô donas, não vistam a Maria que eu não caso com ela! Que tragédia! A pobrezinha caiu no pranto.

Eu fui lá fora implorar ao João para se casar com a Maria. E ele me respondeu: Se a senhora faz questão de me casar, então me case com a Joana. Ele havia viajado com as duas e, no caminho, verificou que a Joana era mais bonita que a Maria.

Não posso, também, deixar de contar as originalidades da mulher do industrial, minha xará: ela criava todos os filhos amamentados por uma cabra, que atendia ao choro da criança, subia na cama e lhe colocava a teta na boca. Um dia, quando chegamos ao poço, ela estava terminando um forno de barro, para assar pão. No dia seguinte, começou a fabricar o pão. Engraçado é que ela manejava tudo com uma cuia. Cuia para encher de barro, cuia para amassar o pão, cuia para lavar a roupa. E era cada cuia do tamanho de uma bacia.

O industrial, marido dela, tinha uma fábrica de tecidos e uma grande fazenda. Mais de uma vez vimos chegar carroça cheia de tudo para eles. Apesar

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dessa fartura, a mulher era muito miserável. Se jantávamos ou almoçávamos com eles, era sempre a convite do marido.

Um dia, Augusto Mário resolveu ir às águas palestrar com o industrial, que era muito simpático. O homem prendeu-o para jantar. A mesa era debaixo de uma grande árvore e comprida, para caber toda a família. Jantaram. Terminado o jantar, veio o café. O marido perguntou pela sobremesa e ela respondeu: Não tenho. Um dos filhos, de uns cinco ou seis anos, gritou do meio da mesa: E aquelas latas de doce que estão debaixo da cama?

A mulher foi ao quarto, trouxe uma lata, de uns dez quilos, de doce de leite, distribuiu para todos com fartura.

Esse incidente foi um desapontamento para todos nós.

O rancho da dona Augusta era uma simpatia. Os filhos o colocaram num lugar bem agradável. As mesas de jantar de todos os ranchos eram fora de casa, sempre debaixo de uma árvore. E nunca chovia.

Um dia, chegando nas águas e indo ao rancho de dona Augusta, só encontramos um montão de cinzas. Os filhos embeberam um maço de algodão no álcool, acenderam-no na ponta de um bambu para acabar com uma caixa de marimbondos que estava sobre o rancho! Engraçado é que ninguém comentou a estupidez. Os rapazes fizeram, numa só noite, outro rancho.

Um episódio também marcante em Santa Bárbara deu-se, um dia, comigo: Donana e Belinha descobriram um sítio onde havia frutas. Relacionaram-se com a família e foram lá duas vezes, sem mim.

Quando eu soube, protestei, chamei-as de amigas ursas e me zanguei, deveras.

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Donana, mais velha dez anos do que eu, explicou-me: Não te levamos porque sabíamos que, se você fosse lá, inutilizará o nosso passeio. Há coisas que dão vontade de rir e nós nos contemos. Mas você não seria capaz de se conter. Você mesma sabe disso. Eu lhes disse que brigaria se fossem sem mim, de outra vez.

Chegou o dia delas irem atrás das frutas e dos ovos. Chamaram-me e disseram: Hoje nós vamos ao sítio do seu Juca, mas você fique sabendo que ele é assassino e que não pode rir na cara dele.

Eu respondi: Vocês estão me julgando uma louca que não pode conviver com os outros?

Donana retrucou: Se é assim, vamos.

Saímos a três pelo campo. O sítio era distante de nossa casa.

Durante a viagem pela estrada, Donana não fez outra coisa senão me recomendar: Quando você vir que vai cair nos seus acessos de riso, procure antes se lembrar de qualquer coisa triste.

Eu, então, reclamei: Chega, Donana.

Ela ainda teimava: Não ria, não ria! Estou temendo que você vá nos fazer perder este sítio.

Eu já estava indignada com tanta recomendação e já morta de vontade de rir vendo o medo de Donana.

Fomos andando e chegamos ao sítio. Do lado de fora, próximo à porta, estava um homem gordo, com uma grande barba, amolando um facão, numa pedra. Donana foi dizendo: Boa tarde, seu Juca! O homem levantou a cabeça, com aquele facão na mão e respondeu: boas tardes, madames!

Não foi preciso mais nada para que eu caísse no acesso de riso. As duas, que também caíram no riso,

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dispararam a correr pelo campo afora me deixando sozinha com o homem. Eu, sem conseguir parar de rir, larguei também o homem e fui brigar com as duas, por terem me abandonado. Mas as encontrei iguais a mim, no mesmo acesso de riso.

Desta estação poderia, ainda, contar muita coisa engraçada.

Mas já escrevi bastante e sei que você não terá paciência de ler.

                                         Um beijo, Alice.

 

 

 

 

Alice querida:

 

Acho que compreendi a sua explicação: saber viver é ter capacidade de afastar uma porção de coisas, inclusive problemas.

Você teve tão poucas dificuldades no passado que procurava os perigos para ter do que se afastar.

E não se contentava em ir sozinha: levava o menos aventureiro de todos os homens, que é o Augusto Mário, e com ele se acampavam sobre ninhos de escorpiões.

Você se abasteceu de muita alegria na sua infância e na mocidade, daí a sua capacidade de dominar as tristezas que a vida trouxe, mais tarde, para você.

Não quero me aprofundar nos problemas de

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infância para não chegar à conclusão de que estou completamente liquidada.

Pelo fato de não ter muito do que lembrar é que peço emprestadas as suas memórias.

Uma das poucas vezes que surpreendi você triste, Alice, foi naquela tarde em que fomos com Felisberto, Duga e Flávio à chácara da Gávea.

Passeamos durante um longo tempo pelo campo, imenso, quase todo plantado por você, descemos uma colina, passamos naquela ponte próxima da piscina e, de repente, você ficou triste.

Corri, apanhei um cajá-manga e dei a você.

Eu nunca soube o que fazer com a tristeza de alguém.

Adoro ouvir os casos lá da chácara. Você me conta alguns?

Como se chamava aquele empregado a quem você deu meia hora para aprender a dirigir o automóvel, porque você precisava sair para fazer umas compras e visitar Augusto Mário na Casa de Correção?

E aquele que tocava piano, desenhava, tirava o forro dos sofás, lavava e colocava tudo de novo direitinho?

Conte-me tudo.

                                           Um beijo, Vera

 

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Verinha, querida:

 

Havia em Belo Horizonte, no meu tempo, um comerciante rico, chamado Avelino Fernandes.

Um jornalista, insaciável por dinheiro, escreveu no Estado de Minas um artigo elogioso ao Avelino, na esperança de arrancar-lhe algum. No dia seguinte à saída do artigo, o Avelino foi ao jornal: Vim lhe agradecer as boas palavras que o senhor disse a meu respeito, mas quero lhe dizer, também, que o senhor exagerou, eu não sou nada daquilo que o senhor disse no jornal.

O jornalista: É sim, seu Avelino. O senhor é que é muito modesto e não reconhece.

Qual o quê, Doutor. Eu conheço os meus adjetivos.

Gostei da frase do Avelino e nunca a esqueci.

É muito raro uma pessoa reconhecer os seus

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“adjetivos”, mas eu reconheço os meus.

Isto vem a propósito da resposta à sua carta. Escrevi ontem e, quando terminei e reli, achei-a sem graça e rasguei-a .

Sou como o Avelino, reconheço quando o que escrevo está sem graça. Mas como você insiste na resposta, vai aí:

A minha época na chácara da Gávea foi a mais divertida possível. Lá havia de tudo: macumbeiros fazendo macumba; criadas surrando umas às outras, baile da criadagem na garagem, enfeitada de bambus e folhagens.

A criadagem se reunia e dava, cada um, certa quantia para as comedorias. Quem fazia os pastéis, sanduíches, batidas e limonada eram as minha empregadas, cozinheiras e a copeira. Elas arranjavam na garagem uma grande mesa e enchiam-na. Nós ficávamos, de nossa varanda, apreciando o baile. Era engraçadíssima a gana do pessoal! Antes do baile avançavam, todos, nas comedorias.

Ignez tinha como ama do Luiz Roberto uma moça clara, de uns trinta anos, metida a importante e ajuizada. Nunca se misturava aos empregados.

Num desses bailes, ela ficou da janela, vendo os criados dançarem e eu verifiquei que ela estava com inveja do pessoal. Perguntei-lhe: Por que você não vai, também, dançar, Edite?

E ela: A senhora acha que eu posso me misturar com eles?

Acho. Por que você não pode se misturar se você é empregada como eles?

Ah! Se a senhora pensa assim, então eu vou.

Foi e se divertiu à grande!

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Sabe de uma experiência que eu adquiri na Gávea? Verifiquei que muitas vezes a gente se distrai mais vendo os outros se distraírem.

As macumbas eram importantes e dispendiosas. Numa das vezes, o macumbeiro levou um tiro na boca e eu tive de telefonar para a assistência.

Quanto à sua pergunta a respeito do Pedro, quero lhe contar do princípio a história dele.

Augusto Mário mandou fechar o laboratório do Paulo, que estava dando prejuízo. Pedro era empregado do laboratório e ficou sem colocação. Paulo mandou-o para a chácara do Gávea, dizendo: Vocês o puseram na rua sem emprego, agora ele terá de ficar aqui na chácara e receber o mesmo ordenado que recebia lá.

Mas o que farei com ele, já tenho tantos empregados?

E o Paulo: Não precisa fazer nada, é só dar o ordenado e deixá-lo andar pela casa.

Eu disse isso ao Pedro e ele respondeu-me:

_Já vi o que vou fazer. A tinta da casa está precisando de reforma. Dê-me o dinheiro e eu vou à cidade comprá-la. Trouxe a tinta e pintou a casa toda, em pouco tempo.

Depois disso descoseu os sofás, as cortinas, tirou os panos, lavou tudo e colocou de novo.

Foi indo num crescendo de atividade e habilidade incríveis. Não havia nada que Pedro não fizesse. Fazia malas, era carpinteiro, pedreiro, tudo, tudo.

Não sei se já lhe contei o caso dele copiar, igualzinho, o Cristo de um bom pintor. Quando o motorista encrencava o carro e o deixava na estrada, chamava o Pedro para consertá-lo.

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Eu, vendo que ele já havia terminado todos os consertos da casa, resolvi colocá-lo como chofer. Chamei-o e lhe disse:

_Pedro, eu estive pensando que você, que sempre vive consertando o automóvel, poderia ser um bom volante. Por que você não guia?

Ele:

_ Porque nunca encontrei um carro para eu aprender.

_Então, vá aprender no meu. Tome a chave.

Ele foi no alto da Tijuca, exercitou durante uma hora, voltou e entregou-me a chave, dizendo:

_Já sei guiar, se a senhora que ir à cidade, podemos ir.

Fui com ele à Casa de Correção e continuei andando, sem nunca haver atropelo.

                                                                Alice

 

 

 

Um domingo, Alice resolveu fazer um almoço muito elegante e convidou várias amigas suas, de Ignez e da Sarita. Sarita e eu voltamos da praia e esta pediu-me que colocasse rolinhos nos seus cabelos e fizesse um penteado bem bonito, para o almoço. Fiz tudo direitinho. Sarita sempre foi tão bonita que qualquer penteado lhe ficaria bem.

Quando chegamos para o almoço, onde, dentre várias pessoas, estava a grande poeta Cecília Meireles, amiga da Ignez, todos elogiaram a elegância

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de Sarita.

_E quem foi que fez o seu cabelo?, perguntou Alice.

_Foi Verinha, disse Sarita.

Mais tarde, quando terminou o almoço, Alice chamou-me num canto e disse:

_Olhe, minha filha, já descobri um jeito de você ficar rica. Vou comprar uma bacia e um secador de cabelos para você fazer os cabelos da Sarita e de todas as suas amigas. Você vai ganhar um dinheirão.

Nesta hora, fiquei um pouco desanimada. Então, o meu talento de escritora era só aquele tiquinho?

Eu estava louca para melhorar de emprego, com um ordenado melhor, e queria fazer concurso para Inspetora de Ensino do Ministério da Educação, mas não havia concurso nenhum a ser feito.

Depois de muito pedir, consegui ser nomeada para uma coisa completamente diferente: Técnica de Seguros do Instituto de Seguros do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários e Aeroviários ( Iapfesp).

Entrei em pânico. Eu não era técnica de coisa alguma, como é que iria tomar posse?

Fui ao Augusto Mário pedir conselhos. Era um homem extremamente culto, sábio. Foi excelente jornalista,  vivia no seu escritório lendo e estudando.

Ele me desanimou completamente:

_Minha filha, esse é um cargo da maior importância, você não tem a menor competência para ocupá-lo. Você teria de saber, corretamente, o alemão, o inglês, o francês, corresponder-se constantemente com a Bélgica, Alemanha e Suíça, onde existem os melhores profissionais e escolas do ramo.  Você terá de fazer previsões de quantos operários poderão morrer numa obra de determinado

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gabarito, quantos aviões poderão cair a cada mil aviões que levantam vôo.

_ Então eu fui nomeada suplente de Deus, disse-lhe eu. Qual é o elemento humano, por mais culto que seja, que tem condições de prever uma coisa dessas? Nem aqui, nem na Alemanha, nem na China, admito que possa haver. Esse cargo não deveria existir. Seria o mais lógico.

Fui ao Ministério da Educação para saber onde havia um curso destes para que eu pudesse fazer, rápido. Não havia. Nunca existira um só registro de um curso dessa natureza.

Cada vez eu me complicava mais.

Foi quando o Eduardo, filho da Sarita, que é extremamente inteligente, raciocinou:

_Se nunca existiu o curso, ninguém é formado. Se foram nomeados vários, vá lá e veja se alguém tomou posse. Se tiver tomado, você toma também. Fui.

O prédio era um horror. Subi e procurei saber onde era que eu deveria me apresentar.

Encontrei um senhor sentado diante de uma mesa enorme, sem um só papel. Ao seu lado, outro senhor. O tal, a quem eu tinha que me apresentar, tinha uma cara muito estranha, de pessoa burra. Fui até ele, estendendo-lhe o Diário Oficial.

_ Fui nomeada técnica de seguros e vim tomar posse.

_ Mas... a senhora é técnica?

_Eu, não. O senhor é?

_ Não, mas sou o chefe dos técnicos.

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_ Piorou muito, respondi.

O senhor que estava a seu lado soltou uma gargalhada e o chefe dos técnicos ficou furioso.

Tomei posse e fiquei esperando qual o serviço que me caberia para eu não fazer, por incompetência. Não havia serviço nenhum.

Só quem trabalhava lá era uma tal de Teresa, que não era técnica, nem bonita, mas tinha umas lindas pernas. O chefe mandava que ela colocasse os processos sobre um armário, parecendo um guarda-roupa, só para ficar olhando as suas pernas, quando ela subia no banco para apanhá-los.

Um dia, a Teresa faltou ao serviço e ele me chamou e pediu que retirasse um processo sobre o armário.

_ Não pego não, respondi. Eu sou técnica. Me dê um serviço técnico e eu faço.

_ A senhora não vai saber fazer.

_E o senhor não vai saber me dar.

Pedi para ser aproveitada nalguma seção onde eu pudesse encher o tempo, já estava  exausta de ficar à toa.

Mandaram-me para a seção de aposentadoria por invalidez. O meu chefe era alto, bem moreno, olhos verdes, camisa colorida, parecia um porta estandarte. Mas era muito melhor que o anterior.

Comecei a folhear alguns processos e, já no segundo, fiquei horrorizada: Num processo em que viúva reclamava que o marido, havia quatro anos, morrera de acidente numa construção e, até aquela data, ela não recebido um só tostão de seguro, ele havia despachado: continue aguardando.

 Corri com o processo ao Departamento Jurídico,

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para ver o que seria possível fazer pela coitada da viúva. Encontrei um advogado atencioso que deu a maior gargalhada quando leu o despacho. Dias, depois, despachou o processo concedendo a pensão.

Fui fazendo o mesmo com vários processos, com a ajuda do tal advogado. Um dia, o meu chefe pediu-me que despachasse por ele.

Eu levava os processos para casa e pedia ao Eduardo, que estudava Direito, para me ajudar.

Fazia tudo certo, num português correto, e o bandido do meu chefe modificava algumas palavras, para pior, e acrescentava, impreterivelmente, a palavra outrossim.

Eu quase morria de ódio.

Fui à casa de Alice, contei tudo a ela e disse que iria pedir demissão do emprego, não estava suportando tanta burrice.

Ela:

_Verinha, você não pode ser louca ao ponto de perder o emprego por causa de outrossim.

Fui ficando, agüentando a barra e despachando. Até que certa manhã, ele falou outrossim.

Comecei a gritar:

_ Não, tudo tem um limite na vida: outrossim falado e, pela manhã, é demais para os meus nervos! Eu vou pedir demissão.

O meu chefe me olhava, horrorizado. Acho que ele usava essa palavra até com a sua mulher, na cama, tamanha a naturalidade e insistência com que a pronunciava. Não tinha a menor idéia do porquê do meu ataque de nervos. 

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Disse-me:

_ Dona Vera, a senhora está  se sentindo mal?

_ Eu não me dou bem com as manhãs, acordo nervosa, respondi.

_Então, de agora em diante, a senhora só venha à tarde.

Fui direto para casa de Alice para contar-lhe e ouvir as suas gargalhadas. Ela riu bastante e depois, séria, me disse:

_ Verinha, você é a mais louca de toda a família. Controle essa loucura, do contrário a sua vida vai ficar difícil. Você não pode continuar nesse descontrole. 

E contou-me um porção de histórias de pessoas que engoliram sapos e lagartos para continuar no emprego.

Meses depois, o cargo foi extinto, graças a Deus!

Na falta do que fazer, decidi entrar na roda de biriba da Ignez, Yolanda, Sarita e um grupo de desquitadas.

Um dia, uma delas me disse:

_ Vera, você é jovem, hoje é sábado, deveria estar com uns amigos da sua idade se divertindo, namorando, e fica aqui jogando biriba com esse bando de mulher desquitada?

Eu respondi:

_ Pois é, vocês namoraram, noivaram, casaram, desquitaram e chegaram à conclusão de que a melhor coisa do mundo  é jogar biriba. Resolvi economizar meu sofrimento e vir direto para o biriba.

 

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                                  .................

 

 

Alice contou-me uma história deliciosa, que demonstra bem a diferença de temperamento dela e do Augusto Mário:

Ela estava com ele, à noite, vendo televisão, na biblioteca, e teve vontade de chupar uma manga. Augusto Mário foi logo desanimando-a:

_ Mas, manga, Alice? A essa hora? Aqui em casa nunca houve uma faca amolada. Você não vai conseguir descascar a manga com as facas que existem aqui. Mas, sendo você muito teimosa, vai querer ir ao quintal amolar uma faca na pedra. Choveu muito. Você vai escorregar, vai cair e se machucar e, a essa hora, médico nenhum vem até a Lagoa Rodrigo de Freitas para acudir alguém. Desista, Alice.

Ela desistiu.

Uma outra vez foi o caso do mel. Ela detestava mel. Um dia, Augusto Mário trouxe-lhe uma garrafa de mel e a colocou sobre o móvel da sala.

Quando ela viu a garrafa, foi tomar satisfação com ele:

_ Você comprou o mel, mesmo sabendo que eu detesto?

_Ainda detesta? Pensei que tivesse mudado de idéia e já gostasse. Então, para que é que  você está criando abelhas?

_ Para jogar o mel fora, foi a resposta rápida de Alice.

 

 

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 O Flávio, um de seus filhos, era muito inteligente e tinha também tiradas incríveis. Ele tinha a mania de casar. Separava de uma mulher e casava com outra. Ao todo, durante a vida,  teve sete esposas.

No aniversário de Alice iam quase todas, que se separavam do Flávio mas continuavam apaixonadas pela sogra. Cada uma com o marido novo, e o Flávio, muito irreverente, dizia:

_Puxa vida, só trombo em mulher minha, nesta noite!

Num dos casamentos do Flávio, fomos todos comemorar a mulher nova, o apartamento novo e os móveis, idem.  Tudo era lindo e a mulher encantadora.  Duas amigas nossas, muito viciadas no jogo de biriba, após o jantar resolveram sentar-se numa poltrona e jogar.

No dia seguinte o Flávio ligou para a Sarita, sua irmã, e foi dizendo:

_Aconteceu um desastre, o meu sofá novo, onde Yolanda e Conceição estavam jogando, amanheceu furado de cigarro. Ou foi a Yolanda, que fuma, ou a Conceição virou vagalume.

Num daqueles movimentados almoços em casa de Alice, o assunto era a paixão do Felisberto, seu neto, filho do Caio e da Elza, a que estivera lá em casa para conhecer o amor.

Felisberto namorava uma moça bem mais velha do que ele e, num elegante jantar, já de pileque, viu passar uma mulata linda, nova, de belíssimo corpo e olhando para ele. Acompanhou-a com o olhar e a namora, a seu lado, viu e fez cara de desdém, murmurando:

_Uma mulatinha!

Ao que o Felisberto retrucou:

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_É mulatinha mas não é recauchutada!.

Foi a conta. Levou o maior fora da história e caiu de cama apaixonado e foi para a casa de Alice.

Alice fazia-lhe todas as vontades: dava-lhe caldinho o dia inteiro, dizia que paixão dá um nó na garganta e que apaixonado não podia comer coisas sólidas porque engasgava.  Que paixão é a maior doença do mundo, que ele não podia tomar chuva, nem vento, nem sol, que iria piorar. Com aquele apoio moral de Alice, o Felisberto não ia mais ao trabalho, deixou a barba crescer, o olhar entornado, olhava além das pessoas, a coisa foi ficando séria e exigindo um basta. Era a conversa do almoço. O Flávio, que se dizia entendido em medicina, veio com esta de que, num estudo profundo, havia chegado à conclusão de que a vitamina D, misturada com a vitamina B-12  e K, curava qualquer paixão, por mais forte que fosse.

Fomos à Farmácia, compramos as vitaminas e demos ao Felisberto. Nada. O máximo que conseguimos foi tirá-lo da cama e colocá-lo à mesa do almoço.

A Elza, mãe, estava angustiada com o sofrimento do filho.  E disse que, naquela manhã, havia ido à Igreja e colocado uma vela no altar para a namorada voltar.

E o Flávio:

_ De que lado você botou a vela, do esquerdo ou direito?

_Do esquerdo, disse a Elza.

_ Ah, então foi por isso que o remédio não deu resultado. Lado esquerdo é para a namorada não voltar nunca mais.

O olhar do Felisberto despencou, quase caiu ao

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chão, de   pânico.

 

 

Um dia, abateu-se sobre aquela casa feliz uma tristeza enorme. O Carlos Alberto, filho da Ignez e do Abgar, morrera num acidente de automóvel nos Estados Unidos. Ele era um rapaz forte, bonito, inteligente, espirituoso. Onde estivesse, animava o ambiente. Vinte anos de idade. Que pena!

Aquelas alegrias todas: vozes, risos, brincadeiras, foram substituídas pelos suspiros. Passamos a escutar até o badalar triste do carrilhão da sala. Nem tínhamos reparado o quanto  era triste o seu badalar. Ou será porque, antes, a alegria não nos deixava escutar?

A casa transformou-se num velório. Visitas e mais visitas, todo mundo suspirando.

A Ignez era a própria dor. Alice e Augusto Mário ficaram mudos. Todos arrasados. Os outros dois filhos da Ignez, Caio Márcio e Luiz, tristíssimos.

O Abgar, extraordinário poeta, fez um belo e sentido poema. Um pequeno trecho:

 

“O que eu choro na sua ausência

 não é a rosa do teu corpo jovem, abatida no haste,

 nem a tua alegria, que não mais verei:

 doem-me os teus frutos, que, ao caíres, esmagaste sobre ti;

 amarga-me o quinhão de tempo e flor

 arrebatado às tuas mãos de vida”.

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                   .........................................

 

 

Aquela família passou a ser a minha âncora. Todos eram carinhosos comigo: Alice, Augusto Mário, Paulo e Judith, Caio, Flávio, Sarita, Ignez e Abgar. A Sarita, principalmente. Eu morava perto dela, só tinha empregada duas vezes por semana e ela, preocupada com a minha saúde, chamava-me para jantar quase todas as noites, durante a semana. Aos sábados e domingos, normalmente, íamos para a casa de Alice.

Sarita era uma mulher linda, inteligente, engraçada, bem humorada, um papo excelente. Onde ela chegava, o ambiente virava festa. Extremamente solidária, generosa, bondosa.

Eu sempre tive esperanças de que ela, com o seu talento, escrevesse sobre a sua mãe. Sempre achei que as pessoas que haviam lido “Minha Vida de Menina” teriam curiosidade de saber o que aconteceu, durante a vida, com a menina Helena. E não havia ninguém mais competente para contar esta história do que a Sarita. Escreve muitíssimo bem, é autora do livro “ Contando Histórias”, que foi muito elogiado pela crítica e é, realmente, muito bom.

Esperei que, depois desse livro, viesse aquele que eu aguardava. Ainda espero.

Sarita achava todas as pessoas boas, tinha  a maior paciência com o ser humano.

Uma vez eu impliquei com uma amiga sua que era burra, antipática, feia, orgulhosa e boba. Sarita deu-lhe uma carona no carro e, pelo caminho, a mulher vinha dizendo bobagens em série:

_ O meu maridinho, todas as manhãs, acorda me fazendo carinho e perguntando de quem é essa boquinha, esse narizinho.

Uma mulher de mais de quarenta anos, sem o menor censo de ridículo, dizendo essas bobagens e a

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Sarita ouvindo, sem se revoltar.

Na segunda idiotice eu pedi à Sarita que parasse o carro, eu iria a pé mesmo, não me sentia obrigada a ouvir aquela procissão de asneiras.

A Sarita ficou desorientada com o meu falatório e quase atropelou um homem e, quando chegou à casa de Alice, após ter despejado aquela idiota no final de Copacabana, ainda levei a maior descompostura.

Sarita dizia à Alice:

_Mamãe, a Verinha está seriamente doente. Precisamos conseguir para ela um psicanalista, com urgência. A felicidade dos outros faz um mal tão grande a ela que, só porque a minha amiga está feliz, casada com um  homem carinhoso, ela queria descer no meio do caminho e quase me fez atropelar um homem. 

Quando contei a Alice a quantidade de asneira que a mulher havia dito, ela deu gostosas gargalhadas e me deu total razão.

Sarita tinha dois filhos, um casal. A mais nova , Maria Alice, morreu aos oito anos, atropelada em frente à casa de Alice, na Lagoa.

O outro é o Eduardo. Escritor, advogado, jornalista, uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço, pai de três filhas lindas: Ana Cristina, Ana Maria e Ana Luiza. 

Sabia o quanto me sentiria sozinha sem essa família, quando me mudei para Brasília. Quando, durante um almoço, informei que estava disposta a vir para cá, ninguém acreditou. Consideravam Brasília uma loucura, um desterro, nunca podiam acreditar que eu tivesse coragem mesmo de vir para cá. Houve todo tipo de palpite. O Flávio achava que eu devia estar apaixonada por algum engenheiro, ou deputado. Todos concordaram que somente uma paixão me

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daria forças para largar tudo e começar de novo, num lugar deserto, sem amigos, sem programas, sem o calor humano que sempre me fez falta.

Mas, infelizmente, não havia paixão nenhuma. O que existia era a determinação de dar uma virada na vida, de tentar outros caminhos num lugar novo, de acompanhar o nascimento e o crescimento de uma cidade, de ajudar, se me fosse possível, na concretização do sonho do Juscelino.

O meu irmão, Celso, era deputado federal e eu vim morar com ele. 

 

 

Quando falei com Alice, em 1960, que havia decidido morar em Brasília, ela tentou me desanimar. Quando não teve mais nenhum argumento, saiu com esta:

_Verinha, o que você irá fazer numa terra onde não tem lagartixa?

_E o que eu iria fazer com lagartixa?

Aos domingos, na solidão do Planalto, ficava imaginando o movimento e a alegria daquela casa e me dava uma vontade enorme de voltar para o Rio.

À noite, ligava para Alice e ela me contava, detalhadamente, o que eu havia perdido.

Até que, um dia, o Augusto Mário sofreu um derrame e ficou com uma grande parte do corpo paralisado.

Alice ficou arrasada. Aquele homem ágil, inteligente, lúcido, culto, estudioso, ali parado, deitado numa cama, sem ao menos ler um jornal. Ela sentou-se numa poltrona num canto daquele quarto enorme e lendo, tecendo tricô, crochê, fazia companhia ao seu

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companheiro de toda a vida.

Escreveu-me esta carta:

 

Verinha querida,

 

 

Recebi sua carta e achei engraçado você, uma moça solteira, estar lutando com a falta de empregados.

É cedo, ainda, para isso. Largue o trabalho de casa e vá para qualquer lugar procurar a sua metade.

Lembrei-me, agora, de uma conversa engraçada da Esther. Ela diz que Deus, quando fez o mundo, deixou laranjas partidas ao meio. Quando as duas metades se encontram, o casamento é feliz.  Mas como ela não encontrou a sua metade, que já tinha apodrecido, ela agarrou mesmo uma jaca e está vivendo até hoje. Faça como ela, se não encontrar a sua metade pegue mesmo uma jaca.

Eu acabando de ler sua carta lutando para criar os filhos de seu irmão, tomei do jornal e, por acaso, deparei com uma notícia interessante: Um casal de americanos que se hospedou na casa de Maria do Carmo Nabuco, veio aqui para se casar. O homem tem 76 anos e a mulher 79, mais velha de que ele 3 anos.  Ambos apaixonados, um pelo outro.

Ele contou que, ficando viuvo, saiu um dia para o trabalho. Voltando à tarde ao apartamento, encontrou-o todo florido. Sabendo depois que foi a noiva que tinha arranjado as flores, resolveu pedi-la em casamento. 

É assim que se conquista os homens, procurando saber o que lhes agrada. Homem hoje está uma

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mercadoria muito valorizada. De cem homens, se a gente encontrar cinqüenta que queiram ou possam se casar, é o mais.  A maioria deles só procura moça rica.

Estou escrevendo assentada na cadeira que você conhece e apreciando as artes de um pequeno que o Amaro chamou na rua e mandou apanhar os cocos maduros. O menino subiu até o último galho e, lá de cima, vai atirando os cocos. Já pegou uns quinze.

Quando eu comprei este terreno não havia aqui nem bananeiras. Eu plantei os coqueiros, manga, abacate, fruta do conde, fruta pão, mamão, goiabeira, laranja, grumichama e muita bananeira.

Este prazer de plantar e colher frutos se acabou, com a mudança de casas para apartamentos, o que é bem triste.

Sarita está nos convidando para morar com ela, mas ainda não me decidi. Acho triste trocar casa por apartamento.

 Ando muito aborrecida com a idéia da mudança de Ignez para Brasília.  Não acredito que de lá ela possa vir sempre, como vem agora de Belo Horizonte. As passagens são muito mais caras.

Será que a vida, aí, anda enjoada como aqui?

A filha de Stalin deu uma entrevista no jornal que saiu da Rússia porque não pode viver sem Deus. Será que ela irá encontrá-Lo nos Estados Unidos?

Aqui, onde o povo só vive rezando, eu acho que quem nos governa é Satanás. Deus anda aborrecido com o Brasil, com tanta moça nua se exibindo na rua e tanto homem furtando.

Eu nunca esperei ficar velha. Mas agora estou convencida que vou até os cem anos.

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Yolanda voltou para a vida enjoada com o Guilherme. Ela não se queixa, mas a gente percebe que ela não está feliz.

Os homens estão, como sempre, bem ruins. Mas, felizmente, as mulheres estão lhe tomando a dianteira, cada uma pior que a outra.

Se encontrar mil erros e tudo fora do lugar é porque estou escrevendo sentada e já caducando muito.

Sem mais, um saudoso abraço e um grande beijo de

 

                                                                 Alice

24-4-67

 

Respondi:

 

 

Alice, minha querida:

 

 

Coisa boa é receber uma carta sua. Tenho vontade de conversar com muito pouca gente, ultimamente. Só ouço bobagem misturada com idiotice e chego a preferir voltar ao meu monólogo com as crianças: Desça daí, não quebre a cabeça, cuidado com isto, com aquilo, e vou emburrecendo também e ficando igual aos outros.

Você diz, com simplicidade, as coisas mais

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deliciosas. Esta da filha de Stalin sair procurando Deus nos Estados Unidos foi genial! Só mesmo de você!

Deus deixou de ser um elemento espiritual para se transformar num elemento geográfico. Em lugar das criaturas se mergulharem em si mesmas, para encontrar Deus, saem viajando pelo mundo, à sua procura. E, logo nos Estados Unidos?

Por quê não na Índia, lugar de meditação?

Aqui está tão ruim quanto aí, sim. Recordo-me, sempre, daquele amigo do Abgar que todas as noites sentava-se na cama antes de adormecer, e se queixava: tantos anos, tantos dias, tantos meses, tantas horas e esta mesma porcaria!

E você ainda vem com essa bobagem de querer que eu me case. Eu estou a fim é de simplificar a vida, não complicá-la. Nasci sozinha e quero morrer só. Quanto menos chateação, melhor. Imagina se ainda vou me casar com um chato para aborrecer, mais ainda, a minha vida e ainda ter filhos, como se a vida fosse presente que se desse a alguém. Presente de grego, eu acho. Nenhum horizonte, ameaças de todos os lados, guerras atômicas pela frente e uma série de chateações nos intervalos, é a isto que chamam vida? E ainda estão nascendo crianças, isto é que me espanta.

Eu também tenho plantado muitas árvores na minha chácara. Cheguei à conclusão de que a única coisa realmente importante e futurosa no nosso País é plantar árvores. Pelo menos elas crescem, dão flores e frutos e ninguém atrapalha.

Depois de uma série de empregadas loucas consegui uma cuja única estranheza é gostar de vestir bonecas. Faz vestidinhos o dia inteiro. Eu nunca achei muito normais as pessoas que aceitam viver numa cozinha de manhã à noite, fazendo comida para os outros e lavando panelas. Acho um ideal tão raso que

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só combina, mesmo, com loucos. A Consuelita é, apenas, infantil. Além de vestir as bonecas ela gosta de fazer biscoitos. É biscoito de toda a qualidade e gosto, alguns uma delícia. E a criançada adora.

Acho que a Ignez  gostaria de viver aqui, sim. Ela gosta mais ou menos das mesmas coisas que eu gosto: ler, conversar com pessoas inteligentes, ouvir música, jogar um biriba e receber amigos. Tudo isso existe aqui.

E você podia parar com essa mania de detestar Brasília e vir para cá com ela. Você e Augusto Mário.

Vocês ficariam aqui em casa, comigo. Da janela, você avistaria paisagens às pampas, árvores e gramados a perder de vista. Seus coqueirinhos são pinto perto do que existe aqui.

Plantaram árvores e mais árvores, de todas as qualidades, para fazer companhia àquelas que já existiam, secas, retorcidas, sofridas, e compensá-las dos anos e anos de solidão.

E, da janela, só da janela, você terá a impressão de viver num mundo florido, bom e justo. Os carros correndo nas avenidas largas e lindas, as criaturas atravessando parques, as crianças espalhadas, brincando nos “play-ground”, onde existem brinquedos de todas as espécies. Os prédios lindos, as tardes maravilhosas, céu vermelho, vidraças vermelhas, lua nascendo com força e clareando tudo, enfeitando o lago, as árvores, as areias e os brinquedos das crianças.

Fico, durante horas e horas na janela olhando, ameaçada de virar estátua. E pensando o quanto o nosso Juscelino foi capaz ao concretizar o seu sonho de criar um cidade. E o quanto o nosso povo foi competente, construindo Brasília em tão pouco tempo.

Você não me falou do Augusto Mário. Tenho uma ternura enorme por ele. É exatamente  a metade da

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sua laranja. Pouquíssimas laranjas foram recuperadas na Terra, inteiras. Vocês dois conseguiram esse milagre.

Neste exato momento chegaram as crianças no meu quarto e estão fazendo a maior algazarra. Uma delas está chorando.  Já brigaram, com certeza.

Voltarei a escrever e contarei umas novidades daqui para provar a você que a loucura não é privilégio daí.

Um beijo grande e carinhoso para você e Augusto Mário. Abraços para a família e agregados.

                                                                          Vera

12-5-67

 

 

Num dos meus telefonemas para saber notícias do Augusto Mário, fiquei sabendo que o Nhonhô, irmão da Alice, havia morrido e que Alice estava muito triste.

Mandei-lhe uma carta:

 

 

Alice, minha querida:

 

Sei o quanto você deve estar sofrendo com a morte do seu irmão. Sei com que intensidade você ama as pessoas do seu carinho e o vácuo que deve existir na sua emoção, quando você perde uma delas.

Gostaria que o carinho da gente que a ama tanto

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pudesse equilibrar, um pouco, este seu sofrimento.

Porque você, Alice, é uma das pessoas mais bonitas que conheço. Foi o que encontrei na vida de mais sensível, humano e generoso.

A humanidade está cada vez pior, concordo.

A salvação é que a gente consegue encontrar criaturas como você, que justificam esta humanidade tão cheia de ambição e tão sem grandeza.

Veja a atual situação do nosso Brasil.

Lembra-se do quanto você e Augusto Mário sofreram, na ditadura do Getúlio, perseguições, exílios, além do sofrimento de ver os amigos sendo presos, torturados, separados de seus filhos?

Pois é. Está tudo igualzinho.

No Brasil, este problema de quartelada é cíclico.

A gente cria os filhos com o maior cuidado, como você criou os seus e eu estou tentando criar os meus. Quando eles ficam rapazes, lá vem quartelada de novo. E todos os sentimentos de amor à pátria, dignidade, bom caráter, lealdade, liberdade de pensamento, que lhes ensinamos, fazem deles pessoas perigosas e ... desce pancadaria sobre as suas cabeças.

Mas, se lhe déssemos orientação contrária, eles não seriam visados, mas nós não iríamos suportá-los.

Fica difícil sonhar um futuro brilhante para eles, num País tão pouco amadurecido como é o nosso.

Tenho pensado muito no Nhonhô. Ele me falava de minha mãe com muito carinho e bondade.

Perdi a mamãe muito pequena, mas consegui reencontrá-la, algumas vezes, em alguns olhares, em

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alguns gestos. Em você, principalmente.

Morrer, para mim, não tem o sentido de acabar. Quantas pessoas vivas morrem dentro de nós! E quantas morreram e deixaram sementes tão bem plantadas no nosso íntimo que, às vezes, não somos senão reflexo do que elas foram, do que nos fizeram ser.

Dê um beijo na Corina, outro na Maria Alice. Breve lhes escreverei.

Espalhe beijos pela família: Sarita, Ignez, Abgar, Iolanda, Augusto Mário.

Escreva-me. E não se esqueça de colocar o endereço.

Afinal, nem eu sou tão grande, nem Brasília é tão pequena.

Num beijo, toda a ternura de

                                                           Vera.

 

 

Verinha querida:

 

Recebi a sua boa e bonita carta.

Gostei de você ter se lembrado de meu querido irmão.

Lembrei-me dele se referindo a você com simpatia.

Senti ele ter morrido antes de mim, eu o criei desde pequeno e o queria como a um filho.

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Graças a Deus, ele teve a morte que merecia, morreu sem sofrer, sem sentir.

Eu não estou podendo, como você, me preocupar com a situação do país. Vivo tão triste, preocupada, vendo Augusto Mário há ano e meio, doente, sem andar.

O que eu mais gostei de sua carta foi saber que você vai recebendo bem a nova vida de mãe de três filhos! Quando, meses atrás, nós conversávamos ao telefone e você me disse que estava com três sobrinhos, eu fiquei triste e com pena de você.

Mas, agora, vi pela sua carta que você está levando bem a nova vida, apesar de trabalhosa. Antes assim.

Só fiquei triste ao pensar que, agora, será mais difícil a sua vinda aqui.

Não me conformo com esta Brasília, tão distante que mais parece um deserto. Quando leio o jornal e vejo o que escrevem contra o Juscelino, eu fico com tanta pena dele que preciso me lembrar que ele fez Brasília, para acabar a pena e me consolar.

Basta de tanta coisa triste.

Com um saudoso abraço de

 

                                                         Alice

 

 

 

 

Só agora entendo o que Alice quis dizer quando

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me chamou a atenção para o fato de Brasília não ter lagartixas. Brasília, no início, era uma cidade lisa, fria, sem plantas, sem vegetação.

Agora, deitada na rede de minha varanda, rodeada de plantas, samambaias e trepadeiras, vendo as telhas envelhecidas cheias de lagartixas, entendo que tudo isto significa lar, aconchego, amor, que ela sabia o quanto me fariam falta.

 

  Várias vezes fui ao Rio visitar Alice e Augusto

Mário.

Aquele homem culto, inteligente, afetuoso, que vivia lendo no seu escritório, agora deitado naquela cama, triste, quase sem se movimentar, dava uma tristeza enorme na gente.

Alice não se afastava do quarto. Sentada no sofá, lendo ou tecendo, não se separava do homem que escolheu como companheiro e amou a vida inteira.

Quando Augusto Mário morreu, Alice foi para o apartamento da Sarita.

Voltei ao Rio para vê-la.

Ela já não tinha mais entusiasmo para conversar. Quando dizia alguma coisa, era sobre o Augusto Mário. Não conheci, até hoje, alguém tão apaixonado.

Enquanto ela dormia, eu pensava:

Que mulher extraordinária!  Que sorte eu tive de, ainda jovem, quando vim para o Rio, encontrá-la. Eu sozinha, solta na vida, sem rumo e sem prumo, com o caráter ainda em formação, a personalidade, idem, sem ter que prestar contas a ninguém dos meus atos, com aquele sentimento de revolta por ter perdido a

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mãe muito cedo, ter tido um pai pouco carinhoso e uma madrasta doida, uma bagagem mais para uma descida, um despencar na vida, do que para um equilíbrio, uma subida, encontro esta fortaleza, esta  admirável criatura que me recebeu com um carinho que me era totalmente desconhecido, estranho.

Acho que Alice transferiu para mim o amor que sentia pela minha mãe. No primeiro abraço, percebi isso. Ela me olhava, às vezes, buscando em mim a amiga querida.

Eu nunca havia sentido uma admiração tão grande por alguém. À medida que nos conhecíamos melhor, eu a amava mais ainda. Nunca ouvi Alice falar mal de qualquer pessoa.

Era profundamente amorosa, sem perder a energia. A sua generosidade era discreta. Nada nela era falso. Coerente, sensata, sóbria, solidária, franca. Não dava muita importância ao fato de seu livro estar sendo considerado best-seller em vários países do mundo. O Abgar chegava com um artigo de um jornal dos Estados Unidos, ou da França, ou da Itália,  lia para ouvirmos e ela não demonstrava o menor espanto, nem grande alegria. Dava um sorriso e, pronto, já nos chamava para almoçar.

Passei a creditar no ser humano e a ter esperanças, quando conheci Alice. Pensei: Se existe, realmente, uma criatura assim, o mundo não é tão ruim quanto eu achava.

As palavras, os conselhos,  a orientação, o carinho com que transmitia os seus ensinamentos sem a pretensão de estar impondo caminhos ou indicando estradas. Dificuldade, sofrimento, tristeza  ela conhecia bastante. Ao contar, às vezes, estava pretendendo nos ensinar como superá-los ou, no mínimo, sofrer com menor intensidade. Não dizia: Você deve agir assim. Apenas contava. Não desperdiçava palavras. Cada frase que ela

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pronunciava, tinha um sentido. Cada atitude, idem.

Uma amiga da Ignez, chamada Lurdes,  ia muito à sua casa e contava-lhe horrores do marido, que era uma criatura péssima que a fazia sofrer muito. Quando ele morreu de enfarte, por insistência da Ignez, Alice foi visitá-la.

Quando abriu a porta  do apartamento onde estavam várias pessoas e a Lurdes veio ao seu encontro, aos prantos, Alice foi dizendo:

_ Por quê este choro? Você devia estar feliz, ficou livre daquele bandido que só a fazia sofrer. Eu não vim para visita de pêsames, não. Vim comemorar. 

Era assim, foi assim a vida inteira, desde menina. Não fazia a menor concessão. Não abria uma brecha para os sentimentos menores. Acho que ela demonstrou isso desde menina, no seu diário. Só que as criaturas que se dizem humanas vão se deteriorando, durante a vida.

Alice, não. 

 

 

 

 

                           ..........................

 

 

 

 

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Minha Vida de Menina

 

 

 

Em 1941 a família Brant morava num apartamento, enquanto a sua casa estava sendo construída na Lagoa Rodrigo de Freitas, perto do Corte Cantagalo onde existe, hoje, o Edifício Helena Morley.

Alice detestava morar em apartamento.

Certa tarde de sábado, para distrair os filhos, pegou dentre os seus guardados o diário que havia escrito quando menina e resolveu ler para eles e para o marido.

Todos escutavam encantados.

Ao final da leitura o marido Augusto Mário, sugeriu:

_ Por quê não publicamos esse diário? Muita gente iria ter a oportunidade que estamos tendo de ouvir histórias tão interessantes de uma menina inteligente numa cidadezinha mineira, no final do século passado.

Alice não achou muita graça na idéia. Ignez, sua filha, adorou.

Depois de muita discussão, Alice concordou em transformar tudo aquilo num livro, desde que fosse com pseudônimo, do contrário Diamantina inteira iria

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brigar com ela.

Pensaram vários nomes. Alice preferiu Helena porque achava um nome muito bonito. E o sobrenome Morley, de sua avó materna.

Assim nasceu Helena Morley.

 

O livro foi lançado pela Livraria José Olympio em 1942.

Foi o maior sucesso. O Brasil inteiro comentava e as edições se esgotavam, uma após outra.

 

No Jornal “A Manhã”, dia 19 de junho de 1943, Gilberto Freyre escreveu um longo artigo sobre o livro e dele retiramos o seguinte trecho:

“A narrativa é quase história natural; mas uma história natural de que acabamos não sabendo separar a história pessoal na menina chamada “Helena Morley”, de tal modo nos habituarmos a vê-la, não só como uma menina qualquer – um caso sociológico – mas com seus característicos, seus cacoetes, suas sardas, na variedade de situações sociais e psíquicas em que se delicia em retratar-se no diário. Retratos sempre de grupos; grupos de família, grupos de colegiais, procissões até, das quais a autora do diário se destaca sem que deixemos de ver sua mãe, sua avó, seu pai, suas irmãs, suas tias, seus professores, as negras da casa, as visitas.

Daí o interesse sociológico e histórico do diário de menina brasileira agora publicado – mesmo que não seja literalmente diário nem literalmente história. Como a biografia do Barão Geraldo de Rezende por sua filha, Dona Amelia de Rezende, esta quase auto-biografia de menina mineira nascida ainda sob a influência social: São Paulo, Minas, o Norte

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monocultor”.

 

No Jornal “Folha Carioca” de 29 de Abril de 1944, Raquel de Queiroz escreveu uma bonita crônica e dela retiramos o seguinte trecho:

 

“Se dona Helena Morley fosse mais pretensiosa poderia dar ao seu livro um título mais ou menos assim: “Retrato de uma cidade brasileira nos fins do século XIX” – ou “Memórias do último período do patriarcalismo escravocrata” (esse eu calquei numa frase de Gilberto Freyre) ou qualquer coisa idêntica de sabor sociológico e erudito. Porque esse diário de uma menina representa na verdade um apanhado maravilhoso dos costumes, das tradições, é um retrato a bico de pena da cidade de Diamantina nos fins do século passado, com seus tipos populares, suas festas, seu pitoresco, seu primitivismo de localidade onde não chegou ainda uma ponta de trilho, e está a meio século de distância da primeira asa de avião”.

 

E Gustavo Capanema, numa carta à sua filha Ignez, em 22 de maio de 1945:

 

Rio de Janeiro, 22 de maio de 1945

Minha cara Ignez,

 

Peço que dê a sua mãe uma informação.

Ontem aqui esteve para se despedir Georges Bernanos, que, varrido pelo nazismo, morou quase sete anos no Brasil e agora volta para a França.

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Conversamos muita coisa: o após-guerra, o nosso povo, De Gaulle, Euclides da Cunha, pintura, André Gide ... Tendo eu dito que Gide é muito lido entre nós, principalmente o jornal, Bernanos, numa súbita associação de idéias, disse que um dos livros que já o feriram é o de Helena Morley. Falou com veemência. Guardo algumas: c’est une oeuvre géniale ... um livre unique, impossible à traduire ... c’est um miracle, comme lê miracle de Rimbaud ...

Falei essas coisas ao Abgar. Mas talvez não tenha dito tudo. Depois, você é que é filha.

Tenho ouvido muito elogio ao livro de sua mãe. Nada me parece tão forte como as palavras de Bernanos.

Certamente elas hão de agradar ao seu coração.

Receba as cordiais expressões de amizade do seu velho

                                                                      Capanema

 

 

Em seguida, no dia 30 de maio de 1945, Alice recebeu esta carta de Georges Bernanos:

 

 

Prezada Senhora:

 

Muito me emocionou a gentileza de enviardes a mim o vosso livro, pois na verdade acredito que já sabeis quanto o admiro e amo.

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Escrevestes um desses livros raros em todas as literaturas, livros que nada devem à experiência, ao talento, mas tudo devem ao ingenium, ao gênio, pois não se deve ter medo dessa palavra tantas vezes desviada do seu significado, ao gênio considerado em sua própria fonte, ao gênio da adolescência. É que aí as recordações de uma simples menina de Minas apresentam o mesmo problema que os fulgurantes poemas de Rimbaud. Por mais prodigiosamente diferentes que pareçam aos imbecis, sabemos que essas recordações pertencem à mesma parte misteriosa – mágica – da vida e da arte.

É provável que ignoreis o valor do que nos destes. Eu, que o sinto tão profundamente, não saberia defini-lo. Conseguis que nós vejamos e amemos tudo o que vistes e amastes naqueles dias distantes, e cada vez que fecho o vosso livro convenço-me de que o espírito dessa narrativa me escapa. Mas que importa?

É bem emocionante que se diga que a menina que fostes, bem como o pequeno universo em que ela viveu, não morrerão nunca.

Peço-vos que aceiteis as minhas homenagens.

 

                                    G. Bernanos

 

 

 

Paulo Mendes Campos escreveu num artigo em que conta o seu pressentimento:

 

“Não sou profeta, mas “Minha Vida de Menina” há de ficar na literatura como um desses clássicos

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peculiares como os diários de Pepys, de Maria Baskirtseff, de Anne Frank. Ao contrário da obra de Lewis Carroll, aí se conta a história de uma menina em um país de verdade. A composição do mural é tão intuitivamente certa que espanta: as experiências se desdobram e completam a pintura com uma naturalidade admirável.

Tenho a pretensão de conhecer melhor Minas Gerais e seu povo depois dessa leitura. Por outro lado, li algumas passagens a uma garota de sete anos, e a sua reação foi exigir um exemplar somente para ela. É a grande doçura do livro: não tem idade. Por isso mesmo, acho que o editor da obra andaria avisado se fizesse publicar um volume ilustrado por um desenhista capaz de traduzir o enternecimento (sem qualquer pieguice) de “Minha Vida de Menina”. Já é tempo de dar essa obra como um esplêndido presente, à infância e à juventude.”

 

 

Guimarães  Rosa escreveu-lhe esta cartinha:

 

Rio, 15 de julho de 1958.

 

À ilustre conterrânea e admirável escritora D. Alice Brant, muito e vivamente agradeço o gentil, oferecimento do “Minha Vida de Menina” – que já lera e relera, em outra ocasião, com encantamento e amor, considerando-o como um dos maiores livros brasileiros, dos mais importantes.

E em grata e cordial homenagem beija-lhe as mãos o

 

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                                                         Guimarães Rosa.

 

 “... E, vinda de Minas Gerais, também surgiu a extraordinária Helena Morley, com o seu “Minha Vida de Menina”. Esse é um caso único na literatura brasileira, e o seu comentário exige artigo à parte”.

“ Senhores do artifício e da invenção, romancistas do retorcido e do complicado...vinde aprender uma lição de clareza e de simplicidade. Porque este diário de uma menina representa, na verdade, um apanhado maravilhoso dos costumes, das tradições, é um retrato a bico de pena da cidade de Diamantina nos fins do século passado...Poucas vezes, em minha vida, tenho percorrido uma obra impressa com tão integral emoção”.

                                      Rachel de Queiroz

 

“É uma biografia disfarçada, esta, de Helena Morley, mas ao mesmo tempo é uma espécie de história natural da vida da família brasileira no último período do patriarcalismo escravocrata e numa região menos conhecida que o nordeste da cana de açúcar. Sob esse aspecto é que o diário de Helena Morley me interessa mais vivamente”.

“Uma série de fatos, aparentemente sem importância, são recordados num português tão simples...que lembra o inglês dos bons e autênticos diários britânicos e norte americanos de moças e mulheres. E através dessa série de fatos miúdos e quotidianos, mas significativos, o leitor se familiariza com a menina-moça... e com o mundo quase completo de sua experiência, de sua vida de família, de seu desenvolvimento de colegial em normalista. Um desenvolvimento a que não faltam situações moderadamente dramáticas: a morte da avó querida,

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por exemplo”

 

                                                 Gilberto Freyre

                           

 

“ A leitura do livro confirmou minha expectativa, fundada nos elogios que à obra tinham feito homens como Bernanos. Como ele, sinto também que aquele mundo de Diamantina não morrerá jamais. Sinto igualmente que o centro daquele seu mundo é a figura da avó; eis um dos mais fortes e impressionantes retratos da nossa literatura”.

 

                                         Manuel Bandeira

                                                           

 

Uma poetisa norte-americana, distinguida com o Prêmio Pulitzer (a maior laurea literária dos Estados Unidos concedida a Hemingway, Thornton, Wilder e outros de igual categoria), veio morar no Brasil.

Chamava-se Elizabeth Bishop.

Fixou sua residência em Petrópolis.

Amiga de Manuel Bandeira, pediu-lhe que lhe indicasse alguns livros capazes de contribuir, eficazmente, para a sua descoberta do Brasil

Um dos livros indicados pelo poeta foi “Minha Vida de Menina” e Elizabeth Bishop ficou de tal maneira encantada que resolveu traduzí-lo;

Foi a Diamantina e conheceu todos os lugares

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que Alice percorreu na sua infância.

Traduziu o livro com enorme competência e sensibilidade e o sucesso foi enorme.

Eis como o “Time” saudou “The Diary  of Helena Morley”.

 

“O Diário é cheio de graça, da beleza e de alguns dos dissabores da vida de uma cidade provinciana”.

 

 

Em 1958, no “Diário de Notícias” Rubem Braga escreveu esta crônica:

 

  “Não me espanto desse livro estar em quarta edição; se o brasileiro tivesse algum hábito de ler ele devia estar na décima. É difícil imaginar um livro mais macio, mais simples, mais engraçado e comovente, um livro que seja assim capaz de agradar a qualquer pessoa, seja qual for seu gosto em leituras. Se você quiser dar um livro de presente, dê esse, porque dá sempre certo: estou falando de “Minha Vida de Menina” de Helena Morley. É o diário verdadeiro de uma menina de Diamantina, no fim do século passado. A autora, que na verdade é a senhora Alice Brant, ordenou os cadernos em que fazia suas composições, na infância, para mostrá-los às suas netas, e daí veio a idéia do livro.

Já está ele traduzido para o inglês pela excelente poetisa norte-americana Elizabeth Bishop, que vive no Brasil; acho que a Divisão Cultural do Itamaraty devia se interessar pela sua tradução em outras línguas, pois é um comovente retrato da vida brasileira em certa época e em certa região.

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É um livro, como se costuma dizer, sem literatura; chegará a ser arte o que não é elaborado, o que não sofre nenhuma transposição? Mas aí é que está o milagre da coisa. Muitas outras meninas viviam em Diamantina no fim do século, e o professor de português da Escola Normal obrigava as alunas a fazerem uma composição quase todo dia. A realidade era mais ou menos a mesma para todas. A sensibilidade especial dessa menina, aliada a um jeito natural para escrever, é que permitiu esse milagre de nos trazer até hoje, e para sempre, viva, essa Diamantina de mais de 60 anos atrás. E isso não é arte? E qualquer escritor pode aprender muito aqui e muito tem a invejar, principalmente esse casamento perfeito da linguagem com o assunto. O português não é sempre correto, do ponto de vista gramatical; é corretíssimo, é magistral como expressão do tempo e do meio, e merece todo um estudo de filosofia.

Como eu gostaria de ver esse livro ilustrado! Teria de ser um desenho bem simples, sem nenhuma pretensão, talvez Percy Lau ou Noêmia, em todo caso o desenhista teria de ser documentado sobre Diamantina e assessorado pela autora sobre as modas do tempo e o jeito das pessoas. Faça isso para a quinta edição, José Olímpio, e mesmo que encareça o livro não tem importância, ele merece e vale.”

                                                       

                                                         Rubem Braga

 

 

 

 

 

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Tribuna da Imprensa, 8 de janeiro de 1958:

 

                                    As evocações de uma menina brasileira, no fim do século passado, no município mineiro de Diamantina, estão apaixonando, cada vez mais, o público norte-americano, advertido por vários críticos categorizados da existência, numa admirável tradução inglesa, de uma obra realmente encantadora, que guarda em suas páginas o encanto mágico da infância.

              A Sra. Alice Caldeira Brant, já cientificada deste e de outros honrosos julgamentos, disse à Tribuna da Imprensa:

 

-                                                                  “Talvez os americanos tenham gostado da simplicidade com que escrevi. É a única explicação que encontro para tudo o que está acontecendo.

-                                                                  Trata-se de registros sentimentais  feitos por uma criança e sujeitos, por isso mesmo, à volubilidade própria da infância.  Sempre que eu desejava criticar alguém, meu pai me pedia para não fazer  diante dele ou de mamãe, ou mesmo diante de minhas amigas. Mandava que eu escrevesse tudo, desabafasse diante de uma folha de papel. Anotando os dias, comecei o meu livro aos treze anos de idade. Até a idade adulta, continuei com o hábito. Devo dizer que jamais tive a intenção de publicar coisa alguma. Mas minha família insistiu, convenceu-me de que eu era realmente uma escritora. O livro saiu no Brasil e eu pensei que tudo tivesse acabado aí.  Mas sua história continua...”.

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Julgamentos:

 

Uma nova edição de “The Diary of Helena Morley”, pois as três anteriores se esgotaram, está sendo providenciada pela editora norte-americana que lançou a autora brasileira. Segundo o “Chicago Sunday Tribune” “tem  as raras qualidades da observação, compreensão humana e o inato espírito de descrever com simplicidade tudo o que viu e sentiu”.

E o “Globe Democrat” acentuou que ela “deu ao seu Diário uma duradoura universalidade, um sentimentalismo que rompe as fronteiras de sua pequena cidade e elcança o mundo”.

O “Harper’s Bazaar” proclamou que, graças à tradução de Elizabeth Bishop, Helena Morley “ mantém as  mesmas qualidades humanas que emergem das páginas de seu Diário”.

 

 

No Jornal do Brasil, em 8 de julho de 1958, Fernando Sabino escreveu:

 

“Não fosse o entusiasmo com que o receberam uns poucos escritores de sensibilidade mais apurada, por ocasião de seu lançamento, e o grito transbordante de entusiasmo com que o saudaram Bernanos, então vivendo entre nós, a considerá-lo obra de gênio, e talvez não tivesse sobrevivido à onda de sucessos transitórios que de vez em quando afoga nosso mercado editorial. E ressurge agora, em mais

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uma edição, depois de inesperado sucesso que foi seu lançamento em inglês, constituído em best-seller e saudado pelos melhores críticos americanos”.

 

 

Ainda em 1958, 2 de fevereiro, o Jornal do Brasil publicou, na coluna do Nelson Coelho:

 

Caminha para o “Best Seller” o Diário da brasileira Helena Morley.

 

Um fator da impressionante aceitação que o livro vem tendo aqui, é por tratar-se de um diário de menina. O tema está na moda. Vejam este trecho de Mildrea Adams, no “New York Times”: “As anotações alegres da jovem anglo-brasileira estão em tempo, circunstâncias e geografia, alguns mundos distanciados das revelações sombrias da alemã Anne Frank. Embora ambas sejam, ostensivamente, produto de adolescentes sensíveis. Tendo aceitado a tragédia da realidade de Anne Frank, o leitor precisa agora contrabalançá-la com essa nova afirmação de que a juventude não é sempre torturada”.

Outro fator prende-se ao “exotismo” brasileiro. Observem este trecho de uma crítica que saiu na capa do “Book Review”, do “New York Herald Tribune” entre duas grandes e boas fotos de Diamantina, sob o título de “Menina Encantada, Diário Clássico”, observem o desejo de imprimir ao cenário, costumes, às coisas, aos homens, tons exóticos que lembram folhetos de turismo: “Minas Gerais, maior que o Texas, foi cenário de grandes comoções no século dezoito, quando aventureiros para lá seguiram em busca de ouro e diamante.  São terras misteriosas e perdidas, quase todas circundadas  por montanhas e onde se

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encontram pequenas e poucas cidades, fundadas nos dias coloniais. De todas elas, Ouro Preto é a mais interessante...” O critico, que é Hubert Herring, prossegue falando das estranhas maravilhas de Ouro Preto, de Aleijadinho, das igrejas barrocas e que conclui que Diamantina é uma cidade pobre, como o era em 1893, quando Helena Morley escreveu o seu diário.

                        

 

                      ...........................

 

Em 1960 o livro já estava na sua sexta edição e, num artigo no Suplemento feminino do “Estado de São Paulo”, Bráulio Pedroso escreveu, dentre outras coisas:

 

“Na verdade o que há nesta obra, além de qualquer comparação de época e costumes, é uma deliciosa evocação do mundo infantil. As impressões da menina provinciana de Diamantina ressurgem por vezes as relações de uma sociedade menos complexa, de um Brasil atrasado, sem as formas organizadas de produção, onde permanecia – principalmente na região evocada – um simpático aventureiro a jogar com as dádivas da terra. Mas apesar destas diferenças – que uma atualidade industrializadora exagera – não houve modificações essenciais nos conflitos humanos. Ao se rememorar os tempos passados como os melhores, há apenas um saudosismo que sempre existiu nas gerações mais velhas.

Não é pela simplicidade dos hábitos de Diamantina dos fins do século passado – como promete a autora – que a leitura de ”Minha Vida de Menina” nos seduz.

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O encantamento está no retorno que empreendemos aos nossos valores infantis, a nossa efabulação descompromissada, no reviver os julgamentos que precederam nosso encontro com a realidade adulta”.

 

“Gazeta de São Paulo”, 1/8/58:

 

Esta “obra prima”, como a classificou Georges Bernanos, traduzida para o inglês pela poetisa Elizabeth Bishop, conquistou o mais alto galardão para as letras femininas do Brasil. Um livro escrito com as tintas indeléveis da poesia e da ternura; um livro que hoje se inclui entre os mais famosos diários jamais escritos em quaisquer idiomas.

Com o lançamento da quarta edição de “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley, a Livraria José Olympio Editora está reapresentando um dos grandes êxitos brasileiros da literatura de memórias. Escrito sob a forma de diário, o livro descreve a vida de uma adolescente brasileira nos fins do século passado, integrada no ambiente típico de uma cidade provinciana da época - a cidade de Diamantina, no Estado de Minas Gerais. Relato minucioso da existência quotidiana numa cidade que conhecera os seus dias de glória com a mineração de diamantes, “ Minha Vida de Menina” é portanto um rico manancial de hábitos, costumes e tradições populares e, sobretudo, o retrato fiel de uma família brasileira há quase setenta anos passados. Escrita com admirável simplicidade, graça e emoção, esse diário constitui a mais autêntica revelação de uma escritora.

Helena Morley deu à literatura brasileira o seu livro clássico no gênero, que é ao mesmo tempo um extraordinário documento sociológico. Precisamente o que mais sobressai nesse livro encantador é o seu aspecto humano, o conteúdo psicológico, os retratos admiráveis de homens e mulheres, crianças e adolescentes, que nos chegam do fundo do passado cheios de autenticidade e de calor, mundo recriado pela memória e por sua legítima vocação literária que

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não precisaria de outras provas para garantir sua própria sobrevivência. “Um milagre, como o de Rimbaud”, asseverou Bernanos: “ um dos mais fortes e impressionantes retratos da nossa literatura”, escreveu Manuel Bandeira.

 

 

Oscar Mendes, na sua coluna  Alma dos Livros escreveu, em 1958:

 

 “ O pai que lhe conhecia bem a vivacidade e a inteligência, aconselhou-a a escrever diáriamente o que visse e sentisse e a menina Helena Morley ( pseudônimo da Sra. Alice Brant), neta de inglês, com treze anos de idade, começou a anotar em seus cadernos de colegial os acontecimentos de sua vida cotidiana, na cidade de Diamantina, aí pelos anos 1893 a 1895.

Quase meio século depois, aparecem em livro essas anotações do dia a dia de uma adolescente. O livro, pelo seu frescor e pelo seu viço, pela sua franqueza, pela sua limpidez, pela sinceridade de seu depoimento, pela veracidade da observação, pela ausência de literatura reformante, pela veracidade da observação,  pela ausência da literatura deformante pela vida que nele pulula e vibra torna-se um “best-seller”, na sua quarta edição e arranca de escritores como Bernanos frases assim: “obra genial, livro único, impossível de traduzir, milagre, como o milagre de Rimbaud”, é traduzido para o inglês e os críticos norte americanos aclamam-no com entusiasmo.

Qual o segredo, qual a magia oculta que faz dessas páginas escritas sem intenção de publicadas, uma pequena obra prima de graça, de ingenuidade , de emoção e de poesia? Nelas não há profundezas psicológicas, precocidades geniais, requintes de forma, acontecimentos importantes e sensacionais. Há simplesmente a vida, a vida que flui, no seu cotidianismo, mas a vida vista através da curiosidade

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e da sensibilidade, da inteligência e do espírito de uma adolescente num meio provinciano, em fins do século passado”. 

Mais adiante: “A vida que flui... eis o segredo da graça e do sabor desse livro. A vida vista pelos olhos de uma menina numa cidade do interior de Minas. Menina viva, inteligente, perspicaz, que vai observando os contrastes, as contradições, as complicações, os absurdos, os enigmas, as desigualdades e as injustiças da nossa decaída condição humana e dando opiniões, apontando ridículos, concenando o que lhe parece errado ou injusto. Nessas opiniões e comentários, predomina a franqueza e há neles, por vezes, uma nota de malícia, de ingênua desfaçatez  dum sabor delicioso”.

E termina o longo artigo:

“Onde está o resto de tão delicioso depoimento?  Existem outros cadernos? E se existem, por quê não publicá-los? Por quê privar-nos de tão puro e refrescante sorvo de vida? “.

 

Foram vários e vários artigos elogiando o livro e, de todos, retiramos estes:

 

New York Times:

 

“ Encantador... uma notável evocação da adolescência...um verdadeiro ato de gênio. Plyllis Mc Grinly”.

 

 “O Diário de Helena Morley, traduzido por Elizabeth Bishop, um livro notável... um quadro extraordinariamente detalhado e vívido do mundo de

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uma pequena cidade visto pelo olhar jovem e agudo de uma jovem que tinha grande entusiasmo pela vida em todas as suas fases...Colocado de maneira deliciosa, de modo vivo e articulado. Rosemary Benet”

 

Tribune- Chicago:

 

“Ela tinha os raros dons de um  olhar perscrutador, um coração compreensivo, e o gênio inato de uma maneira inteiramente natural de escrever o que via e sentia. Fanny Butcher”

 

 

Em 22 de junho de 1960, Maritônio Meira publicava na sua Coluna no Jornal do Brasil:

 

“O livro Minha Vida de Menina, de Helena Morley – pseudônimo da brasileira Alice Brant –foi publicado há pouco em  Paris e vem recebendo grandes elogios da imprensa parisiense. A revista feminina Elle está  aconselhando a suas leitoras a leitura das páginas da escritora brasileira, comprando-a a Anne Frank.

Quem nos dá essa informação é o repórter Luis Edgard de Andrade, do JB, que está em Paris”.

PARIS (Via Panair) – Publicando uma seleção do diário de Helena Morley, escrito em Diamantina – Minas Gerais, entre 1893 e 1895, por D. Alice Dayrell Brant, a revista feminina Elle aconselha a suas leitoras francesas: “Leiam algumas páginas. Vocês serão imediatamente conquistadas. A menina Helena se tornará para vocês a irmãzinha de Marie Bashkerstaf e de Anne Frank”.

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A tradução francesa de Minha Vida de Menina, de Helena Morley – feita pela Sra. Marlyse Meyer – acaba de ser lançada, em Paris, pela editora Calmon-Levy  (a mesma casa que publicou, na França, o diário de Anne Frank), e o seu prefácio é um fac-simile da carta que, em 30 de maio de 1945, Georges Bernanos, então exilado no Rio de Janeiro, dirigiu à sua autora.

 

 

 

O Jornal das Letras, em outubro de 1958, informava:

 

O enorme sucesso de “Minha Vida de Menina” nos Estados Unidos repete-se agora em maior escala na Inglaterra. A versão inglesa do “Diário de Helena Morley foi indicada para a “Escolha de Setembro”, pela The Book Society, de Londres. A revista “THE BOOKMAN”, que é o boletim da The Book Society, publica em seu número de julho/agosto o seguinte comentário a respeito de “Minha Vida de Menina” – cuja 4a. edição brasileira esgotou-se em dois meses, estando já em preparo uma 5a. edição

 

Edições no exterior:

 

Edição Norte-Americana:

The Diary of Helena  Morley”

A girlhood journal of life in a mountain town of

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Brazil at the turn of the century.

Translated, edited and prefaced by Elizabeth Bishop.

New York, Farrar, Strauss and Cudahy, 1957

 

 

 

Edição Inglesa:

 

The Diary of Helena Morley

Translated from the Portuguese by Elizabeth Bishop

London, Victor Gollanck Ltda, 1958

 

Edição Portuguesa:

Introdução de Alexandre Eulálio

Lisboa, Guimarães Editores, 1959

 

Edição Francesa:

Journal D’Helena Morley

Traduit par Marlyse Meyer, avec une lettre de George Bernanos. Paris, Calmann-Levy, 1960

 

Edição Italiana:

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Uma Ragazza in Diamantina

Traduzione di Giuseppe Valdania e Giovanne Visentin

Edirore Officine Grafiche – SEI, 1963

 

 

Alice morreu em 20 de junho de 1970.

 

 

Em 30 de agosto de 1980, Carlos Drummond de Andrade escreveu essa belíssima crônica em sua homenagem.

 

HELENA E ALICE NUM CENTENÁRIO

 

Missa no Mosteiro de São Bento, pelo centenário de nascimento de Alice Dayrell Caldeira Brant. Entre parênteses, no convite pelo jornal: Helena Morley. Está dito tudo. Há cem anos nascia a autora de Minha Vida de Menina, livro sem par na literatura brasileira.

Dispomos de outros registros da vida infantil, assinados por pessoas que, chegando à idade madura, se voltaram com nostalgia para que o poeta chamava de “aurora da minha vida”. Nenhum desses testemunhos, entretanto, oferece a singularidade que torna o livro de Helena Morley incomparável: ele não recompõe o passado, com maior ou menor fidelidade; vive-o, respira-o, insere-se nele. Porque se resume na seleção de notas de uma garota do interior, a quem o professor recomendava que fizesse redações. Então a garota foi registrando em cadernos o dia-a-dia familiar.

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Muitos anos mais tarde, por inciativa do marido e de uma filha, esses apontamentos foram publicados em livro – e com isso ganhamos um texto que conquistou para o Brasil o interesse e a simpatia de inúmeros leitores estrangeiros, à frente dos quais um Georges Bernanos e uma Elizabeth Bishop.

A espontaneidade da expressão é o primeiro trunfo de Helena para conquistar leitores com que ela nunca sonhou. Helena é simples, direta, alheia a literatura, e só conta o que viu e sentiu. Em 24 de agosto de 1893, chega em casa “tão diferente que Renato foi me olhando e dizendo: Olha a cara dela! Luisinha que é melhor mil vezes do que ele disse: Como você ficou bonita, Helena! Quem te arranjou assim? Eu respondi: foi Éster. Conversando com elas na pedreira eu disse que sabia que era feia mas não me incomodava porque mãe Tina me criou sabendo que o feio véve, o bonito véve, todos vévem. Quando eu disse que era feia, Éster exclamou: Você feia? Deixe-me arranja-la e você verá. Consenti, ela pegou na tesoura e cortou-me o topete, penteou-me, depois me pôs pó-de-arroz, e quando eu olhei no espelho vi que não era feia. Elas riram muito quando eu contei o nosso sistema aqui de untar o cabelo com enxúdia de galinha até ficar bem empastado. Ela me disse que lavasse os cabelos depois anelasse e fosse lá para me pentear. Que bom eu ter feito amizade com a família de dona Gabriela. Elas são tão boas! Se não fossem elas eu nunca me lembraria de cortar o topete e pentear os cabelos na moda. Éster achou graça de eu lhe contar que mãe Tina dizia que o bonito véve, o feio véve. Ela disse: É verdade, mas o bonito véve melhor. Como estou hoje feliz de ter ficado bonita!”

O livro todo é nessa toada, e precisamente porque não pretende senão o exercício de escrever, numa espécie de diário doméstico, atinge fundo na descrição do ambiente da família brasileira modesta em zona de mineração. Tudo está refletido aí: a pobreza, o sonho de libertação das necessidades, o convívio social, a despreocupação, a alegria, e a

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tristeza do viver, sobretudo a alegria, pois a infância de Helena “tem o gênio de rir de tudo”. Confissão: “Eu sou impaciente, rebelde, respondona, passeadeira, incapaz de obedecer e tudo o que quiserem que eu seja”. Mas é, principalmente, dona de um espírito vivaz, bem-humorado, que capta o aspecto grotesco das cenas e das coisas e se diverte em passar em revista o minimundo de Diamantina. Seu Broa, Siá Ritinha, Iaiá, Madrinha Quequela, o professor Catãozinho, Tia Madge, o ladrão misterioso que virou cupim, chichi Bombom ... as figuras são reais, as lendas são imaginação mística do povo. Só que Helena, cabecinha crítica, não vai nessa história de ladrão que depois de furtar, vira cupim. Por que não prendem o cupim? – indaga. Pergunta que ainda hoje se pode fazer, sem resposta: por que não descobrem, por que não prendem os que praticam atentados terrorisstas, em tantos lugares diferentes do Brasil?

Quase que eu ia fugindo ao meu assunto, que é o centenário de Helena. Uma data de família que assumiu aspecto de data literária nacional, pois repito, Minha Vida de Menina (que José Olympio teve o faro de identificar e lançar em 1942, hoje em 15a. edição, e traduzido para o inglês, francês e italiano, além de publicado igualmente em Portugal) é livro único na galeria de memorialistas nacionais.

Menina de eterno viço, lembro-me de sua autora na última quadra de sua existência: era a criatura encantadora de sempre, com uma verve, uma irreverência intelectual que se manifestava a todo momento. Relembrarei o que ela me contou certa ocasião:

Santo Antônio é o santo de minha antipatia.

Por que, dona Alice?

Eu era garota e apareceu lá em casa um garimpeiro que preveniu mamãe: “Vim aqui para salvar seu marido de fazer sociedade com seu Antonico. As terras em que ele vai trabalhar não têm

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um tico de diamante. “Mamãe respondeu: “Foi Santo Antônio que mandou você aqui. Acabei de rezar uma novena a ele”. Papai não fez sociedade, e os diamantes estrelaram na bateia. Ficamos os únicos pobres da família. Viu o que Santo Antônio fez com a gente?

Alice Brant e seu pseudônimo Helena Morley formaram uma só pessoa rara, pela sensibilidade e pelo talento.

 

http://www.verabrant.com.br/cronicas/Helena%20Morley.htm18/02/2011 11:37:59