Hebreus 6.1-8

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Visto que essa descrição do “apóstata” indica que ele deu mostras de todos os sinais de ser cristão, muitos comentaristas entendem que ele foi isso mesmo, isto é, um verdadeiro cristão. O Pastor de Hermas (c. 148 d.C.) parece ter sido o primeiro a dar essa interpre- tação a Hebreus 6, embora mitigue o tema do “não há segundo arrependimento”, ao permitir ao menos mais uma oportunidade (Man- damentos, IV.3). E necessário destacar, no entanto, que essas expressões descritivas são suscetíveis a mais do que uma interpretação, e, no seu sentido não tão “definitivo”, podem bem ser aplicadas tanto a cristãos “professos” quanto a crentes “genuínos”. “Iluminados” (v. 4) é um termo aplicado por Justino Mártir (morreu c. 165 d.C.; I Apol. 61.12,13) aos batizados — os que haviam dado consentimento à verdade do catecismo cristão por meio de sua sujeição ao batismo. É possível, então, que o autor de Hebreus tenha usado a palavra nesse sentido. Ao menos a Pcshita (uma tradução siríaca do século IV) entende a palavra assim, substituindo “iluminados” por “que desceram ao batismo”. Além disso, diversos intérpretes (v. uma lista deles em Spicq, Comm. v. II, p. 150) entendem que a expressão “provaram o dom celestial” (v. 4) significa a participação na ceia do Senhor, “o dom divino por excelência” (cf. Mt 26.26ss, c especialmente At 20.11 em gr., em que “provar” é usado a propósito de comer o pão da eucaristia). A expressão “participantes do Espírito Santo” (v. 4) pode ter o significado menos definitivo de “parceiros juntamente com” o Espírito Santo (cf. 2.14; 3.1,14; 12.8). E as últimas duas expressões (v. 5) podem significar que esses viram o poder criativo do evangelho pregado e até realizaram milagres (cf. Judas Iscariotes). Vamos resumir então. O autor, ao compor uma lista como essa, pode ter tido em mente descrever alguém que tem todos os sinais dis- tintivos do cristianismo, e que mesmo assim não é um verdadeiro cristão. A única prova de genuinidade é a lealdade contínua que guarda a fé até o final. Da mesma forma que todo o povo de Israel deixou o Egito sob a liderança de Moisés, atravessou o mar Ver- melho, comeu o maná do céu, observou os atos poderosos de Deus etc. dando todas as aparências de um povo de fé, mas só dois en-traram em Canaã, e o resto caiu morto no deserto, é possível que na igreja visível haja aqueles que experimentaram todas as vantagens do cristianismo, a instrução, o batismo, a ceia do Senhor, as manifestações do Espírito etc. (embora deva ser observado atentamente que nenhum dom de amor é mencionado nessa lista, cf. 6.10), c que mesmo assim são capazes de renunciar a tudo isso porque a atitude interior básica, da qual nem eles mesmos talvez estejam completamente cientes, se tornou uma atitude de

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Visto que essa descrição do “apóstata” indica que ele deu mostras de todos os sinais de ser cristão, muitos comentaristas entendem que ele foi isso mesmo, isto é, um verdadeiro cristão. O Pastor de Hermas (c. 148 d.C.) parece ter sido o primeiro a dar essa interpretação a Hebreus 6, embora mitigue o tema do “não há segundo arrependimento”, ao permitir ao menos mais uma oportunidade (Mandamentos, IV.3).

E necessário destacar, no entanto, que essas expressões descritivas são suscetíveis a mais do que uma interpretação, e, no seu sentido não tão “definitivo”, podem bem ser aplicadas tanto a cristãos “professos” quanto a crentes “genuínos”. “Iluminados” (v. 4) é um termo aplicado por Justino Mártir (morreu c. 165 d.C.; I Apol. 61.12,13) aos batizados — os que haviam dado consentimento à verdade do catecismo cristão por meio de sua sujeição ao batismo. É possível, então, que o autor de Hebreus tenha usado a palavra nesse sentido. Ao menos a Pcshita (uma tradu ção siríaca do século IV) entende a palavra assim, substituindo “iluminados” por “que desceram ao batismo”. Além disso, diversos intérpretes (v. uma lista deles em Spicq, Comm. v. II, p. 150) entendem que a expressão “provaram o dom celestial” (v. 4) significa a participação na ceia do Senhor, “o dom divino por excelência” (cf. Mt 26.26ss, c especialmente At 20.11 em gr., em que “provar” é usado a propósito de comer o pão da eucaristia). A expressão “participantes do Espírito Santo” (v. 4) pode ter o significado menos definitivo de “parceiros juntamente com” o Espírito Santo (cf. 2.14; 3.1,14; 12.8). E as últimas duas expressões (v. 5) podem significar que esses viram o poder criativo do evangelho pregado e até realizaram milagres (cf. Judas Iscariotes).

Vamos resumir então. O autor, ao compor uma lista como essa, pode ter tido em mente descrever alguém que tem todos os sinais distintivos do cristianismo, e que mesmo assim não é um verdadeiro cristão. A única prova de genuinidade é a lealdade contínua que guarda a fé até o final. Da mesma forma que todo o povo de Israel deixou o Egito sob a liderança de Moisés, atravessou o mar Vermelho, comeu o maná do céu, observou os atos poderosos de Deus etc. dando todas as aparências de um povo de fé, mas só dois en-traram em Canaã, e o resto caiu morto no deserto, é possível que na igreja visível haja aqueles que experimentaram todas as vantagens do cristianismo, a instrução, o batismo, a ceia do Senhor, as manifestações do Espírito etc. (embora deva ser observado atentamente que nenhum dom de amor é mencionado nessa lista, cf. 6.10), c que mesmo assim são capazes de renunciar a tudo isso porque a atitude interior básica, da qual nem eles mes-mos talvez estejam completamente cientes, se tornou uma atitude de incredulidade ou desobediência, uma atitude de NÃO a Deus. A situação aqui, então, pode ser análoga à de Mt 7.21ss.

De todo modo, se os que foram abençoados de forma tão extraordinária caíram (v. 6, lit. “caíram ao lado do caminho”, gr. para- pesontas, uma expressão talvez motivada pela experiência no deserto do antigo Israel), é impossível que sejam reconduzidos ao arrependimento; pois para si mesmos estão crucificando de novo o Filho de Deus, sujeitando-o à desonra pública (v. 6). O “arrependimento” aqui é mais do que tristeza pelo mal praticado no passado; é uma mudança de atitude ou da mente — um ato positivo e confirmatório que acompanha o início de uma nova experiência religiosa e vida moral (Arndt e Gingrich, Greek-English Lexicon), em vez de um mero desviar-se negativo do pecado. Refere-se àquela disposição da mente em direção a Cristo que prevalecia quando o cristão professo tinha sido batizado, mas que, por falta de compromisso moral (5.14), agora foi alterada radicalmente. E a coisa verdadeiramente triste acerca dessa atitude apóstata é que é humanamente (ou psicologicamente) impossível revertê-la, pois não é resultado de uma decisão rápida de um momento de fraqueza, mas de um processo gradual de endu recimento na mente que se cristalizou agora cm uma “atitude constante de hostilidade contra Cristo” (como sugerem as expressões “pois [...] estão crucificando” etc. que usam o tempo presente). Por isso, todos os cristãos professos precisam se estimular a si mesmos e a outros, senão a imaturidade contínua da profissão da fé cristã conduz, a certa altura, à hostilidade contra Cristo. Os que permanecerem leais ate o fim demonstrarão que sua confissão de fé foi genuína.Os v. 7,8 contêm uma parábola cuja interpretação é coerente com essa ênfase do autor na perseverança como o verdadeiro teste de genuinidade; a chuva deve ser identificada com as cinco bênçãos extraordinárias listadas nos v. 4,5, e a terra, com os leitores da carta. A chuva é comum tanto à terra boa quanto à terra ruim, i.e., grandes bênçãos espirituais são comuns a todos os que

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professam ser cristãos, os que crêem de verdade e os que meramente confessam que assim o fazem. E o que os solos produzem — o tipo de vida que vivem os que se professam cristãos — que tornam visivelmente claro qual é sua verdadeira natureza c que tipo de semente está neles. E mesmo assim, como no âmbito da horticultura em que o solo que é de qualidade e conteúdo pobres não pode ser distinguido imediatamente do solo bom (pois depois de uma chuva até o solo ruim parece promissor com sua miríade de brotos verdes), assim é na igreja visível. Todos podem até ter sido bem instruídos etc. c podem ter feito sua confissão de fé e dado evidência de genuinidade. Mas como o tempo prova que um tipo de solo é ruim c seu produto são espinhos e ervas daninhas (v. 8), ou o inverso, assim o tempo faz com aqueles que afirmam ser cristãos. A per severança dos santos, por um lado, dá prova da realidade da sua confissão. A falta dela dá testemunho do contrário. Um recebe a bênção de Deus (v. 7), enquanto o outro está cm perigo de ser amaldiçoado. Seu fim é ser queimada (a terra] (v. 8). “Em perigo de ser amaldiçoada” não significa meramente que o juízo é ameaçador, e pode ser evitado por uma subseqüente e inesperada fertilidade da terra, mas que é inevitável (cf. a mesma construção encontrada em 8.13, engys aphanismou, em que o desaparecimento da antiga aliança não significa que ela seja simplesmente suscetível a desaparecer, mas, antes, que o seu desaparecimento é certo; cf. tb. Mc 1.15 com Mt 12.28). Tampouco é apropriado pensar somente no produto da terra como sendo queimado, pois a queima é na realidade o castigo executado sobre a própria terra amaldiçoada (cf. Gn 19.24; Dt 29.22). A expressão “Seu fim c ser queimada” pode ser um hebraísmo equivalente à nossa expressão “dedicada à destruição” (cf. SI 109.13). E simplesmente a aplicação do princípio estabelecido em 2Co 11.15: “O fim deles será o que as suas ações merecem” — i.e., o que acontecer com o seu fruto, acontecerá com eles também (Spicq, Comm., v. II, p. 156). Em outras palavras, a pessoa que confessa ser cristã e desfruta de todos os benefícios espirituais decorrentes dessa confissão, mas que não persiste na sua lealdade a Cristo até o fim, só pode olhar adiante para a fúria de fogo que vai consumi-la no dia do juízo (10.27); enquanto a pessoa que se confessa cristã e continua fielmente na sua confissão desfruta e continuará desfrutando da bênção de Deus.