Hannibal

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THOMAS HARRIS HANNIBAL Esta Obra foi digitalizada e revista por: V.C Tradução  de Maria Emília Moura notícias editorial

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THOMAS HARRIS

HANNIBALEsta Obra foi digitalizada e revista por: V.C

Tradução  de Maria Emília Moura

notíciaseditorial

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Capítulo umIria pensar­se que um tal dia temeria começar..

O Mustang de Clarice Starling subiu velozmente a rampa de acesso do BATF na Massachussetts Avenue, uma sede alugada ao reverendo Sun Myung Moon, no interesse da economia.

A brigada aguardava em três veículos, uma carrinha particular em mau estado na frente e duas carrinhas pretas da SWAT                2 atrás, a postos e paradas na enorme garagem.

Starling tirou o saco de equipamento do carro e correu até junto do primeiro veículo, uma suja carrinha branca com letreiros publicitários da Marcell’s Crab House dos dois lados.

Através das portas da retaguarda abertas da carrinha, quatro homens observavam a aproximação de Starling. Parecia esbelta com o uniforme e movia­se rapidamente sob o peso do equipamento, com o cabelo brilhando àquela luz fantasmagórica.

­ Mulheres. Sempre atrasadas! ­ comentou um agente D                    C. O agente especial da BATF John Brigham tinha a operação a seu cargo.

­ Não está atrasada. Só lhe mandei o beep quando recebemos a informação ­ retorquiu Brigham. ­ Deve ter voado de Quantico... Ei, Starling, passe­me o saco.

­ Olá, John ­ respondeu Starling erguendo a mão de polegar para cima numa rápida saudação.

Brigham dirigiu­se ao rude agente disfarçado que se encontrava ao volante da carrinha e o veículo pôs­se em andamento antes das Iniciais de Burcau of Alcohol, Tobacco and Firearms ­ Bureau de álcool, Tabaco e Armas de Fogo. (N. da T)

2 Iniciais de Special Weapons and Trachs ­ Armas e Táctica Especiais, uma equipa policial que usa uniformes e armas de ataque militares, utilizada em acções que exigem coordenação e força extraordinárias. (N. da T)

3D.C. ­ District of Columbia. (N. da T)

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portas de trás se fecharem, desaparecendo na agradável tarde de Outono.

Clarice Starling, uma veterana em carrinhas de vigilância, passou por baixo do ocular do periscópio e ocupou um lugar na  retaguarda o mais perto possível do bloco de gelo seco de 75 quilos que servia de ar condicionado, sempre que tinham de  montar guarda com o motor desligado.

A velha carrinha emanava o odor a medo e suor que nunca sai. já ostentara muitos e diferentes letreiros. Aquelas sujas e  apagadas letras nas portas tinham trinta minutos de uso. Os buracos de balas tapados com Bond­0 eram mais velhos.

As janelas de trás tinham um espelho de sentido único devidamente opaco. Starling conseguia observar as grandes carrinhas pretas da SWAT atrás deles. Esperava que não fossem passar horas pregados nas carrinhas.

Os agentes olhavam­na, sempre que virava o rosto na direcção da janela.

A agente especial do FBI Clarice Starling, de 32 anos, aparentava a idade que tinha e fazia com que a aparência fosse agradável, mesmo de uniforme.

Brigham retirou a prancheta do banco de passageiros da frente.­ Como é que se arranja para lhe irem sempre parar às mãos estas tretas, Starling? ­ inquiriu, sorrindo.

­ Porque insiste em chamar­me ­ respondeu.

­ Preciso de si para isto. No entanto, vejo­a a passar autorizações para brigadas de assalto. Não pergunto, mas acho que há alguém em Buzzard’s Point que a odeia. Devia vir trabalhar comigo. Estes são os meus rapazes, os agentes Marquez Burke e John Hare e este é o agente Bolton do Departamento da Polícia de D.C.

Uma brigada de ataque composta por elementos do BATE do DEA1 da SWAT e do FBI constituía o produto final de restrições de orçamento numa altura em que a própria Academia do FBI estava encerrada por falta de fundos.

Burke e Hare pareciam agentes. O polícia Bolton, do D.C., tinha ar de xerife. Era um homem na casa dos 45 anos, pesado e viscoso.

O prefeito de Washington, desejoso de parecer rígido quanto às drogas depois dele próprio ter sofrido uma condenação, insistia em que a polícia de D.C. colhesse louvores por todas as rusgas importantes na cidade de Washington. Daí, a presença de Bolton.

­ O bando drumgo está a tramá­las hoje ­ informou Brigham.­ Evelda Drumgo. Eu sabia ­ replicou Starling sem entusiasmo.

Drug Enforcement Administration. (N. da T.)

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HANNIBAL      ­ Abriu uma fábrica de gelo ao lado do Feliciana Fish Market,

junto ao rio. O nosso homem diz que ela está a preparar um fornecimento de cristal, hoje. E tem reservas para o Grand Cayman esta noite. Não podemos esperar.

A metafetamina em cristal, conhecida por «gelo» nas ruas, provoca um breve e poderoso speed e uma perigosa  dependência.

­ A droga é da alçada do DEA, mas estamos de olho em Evelda por transporte interestadual de armas Classe 111. O  mandado especifica algumas submetralhadoras Beretta e algumas Mac 10 e ela sabe onde há mais. Quero que se concentre em Evelda, Starling. Já lidou com ela antes. Estes tipos dão­lhe cobertura.

­ Ficamos com o trabalho fácil ­ comentou o agente Bolton com uma certa satisfação.

­ Acho melhor falar­lhes de Evelda, Starling ­ sugeriu Brigham. Starling esperou, enquanto a carrinha passava por cima de uns trilhos de caminho de ferro e depois pronunciou­se: ­ Evelda vai dar luta. Não dá essa sensação, era modelo, mas dará luta. É a viuva de Dijon Drumgo. Prendi­a por duas vezes com mandados, a primeira juntamente com Dijon.

­ Desta última vez trazia na bolsa uma 9 ram com três cartuchos e um Mace e uma navalha de ponta e mola no soutien. Não sei o que trará agora.

­ Na segunda detenção, pedi­lhe delicadamente que se entregasse e fê­lo. Depois, na prisão, matou uma companheira de cela chamada Marsha Valentine com o cabo de uma colher. Portanto, nunca se sabe... é difícil ler­lhe no rosto. O júri considerou que tinha sido em legítima defesa.

­ Ela venceu a primeira alegação e recorreu da outra. Algumas acusações relativas às armas foram retiradas porque tinha filhos ainda pequenos e o marido acabara de ser morto na Pleasant Avenue, talvez pelos Spliffs.

­ Vou pedir­lhe que se entregue. Espero que o faça. Vamos dar­lhe uma oportunidade. Mas ouçam­me bem... se tivermos de dominar Evelda Drumgo, quero ajuda a sério. Para lá da cobertura, quero peso em cima dela. Não pensem, meus senhores, que vão ver­me a lutar com Evelda na lama.

já tinha havido uma altura em que Starling condescenderia diante destes homens. Não estavam a gostar deste seu discurso, mas vira demasiado na vida para lhe importar.

­ Evelda Drumgo está ligada aos Trey­Eight Crips através de Dijon ­ replicou Brigham. ­ Conta com a protecção deste gang, segundo garante o nosso homem e eles são distribuidores na costa. É

Spray autoprotector (N. da T)

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sobretudo uma protecção contra os Spliffs. Ignoro o que farão os Críps quando virem que somos nós. Sempre que podem evitar, não se metem com o FBI.

­ Há algo que devem saber ­ prosseguiu Starling. ­ Evelda é seropositiva. Dijon transmitiu­lhe o vírus através de uma seringa. Ela descobriu quando foi detida e passou­se. Nesse dia, matou Marsha Valentine e lutou contra os guardas da prisão. Se não estiver armada e lutar, podem contar ser atingidos com todos os fluidos de que dispuser. Cuspirá e morderá, vai urinar e defecar­vos em cima se tentarem derrubá­la, portanto as luvas e máscaras são indispensáveis. Se a meterem num carro­patrulha, quando lhe empurrarem a cabeça, não esqueçam a hipótese de uma agulha no meio do cabelo e amarrem­lhe os pés.

Os rostos de Burke e Hare ensombraram­se e o agente Bolton parecia descontente. Apontou com o queixo pregueado na direcção do revólver de Starling, um Colt.45 que usava num coldre por cima da anca direita. ­ Anda sempre com essa coisa engatilhada? ­ quis saber.

­ Engatilhada e travada em cada minuto do meu dia ­ elucidou Starling.

­ Perigoso! ­ comentou Bolton.

­ Apareça num campo de tiro e explico­lhe, agente.

­ Bolton, fui eu que treinei Starling quando ela ganhou o campeonato de tiro entre Serviços há três anos ­ replicou Brigham, interrompendo a discussão. ­ Não se preocupe com a arma dela. Como é que passaram a chamar­lhe esses tipos do Hostage Rescue Team, os Velcro Cowboys, depois de lhes ter dado uma lição, Starling? Anme Oakley?

­ Venenosa Oakley ­ respondeu, olhando pela janela. Starling sentia­se observada e sozinha nesta carrinha de vigilância malcheirosa a abarrotar de homens. Chaps, Brut, Old Spice, suor e cabedal. O medo invadiu­a com o sabor de uma moeda debaixo da língua. Uma imagem mental: o pai, que cheirava a tabaco e a sabonete, descascando uma laranja com o  canivete, a ponta da lâmína em ãngulo recto, partilhando a laranja com ela na cozinha. As luzes traseiras da camioneta do  pai a desaparecerem quando saiu naquela patrulha de xerifes que o matou. A roupa dele no armário. A camisa dele.  Algumas roupas bonitas no roupeiro dela e que nunca usava. Triste vestuárío festívo em cabides, semelhantes a brinquedos  num sótão.

­ Mais uns dez minutos ­ anunciou o condutor.

Brigham olhou através do pára­brisas e consultou o relógio. é este o esquema ­ disse, enquanto exibia um diagrama desenhadoBrigada de Salvamento de Reféns (N. da T)

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rapidamente com uma ponta de feltro e um plano esborratado que lhe fora enviado por fax pelo Departamento da Construção. ­ O edifício do mercado de peixe situa­se numa fila de armazéns ao longo da margem do rio. A Parcell Street acaba na Riverside Avenue, desembocando nesta praceta em frente do mercado de peixe.

­ Vejam bem. O edifício do mercado de peixe está de costas para a água. Há uma doca que se estende ao longo das traseiras, aqui. junto ao mercado de peixe, no rés­do­chão fica o laboratório de Evelda. A entrada é pela frente, mesmo ao lado do toldo do mercado de peixe.

­ Evelda terá os vigias cá fora enquanto estiver a preparar a droga, pelo menos numa área de três quarteirões ­ prosseguiu. ­­ já antes lhe deram a dica com tempo bastante para que se desfizesse do produto. Portanto, um grupo de incursão normal da DEA que está na terceira carrinha vai entrar de um barco de pesca, pelo lado da doca, às quinze horas. Podemos aproximar­nos mais do que alguém desta carrinha da porta que dá para a rua, uns minutos antes da rusga. Se Evelda sair pela frente, apanhamo­la. Se ficar lá dentro, atacamos por esta porta, depois deles atacarem pelo outro lado. A segunda carrinha é o nosso reforço, com sete tipos que entram às quinze horas, excepto se formos nós primeiro.

­ E como vai ser com a porta? ­ inquiriu Starling.

­ Se tudo parecer calmo, forçamos ­ respondeu Burke. ­ Se houver clarões ou disparos, passamos ao Avon calling ­ acrescentou, com uma pequena palmada na sua espingarda.

Starling já assistira a este tipo de actuação: Avon calling é uma Magnum de sete e meio carregada com pólvora fina destinada a fazer explodir a fechadura, sem atingir as pessoas que se encontram no interior.

­  Os miúdos de Evelda? Onde estão? ­ interessou­se Starling.­ O nosso informador viu­a deixá­los na creche ­ replicou Brigham. ­ O nosso informador está próximo da situação da família, tão próximo quanto é possível estar através de sexo em segurança.

O rádio de Brigham deu sinal no auscultador e ele perscrutou a parte do céu que conseguia avistar pela janela da retaguarda. Talvez esteja só a controlar o trânsito ­ falou para o microfone de pescoço, após o que se dirigiu ao condutor. ­ Strike Two detectou um helicóptero há um minuto. Viste alguma coisa?

Não. É bom que esteja a controlar o trânsito. Agora, vamos lá equipar­nos.

Setenta e cinco quilos de gelo não chegam para manter quatro homens frescos na retaguarda de uma carrinha de metal num dia quente, sobretudo se se encontrarem metidos numa armadura. Quando

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Bolton ergueu os braços, demonstrou que uma aplicação de Canoe não produz o mesmo efeito de um duche.

Clarice Starling tinha cosido ombreiras por dentro da camisa do uniforme a fim de aguentarem o peso do colete Kevlar, segundo esperava é à prova de balas. O colete tinha o peso adicional de uma placa de cerâmica nas costas e uma outra na frente.

A experiência feita tragédia ensinara o valor da placa nas costas. Liderar um ataque de surpresa com um grupo que não se conhece, de pessoas com vários níveis de treino, é um empreendimento perigoso. O Fogo dos próprios amigos pode danificar a espinha dorsal quando se segue na frente de uma coluna inexperiente e assustada.

A cerca de três quilómetros do rio, a terceira carrinha desapareceu, a fim de levar o grupo de incursão DEA ao encontro do barco de pesca e a carrinha de reforço parou a uma distância discreta atrás da carrinha branca de disfarce.

A paisagem começava a adquirir um tom descuidado. Um terço dos edifícios estava tapado com tábuas e carros destruídos assentavam em caixotes junto às curvas. Homens jovens preguiçavam nas esquinas em frente de bares e pequenos quiosques. Crianças brincavam à volta de um colchão incendiado no passeio.

Se a segurança de Evelda estava cá fora, dissimulara­se bem no meio dos transeuntes vulgares. Junto às lojas de bebidas e nos parques de estacionamento dos pequenos mercados, havia homens sentados dentro de carros, conversando.

Um descapotável baixo Impala com quatro jovens afro­americanos meteu­se pelo escasso trânsito e avançou atrás da carrinha. Os passageiros subiam o passeio em benefício das raparigas junto de quem passavam e o som ensurdecedor da aparelhagem estéreo repercutia­se no metal da carrinha.

Observando através do espelho de sentido único da janela da retaguarda, Starling apercebeu­se que os jovens do descapotável não constituíam uma ameaça ­ um carro de ataque dos Crips é quase sempre um poderoso e enorme carro fechado ou station, suficientemente antigo para se fundir nos arredores e as janelas de trás descem por completo. Transporta uma tripulação de três, por vezes quatro elementos. Uma equipa de basquetebol num Buick pode parecer sinistra, se não se tiver a consciência tranquila.

Enquanto aguardavam junto a um semáforo, Brigham retirou a lente ocular do periscópio e deu uma palmada no joelho de Bolton.­ Olhe em volta e veja se há algumas celebridades locais no passeio ­ ordenou Brigham

A lente objectiva do periscópio está dissimulada num ventilador no tejadilho. Só alcança os passeios.

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Bolton fez uma rotação completa e parou, esfregando os olhos.

­ Tudo estremece demasiado com o motor a trabalhar ­ queixou­se. Brigham contactou pela rádio com a equipa do barco. ­ Quatrocemtos metros rio abaixo e aproximando­se ­ repetiu para a sua equipa na carrinha.

A carrinha apanhou um semáforo vermelho um quarteirão mais à frente em Parcell Street e parou de frente para o mercado durante o que pareceu uma eternidade. O condutor virou­se como que a inspeccionar o espelho da direita e dirigiu­se a Brigham pelo canto da boca: ­ Não parece haver muita gente a comprar peixe. Cá vamos nós.

A luz do semáforo mudou e às catorze horas e cinquenta e sete minutos em ponto, exactamente três minutos antes da hora zero, a carrinha de disfarce em mau estado parou diante do Feliciana Fisli Market, num bom lugar junto à curva.

Lá atrás, ouviram o ruído quando o motorista puxou o travão de mão. Brigham cedeu o periscópio a Starling. ­ Verifique ­ disse, Starling moveu o periscópio de forma a apanhar a fachada do edifício. Mesas e balcões de peixe no gelo brilhavam sob um toldo de oleado no passeio. Peixe das margens de Carolina, apresentava­se artisticamente disposto em gelo moído, caranguejos moviam as patas em caixotes abertos e lagostas trepavam umas por cima das outras num reservatório. O vivaço vendedor colocara pedaços de gelo por cima dos olhos do peixe maior, a fim de que se mantivessem brilhantes até à chegada da fornada de donas de casa espertalhonas nascidas nas Caraíbas que vinham sempre cheirar e espreitar.

O sol desenhava um arco­íris no jorro de água da mesa de limpeza do peixe lá fora, onde um homem de aparência latina e musculosos antebraços, cortava um tubarão às postas com golpes experientes e graciosos da sua faca curva e regava o enorme peixe com uma poderosa mangueira de mão. A água ensanguentada escoava para a sarjeta e Starling conseguia ouvi­la a correr por baixo da carrinha.

Starling observou o motorista a falar com o peixeiro, dirigindo­lhe uma pergunta. O homem consultou o relógio, encolheu os ombros e apontou para um pequeno café local. O motorista deambulou um minuto pelo mercado, acendeu um cigarro e afastou­se na direcção do estabelecimento.

De um altifalante no mercado os sons de La Macarena chegavam nitidamente aos ouvidos de Starling, na carrinha; nunca mais na vida conseguiria suportar aquela música.

A porta que interessava situava­se à direita, uma porta dupla de metal emoldurada também em metal e com um único degrau em simétrico.

Starling preparava­se para se afastar do periscópio quando a porta se abriu e deu passagem a um homem branco e enorme de camisa

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florida e sandálias. Trazia uma sacola pendurada e segurava­a com uma das mãos atrás das costas. Um negro magro surgiu por detrás dele, vestido com uma gabardina.

­ Cabeças para cima! ­ ordenou Starling.

Atrás dos dois homens, com o seu alto pescoço e o rosto gracioso visível acima dos ombros destacava­se Evelda Drumgo.

­ Evelda vem atrás de dois tipos e parece que ambos estão de partida ­ informou Starling.

Não conseguiu largar o periscópio com a rapidez bastante para impedir que Brigham fosse de encontro a ela. Starling colocou o capacete.

Brigham ditava ordens para a rádio: ­ Força Um a todas as unidades. Ataquem. Ataquem. Ela saiu por este lado. Vamos mover­nos.­ Ponha­os em terra o mais rapidamente possível ­ retorquiu

Brigham, enquanto destravava a arma. ­ O barco estará aqui dentro de trinta segundos. Vamos.

Starling foi a primeira a descer e as tranças de Evelda esvoaçaram quando virou a cabeça na sua direcção. Starling teve consciência dos homens ao seu lado, de armas aperreadas, gritando: ­ Deitem­se no chão, deitem­se no chão!

Evelda saiu do meio dos dois homens.

Evelda transportava uma criança num porta­bebés que tinha à volta do pescoço.

­ Esperem, esperem. Não quero problemas ­ indicou aos homens, que se encontravam ao lado dela. ­ Esperem. ­ Deu um passo em frente, muito direita, segurando o bebé na frente até onde o porta­bebés podia esticar­se, com a fralda pendurada.

Dar­lhe um sítio para onde ir. Starling tocou na arma e levantou os braços de mãos abertas. ­ Evelda! Entregue­se. Venha até mim.­ Atrás de Starling, o ruído de um grande V­8 e o guinchar de pneus. Não podia virar­se. Sê o reforço.

Ignorando­a, Evelda avançou na direcção de Brigham e a fralda esvoaçou quando a MAC 10 disparou por trás dela e Brigham caiu por terra, com a protecção do rosto coberta de sangue.

O homem branco e corpulento deixou cair a sacola. Burke detectou a metralhadora e levantou uma onda de pó inofensivo com os disparos da sua arma. Voltou a carregá­la, mas não a tempo. O robusto adversário disparou uma rajada trespassando o ventre de Burke por baixo do colete e virando­se para Starling no momento em que ela 

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o atingia mesmo a meio da camisa colorida, sem lhe dar tempo a ripostar.

Tiros nas costas de Starling, O negro magro tirou a arma de baixo da gabardine e refugiou­se no edifício, ao mesmo tempo que um golpe semelhante a um soco nas costas impelia Starling para diante, cortando­lhe a respiração.

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Girou sobre os calcanhares e avistou o carro dos Crip na rua,

um Cadillac preto, de vidros descidos, com dois atiradores sentados ao estilo Cheyerme nas janelas da direita disparando pelo tejadilho e um terceiro do banco das traseiras. Fumo e fogo de três canos, balas varrendo os ares à sua volta.

Starling mergulhou entre dois carros estacionados e avistou Burke contorcendo­se no chão. Brighan mantinha­se imóvel, com um fio de sangue escoando do capacete. Hare e Bolton disparavam do meio de carros algures do outro lado da rua, de onde voavam vidros estilhaçados que aterravam na estrada e um pneu explodiu ao mesmo tempo que o fogo das automáticas do Cadillac os pregava ao chão. Starling, com um dos pés na sarjeta, levantou a cabeça para espreitar.

Dois atiradores, sentados nas janelas, disparando pelo tejadilho do automóvel, enquanto o condutor despejava um revólver com a mão que lhe restava livre. Um quarto homem, no banco da retaguarda, tinha a porta aberta e puxava Evelda com o bebé para o interior.

Evelda agarrava na sacola. Eles disparavam contra Bolton e Hare do outro lado da rua, os pneus de trás do Cadillac deitavam fumo e o carro começou a afastar­se.

Starling pôs­se de pé, apontou e atingiu o condutor num dos lados da cabeça. Disparou duas vezes contra o atirador sentado na janela da frente e ele caiu de costas. Starling retirou o cartucho vazio da 45 e substituiu­o por outro antes que o vazio chegasse ao chão, sem desviar os olhos do carro.

o Cadillac aflorou de raspão uma fila de carros estacionados do outro lado da rua e acabou por embater estrondosamente contra eles. Starling avançava agora na direcção do Cadillac. Um atirador continuava sentado na janela da retaguarda, de olhos injectados e as mãos fazendo força de encontro ao tejadilho, com o peito comprimido entre o Cadillac e um carro estacionado. A arma escorregou pelo tejadilho. Mãos vazias apareceram pela janela da retaguarda, ao lado. Um homem com uma camisa florida azul esfarrapada saiu de mãos erguidas e começou a correr. Starling ignorou­o.

Tiros da direita e o corredor mergulhou, rastejando de rosto colado ao chão e tentando enfiar­se debaixo de um carro. As pás de um helicóptero roncando por cima dela.

Alguém gritando no mercado de peixe. ­ Não se levantem. Não se levantem. ­ Gente debaixo dos balcões e a água da mesa de limpeza abandonada jorrando para o ar.

Starling aproximando­se do Cadillac. Movimento nas traseiras do automóvel. Movimento no Cadillac. o carro balançando. o bebé chorando no interior. Disparos e os vidros da janela da retaguarda estilhaçados e espalhados.

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Starling ergueu o braço e gritou, sem se virar: ­ PAREM. Parem o fogo. Vigiem a porta. Atrás de mim. Vigiem a porta do mercado.­ Evelda! ­ Movimento nas traseiras do carro. o bebé chorando no interior. ­ Evelda. Ponha as mãos fora da janela.

Evelda Drumgo estava agora a sair. o bebé num choro gritado e La Macarena ribombando nos altifalantes do mercado de peixe. Evelda estava cá fora e caminhava na direcção de Starling, com a bela cabeça baixa e os braços à volta do bebé. Burke contorcia­se no chão que as separava. Golpes mais pequenos do seu corpo sangravam. La Macarena acompanhava o ritmo de Burke, prostrado no chão. Alguém, correndo encolhido, conseguiu chegar junto dele, deitou­se ao seu lado e comprimiu a ferida.

Starling tinha a arma apontada para o chão em frente de Evelda.­ Mostre­me as mãos, Evelda. Vá lá, por favor. Mostre­me as mãos. Um alto na fralda. Evelda, de tranças e olhos negros egípcios, ergueu a cabeça e fitou Starling.

É então você, Starling! ­ exclamou. Não faça isso, Evelda. Pense no bebé. Vamos lá trocar fluidos corporais, cabra.

A fralda esvoaçou e o ar estremeceu. Starling atingiu Evelda Drumgo através do lábio superior, desfazendo­lhe a nuca.

Starling mantinha­se como que sentada com uma dor aguda num dos lados da cabeça e sem fôlego. Evelda também estava sentada no chão, caída para a frente sobre as pernas, enquanto o sangue lhe jorrava da boca para o bebé cujo choro saía sufocado pelo peso do corpo dela.

Starling rastejou até junto de Evelda e puxou as fivelas do porta­bebés. Tirou a navalha de ponta e mola do soutien de Evelda, abriu­a sem a olhar e cortou a correia que prendia o bebé. o corpinho era escorregadio, vermelho e difícil de agarrar.

Starling pegou­lhe e ergueu os olhos, angustiada. Avistava a água que se erguia num jorro proveniente do mercado de peixe e correu nessa direcção, transportando a criança ensanguentada. Afastou as facas e as entranhas de peixe e pousou a criança no balcão onde se cortavam as postas, virando o forte jacto de mão na sua direcção. o bebé negro estava ali deitado num balcão branco no meio das facas e das entranhas de peixe com a cabeça do tubarão ao lado dele, a ser lavado do sangue contaminado com o vírus do HIV, enquanto o próprio sangue de Starling se derramava sobre ele, correndo num fluxo comum com o sangue de Evelda, tão salgado como a água do mar.

A água correndo, um arremesso de arco­íris da Promessa de Deus no jorro. Starling não detectava qualquer orifício na criança. o som estrondoso de La Macarena pelos altifalantes, uma sucessão de flashes até Hare arrastar o fotógrafo para longe dali.

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capítulo doisUm beco sem saída num bairro operário de Arlington, Virgínia, pouco depois da meia­noite. É uma quente noite de Outono depois de uma chuvada. o ar move­se inquieto diante de uma frente fria. No meio do cheiro a terra molhada e folhas, um grilo entoa uma melodia. Cala­se no momento em que se apercebe de uma enorme vibração, o som abafado de um Mustang de 5 litros com carburadores de aço a virar para o beco, seguido do carro de um xerife. Os dois veículos sobem o acesso a um simpático duplex e param. o Mustang ainda estremece um pouco. Quando o motor se silencia, o grilo aguarda um momento e retoma a melodia, a última antes da geada, a última de sempre.

Um xerife fardado sai do banco do condutor do Mustang. Dá a volta ao carro e abre a porta do lado dos passageiros a Clarice Starling. Ela sai. Tem uma ligadura branca à volta da cabeça por cima da orelha. o castanho alaranjado do Betadine mancha­lhe o pescoço por cima da bata verde de hospital que usa em vez de uma camisa.

Transporta os objectos pessoais num saco de plástico com fecho de correr: rebuçados de mentol e chaves, a identificação como agente especial do Federal Bureau of Investigation, um carregador com cinco cartuchos e um spray de autoprotecção Mace. juntamente com o saco traz um cinto e um coldre vazio.

o xerife estende­lhe as chaves do carro.­ Obrigada, Bobby

­ Quer que eu e o Pharon entremos e fiquemos um bocado? Prefere que vá buscar a Sandra? Ela espera sempre por mim levantada. Trago­a para aqui um pouco. Precisa de companhia...

­ Não. Fico bem. A Ardelia estará em casa dentro em pouco. Obrigada, Bobby

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20         THOMAS HARRIS

O xerife entra no carro onde o parceiro o aguarda e depois de se certificar que Starling está a salvo dentro de casa, o carro federal arranca.

O quarto das lavagens da casa de Starling está quente e cheira a amaciador de roupa. Os tubos das máquinas de lavar e de secar estão seguros com anilhas de plástico. Starling pousa os objectos pessoais em cima da máquina de lavar. As chaves do carro produzem um ruído estridente no tampo metálico.

Starling retira uma carga de roupa da máquina de lavar e mete­a na de secar. Despe as calças do uniforme, enfia­as na máquina de lavar juntamente com a bata de hospital e o soutien manchado de sangue e põe a máquina a trabalhar. Está em peúgas e cuecas e tem uma Especial de calibre 38 num coldre preso ao tornozelo. Ressaltam nódoas negras nas costas e costelas e uma escoriação no cotovelo. O olho e a face direita estão inchados.

A máquina de lavar está a aquecer e começa a encher. Starling enrola­se numa grande toalha de praia e entra na sala de estar. Regressa com cinco centímetros de Jack Daniels puro num copo. Senta­se no tapete de borracha diante da máquina de lavar e encosta­se­lhe, enquanto a máquina estremece e se enche de água. Senta­se no chão com o rosto virado para cima e emite alguns soluços secos antes das lágrimas brotarem. Lágrimas escaldantes nas faces, caindo pelas faces.

O acompanhante de Ardelia Mapp trouxe­a a casa por volta da meia­noite e quarenta e cinco depois de uma longa viagem de carro de Cape May e ela desejou­lhe boa­noite à porta, Mapp estava na casa de banho quando ouviu a água a correr e o estremecer dos canos, enquanto a máquina de lavar prosseguia o programa.

Dirigiu­se às traseiras da casa e acendeu as luzes da cozinha que partilhava com Starling. De onde estava via a lavandaria. Avistou Starling, sentada no chão, com a ligadura à volta da cabeça.

­ Starling! Oh, pobre querida! ­ exclamou, ajoelhando­se ao lado dela. ­ O que aconteceu?

­ Um tiro atravessou­me a orelha, Ardelia. Trataram­me em Walter Reed. Não acendas a luz, okay?

­ Tudo bem. Vou preparar­te qualquer coisa. Não dei por nada... estávamos a ouvir cassetes no gravador do carro... Conta­me.

­ O John morreu, Ardelia.

­ Não o Johnny Brígham! ­ Mapp e Starling tinham tido um fraco por Brigham no tempo em que ele era instrutor de tiro na Academia do FBI. Tinham tentado ler­lhe a tatuagem através da manga da camisa.

Starling esboçou um aceno afirmativo e limpou os olhos com as costas da mão, como uma criança. ­ Evelda Drumgo e alguns Crips.

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Evelda abateu­o. Também atingiram Burke, Marquez Burke, do BATE Fomos todos. Evelda recebeu a dica antes e a equipa do telejornal chegou lá ao mesmo tempo que nós. Evelda era minha, Não se entregou, Ardelia. Não se entregou e tinha o bebé ao colo. Disparámos uma contra a outra. Ela está morta.

Era a primeira vez que Mapp via Starling chorar.­ Hoje matei cinco pessoas, Ardelia.

Mapp sentou­se no chão ao lado de Starling e rodeou­lhe o ombro com o braço. Encostaram­se as duas à máquina de lavar em funcionamento. ­ E o bebé de Evelda?

­ Lavei­lhe o sangue e, tanto quanto vi, não tinha nenhuma ferida. O hospital afirma que fisicamente está bem, Vão entregá­lo à mãe de Evelda daqui a uns dias. Sabes a última coisa que Evelda me disse, Ardelia? Disse­me. «Vamos lá trocar fluidos corporais, cabra».

­ Deixa­me preparar­te qualquer coisa ­ replicou Mapp.­ O quê? ­ retorquiu Starling.

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capítulo trêsCom o alvorecer cinzento chegaram os jornais e os primeiros telejornais.

Mapp apareceu com biscoitos quentes quando se apercebeu que Starling começara a andar de um lado para o outro e pregaram os olhos no ecrã. A CNN e todos os outros canais haviam comprado a cópia filmada pela câmara do helicóptero da estação televisiva WFUL. Era uma filmagem fantástica efectuada directamente por cima do cenário.

Starling observou uma vez. Tinha de certificar­se que fora Evelda a primeira a disparar. Fixou o rosto de Mapp e detectou­lhe raiva no rosto de pele castanha.

Depois Starling levantou­se a correr para ir vomitar.

­ É difícil de ver ­ comentou Starling quando voltou, pálida e com as pernas a tremer.

Mapp, como de costume, foi direita ao assunto: ­ O teu problema reside no que sentes em ter morto aquela afro­americana com a criança ao colo. Aqui tens a resposta. Ela disparou primeiro. Quero que estejas viva. Pensa, Starling, em quem é o responsável por toda esta política de loucura. Que raio de linha de pensamento idiota te colocou e a Evelda Drumgo juntas naquele sítio lúgubre para resolverem o problema da droga entre as duas com umas malditas armas? O que tem isso de esperteza? Espero que reflictas se queres continuar a estar debaixo da pata deles. ­ Mapp serviu um pouco de chá a nível de pausa. ­ Queres que fique contigo? Tiro um dia.

­ Obrigada. Não precisas de o fazer. Telefona­me.

O National Tattler, primeiro beneficiário do boom dos tablóides na década de 90, fez uma edição especial que era extraordinária até a nível dos padrões por que se regia. Alguém o atirou para a porta da casa a meio da manhã. Starling encontrou­o quando foi até lá fora ver como estava o golpe. Esperava o pior e assim aconteceu: «ANJO

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DA MORTE: A ARMA MORTIFERA DO FBI» anunciava o título do National Tattler em parangonas a itálico. As três fotos da primeira página eram: Clarice Starling, de uniforme, disparando uma pistola de calibre 45 numa atitude de competição, Evelda Drumgo dobrada sobre o bebé no chão, com a cabeça de lado semelhante à de uma Madonna de Cimabui, de miolos estoirados, e novamente Starling, pousando um bebé negro e nu em cima de um balcão de cortar peixe no meio de facas, entranhas de peixe e a cabeça de um tubarão.

A legenda por baixo das fotografias dizia: «A agente especial do FBI, Clarice Starling, que eliminou o serial killerjame Gumb, acrescenta, pelo menos, cinco entalhes à sua arma. Mãe com o bebé nos braços e dois agentes  da polícia entre os mortos após uma rusga de droga falhada. »

A notícia de fundo referia as carreiras de traficantes de Evelda e Dijon Drumgo e o aparecimento do gang Crip no cenário devastado de Washington D.C. Referia­se de passagem o serviço militar do agente abatido John Brigham e citavam­se as suas condecorações.

Starling teve direito a uma coluna lateral por baixo de uma simples fotografia de Starling num restaurante com um vestido de decote redondo e uma expressão animada.

Claríce Starling, agente especial do FBI, teve os seus quinze minutos de fama quando abateu a tiro o serial killerjame Gumb, o assassino «Buffalo Bill», na casa dele, há sete anos. Agora, pode enfrentar acusações  departamentais e responsabilidades civis na morte de quinta­feira de uma mãe de Washington acusada do  fabrico de anfetaminas ilegais (ver história na primeira página.

«Isto pode significar ofinal da sua carreira», afirmou umafonte do Bureau of Alcohol, Tobacco and Fireams, a co­agência do FBI. Desconhecemos todos os pormenores do que aconteceu, mas John Brigham deveria estar  vivo, Era a última coisa de que o FBI precisava depois de Ruby Ridge, declarou a fonte que recusou identificar­se.

A movimentada carreira de Clarice Starlíng ínicíou­se pouco depois de ter chegado à Academia do FBI como estagiária. Licenciada com distinção pela Universidade de Virginia em Psicologia e Criminología, foi indigitada para entrevistar o louco assassino Dr Hannibal Lecter. apelidado por este jornal de «Hanníbal, o Canibal» e  dele recebeu informações que foram importantes na busca de Jame Gumb e salvação do seu ref Catherine Martin, filha da ex­senadora cle Tennessee.

A agente Starling foi campeã de torneios de tiro interserviços durante três anos, antes de se retirar da  competição. Ironicamente, o agente Brigham, que morreu ao lado dela, era ínstrutor de armas de fogo em Quantico quando Starling praticou ali e seu treinador em competição,

Um porta­voz do FBI declarou que a agente Starling será dispensada do activo, com um salário dependendo do  resultado da investigação interna

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do FBI. Espera­se um interrogatório ainda esta semana antes do Departamento de Responsabilidade Profissional, a temida inquisição do próprio FBI.

Parentes da falecida Evelda Drumgo afirmaram que vão reclamar indemnizações ao governo americano e à pessoa de  Starling por casos de morte ilegítima.

O bebé de Drumgo, de três meses, visto nos braços da mãe nasfotografias dramáticas do tiroteio, saiu ileso.

O advogado Telford Higgins, que defendeu afamília Drumgo em inúmeros processos crime, alegou que a arma da agente  Starling, um Colt 45 semi­automático adaptado, não obedecia às normas de aplicação da lei da cidade de Washington. «É um instrumento letal e perigoso e inadequado na aplicação da lei», declarou Híggins. O seu uso corresponde a pôr em perigo a vida humana», acrescentou ofamoso advogado de defesa.

O Tattler comprara o número de telefone de casa de Clarice Starling a um dos seus informadores e a campainha soou insistentemente até Starling retirar o auscultador do descanso e passar a servir­se do telemóvel do FBI para falar para o departamento.

Starling não sentia muitas dores na orelha e no lado inchado da cara, desde que não tocasse na ligadura. Pelo menos, não latejava. Aguentou­se com dois Tylenol. Não precisava do Percoset que o médico lhe receitara. Passou pelo sono, encostada à cabeceira da cama, enquanto o Washington Post deslizava para o chão. Havia resíduos de pólvora nas mãos e de lágrimas secas nas faces.

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Capítulo quatroApaixonamo­nos pelo Bureau,

mas o Bureau não se apaixona por nós.

MáXIMA DA CONSULTORIA DE DELIGAMENTO DO FBI

O ginásio do FBI no edifício J. Edgar Hoover estava praticamente vazio a esta hora matutina. Dois homens de meia­idade corriam na pista interior. O ruído de uma máquina de pesos num canto afastado e os ressaltos da bola de um jogo com raquetas ecoavam no salão.

As vozes dos corredores não se ouviam. Jack Crawford corria com o director do FBI, Tunberry, a pedido do director. Tinham percorrido três quilómetros e começavam a arquejar.

­ Blaylock, do ATF, tem de dar tudo por tudo pela Waco. Não vai acontecer para já, mas está acabado e tem consciência disso ­ replicou o director. ­ Bem podia comunicar ao reverendo Moon que vai desocupar as instalações. ­ O facto do Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms alugar escritórios em Washington ao reverendo Sun Myung Moon é uma fonte de divertimento para o FBI.

­ E Farriday está de olho em Ruby Ridge ­ prosseguiu o director.­ Não me parece ­ objectou Crawford. ­ Trabalhara em Nova Iorque com Farriday na década de 70, quando a malta ocupava os escritórios do FBI na Third Avenue e na 69th Street. ­ Farriday é bom homem. Não elaborou as regras de admissão.

­ Falei­lhe ontem de manhã.

­ E que tal? ­ interessou­se Crawford.

­ Digamos que defende os seus benefícios. Tempos perigosos estes, Jack.

Os dois homens corriam com a cabeça para trás. Aceleraram um pouco o passo. Pelo canto do olho, Crawford. apercebeu­se que o director avaliava a sua condição física.

­ Tens quantos, Jack? 56?­ Exacto.

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­ Falta­te um ano para a reforma obrigatória. Muitos tipos saem aos 48, 50, enquanto ainda podem arranjar emprego, Nunca quiseste fazê­lo. Quiseste manter­te ocupado depois da morte de Bella.

Quando Crawford correu meia volta sem lhe dar resposta, o director percebeu que cometera uma gafe.

­ Não pretendo encarar o assunto de ânimo leve, Jack. No outro dia, Doreen referia­se a quanto...

­ Ainda há umas coisas a tratar em Quantico. Viste no orçamento que queremos dinamizar o VICAP para que qualquer polícia possa utilizá­lo.

­ Alguma vez quiseste ser director, Jack?

­ Nunca achei que fosse o tipo de trabalho que se me adequasse.

­ E não é, Jack. Não és um tipo político. Nunca poderias ter sido director. Nunca poderias ter sido um Eisenhower, Jack, ou um Ornar Bradlcy ­ Fez sinal a Crawford para que parassem e detiveram­se, ofegantes, junto à pista. Poderias, contudo, ter sido um Patton, Jack. És homem para os guiar através do inferno e conseguir que te amem. É um dom que me falta. Tenho de empurrá­los. ­ Tunberry olhou rapidamente em redor, apanhou a sua toalha de cima de um banco e enrolou­a à volta dos ombros, como se se tratasse da toga de um juiz de pena capital. Os olhos brilhavam­lhe.

«Há pessoas que precisam de despoletar a raiva para serem duros», reflectiu Crawford, atento aos movimentos da boca de Tunberry­ No caso da falecida Mistress Drumgo com a MAC­10 e o laboratório de metanfetaminas, abatida a tiro com o bebé ao colo: a Polícia Judiciária quer um sacrifício de carne. Carne fresca e jovem. E os media também. O DEA tem de lhes atirar um pedaço de carne. O ATF também. E nós idem. Mas, no nosso caso talvez se satisfaçam com criação. Kendler acha que podemos entregar­lhes Clarice Starling e deixam­nos em paz. Concordo com ele. O ATF e o DEA aceitam as culpas por planearem a rusga. Starling puxou o gatilho.

­ Contra uma assassina de polícias que disparou primeiro.­ É o quadro, Jack. Não estás a topar, pois não? O público não viu quando Evelda Drumgo abateu John Brigham. Nem viu Evelda a ser a primeira a disparar contra Starling. Não se vê, caso não se saiba para o que se está a olhar. Duzentos milhões de pessoas, um décimo das quais vota, viram Evelda drumgo sentada no chão numa postura protectora sobre o bebé, de miolos estoirados. Não me interrompas, Jack... Sei que por um tempo julgaste que Starling seria a tua protégé. Mas ela fala de mais Jack e começou mal com algumas pessoas...

1 Violent Apprehension Program. (N. da T)

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­ Kendler é um chato.

­ Ouve­me bem e não digas nada até eu chegar ao fim. De qualquer forma, a carreira de Starling estava parada. Receberá  uma dispensa administrativa sem danos e a papelada será a de uma vulgar suspensão... conseguirá arranjar emprego. És  responsável por um trabalho de monta no FBI, a Secção de Ciência Comportamental. Muita gente é de opinião que se  tivesses defendido  mais os teus interesses, serias muito mais do que um chefe de secção, que mereces muito mais. Serei o  primeiro a declará­lo. Vais reformar­te como director­adjunto, Jack. Tens a minha palavra.

­ Se me mantiver fora disto, queres dizer?

­ No curso normal dos acontecimentos, Jack. Com paz por todo o reino, é o que acontecerá. Olha para mim, Jack.

­ Sim, director Tunberry?

­ Não estou a pedir­te, estou a dar­te uma ordem directa. Mantem­te afastado. Não desperdices oportunidades, Jack. Às  vezes, é preciso virar a cara. já o fiz. Ouve bem. Sei que é difícil e acredita que sei como te sentes.

­ Como me sinto? Sinto que preciso de um duche ­ replicou Crawford.

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Capítulo cincoStarling era uma dona de casa eficiente, mas não meticulosa. O seu lado do duplex estava limpo e conseguia  encontrar tudo, mas as coisas tendiam a amontoar­se: roupa lavada e por separar e mais revistas do que sítios  onde arrumá­las. Engomava tudo à última hora e não precisava ataviar­se, portanto tudo bem.

Quando precisava de ordem, dirigia­se à cozinha comum do lado do duplex de Ardelia Mapp. Se Ardelia estava presente, beneficiava dos seus conselhos, que eram sempre úteis, embora por vezes mais pormenorizados do que desejaria. Se Ardelia não estava, era ponto assente que Starling podia instalar­se na absoluta ordem esquematizada por Mapp, desde que não deixasse nada. E foi exactamente o que fez nesse dia. Naquele tipo de casa que parece conter sempre o ocupante, quer ele esteja ou não.

Starling sentou­se a observar a apólice do seguro de vida da avó de Mapp, pendurada na parede numa moldura feita à mão, como sempre estivera na herdade da avó e depois no apartamento dos Mapp, durante a infância de Ardelia. A avó dela vendera legumes e flores do jardim e economizara o suficiente para pagar os prémios do seguro e conseguira pedir empréstimos sobre a apólice para ajudar Ardelia quando ela trabalhava e ao mesmo tempo tirava o curso. Havia ainda uma fotografia da pequena e idosa senhora, que não fazia qualquer esforço para sorrir sobre a gola engomada, com os olhos negros emanando uma antiga sabedoria sob a aba do chapéu de palha.

Ardelia estava consciente do seu passado e era nele que recolhia forças para o dia­a­dia. Agora, era Starling que tentava recompor­se. O Lar Luterano de Bozeman alimentara­a, vestira­a e dera­lhe um padrão decente de comportamento, mas para o que precisava nesse momento, tinha de apelar ao sangue.

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O que se tem, quando se é originário de uma família branca e

pobre? E se se nasceu de gente muitas vezes apelidada nas cidades universitárias como pobretanas, trabalhadores rurais ou, condescendentemente, mão­de­obra ou brancos pobres dos Apalaches? E quando a delicadeza incerta do Sul, que não atribui qualquer dignidade ao trabalho físico, se refere à nossa família como sucateiros... em que tradição se recolhem exemplos? No facto de os termos vencido em Bull Run? Ou do bisavó ter feito uma bela figura em Vicksburg ou ainda por um pedaço de Shiloh se ter transformado em Yazoo City?

Há muito mais honra e sentido em se ter obtido sucesso com o legado, feito algo com os malditos 40 acres e uma mula, mas há que ver isso com os próprios olhos.

Starling saíra­se bem no treino do FBI porque não tinha um passado a apoiá­la. Sobreviveu a maior parte da vida em instituições, respeitando­as e seguindo as normas. Nunca deixara de seguir em frente, obtivera a bolsa e ingressara na equipa. A impossibilidade de progredir no FBI depois de um começo brilhante constituía uma nova e terrível experiência. Embatia contra o tecto de vidro, como uma abelha dentro de uma garrafa.

Dispusera de quatro dias para fazer o luto por John Brigham, abatido a tiro na sua frente. Há muito tempo, John Brigham fizera­lhe um pedido e respondera­lhe que não. E depois ele perguntara­lhe se podiam ser amigos e estava a ser sincero, ele respondera que sim e era verdade.

Aceitara a realidade de que ela própria tinha morto cinco pessoas no Feliciana Fish Market. Ocorriam­lhe flashes sucessivos do membro do gang Crip com o peito esmagado entre os carros, agarrando­se ao tejadilho do carro, enquanto a arma lhe escorregava para longe.

Uma vez e para aliviar a consciência foi ao hospital para examinar o bebé de Evelda. A mãe de Evelda estava presente, com a criança ao colo, preparando­se para a levar para casa. Reconheceu Starling das fotografias dos jornais, entregou o bebé à enfermeira e, sem dar tempo a que Starling se apercebesse das suas intenções, esbofeteou­a com força no lado da cara coberto pela ligadura.

Starling não ripostou, mas imobilizou a mulher mais velha com um golpe de gancho de encontro à janela da ala da maternidade até ela deixar de lutar, com o rosto distorcido junto ao vidro sujo de espuma e de cuspo. O sangue corria pelo pescoço de Starling e a dor estonteava­a. Coseram­lhe novamente a orelha na sala de urgências e recusou­se a apresentar queixa. Uma auxiliar da sala de urgências deu uma dica ao TattIer e recebeu trezentos dólares.

Teve de sair mais duas vezes, a fim de cumprir as últimas disposições de John Brigham e assistir ao seu funeral no Arlington National

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Cemetery Os parentes de Brigham eram poucos e afastados e, nos seus últimos pedidos por escrito, ele nomeava Starling para se ocupar dele.

A extensão dos seus danos no rosto exigia um caixão fechado, mas ela cuidara da aparência dele o melhor que conseguira. Deitara­o vestido com o seu fato azul de fuzileiro, a estrela de prata e outras condecorações.

Depois da cerimónia, o superior de Brigham entregou a Starling uma caixa com as armas pessoais de John Brigham, os distintivos e alguns objectos da sua secretária sempre desarrumada, incluindo o estúpido pássaro que bebia de um copo.

Cinco dias depois, Starling enfrentou um interrogatório que podia destrui­la. É excepção de uma mensagem de Jack Crawford, o seu telefone de trabalho mantivera­se silencioso e deixara de poder falar com Brigham

Telefonou para o seu representante na Associação de Agentes do FBI e ele aconselhou­a a que não se apresentasse com brincos de pendentes ou sapatos abertos na frente no interrogatório.

A televisão e os jornais pegavam diariamente na história da morte de Evelda Drumgo e sacudiam­na como a um rato.

Aqui, na ordem impecável da casa de Mapp, Starling tentava alinhar ideias.

O verme que nos destrói é a tentação de concordar com os críticos, de conseguir a aprovação deles.

Um barulho estava a interferir.

Starling tentava lembrar­se das palavras exactas pronunciadas na carrinha de disfarce. «Teria dito mais do que o necessário?». Um barulho estava a interferir.

Brigham indicara­lhe que informasse os outros sobre Evelda. «Teria deixado escapar alguma hostilidade, feito qualquer crítica. Um barulho estava a interferir.

Voltou à realidade e apercebeu­se que estava a ouvir a campainha da porta. Provavelmente um repórter. Também esperava uma intimação civil. Afastou a cortina da janela da frente e ao espreitar lá para fora avistou o carteiro que regressava à furgoneta. Abriu a porta da frente e apanhou­o, virando as costas ao carro da imprensa que se encontrava do outro lado da rua, de lente atestada, enquanto assinava o recibo do correio expresso.

O envelope era violeta, com laivos de seda no bonito papel de linho. Apesar da sua distracção, recordava­lhe algo. No interior da casa e a salvo de olhares indiscretos, examinou a morada. Uma bela caligrafia.

Um aviso disparou, sobrepondo­se ao permanente zumbido de medo no espírito de Starling. Sentiu que a pele do estômago tremia, como se tivesse deixado cair qualquer coisa fria em cima.

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Starling pegou no envelope pelas pontas e levou­o para a cozinha.

Tirou da bolsa as luvas brancas de recolha de provas que nunca a abandonavam. Premiu o envelope sobre a superfície dura da mesa da cozinha e apalpou­o todo com cuidado. Embora o papel fosse pesado, teria detectado o volume de uma bomba de relógio pronta a fazer explodir uma folha A­4. Sabia que deveria examiná­lo com um fluoroscópio. Caso o abrisse, podia meter­se em sarilhos. Sarilhos. Exacto. Que se lixasse!

Abriu o envelope com uma faca de cozinha e retirou do interior a única folha de papel de seda. Soube de imediato, antes mesmo de verificar a assinatura, quem lha escrevera.

Querida Clarice,

Acompanhei com interesse o percurso da sua infelicidade e humilhação pública. O meu nunca me incomodou,  exceptuando o incómodo de estar prisioneiro, mas é possível que lhe falte perspectiva.

Durante as nossas discussões no calabouço, não me restaram dúvidas de que o seu pai, o guarda­nocturno assassinado, ocupa um lugar de realce no seu sistema de valores. Julgo que o seu sucesso em terminar com a  carreira de costureiro de Jame Gumb lhe deu sobretudo prazer por poder imaginar o seu pai a fazê­lo.

Agora, tem má reputação no FBI. Sempre imaginou o seu pai acima de si, imaginou­o um chefe de  departamento, ou ­ melhor ainda do que Jach Crawford ­ um director­adjunto, seguindo, orgulhoso, o seu  progresso? E vê­o, agora, envergonhado e esmagado pela sua desonra? O seu fracasso? O final infeliz e mesquinho de uma carreira promissora? Vê­se a executar as tarefas domésticas a que a sua mãe ficou reduzida,  depois dos drogados terem enfiado um balázio no seu PAI? Hummm? Será que o seu falhanço se reflectirá  neles, será que as pessoas acreditarão erradamente que os seus pais eram lixo branco de um tornado que varreu um acampamento de roulottes? Diga­me a verdade, agente especial Starling. Reflicta um momento, antes de  prosseguirmos.

Vou referir­me a uma das suas qualidades e que a ajudará. não está cega pelas lágrimas, ainda pode continuar  a ler.

Eis um exercício que pode considerar útil. Quero que o faça fisícamente comigo:

Tem uma caçarola preta de ferro? É uma rapariga das montanhas do Sul. Não consigo imaginá­la sem uma. Ponha­a em cima da mesa da cozinha. Acenda as luzes do tecto.

Mapp herdara a caçarola da avó e utilizava­a com frequência. Tinha uma superfície preta e brilhante que nunca via detergente. Starling pousou­a em cima da mesa na sua frente.

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Olhe para a caçarola, Clarice. Incline­se e olhe­a. Se foi a caçarola da sua mãe, e pode muito bem ser, conservará entre as suas moléculas as vibrações de todas as conversas realizadas na sua presença. Todas as  trocas de palavras, pequenas zangas, revelações fatais, os anúncios de infortúnio, os queixumes e a poesia do  amor

Sente­se à mesa, Clarice. Olhe para dentro da caçarola. Se estiver bem polida é um lago preto, não é?  Assemelha­se a olhar para dentro de um poço. O seu reflexo pormenorizado não está no fundo, mas assoma nele, certo? A luz atrás de si, mostra­a a negro, com um halo luminoso à volta da cabeça, como se os cabelos  estivessem em fogo.

Todos somos produtos do carvão. Você e a caçarola, e o seu pai morto no chão, frio como a caçarola. Ainda  está tudo ali. Ouça. Como eles ainda soam realmente a vida ­ ouça os seus pais a discutirem. As memórias concretas e não a imaginação que enche o seu coração.

Por que é que o seu pai não era um ajudante de xerife, ligado à gente do tribunal? Por que é que a sua mãe se viu obrigada a limpar motéis para vos manter, embora não tivesse conseguido mantê­los a todos juntos até serem adultos?

Qual é a sua memória mais nítida da cozinha? Não do hospital, da cozinha.

A minha mãe a lavar o sangue do chapéu do meu pai.

Qual é a sua melhor memória da cozinha?

O meu pai a descascar laranjas com o seu velho canivete de bolso e a distribuir os gomos entre nós.

O seu pai, Claríce, era um guarda­nocturno. A sua mãe era uma criada de quartos.

Uma grande carreira federal era uma esperança sua ou deles? Até onde se curvaria o seu pai para ser bem sucedido nafedorenta burocracía? Quantos traseiros estaria disposto a beijar? Alguma vez na vida o viu bajular  ou adular?

Os seus supervisores demonstraram qualquer valor, Clarice? E os seus pais, demonstraram algum? Em caso  afirmativo, esses valores são os mesmos? Olhe para o ferro honesto e responda­me. Falhou perante a sua  família morta? Eles desejariam que se dobrasse? Era essa a perspectiva que tinham de coragem? Pode ter a  força que quiser

É uma guerreira. Claríce. O inimigo está morto e o bebé a salvo. É uma guerreira.

Na tabela periódica, Clarice, os elementos mais estáveis aparecem classificados entre o ferro e a prata.

Entre o ferro e a prata. Penso que isto se lhe adequa.

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Hannibal Lecter

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PS, ­ Ainda me deve algumas informações, sabe? Diga­me se continua a acordar ouvindo os cordeiros. Em qualquer domingo ponha um anúncio na coluna de desaparecidos da edição nacional do Times, do International Herald Tribune e China Mail. Dirija­o a A. A. Aaron para que seja o primeiro e assine Hannah.

Enquanto lia, Starling ouvia as palavras na mesma voz que troçara dela e a espicaçara, perscrutara a sua vida e a esclarecera na ala de segurança máxima da instituição psiquiátrica, quando tivera de negociar o mais íntimo da sua vida com Hannibal Lecter em troca do seu conhecimento vital de Buffalo Bill. O som metálico daquela voz raramente usada ainda ecoava nos seus sonhos.

Havia uma nova teia de aranha no canto do tecto da cozinha. Starling não despregava os olhos dela, enquanto os pensamentos fluíam em turbilhão. Alegria e tristeza, tristeza e alegria. Alegria pela ajuda, alegria por divisar uma forma de cicatrização. Alegria e tristeza pelo facto dos serviços postais do Dr. Lecter em Los Angeles estarem a servir­se de uma ajuda vulgar ­ desta vez tinham­se servido de uma caixa postal.

Jack Crawford ficaria deliciado com a carta, o mesmo acontecendo aos Serviços Postais e ao laboratório.

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Capítulo seis

O quarto onde Mason passa a sua vida é tranquilo, mas tem um pulsar próprio, o inalar e exalar da máquina 

por onde respira. Está às escuras com excepção do grande aquário onde uma exótica moreia volteia num infindável oito, enquanto a sua sombra negra se projecta como uma fita sobre o quarto.

O cabelo apanhado de Mason descansa numa grossa trança em cima do invólucro do respirador que lhe cobre o peito na cama erguida. Diante dele encontra­se suspenso um emaranhado de tubos, semelhantes a flautas.

A comprida língua de Mason desliza por entre os dentes. Enrola a língua à volta do último tubo e sopra com a pulsação seguinte do respirador. Uma voz responde imediatamente de um altifalante instalado na parede: ­ Sir?

­ O Tattler. ­ Os dois primeiros «t»I perdem­se, mas a voz ecoa profunda e ressonante, uma voz da rádio.

­ A primeira página tem...

­ Não a leias. Põe­a no ecrã. ­ Voltam a perder­se os primeiros sons do discurso de Mason.

Ouve­se o estalido do grande ecrã de um monitor elevado. O brilho azul­esverdeado torna­se rosa quando o cabeçalho vermelho do Tattler surge.

«ANJO DA MORTE: A ARMA MORTíFERA DO FBI», lê Mason, através de três lentas exalações do seu respirador. Pode aumentar o tamanho das imagens.

Apenas um dos braços está fora dos cobertores da cama. A mão executa um movimento. Id~entica a uma pálida tenaz de santola a mão mexe­se, mais pelo movimento dos dedos do que pela força do braço

Em inglês The Tattler. (N. da T)

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perdido. Dado Mason não poder virar muito a cabeça para ver, o indicador e o médio apalpam como antenas, enquanto o polegar, o anelar e o dedo mínimo arrastam a mão. Esta encontra o comando que lhe permite aumentar e virar as páginas.

Mason lê devagar. O tubo sobre a sua única vista provoca um leve silvo duas vezes por minuto quando espalham humidade sobre o globo ocular sem pálpebra e embacia frequentemente a lente. Leva vinte minutos a ler o artigo principal e a coluna.

­ Mostra a radiografia ­ ordenou ao terminar.

Levou um momento. A grande chapa da radiografia necessitava de uma mesa iluminada para se ver bem no monitor. Aqui estava uma mão humana, aparentemente danificada. Depois, mais uma chapa, mostrando a mão e todo o braço. Uma marca colada na radiografia mostrava uma antiga fractura no úmero, mais ou menos a meio entre o cotovelo e o ombro.

Mason fitou­a depois de muitas exalações. ­ Põe a carta ­ disse por fim.

Uma bela caligrafia desenhou­se no ecrã com a letra absurdamente ampliada.

­ «Querida Clarice», leu Mason, acompanhei com interesse o percurso da sua infelicidade e humilhação pública... ­ O próprio ritmo da voz acordava velhos pensamentos no seu íntimo que o faziam girar e ao quarto também, punham a nu os seus indizíveis pesadelos, acelerando­lhe as batidas do coração. A máquina acusou a sua excitação e encheu­lhe os pulmões com mais rapidez.

Leu­a toda, naquele seu ritmo doloroso, lendo sobre a maquina em movimento, como se lesse montado a cavalo. Mason não podia fechar o olho, mas quando terminou a leitura, a mente recolheu­se por detrás do olho, a fim de meditar um pouco. O respirador abrandou e ele soprou no tubo.

­ Sim, sir

­ Contacta o senador Vellirior. Traz­me o auscultador. Liga o altifalante.

«Clarice Starling», disse de si para si juntamente com o próximo respirar que a máquina lhe permitiu. O nome não tem consoantes explosivas e pronunciou­o muito bem. Não se perdeu um único som. Enquanto aguardava a ligação, passou um pouco pelo sono com a sombra da moreia pairando sobre o lençol, o seu rosto e o cabelo apanhado.

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Capítulo seteBuzzard’s Point, o quartel­general do FBI para Washington e o distrito de Columbia, é escolhido para uma reunião de abutres num hospital local da Guerra Civil.

Na reunião de hoje participam membros intermédios da administraqfto da Drug Enforcement Agency, Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms e FBI, a fim de discutirem o destino de Clarice Starling.

Starling encontrava­se de pé, sozinha, na espessa alcatifa do gabinete do seu chefe. Ouvia a própria pulsação por baixo da ligadura à volta da cabeça. Acima da pulsação, ouvia as vozes de homens, abafadas pela porta de vidro fosco de uma sala de conferências contígua.

A chancela do FBI com o lema «Fidelidade, Bravura, Integridade» encontra­se elegantemente desenhada em folha dourada no vidro.

As vozes por detrás da chancela sobem e descem acaloradas; Starling ouvia o seu nome quando não percebia mais nenhuma palavra. O gabinete dispunha de uma bela vista sobre a bacia com iates

até ao Forte McNair, onde os conspiradores acusados do assassínio de Lincoln foram enforcados.

Pela mente de Starling perspassaram instantâneos de fotografias que vira de Mary Surratt, passando junto ao  seu próprio caixão e subindo os degraus do cadafalso de H. McNaír pendendo com o capuz sobre a cabeça  sobre o alçapão, com as saias atadas à volta das pernas por uma questão de pudor, enquanto a largavam com um estrondo para o escuro.

Para lá da porta, Starling ouviu o arrastar das cadeiras quando os homens se puseram de pé. Entravam agora neste gabinete. Reconheceu alguns dos rostos. Céus! Estava também Noonan, o subdirector da divisão de investigação.

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E havia a sua némesis, Paul KrendIer, do Departamento de justiça, com o enorme pescoço e as orelhas redondas bem no cimo da cabeça, semelhantes às de uma hiena. KrendIer era um oportunista, o homem­sombra do inspector­geral. Desde que ela o antecedera na prisão do serial hiller Buffalo Bill num famoso caso há sete anos, KrendIer nunca perdia uma oportunidade de despejar veneno no seu dossier pessoal e sussurava ao ouvido do Conselho de Promoções.

Nenhum destes homens alguma vez estivera numa missão com ela, executara um mandado de captura, fora alvejado ou retirara dos cabelos estilhaços de vidro ao lado dela.

Os homens não a olharam individualmente mas em conjunto, da mesma forma que um rebanho centra de súbito as atenções no coxo do grupo.

­ Sente­se, agente Starling ­ pronunciou­se o seu patrão, o agente especial Clint Pearsall, esfregando o pulso grosso, como se o relógio o magoasse.

Sem a olhar de frente, esboçou um gesto na direcção de uma cadeira de braços de frente para as janelas. Num interrogatório, a cadeira não é o lugar de honra.

Os sete homens permaneceram de pé, as silhuetas recortadas a negro com as janelas luminosas por trás. Agora, Starling não conseguia divisar­lhes os rostos, mas detectava­lhes as pernas e os pés, abaixo do brilho. Cinco deles usavam os mocassins de sola grossa preferidos pelos ratos do campo que conseguiram chegar a Washington. Um par de Thom McAnn de biqueira quadrada com solas Corfam e alguns Florsheim também de biqueira quadrada completavam o círculo dos sete. Um cheiro a pomada intensificada por pés quentes.

­ Na eventualidade de não conhecer todos, agente Starling, este é o director­adj unto Noonan, que estou certo de que sabe quem é; este é John Deldredge do DEA, Bob Sneed, BATF, Benny Holcomb é auxiliar do prefeito e Larkin Wainright um examinador do nosso Gabinete de Responsabilidade Profissional ­ retorquiu Pearsall. ­ Paul KrendIer ­ conhece o Paul ­ está aqui particularmente como membro da Procuradoria­ Geral da justiça. Paul está a fazer­nos um favor, ou seja, está aqui e não está, apenas para nos manter a cabeça fora de água, se é que me entende.

Starling entendia perfeitamente: um examinador federal é alguém que chega ao campo de batalha depois da batalha acabar e enfia a baioneta nos feridos.

As cabeças de algumas das silhuetas inclinaram­se num cumprimento. Os homens ergueram o pescoço e observaram a jovem mulher por causa de quem estavam ali reunidos. Durante o espaço de umas pulsações, ninguém falou.

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Bob Sneed quebrou o silêncio. Starling lembrava­se dele como o médico porta­voz do BATF que tentou abafar o desastre da Divisão Davidiana em Waco. Era um comparsa de KrendIer e considerado um oportunista.

­ Viu a cobertura da imprensa e da televisão, agente Starling. Foi amplamente identificada como a atiradora que causou a morte de Evelda Drumgo. Foi, infelizmente, como que endemoninhada. Starling não respondeu.

­ Agente Starling?

­ Nada tenho a ver com o que foi noticiado, Mister Sneed.­ A mulher tinha o bebé ao colo e decerto tem consciência do problema que isso levanta.

­ Não nos braços, mas num porta­bebés pendurado ao peito, enquanto mantinha os braços e as mãos por baixo, sob uma fralda, que escondia a sua MAC­10.

­ Leu o protocolo da autópsia? ­ retorquiu Sneed.­ Não.

­ Mas nunca negou ser a atiradora.

­ Julgou que o negaria, só porque não recuperou a bala? Virou­se para o seu chefe do Bureau. ­ Este é um encontro amigável, certo, Mister Pearsall?

­ Sem dúvida.

­ Então por que é que Mister Sneed tem um microfone? Há anos que a Divisão Técnica deixou de fabricar esses microfones de lapela. Mas ele tem um F­Bird no bolso do casaco que está a gravar tudo. Está agora na moda usarmos microfones entre membros do mesmo departamento?

O rosto de Pearsall tornou­se escarlate. Caso Sneed tivesse, de facto, um microfone, constituía o pior tipo de traição, mas ninguém queria ficar com a voz gravada, ordenando a Sneed que o desligasse.

­ Não precisamos de qualquer atitude ou acusações da sua parte ­ replicou Sneed, pálido de raiva. ­ Todos estamos aqui com a intenção de ajudá­la.

­ Ajudar­me a fazer o quê? A sua agência telefonou para este departamento e fui destacada para o ajudar nesta incursão. Dei duas hipóteses a Evelda Drumgo de se entregar. Ela empunhava uma MAG­10 sob a fralda do bebé. já tinha alvejado John Brigham Gostaria que se tivesse entregue. Não o fez. Alvejou­me. Respondi. Pode verificar o seu microfone, Mister Sneed.

­ Tinha antecipado que Evelda Drumgo estaria lá? ­ quis saber Eldredge.

­ Antecipado? O agente Brigham comunicou­me na carrinha a caminho do local que Evelda Drumgo estava a preparar droga num

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laboratório de metafetamina vigiado. Destacou­me para me haver com ela.

­  Lembre­se que Brigham está morto ­ replicou KrendIer e Burke também, qualquer deles agentes fantásticos. Não estão aqui para confirmarem ou negarem o que quer que seja.

Starling sentiu um aperto no estômago ao ouvir pronunciar o nome de John Brigham.

­ Não é muito provável que eu esqueça que John Brigham está morto, Mister KrendIer, e ele era um bom agente e um bom amigo. A verdade é que me pediu que tratasse do caso de Evelda.

­ Brigham incumbiu­a dessa missão, embora soubesse que você e Evelda já tinham tido um confronto ­ comentou KrendIer.

­ Então, Paul ­ interferiu Clint Pearsall.

­ Que confronto? ­ redarguiu Starling. ­ Uma detenção pacífica. já antes lutara com outros agentes por altura de detenções. Não me enfrentou quando a prendi antes e falámos um pouco... ela era esperta. Tratámo­nos com civismo. Esperava poder consegui­lo de novo.

­ Fez a afirmação verbal de que «se encarregaria dela»? ­ perguntou Sneed.

­ Reconheci as minhas instruções.

Holcomb, do gabinete do prefeito, inclinou­se na direcção de Sneed. Sneed ajeitou os punhos da camisa, antes de prosseguir: ­ Miss Starling, fomos informados pelo agente Bolton, do Departamento de Polícia de Washington, que pronunciou declarações acaloradas sobre Miss Drumgo na carrinha, a caminho do confronto. Quer fazer algum comentário?

­ Seguindo as instruções do agente Brigham, expliquei aos outros agentes que Evelda tinha uma história de violência, que costumava andar armada e era seropositiva. Disse que lhe daríamos a oportunidade de se render pacificamente. Pedi ajuda física para a dominar, se fosse caso disso. Posso afirmar que não havia muitos voluntários.

Clint Pearsall fez um esforço e interferiu. ­ Quando o carro dos atiradores do gang Crip chocou e um deles fugiu, avistou o carro a balouçar e ouviu o bebé a chorar no interior?

­ A gritar ­ corrigiu Starling. ­ Ergui a mão para que todos parassem o tiroteio e avancei sem cobertura.

­ O que constitui uma infracção à nossa forma de actuar observou Eldredge.

Starling ignorou­o e prosseguiu: ­ Aproximei­me rapidamente do carro, de arma baixa e o cano baixo. Ron Burke estava moribundo no chão que nos separava. Alguém correu e pôs­lhe uma compressa. Evelda saiu cá para fora com o bebé. Pedi­lhe que me mostrasse as mãos, disse­lhe qualquer coisa como: «Evelda, não faça isso».­ Ela disparou, você disparou. Ela caiu de imediato?

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­ As pernas cederam e ficou sentada no chão, inclinada sobre o bebé ­ confirmou Starling com um aceno de cabeça. ­ Estava morta.

­ Agarrou no bebé e correu para a água. Mostrou preocupação­ redarguiu Pearsall.

­ Ignoro o que mostrei. Ele estava coberto de sangue. Não sei se o bebé era ou não HIV positivo, mas sabia que ela era.

­ E pensou que a sua bala pudesse ter atingido o bebé ­ interferiu KrendIer.

­ Não. Sei para onde foi a bala. Posso falar francamente, Mister Pearsall?

Pearsall não a olhou de frente e ela continuou:

­ Esta busca foi uma enorme confusão. Colocou­me numa posição em que tinha de optar entre morrer ou alvejar uma mulher com uma criança ao colo. Optei e o que tive de fazer queima­me. Disparei contra uma mulher com um bebé ao colo. Nem os animais irracionais o fazem. Pode verificar novamente o seu gravador, Mister Sneed, aí mesmo onde faço a confissão. Fiquei extremamente ressentida pela posição em que me vi. E continuo. ­ Ocorreu­lhe a imagem de Brigham estendido no chão de rosto para baixo e foi longe de mais. ­ Tê­los visto a todos a fugirem dá­me volta ao estômago.

­ Starling... ­ exclamou Pearsall, angustiado e fitando­a de frente pela primeira vez.

­ Sei que ainda não teve oportunidade de elaborar o seu relatório ­ interferiu Larkin Wainwright. ­ Quando o passarmos em revista...

­ Tive sim, sir ­ arguiu Starling. ­ Vai uma cópia a caminho do Gabinete de Responsabilidade Profissional. Tenho uma cópia comigo, se não quiser esperar. Escrevi tudo o que fiz e vi. Como vê, Mister Sneed, teve sempre tudo em seu poder.

A visão de Starling estava um pouco clara de mais, um sinal de perigo que reconheceu e a levou a baixar conscientemente o tom de voz:

­ Esta rusga correu mal por uma série de motivos. O informador do BATF mentiu quanto à localização do bebé porque o informador queria desesperadamente que a rusga falhasse ­ antes do encontro com o júri federal em Illinois. E Evelda Drumgo sabia que íamos aparecer. Surgiu com o dinheiro num saco e o produto na outra. O beep ainda indicava o número da estação televisiva WFUL. Recebeu o beep cinco minutos antes da nossa chegada. O helicóptero da WFUL apareceu ao mesmo tempo que nós. Intime os telefonistas da WFUL e verifique quem é culpado da fuga de informação. É alguém com interesses locais, meus senhores. Se a fuga de informação

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fosse do BATF, como aconteceu em Waco, ou do DEA, tê­lo­iam feito à imprensa nacional e não à televisão local.

Benny Holcomb falou em nome da cidade: ­ Não há prova de que alguém do governo local ou do departamento da polícia de Washington tenha deixado escapar qualquer informação.

­ Proceda à intimação e verá ­ insistiu Starling.­ Tem o beeper de Drumgo? ­ quis saber Pearsall.

­ Está selado e na sala de património da Academia de Quantico, o beeper do director­adj unto Noonan fez­se ouvir. Franziu o sobrolho ao verificar o número e ausentou­se da sala, pedindo desculpa. Momentos depois, chamou Pearsall para que fosse juntar­se­lhe lá fora.

Wainwright, Eldredge e Holcomb olhavam através da janela na direcção do Fort McNair, com as mãos enfiadas nos bolsos. Poderiam estar à espera em qualquer unidade de cuidados intensivos. Paul Krendier trocou um olhar com Sneed e incitou­o a que se aproximasse de Starling.

Sneed pousou a mão no espaldar da cadeira de Starling e inclinou­se sobre ela. ­ Se testemunhar no interrogatório que, enquanto se encontrava em missão para o FBI, a sua arma matou Evelda Drumgo, o BATF está disposto a assinar uma declaração de que Brigham lhe pediu que prestasse... atenção especial a Evelda, a fim de a deter pacificamente. Foi a sua arma que a matou e é nesse ponto que o seu departamento tem de assumir responsabilidades. Não ocorrerá uma desagradável disputa entre agências quanto às regras de envolvimento e não seremos obrigados a apresentar quaisquer declarações acaloradas ou hostis que tenha feito na carrinha sobre o tipo de pessoa que ela era.

Starling divisou, por instantes, Evelda Drumgo transpondo a ombreira da porta, a sair do carro, divisou­lhe a cabeça e, mal­grado a idiotice e a perda da vida de Evelda, apercebeu­se da decisão que a tomava de levar a criança e enfrentar os carrascos em vez de fugir.

Starling aproximou­se mais do microfone colocado na gravata de Sneed e declarou num tom de voz nítido: ­ Tenho o maior prazer em reconhecer o tipo de pessoa que ela era, Mister Sneed. Era melhor do que o senhor.

Pearsall regressou ao gabinete sem Noonan e fechou a porta atrás de si. ­ O director­adj unto Noonan voltou ao seu escritório. Terei que interromper esta reunião, meus senhores, e mais tarde contacto­vos individualmente por telefone ­ esclareceu Pearsall.

KrendIer ergueu a cabeça. Pairava no ar um cheiro a política que o alertou.

­ Temos de tomar algumas decisões ­ replicou Sneed.­ Não, não temos.

­ Mas...

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­   Acredita, Bob, que não temos de decidir seja o que for. já volto a falar consigo. E Bob?

­ Sim?

Pearsall agarrou no fio que passava por detrás da gravata de Sneed, puxando­o com força, arrancando botões da camisa de Sneed e despegando­lhe o microfone do corpo. ­ Se voltar a aparecer com uma coisa destas, dou­lhe um pontapé no traseiro.

Nenhum deles olhou para Starling quando saíram, exceptuando KrendIer. Avançando na direcção da porta e arrastando os pés para não ter de usar a vista, serviu­se do enorme pescoço para a enfrentar, como uma hiena se postaria na orla de um rebanho, fixando uma candidata a vítima. Um misto de desejos estampou­se­lhe no rosto. da natureza de KrendIer não se dissociava a apreciação das pernas de Starling e a melhor forma de lhe imobilizar o tendão.

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Capítulo oitoCiência Comportamental é a secção do FBI que trata de casos de assassínios em série. Situado no rés­do­chão do edifício da Academia dispõe de uma atmosfera fresca e tranquila. Nos últimos anos, alguns decoradores tentaram dar mais cor ao espaço subterrâneo. O resultado não foi superior ao dos cosméticos utilizados por agências funerárias.

O gabinete do chefe da secção mantém o castanho torrado original com as cortinas cor de café nas janelas altas. Ali, rodeado dos seus dossiers infernais, Jack Crawford estava sentado a trabalhar à secretária.

Uma pancada na porta e, ao erguer os olhos, Crawford deparou com uma imagem que lhe agradou: Clarice Starling de pé, junto à ombreira da porta.

Crawford sorriu e levantou­se da cadeira. Ele e Starling conversavam muitas vezes, de pé; era uma das tácitas formalidades que tinham imposto na sua relação. Não precisavam trocar um aperto de mão.

­  Ouvi dizer que foi ao hospital ­ disse Starling. ­ Lamento o desencontro.

­ Fiquei contente por lhe terem dado alta tão rapidamente.­ E a sua orelha? Está bem?

­ óptima para quem gosta de couve­flor. Garantem­me que vai desinchar. ­ Tinha a orelha tapada pelo cabelo e não se ofereceu para a mostrar.

Um breve silêncio.

­ Levaram­me a assumir responsabilidades pela rusga, Mister Crawford. Pela morte de Evelda Drumgo, por tudo. Eram como hienas e depois repentinamente tudo parou e escapuliram­se. Algo os afastou.

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­ Talvez tenha um anjo, Starling.

­ Talvez tenha. O que lhe custou, Mister Crawford?

Crawford abanou a cabeça. ­ Feche a porta, por favor, Starling­ pediu, ao mesmo tempo que descobriu um Kleenex amachucado no bolso e se pôs a limpar as lentes. ­ Tê­lo­ia feito, se pudesse. Não era o caso. Se o senador Martin ainda estivesse ao serviço, teria disposto de alguma cobertura... Perderam John Brigham nessa incursão­ desperdiçaram­no pura e simplesmente. Teria sido uma vergonha se a perdessem a si como perderam John. Era como se estivesse a empilhar os vossos corpos num jeep.

As faces de Crawford ruborizaram­se e ela recordou­se da expressão do rosto dele, batida pelo vento agreste, sobre a sepultura de John Brigham. Crawford nunca lhe falara da sua guerra.

­ Fez algo, Mister Crawford.

­ Fiz algo ­ concordou com um aceno de cabeça. ­ Não sei até que ponto ficará satisfeita. É uma incumbência.

Uma incumbência. «Incumbência» era uma palavra positiva no seu léxico particular. Significava uma tarefa específica e imediata e desanuviava a atmosfera. Sempre que era possível evitá­lo, nunca se referiam à complicada burocracia central do Federal Bureau of Investigation. Crawford e Starling assemelhavam­se a missionários médicos, com pouca paciência para teologia, cada um deles concentrando­se no que tinham pela frente, conscientes, sem o dizerem, que Deus não faria uma única coisa divina para os ajudar. Que não se incomodaria a fazer chover para salvar a vida de 50 mil crianças com o vírus de Ebola.

­ De forma indirecta, Starling, o seu benfeitor é o seu recente correspondente.

­ O Doutor Lecter ­ Há muito que se apercebera do desagrado de Crawford quanto a pronunciar o nome.

­ Sim, esse mesmo. Iludiu­nos durante todo este tempo... conseguiu pôr­se a são e salvo... e escreve­lhe uma carta. Porquê? Tinham passado sete anos desde que o Dr. Hannibal Lecter, um famoso assassino de nove pessoas, escapara da prisão em Menfis, tirando mais cinco vidas nesse processo.

Era como se Lecter se tivesse esfumado da superfície da Terra. O caso mantinha­se aberto no FBI e assim permaneceria eternamente, ou até ele ser apanhado. Aplicava­se o mesmo a Termessee e outras jurisdições, mas deixara de existir uma força destacada para o perseguir, embora familiares das suas vítimas tivessem derramado lágrimas de raiva ante a legislatura do estado de Temessee e exigido actuação.

Volumes inteiros de conjecturas eruditas sobre a sua mentalidade encontravam­se disponíveis, a maior parte da autoria de psicólogos,

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que nunca tinham sido confrontados pessoalmente com o Doutor. Surgiram algumas obras escritas por psiquiatras que ele criticara duramente em revistas da especialidade e agora se achavam em segurança para se exporem. Vários afirmavam que as suas aberrações o levariam inevitavelmente ao suicídio e que era provável que já estivesse morto.

Pelo menos no ciberespaço, o interesse pelo Dr. Lecter mantinha­se muito vivo. Do chão da Internet brotavam teorias Lecter como cogumelos e os sites do Doutor rivalizavam em número com os de Elvis. impostores infestavam as «chat­rooms» e no pântano da clandestinidade contrabandeavam­se a coleccionadores de mistérios de horrores fotografias da polícia dos seus ataques de violência. Ocupavam o segundo lugar de popularidade somente ultrapassado pela execução de Fou­Tchou­Li.

Uma pista do Doutor, decorridos sete anos: a sua carta a Clarice Starling quando ela estava a ser crucificada pelos tablóides.

A carta não acusava impressões digitais, mas o FBI possuía uma razoável certeza de que era genuína. Clarice Starling tinha a certeza absoluta.

­ Por que é que ele o fez, Starling?­ inquiriu Crawford, quase parecendo irritado com ela. ­ Nunca dei a entender que o compreendia melhor do que esses estúpidos psiquiatras. Explique­me.

­ Ele pensou que o que me aconteceu... destruiria, me desiludiria quanto ao Bureau e ele gosta de assistir à destruição da fé, é do que mais gosta. Assemelha­se aos desmoronamentos de igrejas que costumava coleccionar. Adorou a pilha de destroços em Itália quando a fachada da igreja caiu sobre todas as avós naquela missa especial e alguém espetou uma árvore de Natal no cimo da pilha. Eu divirto­o, brinca comigo. Quando o entrevistei, deu­lhe imenso gozo apontar falhas na minha educação, acha­me muito ingénua.

Crawford era porta­voz da sua própria idade e solidão ao sugerir. ­ Já alguma vez pensou que ele pudesse gostar de si, Starling?­ Acho que o divirto. As coisas ou o divertem ou não. Se não...­ Alguma vez sentiu que ele gostava de si? ­ perguntou Crawford, insistindo na distinção entre pensar e sentir, tal como um Baptista insiste no baptismo por imersão total.

­ Durante o nosso breve conhecimento, disse­me várias coisas sobre mim que eram verdadeiras. Penso que é fácil confundir compreensão com empatia ­ desejamos tanto a empatia. Talvez aprender a fazer essa distinção faça parte do crescimento. É difícil e horrível saber que alguém pode compreender­nos sem mesmo gostar de nós. Quando se encara a compreensão meramente usada como o instrumento de um predador, é o pior. Não... não faço ideia do que o Doutor Lecter sente a meu respeito.

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­ Que tipo de coisas lhe disse, se é que não se importa de se abrir?­ Disse­me que eu era uma provinciana ambiciosa e desenvolta e os meus olhos brilhavam como pedras zodiacais baratas. Disse­me  que usava sapatos baratos, mas tinha gosto, um pouco de gosto.­ Achou que era verdade?

­ Sim. Talvez ainda seja. Comprei sapatos de melhor qualidade.­ Acha, Starling, que ele pudesse estar interessado em verificar se o denunciaria, caso lhe mandasse uma carta de encorajamento?­ Sabia que o denunciaria, faria melhor em sabê­lo.

­ Ele matou seis, depois do tribunal o condenar ­ replicou Crawford. ­ Matou Miggs na instituição psiquiátrica por lhe atirar sémen para o rosto e mais cinco, quando fugiu. Na actual situação política, se o Doutor for apanhado, receberá uma injecção letal ­ redarguiu Crawford, com um sorriso ante a ideia.

Crawford fora o pioneiro do estudo de serial killers. Agora estava sob reforma compulsiva e o monstro que mais o desafiara, continuava em liberdade. A perspectiva de morte para o Dr. Lecter agradava­lhe enormemente.

Starling sabia que Crawford tinha mencionado a atitude de Migg para lhe fulcrar a atenção, para a fazer remontar aqueles dias horríveis em que tentava interrogar Hannibal, o Canibal no subterrâneo do Hospital Estadual para os Criminosamente Insanos de Baltimore. Na época em que Lecter se divertia com ela, enquanto uma jovem se agachava na cova de Jame Gunib, à espera de morrer. Crawford tinha por hábito agudizar a atenção quando se aproximava do âmago da questão, como era agora o caso.

­ Sabia, Starling, que uma das primeiras vítimas do Doutor Lecter ainda está viva?

­ O tal que era rico. A família ofereceu uma recompensa.­ Exacto. Mason Verger. Encontra­se num respirador, em Maryland. O pai morreu este ano e deixou­lhe a fortuna de acondicionamento de carnes. O velho Verger deixou igualmente a Mason um congressista e um membro do Comité de Supervisão Judiciária que não conseguiam equilibrar o orçamento sem ele. Mason afirma que está de posse de algo que pode ajudar­nos a encontrar o Doutor. Quer falar consigo.

­ Comigo!

­ Consigo. É o que Mason pretende e, de súbito, todos acham que é, de facto, uma boa ideia.

É o que Mason pretende depois de lho ter sugerido?

Iam expulsá­la, Starling, livrar­se de si como se fosse um esfregão. Seria desperdiçada, tal como John Brigham Apenas para salvar a pele de alguns burocratas do BATF Medo. Pressão. É a linguagem que entendem. Mandei alguém meter uma moeda para falar com

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Mason e informá­lo de até que ponto a caçada a Lecter ficaria prejudicada, se você fosse dentro. O que aconteceu em seguida, a quem quer que Mason possa ter telefonado depois, nem quero saber, provavelmente ao deputado VolImer.

Há um ano, Crawford não teria feito esta jogada. Starling perscrutou­lhe o rosto em busca de qualquer ataque de loucura temporária que muitas vezes ataca os reformados iminentes. Não conseguiu detectá­la, mas ele parecia cansado.

­ Mason não é bonito, Starling, e não me refiro somente aos traços físicos. Descubra o que tem em seu poder. Traga­me o que quer que seja e iremos trabalhá­lo aqui. Finalmente.

Starling sabia que há anos, desde que se formara pela Academia do FBI, que Crawford tentava destacá­la para a Ciência Comportamental.

Agora que era uma veterana do Bureau, veterana de muitas missões secundárias, apercebia­se que o seu primeiro triunfo na captura do serial híller Jame Gumb, fazia parte da sua ruína no Bureau. Era uma estrela em ascensão que emperrara na subida. No processo de apanhar Gumb, arranjara pelo menos um inimigo poderoso e provocara a inveja de uma série de colegas.

Tudo isso e uma certa dose de irritabilidade levara a anos de brigadas de assalto e de brigadas encarregues de assaltos a bancos, anos de mandados de captura, a ver Newark por um canudo. Por fim, rotulada de demasiado irascível para trabalhar em equipa, era uma agente técnica, que colocava sob escuta telefones e carros de gangster e pedófilos, ou fazia vigias solitárias de transmissões. E podia ser requisitada sempre que uma agência do Bureau precisava de uma pessoa de confiança numa rusga. Era robusta, rápida e cuidadosa no manejo de armas.

Crawford. apercebeu­se que ela tinha aqui a sua oportunidade. Presupôs que ela sempre quisera caçar Lecter. A verdade não era assim tão simples.

Nesse momento Crawford perscrutava­a. ­ Nunca chegou a apagar os vestígios de pólvora do rosto.

Grãos de pólvora seca do revólver do falecido Jame Gurrib marcavam­lhe a face com um sinal preto.

­ Nunca tive tempo ­ arguiu Starling.

­ Sabe o que os franceses chamam a um sinal de beleza, um Mouche como esse, na face? Conhece o significado? ­ inquiriu Crawford, que era dono de uma biblioteca considerável sobre tatuagens, simbologia corporal e mutilação ritual.

Starling sacudiu a cabeça.

­ Chamam­lhe «coragem» ­ prosseguiu Crawford. ­ Pode usá­lo. Eu mantinha­o, se estivesse no seu lugar.

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Capítulo noveMuskrat Farrn, a mansão da família Verger, junto ao rio Susquehanna, a norte de Maryland possui uma beleza mágica. A dinastia Verger, de acondicionadores de carne, comprou­a na década de30, quando se mudaram da parte oriental de Chicago para ficarem mais perto de Washington e bem podiam dar­se a esse luxo. Os negócios aliados à perspicácia política tinham permitido aos Vergers firmarem vantajosos contratos de carne com o Exército Americano desde a Guerra Civil.

O escândalo da «carne embalsamada» durante a Guerra Hispano­Americana quase não afectou os Vergers. Quando Upton Sinclair e os funcionários de casos de corrupção investigaram condições perigosas de acondicionamento de carne em algumas fábricas, concluíram que alguns empregados haviam sido inadvertidamente transformados em banha, enlatados e vendidos como Durharns Pure Leaf Lard, uma banha da preferência dos padeiros. A culpa não foi imputada aos Vergers. O assunto não lhes custou um único contrato com o governo.

Os Vergers furtaram­se a estas complicações políticas e muitas outras, dando dinheiro aos políticos, tendo sofrido como único contratempo a aprovação da Lei da Inspecção da Carne de 1906.

Hoje em dia, os Vergers abatem 86 mil cabeças de gado por dia e cerca de 36 mil porcos, um número que varia ligeiramente com a estação do ano.

Os relvados recentemente aparados de Muskrat Farm, a profusão dos seus lilazes ao vento, não cheiram de forma alguma a matadouro. Os únicos animais são póneis para as crianças que visitam o local e simpáticos bandos de gansos, pastando nos relvados, abanando as caudas e de cabeças enfiadas na relva. Não há cães. A casa, o celeiro e os terrenos encontram­se próximo do centro de seis quilómetros

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de floresta nacional e ali se manterão eternamente a coberto de uma isenção especial concedido pelo Ministério do Interior.

À semelhança de muitos enclaves dos abastados, Muski­­­at Farm não é muito fácil de encontrar numa primeira vez. Clarice Starling tomou por uma saída mais à frente na auto­estrada. Regressando pela estrada nacional, encontrou primeiro a entrada de serviço, um portão enorme com uma corrente e cadeado na elevada vedação que cercava a floresta. Para lá do portão, um atalho perdia­se ao longo das árvores arqueadas. Não havia cabine telefónica. Quatro quilómetros mais à frente, descobriu a casa do guarda, recuada a uns 100 metros num elegante acesso. O guarda uniformizado tinha o nome num cartão.

Mais quatro quilómetros de uma estrada cuidada levaram­na até à herdade.

Starling parou o retumbante Mustang para dar passagem a um bando de gansos. Avistou uma fila de crianças montadas em encorpados póneis Shetland, saindo de um bonito celeiro, a uns quatrocentos metros da casa. O edifício principal que tinha diante dos olhos era uma mansão de estilo Stanford­White graciosamente construída entre montes baixos. O lugar parecia sólido e fecundo, nascente de sonhos agradáveis. Starling sentiu­se atraída.

Os Vergers; tinham tido a sensatez de deixar a casa como estava, à excepção de um único acréscimo que Starling ainda não podia divisar, uma ala moderna que desponta da elevação a oriente, semelhante a um limbo extra ligado a uma grotesca experiência médica.

Starling estacionou sob o alpendre central. Quando desligou o motor, conseguia ouvir o som da própria respiração. Ao olhar pelo retrovisor, avistou alguém que se aproximava a cavalo. Agora, os cascos ecoavam no pavimento ao lado do carro, quando Starling saiu.

Uma pessoa de ombros largos e cabelo louro cortado curto virou­se na sela e estendeu as rédeas a um criado, sem o olhar, ­ Leva­o de volta ­ ordenou num tom profundo e gutural.

­ Sou Margot Verger, ­ Ante uma análise mais atenta, revelou­se uma mulher que estendia a mão, com o braço bem esticado. Margot Verger defendia, indubitavelmente, o culto do corpo.

A malha da T­shirt ressaltava sob o pescoço musculado, e os ombros e braços robustos. Os olhos emitiam um brilho seco e pareciam irritados, como alguém que não sabe chorar. Vestia calções de montar de sarja e calçava botas sem esporas.

. ­ Que carro vem a conduzir? ­ perguntou. ­ Um Mustang antigo?

­ De 88.

­ Cinco litros? Do tipo do que assenta em cima dos pneus?­ sin,. é um mustang Roush.

­ Agrada­lhe?

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­ Muito.

­ Quanto dá?

­ Não sei. O suficiente, acho.­ Tem medo dele?

­ Respeito­o. Diria que o uso com respeito ­ replicou Starling.­ já o conhecia ou comprou­o por comprar?

­ Conhecia o suficiente para o comprar num leilão quando vi o que era. Aprendi mais sobre ele depois.

­ Acha que venceria o meu Porsche?

­ Depende do Porsche. Preciso falar com o seu irmão, Miss Verger.­ Demorarão cerca de cinco minutos a prepará­lo. Podemos começar a dirigir­nos para lá. ­ Os calções de montar de sarja roçavam nas fartas coxas de Margot Verger, enquanto ela subia as escadas. O cabelo louro­palha caíra o suficiente nas têmporas para levar Starling a interrogar­se sobre se ela tomava esteróides e tivera de atar o clítoris.

Aos olhos de Starling, que passou a maior parte da infância num orfanato Luterano, a casa assemelhava­se a um museu, com todos aqueles vastos espaços e vigas pintadas sobre a sua cabeça, e ainda as paredes exibindo retratos de gente morta de ar imponente. Os patamares eram forrados de esmalte cloasonado e os corredores cobertos de enormes tapetes marroquinos.

Verifica­se uma brusca quebra de estilo na ala nova da mansão Verger. Impera a moderna estrutura funcional mediante portas duplas de vidro trabalhado e incongruentes no corredor abobadado.

Margot Verger fez uma pausa do lado de fora das portas. Fitou Starling com o seu olhar aquoso e enraivecido.

­ Algumas pessoas têm dificuldade em falar com Mason ­ declarou. ­ Se se sentir incomodada ou não for capaz de aguentar, posso informá­la mais tarde sobre o que se tiver esquecido de lhe perguntar.

Há uma emoção comum que todos reconhecemos e a que ainda não conseguimos dar um nome: a feliz antecipação de ser capaz de sentir desprezo. Starling detectou­a no rosto de Margot Verger. Starling limitou­se a um: ­ Obrigada.

Starling verificou, surpreendida, que a primeira divisão da ala era uma enorme e bem equipada sala de diversões. Duas crianças afro­americanas brincavam no meio de enormes animais de peluche, uma delas montada numa grande roda e a outra puxando um camião pelo chão. Aos cantos havia uma série de triciclos e vagonetes e no centro aparelhos de ginástica com o chão almofadado por baixo.

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Num dos cantos da sala, um homem alto fardado de enfermeiro estava sentado num sofá a ler a Vogue. Havia câmaras de vídeo montadas nas paredes, umas mais altas e outras à altura dos olhos.

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Uma das que se encontrava no alto, a um canto, detectou Starling e Margot Verger e logo a lente rodou para posição de focagem.

Starling já não se deixava afectar pela visão de uma criança de cor, mas tomou perfeita consciência destas crianças. Era agradável ver como brincavam alegremente, quando atravessou a sala acompanhada por Margot Verger.

­ Mason gosta de observar as crianças ­ informou Margot Verger. ­ Elas assustam­se ao vê­lo, excepto os mais pequenos, por isso adopta este processo. Depois vão montar os póneis. São crianças que frequentam instituições de beneficência de Baltimore durante o dia.

O acesso ao quarto de Mason Verger apenas se faz através da sua casa de banho, uma instalação digna de uma estância, a toda a largura da ala. Tem um aspecto institucional, toda em aço cromado e alcatifada, com duches de portas largas, banheiras de aço inoxidável e aparelhos de elevação, tubos laranja de duche espiralados, sauna e amplos armários de unguentos da farmácia de Santa Maria Novella, em Florença. O ar na casa de banho ainda estava cheio de vapor devido a uso recente e pairavam os aromas a bálsamo e óleo de gualtéria.

Starling avistava luz por baixo da porta do quarto de Mason Verger. Apagou­se, mal a irmã tocou na maçaneta.

Uma área de convívio a um canto do quarto de Mason Verger recebia uma forte iluminação do tecto. Por cima do sofá estava pendurada uma gravura de The Ancient of Days de William Blake ­ Deus medindo com os seus compassos. O quadro apresentava uma fita negra em honra do recente falecimento do patriarca Verger. O resto da divisão encontrava­se às escuras.

Do escuro chegava­lhe o som de uma máquina a funcionar ritmicamente, suspirando a cada pancada.

­ Boa tarde, agente Starling. ­ Uma voz ressonante, amplificada mecanicamente, com o princípio fricativo da palavra «tarde» engolido.­ Boa tarde, Mister Verger ­ replicou Starling no escuro, com a luz intensa sobre a cabeça. A tarde ficava num outro lugar. A tarde não entrava aqui.

­ Sente­se.

«Vou ter de fazer isto. É bom. É necessárío».

­ A nossa troca de palavras, Mister Verger, terá forma de depoimento e precisarei de gravar. Tudo bem para si?

­ Seguramente. ­ A voz ouvia­se por entre os sopros da máquina, com a sibilante «s» retirada da palavra. ­ Acho que podes deixar­nos, Margot.

Margot Verger saiu com um roçar dos calções de montar, sem um olhar para Starling.

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­ Mister Verger, gostaria de prender este microfone à sua roupa ou à sua almofada, se não se importar, ou também posso chamar uma enfermeira, caso prefira.

­ Faz favor ­ redarguiu, sem pronunciar os «f». Ficou a aguardar que o sopro seguinte da máquina lhe desse forças. ­ Pode fazê­lo, agente Starling. Estou mesmo aqui.

Starling não conseguiu encontrar quaisquer interruptores de imediato. Concluiu que veria melhor com a própria vista e aventurou­se pelo escuro, colocando uma mão na frente, na direcção do odor a gualtéria e bálsamo.

Quando ele acendeu a luz, estava mais próximo da cama do que julgava.

A expressão de Starling permaneceu imutável. A mão que segurava o microfone de lapela recuou um pouco, talvez uns dois centímetros e meio.

O seu primeiro pensamento formulou­se em separado do que lhe ia no peito e no estômago; foi a conscencialização de que as anomalias da fala resultavam da ausência total de lábios. O segundo pensamento foi a verificação de que ele não era cego. O seu único olho azul fitava­a através de uma espécie de monóculo com um tubo preso que mantinha o olho humedecido, pois faltava­lhe uma pálpebra. Quanto ao resto, há anos que os cirurgiões tinham feito o que podiam a esticar a pele com enxertos por cima dos ossos.

Mason Verger, sem nariz nem lábios, sem tecido mole a cobrir­lhe o rosto era todo dentes, semelhante a uma criatura das profundezas dos oceanos. Dado estarmos habituados a máscaras, o choque de uma tal visão protela­se. O choque instala­se com a percepção de que existe um rosto humano com uma mente por detrás. Fica­se siderado com o movimento do mesmo, a articulação do maxilar, a procura com aquele olho. A procura do nosso rosto normal.

O cabelo de Mason Verger é bonito e, estranhamente, o mais difícil de contemplar. Preto salpicado de cinzento, encontra­se apanhado num rabo de cavalo com tamanho suficiente para chegar ao chão, se for puxado para trás da almofada. Hoje, o cabelo apanhado está preso num grande rolo no peito por cima do respirador em forma de concha de tartaruga. Cabelo humano por baixo dos destroços, uma trança brilhando como escamas amontoadas.

Sob os lençóis, o corpo há muito paralizado de Mason Verger, reduzido a nada na cama de hospital elevada.

Diante do rosto estava o comando que se assemelhava a flautas de Pá ou uma harmónica de plástico. Enrolou a língua como um tubo em redor da boca de um tubo e exalou com o sopro seguinte do respirador. A cama reagiu com um sussurro, virou­o um pouco para ficar de frente para Starling e aumentou a elevação da cabeça.

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­ Agradeço a Deus o que aconteceu ­ disse Verger. ­ Foi a minha salvação. Acredita em Jesus, Miss Starling? Tem fé?

­ Fui criada num ambiente muito religioso, Mister Verger. Tenho o que quer que nos resta nesse caso ­ respondeu Starling. Agora, se não se importa, vou prender­lhe isto à sua almofada. Não o incomoda aqui, pois não? ­ A voz saiu­lhe num tom mais acelerado e protector do que pretendia.

A mão dela junto à sua cabeça, a visão daquelas duas carnes juntas, não ajudava Starling, nem tão pouco a pulsação dele nos vasos esticados sobre os ossos da face para lhe fornecer sangue, a dilatação dos mesmos assemelhava­se a vermes engolindo.

Ajeitou o microfone e recuou até junto da mesa, do seu gravador e do microfone separado.

­ Fala a agente especial Clarice Starling, do FBI, número 5143690, recolhendo o depoimento de Mason R.Verger, número de Segurança Social 475989823, em casa dele, na data acima indicada, sob juramento e autenticada. Mister Verger está a par que lhe foi concedida imunidade de acusação pelo promotor público do distrito 36 e pelas autoridades locais num memorando junto, sob juramento e autenticado.

­  Agora, Mister Verger...

­ Quero falar­lhe do acampamento ­ interrompeu com o sopro seguinte. ­ Foi uma maravilhosa experiência de infância que revivi na essência.

­ Podemos chegar lá, Mister Verger, mas julguei que...

­ Olhe! Podemos chegar lá agora, Miss Starling. Tudo se resume a dar à luz, sabe? Foi como conheci Jesus e nunca lhe direi nada mais importante. ­ Fez uma pausa para que a máquina deixasse sair o ar.­ Era um acampamento cristão que o meu pai pagou. Pagou tudo, todos os cento e vinte e cinco campistas junto ao lago Michigan. Alguns deles eram uns infelizes e fariam tudo por uma barra de chocolate. Talvez me tivesse aproveitado, talvez os tratasse com dureza quando não aceitavam o chocolate e não faziam o que eu queria... Não estou a esconder nada, porque agora está tudo certo.

­ Mister Verger, examinemos algum material com o mesmo... Ele não a ouvia e esperava apenas que a maquina lhe desse fôlego.

­  Tenho imunidade, Miss Starling, e está tudo certo, agora. Tenho uma concessão de imunidade de Jesus. Tenho imunidade do promotor público dos EUA, tenho imunidade do promotor público de Owing Mills, aleluia! Estou livre, Miss Starling, e está tudo certo. Estou bem com Ele e está tudo certo. Ele é Jesus Ressuscitado e no acampamento chamávamos­lhe O Ressuscitado. Ninguém o vence. Tornámo­lo actual, sabe? Servi­o em África, aleluia, servi­o, em Chicago,

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louvo o Seu nome e sirvo­O agora e Ele erguer­me­á desta cama e Ele esmagará os meus inimigos, afugentá­los­á na minha frente e ouvirei os lamentos das mulheres deles e tudo está certo, agora.

Engasgou­se com a saliva e parou, com os vasos sanguíneos na frente da cabeça escuros e pulsando.

Starling levantou­se para ir chamar uma enfermeira, mas a voz dele deteve­a antes que chegasse à porta:

­ Estou bem. Está tudo bem, agora.

Talvez uma pergunta directa fosse preferível a tentar conduzi­lo.­ Mister Verger, alguma vez tinha visto o Doutor Lecter, antes do tribunal o designar para fazer terapia com ele? Conhecia­o socialmente?

­ Não.

­ Ambos faziam parte da administração da Filarmónica de Baltimore.

­ Não, o meu lugar devia­se apenas a contribuirmos. Mandava o meu advogado, quando havia votação.

­ Nunca prestou declarações durante o julgamento do Doutor Lecter. ­ Começava a aprender a intervalar as perguntas, dando­lhe o fôlego necessário para responder.

­ Afirmaram que tinham o suficiente para o condenar seis vezes, nove vezes. E ele venceu isso tudo com uma alegação de insanidade.

­ O tribunal considerou­o louco. O Doutor Lecter não alegou.­ Acha que essa distinção é importante? ­ inquiriu Mason. A pergunta fez com que lhe sentisse a mente pela primeira vez,

preênsil e muito diversa do vocabulário com que se lhe dirigia. A grande moreia, agora habituada à luz, saiu das rochas do seu aquário e iniciou o incansável círculo, semelhante a uma fita castanha ondulada e salpicada de um bonito padrão de manchas cremes irregulares.

Starling até dela tomou consciência, recortada no seu olhar de relance.

­ É uma Muraena Kidaho ­ explicou Mason. ­ Há uma ainda maior, cativa em Tóquio. Esta é a segunda maior que existe, Chama­se­lhe vulgarmente a Moreia­Brutal. Gostaria de ver porquê?

­ Não ­ recusou Starling, virando uma página dos apontamentos. ­ Portanto, Mister Verger, no decorrer da terapia ordenada pelo tribunal, convidou o Doutor Lecter para ir a sua casa.

­ já não me sinto envergonhado. Conto­lhe o que quer que seja. Está tudo certo, agora. Livrava­me dessas 

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acusações de assédio, se fizesse quinhentas horas de serviço cívico, trabalhasse no canil público e recebesse terapia do Doutor Lecter. Achei que se conseguisse envolver o Doutor Lecter em alguma coisa, ele teria de reduzir­me a

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terapia e não violaria a minha liberdade condicional se faltasse ou aparecesse um pouco pedrado nas entrevistas.

­ Foi nessa altura que teve a casa em Owings Mills.

­ Sim. Tinha contado tudo ao Doutor Lecter, sobre África e tudo o mais e prometido que lhe mostraria algum do meu material.

­  Que lhe mostraria?...

­ Acessórios. Brinquedos. Ali naquele canto está a pequena guilhotina portátil que usei para Idi Amin. Pode atirar­se para a retaguarda de um jeep e partir até qualquer lado, a aldeia mais remota. Monta­se em quinze minutos. O condenado leva cerca de dez minutos a içá­la com um molinete, um pouco mais caso se trate de uma mulher ou de uma criança. Não me envergonho de nenhuma destas coisas, porque estou absolvido.

­ O Doutor Lecter foi a sua casa.

­ Sim. Fui atender a porta vestido com algumas peças de cabedal. Esperava qualquer reacção, mas enganei­me. Preocupava­me que tivesse medo de mim, mas não me pareceu o caso. Medo de mim... É engraçado, à distância. Convidei­o a subir ao andar de cima. Mostrei­lhe que adoptara alguns cães do canil, dois cães que eram amigos e os mantinha juntos numa jaula com muita água fresca, mas sem comida. Tinha curiosidade em saber o que eventualmente aconteceria. Mostrei­lhe o meu nó corredio, sabe, asfixia auto­erótica do género de nos enforcarmos mas não a sério, é bom enquanto se... entende?

­ Entendo.

­ Bom. Aparentemente, ele não me entendeu. Perguntou­me como funcionava e respondi­lhe que estranho psiquiatra ele era que não sabia uma coisa daquelas e ele disse, e nunca esquecerei o seu sorriso, ele disse: «Mostre­me». Pensei: Apanhei­te.

­ E mostrou­lhe.

­ Não me envergonho disso. Crescemos com os nossos erros. Estou absolvido.

­ Prossiga, por favor, Mister Verger,

­ Puxei, pois, o nó em frente do meu espelho de corpo inteiro, coloquei­o, segurei o desarme com uma das mãos, enquanto batia uma com a outra esperando a sua reacção, que não se verificou. Por regra, costumo ler as pessoas. Ele estava sentado numa cadeira, a um canto do quarto. Mantinha as pernas cruzadas e os dedos a tapar os joelhos. Depois, levantou­se e meteu a mão no bolso do casaco, muito elegante, qual James Mason a procurar o isqueiro e perguntou: «Quer uma pastilha de amilo?. Uau», pensei. «Se me dá uma agora, terá de me dar sempre para não perder a licença». Bom, se leu o relatório, sabe que era muito mais do que nitrato de amilo.

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­ Pó de Anjo com algumas outras metanfetaminas e ácido redarguiu Starling.

­ Ele dirigiu­se ao espelho onde me mirava, deu um pontapé na parte inferior e arrancou um caco. Eu estava nas nuvens. Aproximou­se, entregou­me o pedaço de vidro, fitou­me nos olhos e sugeriu que pudesse agradar­me descascar o rosto com ele. Soltou os cães, Dei­lhes a minha cara a comer. Dizem que demorou muito tempo a tirar aquilo tudo. Não me lembro. O Doutor Lecter quebrou­me o pescoço com o nó. Recuperaram o meu nariz quando fizeram uma lavagem ao estômago dos cães no canil, mas o enxerto não pegou.

Starling levou mais tempo do que o necessário a reordenar os papéis em cima da mesa.

­ Mister Verger, a sua família ofereceu uma recompensa depois do Doutor Lecter ter fugido da prisão, em Memphis.

­ Sim, um milhão de dólares. Um milhão. Anunciámos por todo o mundo.

­ E também se propuseram pagar qualquer tipo de informação relevante e não só a vulgar detenção e condenação. Era suposto partilharem essa informação connosco. Sempre o fizeram?

­ Não propriamente, mas nunca houve nada que valesse a pena partilhar.

­ Como o sabe? Seguiram algumas pistas por conta própria?­ O suficiente para saber que não prestavam. E por que não havíamos de o fazer... vocês nunca nos disseram nada. Tivemos uma dica de Creta que deu em nada e outra do Uruguai que nunca conseguimos confirmar. Quero que compreenda que não se trata de uma vingança, Miss Starling. Perdoei ao Doutor Lecter, tal como o Nosso Salvador perdoou aos soldados romanos.

­ informou o meu gabinete, Mister Verger, que agora talvez tivesse algo.

­ Procure na gaveta da mesa do fundo.

Starling tirou da bolsa as luvas brancas de algodão e calçou­as. Na gaveta havia um grande envelope lilás. Era duro e pesado. Retirou do interior uma radiografia e examinou­a à forte luz do tecto. A radiografia mostrava uma mão esquerda que parecia estar magoada. Contou os dedos. Quatro mais o polegar.

­ Veja os metacarpos. Sabe ao que estou a referir­me?­ Sei.

­ Conte os nós dos dedos.

Cinco nós dos dedos. ­ Contando com o polegar, esta pessoa tinha seis dedos na mão esquerda. Como o Doutor Lecter.

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­ Como o Doutor Lecter.

O canto onde deveria constar o número do dossier e origem da radiografia fora arrancado.

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­ De onde veio isto, Mister Verger?

­ Do Rio de janeiro. Para descobrir mais, tenho de pagar. Muito dinheiro. Pode dizer­me se é a mão do Doutor Lecter? Preciso saber se devo pagar.

­ Tentarei, Mister Verger. Faremos o melhor que pudermos. Tem a embalagem em que recebeu a radiografia?

­ Margot guardou­a num saco de plástico e dar­lha­á. Se não se importa, Miss Starling, estou bastante cansado e preciso de alguns cuidados.

­ Terá notícias do meu gabinete, Mister Verger.

Starling ainda não saíra há muito do quarto quando Mason Verger fez soar o tubo mais afastado e chamou: ­ Cordell? ­ O enfermeiro que se encontrava na sala de diversões entrou e pôs­se a ler­lhe de um dossier assinalado com Departamento da Assistência Social infantil, cidade de Baltimore.

­ Franklín, é isso? Manda entrar o Franklin ­ ordenou Mason e apagou a luz da cama.

O miúdo estava de pé, sozinho, sob a forte luz do tecto da área de convívio, piscando os olhos no escuro arquejante.

Ouviu­se a voz ressoante: ­ És o Franklín?­ Franklim ­ disse o miúdo.

­ Onde vives, Franklin?

­ Com a Mamã, Shirley e Stringbean.­ Stringbean passa o tempo todo lá?­ Entra e sai.

­ Disseste: «Entra e sai»?­ Sim.

A Mamã não é a tua verdadeira mamã, pois não, Franklin? É a minha mãe adoptiva.

Não é a primeira mãe adoptiva que tiveste, pois não? Não.

Gostas das coisas na tua casa, Franklin?

Temos o Kítty Cat. A Mamã faz empadas no fogão. Há quanto tempo estás lá, na casa da Mamã?

Não sei.

Tiveste alguma festa de anos lá?

­ Uma vez tive. A Shirley fez Kool­Aid.­ Gostas de Kool­Aíd?

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­ De morango.

­ Gostas da Mamã e da Shirley?­ Gosto, hum hum, e da Kitty Cat.

­ Queres viver lá? Sentes­te seguro quando vais para a cama?

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Hum, hum. Durmo no quarto com a Shirley e uma rapariga crescida.

­ Não podes continuar a viver lá com a Mamã, Shirley e Kitty Cat, Franklin. Tens de te ir embora.

­ Quem diz?

­ O governo. A Mamã perdeu o emprego e a aprovação de lar de adopção. A polícia encontrou um cigarro de marijuana na vossa casa. Depois desta semana, não poderás ver mais a Mamã. Não podes ver mais a Shirley ou Kitty Cat depois desta semana.

­ Não! ­ opôs­se Franklin.

­ Ou talvez, eles já não te queiram, Franklín. Há alguma coisa de errado contigo? Tens alguma ferida ou algo de repugnante? Achas que a tua pele é escura de mais para que eles possam amar­te?

Franklim levantou a camisa e olhou para o pequeno estômago castanho. Abanou a cabeça. Estava a chorar.

Sabes o que acontecerá à Kítty Cat? Qual é o nome da Kitty Cat? É mesmo Kítty Cat. É o nome dela.

Sabes o que acontecerá à Kitty Cat? Os polícias vão levá­la para o depósito municipal e dão­lhe uma injecção. já apanhaste uma injecção no centro de dia? A enfermeira deu­te alguma injecção? Com uma agulha brilhante? Darao uma injecção à Kítty Cat. Ficará cheia de medo quando vir a agulha. Vão enfiar­lha e Kítty Cat terá muitas dores e morrerá.

Franklin agarrou na fralda da camisa e levantou­a à altura da cara. Meteu o polegar na boca, algo que não acontecia há um ano, desde que a mamã lhe pedira para não o fazer.

­ Vem cá ­ chamou a voz do escuro. ­ Vem cá e digo­te como podes evitar que a Kitty Cat leve uma injecção. Queres que a Kitty Cat leve uma injecção, Franklin? Não? Então, vem cá, Franklín.

Franklin, com as lágrimas a correrem e chupando o polegar, avançou devagar no escuro. Quando se encontrava a uns quinze centímetros da cama, Mason soprou a harmónica e as luzes acenderam­se.

Devido a uma coragem nata, ou ao desejo de ajudar Kitty Cat ou à triste consciência de que já não tinha um lugar para onde fugir, Franklin não pestanejou. Manteve­se imóvel de olhos fixos no rosto de Mason.

A testa de Mason ter­se­ia enrugado, caso ele tivesse testa. Ante este resultado desanimador.

­ Podes salvar a Kítty Cat de levar uma injecção, se tu próprio lhe deres veneno de rato ­ explicou Mason. ­ A consoante explosiva «p» perdeu­se, mas Franklim entendeu.

Franklim tirou o polegar da boca.

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1 Gatinha. (N. da T)

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­ És velho e mau ­ acusou Franklim. ­ E feio também. ­

Deu meia volta e saiu do quarto, atravessando pelo meio dos tubos enrolados, de volta à sala de diversões.

Mason observou­o pela câmara de vídeo.

o enfermeiro fitou o rapaz, observando­o atentamente enquanto fingia ler a sua Vogue.

Franklim, já não ligou aos brinquedos. Foi sentar­se debaixo da girafa, virado para a parede. Era o que podia  fazer para não chupar o polegar.

Cordell examinava­o cuidadosamente, atento às lágrimas. Quando detectou os ombros da criança sacudidos  pelo choro, o enfermeiro aproximou­se dele e limpou­lhe as lágrimas suavemente com amostras de tecido  esterilizadas. Colocou as amostras molhadas dentro do copo de Martíni de Mason, a gelar no frigorífico da sala  de diversões, ao lado do sumo de laranja e das Coca­Colas,

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Capítulo dezDescobrir informações médicas sobre o Dr. Hannibal Lecter não era tarefa fácil. Tomando em consideração o  seu profundo desprezo pelo establishment médico e a maior parte dos médicos em exercício, é natural que  nunca tivesse tido um médico particular.

O Hospital Estadual para os Criminalmente Insanos de Baltimore, onde o Dr. Lecter ficou detido até à sua  desastrosa transferência para Memphis estava agora extinto, um edifício em ruínas à espera de ser demolido.

A Polícia Estadual de Témessee tinham sido os últimos guardas do Dr. Lecter antes da fuga dele, mas  declararam que nunca tinham recebido o seu ficheiro clínico. Os agentes que o tinham trazido de Baltimore  para Memphis, agora falecidos, haviam acusado a recepção do preso e não de qualquer dossier clínico.

Starling passou um dia ao telefone e no computador e depois revistou as salas de armazenamento de provas em Quantico e o Edifício J. Edgar Hoover. Passou uma manhã inteira a subir e descer escadas na poeirenta,  enorme e malcheirosa sala de provas do Departamento de Polícia de Baltimore e viveu uma tarde de loucos às  voltas com a colecção não catalogada Hannibal Lecter na Fitzhugh Memorial Law Library, onde o tempo pára  enquanto os zeladores tentam encontrar as chaves.

Por fim, restou­lhe uma única folha de papel ­ o exame físico norrrial a que o Dr. Lecter se submeteu quando foi  preso pela primeira vez pela Polícia Estadual de Maryland. Não havia qualquer dossier clínico.

Inelle Corey sobrevivera à extinção do Hospital Estadual para os Criminalmente Insanos de Baltimore e fizera  uma mudança positiva para o conselho de administração dos Hospitais de Maryland. Não quis ser entrevistada  por Starling no gabinete e avistaram­se, portanto, numa cafetaria do rés­do­chão.

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Starling tinha por hábito chegar cedo às entrevistas e observar

o ponto de encontro específico à distância. Corey chegou exactamente à hora marcada. Andava pelos 35 anos, era robusta  e pálida e não usava maquilhagem nem jóias. O cabelo chegava­lhe quase à cintura e calçava sandálias brancas de tiras.

Starling retirou pacotes de açúcar do expositor dos condimentos e observou Corey que se sentava à mesa combinada.

Está errado quem pensa que todos os protestantes parecem iguais. Não é assim. Tal como uma pessoa das Caraíbas consegue frequentemente indicar a ilha específica de uma outra, Starling, criada pelos luteranos, olhou para esta mulher e disse de si para si: Igreja de Deus, talvez Nazarena.

Starling tirou as jóias, uma pulseira simples e um brinco de ouro na orelha boa e meteu­os na mala. O relógio era de plástico, portanto não havia novidade. Não podia fazer muito mais quanto ao restante aspecto.

­ inelle Corey? Quer café? ­ perguntou Starling, que trazia duas chávenas na mão.

­ Pronuncia­se «Eyenelle». Não bebo café.

­ Bebo os dois. Deseja outra coisa qualquer? Sou Clarice Starling.

­  Não quero nada. Quer mostrar­me a sua identificação com fotografia?

­ Claro ­ anuiu Starling. ­ Miss Corey.. posso tratá­la por Inelle?

A mulher encolheu os ombros.

­ Inelle, preciso de ajuda num assunto que, de facto, não tem nada a ver pessoalmente consigo. Preciso de orientação a fim de encontrar uns dossiers do Hospital Estadual de Baltimore.

Inelle Corey fala com uma precisão exagerada quando está em causa expressar dignidade ou irritação.

­ Analisámos tudo isto com a administração na altura do encerramento, Miss...

­ Starling.

­ Miss Starling. Verificará que nenhum paciente saiu do hospital sem um dossier. Verificará que nenhum dossier saiu daquele hospital sem a aprovação de um supervisor. Relativamente aos falecidos, o Serviço de Saúde não precisava dos dossiers deles, o Departamento de Estatísticas Vitais não quis os dossiers deles e, tanto quanto sei, os dossiers mortos, ou seja os dossiers dos falecidos, Permaneceram no Hospital Estadual de Baltimore depois da data do meu afastamento e fui praticamente a última a sair. As evasões foram para a polícia da cidade e o departamento do xerife.

­ Evasões?

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­ Sempre que alguém foge. Por vezes os internados fugiram,­ Poderia o Doutor Hannibal Lecter ter sido tratado como uma evasão? Acha que o dossier dele pode ter seguido para a Aplicação da Lei?

­ Ele não foi uma evasão. Nunca foi considerado uma evasão da nossa instituição. Não estava sob a nossa custódia quando fugiu. Desci ao subterrâneo e examinei o Doutor Lecter uma vez, mostrei­o à minha irmã, quando ela esteve cá com os filhos. Sinto uma espécie de mal­estar e um arrepio quando penso nisso. Levou um daqueles outros a atirar alguns... ­ baixou a voz salpicos contra nós. Sabe o que é isso?

­ já ouvi o termo ­ anuiu Starling. ­ Foi por acaso, Mister Miggs? Ele tinha um bom lançamento.

­ Eliminei esse tipo de coisas da mente. Lembro­me de si. Apareceu no hospital e falou com Fred... o Doutor Chilton... e desceu àquele subterrâneo onde estava Lecter, não foi?

­ Sim.

O Dr. Frederick Chilton era o director do Hospital Estadual para os Criminalmente Insanos de Baltimore que desapareceram enquanto estavam de férias, depois da fuga do Dr. Lecter.

­ Sabe que o Fred desapareceu.­ Sim. Constou­me.

Miss Corey começou a verter lágrimas rápidas e cristalinas. Era o meu noivo ­ explicou. ­ Desapareceu, o hospital fechou e foi como se o telhado me tivesse caído em cima. Se não fosse a minha igreja, não teria sobrevivido.

­ Lamento ­ redarguiu Starling. ­ Agora, tem um bom emprego.

­ Mas não tenho o Fred. Era um homem muito, muito bom. Partilhávamos um amor, um amor que não se encontra todos os dias. Ele foi eleito o jovem do Ano em Canton, quando andava no liceu de lá.

­ Bom. Vou andando. Contudo, deixe­me fazer­lhe uma pergunta, Inelle. Ele guardava os dossiers no gabinete ou estavam cá fora na recepção, onde a sua secretária...

­ Estavam nos armários de parede do gabinete dele e depois acabaram por ser tantos, que tinhamos grandes ficheiros na recepção. Estavam sempre, obviamente, fechados à chave. Quando nos mudámos, eles foram mudados para a clínica de metadona em regime temporário e houve grandes mexidas em todo o material.

­ Alguma vez viu ou tocou no dossier do Doutor Lecter?­ Claro.

­ Lembra­se se continha alguma radiografia? As radiografias eram arquivadas com os dossiers clínicos ou em separado?

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­ Eram arquivadas com os dossiers. Eram maiores do que eles, o que dava pouco jeito. Tinhamos aparelho de raio­X, mas nenhum radiologista que mantivesse dossiers separados. Francamente não me recordo se havia alguma ou não no dele. Havia uma gravação de um electrocardiograma que Fred costumava mostrar às pessoas. o Doutor Lecter ­ nem sequer quero chamar­lhe doutor estava todo ligado ao electrocardiógrafo quando apanhou a pobre enfermeira. E foi uma coisa estranhíssima ­ a pulsação nem sequer se acelerou muito quando ele a atacou. Ficou com um ombro deslocado, quando todos os guardas o agarraram e o separaram dela. Tiveram de radiografá­lo por causa disso. E teriam feito muito mais do que deslocar­lhe um ombro, se me coubesse alguma palavra no assunto.

­ Se lhe ocorrer algo, o lugar onde o dossier possa estar, telefona­me?

­ Faremos o que se chama uma pesquisa global? ­ retorquiu Miss Corey, saboreando o termo ­, mas não me parece que encontremos alguma coisa. Muito material foi abandonado, não por nós, mas pelo pessoal da clínica de metadona.

As chávenas de café tinham marcas espessas de espuma nos bordos, que escorriam pelos lados. Starling ficou a ver Inelle Corey a afastar­se pesadamente e bebeu meia chávena, com o guardanapo posto por baixo do queixo, Starling começava a voltar um pouco a si. Sabia que estava farta de algo. Talvez fosse do descuido, ou pior do que o descuido, da falta de estilo. Uma indiferença a coisas que agradam à vista. Talvez estivesse sedenta por algum estilo. Até mesmo o estilo provocante fosse melhor do que nada, era uma forma de afirmação, quer se quisesse ou não.

Starling examinou­se numa procura de snobismo e concluiu que tinha pouquíssimos motivos para se sentir snobe. Depois, pensando em estilo, sobreveio­lhe a imagem de Evelda Drumgo, que tinha montes dele. E esta ideia fez com que Starling desejasse novamente sair de si própria.

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Capítulo onzeE, assim, Starling regressou ao lugar onde tudo começou para ela: o Hospital Estadual para os Criminalmente Insanos de Baltimore, agora extinto. O velho edifício castanho, casa de dor, está com correntes e a entrada barrada, sujo de graffiti e à espera da bola de demolição.

Há anos que se encontrava em decadência, antes do desaparecimento durante as férias do seu director, o Dr. Frederick Chilton. Posteriores revelações de esbanjamento e má gestão, aliadas à decripitude do próprio edifício fizeram com que o governo cortasse os subsídios. Vários pacientes foram transferidos para outras instituições estatais, vários morreram e alguns passaram a vaguear pelas ruas de Baltimore, quais mortos­vivos, na sequência de um deficiente programa de pacientes externos, que levou mais do que um a morrerem gelados.

Parada diante do edifício, Clarice Starling tomou consciência de que esgotara primeiro todas as outras possibilidades, por não querer voltar a este lugar,

O guarda chegou com quarenta e cinco minutos de atraso. Era um homem robusto e velho, com um sapato de salto mais alto do que o outro e que ressoava e um corte de cabelo à Europa Oriental que podia ter sido feito em casa. Ofegava enquanto a conduzia até uma porta lateral, situada a uns degraus abaixo do passeio. A fechadura fora arrancada por vândalos e a porta segura com uma corrente e dois cadeados. Havia teias de aranha entrelaçadas nos elos da corrente. A relva que crescia nas fendas dos degraus picava os tornozelos de Starling, enquanto o guarda remexia nas chaves. o fim de tarde apresentava­se toldado e a luz granulosa e sem sombras.

­ Não conheço bem este prédio. Apenas verifico os alarmes de incêndio ­ disse o homem.

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­ Sabe se estão aqui armazenados alguns papéis? Quaisquer ficheiros, dossiers?

­ A seguir ao hospital tiveram aqui a clínica de metadona durante uns meses ­ respondeu com um encolher de ombros. ­ Puseram tudo na cave, umas camas, umas roupas, não sei o quê. É mau já para a minha asma, o mofo, muito mau. Os colchões têm bafio. Não consigo respirar. As escadas são más. Mostrava­lhe, mas...

Starling bem gostaria de alguma companhia, mesmo a dele, mas o homem só iria empatá­la, ­ Então, vá. Onde é o seu escritório?­ Ali ao fundo do quarteirão, onde antes ficava a Direcção de Viação.

­ Se eu não voltar dentro de uma hora...

­ Supostamente saio dentro de meia hora ­ retorquiu, consultando o relógio.

Sorte malvada. ­ O que vai fazer por mim, sír, é    esperar pelas chaves no seu escritório. Se eu não voltar dentro de uma hora, telefone para o número indicado neste cartão e diga­lhes onde fui. Se não estiver no seu posto, quando eu sair daqui... se tiver fechado a «loja» e ido para casa, visitarei pessoalmente o seu supervisor amanhã para apresentar queixa contra si. Além disso será ouvido pelo Serviço Aduaneiro e a sua situação analisada pelo Departamento de Imigração e... e de Naturalização. Percebe bem? Gostaria de uma resposta, sír.

­ Claro que teria esperado por si. Não precisa dizer essas coisas.­ Muito obrigada, sir ­ agradeceu Starling.

O guarda pousou as enormes mãos no corrimão para se apoiar enquanto subia até ao nível do passeio e Starling ouviu o passo irregular a afastar­se até restar o silêncio. Empurrou a porta e viu­se num patamar nas escadas de incêndio. janelas altas e com grades no poço das escadas deixavam entrar a luz cinzenta. Hesitou em fechar a porta à chave nas costas e optou por fazer um nó com a corrente do lado de dentro da porta, de maneira a poder abri­la se perdesse a chave.

Nas suas anteriores deslocações ao hospital psiquiátrico para entrevistar o Dr. Hannibal Lecter, entrava pela porta da frente e agora levou um momento a orientar­se.

Subiu as escadas de incêndio até ao andar principal. Lá à frente, as janelas cobertas de geada impediam a entrada da fraca luz do dia e a sala encontrava­se imersa na obscuridade. Servindo­se da potente lanterna, Starling descobriu um interruptor e ligou a luz do tecto, três lâmpadas ainda acesas e penduradas num arame em mau estado. As pontas a descoberto dos fios telefónicos estavam em cima da secretária da recepcionista,

O edifício fora invadido por vândalos munidos de sPrays de tinta, Um falo de dois metros e meio com testículos decorava a parede da sala de recepção com os dizeres: BATE­ME UMA PUNHETA, MAMÂ.

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A porta do gabinete do director estava aberta. Starling deteve­se na ombreira. Fora aqui que se tinha apresentado na sua primeira missão para o FBI, quando era ainda uma estagiária, ainda acreditava em tudo, ainda pensava que se se cumprisse bem a tarefa, se se cortasse a direito, seria aceite, independentemente da raça, credo, cor, naturalidade ou de se ser boa ou má pessoa. De tudo isto, ficara um artigo de fé: Acreditava que podia cortar a direito.

Tinha sido neste mesmo local que Chilton, o director do hospital, lhe estendera a mão gorda, avançando ao seu encontro. Tinha sido aqui que negociara segredos e bisbilhotices e, julgando­se tão esperto como Hannibal Lecter, tomara as decisões que permitira a Lecter escapar­se com tanto derramamento de sangue.

A secretária de Chilton mantinha­se no gabinete, mas não havia cadeira, dado o tamanho ter permitido que a roubassem. As gavetas apresentavam­se vazias, à excepção de um Alka­Seltzer esmagado, Dois ficheiros permaneciam no gabinete. Tinham fechaduras simples e a ex­agente técnica Starling abriu­as em menos de um segundo. A gaveta do fundo continha uma sanduíche metida num saco de papel e alguns impressos da clínica de metadona, e ainda um spray para o hálito, um frasco de tónico capilar, uma escova e alguns preservativos.

Starling pensou na cave semelhante a um subterrâneo do hospital psiquiátrico, onde o Dr. Lecter tinha vivido durante oito anos. Não queria descer até lá. Podia servir­se do celular e requisitar uma unidade da polícia da cidade para a acompanhar lá abaixo. Podia pedir ao Gabinete de Operações de Baltimore que lhe enviasse mais um agente do FBI. A tarde cinzenta ia adiantada e não havia maneira, mesmo agora, de evitar o trânsito intenso em Washington. Se esperasse, seria pior.

Apesar do pó, encostou­se à secretária de Chilton e tentou resolver. «Achava mesmo que poderia haver ficheiros na cave, ou sentia­se atraída para o lugar onde tinha visto Hannibal Lecter pela primeira vez?».

Se algum ensínamento Starling retirara da carreira de aplicação da lei era o seguinte. não era uma fã do suspense e ficaria feliz em nunca mais voltar a sentir medo. No entanto, poderia haver ficheiros na cave. Descobriria em cinco minutos se assim era.

Ainda se lembrava do som dos portões de alta segurança a fecharem­se nas suas costas quando descera lá abaixo, há anos. Na eventualidade de um deles se fechar desta vez, telefonou ao Gabinete de Operações de Baltimore a dizer­lhes onde estava e a combinar telefonar de novo dali a uma hora para comunicar que saíra.

As luzes da escada interior, por onde Chilton a acompanhara até à cave há anos atrás, funcionavam. Fora aqui que lhe explicara os processos de segurança para lidar com Hannibal Lecter e parara, sob

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esta luz, para lhe mostrar a fotografia de parede da enfermeira cuja língua Lecter comera durante a tentativa de um exame físico. Se o ombro do Dr. Lecter tinha sido deslocado enquanto o dominavam, decerto haveria uma radiografia.

Uma corrente de ar vinda das escadas aflorou­lhe o pescoço, como se houvesse uma janela aberta algures.

Uma embalagem de hamburgers da McDonald’s estava aberta no patamar e havia guardanapos de papel espalhados. Uma chávena suja que contivera feijões. Comida de lata. Alguns excrementos e guardanapos a um canto. A luz terminava no patamar do último andar, antes do grande portão em aço que dava para a ala dos violentos, agora aberto e enganchado na parede.

A lanterna de Starling produzia um bom feixe de luz. Passeou­a pelo comprido corredor da antiga ala de segurança máxima. Havia algo volumoso ao fundo, Era estranho deparar com as portas de todas as celas abertas. O chão estava pejado de invólucros de pão e chávenas. Uma lata de soda, escurecida pelo uso como cachimbo de craque, via­se no tampo da secretária do antigo guarda.

Starling carregou nos interruptores por detrás do posto do guarda. Nada. Tirou o celular do bolso. A luz vermelha parecia muito intensa no meio daquela escuridão. O telefone era inútil no subterrâneo, mas falou em voz alta para o bocal: ­ Harry, recua a carrinha até à entrada lateral. Traz um projector. Vais precisar de ajuda para levar estas coisas pelas escadas... sim, vem cá abaixo.

Depois, Starling sintonizou a voz para o escuro: ­ Atenção aí. Sou uma agente federal. Se está a viver aqui ilegalmente, pode desaparecer. Não vou prendê­lo. Não estou interessada em si. Se voltar depois de completar o meu trabalho, pouco me interessa. Agora, pode aparecer. Se tentar atacar­me, pode sofrer danos pessoais, quando lhe Meter uma bala no traseiro. Obrigada.

A voz ecoou pelo corredor onde tantos internados haviam reduzido as vozes a um grasnar e mastigavam as barras com as gengivas quando os dentes caíam.

Starling recordou a presença do corpulento guarda, Barney, quando tinha vindo entrevistar o Dr. Lecter. A estranha delicadeza com que Barney e Lecter se tratavam mutuamente. Agora, Barney não estava Presente. Algo dos tempos da escola tomou uma forma súbita na sua mente e, por uma questão de disciplina, forçou­se a lembrá­la.

O som de passos ecoa na lembrança

Da passagem por onde não seguimos

Na direcção da porta que nunca abrimos Para o jardim das rosas.

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Isso mesmo, o jardim das rosas. Este não era sem sombra de dúvida o jardim das rosas. Starling, a quem os últimos  editoriais haviam encorajado a odiar tanto a arma quanto a si própria, não achava o contacto da arma de forma alguma detestável quando se sentia nervosa. Mantinha a 45 encostada à perna e começou a percorrer o corredor protegida pelo  feixe de luz da lanterna. É difícil vigiar os dois flancos em simultâneo é imperativo não deixar que alguém ataque por  detrás. Água pingava algures.

Estruturas de camas desmontadas e empilhadas nas celas. Noutras, colchões. Havia água no meio do chão do corredor e  Starling, sempre cuidadosa com os seus sapatos, saltitava de um lado para o outro da poça à medida que avançava.  Recordou­se do aviso que Barney lhe fizera há uns anos quando todas as celas estavam ocupadas. Mantenha­se no meio do  corredor enquanto descer.

Ficheiros, era o objectivo. No meio do corredor, um percurso negro à luz da lanterna.

Cá estava a cela que fora ocupada por Miggs, aquela que mais lhe custara passar. Miggs que lhe sussurrou vulgaridades e lhe lançou fluidos corporais. Miggs, que o Dr. Lecter matou, dando­lhe instruções para que engolisse a sua vil língua. E, quando Miggs estava morto, foi Sammie a viver na cela. Sammie, cuja poesia o Dr. Lecter incentivou, causando um surpreendente efeito no poeta. Ainda agora, conseguia ouvir Sammie, uivando os seus versos:

EU QUERO PRA JASUS EU QUERO COM CRISTE EU POSSO COM JASUS DESDE QUE BEM ME PORTE.

Conservava algures o texto escrito com lápis de carvão.

A cela estava agora empilhada com colchões e havia roupa de cama atada em lençóis.

E, finalmente, a cela do Dr. Lecter.

A sólida mesa, onde ele lia, continuava aparafusada ao chão no centro da divisão. As tábuas das prateleiras que seguravam os seus livros haviam desaparecido, mas os suportes ainda ressaltavam nas paredes.

Starling devia virar para os gabinetes dos ficheiros, mas estava vidrada na cela. Fora aqui que tivera o encontro mais importante da sua vida. Fora aqui que se sentira sobressaltada, chocada, surpreendida.

Fora aqui que ouvira verdades tão terríveis sobre si própria, que o coração ressoara como um sino.

Desejava entrar lá dentro. Desejava entrar como se deseja saltar de uma varanda, da mesma forma que o luzir dos carris nos tenta ao ouvirmos o combóio a aproximar­se.

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Starling fez incidir a lanterna à sua volta, perscrutou para lá dos ficheiros em linha e varreu as celas mais próximas com o feixe de luz. A curiosidade impeliu­a a transpor a ombreira. Deteve­se no meio da cela onde o Dr. Hannibal Lecter tinha passado oito anos. ocupou o espaço onde o vira de pé e esperava que um formigueiro lhe percorresse o corpo, mas tal não aconteceu. Colocou o revólver e a lanterna em cima da mesa dele, atenta a que a lanterna não rolasse para o chão, e pousou as mãos de palmas abertas na mesa dele, apenas sentindo migalhas por baixo.

Globalmente, o efeito desapontava­a. A cela estava tão vazia do seu anterior ocupante como a pele abandonada de uma cobra. Starling pensou, então, que acabara de entender algo: a morte e o perigo não têm necessariamente de surgir com armadilhas. Podem surgir com o sopro suave do amado. Ou numa tarde soalheira num mercado de peixe com La Macarena a ribombar nos altifalantes.

De volta à questão. Havia uma distância de cerca de dois metros e meio de ficheiros, quatro ao todo, à altura do queixo. Cada um tinha cinco gavetas, seguras com uma única fechadura simples, ao lado da gaveta superior. Nenhuma delas estava trancada. Todas estavam cheias de processos, alguns volumosos, todos em dossiers. Velhos dossiers de papel amarelecido pelo tempo e outros mais recentes em papel de cânhamo. Ficheiros sobre a saúde de homens mortos, datando à inauguração do hospital, em 1932. Estavam mais ou menos por ordem alfabética com algum material empilhado atrás dos dossiers nas enormes gavetas.

Starling examinou­os, segurando a pesada lanterna com o ombro, passando os dedos da mão que tinha livre pelos dossiers, desejando ter trazido uma pequena luz que pudesse prender entre os dentes. Mal teve uma noção dos dossiers, passou em revista gavetas inteiras pelos J, alguns K, ao longo dos L e lá estava: Lecter, Hannibal.

Starling tirou para fora o enorme dossier de papel de cânhamo, apalpou­o buscando a dureza de uma radiografia, pousou o dossier em cima dos outros ficheiros e ao abri­lo deparou com a história clínica do falecido J. Miggs. Raios! Miggs iria amaldiçoá­la da cova. Pousou o dossier em cima do armário e passou rapidamente aos M. O dossier de Miggs, estava no lugar que lhe competia por ordem alfabética. Mas vazio! Erro de arquivo? Será que alguém enfiara acidentalmente o relatório de Miggs no dossier de Hannibal Lecter? Procurou todos os M, em busca de uma divisão do ficheiro sem dossier. Voltou atrás aos J.

Invadia­a uma irritação crescente. O cheiro daquele lugar perturbava­a agora mais. O guarda tinha razão. Era difícil respirar ali. Ia a meio dos J, quando se apercebeu que o odor fétido... se acentuava rapidamente.

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Um pequeno chapinhar nas suas costas e virou­se com a velocidade de um raio, de lanterna erguida para atacar e levando rapidamente a mão à arma sob o blaser. Um homem alto e coberto de farrapos andrajosos recortou­se no feixe de luz, com um dos enormes pés inchados dentro de água. Tinha uma das mãos afastadas do lado do corpo. Na outra segurava um bocado de uma bandeja partida. As pernas e os dois pés estavam atados com tiras de lençol.

­ Olá ­ saudou com a língua entaramelada. Starling sentia­lhe o hálito à distância de um metro e meio. Por baixo do casaco, moveu a mão do revólver para o spray de defesa Mace.

­ Olá ­ respondeu Starling. ­ Importa­se de se pôr ali encostado às grades? O homem não se mexeu.

­ Você é Jasus? ­ perguntou.

­ Não ­ respondeu Starling. ­ Não sou Jesus. ­ A voz. Starling lembrava­se da voz.

Esta voz. Vá. Pensa. ­ Olá, Sammie ­ disse. ­ Como está? Estava a pensar precisamente em si.

O que havia sobre Sammie? A informação, viera­lhe à memória não propriamente por ordem. Sammie pôs a cabeça da mãe  na bandeja das esmolas enquanto a congregação cantava Dá o Melhor que Tiveres ao Senhor. Disse que era a melhor coisa  que tinha. A Highway Baptist Church, algures. «Decepcionado porque Jesus se demora tanto», acrescentou o Dr Lecter

­ Você é Jasus? ­ insistiu ele, desta vez queixoso. ­ Levou a mão ao bolso, de onde tirou uma beata, com bastante mais de cinco centímetros. Colocou­a no bocado do prato e estendeu­a em oferta.­ Lamento, Sammie, mas não sou. Sou...

O rosto de Sammie tornou­se subitamente lívido, furioso por ela não ser Jesus, a sua voz ecoando no corredor húmido.

EU QUERO PRA JASUS EU QUERO COM CRISTE!

Ergueu o pedaço da bandeja, de rebordo afiado semelhante a uma ferradura, e avançou um passo para Starling, agora com os dois pés dentro de água e uma expressão distorcida, agitando a mão livre no ar que os separava.

Ela sentiu os ficheiros de encontro às costas.

­ PODES IR COM JESUS... SE TE PORTARES BEM ­ recitou Starling num tom de voz nítido e claro como se lhe falasse de um lugar longínquo.

­ Hum, hum ­ exclamou Sammie, acalmando­se e parando. Starling remexeu na bolsa e descobriu a barra de chocolate. Tenho um Snickers, Sammie. Gosta de snickers?

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HANNIBAL               71

Ele não respondeu.

Starling pôs o Snickers em cima de um dossier de papel de cânhamo e estendeu­lho, como ele estendera a bandeja.

Ele deu a primeira dentada sem retirar o invólucro, cuspiu o papel e deu mais uma dentada, comendo metade da barra de chocolate.­ Alguém mais desceu aqui, Sammie?

Ele ignorou a pergunta, pôs o resto da barra de chocolate na sua bandeja e desapareceu por detrás de uma pilha de colchões na sua antiga cela.

­ Que raio é isto? ­ soou uma voz de mulher. ­ Obrigada, Sammie.

­ Quem é você? ­ gritou Starling.­ Não é da sua conta.

­ Vive aqui com o Sammie?

­ Claro que não. Isto é só um encontro. Acha que pode deixar­nos sós?

­ Sim. Responda à minha pergunta. Há quanto tempo está aqui?­ Duas semanas.

­ Esteve aqui mais alguém?

­ Uns vadios com que o Sammie correu.­ O Sammie protege­a?

­ Venha cá e veja com os seus olhos. Eu consigo andar bem. Arranjo comida e ele tem um lugar seguro para a comer. Muita gente tem acordos destes.

­ Algum de vocês está em qualquer programa, algures? Querem estar? Posso ajudar­vos.

­ Ele passou por tudo isso. Sai­se para o mundo, faz­se toda essa merda e volta­se para o que se conhece. De que está à procura? O que quer?

­ Uns ficheiros.

­ Se não estão aí, alguém os roubou. Não é preciso ser muito esperta para o pensar.

­ Sammie? ­ chamou Starling. ­ Sammie?

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Sammie não respondeu. ­ Ele está a dormir ­ informou a amiga.

­ Se deixar aqui algum dinheiro, compra comida? ­ perguntou Starling.

­ Não. Compro bebida. Comida arranja­se. A bebida não se arranja. Não fique presa pelo rabo na maçaneta da porta quando sair.­ Vou deixar o dinheiro em cima da secretária ­ anunciou Starling. Apetecia­lhe fugir, lembrava­se de deixar o Dr. Lecter, lembrava­se de se recolher em si própria enquanto caminhava de volta ao que era nessa altura a ilha calma do posto do guarda Barney

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À luz do poço das escadas, Starling tirou da carteira uma nota de vinte dólares. Pousou o dinheiro na secretária manchada e abandonada de Barney e prendeu­a com uma garrafa de vinho vazia. Desdobrou um saco de compras de plástico onde meteu o dossier de arquivo com a história clínica de Miggs e o dossier vazio de Miggs.

­ Adeus. Até à vista, Sammie ­ despediu­se do homem que andara em círculo pelo mundo e regressara ao inferno que conhecia. Desejava dizer­lhe que esperava que Jesus aparecesse depressa, mas pareceu­lhe uma frase disparatada.

Starling subiu de volta até à luz, para continuar o seu círculo no mundo.

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capítulo dozeSe há depósitos a caminho do Inferno, devem assemelhar­se à entrada das ambulâncias para o Maryland­Misericordia General Hospital. Acima do gemido das sirenes, dos gemidos dos moribundos, ruído do pingar das goteiras, berros e gritos, as colunas de vapor dos esgotos, pintados de vermelho por uma enorme tabuleta de néon com os dizeres URGêNCIAS erguem­se como o próprio pilar de fogo de Moisés no escuro e transformam­se em nuvens durante o dia.

Barney saiu do meio do vapor, com os corpulentos ombros encolhidos no casaco, a cabeça redonda e de cabelo cortado à escovinha inclinada para diante, enquanto percorria o pavimento arruinado, em grandes passadas, para oriente na direcção da manhã.

Saíra com vinte e cinco minutos de atraso do emprego ­ a polícia trouxera um chulo drogado com um ferimento de bala que gostava de bater nas mulheres e a enfermeira­chefe tinha­lhe pedido que ficasse. Era hábito pedirem a Barney que ficasse, sempre que traziam um paciente violento.

Clarice Starling perscrutou Barney sob o fundo capuz do casaco e deu­lhe um avanço de meio quarteirão do outro lado da rua, antes de pôr a mochila ao ombro e ir atrás dele. Sentiu­se aliviada quando ele não parou no parque de estacionamento nem na paragem de autocarro. Barney seria mais fácil de seguir a pé. Não sabia bem onde ele vivia e precisava descobrir antes que ele a visse.

Os arredores das traseiras do hospital eram tranquilos, habitados por operários e gente de várias raças. Um bairro onde se punha uma fechadura Chapman no carro, mas não tinha que se levar a bateria para casa e onde as crianças podiam brincar cá fora.

Decorridos três quarteirões, Barney esperou que uma carrinha desimpedisse o passeio e virou para norte por uma rua de casas estreitas, algumas com degraus de mármore e cuidados jardins na frente.

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As poucas lojas vazias apresentavam­se intactas e com as montras lavadas. As lojas começavam a abrir as portas e algumas pessoas saíam. Camiões estacionados de noite nos dois lados da rua bloquearam a visão de Starling durante meio minuto e ultrapassou Barney, antes de se aperceber que ele tinha parado. Estava mesmo do outro lado da rua quando o viu. Talvez também ele a tivesse visto, não podia afirmar com certeza.

Mantinha­se de pé com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, a cabeça inclinada para diante, observando de cenho franzido algo que se movia no meio da rua. Uma pomba morta jazia no pavimento com uma asa arrancada pela deslocação de ar dos carros que passavam. O companheiro da ave morta andava à volta do corpo, piscando o olho e abanando a pequena cabeça a cada passo das suas patas cor­de­rosa. Dava voltas e mais voltas, murmurando o suave arrulhar. Vários carros e uma furgoneta passaram e o pássaro sobrevivente mal se esquivou ao trânsito com pequenos voos no último minuto.

Talvez Barney tivesse erguido os olhos na sua direcção, Starling não podia ter certezas. Tinha de continuar a andar ou arriscar­se a ser descoberta. Quando espreitou por cima do ombro, Barney estava agachado no meio da rua, de braço levantado para fazer parar o trânsito.

Dobrou a esquina desaparecendo de vista, despiu o casaco de capuz, tirou uma camisola, um boné de basebol e um saco de ginástica da mochila e mudou­se rapidamente, enfiando o casaco e a mochila no saco de ginástica e escondendo o cabelo sob o boné. Misturou­se no meio de algumas empregadas da limpeza que regressavam a casa e virou de novo a esquina da rua onde deixara Barney

Ele segurava a pomba morta nas mãos em concha. O parceiro voou com um bater de asas ruidoso até aos fios da electricidade por cima das suas cabeças e ficou a observá­lo. Barney deitou a ave morta na relva de um gramado e alisou­lhe as penas. Virou o rosto na direcção do pombo pousado nos fios da electricidade e disse algo. Quando prosseguiu caminho, o sobrevivente do casal desceu até à relva e continuou a dar voltas ao corpo, em pequenos passinhos na relva. Barney não olhou para trás. Ao vê­lo subir os degraus de um bloco de apartamentos a cem metros mais à frente, levando a mão ao bolso para tirar as chaves, Starling percorreu meio quarteirão em passo de corrida para o apanhar antes que abrisse a porta.

­ Barney. Olá.

Ele virou­se nos degraus sem grande pressa e baixou o rosto na sua direcção. Starling tinha esquecido que os olhos de Barney se encontravam invulgarmente afastados. Detectou o brilho inteligente que emitiam e sentiu que se fazia luz no cérebro.

Tirou o boné e deixou que os cabelos se soltassem. ­ Sou Clarice Starling. Lembra­se de mim? Sou...

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­ A. ­ concluiu Barney num tom inexpressivo.

Starling uniu as palmas das mãos e esboçou um aceno de cabeça. ­ Bom, sim, sou a G. Preciso falar consigo, Barney É apenas uma conversa informal. Só preciso perguntar­lhe umas coisas.

Barney desceu os degraus. Quando já estava de pé no passeio em frente de Starling, ela continuava a ter de erguer o rosto para o olhar. Não se­ sentia ameaçada pela sua altura, como aconteceria a um homem.

­ Concorda para que conste no relatório, agente Starling, que não me leram os meus direitos? ­ Expressava­se num tom de voz elevado e duro semelhante ao de Tarzan interpretado por Johnny Weismuller.

­ Absolutamente. Não apliquei o código Miranda. Reconheço isso.­ Que tal repeti­lo para dentro do saco?

Starling abriu o saco e falou para o interior em voz alta, como se este contivesse um isco. ­ Não li o código de Miranda a Barney Ele desconhece os seus direitos.

­ Há café bastante bom mais abaixo nesta rua ­ propôs Barney ­ Quantos chapéus tem nesse saco? ­ acrescentou, enquanto caminhavam.

­ Três ­ respondeu.

Quando a carrinha com matrícula de deficientes passou junto deles, Starling apercebeu­se de que os ocupantes a fitavam, mas os incapacitados excitam­se frequentemente como é de seu pleno direito. Os jovens ocupantes de um carro no cruzamento seguinte também a examinaram, mas não fizeram comentários por causa de Barney Qualquer coisa que saísse das janelas teria chamado imediatamente a atenção de Starling ­ estava atenta à vingança dos Crip ­ mas há que aguentar o desejo sem palavras.

Quando ela e Barney entraram no café, a furgoneta recuou para um beco a fim de fazer inversão de marcha e seguiu pelo mesmo lugar de onde tinha vindo.

Tiveram de esperar lugar numa cabina no café a abarrotar, enquanto o criado gritava em Hindi ao cozinheiro que manipulava a carne com pinças enormes e uma expressão culpada.

­ Vamos comer ­ sugeriu Starling, quando já estavam sentados. ­ É por conta do Tio Sam. Que tal a vida, Barney?

­ O emprego é bom.­ O que é?

­ Servente.

­ Julguei que já fosse enfermeiro diplomado, ou talvez frequentasse a Faculdade de Medicina.

Barney encolheu os ombros e estendeu o braço para as natas.­ Estão a encostá­la à parede por ter morto Evelda? ­ perguntou, erguendo os olhos para Starling.

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­ Ainda é o que vamos ver. Conhecia­a?

­ Vi­a uma vez, quando trouxeram o marido, Dijon. Ele já estava morto, era uma poça de sangue antes de o meterem na ambulância. já só deitava soro quando chegou às nossas mãos. Ela não o largava e tentou lutar com as enfermeiras. Tive de... sabe... Uma bela mulher e forte também. Não voltaram a trazê­la depois disso...

­ Não. Foi condenada no local.­ Logo me pareceu.

­ Barney, depois de entregar o Doutor Lecter à gente de Tennessee...

­ Não o trataram com civismo.­ Depois de...

­ E agora estão todos mortos.

­ Sim. Os guardas conseguiram manter­se vivos durante três dias. Você guardou o Dr. Lecter durante oito anos.

­ Foram seis anos... ele já lá estava antes de eu chegar.

­ Como conseguiu, Barney? Se não se importa que lhe pergunte, como conseguiu sobreviver com ele? Não foi apenas com civismo. Barney contemplou o seu reflexo na colher, primeiro convexo, depois côncavo e pensou uns momentos antes de responder: ­ O Doutor Lecter era um homem de boas maneiras, sem arrogância, mas de bom trato e elegante. Eu andava a tirar uns cursos por correspondência e ele partilhava as opiniões comigo. Não queria dizer que não me matasse a qualquer momento, se tivesse oportunidade... O facto de uma pessoa ter uma característica não elimina as outras. Podem existir lado a lado, as boas e as terríveis. Sócrates assim o disse de uma forma muito melhor. É uma coisa que nunca se pode esquecer numa prisão de máxima segurança, nunca. Se se tiver sempre isso presente, fica­se a salvo. O Doutor Lecter pode ter­se arrependido de me ter ensinado Sócrates. ­ Para Barney, que tinha a desvantagem da falta de instrução, Sócrates era uma experiência nova, com a qualidade de um encontro.

­ A segurança não tinha nada a ver com a conversa, era uma coisa totalmente diferente ­ replicou. ­ A segurança nunca era pessoal, mesmo quando tinha de lhe interceptar o correio ou impor­lhe restrições.

­ Falava muito com o Doutor Lecter?

­ Às vezes, ele passava meses sem dizer uma palavra e outras falávamos pela noite fora, quando os gritos paravam. Na verdade eu estava a tirar esses cursos por correspondência e conhecia a conversa fiada ­ e ele mostrou­me literalmente todo um mundo de coisas: Seutónio, Gibbon, isso. ­ Barney pegou na chávena. Tinha uma pincelada de Betadine sobre um arranhão recente nas costas da mão.

­ Quando ele escapou, alguma vez lhe passou pela cabeça que pudesse vir atrás de si?

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Barney abanou a enorme cabeça. ­ Uma vez disse­me que sempre que era viável, preferia comer os rústicos. «Rústicos ao natural», como lhes chamava ­ comentou com uma gargalhada, o que nele era raro. É um homem com dentes muito pequenos e a sua expressão de alegria tem um certo toque de maníaco, assemelhando­se ao gozo de um bebé quando cospe a comida para a cara de um tio chato.

Starling interrogou­se sobre se ele não teria estado tempo de mais no subterrâneo com os insanos.

­ E você, alguma vez sentiu... um arrepio na espinha depois dele se ter escapado? Pensou que pudesse ir atrás de si? ­ perguntou Barney

­ Não.­ Porquê?

­ Disse que não o faria.

A resposta pareceu estranhamente satisfatória a ambos. Chegaram os ovos. Barney e Starling estavam com fome e comeram em silêncio durante uns minutos. Depois...

­ Barney, quando o Doutor Lecter foi transferido para Memphis, pedi­lhe que me trouxesse os desenhos que ele tinha na cela e assim fez. O que aconteceu ao resto das coisas: livros, papéis? O hospital não tinha o ficheiro clínico dele.

­ Houve esta grande confusão. ­ Barney fez uma pausa, batendo com o saleiro de encontro à palma da mão. ­ Houve uma grande revolução no hospital. Fui dispensado, muitas pessoas foram dispensadas e as coisas perderam­se. Não se sabe...

­ Desculpe? ­ interrompeu Starling. ­ Com todo este barulho, não consegui ouvir o que disse. Descobri a noite passada que o exemplar anotado e assinado pelo Doutor Lecter do Dicionário de Cuísine de Alexandre Dumas apareceu há dois anos num leilão privado em Nova lorque. Foi vendido por 16 000 dólares a um coleccionador particular. A declaração de propriedade do vendedor estava assinada com o nome de «Cary Phlox». Conhece «Cary Phlox», Barney? Espero bem que sim, pois ele preencheu o seu impresso de candidatura de emprego no hospital onde você trabalha, só que assinou «Barney». Preencheu igualmente a sua declaração de impostos. Desculpe, mas não ouvi o que me disse antes. Quer recomeçar? Quanto recebeu pelo livro, Barney?

­ Cerca de dez mil ­ respondeu Barney, olhando­a de frente.­ O recibo indica dez mil e quinhentos ­ replicou Starling com um aceno de cabeça. ­ O que recebeu por aquela entrevista ao Tattler depois do Doutor Lecter escapar?

­ Quinze mil.

­ Fixe. Optimo para si. Inventou toda aquela treta que contou a essa gente.

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­ Sabia que o Doutor Lecter não se importaria. Ficaria desapontado se eu não lhes desse um abanão.

­ Ele atacou a enfermeira antes da sua chegada ao Estadual de Baltimore?

­ Sim.

Tinha um ombro deslocado. É o que me consta.

Fizeram uma radiografia? Muito provável.

Quero a radiografia.

­ Descobri que os autógrafos de Lecter se encontram divididos em dois grupos, os escritos a tinta, ou da pré­encarceração, e os a lápis ou com caneta de ponta de feltro do hospital psiquiátrico. Os de lápis valem mais, mas espero que o saiba. Barney, acho que tem todas essas coisas e tenciona distribui­los ao longo dos anos pelos negociantes de autógrafos.

Barney encolheu os ombros e não deu resposta.

­ Acho que está à espera que ele volte a ser um tema escaldante. O que quer, Barney?

­ Quero ver todos os Vermeer do mundo antes de morrer.­ Preciso perguntar quem lhe deu a conhecer Vermeer?

­ Falámos sobre muitas coisas a meio da noite.

­   Falaram sobre o que ele gostaria de fazer, se estivesse livre?­   Não. O Doutor Lecter não se interessa por hipóteses. Não acredita em silogismos, sínteses ou em qualquer absoluto.

­ Em que é que ele acredita?

­   No caos. E nem sequer é preciso acreditar nele. É evidente por si.

De  momento, Starling queria mostrar­se do lado de Barney.­   Diz tudo isso como se acreditasse ­ comentou _, mas o seu emprego no Estadual de Baltimore era manter a ordem. Era o servente­chefe. Estamos ambos no campo da ordem. O Doutor Lecter nunca se escapou de si.

­ já lho expliquei.

­ Porque nunca baixou as defesas. Embora em certa medida confraternizasse...

­ Não confraternizei ­ interrompeu Barney ­ Ele não é irmão de ninguém. Discutimos assuntos de interesse comum. Pelo menos, eu achava as coisas interessantes quando as descobria.

­ O Doutor Lecter nunca troçou de si por desconhecer algo?­ Não. Fez troça de si?

­ Não ­ replicou, a fim de não ferir os sentimentos de Barney, pois dava­se conta pela primeira vez do elogio implícito no 

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ridículo

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do monstro. ­ Poderia ter troçado de mim, se assim o desejasse. Sabe onde estão as coisas, Barney?

­ Há qualquer recompensa por encontrá­las?

Starling dobrou o guardanapo de papel e entalou­o por baixo do prato. ­ A recompensa é não o acusar de obstrução à justiça respondeu. ­já lhe dei uma oportunidade quando pôs a minha secretária sob escuta no hospital.

­ O microfone pertencia ao falecido Doutor Chilton.

O Dr. Fredrick Chilton era o director do Hospital Estadual para Criminalmente Insanos de Baltimore que desaparecera enquanto estava de férias, depois da fuga do Dr. Lecter.

­ Falecido? Como sabe que é o falecido Doutor Chilton?

­ Bom, para mim faleceu há sete anos ­ replicou Barney Não espero vê­lo em breve. Deixe­me perguntar­lhe o que a satisfaria, agente especial Starling?

­ Quero ver a radiografia. Quero a radiografia. Se existirem livros do Doutor Lecter, quero vê­los.

­ Digamos que se as coisas aparecessem, o que lhes aconteceria depois?

­ Bom. A verdade é que não posso dar certezas. O procurador­geral poderia confiscar todo o material como prova na investigação da fuga. Depois, criaria bolor no seu Gabinete de Provas. Se eu examinar o material e não descobrir nada de útil nos livros e o declarar, pode reivindicar que lhe foi oferecido pelo Doutor Lecter. Há sete anos que está in absentia, portanto, pode recorrer a um direito civil. Não tem parentes conhecidos. Recomendaria que qualquer material inócuo lhe fosse entregue. Deve saber que a minha recomendação se encontra na parte mais baixa do totem. Provavelmente nem sequer voltaria a recuperar a radiografia nem a história clínica, pois nenhuma delas lhe pertencia.

­ E se lhe explicar que não tenho as coisas?

­ O material de Lecter tornar­se­á difícil de vender porque publicaremos um boletim a informar o mercado que prenderemos e perseguiremos por recepção e posse. Emitirei um mandado de busca e captura às suas instalações.

­ Agora que sabe onde ela é. Ou diz­se onde elas são?

­ Não tenho a certeza. Só posso dizer­lhe que se entregar o material não sofrerá qualquer represália por ter ficado com ele, tomando em consideração o que lhe teria acontecido, caso o deixasse no local. Quanto a prometer­lhe que o vai recuperar, é algo que não posso garantir­lhe. ­ Starling fez uma pausa. ­ Sabe, Barney, tenho a sensação que não se formou em Medicina, porque não quer laços. Talvez tenha uma prioridade algures. Agora, veja bem... Nunca lhe apliquei um golpe. Nunca o controlei.

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­ Não. Apenas deu uma olhada na minha declaração de impostos e na candidatura de emprego, é tudo. Estou emocionado.­ Se tem uma prioridade, talvez o promotor de justiça pudesse dar uma palavra, esquecê­lo.

Barney limpou o prato com um bocado de pão. ­ já acabou?­ inquiriu. ­ Vamos dar uma volta.

­ Vi o Sammie. Lembra­se que ele ocupou a cela do Miggs? Ainda vive nela ­ retorquiu Starling quando já estavam lá fora.­ Julguei que o lugar estava interditado.

­ E está.

­ O Sammie está em algum programa?­ Não. Apenas vive ali, no escuro.

­ Acho que devia metê­lo na ordem. Ele é diabético e morrerá. Sabe por que é que o Doutor Lecter fez com que Miggs engolisse a língua?

­ Penso que sim.

­ Matou­o por a ter ofendido. Foi esse o motivo específico. Não se sinta mal... podia tê­lo feito de qualquer maneira.

Passaram junto ao bloco de apartamentos de Barney e seguiram até ao gramado onde o pombo continuava a voar em círculo sobre o corpo da sua companheira morta. Barney enxotou­o com as mãos. Vai ­ ordenou ao pássaro. ­ já basta de luto. Andarás por aí até o gato te apanhar. ­ O pombo afastou­se com um piar e perderam­no de vista.

Barney pegou na ave morta. O corpo coberto de penas deslizou facilmente para dentro do seu bolso.

­ Sabe? Uma vez, o Doutor Lecter falou um pouco sobre si. Talvez na última vez que falei com ele, numa das últimas vezes. O pombo lembrou­me. Quer saber o que ele disse?

­ Claro ­ respondeu Starling. ­ Sentiu o pequeno­almoço um pouco às voltas, mas estava decidida a não pestanejar.

­ Falávamos de comportamento herdado. Ele estava a utilizar a genética em certo tipo de pombos, como exemplo. Aqueles que levantam voo e rolam, rolam pelos ares para trás, acabando por cair no chão. Há pombos de voo baixo e alto. Não se podem cruzar dois destes últimos ou a cria rolará em queda, acabando por se esmagar e morrer. O que ele disse foi: «A agente Starling é uma pomba de voo alto, Barney Esperemos que um de seus pais não o fosse».

Starling tinha de reflectir sobre o assunto. ­ O que vai fazer com a ave? ­ inquiriu.

­ Depená­la e comê­la ­ elucidou Barney ­ Venha até lá a casa e dou­lhe a radiografia e os livros.

Enquanto carregava o enorme embrulho de volta ao hospital e ao carro, Starling ouviu um chamamento do pombo enlutado e sobrevivente por entre as árvores.

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capítulo trezeGraças à consideração de um louco e à obsessão de outro, Starling tinha de momento o que sempre desejou, um gabinete no corredor subterrâneo da Ciência Comportamental. Era uma sensação amarga conseguir o gabinete desta forma.

Starling nunca esperou chegar directamente à elite da Secção de Ciência Comportamental quando se formou pela Academia do FBI, mas acreditara que podia conseguir um lugar ali. Sabia que primeiro passaria vários anos em gabinetes de operações.

Starling era boa na profissão, mas não na política de gabinetes e, assim, demorou alguns anos a perceber que nunca iria para a Ciência Comportamental, embora fosse esse o desejo do seu chefe, Jack Crawford. Nunca divisou uma razão significativa até, à semelhança de um astrónomo que localiza um buraco negro, haver detectado o ajudante do procurador­geral, Paul Krendier, pela influência que exercia nos que o rodeavam. Ele jamais lhe perdoara que tivesse descoberto o serial kíller Jame Gunib antes dele e não conseguira suportar a atenção que ela suscitara por parte da imprensa.

Uma vez, KrendIer telefonou­lhe para casa numa chuvosa noite de Inverno. Atendeu o telefone de roupão, pantufas de pêlo com uns coelhinhos, e o cabelo enrolado numa toalha. Nunca se esqueceria da data exacta pois foi na primeira semana da Tempestade no Deserto.

Nessa altura Starling era uma agente técnica e acabara de voltar de Nova lorque, onde estivera a substituir a rádio da limusina iraquiana da Missão dos EUA. A nova rádio era em tudo idêntica à antiga, só que transmitia conversas tidas no carro para um satélite do Departamento da Defesa. Fora uma manobra perigosa numa garagem privada e ainda se sentia nervosa,

Por um breve instante ainda pensou que KrendIer lhe telefonara para a felicitar pelo trabalho.

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Lembrava­se da chuva batendo de encontro às janelas e da voz de KrendIer ao telefone, um tanto entaramelada e ruídos de um bar como fundo.

Convidou­a para sair. Disse que apareceria dentro de meia hora. Era casado.

­ Acho que não aceito, Mister KrendIer ­ respondeu ao mesmo tempo que carregava no botão de «Record» do gravador que produziu o beep habitual, após o que a linha emudeceu.

Agora, anos mais tarde, no gabinete que desejara obter, Starling escreveu o nome a lápis num pedaço de papel e prendeu­o com fita­cola na porta. Não tinha graça nenhuma e, portanto, rasgou­o e atirou­o para o lixo.

Tinha correspondência no tabuleiro de correio interno. Era um questionário do Guiness de Recordes Mundiais que se preparava para inserir o seu nome como tendo abatido mais criminosos do que qualquer outra agente do sexo feminino na história dos EUA. O termo «criminosos» era utilizado intencionalmente, explicava o editor, pois todos os mortos tinham múltiplas condenações por crime e três deles mandados de captura. O questionário foi parar ao lixo juntamente com o seu nome.

Há duas horas que estava às voltas com a central computorizada, afastando madeixas soltas do rosto, quando Crawford bateu à porta e meteu a cabeça dentro do gabinete.

­ Brian telefonou do laboratório, Starling. A radiografia de Mason e a que recebeu de Barney condizem. É o braço de Lecter. Vão digitar as imagens e compará­las, mas ele diz que não há dúvida. Mandaremos tudo por correio para o dossier Lecter do VICAP

­ E Mason Verger?

­ Vamos contar­lhe a verdade ­ redarguiu Crawford. ­ Ambos sabemos que ele só partílhará, Starling, se lhe for parar às mãos algo que não consiga resolver sozinho. Mas se tentarmos tomar conta da pista dele no Brasil, ela vai evaporar­se.

­ Disse­me que a abandonasse e assim fiz.­ Esteve a fazer algo aqui.

­ A radiografia de Mason chegou por correio expresso D H L. A D H L retirou o código de barras e a informação da etiqueta e localizou a estação. É no Hotel Ibarra, no Rio de janeiro. ­ Starling ergueu a mão para obstar qualquer interrupção. ­ Tudo veio de fontes em Nova lorque. Não foi feita qualquer investigação no Brasil.

­ Mason faz muitos negócios por telefone através da central de uma agência de apostas desportivas em Las Vegas. Pode imaginar a quantidade de chamadas que recebem.

­ Será que quero saber como descobriu tudo isso?

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­ De uma forma perfeitamente legal ­ respondeu Starling. ­

Bom... suficientemente legal... Não deixei nada na casa dele. Apenas tenho os códigos de acesso à sua conta telefónica. Todos os agentes técnicos os têm­ Digamos que com a influência dele, quanto tempo teríamos de implorar um mandado de despiste? E, de qualquer forma, o que poderia fazer­se­lhe, caso fosse condenado? Mas serve­se de uma agência de apostas desportivas.

­ Percebo ­ replicou Crawford. ­ O comité de jogos de Nevada poderia pôr o telefone sob escuta ou apertar a agência de apostas quanto ao que precisamos de saber, ou seja o destino das chamadas.

­  Deixei Mason em paz, tal como me indicou ­ retorquiu com um aceno de cabeça.

­ Bem vejo ­ redarguiu Crawford. ­ Pode informar Mason que esperamos ajudar através da Interpol e da Embaixada. Diga­lhe que­ precisamos de mandar gente para lá e iniciar o processo de extradição. Provavelmente, Lecter cometeu crimes na América do Sul e, assim, será melhor extraditá­lo antes que a polícia do Rio comece a procurar nos ficheiros em Canibalismo. Se é que ele está realmente na América do Sul. Mason mete­lhe nojo, Starling?

­ Tenho de entrar na onda. Deu­me um curso quando tratámos daquela «flutuante» na Virgínia Oriental. Era uma pessoa e chamava­se Fredericka Binimel e, a resposta é sim, Mason enoja­me. Ultimamente, tem havido muita coisa que me enoja, Jack.

Starling calou­se surpreendida. Nunca se dirigira ao chefe da secção Jack Crawford pelo primeiro nome e nunca planeara chamar­lhe «Jack», o que a chocava. Estudou­lhe o rosto, um rosto famoso pela sua difícil leitura.

­ Também a mim, Starling ­ replicou com um aceno de cabeça e um sorriso seco e triste. ­ Quer chupar uma destas pastilhas Pepto­Bisrnol antes de falar com Mason?

Mason Verger não se dignou atender a chamada de Starling. Uma secretária agradeceu­lhe a mensagem e disse que ele responderia mais tarde. Mas não o fez pessoalmente. Para Mason, que se encontrava vários pontos acima na lista de notificação comparativamente a Starling, a justaposição das radiografias não era novidade.

Corpo retirado da água. (N. da T)

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Capítulo catorze­Mason sabia que a sua radiografia era mesmo do braço do Dr. Lecter muito antes de Starling receber a informação, pois as fontes de Mason no interior do Departamento da justiça eram melhores do que as dela.

Mason recebeu a comunicação por um e­mail assinado com o nome de código Token287. Ou seja o segundo nome de código do ajudante de Parton Vellinore do Comité de Supervisão judiciário americano. O gabinete de Velbriore recebera um e­mail de Cassius199, o segundo nome de código do próprio Paul KrendIer do Departamento de justiça.

Mason estava excitado. Não achava que o Dr. Lecter estivesse no Brasil, mas a radiografia provava que o Doutor tinha agora o número normal de dedos na mão esquerda. Esta informação ajustava­se a uma nova pista vinda da Europa quanto ao paradeiro do Doutor. Mason acreditava que a informação provinha do interior da justiça italiana e era o mais forte sopro de Lecter que lhe chegava desde há anos.

Mason não fazia tenção de partilhar a sua pista com o FBI. Devido a sete anos de esforço permanente, acesso a ficheiros federais confidenciais, distribuição de folhetos, ausência de restrições internacionais e dispêndio de elevadas somas de dinheiro, Mason ultrapassara o FBI na perseguição a Lecter. Só partilhava informações com o Bureau, quando precisava de servir­se dos recursos deles.

Para manter as aparências, deu instruções à secretária para não deixar em paz Starling quanto a desenvolvimentos. A agenda de Mason indicava à secretária que lhe telefonasse pelo menos três vezes por dia.

Mason enviou de imediato 5 mil dólares ao seu informador no Brasil para que seguisse a pista da radiografia. O fundo de despesas 

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de mancio que mandou para a Suíça foi muito superior e estava disposto a enviar mais quando tivesse informações de monta na sua Posse.

Acreditava que a sua fonte na Europa encontrara o Dr. Lecter, mas Mason tinha sido frequentemente enganado com informações e aprendera a ser cuidadoso. Não tardaria a receber algumas provas. Até essa altura e para minorar a agonia da espera, Mason preocupava­se com o que aconteceria depois do doutor se encontrar nas suas mãos. Estas disposições há muito que estavam preparadas, pois Mason era um estudante do sofrimento...

As opções de Deus na aplicação do sofrimento não são satisfatórias para nós nem tão pouco compreensíveis, a não ser que a inocência O ofenda. Ele necessita visivelmente de alguma ajuda quanto a direccionar a fuga cega com que açoita o mundo.

Mason conseguiu entender o seu papel em tudo isto no 12.o ano da sua paralisia, quando o corpo se retraiu sob os lençóis e soube que nunca mais conseguiria levantar­se. Os seus aposentos na mansão de Muskrat Farra eram excelentes e tinha meios, mas não ilimitados, pois o patriarca Verger, Mason, continuava a tomar as rédeas.

Era Natal no ano da fuga do Dr. Lecter. Preso do tipo de sentimentos que por norma caracterizam esta quadra, Mason desejava amargamente ter conseguido que o Dr. Lecter fosse assassinado no hospital psiquiátrico; Mason sabia que o Dr. Lecter andava de um lado para o outro algures pelo mundo e muito provavelmente a divertir­se.

E Mason encontrava­se deitado sob o seu respirador, com um lençol macio cobrindo tudo, e uma enfermeira de pé, mudando o peso ora para uma perna ora para outra e desejando poder sentar­se. Algumas crianças pobres haviam sido enviadas de autocarro até Muskrat Farin para entoarem as canções natalícias. Com a permissão do médico, as janelas de Mason foram abertas por breves instantes para deixar entrar o ar agreste e, sob as janelas, segurando velas nas mãos em concha, as crianças cantavam.

As luzes do quarto de Mason estavam apagadas e as estrelas pairavam no céu escuro sobre a herdade:

Oh, cidadezinha de Belém, como te vemos calmamente imóvel!

Como te vemos calmamente imóvel. Como te vemos calmamente imóvel.

A ironia do refrão atingiu­o. Como te vemos calmamente imóvel, Mason!

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As estrelas de Natal do lado de fora da janela mantinham aquele silêncio sufocante. As estrelas não lhe disseram uma só palavra quando ergueu suplicante o olho humedecido na direcção delas e gesticulou com os dedos que conseguia mexer. Mason pensou que não conseguia respirar. Se estivesse a sufocar no espaço, pensou o último olhar seria para as belas,  silenciosas e abafadas estrelas. Sentia­se a sufocar, o respirador não funcionava, tinha de esperar por ar as linhas dos seus sinais vitais nos ecrãs tremulavam, raminhos verdes de azevinho na noite da floresta negra dos ecrãs. Bloqueio da pulsação cardíaca, bloqueio sistólico, bloqueio diastólico.

A enfermeira assustou­se, prestes a carregar no botão de alarme, prestes a buscar adrenalina.

Ironia do refrão, Como te vemos calmamente imóvel, Mason. Uma Epifania, então, no Natal. Antes que a enfermeira premisse o botão, ou estendesse a mão para os medicamentos, os primeiros sinais da vingança de Mason afloraram a sua pálida e fantasmagórica mão semelhante a uma pinça e começaram a acalmá­lo.

Nas comunhões de Natal pelo mundo inteiro, os devotos acreditam que, através do milagre da transubstanciação, lhes é dado a comer o corpo e a beber o sangue de Cristo. Mason iniciou os preparativos para uma cerimónia ainda mais impressionante sem necessidade da transubstanciação. Começou as disposições para que o Dr. Hannibal Lecter fosse comido vivo.

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Capítulo quinzeA educação de Mason era estranha mas perfeitamente adequada à vida que o pai imaginou para ele e à tarefa que agora tinha pela frente.

Em criança frequentou um colégio interno que o pai pagou a peso de ouro e onde as frequentes ausências de Mason eram desculpadas. Durante semanas de cada vez, o velho Verger, dirigiu a verdadeira educação de Mason, levando o rapaz na sua companhia até aos currais e matadouros que constituíam a base da sua fortuna.

Molson Verger foi um pioneiro em muitas áreas da criação de gado, sobretudo na área da economia. As suas primeiras experiências com rações alimentares baratas comparam­se às de Batterham de há cinquenta anos antes. Molson Verger adulterava a comida dos porcos com pêlo de porco, penas de galinha moídas, estrume em doses consideradas arriscadas na altura, Na década de 40, foi considerado um cruel visionário quando tirou a água fresca aos porcos e os obrigou a beber água das valetas feita de excrementos de animais fermentados a fim de acelerar o aumento de peso. A troça findou quando os lucros começaram a encher­lhe os cofres e os rivais se apressaram a imitá­lo.

A liderança de Molson Verger na indústria das rações enlatadas não ficou por aqui. Lutou de armas e bagagens e com os seus próPrios fundos contra a Lei do Abate Humano, estritamente do ponto de vista económico, e conseguiu manter a legalidade da marca com ferro em brasa no focinho, embora pagando caro em compensações. Com Mason ao seu lado, supervisou experiências em larga escala em cercados para determinar quanto tempo se podia privar os animais de comida e de água antes do abate, sem significativas perdas de peso.

Foi a pesquisa genética apadrinhada por Verger que conseguiu finalmente a pesada e musculada raça de porcos belga sem as perdas

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dos concorrentes que atingiram os belgas. Molson Verger comprou criação de todo o mundo e apadrinhou uma série de programas imternacionais de criação.

Os matadouros são, contudo, basicamente um negócio do povo e ninguém entendia isso melhor do que Molson Verger. Conseguiu intimidar as chefias dos sindicatos quando tentaram interferir nos seus provemtos com exigências de salários e segurança. Nesta área, as suas sólidas relações com o crime organizado foram­lhe muito úteis durante 30 anos.

Nessa época, Mason denotava fortes parecenças com o pai devido às escuras e brilhantes sobrancelhas encimando olhos azuis­claros de carniceiro e uma linha de cabelo por cima da testa, descendo, na oblíqua, da direita para a esquerda. Molson Verger costumava agarrar muitas vezes a cabeça do filho num gesto afectuoso e apalpá­la como se estivesse a confirmar a paternidade do filho através da fisionomia, tal como conseguia agarrar o focinho de um porco e saber a constituição genética pela estrutura óssea.

Mason foi um bom aluno e, mesmo depois dos danos físicos sofridos o terem preso ao leito, era capaz de tomar importantes decisões de negócios a realizar pelos seus esbirros. Foi ideia do filho Mason levar o governo americano e as Nações Unidas a abaterem todos os porcos nativos do Haiti, citando o perigo da gripe suína africana que deles advinha. Conseguiu depois vender ao governo grandes porcos americanos, a fim de substituir os suínos nativos. Ao serem confrontados com as condições climatéricas do Haiti, os grandes e gordos suínos morriam em breve e tinham de ser continuamente substituídos por outros da criação de Mason até os haitianos terem substituído todos os seus porcos pelos resistentes e mexidos da República Dominicana.

Agora, com todo o conhecimento e experiência de uma vida inteira, Mason sentia­se qual Stradivarius aproximando­se da mesa de trabalho, enquanto construía os motores da vingança.

Que manancial de informação e recursos tinha Mason no seu cérebro sem rosto! Deitado na cama, compondo mentalmente como o surdo Beethoven, lembrava­se de percorrer as feiras de porcos na companhia do pai, testando a concorrência. O pequeno canivete de prata de Molson estava sempre pronto para deslizar do seu colete para o costado de um porco a fim de testar a profundidade da gordura, afastando­se depois do guincho raivoso, com um ar demasiado digno para que o desafiassem, com a mão de novo no bolso, testando a marca na lâmina.

Se tivesse lábios, Mason riria ao lembrar­se do pai espetando o canivete num porco concorrente que julgava que todos eram amigos, do choro da criança que era dono dele. O pai da criança aproximando­se

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furioso e os esbirros de Molson arrastando­o para fora da tenda. Oh! Tinham sido bons e divertidos esses tempos.

Nas feiras de porcos, Mason tinha visto porcos exóticos do mundo inteiro. Para o seu novo objectivo, juntara os melhores de todos os que vira.

Mason iniciou o seu programa de criação imediatamente a seguir à sua Epifania do Natal e centrou­a numa pequena instalação de criação de porcos que os Vergers possuíam na Sardenha, ao largo da costa de Itália. Escolheu o lugar pela sua distância e conveniência quanto à Europa.

Mason acreditava ­ correctamente ­ que a primeira paragem do Doutor Lecter fora dos EUA depois da fuga tinha sido na América do Sul. Contudo, sempre estivera convencido que a Europa era onde um homem com os gostos do Doutor Lecter se instalaria e todos os anos colocava vigias no Festival de Música de Salzburgo e noutros eventos culturais.

É isto o que Mason enviou aos seus criadores na Sardenha com o objectivo de prepararem o cenário da morte do Dr. Lecter:

O porco gigante da floresta, HyIochoerus meinertzhageni, seis tetas e 38 cromossomas, um comedor de recursos, um omnívoro oportunista, como o homem. Dois metros de comprimento nas famílias das terras altas, pesa cerca de 275 quilos. O porco gigante da floresta é a base de Mason.

O clássico javali europeu, S. scrofa scrofa, 36 cromossomas na sua forma mais pura, sem excrescências no focinho, coberto de espinhos e presas dilacerantes, um grande e feroz animal capaz de matar uma víbora com os cascos afiados e comê­la como se fosse um Slim Jim. Quando provocado, com cio ou a proteger as crias, atacará tudo o que o ameace. As fêmeas têm 12 tetas e são boas mães. No Scrofa scrofa, Mason. encontrou o tema e a configuração de focinho necessários para fornecer ao Dr, Lecter a consumação de uma derradeira e infernal visão de si próprio. (Consultar Harrís on the Pig, 1881).

Trouxe o porco da Ilha de Ossabaw pela sua agressividade, e o Jiaxing Black pelos elevados níveis de estradiol.

Uma nota falsa quando introduziu um Babirusa, Babyrousa babyrussa, da Indonésia Oriental, conhecido como o porco­veado devido ao comprimento excessivo das presas. Era de reprodução lenta com duas tetas apenas e com 100 quilos perdia no tamanho. Mas não se perdeu tempo, pois havia ninhadas idênticas que não incluíam o Babirusa.

Quanto à dentição, havia pouca variedade de escolha para Mason. Quase todas as espécies tinham dentes adequados ao objectivo, três pares de afiados incisivos, um par de caninos alongados, quatro pares de pré­molares e três pares de molares trituradores, superiores e inferiores, num total de quarenta e quatro dentes.

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Qualquer porco comerá um homem morto, mas é necessário algum treino para o levar a comer algum vivo. Os sardenhos de Mason estavam à altura da tarefa.

Agora, depois de um esforço de sete anos e muitas ninhadas, os resultados eram notáveis.

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Capítulo dezasseisCom todos os actores, à excepção do Dr. Lecter, a postos nas Montanhas Germargentu da Sardenha, Mason centrou as atenções em filmar a morte para a posteridade e para seu próprio gozo ao visioná­la. Há muito que tudo estava a postos, mas agora tinha de ser dado o alerta.

Conduziu este delicado negócio por telefone através da sua central telefónica legal da agência de apostas desportivas próximo dos Castaways, em Las Vegas. Os seus telefonemas perdiam­se no grande volume de actividade de fim­de­semana que ali decorria.

A voz radiofónica de Mason, exceptuando as consoantes explosivas e as fricativas, ressoou da Floresta Nacional junto da costa de Chesapeake até ao deserto e de volta através do Atlântico primeiro para Roma:

Num apartamento do sétimo andar de um edifício na Via Archimede, nas traseiras do hotel com o mesmo nome, o telefone está a tocar, o toque irregular e rouco de um telefone a tocar em italiano. No escuro, vozes sonolentas.

­ Cósa? Cosa cè?

­ Accendi Ia luce, idiota.

O candeeiro da mesa de cabeceira acende­se. Estão três pessoas na cama. O jovem que está mais próximo do telefone levanta o auscutador e estende­o a um homem corpulento e mais velho, no meio. No outro lado, uma rapariga loura na casa dos vinte. Ela ergue o rosto sonolento na direcção da luz e volta a deitar­se.

­ Pronto, chi? Chi parla?

­ Oreste, meu amigo. Fala Mason.

O homem corpulento recompõe­se, e faz sinal ao mais novo para que lhe dê um copo de água mineral.

­ Ah, Mason, meu amigo, desculpa, estava a dormir. Que horas são aí?

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­ É tarde em todos os sítios, Oreste. Lembras­te do que disse que faria por ti e do que tens de fazer por mim?

­ Sim. Claro.

­ Chegou a altura, meu amigo. Sabes o que quero. Quero uma montagem com duas câmaras, quero uma qualidade de som superior à dos teus filmes pornográficos e, como tens de produzir a tua própria electricidade, quero um gerador longe do cenário. Quero também uns bons metros de filme de natureza para quando editarmos, e sons de pássaros. Quero que vás amanhã ao local e prepares tudo. Podes deixar o material que eu encarrego­me da segurança e podes regressar a Roma até à altura da filmagem. Quero, porém, que estejas pronto para filmar com um aviso de duas horas antes. Compreendes, Oreste? Tens um cheque à espera no Citibank no EUR, compreendeste?­ Mason, neste momento estou a fazer...

­ Queres fazer isto, Oreste? Disseste que estavas cansado de fazer filmes porno, e treta histórica para a RAI. Queres mesmo fazer um filme a sério, Oreste?

­ Sim, Mason.

­ Então, vai hoje. O dinheiro está no Citibank. Quero que vás.­ Onde, Mason?

­ Sardenha. Apanha o avião para Cagliari. Terás alguém à espera. O telefonema seguinte foi para Porto Torres, na costa oriental da Sardenha. A chamada foi breve. Não havia muito para dizer porque lá a maquinaria há muito que estava preparada e com a eficiência da guilhotina portátil de Mason. Ecologicamente era mais saudável, mas não tão rápida.

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capítulo dezasseteNoite no coração de Florença, a velha cidade artisticamente iluminada.

O Palazzo Vecchio, ressaltando na escura piazza, inundado de luz, marcadamente medieval com as janelas em arco e ameias semelhantes à boca de uma daquelas abóboras recortadas, o campanário erguendo­se no céu negro. Morcegos perseguem mosquitos no mostrador brilhante do relógio até ao romper do dia, quando as andorinhas levantam voo, assustadas pelo toque dos sinos.

O chefe da polícia Rinaldo Pazzi da Questura, com a gabardine preta contrastando com as estátuas de mármore erguidas em locais de violação e crime, surgiu das sombras do Loggia e atravessou a píazza, ao mesmo tempo que o rosto pálido se virava como um girassol para a luz do palácio. Parou no sítio onde o reformador Savonarola foi queimado e ergueu os olhos para as janelas de onde o seu próprio antepassado fez a descida ao inferno.

Francesco de Pazzi tinha sido lançado daquela elevada janela, nu e com um nó corredio à volta do pescoço, acabando por morrer contorcendo­se e girando sobre o próprio corpo de encontro à parede dura. O arcebispo, enforcado ao lado dele com as suas vestes sagradas, não lhe deu qualquer conforto espiritual; de olhos desorbitados, e preso da raiva cega da asfixia, o arcebispo ferrou os dentes na carne de Pazzi.

Toda a família Pazzi foi dizimada naquele domingo, 26 de Abril de 1478, por ter morto Giuliano de Medici e tentado matar LorenzO, o Magnífico na catedral, durante a missa.

Agora, Rinaldo Pazzi, um Pazzi dos Pazzi, que odiava tanto o governo quanto o seu antepassado, humilhado e empobrecido, de ouvido à escuta do silvo do machado, viera a este lugar para decidir a melhor forma de utilizar um singular golpe de sorte:

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O chefe da polícia Pazzi acreditava que descobrira Hannibal Lecter a viver em Florença. Tinha uma oportunidade de recuperar a fama e usufruir das honras da profissão ao capturar o demónio. Pazzi tinha também a oportunidade de vender Hannibal Lecter a Mason Verger por mais dinheiro do que a sua imaginação alcançava... caso o suspeito fosse realmente Lecter. Claro que Pazzi venderia assim igualmente a sua própria honra esfarrapada.

Pazzi não chegara por acaso à chefia da divisão de investigação da Questura; era dotado e na sua época fora impelido por um desejo voraz de ser bem sucedido na sua profissão. Exibia ainda as cicatrizes de um homem que, na pressa e calor da sua ambição, agarrou uma vez o dom pelo gume.

Escolhera este sítio para lançar os dados, pois tinha vivido aqui um momento de epifania que o tornou famoso para depois o lançar na ruína. Pazzi tinha o forte sentido de ironia que caracteriza os italianos:

a sua revelação final ocorrera nem de propósito debaixo desta Janela, onde o espírito enfurecido do seu antepassado podia continuar a girar de encontro à parede. Neste mesmo lugar podia mudar para sempre a sorte dos Pazzi.

Foi a perseguição de um outro autor de assassínios em série, Il Monstro, que trouxe a fama a Pazzi e, em seguida, o tornou vítima dos abutres. Essa experiência possibilitou a sua nova descoberta. Contudo, o encerramento do caso do Il Monstro  deixara um sabor a cinzas na boca de Pazzi e levava­o agora a pender para um jogo arriscado e ilegal.

Il Monstro, O Monstro de Florença, atacou amantes na Toscana durante dezassete anos, nas décadas de 80 e 90. O Monstro caía sobre as vitimas quando elas se beijavam nos muitos relvados dos amantes da Toscana. Costumava matar os amantes com um revólver de pequeno calibre, dispô­los cuidadosamente num tableau com flores e expor o seio esquerdo da mulher. Os seus tableaux emanavam uma estranha familiaridade, proporcionavam uma sensação de déjà­vu.

O Monstro também amputava troféus anatómicos, à excepção de um único caso quando matou um casal homossexual alemão de cabelos compridos, aparentemente por engano.

A pressão pública sobre a Questura para que apanhassem Il Monstro era intensa e determinou o afastamento do antecessor de Rinaldo Pazzi. Quando Pazzi assumiu o cargo de investigador­chefe assemelhava­se a um homem a lutar contra um enxame de abelhas, com a imprensa a invadir­lhe o gabinete sempre que lhes era dada permissão e os repórteres fotográficos à espreita na Via Zara, por detrás da sede da Questura, por onde ele tinha de sair.

Os turistas que viajaram até Florença nessa altura lembrar­se­ão de verem colados por todo o lado os cartazes com um olho vigilante que avisava os casais a precaverem­se contra o Monstro.

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Pazzi trabalhou como um homem possuído pelo demónio. Telefonou para a Secção de Ciência Comportamental americana

do FBI, pedindo ajuda para traçar o perfil do assassino e leu tudo o que conseguiu descobrir sobre os métodos utilizados pelo FBI neste âmbito.

Utilizou medidas proactivas: alguns relvados de enamorados e pontos de encontro em cemitérios tinham mais polícia do que casais, sentados aos pares, nos carros. Não havia mulheres bastantes na polícia para esse efeito. Durante o tempo quente, casais de homens actuaram por turnos com perucas e muitos bigodes foram sacrificados. Pazzi deu o exemplo ao rapar o seu próprio bigode,

O Monstro era cuidadoso. Atacava, mas as suas necessidades não o forçavam a atacar muitas vezes.

Pazzi reparou que em anos passados havia longos períodos em que o Monstro nem sequer atacava ­ um intervalo de oito anos. Pazzi agarrou neste pormenor. Esforçada e laboriosamente, arrancando ajuda burocrática de todas as agências que podia ameaçar, confiscando o computador do sobrinho de que se serviu juntamente com a única máquina da Questura, Pazzi elaborou uma lista de todos os criminosos do Norte de Itália cujos períodos de prisão coincidiam com as lacunas de tempo na série de crimes do Il Monstro. O número era de 97.

Pazzi assenhoreou­se de um veloz, confortável e antigo Alfa Romeo GT que pertencia a um assaltante de bancos preso e, somando mais de 5000 km ao carro no espaço de um mês, visitou pessoalmente e interrogou noventa e quatro dos condenados. Os outros estavam incapacitados ou mortos.

Nos cenários dos crimes quase não havia provas que o ajudassem a reduzir a lista. Nem fluidos corporais do criminoso, nem impressões digitais.

Um único cartucho de bala foi recuperado no local de um crime, em Impruneta. Tratava­se de uma Wínchester­Western 22 com marcas de extractor compatíveis com um Colt semi­automático, talvez uma Woodrnan. As balas de todos os crimes eram de calibre 22, disparadas pela mesma arma. As balas não denotavam marcas de aplicação de um silenciador, mas a hipótese de um silenciador não podia ser excluída.

Um Pazzi era um Pazzi, mais do que tudo ambicioso, e ele tinha uma jovem e encantadora mulher cheia de exigências. Os esforÇos feitos levaram­lhe seis quilos do magro corpo. Os membros mais jovens da Questura comentavam entre si a propósito da sua semelhança com a personagem de desenhos animados Wile E. Coyote.

Quando alguns jovens espertalhões inseriram um programa no computador da Questura que transformava os rostos dos Três Tenores

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nos de um burro, um porco e um bode, Pazzi examinou os desenhos durante uns minutos e sentiu o seu próprio rosto a mudar intermitentemente para o do burro.

Ajancla do laboratório da Questura está enfeitada com alho para manter afastados os espíritos maus. Depois de ter visitado e interrogado inutilmente o último dos suspeitos, Pazzi mantinha­se de pé junto à janela, contemplando desesperado o pátio poeirento.

Pensava na sua jovem mulher, nos tornozelos bem delineados e na penugem ao fundo das costas. Pensava em como os seios estremeciam para cima e para baixo quando escovava os dentes e como ela ria ao sentir­se observada. Pensava nas coisas que desejava dar­lhe. Imaginou­a a abrir os presentes. Pensava na mulher em termos visuais; emanava um odor muito pessoal e tinha um toque maravilhoso, mas era o visual que se situava em primeiro lugar na sua memória.

Reflectiu na forma como desejava aparecer aos olhos dela. De forma alguma como no seu presente papel de alvo da imprensa... a sede da Questura em Florença situa­se num antigo hospital psiquiátrico e os cartoonistas tiravam o máximo partido deste facto.

Pazzi achava que o sucesso era fruto da inspiração. Tinha uma memória visual excelente e, à semelhança de muitas pessoas para quem a vista é o sentido mais importante, pensava na revelação como o desenvolvimento de uma imagem, primeiro enevoada e depois tornando­se nítida. Ruminava pelo processo com que a maioria de nós encara um objecto perdido: revemos a imagem na mente e comparamos a imagem com o que vemos, renovando mentalmente a imagem muitas vezes por minuto e volteando­a no espaço.

Depois, um atentado político é bomba nas traseiras do Museu Uffizzi apoderou­se da atenção do público e do tempo de Pazzi. Mesmo enquanto se ocupava do importante atentado bombista

do museu, as imagens criadas de Il Monstro permaneceram na mente de Pazzi. Via perifericamente os tableaux  do Monstro, tal como olhamos ao lado de um objecto para o divisar no escuro. Detinha­se sobretudo no casal encontrado morto na cama de uma furgoneta em Impruneta, os corpos cuidadosamente dispostos pelo monstro, adornados e engrinaldados de flores, com o seio esquerdo da mulher exposto.

Pazzi saíra ao princípio de uma tarde do Museu Uffizzi e atravessava a Piazza Signoria mesmo ao lado, quando uma imagem lhe saltou aos olhos da banca de um vendedor de postais.

Sem ter certezas de onde lhe vinha a imagem, parou mesmo no sítio onde Savonarola foi queimado. Virou­se e olhou em volta. Os turistas enchiam a piazza. Pazzi sentiu um arrepio na espinha. Talvez tudo aquilo estivesse apenas na sua cabeça, a imagem, a chamada de atenção. Voltou atrás e regressou ao mesmo sítio.

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Lá estava: um pequeno poster salpicado de manchas de moscas e pingos de chuva do quadro Primavera de Botticelli. A pintura original encontrava­se atrás dele, no Museu Uffizi. Primavera. A ninfa engrinaldada à direita, com o seio esquerdo exposto, e flores saindo­lhe da boca, enquanto o pálido Záfiro tentava alcançá­la vindo da floresta.

Lá estava. A imagem do casal morto no chão da furgoneta, enfeitados de flores, flores na boca da rapariga. Igual. Igual.

Neste local onde o seu antepassado girara, morrendo por asfixia, de encontro à parede, surgiu­lhe a ideia, a imagem principal que Pazzi procurava era uma imagem criada há quinhentos anos por Sandro Botticelli... o mesmo artista que, por quarenta florins, pintara a imagem do enforcado Francesco de Pazzi na parede da prisão Bargello, com nó corredio e tudo. Como podia Pazzi resistir a esta inspiração, de uma tão espantosa origem?

Tinha de se sentar. Todos os bancos estavam cheios. Restou­lhe a alternativa de mostrar o distintivo e exigir um lugar num banco a um homem de idade cujas muletas apenas viu, sinceramente, quando o velho veterano se levantou equilibrado na única perna e se expressou num tom bem elevado e brusco.

Pazzi estava excitado por dois motivos. Descobrir a imagem que Il Monstro usava constituía um triunfo, mas muito mais importante era o facto de Pazzi ter visto uma cópia da Primavera quando fizera a ronda pelos suspeitos de crime.

Atormentar a memória não era um método que lhe agradasse; recostou­se, pôs­se a divagar e chamou recordações. Regressou ao Uffizi e manteve­se algum tempo diante da Primavera original, mas não demasiado. Caminhou devagar até à feira da ladra, tocou no focinho de bronze do urso Il Porcellino, conduziu até ao Ippocampo e, encostando­se ao capot do seu carro coberto de pó, com o cheiro a óleo aquecido, observou as crianças a jogarem futebol...

Reveu mentalmente as escadas e o patamar por cima, sendo o topo do poster da Primavera a primeira imagem quando subiu os degraus; conseguiu recuar e divisar por um segundo a porta de entrada, mas a memória falhava quanto à rua ou rostos.

Sabedor dos processos de interrogatório, questionou­se a si próprio, recorrendo aos sentidos secundários:

Quando viste o poster, o que ouviste?... Panelas a tilintarem na cozinha de um rés­do­chão. Quando subiste até ao patamar  e paraste diante do poster, o que ouviste? A televisão. Uma televisão numa sala de estar Robert Stack fazendo o papel de  Eliot Ness nos Gli Intoccabile. Cheirou­te a cozinhados? Sim, cozinhados. Cheirou­te a mais alguma coisa? Vi o poster ­ NÃO, não o que viste. Cheirou­te a mais alguma coisa? Ainda conseguia cheirar o Alfa, quente por dentro, continuava no  meu nariz, cheiro a óleo aquecido... aquecido da Raccordo, rodando velozmente pela

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Raccordo Autoestrada para onde? San Casciano. Ouvi também um cão a ladrar em San Casciano, um assaltante e violador  chamado Girolamo qualquer coisa.

Nesse momento em que se estabelece o contacto, nesse espasmo sinático de finalização em que o pensamento se liga ao fusível vermelho, atinge­se o pico do prazer. Rinaldo Pazzi vivera o melhor momento da sua existência.

Hora e meia depois, Pazzi procedera à detenção de Girolamo Tocca. A mulher de Tocca atirou pedras à pequena comitiva que lhe levava o marido.

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Capítulo dezoitoTócca era o suspeito perfeito. Enquanto jovem, cumprira nove anos de prisão pelo assassínio de um homem que apanhou a beijar a noiva dele num relvado. Enfrentara também acusações por molestar sexualmente as filhas e outros abusos domésticos e cumprira uma sentença na prisão por violação.

A Questura quase destruiu a casa de Tocca a tentar encontrar provas. Por fim, o próprio Pazzi, numa busca aos terrenos de Tocca, descobrira um cartucho vazio que foi uma das poucas provas físicas apresentadas pela acusação.

O julgamento causou sensação. Realizou­se num edifício de alta segurança chamado Bunker, onde se efectuavam os julgamentos de terroristas na década de 70, em frente às instalações do jornal La Nazíone em Florença. O júri, constituído por cinco homens e cinco mulheres sob juramento, condenaram Tocca quase sem provas, exceptuando o seu carácter. A maioria do público achava que ele era inocente, mas muitos afirmaram que Tocca era um asco e estava muito bem na prisão. Aos 65 anos recebeu uma condenação de 40 anos em Volterra.

Os meses seguintes foram uma época áurea. Nunca um Pazzi tinha sido tão famoso nos últimos quinhentos anos, desde que Pazzo de Pazzi regressou da Primeira Cruzada com lascas do Santo Sepulcro.

Rinaldo Pazzi e a sua bonita mulher ficaram ao lado do arcebispo na Duomo quando, segundo o ritual tradicional da Páscoa, estas mesmas lascas foram utilizadas para acender a pomba despoletada por um foguete que voou da igreja ao longo do fio metálico e accionou o fogo de artifício destinado a uma multidão exultante.

Os jornais beberam todas as palavras que Pazzi pronunciou disPensando moderados elogios aos subordinados pelo trabalho que haviam executado. A Signora Pazzi era consultada sobre moda e ficava lindíssima com a roupa que os estilistas a encorajavam a vestir. 

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Eram convidados para luxuosos chás nas casas dos poderosos e jantaram com um conde no seu castelo, rodeados por armaduras.

Pazzi foi sugerido para cargos políticos, elogiado acima do barulho geral no parlamento e incumbido de dirigir o esforço de cooperação entre Itália e o FBI americano contra a máfia.

Essa missão e uma bolsa para estudar e participar em seminários de criminologia na Georgetown University levaram os Pazzi até Washington D.C. O chefe da polícia passou muito tempo      na Ciência Comportamental em Quantico e sonhava criar uma secção de Ciência Comportamental em Roma.

Depois, passados dois anos, a calamidade: numa atmosfera mais calma, um tribunal de apelação que não estava submetido à pressão pública concordou em rever a condenação de Tócca. Pazzi foi chamado ao seu país, a fim de enfrentar a investigação. Entre os ex­colegas que deixara para trás, os punhais estavam desembainhados contra ele.

Um júri de apelação anulou a condenação de Tócca e repreendeu Pazzi, afirmando que o tribunal acreditava que ele falsificara provas. Os seus ex­apoiantes com cargos de relevo fugiram dele como se estivesse empestado. Continuava a ser um funcionário importante da Questura, mas era um incompetente e todos o sabiam. O governo italiano actua lentamente, mas o machado não tardaria a abater­se.

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Capítulo dezanoveFoi nesse terrível tempo de pausa, enquanto Pazzi aguardava o machado que viu pela primeira vez o homem conhecido pelos eruditos de Florença como Dr. Fell.

Rinaldo Pazzi subia as escadas do Palazzo Vecchio numa missão insignificante, uma das muitas que lhe descobriam os seus ex­subordinados da Questura, enquanto saboreavam a sua queda do trono. Pazzi via somente as biqueiras dos seus sapatos na pedra irregular e não as maravilhas que o rodeavam, enquanto subia junto à parede com frescos. Há quinhentos anos, o seu antepassado fora arrastado a esvair­se em sangue por estas escadas.

Num patamar, endireitou os ombros num gesto viril e obrigou­se a fixar os olhos das pessoas pintadas nos frescos, algumas delas suas familiares, já lhe chegava o ruído das vozes acaloradas do Salão dos Lírios sobre a sua cabeça, onde os directores da Galeria Uffizzi e a Comissão Belle Arti se encontravam reunidos.

Era esta a missão de Pazzi desse dia. desaparecera o conservador do Palazzo Cappono. Acreditava­se que o velho senhor fugira com uma mulher, o dinheiro de alguém ou as duas coisas. Não comparecera às últimas quatro reuniões mensais com o corpo governamental aqui no Palazzo Vecchio.

Pazzi recebera ordens para prosseguir a investigação.

O inspector­chefe Pazzi, que fizera uma dura prelecção a estes mesmos sombrios directores do Uffizzi e membros da rival Comissão Belle Arti sobre a segurança depois do atentado à bomba ao museu, tinha agora de comparecer diante deles numa posição de inferioridade para fazer perguntas sobre a vida amorosa de um conservador de museu. Não estava muito ansioso pelo momento.

Os dois comités formavam uma assembléia briguenta e irritadiça ­ há anos que nem sequer concordavam sobre um local de reunião,

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nem se dispunham a reunir­se nos gabinetes uns dos outros. Optavam em vez disso pelo magnífico Salão dos Lírios no Palazzo Vecchio, pois todos os membros achavam que a bonita sala se adequava à sua própria eminência e distinção. Uma vez instalados aqui, recusavam encontrar­se em qualquer outro lugar, embora o Palazzo Vecchio estivesse a atravessar uma das suas milhares de restaurações com andaimes, panos caídos e máquinas por todo o lado.

O professor Ricci, um velho colega de escola de Rinaldo Pazzi, estava no corredor do lado de fora de salão com um ataque de espirros provocado pelo pó da caliça. Quando se recompôs o suficiente, revirou os olhos lacrimejantes na direcção de Pazzi.

­ La solita arringa ­ comentou Ricci. ­ Estão a discutir como de costume. Vieste por causa do desaparecido conservador Capponi? Estão a debater precisamente o cargo dele. Sogliato quer o lugar para o sobrinho. Os eruditos mostram­se impressionados com o conservador temporário que nomearam há uns meses, Doutor Fell. Querem mantê­lo.

Pazzi deixou o amigo à procura de lenços de papel nos bolsos e dirigiu­se ao histórico salão com o seu tecto de lírios dourados. Panos pendurados em duas das paredes ajudavam a minorar o barulho.

O nepotista, Sogliato, tinha a palavra e marcava o discurso pelo volume da voz:

­ A correspondência dos Cappom remonta ao século xiii. O Doutor Fell pode ter na mão, na sua mão não­italiana, um bilhete do próprio Dante Alighieri. Reconhecè­lo­ia? Não me parece. Examinou­o em italiano medieval e admito que a sua linguagem é admirável. Para um straniero. Mas estará familiarizado com as personalidades da Florença pré­renascentista? Não me parece. E se encontrasse por exemplo um bilhete na biblioteca Cappom de... de Guido di Cavalcanti por exemplo? Reconhecê­lo­ia? Não me parece. Quer comentar, Doutor Fell?

Rinaldo Pazzi perscrutou o salão e não viu ninguém que identificasse como Doutor Fell, embora ainda não há uma hora tivesse examinado uma fotografia do homem. Não viu o Doutor Fell, porque o doutor não estava sentado com os outros. Primeiro, Pazzi ouviu­lhe a voz e depois localizou­o.

O Dr. Fell mantinha­se muito quieto ao lado da grande estátua em bronze de Judite e Holofernes, virado de costas para o orador e a assistência. Falou sem se virar e era difícil saber de que figura vinha a voz, se... de Judite, com a espada permanentemente erguida para atingir o rei embriagado, ou de Holofernes, agarrado pelos cabelos, ou do Dr. Fell, baixo e calmo ao lado das figuras em bronze de Donatello. A voz cortou o barulho com a intensidade de um raio laser através do fumo e os altercadores silenciaram­se:

­ Cavalcanti respondeu publicamente ao primeiro soneto de Dante de La Vita Nuova, em que Dante descreve o seu estranho sonho

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sobre Beatrice Portinari ­ disse o Dr. Fell. ­ Talvez Cavalcanti também tivesse feito comentários privados. Se escrevesse a um Capponi, seria a Andrea, que era mais votado à literatura do que os irmãos. O Dr. Fell voltou­se para enfrentar o grupo com o seu próprio ritmo, depois de um intervalo incomodativo para todos menos para ele, Conhece o primeiro soneto de Dante, Professor Sogliato? Conhece? Fascinou Cavalcanti e vale o seu tempo. Diz em parte...

... Quase se tinha atingido a hora

em que a luz estelar mais viva nos parece, quando de súbito o amor se me mostrou,

e de talforma que lembrá­lo me horroriza. Alegre me parecia, tendo

numa das mãos meu coração, e nos braços envolta num cendal, minha   dama, adormecida. Despertou­a: e desse coração  que ardia,

Ela comia, receosa, humildemente; Vi­o depois afastar­se soluçando.

Escutem a maneira como ele instrumentiza o vernáculo italiano, no que chamava a vulgari eloquentía do povo:

... Allegro mi sembrava Amor tenendo Meo core in mano, e ne le braccia avea Madonna involta in un drappo dormendo.  Poi Ia svegliava, e Xesto core ardendo Lei paventosa umílmente pascea

Appreso gir lo ne vedea piangendo.

Até mesmo os mais litigiosos Florentinos mostravam­se incapazes de resistir aos versos de Dante, ressoando nestas paredes cobertas de frescos, pronunciados no impecável toscano do Dr. Fell. Às palmas seguiram­se os fortes aplausos com olhos humedecidos de lágrimas e os membros aclamaram o Dr. Fell como mestre do Palazzo CaPpom, apagando Sogliato. Pazzi não poderia afirmar se a vitória agradava ao Doutor, pois ele tinha virado novamente as costas. Contudo, Sogliato ainda não acabara:

­ Se ele é, na realidade, um perito em Dante, que discurse sobre Dante nafrente do Studiolo. ­ Sogilato sibilou o nome, como se se tratasse da Inquisição. ­ Que o enfrente ex tempore, na sexta­feira, se puder. ­ O Studiolo, que devia o nome a um pequeno e adornado estúdio

1 Vida Nova, Dante Alighieri. Tradução de Carlos Eduardo Soveral, Guimarães Editores. (N.da T)

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privado, era um reduzido e implacável grupo de eruditos que havia rojado pela lama uma série de reputações académicas e se reunia com frequência no Palazzo Vecchio. Preparar­se para eles era considerado uma tarefa de monta e enfrentá­los um risco. O tio de Sogliato apoiou a moção e o cunhado de Sogliato apelou à votação, que a irmã registou nos minutos seguintes. A moção passou. A nomeação manteve­se, mas o Dr. Fell teria de satisfazer o Studiolo para a conservar.

Os comités tinham um novo conservador para o Palazzo Capponi, não sentiam a falta do antigo conservador e deram respostas muito breves às perguntas do infeliz Pazzi sobre o homem desaparecido. Pazzi aguentou­se de uma forma espantosa.

Qual bom investigador, pesava cuidadosamente as circunstâncias. Quem beneficiaria do desaparecimento do ex­conservador? O conservador desaparecido era um homem solteiro, um respeitado e calmo erudito que levava um quotidiano normal. Tinha algumas economias, nada de significativo. Vivia do emprego e usufruía do privilégio de ocupar o sótão do Palazzo Capponi.

E aqui estava o recém­nomeado, confirmado pelo conselho depois de um detalhado interrogatório sobre a história de Florença e Italiano arcaico. Pazzi tinha examinado os impressos de candidatura do Dr. Fell e os certificados do Serviço Nacional de Saúde.

Pazzi aproximou­se dele no momento em que os membros do conselho directivo estavam a arrumar as pastas para regressar a casa.­ Doutor Fell.

­ Sim, Conmendatore?

O novo conservador era baixo e untuoso de modos. Tinha a parte de cima das lentes dos óculos fumadas e as roupas escuras eram de corte elegante, mesmo para Itália.

­ Perguntava a mim mesmo se teria conhecido o seu antecessor? ­ As antenas de um polícia experiente estão sintonizadas para detectar o medo. Ao observar cuidadosamente o Dr. Fell, Pazzi registou uma calma absoluta.

­ Nunca o conheci. Li várias das suas monografias na Nuova Antologia. ­ O toscano coloquial do Doutor era tão claro quanto o discursivo. Se existia algum sotaque, Pazzi não conseguia detectá­lo.

­ Sei que os agentes encarregados da primeira investigação revistaram o Palazzo Capponi em busca de qualquer bilhete, um bilhete de despedida, um bilhete de suicídio e não descobriram nada. Se encontrar algo nos documentos, algo de pessoal ainda que insignificante, telefona­me?

­ Claro, Conmendatore Pazzi.

­ Os objectos pessoais dele ainda se encontram no Palazzo?­ Metidos em duas malas, com um inventário.

­ Mandarei... virei aqui buscá­los.

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­ Telefona­me primeiro, Commendatore? Posso desligar o sistema de segurança antes da sua chegada e poupar­lhe tempo.

o homem demasiado calmo. Normalmente, deveria recear­me um pouco. Pede­me que lhe telefone antes de aparecer.

A comissão tinha irritado Pazzi. Nada podia contra esta realidade. Agora, sentia­se picado pela arrogância deste homem. E correspondeu na mesma moeda:

­ Posso fazer­lhe uma pergunta pessoal, Doutor Fell?­ Se o seu dever assim o exigir, Commendatore.

­ Tem uma cicatriz relativamente recente nas costas da mão esquerda.

­ E o senhor tem uma aliança nova na sua: La Vita Nuova? sorriu o Doutor Fell. Tem dentes pequenos, muito brancos. Naquele instante de surpresa antes de dar tempo a Pazzi para se resolver sentir­se ofendido, o Dr. Fell levantou a mão com a cicatriz e acrescentou: ­ Síndrome do túnel de carpal, Commendatore. A História é uma profissão perigosa.

­ Por que é que não mencionou o síndrome do túnel de carpal nos impressos do Serviço de Saúde, quando veio trabalhar para aqui?­ Estava certo, Commendatore, que os danos só são relevantes

quando se recebe pensão de invalidez. Não é esse o meu caso. Não estou inválido.

­ A cirurgia foi, portanto, efectuada no Brasil, o seu país de origem.­ Não foi em Itália. Não recebi nada do governo italiano ­ retorquiu o Dr. Fell, como que ciente de ter dado uma resposta satisfatória.

Foram os últimos a abandonar a sala de conselho. Pazzi chegara junto da porta, quando o Dr. Fell o chamou.

­ Commendatore Pazzi?

O Dr. Fell era uma silhueta escura recortada nas janelas altas. Atrás dele, à distância, erguia­se a Duomo.

­ Sim?

­ Acho que é um Pazzi dos Pazzi, acertei?

­ Sim. Como o soube? ­ Pazzi consideraria extremamente indelicada qualquer alusão à recente cobertura jornalística.

­ Parece­se com uma das figuras dos baixos­relevos de Della Robbia na capela da sua família, em Santa Croce.

­ Ah! Esse era Andrea de Pazzi representado como João Baptista ­ elucidou Pazzi com uma pequena chama de satisfação no coração amargo.

Quando Rinaldo Pazzi abandonou a figura baixa, em pé na sala do conselho, a última impressão que lhe ficou do Dr. Fell foi a de uma calma extraordinária.

Não tardaria a acrescentar mais a essa impressão.

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Capítulo vinteAgora que a permanente exposição nos imunizou à lascívia e vulgaridade, torna­se educativo descobrir o que ainda nos parece perverso. O que ainda agita a flacidez do nosso submisso inconsciente com força bastante para nos chamar a atenção?

Em Florença, foi a exposição intitulada Instrumentos de Tortura Atrozes e foi aqui que Rinaldo Pazzi encontrou o Dr. Fell pela segunda vez.

A exposição, que revelava mais de 20 instrumentos clássicos de tortura com uma extensa documentação, foi montada no assustador Forte de Belvedere, uma fortaleza dos Medici do século xvi, que defende a muralha a sul da cidade. A exposição foi visitada por uma imensa e inesperada multidão; a excitação provocava o efeito de uma truta aprisionada dentro de umas calças.

A mostra dos Instrumentos de Tortura Atrozes estava programada para um mês e durou seis meses, igualando o chamariz das Galerias Uffizi e ultrapassando o Museu do Palácio Pitti.

Os promotores, dois taxidermistas falhados que dantes sobreviviam comendo os restos dos troféus que montavam, tornaram­se milionários e iniciaram uma digressão triunfal pela Europa com a sua exposição, fazendo gala nos hings novos.

Os visitantes chegavam em casais, na maioria de toda a Europa, aproveitando o horário prolongado para formarem fila entre os engenhos de dor e lerem atentamente, em qualquer das quatro línguas, a proveniência dos aparelhos e como os usarem. Ilustrações de Dürer e de outros, juntamente com diários contemporâneos, elucidavam as multidões sobre assuntos como os processos mais requintados de quebrar os membros da vítima com a roda,

A indicação de um dos placards:

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os príncípes italianos preferiam quebrar os ossos das vítimas no chão

servindo­se da roda deferro como agente e blocos sob os membros segundo se mostra, enquanto no Norte da  Europa o método popular consistia em atar a vítima à roda, quebrá­lo ou quebrá­la com uma barra de ferro e  depois enfiar os membros através dos espigões a toda a periferia da roda, com as fracturas fornecendo a  necessária flexibilidade e a cabeça e o tronco ainda em funcionamento no centro. Este último método oferecia  um espectáculo mais satisfatório, mas a diversão podia ser breve se um bocado da medula se dirigisse ao  coração.

A exposição dos Instrumentos de Tortura Atrozes agradaria indubitavelmente a um conhecedor do pior da humanidade. Contudo, a essência do pior, a assa­fétida do espírito humano,

não se encontra na Dama de Ferro, nem no gume afiado; a Fealdade Elementar encontra­se nos rostos da multidão.

Na obscuridade desta grande sala de pedra, sob as jaulas pendentes e iluminadas dos condenados, encontrava­se o Doutor Fell, conhecedor de expressões distorcidas, segurando os óculos na mão da cicatriz, com uma ponta da haste nos lábios, observando extasiado os rostos das pessoas que formavam filas.

Foi aí que Rinaldo Pazzi o avistou.

Pazzi cumpria a sua segunda tarefa insignificante do dia. Em vez de jantar com a mulher, abria caminho por entre a multidão, a fim de colar novos avisos para os casais sobre o Monstro de Florença, que não conseguira apanhar. Um destes cartazes ressaltava sobre a sua secretária, aí colocado pelos novos superiores, juntamente com outros cartazes de «procurados» no mundo inteiro.

Os taxidermistas, ambos de serviço à bilheteira, ficaram satisfeitos por poderem adicionar um pouco de horror contemporâneo à exposição, mas pediram a Pazzi que fosse ele a colocar o cartaz, pois nenhum parecia disposto a deixar o companheiro sozinho com o dinheiro. Alguns moradores locais reconheceram Pazzi e assobiaram­lhe protegidos pelo anonimato da multidão.

Pazzi pregou pionaises nos quatro cantos do cartaz azul, com o seu único olho vigilante, num placard próximo da saída onde chamaria mais as atenções e acendeu uma luz por cima, a fim de o iluminar. Enquanto observava a saída dos casais, Pazzi verificou que Muitos estavam excitados e se esfregavam uns nos outros, no meio da multidão. Não desejava ver mais tableaux, nem sangue ou flores.

Pazzi queria falar com o Dr. Fell ­ seria conveniente levar os objectos pessoais do conservador desaparecido já que estava tão próximo do Palazzo Capponi. Quando, porém, Pazzi virou costas ao placard, o doutor tinha desaparecido. Não se encontrava entre o fluxo das pessoas que saíam. Havia somente a parede de pedra a que ele

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se encostara, por baixo da jaula pendurada da morte pela fome, com o esqueleto em posição fetal ainda suplicando que lhe dessem de comer.

Pazzi ficou irritado. Abriu caminho pelo meio da multidão até à rua, mas não encontrou o doutor.

O guarda à saída reconheceu Pazzi e não disse nada quando ele passou por cima da corda e desapareceu nos terrenos escuros do Forte de Belvedere. Dirigiu­se ao parapeito e olhou para norte, do outro lado do Arno. A velha Florença estendia­se aos seus pés, com a curva pronunciada da Duomo e a torre do Palazzo Vecchio recortada na luz.

Pazzi era um espírito muito velho, contorcendo­se no espigão do ridículo. A cidade troçava dele.

O FBI americano aplicara o torção final na faca espetada nas costas de Pazzi, declarando à imprensa que o perfil do FBI de Il Monstro nada tinha a ver com o homem detido por Pazzi. La Nazione acrescentou que Pazzi «enviara Tocca para a prisão sob um falso pretexto».

A última vez que Pazzi colocara o cartaz azul de Il Monstro foi na América; era um orgulhoso troféu que pendurou na parede da secção de Ciência Comportamental e assinara­o a pedido dos agentes do FBI americano. Eles sabiam tudo a respeito dele, admiravam­no, convidavam­no para suas casas. juntamente com a mulher tinha frequentado as casas de Maryland.

De pé, junto ao escuro parapeito, contemplando a sua cidade mergulhada na escuridão, cheirava o ar salgado de Chesapeake, via a mulher na praia com os ténis brancos novos.

Havia um quadro de Florença que lhe mostraram a título de curiosidade na Ciência Comportamental, em Quantico. Tratava­se da mesma vista que tinha agora diante dos olhos, a velha Florença olhada do Belvedere, a melhor paisagem que existe. Só que não era a cores. Era um desenho a lápis, com sombras de carvão. O desenho inseria­se numa fotografia, no fundo de uma fotografia. Era uma foto do serial killer americano, Dr. Hannibal Lecter. Hannibal, o Canibal. Lecter desenhara Florença de memória e o desenho encontrava­se pendurado na sua cela do hospital psiquiátrico, um lugar tão sombrio como este.

Quando ocorrera este esboço de ideia a Pazzi? Duas imagens, Florença estendida aos seus pés e o desenho de que se recordava. Ao colocar o cartaz de Il Monstro, há uns minutos. O cartaz de Mason Verger de Hannibal Lecter no seu próprio gabinete, com a elevada recompensa e indicações:

O DOUTOR LECTER TERÁ DE ESCONDER A MÃO ESQUERDA E PODE TENTAR ALTERÁ­LA CIRURGICAMENTE, POIS O SEU TIPO DE POLIDACTILIA, O APARECIMENTO DE DEDOS EXTRAPERFEITOS, É EXTREMAMENTE RARA E IMEDIATAMENTE IDENTIFICÁVEL.

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O Dr. Fell segurando os óculos junto aos lábios com a mão marcada pela cicatriz.

Um esboço detalhado desta vista na parede da cela de Hannibal Lecter.

Teria a ideia ocorrido a Pazzi quando ele observava a cidade de Florença aos seus pés ou surgido do escuro que encimava as nuvens? E por que é que trazia o cheiro da brisa salgada de Chesapeake?

Para um homem que considerava a vista como o sentido principal, a ligação verificou­se através de um som, um som feito por uma gota caindo num lago a encher.

Hannibal Lecter fugira para Florença plop

Hannibal Lecter era o Doutor Fell.

A voz interior de Rinaldo Pazzi segredava­lhe que ele podia ter enlouquecido na jaula do seu sofrimento; a sua mente agitada poderia estar a destruir­se contra as grades, como o esqueleto na jaula da morte pela fome.

Sem qualquer recordação de movimento, viu­se no portão renascentista que proporcionava a passagem do Belvedere para a íngreme Costa San Giorgio, uma rua estreita em ziguezague e que mergulha no coração da velha Florença, em menos de oitocentos metros. Os passos pareciam transportá­lo ao longo das pedras irregulares sem desígnio da vontade, avançava mais rapidamente do que desejava, procurando na sua frente o homem chamado Dr. Fell, pois era este o percurso até casa dele ­ a meio caminho, Pazzi virou para a Costa Scarpuccia, descendo sempre até ir dar à Via deBardi, junto ao rio. Próximo do Palazzo Capponi, a casa do Dr. Fell.

Pazzi, ofegante da descida, descobriu um lugar protegido da luz dos candeeiros da rua, na entrada de um bloco de apartamentos do lado oposto ao palazzo. Se alguém aparecesse, podia virar­se e fingir que carregava numa campainha.

O palazzo estava escuro. Por cima das grandes portas duplas, Pazzi divisava a luz vermelha de uma câmara de vigilância. Não podia ter certezas quanto a se trabalhava a tempo inteiro ou era somente accionada quando alguém tocava à campainha. Estava bastante inserida na entrada coberta. Pazzi não achava que pudesse inspeccionar ao longo da fachada.

Aguardou meia hora, escutando o som da própria respiração e o doutor não apareceu. Talvez se encontrasse no interior, de luzes apagadas.

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A rua apresentava­se vazia. Pazzi atravessou rapidamente e manteve­se encostado à parede.

Fraco, muito fraco, um som vindo do interior. Pazzi encostou a cabeça às grades frias da janela e pôs­se à escuta. Um cravo, as Variações Goldberg de Bach bem tocadas.

Pazzi tinha de esperar, mover­se lentamente e reflectir. Era demasiado cedo para espantar a caça. Precisava decidir o que fazer. Não queria voltar a fazer figura de idiota, Ao recuar até à sombra do outro lado da rua, o nariz foi a última coisa a desaparecer.

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capítulo vinte e umReza a tradição que o mártir cristão São Miniato levantou a sua cabeça degolada da areia do anfiteatro romano em Florença e levou­a, debaixo do braço, até às montanhas do outro lado do rio, onde jaz na sua maravilhosa igreja.

Não há dúvida que o corpo de São Miniato, erguido ou não, percorreu a antiga rua onde agora nos encontramos, a Via de Bardi. A noite adensa­se, a rua está vazia e o desenho das pedras brilha sob os chuviscos de Inverno sem o frio bastante para eliminarem o cheiro a ratos. Encontramo­nos no meio dos palácios construídos há seiscentos anos pelos príncipes mercadores e coniventes da Florença Renascentista. À distância de um disparo de seta do outro lado do rio situam­se o cruel espigão da Signoria onde o monge Savaranola foi enforcado e queimado e o grande matadouro de Cristos crucificados, o Museu Uffizi.

Todos estes palácios de família, unidos numa rua antiga, congelados na moderna burocracia italiana, denotam uma arquitectura prisional no exterior, mas contêm grandes e graciosos espaços, altos e silenciosos corredores que nunca ninguém vê, revestidos de reposteiros apodrecidos e estragados pela chuva onde obras menores de mestres renascentistas se mantêm no escuro durante anos e apenas são iluminados pelos relâmpagos quando os reposteiros caem.

Ao vosso lado ergue­se o palazzo dos Capponi, uma família distinta durante mil anos, que rasgou o ultimato de um rei francês diante dele e originou um papa.

As janelas do Palazzo Cappom estão agora imersas na escuridão, Por detrás dos portões de ferro. As argolas das tochas apresentam­se vazias. Naquele caixilho de vidro antigo há o buraco de uma bala da década de 40. Aproximem­se mais. Encostem a cabeça ao ferro frio tal como o polícia fez e escutem. Conseguem ouvir o som abafado

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de um cravo. As Variações Goldberg de Bach tocadas, não primorosamente, mas muito bem, com uma magnífica compreensão da música. Tocadas não primorosamente, mas muito bem, há talvez uma leve rigidez na mão esquerda.

Se acreditarem que estão imunes ao perigo, entrarão? Entrarão neste palácio tão cheio de sangue e glória, seguirão através do escuro pejado de teias de aranha, na direcção do toque requintado do cravo? Os alarmes não podem ver­nos. O polícia molhado e escondido na ombreira da porta não pode ver­nos. Venham...

Nofoyer o escuro é quase total. Uma comprida escadaria de pedra, o corrimão frio das escadas sob a nossa mão escorregadia, os degraus escavados pelas centenas de anos de passos, irregulares sob os nossos pés à medida que subimos na direcção da música.

As elevadas portas duplas do salão principal guinchariam e uivariam nos gonzos, se tivéssemos de abri­las. Para vocês estão abertas. A música vem do mais remoto canto e do canto chega a única luz, luz de muitas velas derramando um brilho avermelhado através da pequena porta de uma capela a seguir ao canto da sala.

Atravessem até junto da música. Mal nos damos conta de passar junto a enormes conjuntos de peças de mobiliário tapadas, formas vagas ondulantes à luz da vela, como um rebanho adormecido. Sobre as nossas cabeças a altura da divisão funde­se no escuro.

A luz incide em tons de brasa num cravo adornado e no homem conhecido entre os eruditos renascentistas como Dr. Fell, o elegante doutor, de costas direitas que se inclinam para a música, enquanto a luz reflecte o cabelo e também as costas do roupão de seda almofadado com um brilho de pêlo.

A tampa erguida do cravo está decorada com a intrincada cena de um banquete e as figurinhas parecem pairar à luz da vela sobre as cordas. Toca de olhos fechados. Não precisa de pauta. Diante dele, na estante de música em forma de lira, está um exemplar do tablóide sensacionalista americano The National TattIer. Está dobrado de maneira a mostrar apenas o rosto na primeira página, o rosto de Clarice Starling.

O nosso músico sorri, termina a peça, repete uma vez a sarabanda para seu próprio prazer e quando a última corda puxada vibra até se silenciar na imensa sala, abre os olhos, cada uma das pupilas de um castanho avermelhado escuro, reflectindo a luz em pontinhos vermelhos. inclina a cabeça de lado e fixa o jornal que tem na frente.

Levanta­se sem fazer ruído e leva o tablóide americano para a minúscula e adornada capela, construída antes da descoberta da América. Enquanto o ergue à luz das velas e o desdobra, os ícones religiosos sobre o altar parecem ler o tablóide por cima do seu ombro, como o fariam numa fila para a mercearia. O tipo de letra à Raílroad

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Gothic e diz: ANJO DA MORTE: CLARICE STARLING, A ARMA MORTíFERA DO FBI.

Rostos pintados em agonia e beatitude à volta do altar desvanecem­se quando ele apaga as velas. Não precisa de luz para atravessar o imenso corredor. Uma corrente de ar quando o Dr. Hannibal Lecter passa ao nosso lado. A grande porta chia, fecha­se com um baque que podemos sentir repercutido no chão. Silêncio.

Passos entrando numa outra sala. Nas ressonâncias deste lugar, as paredes estão mais próximas, o tecto ainda se perde na altura sons agudos ecoam do cimo ­ e a atmosfera parada detém o cheiro a pergaminho e pavios extintos.

o restolhar de papel no escuro, o ranger e chiar de uma cadeira. O Doutor Lecter senta­se numa grande cadeira de braços na imponente biblioteca Capponi. Os olhos reflectem a luz em pontinhos vermelhos, mas não são brasas no escuro, como alguns dos seus guardas o juraram. A escuridão é total. Está a reflectir...

É verdade que o Dr. Lecter criou a vaga no Palazzo Capponi desfazendo­se do antigo conservador ­ um processo simples exigindo um trabalho de escassos segundos no velho e o modesto preço de dois sacos de cimento ­, mas uma vez desimpedido o caminho, ganhou justamente o emprego, demonstrando frente ao Comité Belli Arte uma eximia capacidade linguística, traduzindo manuscritos em italiano medieval e latim, baseados em densos manuscritos góticos.

Encontrou aqui uma paz que está decidido a preservar ­ não matou ninguém, exceptuando o seu antecessor, desde que reside em Florença.

O seu cargo de tradutor e conservador da Biblioteca Capponi é bastante valioso para ele por vários motivos:

Os espaços, a altura das salas do palácio são importantes para o Dr. Lecter, depois de anos de prisão restritiva. Mais importante ainda, sente uma sintonia com o palácio; é o único edifício privado que conhece que se aproxima, em dimensão e detalhe, do Palácio da Memória que manteve desde a juventude.

Na biblioteca, com esta colecção única de manuscritos e correspondência remontando ao princípio do século xiii, pode satisfazer uma certa curiosidade sobre si próprio.

Com base em registos familiares fragmentados, o Dr. Lecter acreditava que descendia de um tal Giuliano Bevisangue, uma temível figura do século XII da Toscana e também dos Machiavelli e dos Visconti. Este era o lugar ideal para pesquisa. Embora nutrisse uma certa curiosidade abstracta sobre o assunto, não se relacionava com o ego. O Dr. Lecter não necessita de reforço convencional. O seu ego, tal como o coeficiente intelectual e o grau da sua racionalidade, não se mede por meios convencionais.

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Não existe, de facto, consenso na comunidade psiquiátrica, quanto a intitular­se o Dr. Lecter de homem. Há longo tempo que foi encarado pelos seus colegas profissionais de psiquiatria, muitos dos quais receiam a sua ácida pena nos jornais da especialidade, inteiramente como outro. Por uma questão de conveniência, chamam­lhe «monstro».

O monstro senta­se na biblioteca imersa na obscuridade, enquanto a sua mente pinta cores no escuro e uma atmosfera medieval domina a sua mente. Está a reflectir no polícia.

Ruído de um interruptor e uma lâmpada fraca acende­se. Agora, podemos ver o Dr. Lecter sentado a uma mesa de refeitório do século xvi, na biblioteca Capponi. Nas suas costas há uma parede de manuscritos metidos em compartimentos e grandes livros tapados com oleados, datando de há oitocentos anos. Correspondência do século xiv com um ministro da República de Veneza está empilhada na sua frente, tendo em cima um pequeno molde que Miguel Ângelo fez como estudo para o seu chifrado Moisés, e diante do porta­canetas, um computador portátil com capacidade de pesquisa através da Universidade de Milão.

Em grandes letras vermelhas e azuis por entre as escuras e amareladas pilhas de pergaminho está um exemplar do National  TattIer. E, ao lado, a edição florentina do Le Nazione.

O Dr. Lecter escolhe o jornal italiano e lê o seu último ataque a Rinaldo Pazzi, incitado pela rejeição do FBI no caso de Il Monstro. O nosso perfil nunca se assemelhou ao de Tocca», declarava um porta­voz do FBI.

Le Nazione citava a formação e treino de Pazzi na América, na famosa Academia de Quantico, e afirmava que ele deveria ter agido melhor.

O caso de Il Monstro em nada interessava o Dr. Lecter, mas o mesmo não acontecia quanto à formação de Pazzi. Que pena ter encontrado um polícia treinado em Quantico, onde Hannibal Lecter era um caso de manual.

Quando o Dr. Lecter fixou o rosto de Rinaldo Pazzi no Palazzo Vecchio e se aproximou o suficiente para o cheirar, ficou certo que Pazzi de nada suspeitava, embora ele tivesse indagado sobre a cicatriz na mão do Dr. Lecter. Pazzi nem sequer tinha qualquer sério interesse a seu respeito quanto ao desaparecimento do conservador.

O polícia viu­o na exposição de instrumentos de tortura. Teria sido preferível encontrá­lo numa exposição de orquídeas.

O Dr. Lecter tinha perfeita consciência de que todos os elementos da epifania estavam presentes na mente do polícia, agitados no meio das milhões de outras coisas que ele sabia.

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Deveria Rinaldo Pazzi ir fazer companhia ao falecido conservador do Palazzo Vecchio, nos pântanos? Deveria o corpo de Pazzi ser encontrado após um suicídio aparente? La Nazione teria todo o prazer em persegui­lo até à morte.

«Agora não», reflectiu o monstro e focou a atenção nos seus enormes rolos de manuscritos de velo e pergaminho.

O Dr. Lecter não se sentia preocupado. Deliciou­se com o estilo literário de Neri Capponi, banqueiro e emissário a Veneza no século xv, lendo as suas cartas em voz alta, a espaços, para seu próprio prazer pela noite dentro.

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Capítulo vinte e doisAntes do alvorecer, Pazzi tinha nas mãos as fotografias tiradas para a licença de trabalho do Dr. Fell, juntamente com os negativos do seu Permiso di Soggíorno dos ficheiros dos Carabinieri. Pazzi tinha também na sua posse os excelentes instantâneos de cara reproduzidos no cartaz de Mason Verger. Os rostos tinham uma forma semelhante, mas se o Dr. Fell era Dr. Hannibal Lecter, efectuara­se algum trabalho no nariz e faces, talvez injecções de colagénio.

Quanto às orelhas, eram promissoras. À semelhança de Alphonse Bertillon, cem anos antes, Pazzi examinou as orelhas com a lupa. Pareciam ser as mesmas.

Servindo­se do computador antiquado da Questura, marcou o seu código de acesso da Interpol ao Violent Aprchension Program do FBI americano e abriu o volumoso ficheiro Lecter. Amaldiçoou o seu lento modem e tentou ler o texto indistinto do ecrã, até as letras se lhe misturarem diante dos olhos. Conhecia o mais importante do caso. Duas coisas levaram­no a suster a respiração. Um dado antigo e um novo. O mais recente citava uma radiografia indicativa de que Lecter fizera provavelmente uma cirurgia à mão. O antigo, um scan de um relatório da polícia de Temessee escrito à mão indicava que, enquanto matou os guardas em Memphis, Hannibal Lecter pusera a tocar uma cassete das Variações Goldberg.

O cartaz posto a circular pela rica vítima americana, Mason Verger, encorajava informadores a telefonar para o número de telefone do FBI indicado. Fornecia o aviso quanto ao Dr. Lecter estar armado e, ser perigoso. Também indicava um número de telefone particular, mesmo por baixo do parágrafo referente à elevada recompensa.

A passagem de avião de Florença para Paris é ridiculamente cara e Pazzi teve de pagá­la do seu bolso. Não confiava que a polícia francesa

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lhe dispensasse uma linha telefónica temporária sem se intrometer e não conhecia outra forma de conseguir uma. Servindo­se de uma cabine telefónica do American Express próximo da ópera, telefonou para o número particular indicado no poster de Mason. Partiu do princípio que a chamada seria localizada. Pazzi falava bastante bem inglês, mas sabia que o sotaque o atraiçoaria como italiano. A voz era de homem, americana, muito calma.

­ Diz­me, por favor, o que pretende?

­ Talvez tenha informações sobre Hannibal Lecter.

­ Bom. Obrigado por telefonar. Sabe onde ele se encontra agora?­ Acho que sim. A recompensa ainda está de pé?

­ Sim, está. Que provas seguras tem de que se trata dele? Tem de compreender que recebemos muitos telefonemas falsos.

­ Digo­lhe que se submeteu a uma cirurgia plástica ao rosto e fez uma operação à mão esquerda. Ainda consegue tocar as Variações Goldberg. Tem documentos brasileiros.

Uma pausa. Depois: ­ Por que não telefonou à polícia? Tenho ordens para o encorajar a fazê­lo.

­ A recompensa é válida em todas as circunstâncias?

­ A recompensa é paga por informação que conduza à prisão e condenação.

­ A recompensa será paga em... circunstâncias especiais?

­ Refere­se a um prémio pelo Doutor Lecter? Digamos, no caso de alguém que por norma não pode aceitar uma recompensa?

­ Sim.

­ Estamos ambos a trabalhar para o mesmo objectivo. Portanto, não desligue enquanto lhe faço uma sugestão. É contra a convenção internacional e a lei americana oferecer um prémio pela morte de alguém, sír Não desligue, por favor. Posso perguntar­lhe se está a telefonar da Europa?

­ Sim, estou, e é tudo o que lhe direi.

­ Bom, então, ouça... Sugiro­lhe que contacte um advogado para discutir a legalidade dos prémios e não execute qualquer acto ilegal contra o Doutor Lecter. Posso recomendar um advogado? Há um em Génova e que é excelente nestas questões. Posso dar­lhe o número sem taxa? Aconselho­o firmemente a telefonar­lhe e a ser franco com ele.

Pazzi comprou um cartão de telefone com porte pago e fez o próximo telefonema de uma cabina no armazém do Bon Marché. Falou com uma pessoa com uma voz seca de suíço. Levou menos de cinco minutos.

Mason pagaria um milhão de dólares americanos pela cabeça e as mãos do Dr. Hannibal Lecter. Pagaria a mesma soma por informação passível de dar prisão. Pagaria particularmente três milhões de dólares pelo Doutor vivo, sem perguntas e com garantia de discrição.

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As condições incluíam 100 mil dólares adiantados. Para se candidatar ao adiantamento, Pazzi teria de fornecer uma impressão digital identificável do Dr. Lecter, uma impressão in situ sobre um objecto. Se o fizesse, teria o resto do dinheiro à sua disposição em notas num cofre titular num banco suíço.

Antes de sair do Bon Marché a caminho do aeroporto, Pazzi comprou um peígnoir para a mulher em Noire de  seda cor de pêssego.

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Capítulo vinte e trêsComo é que uma pessoa se comporta, sabendo que as honras convencionais são puro desperdício? Quando passou a acreditar, como Marco Aurélio, que a opinião das gerações futuras não valerá mais do que a opinião da actual? É possível comportar­se bem, então? É desejável comportar­se bem, então?

Neste momento, Rinaldo Pazzi, um Pazzi dos Pazzi, inspector­chefe da Questura florentina, tinha de decidir qual o valor da sua honra ou se existe uma sabedoria mais durável do que considerações de honra.

Regressou de Paris à hora do jantar e dormiu um pouco. Desejava fazer a pergunta à mulher, mas não podia, embora a tivesse procurado como conforto. Manteve­se depois acordado durante muito tempo ouvindo a respiração calma dela. A noite ia adiantada quando desistiu de dormir e foi até lá fora dar um passeio e pensar.

A avareza não é desconhecida em Itália e Rinaldo Pazzi absorvera uma grande quantidade ao respirar o ar nativo. No entanto, a sua natural tendência consumista e ambição tinham sido estimuladas na América, onde todas as influências se sentem mais rapidamente, inclusive a morte de Jeová e a missão de Mamon.

Quando Pazzi saiu das sombras do Loggia e se deteve no lugar Onde Savanarola foi queimado na Piazza Signoria, quando ergueu os olhos para a janela do iluminado Palazzo Vecchio onde morreu o seu antepassado, acreditava que estava a deliberar. Não estava. Já tinha decidido pouco a pouco.

Atribuímos um momento à decisão para dignificar o processo como o resultado esmerado de uma linha de pensamento racional e consciente, Contudo, as decisões são feitas de um entrelaçar de sentimentos­, são mais frequentemente um fragmento do que um todo.

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Pazzi decidira quando entrou no avião em Paris. E decidira há uma hora, depois da mulher, vestida com o seu peígnoir novo, apenas demonstrar a receptividade do dever. E minutos depois quando, deitado no escuro, estendera a mão para lhe tocar na face e dar um terno beijo de boas­noites e sentira uma lágrima na palma da mão. Em seguida e inconscientemente, ela comeu­lhe o coração.

De novo as honras? Mais uma oportunidade de aguentar a respiração do arcebispo, enquanto as lascas sagradas de pedra eram ateadas no foguete colocado na cauda da pomba de pano?

Mais elogios dos políticos cujas vidas particulares conhecia bem de mais? Valia a pena ser conhecido como o polícia que prendeu o Dr. Hannibal Lecter? Para um polícia, a glória tem uma vida curta, Melhor seria VENDÊ­LO.

O pensamento trespassou e martelou o cérebro de Rinaldo, deixando­o pálido e determinado e quando o visual Rinaldo se recompôs tinha dois odores incutidos na mente, o da mulher e o da margem costeira de Chesapeake.

VENDE­O. VENDE­O. VENDE­O. VENDE­O. VENDE­O. VENDE­O. Francesco de Pazzi não apunhalou com mais força em 1478 quando teve Gitiliano à mercê no chão da catedral, quando no frenesim que o avassalou, trespassou a própria coxa com o punhal.

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Capítulo vinte e quatro

O cartão com as impressões digitais do Dr. Hannibal Lecter é uma curiosidade e tem algo de um objecto de culto. 

O original está emoldurado na parede da Secção de Identificação do FBI. Em obediência ao costume do FBI de tirar as impressões digitais a pessoas com mais de cinco dedos, mostra o polegar e os quatro dedos adjacentes na parte da frente do cartão e o sexto nas costas do mesmo.

Cópias do cartão com as impressões digitais percorreram o mundo quando o Doutor escapou pela primeira vez e a impressão do polegar aparece aumentada no poster de «Procurado» de Mason Verger e com a quantidade bastante de pontos assinalada para que um observador minimamente treinado faça sucesso.

A simples recolha de impressões digitais não é uma tarefa difícil e Pazzi estava à altura de fazer um trabalho quase profissional desse tipo e proceder a uma vulgar comparação para tirar dúvidas. Contudo, Mason Verger exigia uma impressão digital fresca, in situ e não retirada para ser independentemente examinada pelos seus peritos; Mason já antes tinha sido ludibriado com antigas impressões digitais recolhidas há anos em locais dos primeiros crimes do Dr. Lecter.

Mas como conseguir as impressões digitais do Dr. Fell sem o alertar? Era extremamente importante não alertar o Doutor. O homem podia desaparecer e Pazzi ficaria de mãos a abanar.

O Doutor não saía frequentemente do Palazzo Capponi e a próxima reunião da Belli Arti apenas se verificaria dali a um mês. TemPO demasiado para esperar a oportunidade de colocar um copo de água no lugar dele, em todos os lugares, pois o comité não providenciava este género de atenções.

Depois de ter resolvido vender Hannibal Lecter a Mason Verger, Pazzi tinha de operar pelos seus próprios meios. Não podia permitir­se chamar a atenção da Questura para o Dr. Fell, conseguindo um

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mandado para entrar no palazzo e o edifício estava demasiado protegido com alarmes para que tentasse introduzir­se furtivamente e tirar impressões digitais.

O caixote do lixo do Dr. Fell era muito mais limpo e novo do que os outros do quarteirão. Pazzi comprou um outro caixote e, na calada da noite, trocou as tampas do caixote do Palazzo Capponi. A superfície de ferro galvanizado não era a ideal e o esforço de Pazzi de toda uma noite resultou num pesadelo rendilhado de impressões digitais que jamais conseguiria decifrar.

Na manhã seguinte, apareceu de olhos congestionados na Ponte Vecchio. Numa ourivesaria da velha ponte comprou uma grossa pulseira de prata reluzente e a caixa forrada de veludo, onde era exibida. No sector artesanal, a sul do Arno, nas ruas estreitas do lado oposto do Palazzo Pitti, mandou um outro ourives retirar o nome do fabricante da pulseira. O ourives dispôs­se a aplicar um revestimento para que a prata conservasse o brilho, mas Pazzi recusou.

Temam Sollicciano, a prisão florentina, a caminho de Prato. No segundo andar da ala das mulheres, Rómula Cjesku, inclinada sobre um fundo tanque de roupa, mergulhava os seios, lavando­se e secando­se com cuidado, antes de vestir uma camisa limpa e larga de algodão, Uma outra cigana, que regressava da sala de visitas, dirigiu­se de passagem a Rómula, na língua dos ciganos. Uma fina linha formou­se entre os olhos de Rómula. O rosto bonito manteve a costumada expressão solene.

Teve ordem para sair da fila como habitualmente às oito e meia, mas quando se aproximou da sala das visitas, um carcereiro interceptou­a e levou­a para uma sala de entrevistas privada no rés­do­chão da prisão. Lá dentro e no lugar da costumada enfermeira, Rinaldo Pazzi tinha ao colo o seu filho bebé.

­ Olá, Rómula ­ saudou.

Ela dirigíu­se de imediato ao alto polícia e ele entregou­lhe logo a criança. O bebé queria mamar e começou a procurar o peito. Pazzi indicou com o queixo um biombo no canto da sala, ­ Há ali uma cadeira ­ disse. ­ Podemos falar, enquanto o alimentas.­ Falar de quê, Dottore? ­ O italiano de Rómula era aceitável. Tal como o seu francês, inglês, espanhol e dialecto cigano. Expressava­se sem emoção ­ os seus melhores dotes teatrais não a tinham salvo destes três meses de prisão por roubar carteiras.

Foi para detrás do biombo. Num saco de plástico, escondido nos cueiros do bebé, havia quarenta cigarros e 50000 liras, um pouco mais de 41 dólares, em notas amachucadas. Restava­lhe uma opção. Se o polícia tivesse revistado o bebé, podia acusá­la quando retirasse o contrabando e privá­la de todos os privilégios. Pensou uns

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momentos, de olhos postos no tecto, enquanto o bebé mamava. Por que é que ele se dera a este trabalho? Estava numa posição de vantagem Pegou no saco e escondeu­o na roupa interior. A voz dele chegou­lhe por cima do biombo.

­ Não passas de um impecilho aqui, Rómula. As mães presas em período de aleitamento são uma perda de tempo. Há aqui pessoas com doenças legítimas que precisam dos cuidados das enfermeiras. Não odeias ter de entregar o bebé quando acaba a hora da visita?

O que é que ele podia desejar?» Sabia bem quem ele era, um chefe, um filho da mãe de um Pesonovante.

Rómula sobrevivia a ler a sina nas ruas e roubar carteiras vinha em segundo lugar. Tinha 35 anos gastos e umas antenas gigantes. Este polícia, reflectiu, observando­o por cima do biombo tinha um ar aprumado ­ a aliança, os sapatos  engraxados, vivia com a mulher mas tinha uma boa criada ­ os botões do colarinho eram abotoados depois do colarinho  estar engomado. Carteira no bolso do casaco, chaves no bolso da frente das calças, dinheiro no bolso esquerdo da frente  das calças, dobrado e provavelmente apertado com um elástico. O sexo no meio. Era magro e viril, com uma pequena marca na orelha e a cicatriz de uma facada junto à linha do cabelo. Não ia pedír­lhe sexo ­ se fosse essa a ideia, não teria  trazido o bebé. Não era um pêssego, mas não lhe parecia que tivesse de procurar sexo em mulheres presas. Seria preferível  não lhe fitar os penetrantes olhos negros, enquanto o bebé mamava. Por que trouxera o bebé? Porque quer que ela lhe veja  o poder, dar a entender que podia tirar­lho. O que quer, afinal? Informação? Dir­lhe­ei o que ele quiser ouvir sobre quinze  ciganos que nunca existiram. Muito bem, o que posso ganhar com isto? Vejamos. Mostremos­lhe um pouco do castanho.

Perscrutou­lhe as feições quando saiu de trás do biombo, um crescente de auréola ao lado do rosto do bebé.

­ Está calor aqui ­ retorquiu. ­ Pode abrir uma janela? isso. ­ Podia fazer melhor ainda, Rómula. Podia abrir a porta e sabe isso. Silêncio na sala. Lá fora, o ruído da Sollicciano semelhante a uma permanente e incómoda dor de cabeça.

­ Diga­me o que quer. Faria qualquer coisa de bom grado, mas não tudo. ­ O instinto segredava­lhe correctamente que ele a resPeitaria pelo aviso.

­ É apenas la tua solita cosa, o trabalho que costumas fazer redarguiu Pazzi ­, mas quero que o atamanques.

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Capítulo vinte e cincoDurante o dia, vigiavam a fachada do Palazzo Capponi da alta janela com persianas de um apartamento situado do outro lado da rua: Rómula, uma cigana mais velha que ajudava a cuidar do bebé e podia ser prima de Rómula, e Pazzi que roubava o máximo de tempo possível ao gabinete.

O braço de madeira que Rómula utilizava no negócio esperava em cima de uma cadeira, no quarto.

Pazzi conseguira o empréstimo do apartamento durante o dia através de uma professora da Escola de Dante Alighieri situada nas proximidades. Rómula insistiu dispor de uma prateleira do pequeno frigorífico para si e para o bebé.

A espera não foi longa. Às nove e meia do segundo dia, a ajudante de Rómula assobiou do assento ao canto da janela. Um vazio negro recortou­se do outro lado da rua, quando uma das maciças portas do palazzo se abriu para dentro.

Lá estava ele, o homem conhecido em Florença como Dr. Fell, baixo e vestido de preto, manhoso como um vison, curvando­se para cheirar o ar e examinar a rua nos dois sentidos. Carregou nos botões de um comando à distância para accionar os alarmes e fechou a porta com a grande maçaneta de ferro forjado, cheia de ferrugem e impossibilitando a recolha de impressões digitais. Levava um saco de compras.

Ao avistar o Dr. Fell pela primeira vez através da abertura das persianas, a cigana mais velha agarrou na mão de Rómula, como que a detê­la, fixou Rómula no rosto e abanou a cabeça bruscamente numa altura em que o polícia não estava a olhar.

Pazzi soube de imediato onde ele ia.

No lixo do Dr. Fell, Pazzi encontrara embalagens da requintada loja de comida Vera dal 1926, na Via San Jacopo, próximo da ponte

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de Santa Trinita. o Doutor seguiu nessa direcção, enquanto Rómula enfiava o vestido e Pazzi vigiava pela janela.

­ Dunque, são coisas de mercearia ­ disse Pazzi, sem conseguir deixar de repetir as instruções a Rómula pela quinta vez. ­ Segue­o, Rómula. Espera deste lado da Ponte Vecchio. Vais apanhá­lo no regresso, de saco cheio na mão. Irei meio quarteirão na frente dele e é a mim que verás primeiro. Manter­me­ei por perto. Se houver problema, se fores presa, encarrego­me do assunto. Se ele for a outro lado, regressa ao apartamento. Telefono­te. Põe este passe no pára­brisas de um táxi e vem ter comigo.

­ Emínenza ­ disse Rómula, mencionando o título honorífico num tom de voz irónico ­ se houver problema e outra pessoa me ajudar, não lhe faça mal, o meu amigo não levará nada, deixe­o, fugir.

Pazzi não esperou pelo elevador, mas desceu as escadas a correr com um fato de operário gorduroso e boné. É difícil seguir alguém em Florença, porque os passeios são estreitos e a vida é coisa de pouca valia na rua. Pazzi tinha uma motorino em mau estado na curva, com uma dúzia de vassouras atadas. A vespa arrancou à primeira e, envolto numa nuvem de fumo azulado, o inspector­chefe seguiu ao longo das pedras da calçada, na pequena máquina saltitante, como que num burro a trote.

Pazzi continuou devagar, foi alvo das buzinadelas do trânsito movimentado, comprou cigarros, matou o tempo para se manter atrás, até ter a certeza do destino do Dr. Fell. Ao fundo da Via Bardi, o Borgo San Jacopo tinha apenas um sentido na sua direcção. Pazzi deixou a vespa junto ao passeio e continuou a pé, esgueirando o corpo magro através da multidão de turistas, a sul da Ponte Vecchio. Os Florentinos dizem que a Vera dal 1926 com a sua variedade de queijos e trufas cheira como os pés de Deus.

o Doutor demorou­se bastante por ali. Estava a fazer uma selecção das primeiras trufas brancas da época. Pazzi via­lhe as costas através das montras, para lá da maravilhosa exposição de presuntos e pastas.

Pazzi foi até à esquina e voltou, lavou a cara na fonte que deitava água da cabeça em formato de leão e com bigodes: ­ Terias de rapar isso para trabalhares para mim ­ dirigiu­se à fonte, acima do nó frio que se lhe formara no estômago.

o Doutor saía nesse momento, com alguns embrulhos leves no saco. Começou a descer o Borgo San Jacopo rumo a casa. Pazzi adiantou­se­lhe, no outro lado da rua. A multidão que seguia pelo passeio obrigou Pazzi a descer para a calçada e o espelho retrovisor de um carro de patrulha dos Carabinieri bateu­lhe no relógio de pulso, magoando­o. ­  Stronzo! Analfabeto! ­ gritou o condutor pela janela e

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Pazzi jurou vingança. Quando chegou à Ponte Vecchio, levava quarenta metros de avanço.

Rómula estava na ombreira de uma porta, com o bebé apoiado no braço de madeira, a outra mão estendida a pedir esmola e o braço livre por baixo da roupa larga, pronto a apoderar­se de uma carteira para juntar às outras duzentas que roubara ao longo da vida. No braço escondido havia a larga e reluzente pulseira de prata.

Dali a um momento, a vítima atravessaria a multidão que saía da velha ponte. Exactamente quando ele se afastasse do mar de gente pela Via deBardi, Rómula iria ao encontro dele, cumpriria a sua missão e perder­se­ia no meio dos turistas que atravessavam a ponte.

Na multidão, Rómula tinha um amigo de quem podia depender. Nada sabia da vítima e não confiava no polícia para a proteger. Giles Prevert, conhecido em alguns ficheiros da polícia como Giles Dumain, ou Roger Le Duc, mas tratado localmente por Gnocco, aguardava por entre toda aquela gente, a sul da Ponte Vecchio, que Rómula desse o golpe. Gnocco estava fragilizado pelos seus hábitos de vida e o rosto começava a encovar­se, mas ainda era resistente e forte e capaz de ajudar Rómula se o roubo desse para o torto.

Com roupas de padre, misturava­se na multidão, erguendo a cabeça de vez em quando. Se a vítima em causa agarrasse Rómula e a prendesse, Gnocco poderia tropeçar nas vestes, cair por cima da vítima e embrulhar­se com ela, desfazendo­se em desculpas até Rómula estar bem longe. Já não seria a primeira vez que actuava desta forma.

Pazzi passou junto dela e meteu­se na fila de uma venda de sumos, de onde podia vê­la.

Rómula saiu da ombreira da porta. Com um olhar experiente avaliou o trânsito no passeio que a separava da figura baixa aproximando­se na sua direcção. Podia movimentar­se com toda a facilidade através das pessoas com o bebé na frente, apoiado pelo braço falso de lona e madeira. Muito bem. Beijaria, como habitualmente, os dedos da mão visível que ergueria para depositar o beijo no rosto da vítima. Com a mão livre, revistar­lhe­ia o lado junto à carteira, até ele lhe agarrar o pulso. Depois, soltar­se­ia dele.

Pazzi tinha prometido que este homem não podia permitir­se entregá­la à polícia, que desejaria afastar­se dela. Em todas as suas tentativas de roubar carteiras, nunca ninguém se mostrara violento para uma mulher com um bebé ao colo. A vítima pensava sempre que era outra pessoa que estava a mexer­lhe no bolso. A própria Rómula denunciara transeuntes inocentes como carteiristas, a fim de evitar ser apanhada.

Rómula misturou­se com as pessoas que circulavam no passeio, libertou o braço escondido, mas conservou­o debaixo do braço falso

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que amparava o bebé. Avistava o alvo avançando por aquele mar de cabeças a dez metros e aproximando­se.

Madonna! O Dr. Fell deu uma guinada no meio da multidão e afastou­se com a torrente de turistas sobre a Ponte Vecchio. Não se dirígia a casa. Esgueirou­se pelo meio de toda aquela gente, mas não conseguiu chegar perto dele. O rosto de Gnocco, ainda à frente do Doutor, fitando­a, interrogando­a. Abanou a cabeça e Gnocco deiXou­o passar. De nada serviria se Gnocco lhe roubasse a carteira.

Pazzi rosnou ao seu lado, como se ela tivesse culpa: ­ Vai para o apartamento. Telefono­te. Tens o passe do táxi para a cidade velha? Vai. Vai.

Pazzi recuperou a vespa e empurrou­a através da Ponte Vecchio, sobre o Amo com uma opacidade de jade. julgou que tinha perdido o Doutor de vista, mas lá estava ele, do outro lado do rio sob a arcada, ao lado do Lungamo, espreitando uns momentos por cima do ombro de um retratista de rua, avançando com passo ligeiro. Pazzi concluiu que o Dr. Fell se dirigia à Igreja de Santa Croce e seguiu­o à distância no meio daquele trânsito infernal.

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Capítulo vinte e seisA Igreja de Santa Croce, sede dos Franciscanos, com o vasto interior ressoando em oito línguas, enquanto a horde de turistas a visita, seguindo os coloridos guarda­sóis dos seus guias, procurando duzentas liras nos bolsos para poderem iluminar, durante um precioso minuto das suas vidas, os grandes frescos das capelas.

Rómula entrou ofuscada pelo sol da luminosa manhã e teve de fazer uma pausa junto ao túmulo de Miguel Ângelo até adaptar os olhos. Quando viu que se encontrava de pé sobre uma sepultura no chão, sussurrou: ­ Mí  dispíace! ­ e afastou­se rapidamente da lápide; para Rómula, a quantidade de mortos debaixo do chão era tão real como as pessoas que se encontravam por cima dele e talvez mais influentes. Era filha e neta de espíritas e quiromantes e encarava as pessoas sobre a terra e as que se encontravam enterradas, como duas espécies com o painel da morte a separá­las. As que se encontravam por baixo, sendo mais espertas e mais velhas, detinham, no seu parecer, a situação da vantagem.

Olhou em volta à procura do sacristão­mor, um homem cheio de preconceitos contra os ciganos e refugiou­se junto à primeira coluna sob a protecção da Madonna del Latte de Rossellino, enquanto o bebé lhe procurava o seio. Pazzi, escondido próximo da sepultura de Galileu, encontrou­a ali.

Apontou com o queixo na direcção do fundo da igreja onde, através do transepto, os flashes das máquinas fotográficas proibidas brilhavam como relâmpagos riscando a vasta escuridão, enquanto os contadores devoravam com um clique as duzentas liras e as ocasionais moedas australianas.

Cristo nascia vezes sem conta, era atraiçoado e os pregos cravavam­se, enquanto os frescos enormes se iluminavam e voltavam a mergulhar numa imensa e preenchida escuridão, com a enchente de

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peregrinos segurando guias que não conseguiam ler, um misto de transpiração e cheiro a incenso fervendo sob as lâmpadas.

No transepto esquerdo, o Dr. Fell estava ocupado na Capela Capponi. A magnífica Capela Cappom situa­se em Santa Felicita. Esta, reconstruída no século XIX, interessava o Dr. Fell, pois a restauração permitia­lhe um olhar sobre o passado. Elaborava um esboço a carvão de uma inscrição em pedra, tão gasta que nem mesmo a iluminação oblíqua a ressaltava.

observando através do seu pequeno monocular, Pazzi descobriu porque é que o Doutor saíra de casa apenas com o saco das compras­ ele guardava os acessórios artísticos atrás do altar da capela. Por momentos, Pazzi considerou a hipótese de dispensar Rómula e deixá­la ir embora. Talvez conseguisse recolher impressões digitais nos materiais artísticos. Não, o Doutor usava luvas de algodão para que o carvão não lhe sujasse as mãos.

Seria difícil. A técnica de Rómula destinava­se a espaços livres. Ela representava, contudo, aquilo que um criminoso não temeria. Era a pessoa com menos probabilidades de afugentar um criminoso. Não. Se o Doutor a agarrasse, entregá­la­ia nas mãos do sacristão e Pazzi poderia intervir mais tarde.

O homem era louco. E se a matasse? E se matasse o bebé? Pazzi fez duas perguntas de si para si: «Lutaria com o Doutor se a situação parecesse letal?» «Sim.» «Estava disposto a arriscar danos menores em Rómula e no bebé para deitar a mão ao dinheiro? » « Sim. »

Teriam simplesmente de esperar até o Dr. Fell descalçar as luvas para ir almoçar. Um vaguear de um lado para o outro no transepto permitia que Pazzi e Rómula sussurrassem. Pazzi detectou um rosto na multidão.

­ Quem está a seguir­te, Rómula? É melhor dizeres­me. já vi o rosto dele na prisão.

­ Um amigo meu, apenas para bloquear o caminho, se eu tiver de fugir. Não sabe nada. É melhor para si. Não terá de meter­se em trabalhos.

Para gastarem o tempo, rezaram em várias capelas, Rómula murmurando numa língua que Rinaldo não compreendia e Pazzi, detentor de uma extensa lista para pedir, sobretudo a casa na margem costeira de Chesapeake e algo mais em que não deveria pensar na igreja.

Vozes suaves do coro que ensaiava, sobrepondo­se ao restante barulho.

Um sino e chegou a hora do encerramento, ao meio­dia. Os sacristãos apareceram, fazendo tilintar as chaves, prontos para esvaziar as caixas das moedas.

O Dr. Fell levantou­se, abandonou o trabalho e saiu de trás da Pietà de Andreotti na capela, descalçou as luvas e vestiu o casaco.

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Um grande grupo de japoneses, aglomerados em frente do santuário, tendo gasto todo o fornecimento de moedas, mantinham­se, surpreendidos, no escuro, sem perceberem que tinham de ir embora.

Pazzi deu uma cotovelada desnecessária a Rómula. Ela sabia que chegara o momento. Beijou a cabecinha do bebé, que descansava no seu braço de madeira.

O Doutor aproximava­se. A multidão obrigá­lo­ia a passar junto dela e Rómula deu três grandes passadas ao encontro dele, agachou­se na frente dele, ergueu a mão para lhe chamar a atenção, beijou os dedos e preparava­se para depositar o beijo na face dele, com o braço escondido pronto a dar o golpe.

Luzes acenderam­se quando alguém no meio da multidão descobriu uma moeda de duzentas liras e no momento de tocar no Dr. Fell, Rómula fitou­o no rosto, sentiu­se sugada pelos pontinhos vermelhos dos olhos, sentiu o enorme vácuo frio que lhe encostava o coração às costas e a mão afastou­se para tapar a cara do bebé, ao mesmo tempo que ouvia a sua própria voz murmurar: Perdonami, perdonamí, Eminenza, se virava e fugia. O Doutor seguiu­a com o olhar durante um longo momento até as luzes se apagarem e era de novo uma silhueta recortada na sombra das velas de uma capela, prosseguindo caminho com passos rápidos e leves.

Pazzi, pálido de raiva, foi encontrar Rómula apoiada à fonte, banhando repetidamente a cabeça do bebé com água benta, banhando­lhe os olhos também na eventualidade de ter fixado o Dr. Fell. Pragas e maldições morreram­lhe nos lábios quando deparou com o rosto assustado da mulher.

Os olhos de Rómula pareciam imensos no escuro. ­ É o Diabo ­ declarou. ­ Shaitan, filho da Manhã. Agora, vi­o.

­ Ponho­te novamente na prisão ­ ameaçou Pazzi.

Rómula fixou o rosto do bebé e emitiu um suspiro de animal num matadouro, tão fundo e resignado que era terrível ouvi­lo. Desembaraçou­se da grossa pulseira de prata e lavou­a em água benta.­ Ainda não ­ disse.

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Capítulo vinte e seteSe Rinaldo Pazzi tivesse decidido cumprir o seu dever como agente da lei, poderia haver detido o Dr. Fell e concluído rapidamente se o homem era Hannibal Lecter. Meia hora depois, poderia ter obtido um mandado para levar o Dr. Fell do Palazzo Capponi e nem todos os alarmes do palazzo o deteriam. Com base na autoridade de que dispunha, poderia acusá­lo o tempo suficiente para lhe determinar a identidade.

A recolha de impressões digitais na sede da Questura revelaria em dez minutos se Fell era o Dr. Lecter. O teste do AI)N confirmaria a identificação.

Todos estes recursos estavam agora fora do alcance de Pazzi. Ao decidir vender o Dr. Lecter, o polícia tornou­se um caçador de cabeças, marginal e sozinho. Os próprios bufos da polícia não lhe serviam para nada, pois seriam os primeiros a denunciá­lo a ele, Pazzi.

Os atrasos frustravam Pazzi, mas estava firme na sua resolução. Faria um acordo com estes malditos ciganos...

­ Gnocco seria capaz de fazê­lo em teu lugar, Rómula? Consegues encontrá­lo? ­ Estavam na sala de entrada do apartamento emprestado na Via Bardi, do outro lado do Palazzo Capponi, doze horas depois do malogro na Igreja de Santa Croce. Um candeeiro pousado numa mesa baixa iluminava a sala até à altura da cintura. Acima da luz, os olhos negros de Pazzi brilhavam na semiobscuridade.

­ Eu própria o farei, mas não com o bebé ­ replicou Rómula. ­ Mas tem de dar­me...

­ Não. Não posso deixar que ele te veja duas vezes. Gnocco fá­lo­ia no teu lugar?

Rómula sentou­se, dobrada e envolta no comprido vestido colorido com os seios rasando as coxas e a cabeça quase nos joelhos. O braço de madeira jazia, vazio, em cima de uma cadeira. Ao canto,

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sentava­se a mulher mais velha, possivelmente a prima de Rómula, com o bebé ao colo, Os reposteiros estavam corridos, Perscrutando através de uma ínfima abertura, Pazzi conseguia avistar uma luz fraca no cimo do Palazzo Capponi.

­ Posso fazer isto. Posso transformar­me, de maneira a que não me conheça. Posso...

­ Não.

­ Então, pode ser a Esmeralda.

­ Não. ­ Esta voz vinha do canto, da boca da mulher de mais idade, que falava pela primeira vez. ­ Cuidarei do teu bebé até morrer, Rómula. jamais tocarei em Shaitan. ­ Pazzi quase não entendia o italiano dela.

­ Endireita­te, Rómula ­ ordenou Pazzi. ­ Olha para mim. Gnocco fá­lo­ia em teu lugar? Vais regressar a Sollicciano esta noite, Rómula. Faltam­te mais três meses de pena. É possível que da próxima vez que tires o dinheiro e os cigarros da roupa do bebé, sejas apanhada... Posso obter seis meses de pena adicional por aquela última vez que o fizeste. Seria fácil ter­te declarado uma mãe incapaz. O Estado ficaria com a criança. Mas se eu conseguir as impressões digitais, sais em liberdade, recebes dois milhões de liras, o teu cadastro desaparece e ajudo­te com visas australianos. Gnocco fá­lo­ia por ti?

Rómula não respondeu.

­ És capaz de encontrar Gnocco? ­ resfolegou Pazzi. ­ Senti, reúne as tuas coisas, podes ir buscar o teu braço falso à sala de material daqui a três meses, ou algures no próximo ano. O bebé terá de ir para o asilo. A velha pode visitá­lo lá,

­ Visitá­LO, Commendatore? Ele chama­se... ­ Abanou a cabeça, sem querer revelar o nome da criança a este homem. Rómula ocultou a cara, sentindo as pulsações do rosto e das mãos soando em uníssono e, depois, acrescentou, por detrás das mãos: ­ Posso encontrá­lo.

­ Onde?

­ Piazza Santo Spirito, junto à fonte. Fazem uma fogueira e alguém leva o vinho.

Irei contigo.

É melhor não ­ arguiu Rómula. ­ Arruinaria a reputação dele. Terá Esmeralda e o bebé aqui... Sabe que voltarei.

A Piazza Santo Spirito, uma bonita praça na margem esquerda do Arrio envolta de tristeza à noite, a igreja escura e fechada à chave àquela hora tardia, ruído e cheiros a comida fumegante de Casalinga, a popular trattoria.

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Próximo da fonte, as chamas de uma pequena fogueira e o som

de uma guitarra cigana, tocada com mais alegria do que talento. Há ura bom cantor defado na multidão. Na altura em que o descobrem, o cantor é empurrado para diante e lubrificado com vinho de várias garrafas. Começa com uma canção sobre o destino, mas é interrompido com exigências de uma melodia mais alegre.

Roger LeDue, também conhecido por Gnocco, está sentado na beira da fonte. Fumou algo. Tem os olhos toldados, mas detecta imediatamente Rómula, por detrás de multidão, do outro lado da fogueira. Compra duas laranjas a um vendedor e segue­a até longe das canções. Param junto a um candeeiro de rua, afastado da fogueira. Aqui a luz é mais fria do que a chama da fogueira e manchada pelas folhas de um ácer. A luz reflecte­se esverdeada na palidez de Gnocco, as sombras das folhas assemelham­se a nódoas negras em movimento no seu rosto, enquanto Rómula o fita, pousando­lhe a mão no braço.

Uma faca surge­lhe do punho, qual uma pequena língua afiada e ele descasca as laranjas, e a casca pende num comprido pedaço único. Dá­lhe a primeira e ela leva um gomo à boca, enquanto ele descasca a segunda.

Trocam umas breves palavras na língua cigana. Ele encolheu os ombros uma vez. Ela deu­lhe um telefone celular e mostrou­lhe os botões. Depois, a voz de Pazzi chegou ao ouvido de Gnocco. Decorrido um momento, Gnocco dobrou o telefone e meteu­o no bolso.

Rómula tirou algo de uma corrente que trazia ao pescoço, beijou o pequeno amuleto e colocou­o no homem baixo, de pescoço de touro. Ele baixou os olhos, dançou um pouco, fingindo que a imagem sagrada o queimava e arrancou um pequeno sorriso a Rómula. Ela pegou na grossa pulseira e pô­la no braço dele. Coube facilmente. O braço de Gnocco não era maior do que o dela.

­ Podes ficar uma hora comigo? ­ perguntou Gnocco.­ Posso ­ respondeu.

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Capítulo vinte e oitoNovamente noite e o Dr. Fell na ampla sala em pedra da exposição dos Instrumentos de Tortura Atrozes no Forti di Belvedere, estando o Doutor encostado descontraidamente à parede, debaixo das jaulas dos malditos.

Regista aspectos da maldição, observando os rostos ávidos dos espectadores que se comprimem à volta dos instrumentos de tortura e se comprimem uns aos outros numa acalorada frottage de olhos esbugalhados, os pêlos dos antebraços arrepiados, a quente respiração mútua nos pescoços e faces daquela massa humana. Por vezes, o Doutor aproxima um lenço perfumado do rosto em defesa contra uma overdose de colónia e suor.

Os que perseguem o Doutor aguardam lá fora.

As horas passam. O Dr. Fell, que somente prestou uma atenção passageira às exposições, parece não se fartar da multidão. Alguns detectam a sua atenção e sentem­se incomodados. No meio da multidão, mulheres fitam­no frequentemente com particular interesse antes que o movimento vagaroso da fila ao longo da exposição as obrigue a continuar. Uma quantia paga aos dois taxidermistas que lideram a exposição permite ao Doutor mover­se sem constrangimentos, intocável por detrás das cordas, muito quieto, encostado às paredes.

Lá fora, à saída, esperando no parapeito sob uma chuva persistente, Rinaldo Pazzi não abandonava a vigília. Estava habituado a esperar.

Pazzi sabia que o Doutor não regressaria a casa a pé. Lá em baixo, atrás do Forte, numa pequena píazza, estava o automóvel do Dr, Fell. Era um Jaguar preto, um elegante Mark Il de há 30 anos, reluzindo àquela chuva de molha­tolos, o melhor que Pazzi alguma vez vira e com matrícula suíça. O Dr. Fell não precisava obviamente de

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trabalhar para um salário. Pazzi anotou a matrícula, mas não podia correr o risco de dar a conhecê­la à Interpol.

Gnocco aguardava na rua de empedrado irregular da Via San Leonardo, entre o Forti di Belvedere e o carro. A rua mal iluminada apresentava­se ladeada por altos muros de pedra, que protegiam as villas situadas atrás deles. Gnocco descobrira um nicho escuro em frente de um portão gradeado, onde podia manter­se afastado da torrente de turistas que saíam do Forte. De dez em dez minutos, o telefone celular que tinha no bolso vibrava de encontro à coxa e tinha de confirmar que se encontrava na sua posição.

Enquanto passavam perto, alguns dos turistas seguravam mapas e programas por cima das cabeças para se protegerem dos chuviscos; o estreito passeio estava cheio e as pessoas dispersavam­se pela calçada, mandando parar os poucos táxis que desciam do forte.

Na câmara abobadada dos instrumentos de tortura, o Dr. Fell afastou­se, por fim, da parede onde estava encostado, revirou os olhos na direcção do esqueleto, que estava na jaula da morte pela fome, como se partilhassem um segredo, e abriu caminho pelo meio da multidão até à saída.

Pazzi divisou­lhe a figura recortada na ombreira da porta e, de novo, sob um projector, no terreno circundante. Seguiu­o à distância. Quando teve a certeza de que o Doutor iniciava a descida para o carro abriu a tampa do celular e avisou Gnocco.

A cabeça do cigano surgiu do colarinho como a de uma tartaruga, de olhos encovados, mostrando tal como a tartaruga, o cérebro por baixo da pele. Enrolou a manga até acima do cotovelo e cuspiu na pulseira, limpando­a com um trapo. Agora que a prata estava polida com cuspo e água benta, pôs a mão atrás das costas por baixo do casaco, a fim de o manter seco, enquanto perscrutava a encosta. Um mar de cabeças erguidas começava a tornar­se visível. Gnocco abriu caminho por entre a multidão até à rua, onde podia avançar na direcção contrária à da torrente e ver melhor.

Sem ajudante, teria de encarregar­se do encontrão e do golpe o que não era problema, dado tencionar falhar na última parte. Nessa altura, o indivíduo baixo apareceu... graças a Deus próximo da curva. Pazzi vinha a 30 metros do Doutor, descendo o caminho.

Gnocco executou um movimento ágil do meio da rua. Aproveitando­se da passagem de um táxi, esgueirando­se como que a fugir ao trânsito, olhou para trás para insultar o motorista e embateu contra o Dr. Fell, enquanto os dedos rebuscavam a parte de dentro do casaco, Sentiu o braço agarrado num gancho de ferro, sentiu um golpe e soltou­se. O Dr. Fell mal fez uma pausa, antes de desaparecer no meio dos turistas e Gnocco estava livre e bem longe.

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Pazzi chegou quase logo junto dele, ficou ao lado no nicho diante do portão de ferro, enquanto Gnocco se dobrava, para depois se endireitar, respirando com dificuldade.

­ Consegui. Ele agarrou­me com força. o Cornuto tentou dar­me cabo dos tomates, mas falhou ­ disse Gnocco.

Pazzi dobrado cuidadosamente sobre um joelho, tentando tirar a pulseira do braço de Gnocco quando Gnocco sentiu uma humidade e calor que lhe escorria pela perna e, ao mover o corpo, um jacto quente de sangue arterial esguichou de um rasgão na frente das calças, para a cara e as mãos de Pazzi, enquanto ele tentava tirar a pulseira, agarrando­a somente pelas bordas. Sangue jorrando por todos os lados, para o próprio rosto de Gnocco quando ele se dobrou para se olhar, as pernas cedendo. o corpo escorregou ao longo do portão, agarrou­se­lhe com uma das mãos e pôs o trapo contra a juntura da perna e corpo numa tentativa de parar o sangue da artéria femural rasgada.

Com a frieza que o caracterizava sempre que estava em acção, Pazzi rodeou o corpo de Gnocco com os braços e manteve­o afastado da multidão, segurando­o naquele jorro que atravessava as grades do portão, acabando por deitá­lo no chão, de lado.

Pazzi tirou o celular do bolso e falou como se estivesse a chamar uma ambulância, mas nem sequer ligou o aparelho. Desabotoou o casaco e estendeu­o como um abutre cobrindo a presa. A multidão movimentava­se, indiferente, nas suas costas. Pazzi tirou a pulseira do braço de Gnocco e pô­la na caixinha que trazia consigo. Meteu o celular de Gnocco no bolso.

Os lábios de Gnocco moveram­se: ­ Madonna, chefreddo! Num rasgo de força de vontade, Pazzi afastou a mão de Gnocco da ferida, segurou­a como que a confortá­lo e deixou­o esvair­se em sangue. Quando teve a certeza de que Gnocco estava morto, Pazzi abandonou­o estendido junto ao portão, a cabeça apoiada no braço como se estivesse a dormir e misturou­se com a multidão.

Na piazza, Pazzi deteve­se a observar o local de estacionamento vazio, com a chuva começando a molhar o empedrado onde estivera o jaguar do Dr. Lecter.

Doutor Lecter.. Pazzi deixara de pensar nele como Dr. Fell. Ele era o Dr. Hannibal Lecter.

Provas bastantes para Mason podiam estar no bolso da gabardina de Pazzi. Provas bastantes para Pazzi pingavam da gabardina para os sapatos.

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Capítulo vinte e noveA estrela da manhã sobre Génova foi obscurecida pelo luminoso Oriente, quando o velho Alfa de Rinaldo Pazzi ronronou na descida para o cais. Um vento gelado varria o porto. Num cargueiro atracado ao largo, alguém estava a soldar e as chispas laranja derramavam­se em chispas sobre a água escura.

Rómula mantinha­se no carro ao abrigo do vento, com o bebé no colo. Esmeralda encolhia­se no pequeno lugar traseiro do descapotável berlinetta, com as pernas de lado. Não voltara a pronunciar uma palavra desde que tinha recusado tocar em Shaitan.

Tomaram café forte em copos de papel e comeram empadas agonflotto.

Rinaldo Pazzi dirigiu­se à agência de navegação. Quando voltou a sair, o sol já ia alto, reflectindo­se em tons de laranja no casco enferrujado do cargueiro Astra Philogenes, que terminava a descarga na doca. Acenou às mulheres que se encontravam no carro.

o Astra Philogenes, de 27 mil toneladas, e registo grego, podia transportar legalmente 12 passageiros sem médico de bordo, em rota para o Rio. Então, Pazzi explicou a Rómula que fariam o transbordo para Sidney, Austrália, e o transbordo sena supervisionado, pelo comissário de bordo do Astra. As passagens estavam totalmente pagas e não eram reembolsáveis. Em Itália, a Austrália é considerada uma atraente alternativa, onde se encontra emprego e tem uma vasta população cigana.

Pazzi prometera a Rómula dois milhões de liras, cerca de 1800 dólares ao câmbio corrente e entregou­lhe o dinheiro num grosso envelope. A bagagem das ciganas era muito reduzida, compondo­se de uma pequena mala e o braço de madeira de Rómula metido num estojo de trompa.

As ciganas estariam no mar e incomunicáveis durante grande Parte do próximo mês,

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­ Gnocco vem ­ disse Pazzi a Rómula pela décima vez. Não podia, contudo, aparecer naquele dia. Gnocco deixaria notícias para elas nos correios de Sidney ­ Manterei a minha promessa para com ele, como fiz com vocês ­ garantiu­lhes, enquanto estavam junto à escada de acesso, com os primeiros raios de sol desenhando as sombras deles na áspera superfície da doca.

No momento da partida, com Rómula e o bebé já a subirem a escada do costado do cargueiro, a cigana de idade falou pela segunda e última vez na experiência de Pazzi.

Os olhos tão negros como as azeitonas de Kalarnata fixaram­lhe o rosto. ­ Entregaste Gnocco a Shaitan ­ pronunciou num tom calmo. ­ Gnocco está morto. ­ Inclinando­se numa postura rígida, como o faria se estivesse a dar milho às galinhas. Esmeralda cuspiu cuidadosamente na sombra de Pazzi e subiu apressadamente a escada para o barco, atrás de Rómula e da criança.

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capítulo trintaA embalagem de correio expresso estava bem montada. o perito de impressões digitais, sentado numa mesa, sob luzes fortes, na área da sala do quarto de Mason, retirou cuidadosamente os parafusos com uma chave de fendas eléctrica.

A grossa pulseira de prata vinha acondicionada numa caixa de veludo de ourives, preparada no interior de forma a que as superfícies externas da pulseira não tocassem em nada.

­ Traga­a aqui ­ disse Mason.

A recolha de impressões digitais da pulseira teria sido muito mais fácil de fazer na Secção de Identificação do Departamento de Polícia de Baltimore, onde o perito trabalhava durante o dia, mas Mason estava a pagar uma quantia muito elevada e secreta em dinheiro e insistiu para que o trabalho fosse executado diante dos seus olhos. «Ou diante do olho», reflectiu o perito azedamente, enquanto colocava a pulseira, com caixa e tudo, numa bandeja de louça da China segura por um empregado.

o empregado segurava a bandeja diante do olho arregalado de Mason. Não podia colocá­la sobre o rolo de cabelo junto ao coração de Mason, porque o respirador movia­lhe constantemente o peito, para cima e para baixo.

A pesada pulseira estava manchada e incrustada de sangue. Pedaços de sangue seco caíram na bandeja de louça da China. Mason examinou­a com o seu olho arregalado. Dada a ausência de carne facial, não tinha expressão, mas o olho brilhava.

­ Ponha o pó ­ ordenou.

o perito tinha uma cópia das impressões tiradas da parte da frente do cartão de impressões digitais de Lecter do FBI. A sexta impressão nas costas do cartão e a identificação não estavam reproduzidas.

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Começou a aplicar o pó entre as crostas de sangue. o pó Dragons Blood que preferia usar, assemelhava­se em demasia ao sangue seco da pulseira e, portanto, optou pelo preto, prosseguindo cuidadosamente o trabalho.

­ Temos impressões digitais ­ anunciou, parando para limpar o suor da testa, sob as luzes quentes da área da sala. A luz era boa para fotografar e tirou fotografias das impresssões digitais in situ, antes de as erguer para proceder a uma comparação microscópica. Dedo médio e polegar da mão esquerda, semelhança de 16 pontos... seria válida em tribunal ­ declarou finalmente. ­ Não há dúvida que se trata do mesmo indivíduo.

Mason não estava interessado no tribunal. A sua mão lívida já rastejava sobre a colcha para o telefone.

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Capítulo trinta e umManhã soalheira num pasto nas profundezas das montanhas Gennargentu da Sardenha central.

Sete homens, quatro sardenhos e dois romanos, trabalham sob um barracão arejado construído de toros cortados da floresta circundante. Os pequenos sons que produzem parecem ampliados no vasto silêncio das montanhas.

Sob o barracão, pendendo de vigas com a madeira ainda por descascar, está um grande espelho com uma moldura dourada de estilo rococó. o espelho está suspenso sobre um enorme curral com dois portões, um deles abrindo para o pasto. o outro portão foi construído tipo porta holandesa, de forma a que a metade superior e a inferior possam ser abertas em separado. A área sob o portão holandês está pavimentada de cimento, mas no resto do curral há palha limpa espalhada à maneira do cadafalso de um carrasco.

o espelho, com a moldura talhada de querubins, pode ser ajustado a fim de proporcionar uma vista superior do curral, tal como o espelho de uma aula de culinária fornece aos alunos uma visão superior do fogão.

o realizador, Oreste Pini, e o braço direito de Mason, um raptor profissional de nome Carlo, antipatizaram um com o outro à primeira vista.

Carlo Deogràcias era um homem entroncado e rubicundo, que usava um chapéu alpino com pêlo de javali na orla. Tinha o hábito de mastigar a cartilagem de um par de dentes de veado que guardava no bolso do colete.

Carlo era um exímio praticante da antiga profissão sardenha de rapto e também um vingador profissional.

Dizem os italianos abastados que se se for raptado para resgate, melhor será cair nas mãos dos sardenhos. Pelo menos são profissionais

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e não matam por acidente ou um ataque de pânico. Se os parentes pagarem, pode ser­se devolvido intocável, sem violação, nem mutilações. Se não pagarem, os familiares podem esperar receber um picadinho pelo correio.

Os complicados preparativos de Mason desagradavam a Carlo. Tinha experiência neste campo e dera, de facto, a comer um homem aos porcos, na Toscana, há vinte anos ­ um nazi reformado e falso conde que impunha relações sexuais a crianças de uma aldeia toscana, rapazes e raparigas. Carlo foi contratado para o trabalho, arrancou o homem do seu jardim a cinco quilómetros da Badia di Passignano e deu­o a comer a cinco grandes porcos domésticos de uma herdade sob o Poggio alle Corti. Teve de subtrair as rações aos porcos durante três dias e o nazi lutava por se libertar dos laços, implorando e suando com os pés sobre o curral e, mesmo assim, os porcos hesitavam em começar pelos dedos dos pés que se retorciam, até que Carlo, com um certo toque de culpa por violar o acordo, deu ao nazi uma salada das vagens favoritas dos porcos e depois degolou­o para lhes facilitar a tarefa.

Carlo era um homem jovial e dinâmico, mas a presença do realizador irritava­o... Carlo trouxera o espelho de um bordel que possuía em Cagliari, por ordem de Mason Verger, para conveniência deste pomógrafo, Oreste Pitti.

o espelho era uma verdadeira dádiva para Oreste que já se servira dos espelhos como um dispositivo favorito nos seus filmes pornográficos e no único filme de qualidade que rodara na Mauritânia. Inspirado pelas instruções do seu espelho retrovisor, foi o pioneiro do uso de imagens distorcidas, a fim de fazer com que alguns objectos parecessem maiores do que eram ao olhar desprevenido.

Segundo as ordens de Mason, Oreste teria de usar um conjunto de duas câmaras com som de qualidade e sair­se bem à primeira. Mason pretendia um close­up ininterrupto do rosto, em paralelo com as demais cenas.

Aos olhos de Carlo, ele parecia perder um tempo infindo.

­ Pode ficar aí a tagarelar como uma mulher, ou observar a acção e perguntar­me o que não compreende ­ disse­lhe Carlo.

­ Quero filmar a actuação.

­ Va biene. Monte essa merda e comecemos.

Enquanto Oreste dispunha as câmaras, Carlo e os três sardenhos silenciosos que o acompanhavam, procederam aos preparativos.

Oreste, que adorava dinheiro, surpreendia­se sempre com o que o dinheiro pode comprar.

Numa comprida mesa de suporte colocada a um canto do barracão, Matteo, o irmão de Carlo, desembrulhou uma trouxa de roupa

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usada. Escolheu uma camisa e umas calças da pilha, enquanto os outros dois sardenhos, de nome Piero e Tommaso, faziam rolar uma maca de ambulância para o interior do barracão, empurrando­a devagar sobre a relva­ A maca estava manchada e em mau estado.

Matteo tinha prontos vários baldes de ração composta por uma série de galinhas mortas ainda por depenar, alguma fruta estragada, já atraindo as moscas, e um balde com tripas e intestinos de boi.

Matteo estendeu um par de calças de caqui usadas em cima da maca e começou a atufalhá­las com umas galinhas, alguma carne e fruta. Pegou depois num par de luvas de algodão, enchendo­as de carne e bolotas, engrossando cada dedo com cuidado e colocando­as ao fundo das pernas das calças. Estendeu também a camisa em cima da maca de rodas, enchendo­a de tripas e intestinos e ajeitando os contornos com pão, antes de abotoar a camisa, metendo a fralda nas calças. Um par de luvas igualmente cheias foram postas ao fundo das mangas.

o melão que usou como cabeça estava coberto com uma rede de cabelo, atufalhada de carne, em que o rosto se compunha com dois ovos cozidos a fazer de olhos. Quando terminou, o resultado assemelhava­se a um volumoso manequim, com melhor aspecto em cima da maca do que alguns corpos verdadeiros quando transportados. Como toque final, Matteo salpicou um excelente after­shave na frente do melão e nas luvas ao fundo das mangas.

Carlo apontou o queixo na direcção do magro assistente de Oreste, inclinado na vedação e que estendia o microfone sobre o curral, medindo o alcance.

­ Diga a esse filho da mãe que se ele cair, não vou apanhá­lo. Por fim, tudo estava a postos. Piero e Tômmaso desceram a maca até à posição mais baixa, com as pernas dobradas e empurraram­na até ao portão do curral.

Carlo trouxe um gravador da casa com um amplificador separado. Tinha uma série de cassetes algumas das quais ele próprio gravara enquanto cortava as orelhas a vítimas raptadas para as enviar por correio aos familiares. Carlo punha sempre estas gravações para que os animais as ouvissem enquanto comiam. Não precisaria das gravaÇões quando tivesse uma verdadeira vítima que soltasse os gritos.

Dois altifalanteS de exterior foram pregados aos postes do barracão. o sol brilhava com intensidade sobre o bonito prado que descia até aos bosques. A sólida vedação à volta do prado prolongava­se pela floresta. Cortando o silêncio do meio­dia, Oreste ouvia o zumbido de uma abelha­do­pau sob o tecto do barracão.

­ Está pronto? ­ perguntou Carlo.

Foi o próprio Oreste a ligar a câmara fixa. ­ Gíríamo ­ ordenou ao seu cameraman.

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­ Pronti! ­ obteve como resposta.

­ Motore! ­ As câmaras estavam a filmar.­ Partito! ­ o som acompanhava o filme.

­ Azione! ­ Oreste deu uma cotovelada em Carlo.

o sardenho carregou no botão de play do gravador e desencadeou uma sequência infernal de gritos, soluços e súplicas. o cameramen sobressaltou­se com o som e depois recompòs­se. Toda aquela guincharia era horrível de se ouvir, mas constituía uma abertura apropriada para os focinhos que apareceram dos bosques, atraídos pelos gritos que anunciavam o jantar.

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Capítulo trinta e doisViagem de ida e volta a Génova num dia para pôr a vista no dinheiro.

o voo doméstico para Milão, um ruidoso Aerospatiale a jacto, descolou de Florença de manhã cedo, avançando sobre os vinhedos de carreiros espaçados, qual modelo em bruto de um lavrador da Toscana. Algo estava errado nas cores da paisagem... as piscinas novas junto às vivendas dos abastados estrangeiros tinham um azul falso. Aos olhos de Pazzi, que observava através da janela do avião, as piscinas emitiam o azul leitoso de um velho olho inglês, um azul deslocado no meio dos escuros ciprestes e das oliveiras prateadas.

o humor de Rinaldo Pazzi subiu com o avião, ciente no íntimo que não envelheceria aqui, dependente dos caprichos dos seus superiores da polícia, tentando aguentar para receberem a reforma.

Sentira um medo horrível de que o Dr. Lecter desaparecesse depois de matar Gnocco. Quando Pazzi detectou novamente o candeeiro de trabalho do Dr. Lecter em Santa Croce, invadiu­o algo semelhante à salvação; o Doutor acreditava estar a salvo.

A morte do cigano não causara a mínima perturbação na calma da Questura e fora atribuída à droga ­ por sorte, havia seringas descartáveis espalhadas no chão à volta dele, um espectáculo vulgar em Florença, onde as seringas eram distribuídas gratuitamente.

Ir ver o dinheiro com os próprios olhos. Pazzi insistira em que assim fosse.

o visual Rinaldo Pazzi lembrava­se totalmente das imagens: a Primeira vez que viu o pénis em erecção, a primeira vez que viu o seu próprio sangue, a primeira mulher que viu nua, a mancha do priMeiro punho que avançou ao seu encontro. Lembrava­se de entrar por acaso na capela lateral de uma igreja Sienense e deparar inesperadamente com o rosto de Santa Catarina de Siena, a sua cabeça mumificada

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com a touca de um branco imaculado assente num relicário com a forma de uma igreja.

A visão de três milhões de dólares americanos produziu­lhe o mesmo impacto.

Trezentos maços presos com um elástico de notas de cem dólares em séries sem sequência de números.

Numa divisão severa, semelhante a uma capela, no Geneva Crêdit Suisse, o advogado de Mason Verger mostrara o dinheiro a Rinaldo Pazzi. Foi empurrado sobre rodas da casa­forte em quatro cofres fundos com placas numeradas. o Crédit Suisse forneceu igualmente uma máquina de contagem de notas, uma balança e um funcionário que as pôsem funcionamento. Pazzi dispensou o funcionário. Colocou uma vez as mãos em cima do dinheiro.

Rinaldo Pazzi era um investigador de grande competência. Descobrira e prendera artistas da escumalha durante vinte anos. De pé, na presença deste dinheiro, de ouvido atento aos preparativos, não detectou uma única nota falsa; se lhes entregasse Hannibal Lecter, Mason dava­lhe o dinheiro.

Envolto numa agradável onda de calor, Pazzi tomou consciência de que esta gente não brincava em serviço... Mason Verger pagaria mesmo o dinheiro. E não tinha ilusões quanto ao destino de Lecter. Estava a vender o homem à tortura e morte. Pazzi reconheceu intimamente o que estava a fazer.

Pazzi viu que a ansiedade insana de Mason de pagar pela dor do Dr. Lecter não era mais invulgar nem aberrante do que as vis extravagâncias de Deus ao cumular de bençãos homens indignos como os novos superiores de Pazzi.

A nossa liberdade vale mais do que a vida do monstro. A nossa felicidade é mais importante do que o sofrimento dele,  pensou, com o frio egoísmo dos malditos. Se o nossa era dogmático ou se referia a Rinaldo e à mulher é uma pergunta difícil e pode haver mais do que uma resposta.

Nesta sala, esfregada à boa maneira suíça, com a brancura de uma touca, Pazzi fez o juramento final. Afastou­se do dinheiro e esboçou um aceno de cabeça a Mister Konie, o advogado. Este contou cem mil dólares do primeiro cofre e entregou­os a Pazzi.

Mister Konie falou rapidamente a um telefone e estendeu o auscultador a Pazzi. ­ É uma linha por baixo do solo ­ explicou. A voz americana que Pazzi ouviu tinha um ritmo peculiar, as palavras precipitavam­se de um fôlego com uma pausa no meio e as consoantes explosivas perdiam­se. o som provocou uma ligeira tontura em Pazzi, como se também lhe faltasse o fôlego em uníssono com o interlocutor.

Sem preâmbulo, a pergunta: ­ Onde está o Doutor Lecter?

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Com o dinheiro numa das mãos e o auscultador na outra, Pazzi não hesitou em responder: ­ É o que estuda no Palazzo Capponi, em Florença. É o... conservador.

­ Importa­se de mostrar a sua identificação a Mister Konie e passar­lhe o telefone? Ele não pronunciará o seu nome.

Mister Konie consultou uma lista que tirou do bolso e disse algumas palavras num código pré­combinado a Mason, depois do que entregou de novo o auscultador a Pazzi.

­ Receberá o resto do dinheiro quando ele estiver vivo nas nossas mãos ­ prometeu Mason. ­ Não tem de prender o Doutor, mas tem de identificá­lo e colocá­lo nas nossas mãos. Quero igualmente a sua documentação, tudo o que possui sobre ele. Regressa a Florença esta noite? Receberá instruções esta noite para um encontro próximo de Florença. o encontro não será posterior a amanhã à noite. Aí obterá instruções do homem que prenderá o Doutor Lecter. Ele vai perguntar­lhe se conhece uma florista. Responda que todas as floristas são ladras. Compreende­me? Quero que colabore com ele.

­ Não quero o Doutor Lecter na minha... Não o quero próximo de Florença quando...

­ Entendo a sua preocupação. Descanse que não estará. A linha ficou silenciosa.

Decorridos alguns minutos de burocracia, os dois milhões e novecentos mil dólares passaram a título. Mason Verger não podia recuperá­los, mas podia dar ordem para que Pazzi os recebesse.

Um funcionário do Crédit Suisse convocado à sala de reuniões informou Pazzi que o banco lhe cobraria um juro negativo para lhe facilitar um depósito se ele convertesse o dinheiro em francos suíços e pagaria três por cento de juro composto somente sobre os primeiros cem mil francos. o funcionário apresentou a Pazzi uma cópia do artigo 47 do Bundesgesetz uber Banken und Sparhassen da lei de sigilo do Banco e concordou em proceder a uma transferência para o banco da Nova Scotia ou das Ilhas Caimãs mal os fundos estivessem à disposição, caso Pazzi o desejasse.

Na presença de um notário, Pazzi garantiu poder de uma segunda assinatura para a conta da mulher na eventualidade da sua morte. Concluído o negócio, só o funcionário do banco suíço lhe estendeu a mão. Pazzi e Mister Konie não se fitaram directamente, embora Mister Konie se tivesse despedido à porta.

A última etapa até casa, o avião de Milão atravessando uma tempestade, o propulsor do lado de Pazzi, um círculo negro recortado no céu cinzento escuro. Relâmpagos e trovões enquanto sobrevoavam a velha cidade, o campanário e abóbada da catedral debaixo deles, luzes surgindo ao cair da noite, umflash e um estrondo semelhantes

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aos que Pazzi se recordava dos tempos de infância, quando os alemães explodiram as pontes sobre o Arno, poupando apenas a Ponte Vecchio. E durante o espaço minimo de um relâmpago recordou­se de ver, quando rapazinho, um atirador acorrentado à Madonna das Correntes, rezando antes de ser alvejado.

Descendo através do cheiro a ozono dos relâmpagos, ouvindo o ribombar dos trovões contra o metal do avião, Pazzi dos antigos Pazzi regressou à sua antiga cidade, preso de objectivos com a idade do tempo.

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Capítulo trinta e trêsRinaldo Pazzi teria preferido manter uma cerrada vigilância sobre a sua presa no Palazzo Capponi, mas era­lhe impossível.

Em vez disso, Pazzi, ainda arrebatado pela visão de todo aquele dinheiro, teve de vestir o smoking e ir juntar­se à mulher para assistir a um concerto há muito marcado da Orquestra de câmara de Florença.

o Teatro Picollonimi, uma cópia feita no século XIX a média escala do glorioso Teatro La Fenice de Veneza é uma jóia barroca de dourados e veludos, com querubins desafiando as leis da aerodinâmica em todo o seu maravilhoso tecto.

Também é bom que o teatro seja belo, pois os executantes necessitam frequentemente de toda a ajuda possível.

É injusto mas inevitável que a música em Florença seja implacavelmente avaliada pelos elevados padrões da arte da cidade. Os Florentinos são um conhecedor e vasto grupo de amantes da música, típicos de Itália, mas sentem­se, por vezes, famintos de artistas musicais.

Pazzi deslizou para o assento ao lado da mulher durante os aplausos que se seguiram à abertura.

Ela ofereceu­lhe a face perfumada. Ele sentiu o coração acelerado ao olhá­la com aquele vestido de noite, decotado bastante para emanar uma quente fragância do rego entre os seios, segurando a partitura na elegante capa Gucci que Pazzi lhe dera.

­ Melhoraram cem por cento com o novo viola ­ sussurrou ao ouvido de Pazzi. ­ Este excelente viola viera substituir um outro extremamente inepto, primo de Sogliato, que desaparecera estranhamente há umas semanas.

o Dr. Hannibal Lecter olhou para baixo de um camarote, só, imaculado com o seu laço branco, com o rosto e a frente da camisa

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parecendo flutuar na moldura escura formada pela talha de barroco dourada.

Pazzi detectou­o quando as luzes se acenderam por momentos depois do primeiro movimento e, antes de Pazzí conseguir desviar os olhos, a cabeça do Doutor virou­se como a de uma coruja e fixaram­se. Pazzi apertou involuntariamente a mão da mulher com força bastante para a levar a voltar­se e a fitá­lo. Em seguida, Pazzi manteve o olhar resolutamente no palco, sentindo nas costas da mão o calor da coxa da mulher, que não desprendera a mão da dele.

No intervalo, quando Pazzi voltou do bar e lhe estendeu uma bebida, o Dr. Lecter encontrava­se ao seu lado.

­ Boa noite, Doutor... Fell ­ cumprimentou Pazzi.

­ Boa noite, Commendatore ­ respondeu o Doutor, esperando com uma leve inclinação de cabeça até Pazzi se ver obrigado a proceder às apresentações.

­ Quero apresentar­te o Doutor Fell, Laura. Doutor, esta é a Signora Pazzi, a minha mulher.

A Signora Pazzi, acostumada a ser elogiada pela sua beleza, considerou encantador o que se seguiu, embora o marido não fosse da mesma opinião.

­ Obrigado por este privilégio, Commendatore ­ agradeceu o Doutor. A língua vermelha e ponteaguda surgiu por momentos, antes de se inclinar sobre a mão da Signora Pazzi, talvez com os lábios mais próximos da pele do que é hábito em Florença, sem dúvida à distância bastante para que ela lhe sentisse a respiração na pele.

Os olhos fitaram­na antes de erguer novamente o rosto.

­ Acho que gosta particularmente de Scarlatti, Signora Pazzi.­ Sim. É verdade.

­ Foi agradável vê­la seguir a partitura. Quase ninguém o faz hoje em dia. Esperei que isto pudesse interessá­la. ­ Tirou um portfolio debaixo do braço. Era uma partitura antiga em pergaminho, copiada à mão. É do Teatro Capranica em Roma, de 1688, o ano em que a peça foi escrita.

­ Meraviglioso! Olha para isto, Rinaldo!

­ Assinalei à margem algumas das diferenças da partitura moderna, enquanto se processou o primeiro movimento ­ replicou o Dr. Lecter. ­ Talvez a divirta continuar no segundo. Aceite­a, por favor. Posso recuperá­la depois por intermédio do Signore Pazzi... Permite, Commendatore?

o Doutor perscrutando como ao profundo de um poço, quando Pazzi respondeu.

­ Se te der prazer, Laura ­ concordou, acrescentando após uma breve reflexão. ­ Vai comparecer diante do Studiolo, Doutor?

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­ Sim. De facto, sexta­feira à noite. Soglioto está ansioso por me ver desacreditado.

­ Tenho de ir à parte antiga da cidade ­ redarguiu Pazzi. Nessa altura, devolvo­lhe a partitura. Laura, o Doutor Fell tem de lutar pelo sustento diante dos dragões do Studiolo.

­ Estou certa de que o fará lindamente, Doutor ­ replicou com um fixar dos grandes olhos escuros... dentro dos limites do decoro, mas a rasá­los.

o Dr. Lecter sorriu, mostrando os dentes pequenos e brancos.­ Se fabricasse Fleur du Ciel, Madame, oferecia­lhe o Diamante do Cabo para que o usasse. Até sexta à noite, Commendatore.

Pazzi certificou­se de que o Doutor voltava para o camarote e não voltou a fixá­lo, até acenarem um boa­noite de despedida, à distância, nos degraus do teatro.

­ Dei­te esse Fleur du Ciel nos teus anos ­ comentou Pazzi.­ Deste sim e adoro­o, Rinaldi ­ anuiu a Signora Pazzi. Tens um gosto maravilhoso.

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Capítulo trinta e quatroImpruneta é uma antiga cidade toscana onde foram fabricadas as telhas do telhado da Duomo, o seu cemitério avista­se à noite das vivendas situadas no alto das encostas a uma distância de quilómetros devido às lâmpadas que estão sempre acesas nas campas. A luz ambiente é reduzida mas suficiente para que os visitantes possam mover­se por entre os mortos, embora seja necessária uma lanterna para ler os epitáfios.

Rinaldo Pazzi chegou às cinco para as nove com um pequeno ramo de flores que tencionava colocar numa sepultura ao acaso. Avançou devagar ao longo de um caminho de cascalho entre os túmulos.

Sentiu a presença de Carlo, embora não o visse.

Carlo falou­lhe do outro lado de um mausoléu, acima da altura da cabeça: ­ Conhece uma boa florista na cidade?

o homem parecia um sardenho. óptimo. Talvez soubesse o que estava a fazer.

­ As floristas são todas ladras ­ replicou Pazzi.

Carlo surgiu bruscamente por detrás da construção em mármore, sem espreitar.

Pazzi achou­o selvagem, baixo, rubicundo e forte, mas de movimentos ágeis. Usava um colete de cabedal e tinha pêlo de javali no chapéu. Pazzi calculou que tinha uns sete centímetros mais de alcance de braço e era dez centímetros mais alto do que Carlo, Supunha que eram mais ou menos do mesmo peso. Carlo não tinha um polegar, Pazzi imaginou que conseguiria encontrá­lo nos registos da Questura com uns cinco minutos de esforço, Os dois homens eram iluminados por baixo pelas lâmpadas das sepulturas.

­ A casa dele tem bons alarmes ­ informou Pazzi. ­já a examinei. Tem de mo indicar.

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­ Ele tem de discursar numa reunião amanhã à noite, a noite de sexta­feira. Consegue agir com um prazo tão curto?

­ Tudo bem. ­ Carlo desejava provocar um pouco o polícia, avaliar a sua capacidade de controlo. ­ Vai entrar com ele ou mete­lhe medo? Fará o que lhe pagam para fazer. Vai apontar­mo.

­ Veja como fala. Farei o que me pagam para fazer, mas também se lhe aplica a regra. Ou pode passar à reforma como um cabrão de Volterra. A escolha é sua.

No trabalho, Carlo era tão impermeável aos insultos como aos gritos de dor. Concluiu que avaliara mal o polícia. Abriu as mãos. Diga­me o que preciso saber ­ retorquiu Carlo, avançando e pondo­se ao lado do polícia, como se partilhassem o mesmo luto junto ao pequeno mausoléu.

Um casal percorria o caminho da mão dada. Carlo tirou o chapéu e os dois homens mantiveram­se de pé e de cabeça baixa. Pazzi depôs as suas flores na porta do jazigo. Chegava­lhe o cheiro do chapéu de Carlo, um cheiro acre, semelhante à pila de um animal mal castrado.

­ É rápido com a navalha ­ declarou Pazzi, erguendo o rosto para se afastar do cheiro. ­ Ataca as partes baixas.

­ Tem revólver?

­ Não sei. Que eu saiba, nunca usou nenhum.

­ Não quero ter de tirá­lo para fora de um carro. Quero­o na rua, ao ar livre, rodeado de muita gente.

­ Como conseguirá derrubá­lo?

­ Isso é comigo ­ respondeu Carlo, enfiando o dente de um veado na boca e mastigando a cartilagem, fazendo aparecer ocasionalmente o dente por entre os lábios.

­ Ele tem de discursar numa reunião. Começa às sete no Palazzo Vecchio. Se for trabalhar até à Capela Capponi em Santa Croce na sexta­feira, terá de percorrer a pé a distância que o separa do Palazzo Vecchio. Conhece Florença?

­ Conheço­a bem, Arranja­me um passe de transportes para a cidade velha?

­ Arranjo.

­ Não vou arrancá­lo à igreja ­ disse Carlo.

Pazzi esboçou um aceno de concordância e prosseguiu:

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bom que ele apareça na reunião, pois assim não darão pela sua falta durante duas semanas. Tenho um motivo para o acompanhar até ao Palazzo Capponi depois da reunião...

­ Não quero apanhá­lo na casa dele. Estará no seu terreno. Conhece­o e eu não, Estará em guarda e olhará à volta junto à porta. Quero­o em campo aberto.

­ Nesse caso, ouça­me... Sairemos pela porta da frente do Palazzo Vecchio, pois o lado da Via dei Leoni estará fechado. Seguiremos

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pela Via Neri e atravessaremos o rio pela Ponte alle Grazie. Há árvores em frente do Museu Bardim do outro lado e que tapam os candeeiros de rua. A essa hora está calmo com a escola fechada,

­ Combinamos, então, diante do Museu Bardini, mas posso fazê­lo antes se tiver oportunidade, mais perto do palazzo, ou mais cedo, se ele perceber e tentar fugir. Podemos estar numa ambulância. Fique com ele até o saco de feijão o atingir e depois afaste­se rapidamente.

­ Quero­o fora da Toscana, antes que algo lhe aconteça.

­ Acredíte­me que ele estará fora do cimo da Terra, os pés em primeiro lugar ­ garantiu Carlo, sorrindo ante a sua piada pessoal e enfiando o dente de veado através do sorriso.

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capitulo trinta e cincoSexta­feira, de manhã. Um quartinho no sótão do Palazzo Capponi. Três das paredes caiadas estão nuas. Na quarta encontra­se pendurado uma grande Madonna do século xiii da Escola Cimabue, enorme na pequena divisão, com a cabeça inclinada no ângulo da assinatura como o de uma ave curiosa e os olhos amendoados fitando uma pequena figura adormecida sob o quadro.

o Dr. Hannibal Lecter, veterano em catres de prisão e hospital psiquiátrico, mantém­se deitado na sua estreita cama, com as mãos sobre o peito.

Os olhos abrem­se e fica súbita e totalmente desperto, com o sonho da sua irmã Mischa, há muito morta e digerida, passando ininterruptamente para este presente acordar: perigo nessa altura, perigo agora.

o facto de saber que corre perigo perturba­lhe tanto o sono quanto ter morto o carteirista.

Vestido e pronto para o dia, perfeito no seu fato de seda preta, desliga os sensores de movimento colocados no cimo das escadas dos criados e desce até aos amplos espaços do palazzo.

Agora, pode percorrer à vontade o vasto silêncio das muitas divisões do palácio, uma liberdade estonteante depois de tantos anos preso numa cela subterrânea.

Tal como as paredes cobertas de frescos de Santa Croce ou do Palazzo Vecchio são providas de mente, também a atmosfera da biblioteca Capponi vibra de presenças para o Dr. Lecter, enquanto trabalha na grande parede de manuscritos metidos nos escaminhos. Escolhe alguns manuscritos enrolados, sopra o pó e os grãos pairam num raio de luz, como se os mortos, que agora são pó, anseiem por lhe contar os destinos deles e o seu. Trabalha com eficiência, mas sem pressas desnecessárias, metendo algumas coisas no seu portfolio, reunindo

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livros e ilustrações para a sua prelecção dessa noite ao Stu_ diolo. Há tantas coisas que gostaria de ler.

o Dr. Lecter liga o computador portátil e, ligando­se ao Departamento de Criminologia da Universidade de Milão, consulta o site littpWw^fbi.gov, como qualquer vulgar cidadão pode fazê­lo. Fica a saber que a audiência do subcomité judiciário sobre o raide de droga falhado de Clarice Starling ainda não foi marcada. Não tem acesso a códigos de que necessitaria para consultar o seu próprio ficheiro no FBI. Na página Os mais Procurados, o seu antigo semblante fita­o ladeado por um bombista e um incendiário.

o Dr. Lecter tira o chamativo tablóide de cima de uma pilha de pergaminhos e fixa a fotografia de Clarice Starling na primeira página, toca­lhe no rosto com o dedo. A lâmina reluzente surge­lhe na mão como se ali tivesse nascido em substituição do seu sexto dedo. A navalha chama­se Harpia e tem um gume denteado em forma de garra. Corta tão facilmente o National Taffier como cortou a artéria femural do cigano ­ a lâmina entrou e saiu tão rapidamente no cigano, que o Dr. Lecter nem precisou de limpá­la.

o Dr. Lecter recorta a fotografia do rosto de Clarice Starling e cola­a num bocado de pergaminho vazio.

Agarra numa caneta e, com uma enorme facilidade, desenha no pergaminho o corpo de uma leoa com asas, um grifo com o rosto de Starling. Por baixo, escreve com a sua elegante caligrafia: «Alguma vez pensou, Clarice, por que é que os Filistinos não a compreendem? Porque você é a resposta ao enigma de Salomão: É o mel no leão. »

A quinze quilómetros, estacionado por uma questão de privacidade, atrás de um elevado muro de pedra em Impruneta, Carlo Deogracias passava em revista o seu equipamento, enquanto o seu irmão Matteo praticava uma série de golpes de judo na relva macia com os outros dois sardenhos, Picro e Tôminaso Falcione. os dois Falciones eram rápidos e muito robustos... Piero jogara algum tempo no grupo profissional de futebol dos Cagliari. Torimiaso tinha estudado para ser padre e falava um bom inglês. Rezava por vezes com as vítimas.

A carrinha Fíat branca de Carlo com matrícula romana fora alugada legalmente. Preparadas para serem colocadas nos dois lados havia letreiros com os dizeres OSPEDALE DELLA MISERACORDIA. As paredes e o chão eram almofadados na eventualidade do indivíduo se debater no interior da carrinha.

Carlo tencionava realizar este projecto tal como Mason desejava, mas se o plano desse para o torto e ele tivesse de matar o Dr. Lecter na Itália e abortar as filmagens na Sardenha, nem tudo estava perdido.

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Carlo sabia que podia matar o Dr. Lecter e arrancar­lhe a cabeça e as mãos em menos de um minuto.

Se não dispusesse desse tempo, podia arrancar­lhe o pénis e um dedo, que através do teste do ADN, serviriam de prova. Selados num saco de plástico e conservados em gelo, chegariam às mãos de Mason em menos de 24 horas, habilitando Carlo a uma recompensa adicional aos seus honorários.

Perfeitamente arrumadas atrás dos bancos, havia uma pequena serra de corrente, tesouras metálicas de pegas compridas, uma serra cirúrgica, facas afiadas, sacos de plástico com fecho éclair, um dispositivo Black & Decher  para imobilizar os braços do Doutor e uma embalagem dos correios com porte de entrega de pré­pagamento por expresso aéreo, tendo sido avaliado o peso da cabeça do Dr. Lecter em seis quilos e as mãos num quilo cada.

Se Carlo tivesse oportunidade de gravar uma chacina de emergência em vídeo, confiava que Mason faria um pagamento extra para ver o Dr. Lecter chacinado em vida, mesmo depois de ter cuspido o milhão de dólares pela cabeça e as mãos do Doutor. Para esse objectivo, Carlo munira­se de uma boa câmara de vídeo, luzes e tripé e ensinou a Matteo as bases de funcionamento.

o seu equipamento de captura mereceu­lhe igual atenção. Piero e Tômmaso eram peritos com a rede, agora dobrada cuidadosamente, como um páraquedas. Carlo tinha uma arma com agulha hipodérmica e dardo carregada com uma dose do tranquilizante para animais Acepromazine suficiente para derrubar em segundos um animal do tamanho do Dr. Lecter.

Carlo indicara a Rinaldo Pazzi que começaria com a arma de sacos de feijão que estava pronta e carregada, mas que se tivesse oportunidade de enfiar a agulha hipodérmica nas nádegas ou pernas do Dr. Lecter, o saco de feijões não seria necessário.

Os raptores só tinham de permanecer em território italiano com o cativo durante cerca de 40 minutos, o espaço de tempo necessário para uma viagem até ao aeroporto de jactos em Pisa, onde um avião de emergência estaria à espera. A pista de Florença ficava mais próxima, mas o trânsito aéreo era escasso e um voo privado seria mais perceptível.

Em menos de uma hora e meia chegariam à Sardenha, onde o comité de recepção do Doutor estava cada vez mais ávido.

Carlo considerara todos os detalhes no seu inteligente e fétido cérebro. Mason não era idiota. Os pagamentos eram ponderados, de forma a que nada de mal acontecesse a Rinaldo Pazzi ­ o dinheiro sairia do bolso de Carlo se matasse o polícia e tentasse reivindicar a recompensa total. Mason não queria a fúria pela morte de um polícia. Seria preferível seguir as regras de Mason. No entanto, Carlo sentia

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comichões em todo o corpo só de pensar o que poderia ter conseguido com alguns golpes da serra, se fosse ele a ter encontrado o Dr. Lecter,

Experimentou a serra de corrente. Funcionou à primeira. Carlo trocou umas breves palavras com os outros e seguiu para a cidade numa pequena vespa, munido apenas de uma faca, um revólver e uma agulha hipodérmica.

o Dr. Hannibal Lecter não tardou a sair da barulhenta rua e parou diante da Farmácia di Santa Maria Novella, um dos lugares mais perfumados da Terra. Parou uns minutos com a cabeça deitada para trás e os olhos fechados, absorvendo os aromas dos sabonetes, loções e cremes e dos ingredientes das salas de trabalho. o porteiro estava habituado à sua presença e  os empregados, por regra dados a uma certa arrogância, votavam­lhe grande respeito.

Durante os meses que passara em Florença, as compras do Dr. Lecter não deveriam ter totalizado mais de cem mil liras, mas as fragâncias e essências eram escolhidas e combinadas com uma surpreendente sensibilidade e gratificantes para estes mercadores de perfumes, que vivem do nariz.

Foi para preservar este prazer que o Dr. Lecter não submetera o nariz a uma rinoplastia, à excepção de injecções exteriores de colagénio, Para ele, a atmosfera estava pintada de odores tão distintos e vivos como cores e conseguia dispá­los em camadas e diferenciá­los como se pintasse a óleo. Aqui, nada se assemelhava à prisão. Aqui o ar era verdadeira música. Aqui havia pálidas lágrimas de olíbano aguardando a extracção, bergamota amarela, madeira de sândalo, cinarnomo e mimosa em sintonia com as notas e apoio de genuína âmbar­gris, almíscar, castórco do castor e essência do almiscareiro.

Por vezes, o Dr. Lecter acalentava a ilusão de que conseguia cheirar com as mãos, os braços e as faces, que o odor o inundava. Que conseguia cheirar com o rosto e o coração.

É por bons e anatómicos motivos que o olfacto activa mais a memória do que qualquer outro sentido.

Aqui, o Dr. Lecter era invadido por fragmentos e instantâneos de memórias sob a luz suave dos grandes candeeiros Art Deco da farmácía, respirando, respirando. Aqui nada se assemelhava à prisão. Excepto... o que era aquilo? Porquê, Clarice Starling? Não era o E Air du Temps de que se apercebera quando ela abriu a mala de mão, perto das grades da sua jaula na  prisão. Não era isso. Tais perfumes não se vendiam aqui na farmácia. Tão pouco a sua loção de pele. AW Sopa di  Mandorla. o famoso sabonete de amêndoas da farmácia. Onde é

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que o tinha cheirado? Meraphis, quando ela estava do lado de fora da sua cela, quando lhe tocara por um breve instante no dedo, pouco antes de escapar. Starling, pois. Limpa e de fina textura. Algodão com um toque soalheiro e engomado. Clarice Starling, então. Atraente e gostosa. Aborrecida com a sua seriedade e absurda nos seus princípios. Rápida de raciocínio. Uuuummm.

Para o Dr. Lecter, as más recordações associavam­se, por outro lado, a odores desagradáveis e aqui na farmácia encontrava­se talvez o mais longe que lhe era possível da série de esqueletos negros enterrados no seu Palácio da Memória.

Nesta sexta­feira cinzenta e contrariamente aos seus hábitos, o Dr. Lecter comprou uma quantidade de sabonetes e loções e óleos de banho. Levou alguns com ele e deu ordem à farmácia para que enviasse os outros, depois de escrever os nomes nas etiquetas com a sua elegante e personalizada caligrafia.

­ Quer juntar algum bilhete, Dottore? ­ perguntou o empregado.­ Por que não? ­ retorquiu o Dr. Lecter e fez deslizar o desenho dobrado do grifo para o interior da caixa.

A Farmácia di Santa Maria Novella é contígua a um convento na Via Scala e Carlo, sempre devoto, tirou o chapéu antes de se esconder sob uma imagem da Virgem, perto da entrada. Notara que a pressão de ar das portas interiores da entrada fazia com que as portas exteriores se escancarassem, segundos antes de alguém sair. Isto dava­lhe tempo a ocultar­se e a espreitar de cada vez que um cliente se ia embora.

Quando o Dr. Lecter saiu com o seu fino portfolio, Carlo estava bem escondido atrás do quiosque de um vendedor de postais. o Doutor pós­se a caminho. Quando passou junto à imagem da Virgem, levantou a cabeça e as narinas abriram­se, enquanto fitava a estátua e cheirava o ar.

Carlo achou que pudesse ser um gesto de devoção. Interrogou­se sobre se o Dr. Lecter seria religioso como é frequentemente o caso de homens loucos. Talvez, no fim, conseguisse que o Doutor amaldiçoasse Deus... isso agradaria a Mason. Teria, obviamente, que afastar primeiro o piedoso Tonunaso.

Ao fim da tarde, Rinaldo Pazzi escreveu uma carta à mulher que incluía o esforço de um soneto, composto nos primeiros tempos de namoro, e que nessa altura tivera vergonha de lhe entregar. Meteu no interior os códigos necessários para exigir o dinheiro confinado na Suíça, juntamente com uma carta que deveria mandar a Mason, se ele tentasse desligar­se do contrato. Colocou a carta onde só ela a encontraria se estivesse a reunir os seus objectos pessoais.

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Às seis da tarde, dirigiu­se na vespa ao Museu Bardini e acorrentou­a a um corrimão de ferro, de onde os últimos estudantes do dia estavam a retirar as bicicletas. Avistou a carrinha branca com os dizeres de ambulância estacionada próximo do museu e calculou que pudesse pertencer a Carlo. Havia dois homens sentados na carrinha. Quando Pazzi virou as costas sentiu­lhes os olhos pregados nele.

Dispunha de muito tempo. Os candeeiros da rua já estavam acesos e avançou lentamente na direcção do rio através das negras e úteis sombras sob as árvores do museu. Depois de atravessar a Ponte alle Grazie, deteve­se algum tempo a observar o Arno de águas vagarosas e deu vazão aos últimos pensamentos demorados que teria tempo de nutrir.

A noite estaria escura. óptimo. Nuvens baixas avançavam rapidamente para oriente sobre Florença, aflorando ao de leve o cruel espigão do Palazzo Vecchio; uma brisa levantou­se e agitou o cascalho na píazza diante de Santa Croce por onde Pazzi avançava agora, levando no bolso uma Beretta de 9 mm, um estojo liso de cabedal e uma faca para espetar no Dr. Lecter se fosse necessário matá­lo de imediato.

A Igreja de Santa Croce fecha às seis da tarde, mas um sacristão deixou entrar Pazzi por uma pequena porta junto à fachada da igreja. Não queria perguntar ao homem se o «Doutor Fell» estava a trabalhar e, portanto, foi verificar cuidadosamente com os próprios olhos. Velas a arder nos altares ao longo das paredes proporcionavam­lhe luz suficiente. Percorreu a ampla distância que o separava do braço direito da igreja em forma de cruz.

Tornava­se difícil perceber para lá das velas dos crentes se o Dr. Fell se encontrava na Capela Capponi.

Avançou devagar pelo transepto direito. Olhando. Uma sombra enorme recortava­se na parede da capela e, pelo espaço de um segundo, Pazzi ficou sem fôlego. Era o Dr. Lecter dobrado à luz do candeeiro, no chão onde elaborava os seus polimentos. o Doutor levantou­se, perscrutou a escuridão como uma coruja, virando a cabeça, o corpo quieto, iluminado de baixo pelo candeeiro de trabalho e uma sombra imensa nas costas. Depois, a sombra espalhou­se pela parede da capela, quando voltou a inclinar­se sobre o trabalho.

Pazzi sentia o suor a escorrer­lhe pelas costas, por baixo da camisa, mas o rosto estava frio.

Ainda faltava uma hora para o começo da reunião no Palazzo Vecchio e Pazzi queria chegar tarde à prelecção.

Na sua beleza severa a capela, que Brunelleschi construiu para a família Pazzi em Santa Croce, é uma das glórias da arquitectura Renascentista, em que o quadrado e o círculo se reconciliam. Trata­se

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de uma estrutura separada no exterior do santuário de Santa Croce com um único acesso através de um claustro abobadado.

Pazzi rezou na capela Pazzi, ajoelhando­se na pedra, observado pelo seu parente no rondel Della Robbia por cima dele. Sentiu as suas preces restringidas pelo círculo dos Apóstolos no tecto e pensou que talvez pudessem ter escapado para o escuro claustro nas suas costas e voado daí para o céu aberto e até Deus.

Imaginou com esforço algumas coisas boas que poderia fazer com o dinheiro que recebesse em troca do Dr. Lecter. Viu­se na companhia da mulher a distribuir moedas por alguns garotos e a comprar qualquer máquina médica que doariam a um hospital. Avistou as ondas da Galileia, que lhe pareciam muito semelhantes a Chesapeake. Viu a mão bem modelada e rosada da mulher rodeando­lhe o pênis, apertando­o para ressaltar a cabeça do membro.

Olhou em volta e, não avistando ninguém, dirigiu­se em voz alta a Deus: ­ Obrigado, Pai, por me permitires remover este monstro, o monstro dos monstros, da tua terra. Obrigado em nome das almas a quem nós livraremos da dor. ­ Se este nós era dogmático ou uma referência à associação de Pazzi e Deus não é claro e pode não haver uma resposta única.

A parte dele que não era sua amiga segredou a Pazzi que ele e o Dr. Lecter tinham morto juntos, que Gnocco era a vítima de ambos pois Pazzi nada fez para o salvar e sentiu­se aliviado quando a morte o silenciou.

A oração proporcionava um certo conforto, reflectiu Pazzi, saindo da capela... Tinha a nítida percepção, ao atravessar o claustro escuro, de que não estava só.

Carlo esperava sob o avançado do Palazzo Piccolomini e acertou o passo com Pazzi. Trocaram muito poucas palavras. Dirigiram­se às traseiras do Palazzo Vecchio e confirmaram que a porta do cavalo para a Via dei Leoni estava trancada e as janelas por cima tinham as persianas corridas. A única porta aberta era a entrada principal para o palazzo.

­  Saímos por aqui, descemos os degraus e damos a volta para a Via Neri ­ disse Pazzi.

­ o meu irmão e eu estaremos no lado Loggia da piazza. Seguiremos a uma boa distância atrás de vocês. Os outros estão no Museu Bardini.

­ Eu vi­os.

­ Eles também o viram ­ retorquiu Carlo.­ o saco com os feijões faz muito barulho?

­ Não muito, não tanto como uma arma, mas ouvirá e ele não tardará a cair. ­ Carlo omitiu que Piero alvejaria o saco de feijões

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das sombras em frente do museu, enquanto Pazzi e o Dr. Lecter airjda estivessem visíveis. Carlo não queria que Pazzi se afastasse ins_ tintívamente do Doutor e o avisasse antes do tiro.

­ Precisa confirmar a Mason que o tem. Precisa fazê­lo esta noite ­ vincou Pazzi.

­ Não se preocupe. Este cabrão vai passar a noite a suplicar a Mason ao telefone ­ garantiu Carlo, olhando de lado para Pazzi, esperando vê­lo pouco à vontade. ­ Começará por pedir a Mason que o poupe e passado um tempo suplicará que o matem.

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kapítulo trinta e seisChegou a noite e os últimos turistas foram convidados a abandonar o Palazzo Vecchio. Muitos deles, sentindo o vulto gigantesco do castelo medieval nas costas enquanto se dispersavam pela piazza, tiveram de se voltar e pousar os olhos uma última vez no denteado dos parapeitos, lá no alto.

Projectores acenderam­se, inundando a íngreme calçada de pedras irregulares, adensando sombras sob as altas ameias. Quando os pardais recolheram aos seus ninhos, apareceram os primeiros morcegos, mais perturbados na caça pelos guinchos de alta frequência protegidos pelas ferramentas dos restauradores, do que pela luz.

Dentro do palazzo, o trabalho infindável de conservação e manutenção prolongar­se­ia por mais uma hora, exceptuando o Salão dos lírios, onde o Dr. Lecter conferenciou com o capataz da equipa de manutenção.

o capataz, habituado à mesquinhez e azedas exigências do Comité Belli Arti, achou o Doutor delicado e extremamente generoso. Minutos depois, os operários arrumaram o equipamento, tirando

do caminho os enormes polidores do chão e compressores e encostando­os à parede, enrolando os fios e cabos eléctricos. Instalaram rapidamente as cadeiras desdobráveis para a reunião do Studiolo apenas eram necessárias doze cadeiras ­ e escancararam as janelas Para eliminar o cheiro a tinta, polimento e material de dourar.

o Doutor insistiu numa estante apropriada e descobriram uma Com o tamanho de um púlpito no antigo gabinete de Niccolo MachiaVe­lli que ficava contíguo ao salão, tendo­o transportado num alto carro de mão, juntamente com o projector de tecto do palazzo.

o Dr. Lecter não gostou do pequeno ecrã que trouxeram com o Projector e mandou­o embora. Em vez disso, experimentou mostrar as imagens em tamanho normal num dos oleados que protegiam uma

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parede polida de novo. Depois de o ter fixado e alisado as dobras, concluiu que o oleado serviria na perfeição.

Colocou marcas em vários dos pesados tomos empilhados na estante e depois ficou de pé, junto à janela, de costas para a sala, os membros do Studíolo, vestidos de fatos escuros e sombrios, chegaram e sentaram­se, com o tácito cepticismo dos eruditos patente nos rostos, enquanto dispunham as cadeiras num semicírculo idêntico ao da configuração de um júri.

Olhando através das altas janelas, o Dr. Lecter avistava a Duomo e o campanário de Giotto, recortados a negro a ocidente, mas não o amado Baptistério de Dante por baixo deles. Os projectores virados para cima impedíam­no de avistar a escura píazza, onde os assassinos o esperavam.

Quando os mais reputados eruditos da Idade Média e Renascença do mundo se encontravam instalados nas cadeiras, o Dr. Lecter organizou mentalmente a prelecção que ia fazer. Demorou pouco mais de três minutos. o assunto era o Inferno de Dante e Judas Iscariotes.

Em perfeita sintonia com o gosto do Studiolo pela Pré­Renascença, o Dr. Lecter começou com o caso de Píer della Vigna, Logoteta do reino da Sicília, cuja avareza lhe conquistou um lugar no Inferno de Dante. Durante a primeira meia hora, o Doutor fascinou­os com as intrigas medievais da vida real por detrás da queda della Vigna.

­ Della Vigna caiu na desgraça e cegaram­no por ter atraiçoado a confiança do imperador mediante a sua avareza ­ declarou o Dr. Lecter, aproximando­se do tópico principal. ­ o peregrino de Dante encontrou­o no sétimo nível do inferno, reservado aos suicidas. À semelhança dejudas Iscariotes, morreu enforcado.

«Judas e Pier della Vigna e Ahitófeles, o ambicioso conselheiro de Absalão, estão ligados em Dante pela avareza que neles detectou e pelas suas subsequentes mortes por enforcamento.

«A avareza e o enforcamento encontram­se ligadas no espírito antigo e no medieval: São Jerónimo escreve que a própria alcunha de Judas, Iscariotes, significa dinheiro ou preço, enquanto o padre Orígenes afirma que Iscaríotes deriva do hebraico «por sufoco» e que o seu nome significa «Judas, o Sufocado».

o Dr. Lecter ergueu os olhos do pódio, espreitando por cima dos óculos na direcção da porta.

­ Ah, bem vindo, Conmendatore Pazzi. Dado estar mais perto da porta, quer ter a bondade de baixar as luzes? Vai interessar­se, conmendatore, pois já há dois Pazzis no Inferno de Dante... ­ Os

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professores do Studiolo soltaram uma risada seca. ­ Há Camiscion de’Pazzi que assassinou um parente e aguarda a chegada de um segundo Pazzi ­ mas não é o senhor ­ é Carlino, que será colocado ainda mais fundo no inferno pela infidelidade e traição aos Guelfos Brancos, o grupo do próprio Dante.

Um pequeno morcego entrou com um bater de asas através de uma das janelas abertas e descreveu algumas voltas sobre a cabeça dos professores, um evento vulgar na Toscana e que todos ignoraram.

o Dr. Lecter retomou a sua voz de orador: ­ Avareza e enforcamento, estão, ligados desde a antiguidade, a imagem aparecendo vezes sem conta na arte. ­ o Dr. Lecter carregou no interruptor que tinha na palma da mão e o projector acendeu­se, emitindo uma imagem no pano que cobria a parede. As imagens sucederam­se numa rápida sequência ao ritmo da sua voz:

­ Aqui vemos a primeira representação mais conhecida da Crucificação, talhada numa caixa de marfim na Gália por volta de quatrocentos. Inclui a morte por enforcamento de Judas, de rosto virado para o ramo de onde está suspenso. E aqui num relicário de Milão, do século iv, e num díptico de marfim do século ix, Judas enforcado. Ainda continua de rosto virado para cima.

o pequeno morcego passou, voando junto ao ecrã, caçando insectos.

«Nesta ilustração das portas da Catedral Benevento, vemos Judas enforcado, de vísceras pendentes, como São Lucas, o físico, o descreveu nos Actos dos Apóstolos. Aqui, está enforcado e cercado das harpias e por cima dele, no céu, desenha­se o rosto de Caim­na­Lua; e aqui, está representado pelo vosso Giotto, novamente de vísceras pendentes.

E, por fim, aqui, numa edição do século xv do Inferno, vê­se o corpo de Pier della Vigna, pendendo de uma árvore ensanguentada. Não vou deter­me no óbvio paralelo com Judas Iscariotes.

«Dante, porém, não precisava de uma ilustração pintada; Dante Allighieri teve o génio de levar Pier della Vigna, agora no Inferno, a falar em silvos esforçados e sibilantes cuspidas, como se ainda estivesse pendurado. Ouçam­no enquanto fala com os outros amaldiçoados, o seu próprio corpo morto e pendente de uma árvore espinhosa:

Surge in vermena e in píanta silvestra; l’Arpíe, pascendo poí de le sueqf1íe, fanno dolore, e al dolorfenestra.

Surge uma ervinha e planta brava resta; e as Harpias lhe pastam toda a folha, fazem­lhe dor e à dor dão uma fresta.

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o rosto normalmente pálido do Dr. Lecter ganha cor, enquanto transmite ao Studiolo as palavras gorgolejantes e sufocadas do agonizante Pier della Vigna e, enquanto prime o polegar no controlo à distância, as imagens de della Vigna e Judas desventrados alternam no largo campo de visão do pano pendurado:

Come l’altre verrem. per nostre spoglie, Ma non peró ch’alcuna sen rivesta,

Ché non é gíusto aver ció chom si toglíe.

Qui le strascíneremo, e per Ia mesta selva seranno i nostri corpi appesi, ciascuno al prun de Vombra sua  molesta.

«Assim Dante recorda, em verso, a morte de Judas na morte de Pier della Vigna pelos mesmos crimes de avareza e traição. «Ahitófeles, Judas, o vosso próprio Pier della Vigna. Avareza,

enforcamento, autodestruição, sendo a avareza uma autodestruição tão grande quanto o enforcamento. E o que diz o anónimo suicida Florentino no seu tormento no final do canto?

Io fei gibetto a me de le mie case.

Da minha casa a mim fiz cadafalso.

«Da próxima vez, talvez queiram discutir Pietro, o filho de Dante. Ele foi, incrivelmente, o único dos primeiros escritores sobre o canto xiii que estabelece a ligação entre Pier della Vigna e Judas. Penso também que seria interessante focar a questão da mastigação em Dante. o conde Ugolino mastigando a nuca do arcebispo, Satã com as suas três faces e mastigando Judas, Bruto e Cássio, todos eles traidores como Pier della Vigna.

«Obrigado pela vossa atenção.»

Os eruditos aplaudiram­no entusiasticamente, à sua maneira comedida e sombria e o Dr. Lecter continuou com as luzes reduzidas,

Iremos os mais, pela recolha

dos despojos, mas não para vesti­los que não é justo ter o que se tolha. Na triste selva vamos destrui­los,

e hão­de ficar­nos corpos pendurados,

com as más sombras, nas sarças a cobri­los.

Tradução de Vasco Graça Moura de A Divina Comédia de Dante Allighieri, Edição Bertrandl Circulo de 

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Leitores. (N. da T.)

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enquanto se despedia deles, pronunciando cada nome e segurando livros, de forma a não ter de apertar­lhes as mãos. Ao  abandonarem o Salão dos Lírios envoltos naquela luz suave, todos pareciam levar a magia do discurso.

o Dr. Lecter e Rinaldo Pazzi, agora sozinhos na vasta câmara, ouviam a discussão sobre a prelecção que se travava entre  os eruditos ao descerem as escadas.

­ Diria que salvei o meu emprego, commendatore?

­ Não sou um erudito, Doutor Fell, mas qualquer pessoa pode ver que os impressionou. Se não vê inconveniente, doutor,  acompanho­o a casa e trago os objectos pessoais do seu antecessor.

­ Dão para encher duas malas, conmendatore, e já tem a sua pasta. Quer mesmo assim levá­las?

­ Mandarei chamar um carro patrulha que vá buscar­me ao Palazzo Capponi. ­ Se necessário, Pazzi insistiria.

­ óptimo ­ anuiu o Dr. Lecter. ­ Dê­me um minuto para arrumar tudo isto.

Pazzi esboçou um aceno de concordância e dirigiu­se até às altas janelas com o celular na mão e sem nunca desviar os  olhos de Lecter. Pazzi podia ver que o Doutor estava perfeitamente calmo. Do andar de baixo chegavam­lhe os sons de  ferramentas.

Pazzi marcou um número e quando Carlo Deogracias atendeu, Pazzi disse: ­ Laura, amore, dentro em pouco estou em casa.

o Dr. Lecter retirou os livros do pódio e meteu­os num saco. Virou­se para o projector com o motor ainda a trabalhar e o  pó volteando no feixe de luz.

­ Devia ter­lhes mostrado esta. Nem sei como me passou. o Dr. Lecter mostrou mais uma ilustração, a de um homem nu,  enforcado sob as ameias do palácio. ­ Esta vai interessar­lhe, Conmendatore Pazzi. Deixe­me ver se consigo melhorar o  foco.

­   o Dr. Lecter pôs­se às voltas com a máquina e depois aproXimou­se da imagem projectada na parede, com a sua silhueta  a negro recortada no pano, do mesmo tamanho da do homem enforcado.

­ Consegue vê­la assim? É impossível ampliar mais. É aqui que o arcebispo lhe mordeu. E por baixo está escrito o nome dele. Pazzi não se aproximou do Dr. Lecter, mas ao abeirar­se da parede

chegou­lhe o odor a qualquer químico e julgou, por um instante, que se tratava de um produto utilizado pelos  restauradores.

­ Consegue distinguir as personagens? Diz «Pazzi» juntamente com um longo poema. Aqui está o seu antepassado,  Francesco, enforcado do lado de fora do Palazzo Vecchio, sob estas janelas ­ indiCOU o Dr. Lecter, fixando os olhos de  Pazzi através do feixe de luz que os separava.

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­ E já que falamos nestes assuntos, Sígnore Pazzi, devo confessar­lhe que estou a pensar seriamente em comer a sua mulher. o Dr. Lecter baixou o enorme pano sobre Pazzi. Pazzi tropeçando na lona, tentando destapar a cabeça enquanto o coração  lhe falhava no peito e o Dr. Lecter rapidamente por trás dele, prendendo­lhe o pescoço com uma força terrível e aplicando uma esponja embebida em éter à lona que tapava o rosto de Pazzi.

Rmaldo Pazzi, forte e debatendo­se, os pés e os braços enrolados na tela, pés emaranhados na lona, ainda foi capaz de deitar mão à pistola, enquanto caíam os dois no chão, tentou apontar a Beretta por detrás dele sob a lona alisada, puxou o gatilho e acertou na própria coxa, mergulhando em simultâneo num negro torvelinho­

o pequeno revólver de 380 ao disparar sob a tela não produziu muito mais barulho do que as pancadas e rangeres nos andares inferiores. Ninguém subiu a escada. o Dr. Lecter recolheu as amplas portas do Salão dos Lírios, fechou­as e trancou­as...

Uma certa dose de náusea e asfixia quando Pazzi recuperou os sentidos, o gosto a éter na garganta e um peso no peito.

Verificou que ainda se encontrava no Salão dos Lírios e descobriu que não podia mover­se. Rinaldo Pazzi estava atado numa postura vertical com o pano de tela e corda, rígido como um relógio de pêndulo, amarrado ao alto carrinho de mão de  que os operários se tinham servido para deslocar o pódio. Tinha a boca tapada com fita adesiva. Um penso detinha a hemorragia provocada pela ferida do tiro na coxa.

Observando­o, encostado contra o púlpito, o Dr. Lecter recordava­se a si próprio, amarrado de forma idêntica quando o  transportaram pelo hospício num carrinho de mão.

­ Consegue ouvir­me, Signore Pazzi? Respire fundo algumas vezes enquanto pode e desanuvie a cabeça.

o Dr. Lecter mantinha as mãos ocupadas, enquanto falava, Fizera rolar uma grande enceradora para a sala e ocupava­se do grosso fio eléctrico laranja, fazendo um laço corredio no extremo da ligação. o fio revestido de borracha chiou quando ele fez as 13 voltas tradicionais.

Terminou finalmente o nó com um puxão e pousou­o no púlpito. A ficha ressaltava do molhe, no extremo do nó corredio.

A arma de Pazzi, as algemas de plástico, o conteúdo dos bolsos e da pasta encontravam­se em cima do pódio.

o Dr. Lecter remexeu nos documentos. Meteu na frente da camisa a ficha dos Carabinieri com o seu permisso dí soggiorno,  a licença de trabalho, as fotografias e negativos do seu novo rosto.

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E aqui estava a partitura que o Dr. Lecter emprestara à Signora

Pazzi. Pegou­lhe e pôs­se a bater nos dentes com ela. As narinas abriram­se e respirou fundo, com o rosto muito próximo do de Pazzi. Laura, se é que posso chamar­lhe Laura, deve usar um maravilhoso creme para as mãos à noite, signore. Escorregadio. Inicialmente frio e depois quente ­ replicou. ­ Com odor a flores de laranjeira. Laura, Uorange. Uuummmm. Não comi nada durante todo o dia. Na verdade, o fígado e os rins seriam adequados para o jantar... esta noite mesmo, mas o resto da carne devia ficar pendurada uma semana nas presentes condições de frio. Não consultei o boletim meteorológico e você? Presumo que isso significa «não».

­ Se me disser o que necessito saber, commendatore, posso ir embora sem a minha refeição; a Signora Pazzi ficará incólume. Vou fazer­lhe as perguntas e depois veremos. Pode confiar em mim, sabe, embora ache que considera a confiança difícil, conhecendo­se a si próprio.

­ Vi no teatro que me tinha identificado, commendatore. Veio­se quando me inclinei para beijar a mão da signora? Quando a polícia não apareceu, ficou claro que me tinha vendido. Foi ao Mason Verger que me vendeu. Pisque os olhos duas vezes para responder que sim.

­ Obrigado. Foi o que pensei. Telefonei uma vez para o número do seu ubíquo poster, longe deste lugar, só para me divertir. Os homens dele estão à espera, lá fora? Uuummmm. E um deles cheira a salsicha de javali estragada? Uuummmm. Falou sobre mim a alguém da Questura? Isso foi uma piscadela? Bem me parecia. Agora, quero que pense um minuto e me indique o seu código de acesso ao computador do VICAP, em Quantico.

o Dr. Lecter abriu a sua navalha. ­ Vou tirar­lhe o adesivo e pode dizer­me. ­ o Dr. Lecter ergueu a navalha à altura do rosto dele. ­ Não tente gritar. Acha que consegue abster­se de gritar?

­Juro por Deus que desconheço o código ­ replicou Pazzi num tom rouco do éter. ­ Podemos ir ao meu carro. Tenho documentos... o Dr. Lecter circundou o rosto de Pazzi no ecrã e deu pancadinhas rápidas entre as imagens de Pier della Vigna enforcado e Judas pendurado com as vísceras de fora.

­ o que acha, commendatore? Com as vísceras dentro ou fora?­ o código está na minha agenda.

o Dr. Lecter segurou a agenda diante do rosto de Pazzi até ele encontrar a indicação, no meio de números de telefone.

­ E pode ter acesso quando quiser?

­ Sim ­ anuiu Pazzi, no mesmo tom rouco.

­ Obrigado, commendatore. ­ o Dr. Lecter fez recuar o carro de mão e empurrou Pazzi até junto das enormes janelas.

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­ Ouça­me! Eu tenho dinheiro, meu! Precisará de dinheiro para fugir. Mason Verger nunca desistirá. Nunca. Não pode ir buscar dinheiro, eles estão a vigiar a sua casa.

o Dr. Lecter colocou duas tábuas do andaime como rampa sobre o parapeito baixo da janela e fez rolar Pazzi no carro de mão até à varanda do exterior.

A brisa soprava fria no rosto molhado de Pazzi. Falando depressa agora: ­ Nunca escapará com vida deste edifício. Eu tenho dinheiro. Tenho noventa milhões de liras em notas, cem mil dólares americanos! Deixe­me telefonar à minha mulher. Dir­lhe­ei que vá buscar o dinheiro, ponha no meu carro e o abandone mesmo em frente do palazzo.

o Dr. Lecter foi buscar o nó corredio ao púlpito e levou­o para o exterior, arrastando o fio laranja. A outra ponta estava presa com uma série de nós à pesada enceradora.

Pazzi continuava sem parar: ­ Ela fala­me para o celular quando estiver lá fora e depois deixá­lo­á para si. Tenho o passe de polícia e poderá conduzí­lo através da piaZZa até à entrada. Fará o que lhe disser. o carro deita fumo, meu, pode olhar para baixo e ver que o motor estará a trabalhar e com as chaves lá dentro.

o Dr. Lecter inclinou Pazzi sobre o corrimão da varanda. o corrimão chegava­lhe às coxas.

Pazzi podia olhar para a piazza e distinguir por entre os holofotes o lugar onde Savonarola foi queimado, onde ele jurara vender o Dr. Lecter a Mason Verger. Ergueu os olhos para as nuvens que rolavam baixo e velozmente, coloridas pelos holofotes e esperou de alma e coração que Deus pudesse ver.

Para baixo é a direcção horrível e não conseguia desviar os olhos daquele sítio, da morte, esperando irracionalmente que os projectores dessem qualquer substância ao ar, que de qualquer maneira o amparassem e ele pudesse vogar sobre os feixes de luz.

o revestimento de borracha laranja do frio laço corredio à volta do seu pescoço, o Dr. Lecter tão próximo.

­ Arriverdecí, commendatore.

o brilho da navalha ao longo da frente de Pazzi, mais um golpe cortando a ligação à plataforma e ele ultrapassou o parapeito, arrastando o fio laranja, o chão avançando rapidamente, a boca aberta num grito, a enceradora rolando pelo chão e parando junto ao corrimão, Pazzi estremecendo de cabeça para cima, o pescoço partido e as vísceras de fora.

Pazzi e as suas entranhas rodando e girando diante da áspera parede do palácio iluminado, estremecendo em espasmos póstumos mas sem asfixia, morto, a sua sombra reflectida na parede pelos projectores, girando de entranhas pendentes num arco rápido, a virilidade protuberante das calças rasgadas numa erecção da morte.

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Carlo saindo a correr da ombreira de uma porta, Matteo ao lado

dele, atravessando a praça na direcção da entrada do palazzo, acotovelando turistas, dois dos quais tinham câmaras de vídeo apontadas para o castelo.

É um truque ­ disse alguém em inglês à sua passagem. Cobre a porta das traseiras, Matteo. Se ele sair, mata­o e corta­o ­ ordenou Carlo, às voltas com o celular, enquanto corria. No interior do palazzo agora, subindo as escadas até ao primeiro andar, depois o segundo.

As grandes portas do salão estavam abertas. Lá dentro, Carlo rodou a arma na direcção da figura projectada na parede, precipitou­se para a varanda, revistou o gabinete de Machiavelli em segundos.

Pelo celular contactou Piero e Tommaso, que esperavam com a carrinha diante do museu. ­ Vão a casa dele e vigiem a frente e as traseiras. Matem­no e cortem­no.

Carlo marcou outro número. ­ Matteo?

o telefone de Matteo soou no seu bolso, enquanto ele se levantava, ofegante, em frente da saída das traseiras trancada do palazzo. Revistara o telhado e as janelas escuras, verificara a porta, com a mão debaixo do casaco e o revólver na cintura.

Abriu a tampa do celular: ­ Pronto!­ o que vês?

­ A porta está trancada.­ o telhado?

Matteo voltou a erguer os olhos, mas não a tempo de ver as persianas abrirem­se na janela por cima dele.

Carlo ouviu um restolhar e um grito ao telefone e Carlo correu, precipitou­se pelas escadas, aterrou num patamar, levantou­se e continuou a correr, passou pelo guarda que estava agora lá fora diante da entrada do palácio, pelas estátuas ladeando a entrada, dobrou a esquina e dirigiu­se, arquejante, às traseiras do palácio, dispersando alguns casais. o escuro, a corrida, o celular guinchando como uma criaturinha na sua mão, enquanto corria.

Uma figura corria na sua frente, envolta em branco, atravessou­se às cegas no caminho de uma vespa e o condutor derrubou­a, a figura voltou a levantar­se e embateu na frente de uma loja do outro lado da estreita rua do palácio, foi de encontro ao vidro, virou­se e continuou a correr às cegas, uma aparição de branco gritando: Carlo! Carlo!, manchas enormes na tela rasgada que o cobria. Carlo recebeu o irmão nos braços, cortou a fita plástica que lhe rodeava o pescoço e prendia a tela por cima da cabeça, a tela uma máscara de sangue. Destapou Matteo e viu­o todo esfaqueado no rosto, no abdómen, cortes profundos no peito, uma ferida aberta. Carlo abandonou­o somente

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o tempo bastante para correr até à esquina, olhar nas duas direcções e regressar até junto do irmão.

Com a aproximação das sirenes e o brilho intenso das luzes enchendo a Piazza Signoria, o Dr. Hannibal Lecter ajeitou as mangas e dirigiu­se devagar a uma gelataria na contígua Piazza de Guidici. Na curva viam­se alinhadas motos e vespas.

Aproximou­se de um jovem de calças de cabedal que ligava o motor de uma grande Ducatí.

­ Estou desesperado, rapaz ­ disse, com um sorriso triste. Se não estiver na Piazza Bellosguardo dentro de dez minutos, a minha mulher mata­me ­ acrescentou, mostrando uma nota de cinquenta mil liras ao jovem. ­ É isto o que vale a minha vida?

­ Só deseja... uma boleia? ­ redarguiu o jovem.

­ Uma boleia ­ repetiu o Dr. Lecter, mostrando­lhe as mãos abertas.

A veloz moto atravessou as filas de trânsito no Lungarno, com o Dr. Lecter encolhido atrás do jovem condutor e levando na cabeça um capacete de pendura que cheirava a laca e perfume. o motorista sabia para onde ia, cortando pela Via de’Serragli rumo à Piazza Tasso, saindo na Via Villani, seguindo pelo estreito caminho junto à Igreja de São Francesco di Paola que conduz pela estrada em ziguezague até Bellosguardo, o bonito bairro residencial situado na encosta com vista para o lado sul de Florença.

o potente motor da Ducatí ecoava nos muros de pedra que ladeavam a estrada com um som semelhante ao de telas rasgadas, para gosto do Dr. Lecter que se inclinava nas curvas, aspirando o cheiro a laca e perfume barato do capacete. Disse ao jovem que o deixasse à entrada da Piazza Bellosguardo, a pouca distância da casa do conde Montauto, onde viveu Nathaniel Hawthorne. o condutor meteu o dinheiro no bolso do blusão de cabedal e a luz traseira da moto desapareceu a toda a velocidade pela estrada em ziguezague.

o Dr. Lecter, excitado pela viagem, percorreu os 40 metros que o separavam do jaguar preto, recuperou as chaves de trás do pára­choques e ligou o motor. Tinha uma leve queimadura no pulso junto ao canhão da luva quando esta subira no momento em que atirara o pano de tela para cima de Matteo e saltara sobre ele da janela do primeiro andar do palazzo. Aplicou um pouco da pomada antibacteriana italiana Cicatríne e sentiu­se logo melhor.

o Dr. Lecter remexeu nas cassetes de música, enquanto o motor aquecia. Decidiu­se por Scarlatti.

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capítulo trinta e seteA ambulância aérea de motor turbo ergueu­se sobre os telhados vermelhos e dirigiu­se a Sudoeste rumo a Sardenha, e a torre inclinada de Pisa surgindo por cima da asa numa curva mais acentuada do que o piloto teria feito, se transportasse um paciente com vida.

A maca destinada ao Dr. Hannibal Lecter transportava em vez dele o corpo frio de Matteo Deogracias. Carlo, o irmão mais velho, ia sentado ao lado do cadáver, as roupas rígidas com o sangue seco.

Carlo Desgracias obrigou o enfermeiro a pôr auscultadores e a aumentar o volume da música, enquanto falava no celular para Las Vegas, onde um repetidor codificado passou a chamada à costa de Maryland...

Para Mason Verger, a noite e o dia assemelham­se muito. Por acaso, dormia. Até as luzes do aquário estavam apagadas. A cabeça de Mason estava virada na almofada, com o único olho sempre aberto como os olhos da grande moreia, que também se encontrava adormecida. Os únicos sons eram o silvo e sopro regulares do respirador e o suave borbulhar do ventilador do aquário.

A estes ruídos constantes sobrepôs­se um outro som, baixo mas premente. A campainha do telefone particular de Mason. A sua mão pálida caminhou sobre os dedos como um caranguejo para carregar no botão do telefone. o auscultador encontrava­se sob a almofada e o microfone junto à face arruinada.

Primeiro, Mason escutou o avião em fundo e depois a melodia Gli Innamorati.

Estou aqui. Fala,

É um miserável casíno ­ disse Carlo. Conta.

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­ o meu irmão Matteo está morto. Tenho a mão sobre ele neste momento. Pazzi também está morto. o Doutor Fell matou­os e safou­se.

Mason não respondeu logo.

­ Deve­me duzentos mil pelo Matteo ­ prosseguiu Carlo, Para a família dele. ­ Os contratos com os sardenhos prevéem sempre benefícios por morte.

­ Compreendo.

­ Quanto a Pazzi será uma merda.

­ Será melhor pôr cá para fora que Pazzi estava sujo ­ disse Mason. ­ Aceitarão melhor se estiver. Estava?

À excepção disto, não sei. E se o descobrirem através de Pazzi? Encarrego­me do assunto.

Tenho de me encarregar de mim ­ replicou Carlo.        É demasiado. Não posso safar­me da morte de um inspector­chefe da Questura.­ Não o mataram, pois não?

­ Não fizemos nada, mas se a Questura ligar o meu nome a isto. Madonna de um raio Vão vigiar­me para o resto da vida. Ninguém me aceitará dinheiro, não poderei dar um peido na rua. E Oreste? Ele sabia quem supostamente ia filmar?

­ Não me parece.

­ A Questura identificará o Doutor Fell amanhã ou por estes dias. Oreste junta dois e dois, mal vir o noticiário.

­ Oreste é bem pago. Oreste é inofensivo para nós.

­ Talvez para si, mas Oreste vai comparecer diante de um juiz num caso de pornografia em Roma, no próximo mês. Agora, tem algo com que negociar. Deveria agir imediatamente e ter Oreste na mão.

­ Falarei com Oreste ­ replicou Mason, com uma voz de tonalidades ricas saindo do seu rosto destruido, ­ Ainda estás no jogo, certo, Carlo? Queres descobrir o Doutor Fell, certo? Tens de descobri­lo pelo Matteo.

­ Sim, mas à sua custa.

­ Então, continua a dirigir a herdade. Arranja certificados e vacinas contra a cólera para os porcos. Arranja caixotes para os enviar por barco. Tens um bom passaporte?

­ Tenho.

­ Estou a falar de um bom passaporte, Carlo, e não de qualquer treta falsificada.

­ Tenho um bom.

­ Terás notícias minhas.

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Ao terminar o telefonema no ribombante avião, Carlo carregou inadvertidamente no automático do seu celular. o telemóvel de Matteo soou ruidosamente na sua mão morta, ainda agarrado na mão

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em garra de um espasmo cadavérico. Por um momento, Carlo julgou que o irmão levaria o aparelho ao ouvido. Com a lúgubre consciência de que Matteo não podia responder, Carlo premiu o botão de desligar. o rosto distorceu­se num esgar e o enfermeiro não conseguiu fitá­lo.

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Capítulo trinta e oitoA Armadura do Diabo com o seu capacete de chifres é uma maravilhosa armadura italiana do século xv que se encontra suspensa no alto da parede da igreja da aldeia de Santa Reparata, a sul de Florença, desde 1501. Além dos elegantes chifres, com formato dos de camuréa, as ponteagudas manoplas da armadura encontram­se no lugar dos sapatos, nos extremos das grevas, sugerindo os cascos serrados de Satã.

Segundo a lenda local, um jovem vestido com a armadura invocou o nome da Virgem em vão ao passar junto à igreja e verificou mais tarde que só conseguiria livrar­se da armadura se suplicasse perdão à Virgem.

A armadura, coberta a toda a superfície com uma camada de poeira semelhante a feltro, tem o olhar fixo no pequeno santuário onde se celebra missa. o incenso ergue­se e passa através da viseira vazia.

Só há três pessoas a assistir, duas mulheres de idade ambas vestidas de preto e o Dr. Hannibal Lecter. Os três comungam, embora o Dr. Lecter leve os lábios à taça com alguma relutância.

o padre dá a benção e retira­se. As mulheres vão­se embora. o Dr. Lecter prossegue as orações até ficar sozinho no santuário. Da galeria do órgão, o Dr. Lecter consegue estender o braço sobre

o corrimão e, inclinando­se entre os chifres, levantar a viseira poeirenta do elmo da armadura do Diabo, Lá dentro, de um anzol colocado no lábio do gorjal, está suspenso um fio e um embrulho no interior da couraça onde deveria ser o lugar do coração. o Dr. Lecter puxa­o com cuidado.

Um embrulho: passaportes do melhor fabrico brasileiro, identificação, dinheiro, livro de cheques, chaves. Mete­o debaixo do braço, sob o casaco.

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o Dr. Lecter não é muito dado a lamentos, mas tem pena de sair de Itália. Havia coisas no Palazzo Capponi que gostaria de descobrir e de ler. Gostaria de continuar a tocar o cravo e talvez compor; poderia ter cozinhado para a viúva Pazzi, quando ela se recompusesse do desgosto.

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Capítulo trinta e noveEnquanto o sangue ainda pingava do corpo pendente de Rinaldo Pazzí, fritando e deitando fumo debaixo dos poderosos projectores sob o Palazzo Vecchio, a polícia convocou os bombeiros para que o tirasse de lá.

Os pompierí serviram­se de uma extensão colocada na escada do carro­ Sempre práticos e sem qualquer dúvida de que o homem pendente estava morto, levaram tempo a recuperar Pazzi. Era um processo delicado, exigindo­lhes que empurassem as vísceras pendentes para dentro do corpo e enrolassem toda aquela massa, antes de colocarem um cabo que o descesse até ao chão.

Quando o corpo chegou aos braços estendidos dos que se encontravam em baixo, La Nazione conseguiu uma excelente fotografia que recordou a muitos leitores as famosas ilustrações da Descida da Cruz.

A polícia deixou o laço corredio no local até se proceder à recolha das impressões digitais e cortou depois o resistente fio eléctrico no centro do laço, a fim de preservar o nó.

Muitos florentinos estavam convencidos que a morte era um suicídio espectacular, concluindo que Rinaldo Pazzi atara as mãos à maneira de suicídio oficial e ignorando o facto de que também os pés se encontravam amarrados. Na primeira hora, a rádio local informou que Pazzi, além de se enforcar, fizera hara­kirí com uma faca.

A polícia fez de imediato outro raciocínio: as marcas de luta deixadas na varanda e no carro de mão, o desaparecimento da arma de Pazzi e os relatos de testemunhas oculares da entrada precipitada de Carlo no palazzo e da figura ensanguentada correndo às cegas nas traseiras do Palazzo Vecchio indicaram­lhes que Pazzi fora assassinado.

Depois, o público italiano decidiu que Il Monstro tinha morto Pazzi.

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A Questura começou pelo infeliz Girolamo Tocca, outrora acusado de ser Il Monstro. Prenderam­no em casa e voltaram a levá­lo, de novo com a mulher aos uivos na estrada. Tinha um álibi sólido. Na altura, estava a beber um Ramazotti num café e na presença de um padre. Tocca foi solto em Florença e teve de regressar a San Casciano de autocarro, pagando o bilhete do seu bolso.

Ao alvorecer, o pessoal do Palazzo Vecchio foi interrogado e o interrogatório alargou­se aos membros do Studiolo.

A polícia não conseguiu localizar o Dr. Fell. Ao meio­dia de sábado, as atenções haviam­se centrado sobre ele. A Questura lembrou­se que Pazzi tinha sido destacado para investigar o desaparecimento do antecessor de Fell.

Um funcionário dos Carabinieri declarou que Pazzi examinara recentemente um Permisso di Soggiorno. Os ficheiros de Fell, incluindo fotografias, negativos e impressões digitais, haviam sido levantados sob um falso nome com uma assinatura semelhante à caligrafia de Pazzi. A Itália ainda não computorizou os seus ficheiros à escala nacional e os permissos eram mantidos a nível local.

Os ficheiros da emigração forneceram o número do passaporte de Fell, que ressoou no Brasil.

Mesmo assim, a polícia não chegou à verdadeira identidade do Dr. Fell. Tiraram impressões digitais das voltas do laço corredio do enforcado e impressões digitais do pódio, do carro de mão e da cozinha do Palazzo Capponi. Dada a disponibilidade de retratistas exímios, um retrato robot do Dr. Fell ficou pronto em minutos.

No domingo de manhã, hora de Itália, um perito em impressões digitais de Florença concluíra laboriosamente, ponto por ponto, que havia as mesmas impressões digitais no pódio, no nó corredio e nos utensílios de cozinha do Dr. Fell, no Palazzo Capponi.

A impressão digital do polegar de Hannibal Lecter, no cartaz pendurado na sede da Questura, não foi examinado.

As impressões digitais do cenário do crime foram enviadas à Interpol no domingo à noite e chegaram, normalmente, ao quartel­general do FBI, em Washington D.C., juntamente com mais 7000 impressões digitais de cenários de crime. Submetidas ao sistema de classificação automatizada de impressões digitais, as impressões de Florença causaram um impacto tão grande que um alarme soou no gabinete do subdirector encarregado da secção de identificação. o oficial de noite observou o rosto e os dedos de Hannibal Lecter a sairem da impressora e telefonou para casa do subdirector, que telefonou primeiro para o director e depois para KrendIer, para o Departamento de justiça.

o telefone de Mason tocou à uma e trinta da manhã. Mostrou­se surpreendido e interessado.

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o telefone de jack Crawfórd tocou eram uma hora e trinta e cinco minutos. Resmungou várias vezes e rolou para o lado vazio da sua cama de casal, que a sua falecida mulher Bella costumava ocupar. Estava frio e o pensamento aclarou­se.

Clarice Starling foi a última a saber que o Dr. Lecter tinha voltado a matar. Depois de desligar o telefone, manteve­se deitada longos minutos no escuro e os olhos picavam­lhe por qualquer motivo que desconhecia, mas não chorou. Olhando para cima do seu travesseiro, conseguia divisar­lhe o rosto no escuro que a invadia. Era, obviamente, o antigo rosto do Dr. Lecter.

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capítulo quarenta

o piloto da ambulância aérea não se mostrou disposto a descer na pequena e não vigiada pista de Arbatax, no 

escuro. Aterraram em Cagliari, meteram combustível e esperaram até ao romper do dia para depois sobrevoarem a costa envoltos num espectacular nascer do Sol que conferiu um falso tom rosado ao rosto morto de Matteo.

Um camião com um caixão aguardava na pista de Arbatax. o piloto encetou uma discussão sobre dinheiro e Tommaso interferiu antes que Carlo o esbofeteasse.

Uma viagem de três horas pelas montanhas e chegaram a casa. Carlo caminhou sozinho até ao rude barracão de madeira que tinha construído com Matteo. Tudo estava preparado, as câmaras a postos para filmarem a morte de Lecter. Carlo ficou de pé junto à obra saída das mãos de Matteo e observou­se no grande espelho rocócó colocado por cima do curral. Percorreu com o olhar a madeira que tinham serrado juntos, recordou as grandes mãos quadradas de Matteo agarrando a serra e escapou­lhe um grito, um uivo do seu coraÇão angustiado e que ecoou pelas árvores. Focinhos com presas surgiram do meio dos arbustos do pasto das montanhas.

Piero e Tommaso, também eles irmãos, deixaram­no só. Pássaros cantavam no pasto das montanhas.

Oreste Pini saiu da casa, abotoando a braguilha com uma das mãos e acenando com o celular na outra. ­ Não apanharam, então, o Lecter. Pouca sorte!

Carlo deu a sensação de não o ouvir.

­ Escute. Nem tudo está perdido. Isto ainda pode funcionar replicou Oreste Pini. ­ Tenho Mason ao telefone. Ele aceitará uma simulação. Qualquer coisa que possa mostrar a Lecter quando o apanhar. Está tudo preparado. Temos um corpo... Mason diz que foi apenas um rufia contratado. Mason diz que podíamos atirá­lo por baixo

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da vedação quando os porcos se aproximarem e pôr o som enlatado. Tome. Fale com Mason.

Carlo virou­se e fitou Oreste, como se ele tivesse chegado da lua. Por fim, agarrou no celular. Enquanto falava com Mason, o rosto iluminou­se­lhe e pareceu adquirir uma certa paz.

Carlo fechou a tampa do celular com um estalido. ­ Prepare­se! ­ ordenou.

Carlo falou com Piero e Tônimaso e, ajudados pelo cameraman, levaram o caixão para o barracão.

­ Não aproxime o suficiente para ficar enquadrado ­ disse Oreste. ­ Vamos filmar um pouco da agitação dos animais e partiremos daí.Ao aperceberem­se da actividade no barracão, os primeiros porcos saíram dos esconderijos.

­ Giríamo! ­ indicou Oreste.

Aproximaram­se a correr, os porcos selvagens, castanhos e cor de prata, quase chegando à cintura de um homem, de pêlos compridos, movendo­se com a velocidade de um lobo sobre os cascos pequenos, olhos inteligentes nos focinhos infernais, os maciços músculos do pescoço sob os espinhos do dorso, capazes de erguerem um homem nas enormes presas dilacerantes.

­ Pronti! ­ indicou o cameraman.

Há três dias que não comiam e havia outros que surgiam agora numa fila cerrada, sem atenderem aos homens por detrás da vedação.­ Motore! ­ gritou Oreste.

­ Partito! ­ respondeu o cameraman no mesmo tom.

Os javalis pararam a uns dez metros da vedação numa linha cerrada, um aglomerado de cascos e pêlos, com a prenha no meio. Avançavam e recuavam quais juízes de linha e Oreste enquadrou­os com as mãos.

­ Azíone! ­ gritou aos sardenhos e Carlo aproximando­se por detrás, cortou­o no rego do traseiro, agarrou­o pelos quadris, içou­o de cabeça para o curral e os porcos selvagens atacaram.

Oreste tentou pôr­se de pé, soergueu­se num dos joelhos e a prenha derrubou­o, deixando­o estendido no chão. Atacaram­no, rosnando e guinchando, dois deles rasgando­lhe a face, arrancando­lhe o maxilar, dividindo­o em duas partes, como a um ossinho da sorte. Mesmo assim, Oreste quase conseguiu levantar­se, mas depois voltou a cair de costas, de barriga exposta e aberta, os braços e as pernas agitando­se sobre os dorsos espinhosos, Oreste gritando sem maxilar, incapaz de pronunciar palavras.

Carlo ouviu um tiro e voltou­se. o cameraman abandonara a câmara de filmar e tentou fugir, mas não com rapidez bastante para se escapar à arma de Piero.

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Os javalis acalmavam­se, arrastando os pedaços.

­ Azíone, o tanas! ­ exclamou Carlo e cuspiu para o chão.

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Para o novo mundo

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:Capítulo quarenta e umUm solícito silêncio rodeava Mason Verger. o seu pessoal tratava­o como se ele tivesse perdido uma criança.  Quando lhe perguntaram como se sentia, respondeu: ­ Sinto­me como se tivesse pago uma enorme quantia por  um gringo morto.

Depois de ter dormido umas horas, Mason queria que lhe trouxessem crianças até à sala de recreio no exterior  do quarto e falar com uma ou duas das mais perturbadas, mas não havia crianças perturbadas à mão, nem tempo para que o seu fornecedor dos bairros da lata de Baltimore perturbasse algumas para seu contento.

Na ausência deste imperativo, mandou o seu enfermeiro Cordell estropiar carpas decorativas e dá­las a comer à  moreia até esta não poder mais e recolher­se à sua rocha, ficando a água envolta numa nuvem cinzenta e rosa,  cheia de reluzentes pedaços dourados.

Tentou atormentar a sua irmã Margot, mas ela retirou­se para a sua sala de trabalho e ignorou os seus beeps  durante horas. Era a única pessoa em Muskrat Farin que se atrevia a ignorar Mason.

Uma breve gravação particular de um turista, mostrando a morte de Rinaldo Pazzi, passou no telejornal de  sábado à noite, antes do Dr. Lecter ser identificado como o assassino. Zonas obscurecidas da imagem pouparam detalhes anatómicos aos espectadores.

A secretária de Mason pôs­se imediatamente ao telefone para obter a gravação. Chegou de helicóptero, quatro  horas depois.

A cassete tinha uma curiosa proveniência:

Dos dois turistas, que estavam de câmara apontada para o Palazzo Vecchio no momento da morte de Rinaldo  Pazzi, um deles entrou em pânico e a câmara girou no momento da queda. o outro turista era suíço e aguentou  firme durante todo o episódio, tendo mesmo filmado a corda rodopiante.

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o cameraman amador, um funcionário chamado Viggert, receou que a polícia se apoderasse da gravação e a RAI a  obtivesse gratuitamente. Telefonou logo ao seu advogado em Lausana, tomou disposições para o copyright das imagens e vendeu os direitos ao canal de informação ABC depois de uma guerra de licitações. Os direitos de publicação foram vendidos ao New York Post, seguido pelo National Tattler.

A gravação ocupou de imediato um lugar entre os clássicos espectáculos do horror: Zapruder, o assassínio de Lee Harvey Oswald e o suicídio de Edgar Bolger. Contudo, Viggert viria a lamentar ter vendido tão rapidamente, antes do Dr. Lecter ser acusado do crime.

Esta cópia da gravação das férias de Viggert estava completa. Vemos a família suíça Viggert fazendo uma ronda pelos testículos de David no horário da academia, antes dos acontecimentos no Palazzo Vecchio.

Mason, que observou o vídeo com o seu único e arregalado olho, pouco interesse demonstrou pelo pedaço de carne pendente no extremo do fio eléctrico. A história que La Nazíone e o Corriere della Sera publicaram sobre os dois Pazzi pendurados da mesma janela com uma diferença de 520 anos também não lhe interessou. o que o agarrou, o que passou repetidas vezes foi a imagem no cimo da corda balouçante na varanda, onde uma figura baixa se recortava na obscuridade, acenando. Acenando a Mason. o Dr. Lecter acenava a Mason como se diz adeus a uma criança.

­ Adeus ­ redarguiu Mason da sua escuridão. ­ Adeus ecoou a funda voz radiofónica, trémula de raiva.

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[Capítulo quarenta e doisGraças a Deus que a identificação do Dr. Hannibal Lecter como o assassino de Rinaldo Pazzí deu a Clarice Starling algo de sério com que se ocupar. Tornou­se a relação de facto de baixo­perfil entre o FBI e as autoridades americanas. Era bom realizar uma tarefa, sentindo­se apoiada nesse esforço.

o mundo de Starling tinha mudado desde o tiroteio durante o raide de droga. Ela e os restantes sobreviventes do Feliciana Fish Market eram mantidos numa espécie de purgatório administrativo, dependendo do relatório de um Departamento de justiça a um subcomité judiciário de somenos importância.

Depois de descobrir a radiografia de Lecter, Starling ficara a marcar passo como uma agente temporária qualificada, substituindo instrutores da Academia do FBI que estavam doentes ou de férias­

Ao longo do Outono e do Inverno, Washington ficou obcecada com um escândalo na Casa Branca. Os enraivecidos reformadores gastaram mais saliva do que o pecadilho e o Presidente dos EUA engoliu publicamente muitos sapos na tentativa de evitar um processo.

Neste circo, a questiúncula do massacre do Feliciana Fish Market foi posta de lado.

Uma sombria tomada de consciência crescia diariamente no interior de Starling: o serviço federal nunca mais voltaria a ser o mesmo para ela. Estava marcada. Os colegas de trabalho, denotavam expressões cautelosas quando lidavam com ela, como se tivesse algo contagioso. Starling era suficientemente jovem para que este comportamento a surpreendesse e desapontasse.

Era bom estar ocupada... pedidos feitos pelos italianos de informações sobre Hannibal Lecter choviam na Secção de Ciência Comportamental, usualmente em duplicado, sendo uma cópia enviada pelo Departamento de Estado. E Starling reagiu com obstinação, servindo­se

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sem cessar do fax e mandando ficheiros de Lecter por e­mail. Ficou surpreendida ao constatar quanto material periférico se espalhara ao longo dos anos, desde a fuga do Doutor.

o seu pequeno cubículo na cave da Ciência Comportamental transbordava de papel, faxes de Itália e cópias dos documentos italianos.

o que poderia enviar de valor aos italianos? o item a que se agarraram foi a busca feita pelo computador da Questura ao ficheiro VICAP de Lecter em Quantíco, uns dias antes da morte de Pazzi. A imprensa italiana ressuscitou assim a reputação de Pazzi, reivindicando que ele estava a trabalhar em segredo para capturar o Dr, Lecter e chamar a si as honras.

«Por outro lado, que informação relativa ao crime Pazzí poderia ser útil aqui, na eventualidade do Doutor regressar aos EUA?», interrogava­se Starling.

Jack Crawford não estava muito no gabinete, de forma a poder aconselhá­la. Passava imenso tempo no tribunal e à medida que a reforma se aproximava, era dispensado em muitos casos. Estava cada vez mais tempo de baixa e, sempre que aparecia no gabinete, parecia distante.

o facto de já não poder contar com os seus conselhos provocava ondas de pânico em Starling.

Durante os seus anos no FBI, Starling vira muita coisa. Sabia que se o Dr. Lecter voltasse a matar nos EUA, as trombetas da petulância soariam no Congresso, uma enorme vaga de suposições surgiria da justiça e o «Toca e Fode» recomeçaria em grande. A alfândega e a patrulha da fronteira seriam os primeiros a apanhar na cabeça por o terem deixado entrar.

A jurisdição local onde o crime ocorresse pediria tudo relativo a Lecter e os esforços do FBI centrar­se­íam no bureau de serviço local. Depois, quando o Doutor voltasse a actuar noutro sítio, tudo mudaria.

Se ele fosse apanhado, as autoridades lutariam por méritos como ursos à volta de uma foca ensanguentada.

o objectivo de Starling residia em preparar­se para o seu eventual aparecimento, quer ele se desse ou não, pondo de lado  toda a fastidiosa percepção do que aconteceria relativamente à investigação.

Fez a si própria uma simples pergunta que parecia sentimental aos carreiristas: como poderia cumprir o juramento feito? Como poderia proteger os cidadãos e apanhá­lo, caso ele aparecesse?

o Dr. Lecter tinha obviamente documentos em ordem e dinheiro. Era brilhante em dissimulação. Bastava pensar na requintada simplicidade do primeiro esconderijo depois da fuga de Memphis: registara­se num hotel de quatro estrelas, junto a uma grande clínica

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de cirurgia plástica, em St. Louis. Metade dos hóspedes tinham ligaduras nos rostos. Ligou o dele e viveu à grande com o dinheiro de um morto.

No meio das centenas de pedaços de papel, ela conservava as suas facturas de serviço de quarto no St. Louis. Astronómicas. Uma garrafa de Bâtard­Montrachet de 125 dólares. Como lhe devia ter sabido bem, depois daqueles anos de comida de prisão.

Requisitara cópias de tudo a Florença e os italianos obsequiaram­na. Pela qualidade da impressão, achou que deviam fotocopiar com qualquer tipo de tinta especial.

Não havia qualquer pedido. Analisou os papeis pessoais do Dr. Lecter do Palazzo Capponi. Alguns apontamentos sobre Dante na caligrafia que tão bem conhecia, um bilhete à empregada da limpeza, uma factura da mercearia fina florentina Vera dal 1926 relativa a duas garrafas de Bâtard­Montrachet e tartufi bíanchi. Mais vinho e o que era aquilo?

o dicionário de italiano­Inglês da Bantam New College elucidou Starling que tartufí bianchi eram trufas brancas.

Telefonou ao chef de um bom restaurante italiano em Washington e interrogou­o sobre elas. Teve de desculpar­se e desligar depois de o ouvir falar durante cinco minutos sobre o gosto das mesmas.

Gosto. o vinho, as trufas. o gosto em tudo era uma constante entre as vidas do Dr. Lecter nos EUA e na Europa, entre a sua vida como médico bem­sucedido e monstro fugitivo. o rosto podia ter mudado, mas os gostos não e era um homem que não se privava de nada.

o gosto era uma área sensível para Starling, pois tinha sido na área do gosto que o Dr. Lecter lhe tocara ao de leve, cumprimentando­a pela mala e troçando dos seus sapatos vulgares. o que lhe tinha chamado? Uma provinciana bem desencascada e desenvolta, com um pouco de gosto.

Era o gosto que mexia com ela no quotidiano da sua vida institucional com um equipamento puramente funcional num cenário utilitário.

Em simultâneo, a sua fé na técníca estava a morrer, dando lugar a outra coisa.

Starling sentia­se cansada da técnica. A fé na técnica é a religião dos ofícios perigosos. Para se enfrentar um tipo armado num tiroteio ou lutar com ele no chão, há que acreditar que a técnica perfeita, o treino duro, nos tornarão invencíveis. Isto não é verdade, sobretudo quando há trocas de tiros. o destino pode jogar a favor, mas se se entra em bastantes tiroteios, acaba­se morto num deles. Starling vira com os seus próprios olhos.

Chegada ao ponto de duvidar da religião da técnica, para onde é que Starling podia virar­se?

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Na sua atribulação, presa na agonizante monotonia dos seus dias, começou a observar as formas das coisas. Começou a valorizar as suas próprias reacções viscerais às coisas, sem as quantificar nem as reduzir a palavras. Apercebeu­se ao mesmo tempo de uma mudança nos seus hábitos de leitura. Outrora, teria lido a legenda antes de examinar uma fotografia. Agora, não. Por vezes, nem sequer chegava a ler as legendas.

Durante anos a fio, lera revistas sobre moda às escondidas, invadida por um sentimento de culpa como se se tratasse de pornografia. Agora, começava a admitir que havia algo nestas imagens que a tornavam faminta. Na estrutura da sua mente, incitada pelos Luteranos contra o ócio que corrompe, sentia­se como se estivesse a entregar­se a uma deliciosa perversão.

Teria chegado de qualquer maneira à sua táctica, a devido tempo, mas foi ajudada pela mudança tumultuosa que se operou no seu íntimo: empurrou­a para a ideia de que o gosto do Dr. Lecter por coisas raras, coisas apenas existentes num pequeno mercado, podia ser a espinha dorsal do monstro, recortando a superfície, tornando­o visível.

Usando e comparando listas de clientes computorizadas, Starling poderia conseguir acesso a uma das várias identidades que o caracterizavam. Para o fazer, tinha de conhecer as suas preferências. Precisava de conhecê­lo melhor do que qualquer outra pessoa à superfície da terra.

Quais são as coisas que sei que ele gosta? Gosta de música, vinho, livros, comida. E gosta de mim.

o primeiro passo para o apuramento do gosto é a disponibilidade para se valorizar a opinião pessoal. Nas áreas da comida, vinho e música, Starling teria de seguir os precedentes do Doutor, examinando tudo a que ele estava habituado no passado, mas havia uma área em que era, pelo menos, sua igual. Automóveis. Starling era doida por carros, como poderia dizer qualquer pessoa que visse o seu carro.

o Dr. Lecter tivera um Bentley de supercompressão, antes de cair em desgraça. Supercompressão, não turbocompressão. Com um supercompressor tipo Rootes de forma a dispensar o turbo... Apercebeu­se rapidamente que o mercado de clientes Bentley é tão pequeno, que seria arriscado optar novamente por ele.

o que compraria, então, agora? Percebia do que ele gostava. Um VS de baixa pressão e potente. o que é que ela compraria no mercado actual?

Sem dúvida, um Jaguar XjR, sedan com supercompressor. Enviou um fax aos distribuidores de jaguar da Costa Leste e Oeste, pedindo relatórios de vendas semanais.

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De que mais gostava o Dr, Lecter, que Starling soubesse muito? Gosta de mim, pensou.

Como ele reagira rapidamente ao seu sofrimento. Mesmo tendo em consideração o atraso por se servir de um serviço de reexpedição para lhe escrever. Uma pena que a pista de localização da máquina de selos tivesse falhado ­ a máquina estava num lugar tão público que qualquer ladrão poderia tê­la usado.

Quanto tempo demorava o National TattIer a chegar a Itália? Foi um lugar onde ele descobrira o problema vivido por Starling, dado um exemplar encontrado no Palazzo Capponi. o tablóide sensacionalista teria um site na Internet? além disso, se ele tinha um computador em Itália, podia ter lido um resumo do tiroteio no síte público do FBI. o que poderia saber­se a partir do computador do Dr. Lecter?

Não havia registo de um computador entre os objectos pessoais no Palazzo Capponi.

Contudo, ela vira algo. Examinou as fotos da biblioteca no Palazzo Capponi, Lá estava uma fotografia da bonita secretária onde lhe escreveu. Em cima da secretária, havia um computador. Um Phillips portátil. Estava ausente das outras fotos.

Com a ajuda do dicionário, Starling escreveu penosamente um fax para a Questura, em Florença:

Fra le cose personali del Doutor Lecter, che un computer portatile? E assim, com pequenos passos, Clarice Starling começou a perseguir o Dr. Lecter pelos corredores do seu gosto, com mais confiança nos seus avanços, do que plenamente se justificava.

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Capítulo quarenta e trêsCordell, o assistente de Mason Verger, frente a um exemplo emoldurado em cima da secretária, reconheceu imediatamente a caligrafia característica. o papel de carta era do Hotel Excelsior, em Florença, Itália.

À semelhança de um número crescente de pessoas abastadas na era do Unabomber, Mason tinha o seu próprio fluoroscópio de correio, semelhante ao dos Correios dos EUA.

Cordell enfiou umas luvas e analisou a carta. o fluoroscópio não tinha fios nem baterias à vista. Segundo as instruções restritas de Mason, copiou a carta e o envelope na máquina de copiar, pegando­lhe com pinças e mudou de luvas, antes de pegar na cópia e enviá­la a Mason,

Na caligrafia familiar do Dr. Lecter:

Caro Mason,

Obrigado por ter oferecido uma tão grande recompensa por mim. Desejo que a aumente. A nível de sistema de  alarme, a recompensa é melhor do que o radar. Incentiva as autoridades de todos os sítios a fugirem ao dever e a  dísputarem­me em privado, com os resultados à sua vista.

Na verdade, estou a escrever para lhe refrescar a memória relatívamente ao seu antigo nariz. Na inspirada  entrevista antidroga que deu no outro dia na revista Ladíes’ Home afirma que deu a comer o nariz, juntamente  com o resto da cara, aos cães. Shíppy e Spot, abanando a cauda aos seus pés. Mas não é verdade: foi você que o  comeu para se refrescar Pelo som que produziu quando o mastigou, diria que tinha uma consistência semelhante  ao de moela de galinha... «Sabe mesmo a galinha» foi o seu comentário na altura. o som fez­me lembrar o de  que um francés faz num bistro quando debica uma salada de gisier. Não se recorda, Mason?

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Falando de galinhas, confessou­me numa sessão de terapia que, enquanto subvertia crianças desProtegidas no  seu acampamento de Verão, descobriu que o chocolate lhe irrita a uretra. Também não se lembra disso, pois  não?

Não lhe parece que me contou todo o tipo de coisas de que agora não se recorda?

Há um inegável paralelo entre si e Jezebel, Mason. Na sua qualidade de entusiástico estudante da Bíblia,  decerto se lembra que os cães comeram o rosto de Jezebel, juntamente com o resto, depois dos eunucos a  atirarem pela janela.

A sua gente podia ter­me assassinado na rua. Mas você queria­me vivo, não é verdade? Pelo aroma dos seus rufias, é óbvio o que planeava fazer­me.

Mason, Mason. Uma vez que me deseja assim tanto, Permita que lhe dirija algumas palavras de conforto e sabe  que nunca minto.

Antes de morrer, verá a mínha face. Sinceramente

Hannibal Lecter, MD

PS. ­ Apenas me preocupa que talvez não viva até essa altura, Mason. Tem de evitar o perigo da pneumonia. É muito susceptível e dada a sua propensão à mesma (que se manterá) recomendo­lhe férias imediatas, juntamente com injecções de imunidade à hepatite A e B. Não quero perdê­lo prematuramente.

Mason parecia um pouco arquejante quando acabou a leitura. Esperou, esperou e a seu tempo disse algo a Cordell que Cordell não conseguiu perceber.

Cordell inclinou­se um pouco mais e foi recompensado com uma chuva de cuspo, quando Mason voltou a falar:

­ Põe­me ao telefone com Paul KrendIer. E liga­me também ao senhor dos porcos.

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Capítulo quarenta e quatro

o mesmo helicóptero que transportava diariamente os jornais estrangeiros a Mason Verger, transportou 

também o ajudante do procurador­geral Paul KrendIer a Muskrat Farni.

A presença maligna de Mason e a sua câmara escura com o respirador sibilante e a agitada moreia já teria chegado para inquietar KrendIer, mas teve ainda de assistir repetidas vezes ao vídeo da morte de Pazzi.

KrendIer observou sete vezes como os Viggerts giravam à volta de David e o mergulho de Pazzi com as vísceras desventradas. A sétima vez, KrendIer esperou que também as entranhas de David se desventrassem.

Por fim, acenderam­se as intensas luzes da área de convívio do quarto de Mason, quentes sobre a cabeça de KrendIer e fazendo reluzir o crânío através do cabelo escasso.

Os Vergers possuem um conhecimento incomparável da gula e, portanto, Mason começou pelo que KrendIer desejava para si. A voz de Mason saía do escuro e as frases eram medidas pelo ritmo do respirador.

­ Não preciso de ouvir... todo o seu plano... quanto dinheiro custará?

KrendIer desejava falar em privado com Mason, mas não estavam sós no quarto. Uma figura de ombros largos, extraordinariamente musculosa, recortava­se a negro no vidro do aquário iluminado. A ideia de um guarda­costas que pudesse escutá­los, enervava Krendier.

­ Preferia que conversássemos sozinhos. importa­se de lhe pedir que saia?

­ É a minha irmã, Margot ­ elucidou Mason. ­ Ela pode assistir.

Margot surgiu do escuro, com um roçar das calças de andar de bicicleta.

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­ Oh, lamento! ­ desculpou­se KrendIer, soerguendo­se da cadeira.

­ Olá ­ cumprimentou ela, mas em vez de agarrar na mão estendida de KrendIer, Margot tirou duas nozes da taça que se encontrava em cima da mesa, apertou­as uma contra a outra na mão até se quebrarem ruidosamente e voltou até junto da obscuridade em frente do aquário, onde posssivelmente as comeu. KrendIer ouviu as cascas a caírem no chão.

­ Muito bem. Escutemos, então ­ convidou Mason.

­ Para destituir Lowenstein do vigésimo sétimo bairro, dez milhões para mim no mínimo. ­ KrendIer cruzou as pernas e desviou os olhos, no escuro, ignorando se Mason conseguiria vê­lo. ­ Precisaria dessa quantia só para os media. Mas garanto­lhe que ele é vulnerável. Estou em posição de o saber.

­ Em que podemos atacá­lo?

­ Diremos apenas que a sua conduta tem...­ Bom. É apenas dinheiro ou despacho?

KrendIer não se sentia lá muito confortável em empregar despacho diante de Margot, embora Mason aparentemente não se importasse. ­ É casado e há muito tempo que mantém uma ligação com alguém do tribunal de recursos. Alguns dos seus colaboradores têm sido absolvidos. Pode tratar­se de uma coincidência, mas só precisamos que a televisão o condene.

­ o parceiro é uma mulher? ­ inquiriu Margot.

KrendIer esboçou um aceno de cabeça e sem saber se Mason podia vê­lo, acrescentou: ­ Sim. Uma mulher.

­ Que pena! ­ exclamou Mason. ­ Seria preferível que fosse bicha, certo, Margot? Mas não pode ser você a atirar essa merda, KrendIer. Não pode vir de si.

­ Elaborámos um plano que proporciona aos eleitores...­ Não pode ser você a atirar a merda ­ repetiu Mason.

­ Apenas tomarei providências para que o Conselho de Inspecção judicial saiba onde procurar e Lowenstein seja atingido. Está a dizer que pode ajudar­me?

­ Posso ajudá­lo com metade.­ Cinco?

­ Não nos limitemos a cinco. Falemos do assunto com o respeito que nos merece... cinco milhões de dólares. o Senhor abençoou­me com este dinheiro. E com ele cumprirei a Sua vontade: só o receberá se Hannibal Lecter vier parar direitinho às minhas mãos decidiu Mason. com a sua respiração entrecortada. ­ Se isso acontecer, 

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tornar­se­á o Congressista KrendIer do vigésimo sétimo bairro, sem mais e só lhe pedirei que se oponha à Lei do Abate Humano. Se o FBI apanhar Lecter e lhe derem uma injecção letal, foi um prazer conhecê­lo.

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­ Nada posso fazer se uma jurisdição local o apanhar. Nem posso controlar se o grupo de Crawford lhe deitar a mão num golpe de sorte.

­ Em quantos estados com pena de morte é que o Doutor Lecter pode ser acusado? ­ perguntou Margot, num tom de voz áspero mas tão profundo como o de Mason devido às hormonas que tomara.

­ Três estados, por múltiplos homicídios de primeiro grau em cada um.

­ Se for preso, quero que o condenem a nível estatal ­ retorquiu Mason. ­ Nada de rapto, nem violação de direitos civis, nem interestadual. Quero que se safe com vida, quero­o numa prisão estatal e não numa penitenciária federal sob pena máxima.

­ Tenho de perguntar porquê?

­ Não, excepto se quiser que lhe diga. Não é abrangida pela Lei de Abate Humano ­ riu Mason. ­ Falar tanto tinha­o esgotado e fez sinal a Margot.

Ela levou uma prancheta até à luz e pôs­se a ler dos seus apontamentos. ­ Queremos tudo o que apanhar e queremo­lo antes que a Ciência Comportamental o veja, queremos os relatórios da Ciência Comportamental mal sejam arquivados e queremos os códigos de acesso ao VICAP e ao Centro de Informação de Crime Nacional.

­ Teria de usar um telefone público sempre que entrasse no VICAP ­ redarguiu KrendIer, continuando a falar para o escuro, como se a mulher não estivesse presente. ­ Como conseguirá?

­ Eu conseguirei      retorquiu Margot.

­ Ela conseguirá       sussurrou Mason do escuro. ­ Elabora programas de preparação física para aparelhos de ginásios. É o seu pequeno negócio e não depende do irmão.

­ o FBI tem um sistema fechado e alguns dos programas são codificados. Terá de actuar de um sítio que lhe indicar e fazer a transferência para um programa do Departamento de justiça ­ indicou Krendier. ­ Depois, se o VICAP a localizar, tudo reverterá ao Departamento de Justiça. Compre um computador portátil com um modem rápido com pagamento imediato e não mande documentos pelo correio. Arranje também um código e mantenha­se fora da Internet. Precisarei dele a qualquer momento    e quero­o de volta depois. Terá notícias minhas. É tudo ­ concluiu    Krendier, levantando­se e reunindo os papéis.

­ Ainda não é tudo, Mister KrendIer... ­  contrapôs Mason. Lecter não tem de se expor. Tem dinheiro para se manter escondido para sempre.

­ De onde lhe vem o dinheiro? ­ quis saber Margot.

­ Teve clientes muito ricos quando era psiquiatra ­ retorquiu KrendIer. ­ Obrigou­os a darem­lhe muito dinheiro e acções e escondeu

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tudo muito bem. o IRS não conseguiu detectá­lo. Exumaram os corpos de alguns dos seus benfeitores para verem se ele os assassinara, mas não conseguiram descobrir nada. As toxinas são negativas.

­ Então se tem dinheiro, não será apanhado num assalto observou Mason. ­ Teremos de atrai­lo com isco.

­ Ele saberá de onde veio o golpe de Florença ­ comentou KrendIer.

­ Claro que sim.

­ Portanto, é a si que desejará.

­ Não sei ­ redarguiu Mason. ­ Ele gosta de mim como sou. Pense, Krendier ­ acrescentou Mason, começando a sussurrar entre dentes.

o ajudante do procurador­geral Krendier nada mais ouviu do que esse sussurro enquanto se dirigia à porta. Mason sussurrava muitas vezes, à medida que elaborava esquemas: ­ Tem o ísco principal Krendier, mas discutiremos o assunto  depois de fazer um depósito bancário que o incrimine ­ quando me pertencer.

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Capítulo quarenta e cincoNo quarto de Mason, apenas a família permanece, irmão e irmã. Luz suave e música. Música do Norte de África. Margot está sentada no sofá, de cabeça baixa e os cotovelos apoiados nos joelhos. Poderia ser uma lançadora de martelo em repouso, ou uma levantadora de pesos a descansar no ginásio depois de um exercício. Respira um pouco mais depressa do que o respirador de Mason.

A canção termina e ela ergue­se, dirigindo­se até junto da cama. A morcia mete a cabeça de fora do buraco da sua rocha artificial para ver se no seu ondulante céu de prata voltarão a chover carpas nessa noite. A voz áspera de Margot no tom mais suave de que é capaz:­ Estás acordado?

Num momento, Mason marcou presença através do seu olho sempre aberto. ­ É altura de falar... ­ um silvo ­ do que Margot quer? Senta­te aqui.

­ Sabes o que quero.­ Diz­me.

­ A Judy e eu queremos ter um filho. Queremos ter um filho Verger, o nosso filho.

­ Por que não compras um bebé chinês? São mais baratos do que leitãozinhos.

­ É uma boa ideia. Também podíamos fazê­lo.

­ o que diz o testamento do Papa... A um herdeiro, confirmado como meu descendente no CelImark Laboratory ou seu  equivalente pelo teste de ADN, todos os meus bens por morte do meu querido filho, Mason. (Querido filho, Mason, sou eu). Na ausência de um herdeiro, o único benefícíário será a Igreja Baptista do Sul com cláusulas específicas referentes à  Baylor Uníversíty, em Waco, Texas. Chateaste mesmo o papa com essa tua fufice, Margot.

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­ Podes não acreditar, Mason, mas não é o dinheiro que está

em causa... bom, também é um pouco, mas não queres um herdeiro? Também seria teu herdeiro, Mason.

­ Por que não encontras um tipo simpático e não fazes um pouco de sexo, Margot? Não é que não saibas como.

A música marroquina ergue­se em repetições obsessivas aos seus ouvidos, semelhantes a raiva.

­ Dei cabo de mim, Mason. Encolhi os ovários com todas as hormonas que tomei. E quero que Judy participe nisto. Ela quer ser a mãe natural. Mason, prometeste que se te ajudasse... prometeste­me esperma.

­ Serve­te à vontade ­ indicou Mason com um gesto dos dedos de aranha. ­ Se ainda aí estiver.

­ Há todas as hipóteses de que tenhas esperma viável, Mason, e podíamos arranjar forma de o recolher sem dor...

­ Recolher o meu esperma viável? Até parece que estiveste a falar com alguém.

­ Apenas com a clínica de fertilidade. É confidencial. ­ o rosto de Margot suavizou­se, mesmo sob a luz fria do aquário. ­ Podíamos ser óptimas para uma criança, Mason, fomos a aulas de pais, a Judy provém de uma grande e tolerante família e há um grupo de apoio a pais­mulheres com filhos.

­ Costumavas fazer­me vir quando éramos miúdos, Margot. Vir­me como um morteiro. E muito depressa, também.

­ Magoaste­me quando eu era pequena, Mason. Magoaste­me e deslocaste­me o cotovelo, obrigando­me a fazer a outra... Ainda não consigo levantar mais do que quarenta quilos com o braço esquerdo.

­ Bom. Não querias o chocolate. já disse que falaríamos mais tarde sobre isso, irmãzinha, quando este trabalho estiver completo.­ Vamos lá testar­te agora ­ replicou Margot. ­ o médico pode tirar uma amostra indolor...

­ Mas qual indolor! Não consigo sentir nada aí em baixo. Podias chupar­mo até ficares roxa que não seria como a primeira vez. já obriguei pessoas a fazerem­no e não acontece nada.

­  o médico pode tirar uma amostra indolor, só para ver se tens esperma móvel. A Judy já anda a tomar Clomíd. Andamos a fazer o gráfico da ovulação, há muitas disposições a tomar.

­ Durante todo este tempo, nunca tive o prazer de conhecer Judy Cordell diz que ela tem as pernas arqueadas. Há quanto tempo andam juntas, Margot?

­ Cinco anos.

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­ Por que não a trazes até cá? Podíamos... dar um jeito, por assim dizer.

Os tambores do Norte de África terminam e, com uma última batida, deixam um silêncio ressonante no ouvido de Margot.

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­ Por que não resolves o teu pequeno problema com o departamento da justiça por ti? ­ retorquiu muito próximo do Ouvido dele. ­ Por que não tentas acesso a uma cabine telefónica com a merda do teu computador? Por que não pagas a merda de mais uns guinçus para apanhar o tipo que deu a tua cara a comer aos cães? Prometeste que me ajudavas, Mason.

­ E ajudo. Só tenho de pensar na altura certa,

Margot esmagou duas nozes uma contra a outra e deixou cair as cascas aos pés de Mason. ­ Não leves tempo demasiado, Smiley.­ As calças para andar de bicicleta produziram um silvo semelhante ao do vapor de uma caldeira, quando ela saiu do quarto.

 Alcunha que pode ser traduzida por Risonho. (N. da T.)

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,Capítulo quarenta e seis Ardelia Mapp cozinhava quando lhe apetecia e quando cozinhava, o resultado era excelente. o seu legado era uma mistura de Jamaicano e Gullah e nesse momento preparava um prato de galinha, desventrando um pimentão escocês que segurava cuidadosamente pelo pé. Recusava pagar o preço de galinhas já cortadas aos pedaços e confiara o cutelo e a tábua a Starling.

­ Se deixares os pedaços inteiros, Starling, não vão absorver o tempero como se os cortares ­ explicou como já o fizera várias vezes. ­ Olha bem ­ convidou, pegando no cutelo e esmagando um dorso com tanta força que lascas de osso lhe saltaram para o avental. ­ Assim. Por que estás a desperdiçar os pescoços? Põe toda essa bela coisa aqui.

E um minuto depois Mapp acrescentou: ­ Estive hoje nos Correios. A enviar os sapatos para a minha mãe.

­ Também fui aos Correios. Podia tê­los levado.­ Ouviste alguma coisa nos correios?

­ Nada.

Mapp esboçou um aceno de cabeça, sem parecer surpreendida.­ o informador diz que estão a vigiar o teu correio.

­ Quem é?

­ uma dica confidencial do inspector­postal. Não sabias, pois não?­ Não.

­ Então, descobre de qualquer outra maneira. Precisamos proteger o meu amigo dos Correios.

­ Tudo bem ­ anuiu Starling, pousando momentaneamente o cutelo e exclamou: ­ Deus do céu, Ardelia!

Starling estivera no balcão dos Correios e comprara selos sem ler nada nos rostos fechados dos ocupados funcionários dos correios, na sua maioria afro­americanos, e vários dos quais conhecia. Alguém

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desejava, obviamente, ajudá­la, mas era um grande risco enfrentar a possibilidade de acusação de crime e colocar em jogo o emprego. E,, visível que alguém confiava mais em Ardelia do que em Starling. Lado a lado  com a ansiedade, Starling sentiu um rasgo de felicidade por receber um favor da fileira dos afro­americanos. Talvez a atitude expressasse um tácito veredicto de autodefesa no tiroteio com Evelda Drumgo.

­ Agora, pega nessas cebolas verdes, esmaga­as com o cabo da faca e põe­nas aqui. Esmaga­as com a parte verde e tudo ­ ordenou Ardelia.

Depois de ter terminado os preparativos, Starling lavou as mãoS, penetrou na ordem absoluta da sala de estar de Ardelia e sentou­se. Ardelia entrou um minuto depois, ainda a secar as mãos a um pano da louça.

­ Que raio de merda é esta? ­ perguntou Ardelia.

Tinha por hábito praguejar antes de abordar qualquer coisa ameaçadora, uma forma de superar o medo.

­ Diabos me levem, se sei ­ retorquiu Starling. ­ A resposta está em quem é o cabrão que anda a vigiar­me o correio.

­ Do gabinete do inspector­postal, tanto quanto sabe a minha gente.

­ Não é por causa do tiroteio, nem de Evelda ­ raciocinou Starling. ­ Se andam a meter o bedelho no meu correio tem de ser por causa do Doutor Lecter.

­ Entregaste todas as coisas que ele te mandou. Estás quite com o Crawford a esse respeito.

­ Certo. Acho que se estiver a ser vigiada pelo Gabinete de Responsabilidade Profissional do Bureau, consigo descobrir. Se for pelo GRP da justiça, não sei.

o Departamento da justiça e o seu subsidiário, o FBI, têm gabinetes separados de Responsabilidade Profissional, que teoricamente cooperam e, por vezes, discordam. Estes conflitos são conhecidos internamente por competições de mijo e agentes apanhados no meio deles, acabam algumas vezes por se afogarem. Além disso, o ínspector­geral da justiça, um nomeado político, pode interferir em qualquer altura e pegar num caso melindroso.

­ Se souberem algum dos desígnios de Hannibal Lecter, se acharem que ele está por perto, têm de informar­te para que te protejas. Starling, alguma vez o sentiste por perto?

­ Não me preocupo muito com ele ­ respondeu Starling, abanando a cabeça, ­ Não, dessa maneira. Durante muito tempo nem sequer pensei nele. Estás a ver aquela sensação pesada e sombria, quando receias algo? Nem sequer a tenho, Penso que saberia se tivesse um problema.

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­ o que farias, Starling? o que farias se o visses diante de ti? Assim de repente? Já imaginaste? Atiravas­te a ele?

­ Mal conseguisse arrancá­lo do meu traseiro, atirava­me ao dele.

­  E depois? ­ riu Ardelia.

­ Seria com ele ­ redarguiu Starling, novamente séria.­ Conseguias dar­lhe um tiro?

­ Para me safar? Estás a brincar, não? Deus do céu, espero que isso nunca aconteça, Ardelia. Sentir­me­ia contente se ele voltasse a ser preso, sem que ninguém ficasse ferido ­ incluindo ele. Mas digo­te que às vezes penso que se alguma vez o encurralassem, gostaria de ir atrás dele.

­ Nem digas isso.

­ Comigo teria mais oportunidade de se escapar com vida. Não o alvejaria só por o temer. Não é nenhum lobisomem. Seria com ele.­ Tens medo dele? É bom que tenhas bastante.

­ Sabes o que é ter medo, Ardelia? É quando alguém nos diz a verdade. Gostaria de vê­lo superar a agulha. Se o conseguir e for metido numa instituição, oferece interesse académico suficiente para que o tratamento seja levado a efeito. E não terá problemas com companheiros de cela. Se estivesse preso, agradecia­lhe o bilhete. Não pode desperdiçar­se um homem que diz a verdade.

­ Há um motivo para que alguém esteja a vigiar­te o correio. Receberam ordem do tribunal que está por aí selada em qualquer lado. Ainda não estamos debaixo de olho... teríamos descoberto. Não poria de lado a hipótese desses cabrões saberem que ele vem aí e não te avisarem. Põe­te a pau, amanhã.

­ Mister Crawford ter­nos­ia avisado. Não podem montar muita coisa contra Lecter sem conhecimento de Mister Crawford.

­ Jack Crawford já faz parte da história, Starling. Estás a ver mal. E se montarem algo contra ti? Por dizeres o que tens a dizer e não deixares que o Krendier se meta contigo? E se alguém quiser tramar­te? Ei. E falava a sério quanto a proteger o meu informador.

­ Há algo que possamos fazer pelo teu camarada dos correios? Precisamos fazer algo?

­ Quem achas que vem jantar cá a casa?

­ Muito bem, Ardelia!... Espera aí, julguei que era eu que vinha jantar.

­ Podes levar também para ti.

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­ Obrigadinha.

­ De nada, minha. É um prazer.

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Capítulo quarenta e seteQuando Starling era uma miúda, mudou­se de uma casa de ripas que rangia sob o vento para a sólida casa de tijolo vermelho do Lar Luterano.

A habitação mais miserável do começo da sua ínfância tivera uma cozinha quente em que podia partilhar uma laranja com o pai. Contudo, a morte sabe onde se situam as casinhas, onde vivem pessoas que executam trabalhos perigosos por pouco dinheiro, o pai afastou­se desta casa na sua velha camioneta na noite em que a patrulha o matara.

Starling fugiu do seu lar adoptivo numa água de um rancho onde matavam carneiros e encontrou uma espécie de refúgio no Lar Luterano. Estruturas institucionais, grandes e sólidas, fizeram­na sentir­se segura desde então. Os Luteranos talvez lhe dessem pouco calor e laranjas e muito Jesus, mas regras eram regras e não havia problemas para quem as cumprisse.

Enquanto a competição impessoal ou actuar na rua fossem o desafio, sabia que conseguira desempenhar bem o trabalho. Starling não era, contudo, dotada para a política institucional.

Neste momento, ao sair do seu velho Mustang no começo do dia, a elevada fachada da Academia Quantico deixara de ser o enorme regaço em tijolo do seu refúgio. As próprias entradas lhe pareciam dístorcidas através do ar poluído que pairava sobre o parque de estacionamento, Queria falar com jack Grawford, mas já não teve tempo. As filmagens na Hogank Alley começaram mal o sol rompeu.

A investigação do massacre do Felíciana Fish Market exigiam reconstituições filmadas no campo de tiro de Hogan, tomando em conta cada tiro e cada trajectória.

Starling teve de executar o seu papel. A carrinha disfarçada de que se serviram era a original com betume por pintar, tapando os últimos

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buracos de balas. Saltaram uma e outra vez da velha carrinha, e o agente que fazia de John Brigham caiu  repetidamente de cara para baixo, enquanto o que fazia de Burke se contorcia no chão. o processo em que foram utilizados ruidosos cartuchos de pólvora seca deixaram­na esgotada.

Acabaram a meio da tarde.

Starling pendurou o seu equipamento da SWAT e encontrou jack Crawford no gabinete.

Voltara a tratá­lo por Mister Crawford e ele parecia cada vez mais ausente e distante de todos.

­ Quer um Alka­Seltzer, Starling? ­ perguntou ao avistá­la à porta do gabinete. Crawford tomava uma série de  remédios de patente registada durante o dia. Tomava também Ginho­Biloba, Saw Palmetto, St. john’s Wort e aspirina. Ingeria­os segundo uma certa ordem da palma da mão, atirando a cabeça para trás, como se estivesse a beber um shot.

Nas últimas semanas, começara a pendurar o casaco do fato no gabinete e a vestir uma camisola que Bella, a falecida mulher, lhe tricotara. Parecia muito mais velho agora do que qualquer recordação ainda viva em si do seu próprio pai.

­ Andam a abrir parte do meu correio, Mister Crawford. Não se trata de profissionais. Dá ideia que tiram a cola com vapor de uma chaleira.

­ o seu correio tem estado sob vigilância desde que Lecter lhe escreveu.

­ Apenas examinavam os embrulhos com o fluoroscópio. isso tudo bem, mas posso ler o meu correio pessoal. Ninguém me disse nada.­ Não é obra do nosso GRP.

­ Nem do da justiça, Mister Crawford ­ É alguém com poder suficiente para conseguir uma licença de intercepção de coisas seladas.

­ Mas não afirmou que parece coisa de amadores? ­ Ela manteve­se silenciosa o tempo bastante para que acrescentasse: ­ Foi melhor ficar com essa ideia, certo Starling?

­ Certo, sir

Crawford premiu os lábios e esboçou um aceno de cabeça. Vou averiguar ­ prometeu, enquanto arrumava os frascos de medicamentos na primeira gaveta da secretária. ­ Falarei com Carl Schirmer, do Departamento de justiça, e esclareceremos o assunto.

Schirmer era um incompetente. Constava que iria reformar­se no final do ano... todos os veteranos de Crawford estavam a reformar­se.

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­ Obrigada, sír

­ Alguém nas aulas para agentes revelou qualidades prometedoras? Alguma estagiária com quem valha a pena falar?

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­ No campo forense ainda não sei... nota­se uma certa timidez na minha frente quando se trata de crimes sexuais. Mas há algumas atiradoras bastante boas.

­ já temos as necessárias ­ replicou e apressou­se a olhá­la:­ Não me referia a si.

No final deste dia, passado a representar a morte dele, foi visitar a campa de John Brigham no Arlington National Cemetery Starling pousou a mão na pedra tumular, ainda áspera do cinzel. Sentiu repentinamente nos lábios a nítida impressão de estar a beijar­lhe a testa fria como mármore e áspera da pólvora, quando se aproximara do caixão pela última vez e lhe pusera na mão, por baixo da luva branca, a última condecoração como Campeão de Revólver em Combate Aberto.

Agora, as folhas caíam em Arlington, pejando o chão. Starling, com a mão pousada na lápide de John Brigham, perscrutando todos aqueles acres de sepulturas, interrogou­se sobre quantos iguais a ele tinham morrido devido à estupidez, egoísmo e discussões de velhos cansados.

Quer se acredite ou não em Deus, se se for um guerreiro, Arlington é um lugar sagrado e a tragédia não reside na morte mas em morrer por nada.

Sentia uma ligação a Brigham que não perdia nenhuma força apenas só pelo facto de nunca terem sido amantes. Apoiada num dos joelhos, junto à lápide, recordou­se: Ele pediu­lhe algo meigamente e ela respondeu que não e ele perguntou­lhe se podiam ser amigos, e falava mesmo a sério, e ela respondeu que sim, e falava mesmo a sério.

Ajoelhada em Arlington, pensava na sepultura do pai, muito longe dali. Não a visitara desde que ficara em primeiro lugar quando obtivera o diploma do liceu e fora até à campa dele contar­lhe. Interrogou­se sobre se chegara a altura de lá voltar.

o pôr do Sol através dos ramos negros de Arlington tinha um tom tão laranja como os gomos da laranja que tinha partilhado com o pai; a trombeta ao longe provocou­lhe um calafrio e sentiu o frio da lápide sob a mão.

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Capítulo quarenta e oitoPodemos avistá­lo através do vapor da nossa respiração na noite límpida sobre a Terra Nova, um ponto luminoso pendente em Orion, depois passando devagar lá em cima, um Boeing 747, enfrentando um vento de proa rumo a Ocidente a uma velocidade de100 milhas por hora.

Lá atrás, na terceira classe, onde são instalados os participantes de excursões, os 52 membros do Old World Fantasy, uma volta turística a 11 países em 17 dias regressam a Detroit e Windsor, Canadá. o espaço para os ombros ronda os 50 cm. o espaço de ancas entre os apoios dos bancos é de 50 cm. Ou seja cinco centímetros mais do que tinha um escravo na rota África­índias Ocidentais.

Os passageiros estão a receber sanduíches congeladas de carne e queijo e respiram os peidos e bafos de outros num ar economicamente renovado, uma variante do princípio estabelecido para os negociantes de gado e porcos na década de 50.

o Dr. Hannibal Lecter ocupa o centro de uma fila do meio, ladeado por duas crianças e uma mulher com um bebé ao colo no último lugar da fila. Depois de tantos anos passados em celas e reclusões, o Dr. Lecter não gosta de estar apertado. Um jogo de computador no regaço do rapazinho ao lado dele produz um beep constante.

À semelhança de muitos outros distribuídos pelos lugares mais baratos, o Dr. Lecter usa um pin amarelo­vivo com um sorriso e os dizeres CAN­AM TOURS em maiúsculas vermelhas e, tal como os turístas, blusões falsificados de aquecimento dos atletas. o dele tem o emblema da Toronto Maple Leafs, uma equipa de hóquei. Por baixo da roupa, leva uma quantidade considerável de dinheiro.

Há três dias que o Dr. Lecter acompanha a excursão e comprou o bilhete a uma agência de Paris de cancelamentos de última hora por doença. o homem que deveria ocupar o seu lugar regressou ao

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Canadá num caixão depois do seu coração ter deixado de repicar os sinos.

Quando chegar a Detroit, o Dr. Lecter terá de enfrentar o controlo dos passaportes e a Alfândega. Tem a certeza de que os funcionários da segurança e emigração de todos os aeroportos principais do mundo ocidental foram alertados para estar na sua peugada. Nos sítios onde o seu retrato não está pregado na parede do controlo de passaportes, encontra­se à espera sob o botão de alerta de todos os computadores da Alfândega e Emigração.

No meio de toda esta agitação, pensa que pode desfrutar de um golpe de sorte: os retratos de que as autoridades se servem podem ser os do seu antigo rosto. o passaporte falso que utilizou para entrar em Itália não tem um ficheiro correspondente no seu país de origem que forneça uma semelhança actualizada: Em Itália, Rinaldo Pazzi tentara simplificar a sua vida e contentar Mason Verger, apoderando­se do ficheiro dos Carabinieri, incluindo a fotografia e o negativo usados no Permisso di Soggíorno e licença de trabalho do «Dr. Fell». o Dr. Lecter encontrou­os na pasta de Pazzí e destruiu­os.

Excepto se Pazzi tirou fotografias do «Dr. Fell» na clandestinidade, há boas hipóteses de que não exista no mundo inteiro fotografias actualizadas do novo rosto do Dr. Lecter. Não é assim tão diferente do seu rosto antigo... um pouco de colagénio foi adicionado à volta do nariz e nas faces, mudou o cabelo e os óculos, mas é bastante diferente, se não se transformar no centro das atenções. Para a cicatriz nas costas da mão, descobriu um cosmético durável e um creme de bronzeamento.

Espera que no Aeroporto Metropolitano de Detroit, o serviço de Emigração divida as chegadas em duas filas, a dos passaportes dos EUA e a outra. Optou por uma cidade fronteiriça, e a outra fila estará cheia. o avião vem a abarrotar de canadianos. o Dr. Lecter acha que poderá ser arrastado pelo rebanho, desde que o rebanho o aceite. Fez a ronda a vários locais e galerias históricas com estes turistas, voou com eles, mas há limites: não consegue partilhar esta comida de avião com eles.

Cansados e com os pés doridos, fartos das roupas e dos companheiros, os turistas examinam os sacos de comida e tiram a alface, escura do frio, das sanduiches.

o Dr. Lecter, sem desejar chamar a atenção, aguarda até os passageiros terem perscrutado a comida, aguarda até eles terem ido à casa de banho e a maioria adormecer. Lá na frente, corre um filme de segunda. E ele continua a aguardar com a paciência de um piton. Ao seu lado, o rapazinho do jogo de computador adormeceu. o enorme avião sobe e desce e as luzes de leitura tremulam.

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Então e só então, com um olhar furtivo à sua volta, o Dr. Lecter retira de baixo do lugar na sua frente o seu almoço acomodado numa elegante caixa amarela com enfeites castanhos de Fauchon, o pronto­a­comer parisiense. Está atada com duas fitas de seda com cores a condizer. o Dr. Lecter comprou um aromático patê de trufas de foíe gras e figos da Anatólia, que parecem acabados de colher. Tem meia garrafa de um St. Estephe que prefere. o laço de seda cede com um sussurro.

o Dr. Lecter prepara­se para saborear um figo, segura­o diante dos lábios, as narinas dilatam­se com o aroma, enquanto decide se deve comer o figo de uma única e gloriosa dentada ou só metade, quando o jogo de computador ao seu lado emite um beep. E outro. Sem virar a cabeça, o Doutor espalma o figo e fita a criança sentada ao seu lado. Os aromas a trufas, Jóie gras e cognac evolam­se da caixa aberta.

o miúdo cheira o ar. Os olhos estreitos, brilhantes como os de um roedor, pousam de esguelha no almoço do Dr. Lecter. Fala com a voz aguda de um irmão embirrante:

­ Ei, Mister Ei, Mister. ­ Não vai calar­se.­ o que é?

­ Essa é uma refeição especial?­ Não.

­ Então, o que tem aí dentro? ­ A criança, vira uma carinha pedinchona para o Dr. Lecter. ­ Dá­me um bocadinho?

­ Gostaria muito ­ respondeu o Dr. Lecter, reparando que por baixo da grande cabeça da criança, o pescoço tinha apenas a grossura de um filé de porco ­, mas não te ia agradar. É fígado.

­ Fígado! Que porreiro! A Mamã não se importará! Mãaaaeeee! Uma criança fora do vulgar que gosta de fígado e ou choraminga ou grita.

A mulher com o bebé ao colo no fundo da fila, acordou.

Os passageiros da fila da frente, deixaram descair os assentos até o Dr. Lecter lhes cheirar o cabelo, espreitando pelo espaço entre os lugares. ­ Estamos a tentar dormir.

­ Mãaaaaeeee! Posso comer da sanduíche dele?

o bebé que ia ao colo da mãe acordou e começou a chorar. A mãe meteu um dedo por dentro da fralda, viu que estava seca e deu um boneco ao bebé.

o que está a querer dar­lhe, sír?

É fígado, madame ­ respondeu Lecter no tom mais calmo que conseguiu. ­ Não lhe dei...

­ Fígado, o que eu mais gosto, quero, ele disse que eu podia comer um bocado... ­ A criança prolongou a última palavra num gemido agudo.

­ Se vai dar algo ao meu filho, será que posso ver, sír?

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A hospedeira, com os olhos inchados de um sono interrompido, parou junto do lugar da mulher, enquanto o bebé gritava a plenos pulmões. ­ Está tudo bem por aqui? Posso trazer­lhe qualquer coisa? Aquecer um biberão?

A mulher pegou num biberão com tampa e estendeu­o à hospedeira. Acendeu a sua luz de leitura e enquanto procurava uma tetina, dirigiu­se ao Dr. Lecter: ­ Importa­se de me mostrar o que está o oferecer ao meu filho? Quero ver. Sem ofensa, mas ele tem uns intestinos muito frágeis.

Deixamos regularmente os nossos filhos pequenos ao cuidado de estranhos. Demonstramos ao mesmo tempo paranóías contra estranhos e inculcamos medos nas crianças. Em momentos como estes, um monstro genuíno tem de estar atento, até mesmo um monstro tão indiferente às crianças como o Dr. Lecter.

Passou a caixa Fauchon à mãe.

­ Ei! Que pão com óptimo aspecto! ­ exclamou, enfiando­lhe o mesmo dedo com que verificara a fralda.

­ Pode ficar com ele, madame.

­ Não quero o álcool ­.retorquiu e olhou à volta, buscando uma risada. ­ Ignorava que tinham deixado que o trouxesse. É uísque? Permitem­lhe que beba isto neste avião? Acho que vou guardar esta fita, se não a quiser.

­ Não pode abrir esta bebida alcoólica no avião, sir ­ interferiu a hospedeira. ­ Vou guardar­lha e pode recuperá­la no portão de desembarque.

­ Claro. Muito obrigado ­ agradeceu o Dr. Lecter.

o Dr, Lecter conseguia alhear­se do que o rodeava. Era capaz de fazer com que tudo aquilo desaparecesse. o beep do jogo de computador, as ressonadelas e os peidos nada eram comparativamente aos gritos terríveis que tinha ouvido nas alas dos violentos. o lugar não era mais limitativo do que as restrições. Como tantas vezes havia feito na sua cela, o Dr. Lecter encostou a cabeça para trás e procurou alívio na quietude do seu Palácio das Memórias, um palácio que é quase todo belo 

Durante este curto espaço de tempo, o cilindro metálico, que se dirige a toda a força dos motores para Leste e contra o  vento, contém um palácio de mil divisões.

Tal como já visitámos o Dr, Lecter no Palazzo dos Capponi, vamos acompanhá­lo até ao palácio da sua mente...

A entrada é a Capela Normanda em Palermo, severa, bela e intemporal, com um único toque de mortalidade no crânio esculpído no chão. Excepto se tiver uma enorme pressa de recolher informações no palácio, o Dr. Lecter pára frequentemente aqui, tal como agora, para admirar a capela. Para lá da mesma, distante e complexa,

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luminosa e escura, situa­se a vasta estrutura da autoria do Dr. Lecter.

o Palácio da Memória era um sistema mneumonico bem conhecido dos antigos eruditos e neles se preservou muita informação durante a Idade Média, enquanto os Vândalos queimavam os livros. À semelhança dos eruditos seus antecessores, também o Dr. Lecter guarda uma imensa quantidade de informação ligada a objectos nestas mil divisões, mas contrariamente aos antigos, o Dr. Lecter possui um segundo objectivo para o seu palácio; algumas vezes, é lá que se refugia. Passou anos no meio das suas requintadas colecções, enquanto o corpo permanecia amarrado numa ala de violentos de um hospital psiquiátrico ao som de gritos ressoando nas grades de aço como a própria harpa do inferno.

o palácio de Hannibal Lecter é vasto, mesmo ao nível dos padrões medievais. Transposto para o mundo palpável rivalizaria em tamanho e complexidade com o Palácio Topkapi, em Istambul.

Acertamos o passo com ele no preciso instante em que a mente rápida passa da entrada para o Grande Corredor das Estações. o palácio está concebido segundo as regras descobertas por Simónides de Ceos e concretizadas por Cícero quatrocentos anos mais tarde; é arejado, de tectos elevados, mobilado com objectos e tableaux vivos, surpreendentes, por vezes chocantes e absurdos e frequentemente belos. As mostras apresentam­se bem espaçadas e iluminadas como as de um grande museu. Contudo, as paredes não têm as cores neutras das paredes de museus. Tal como Giotto, também o Dr. Lecter decorou as paredes da mente com frescos.

Decidiu recolher a morada de casa de Clarice Starling enquanto ainda estiver no palácio, mas não tem pressa e pára, por conseguinte, junto a uma enorme escadaria, onde se encontram os bronzes Riace. Estes grandes guerreiros de bronze atribuídos a Fídias, retirados do mar na nossa época, são a peça central de um espaço coberto de frescos que poderia revelar toda a obra de Homero e Sofócles.

o Dr. Lecter poderia conseguir que os rostos de bronze falassem Meleager se quisesse, mas hoje apenas deseja contemplá­los. Mil divisões, quilómetros de corredores, centenas de factos inter­ligados a cada objecto que mobila cada divisão, um agradável repouso à espera do Dr. Lecter quando ele optar por se retirar para aqui. Temos, contudo, de partilhar isto com o Doutor: o perigo espreita nos recônditos dos nossos corações, das nossas mentes. Nem todas as divisões são belas, de tectos altos e claras. Há buracos no chão da mente, semelhantes aos do chão de um subterrâneo medieval... as fétidas oubliettes, o nome dado às celas esquecidas, com formato de garrafa, de sólida rocha com a porta do alçapão no cimo.

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Nada se escapa calmamente delas para nos aquietar, Um tremor de terra, uma traição por parte dos nossos guardiões e centelhas de memória libertam os gases nocivos, coisas prisioneiras durante anos a fio escapam­se, prontas a explodir em dor e a impelir­nos a um comportamento perigoso...

Receosos e fantasticamente criados, seguimo­lo enquanto percorre com passo rápido o corredor de seu fabrico, através de um odor a gardénias, impelidos pela presença de grandes esculturas e pela luminosidade dos quadros.

o seu caminho leva­nos para a direita, torneando um busto de Plínio e pela escadaria até ao Salão das Moradas, uma divisão ladeada de estátuas e quadros por uma ordem determinada, bem espaçados e iluminados segundo as recomendações de Cícero.

Ah... o terceiro nicho a contar da porta à direita é dominado por um quadro de São Francisco dando uma traça a comer a um estorninho. No chão, diante do quadro, está este tableau, em tamanho natural e mármore pintado:

Uma procissão no Arlington National Cemetery liderada por jesus, 33 anos, conduzindo uma furgoneta aberta Ford modelo 27 T, com J. Edgar Hoover, de pé, no chão da furgoneta, vestido de tutu e acenando a uma multidão invisível. A pé e atrás dele, segue Clarice Starling, transportando uma espingarda Enfield 308 ao ombro.

o Dr. Lecter parece satisfeito por avistar Starling. Há muito tempo atrás, obteve a morada de casa de Starling por intermédio da Associação de Estudantes da Universidade de Virginia. Armazena a morada neste tableau e agora, para seu prazer, recolhe os números e o nome da rua onde Starling vive:

3327 Tindal Arlington, VA 22308

o Dr. Lecter consegue movimentar­se com uma invulgar velocidade ao longo dos vastos corredores da sua memória. Através dos seus reflexos, percepção e rapidez de raciocínio, o Dr. Lecter está bem protegido contra o mundo físico. Há, contudo, lugares dentro de si próprio onde não pode dirigir­se com segurança, onde não se aplicam as regras ciceronianas de lógica, ordenação do espaço e luminosidade...

Resolveu visitar a sua colecção de têxteis antigos. Pretende rever um texto de Ovídio sobre o assunto de óleos faciais perfumados que se encontra preso aos tecidos e de que precisa para uma carta que está a escrever a Mason Verger.

1 A palavra inglesa corresponde à Starling. (N. da T)

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Prossegue, portanto, caminho ao longo de um interessante corredor kilim rumo à sala de teares e têxteis.

No mundo do 747, a cabeça do Dr. Lecter pressiona com força o encosto do assento e mantém os olhos fechados. A cabeça movimenta­se ligeiramente quando a turbulência sacode o avião.

No final da fila, o bebé acabou o biberão e ainda não adormeceu. o rosto adquire cor. A mãe sente o corpinho contrair­se dentro da roupa e depois relaxar. Não há dúvida sobre o que aconteceu. Nem sequer precisa de meter o dedo na fralda. Na fila da frente, alguém exclama: ­ Deus do céééuuu!

Ao cheiro desagradável a ranço do avião veio juntar­se um outro tipo de cheiro. o rapazinho sentado ao lado do Dr. Lecter, acostumado aos hábitos do bebé, continua a comer o almoço da Fauchon.

Nosfundos do Palácio da Memória, a tampa do alçapão escancara­se e as oubliettes emanam o seu fedor fantasmagóríco...

Alguns animais tinham conseguido escapar ao fogo de artilharia e metralhadoras do tiroteio que provocou a morte dos pais  de Hannibal Lecter e reduziu a um monte de cinzas e destroços a vasta floresta da propriedade.

A míscelânía de desertores que usavam a remota cabana de caça comiam o que conseguiam encontrar Uma vez encontraram um miserável e pequeno veado, esquelético, com uma seta espetada, que arranjara pasto por baixo da neve e sobrevivera. Levaram­no de volta ao acampamento para não terem de o transportar.

Hannibal Lecter, de seis anos, ficou a observar através de uma fenda no celeiro, enquanto o traziam, fazendo força e  torcendo a cabeça para se libertar da corda atada à volta do pescoço. Não queriam disparar um tiro e conseguiram quebrar­lhe as patas finas e retalhar­lhe o pescoço à machadada, insultando­se em várias línguas, pedindo uma gamela antes que o sangue se perdesse.

o escanzelado veado não tinha muito que comer e, dois dias depois, talvez três, os desertores de longos sobretudos, hálitos  fedorentos e deixando um rasto de vapor, atravessaram o caminho de neve desde a cabana de caça, destrancaram o celeiro e voltaram a escolher entre as crianças enroscadas na palha, Nenhuma delas estava congelada e, portanto, optaram por uma viva.

Apalparam a coxa, o antebraço e o peito de Hannibal Lecter e escolheram em vez dele a sua irmã Mischa, levando­a, Para brincar, segundo disseram. Ninguém que era levado para longe para brincar alguma vez regressou.

Hannibal apertou Míscha com tantaforça, agarrou Mischa num gancho de ferro até lhe fecharem a pesada porta do celeiro  em cima, atordoando­o e partindo­lhe o osso do antebraço.

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Levaram­na através da neve ainda manchada de sangue do veado. Rezou tão intensamente para voltar a ver Mischa que a prece consumiu a sua mente de seis anos, mas não apagou o som do machado. A sua prece para  que visse uma vez mais Mischa não caiu propriamente em saco roto ­ viu alguns dos dentes de leite de Mischa nofedorento buraco que os captores usavam, situado entre a cabana onde dormiam e o celeiro onde mantinham as crianças cativas, que foram o seu sustento em 1944 depois da queda da Frente Oriental.

Desde este parcial atendimento à sua prece, Hannibal Lecter nunca mais se incomodara com reflexões de  divindade, além de reconhecer como as suas modestas predações perdiam fulgor ante as de Deus, Que é ímbatível na ironia e de uma incomensurável e devassa malícia.

Neste ruidoso avião, com a cabeça batendo suavemente contra o apoio do assento, o Dr. Lecter está preso entre a sua última imagem de Mischa a atravessar a neve manchada de sangue e o som do machado. Está preso naquele ponto e é incapaz de suportar. No mundo do avião sai­lhe um pequeno grito agudo e penetrante do rosto coberto de suor.

Os passageiros na frente dele viram a cabeça, alguns acordam. Alguns na frente dele resmungam: ­ Deus do céu! Jesus Cristo! o que se passa consigo?

Os olhos do Dr. Lecter abrem­se num fixar do espaço em frente e sente uma mão. É a mão do rapazinho.

­ Teve um pesadelo, hein? ­ A criança não está assustada, nem tão pouco liga às queixas das filas da frente.

­ Sim.

­ Também tenho muitos pesadelos. Não estou a rir­me de si. o Dr. Lecter respirou fundo várias vezes e premiu a cabeça com força de encontro ao assento. Depois recuperou a compostura, como se a calma rolasse da linha do cabelo pelo rosto. Inclinou a cabeça para a criança e sussurrou num tom de confidências: ­ Fazes bem em não comer estes restos, sabes? Nunca os comas.

As linhas aéreas tinham deixado de fornecer papel de carta. o Dr. Lecter, perfeitamente controlado, tirou papel timbrado do bolso do casaco e começou a escrever uma carta a Clarice Starling. Esboçou, primeiro, o rosto. o esboço é agora propriedade particular da Universidade de Chicago e encontra­se à disposição dos eruditos. Nele, Starling parece uma criança e o cabelo, tal como o de Mischa, está colado à cara pelas lágrimas...

Podemos divisar o avião através do vapor da nossa respiração, um pontinho luminoso no límpido céu nocturno. Vê­lo atravessar a Estrela Polar, bem para lá do ponto sem retorno, descrevendo um grande arco rumo ao amanhã, no Novo Mundo.

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capítulo quarenta e noveAs pilhas de papel, fichas e disquetes no cubículo de Starling atingiram um ponto crítico. o seu pedido de mais espaço não obteve resposta. Bastava. Com a ousadia dos malditos, ocupou uma espaçosa divisão na cave da Quantico. A divisão iria supostamente tornar­se a câmara escura privada da Ciência Comportamental, mal o Congresso disponibilizasse algum dinheiro. Não tinha janelas mas havia muitas prateleiras e, dado destinar­se a uma câmara escura, tinha cortinas duplas de escurecimento em vez de uma porta.

Um qualquer vizinho anónimo de gabinete imprimiu uma tabuleta em letras góticas com os dizeres «Casa de Hannibal» e pregou­a na sua entrada de cortinas. Receosa de perder os seus aposentos, Starling mudou a tabuleta para o interior.

Quase de imediato, encontrou um útil tesouro de material pessoal na Biblioteca de justiça Criminal da Faculdade de Columbia, onde havia uma Sala Hannibal Lecter. A Faculdade possuía documentos originais do seu exercício de medicina e psiquiatria, transcrições do julgamento e processos civis. Na sua primeira visita à biblioteca, Starling esperou quarenta e cinco minutos, enquanto os zeladores procuravam inutilmente as chaves para a sala de Lecter. Da segunda vez, apanhou um estudante indiferente a tomar conta e o material por catalogar.

Agora que estava na terceira década da sua vida, a paciência de Starling não melhorara. Com o chefe de secção Jack Crawford a apoiá­la no gabinete do procurador­geral, obteve uma ordem do tribunal de transferência de toda a colecção da Faculdade para a sua sala no rés­do­chão de Quantico. Os xerifes federais procederam à mudança numa única carrinha.

A ordem do tribunal gerou ondas, tal como receara. Eventualmente, as ondas trouxeram KrendIer...

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Ao cabo de duas longas semanas, Starling tinha a maioria do material da biblioteca organizado no seu improvisado centro Lecter. Ao fim de uma tarde de sexta­feira, lavou o rosto e as mãos da poeira e sujidade dos livros e sentou­se no chão, a um canto, a observar as muitas prateleiras de livros e papéis. É possível que tenha cabeceado por um momento...

Um cheiro acordou­a e teve consciência de que não estava só. Era o cheiro a graxa de sapatos.

A divisão encontrava­se imersa numa semiobscuridade e o ajudante do procurador­geral Paul KrendIer movia­se devagar pelo meio das prateleiras, perscrutando os livros e fotografias. Nem sequer se incomodara a bater à porta... não havia hipótese de bater nas cortinas e KrendIer não era de qualquer forma dado a bater à porta, sobretudo tratando­se de agências subordinadas. Aqui, nesta cave da Quantico, sentia­se a visitar a favela.

Uma das paredes da divisão era dedicada ao Dr. Lecter em Itália, com uma enorme fotografia de Rinaldo Pazzi, pendurado com as entranhas de fora da janela do Palazzo Vecchio. A parede em frente ocupava­se de crimes nos EUA e era dominada por uma fotografia da polícia do caçador de arco que o Dr. Lecter matara há uns anos. o corpo pendia de um alvo de parede e ostentava todas as feridas das ilustrações de uma vítima medieval. Havia muitos dossiers empilhados nas prateleiras, ao lado de registos civis de acções judiciais de morte ilegais levantadas ao Dr. Lecter pelas famílias das vítimas.

Os livros pessoais do Dr. Lecter da sua prática de medicina encontravam­se aqui numa ordem idêntica à disposição do seu antigo gabinete psiquiátrico, Starling colocara­os assim depois de examinar fotos da polícia com uma lupa.

Muita da luz da sala obscurecida provinha de uma radiografia da cabeça e pescoço do Doutor que brilhava numa caixa iluminada e colocada na parede. A restante era fornecida por um computador instalado a um canto, o tema do ecrã era «Criaturas Perigosas». De vez em quando, o computador rugia.

Empilhados junto ao computador, estavam os resultados da busca de Starling. Os pedaços de papel esforçadamente reunidos, recibos, facturas especificadas, revelavam pormenores sobre a vida privada do Dr. Lecter em Itália e nos EUA, antes de o enviarem para o hospital psiquiátrico. Tratava­se de um catálogo improvisado dos seus gostos.

Servindo­se de um scanner de tampo liso como mesa, Starling construíra um cenário com o que sobrevivera da casa dele em Baltimore ­ louça da China, prata, cristal, toalha de um branco alvo, um castiçal ­ 1,20 metros quadrados de elegância ressaltando nos reposteiros grotescos da divisão.

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Krendier pegou no grande copo de vinho e deu­lhe um toque com a unha para verificar o som.

Krendier nunca sentira a carne de um criminoso, nunca lutara corpo a corpo com um deles no chão e pensava no Dr. Lecter como sendo uma espécie de papão dos medía e uma oportunidade. Associava a sua própria fotografia a uma exposição deste género no museu do FBI depois de Lecter morrer. Divisava perfeitamente o seu enorme valor como campanha, Krendier tinha o nariz muito próximo do perfil radiografado do amplo cérebro do Doutor e quando Starling lhe dirigiu a palavra, sobressaltou­se o suficiente para deixar uma marca de gordura do nariz na radiografia,

­ Posso ajudá­lo, Mister KrendIer?­ Por que está sentada aí no escuro?­ Estou a pensar, Mister KrendIer.

­ Há curiosidade sobre o que estamos a fazer relativamente a Lecter.­ É isto o que estamos a fazer.

­ Informe­me, Starling. Ponha­me rapidamente a par.­ Não prefere que Mister Crawford...

­ Onde está Crawford?

­ Mister Crawford está no tribunal.

­ Acho que ele está a perder qualidades, não sente o mesmo?­ Não, sir. Não sinto.

­ o que está a fazer aqui? Recebemos queixa da Faculdade quando você trouxe todo este material da biblioteca, Poderia ter sido melhor manuseado.

­ Reunimos tudo o que pudemos encontrar relativamente ao Doutor Lecter aqui neste lugar, tanto objectos como ficheiros. As armas dele estão na Secção de Armas de Fogo e Ferramentas, mas temos duplicados. Temos o que resta dos seus documentos pessoais.

­ De que serve isso? Anda atrás de um assassino ou a escrever um livro? ­ Krendier fez uma pausa para memorizar esta ínteressante saída e acrescentou: ­ Se, digamos, um republicano importante da Supervisão judiciária me perguntar o que é que você, a agente especial Starling, está a fazer para apanhar Hannibal Lecter, o que devo responder?

Starling acendeu todas as luzes. Verificou que Krendier continuava a comprar fatos caros, mas poupava dinheiro nas camisas e gravatas. Os ossos dos pulsos peludos saíam para fora dos punhos.

Starling olhou um momento através da parede, para lá da parede, para a eternidade e recompôs­se. Forçou­se a 

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encarar KrendIer como se fosse uma aluna da academia de polícia.

­ Sabemos que o Doutor Lecter tem excelentes identificações começou. ­ Deve ter pelo menos uma sólida identidade extra, talvez mais. Nesse aspecto é cuidadoso. Não cometerá qualquer erro estúpido.

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­ Prossiga.

­ É    um homem de gostos requintados, alguns deles exóticos, na alimentação, bebida, música. Se vier aqui, quererá satisfazê­los. Terá de conseguir essas coisas. Não se privará.

­ Mister Crawford e eu examinámos as facturas e papéis que restavam da vida do Doutor Lecter em Baltimore antes de ser preso pela primeira vez, bem como todas as facturas que a polícia italiana conseguiu fornecer, acções judiciais dos credores depois dele ter sido preso. Elaborámos uma lista de algumas coisas da sua preferência. Pode ver aqui: no mês em que o Doutor Lecter serviu as molejas do flautista Benjamin Raspail aos outros membros da Orquestra Filarmónica de Baltimore, comprou duas caixas de Chãteau Petrus Bordeau a três mil e seiscentos dólares a caixa. Comprou cinco caixas de Bâtard­Montrachet a mil e cem dólares a caixa e uma série de vinhos de menor qualidade.

­ Encomendou o mesmo vinho ao serviço de quartos de St. Louis depois de escapar e encomendou­o no Vera dal 1926, em Florença. Trata­se de reservas muito raras. Estamos a verificar junto de importadores e negociantes.

­ Do Iron Gate, em Nova lorque, mandou vírfoie gras de primeira a duzentos dólares o quilo e, por intermédio do Grand Central Oyster Bar, conseguiu ostras verdes do Gironde. A refeição para os quadros da Filarmónica principiou com este tipo de ostras, seguidas de molejas, um sorbet e depois, pode ler aqui na Town & Cotintry o que comeram. ­ Leu rapidamente em voz alta: um escuro e brilhante guisado, sem que os condimentos tivessem sido alguma vez determinados, com base em arroz de açafrão. Tinha um sabor sensacional que apenas pode ser conferido pelos pouquíssimos e cuidadosos entendidos. Nenhuma vítima foi identificada como constando do guisado. Blá­blá­blá... aqui descrevem­se em pormenor o seu faqueiro e objectos pessoais. Estamos a examinar compras feitas com o cartão de crédito em lojas de louça da China e cristais.

KrendIer respirou com força pelo nariz.

­ Nesta acção judicial, como pode ver, ainda deve um candelabro Steuben e a Galcazzo Motor de Baltimore levantou um processo para recuperar o Bentley dele. Estamos a investigar as vendas de Bentleys, novos e usados. Não há assim tantos. E as vendas de Jaguars de supercompressão. Mandámos faxes aos fornecedores de caça de restaurantes, indagando sobre compras de carne de javali e emitiremos um boletim uma semana antes das perdizes de patas vermelhas virem da Escócia. ­ Serviu­se do computador para consultar uma lista e depois afastou­se da maquina ao sentir a respiração de Krendier demasiado próxima das suas costas...

­ Empreguei alguns fundos para comprar a colaboração de alguns dos cambistas das estreias, os abutres culturais, de Nova Iorque

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HANNIBAL               221

e São Francisco ­ há uma série de orquestras e quartetos de cordas que lhe agradam particularmente e gosta da sexta ou sétima fila, sentando­se sempre na coxia. Distribuí as melhores fotografias que possuímos ao Lincoln Center e Kenedy Center e à maioria dos salões das filarmónicas. Talvez pudesse ajudar­nos neste trabalho com o orçamento do DOJ, Mister KrendIer.

Ao ver que ele não lhe dava resposta, prosseguiu: ­ Estamos a investigar novas assinaturas de algumas revistas culturais de que foi assinante, ligadas a antropologia, linguística, física, matemática, música.

­   Ele aluga os serviços de prostituição do S&M, esse tipo de coisa? Prostitutos masculinos?

Starling sentia o prazer com que Krendier formulava a pergunta.­ Não que tenhamos conhecimento, Mister Krendier ­ respondeu. ­ Foi visto em concertos em Baltimore, há uns anos, com várias mulheres bonitas, algumas delas conhecidas na área de obras de beneficência e coisas do género de Baltimore.

Investigámos os aniversários delas relativamente a presentes. Nenhuma foi violentada tanto quanto sabemos e nenhuma acedeu a falar sobre ele. Nada conhecemos das suas preferências sexuais.

­ Sempre imaginei que fosse um homossexual.­ o que o leva a dizer isso, Mister Krendier?

­ Todas essas pretensões artísticas. Música de câmara e comida requintada. Nada tenho de pessoal se sentir simpatia por essas pessoas, ou cultivar amizades nessa área. o principal, o que quero transmitir­lhe, Starling é que quero ver cooperação por estas bandas. Nada de feudos. Quero todas as pistas possíveis. Entende­me, Starling?­ Entendo, sír.

­ Certifique­se de que assim é ­ replicou, junto à porta. Pode ter uma oportunidade de melhorar a carreira. A sua assim chamada carreira bem pode servir­se de toda a ajuda possível.

A futura câmara escura já estava equipada com exaustor. Starling ligou­o, a fim de que sugasse o cheiro do aftershave e graxa dele. Krendier abriu caminho pelos reposteiros de escurecimento, sem se despedir.

o ar dançava diante de Starling, como a luz trémula do calor na linha de tiro.

No corredor, KrendIer ouviu a voz de Starling nas suas costas.­ Acompanho­o até ao exterior, Mister Krendier.

KrendIer tinha um carro e um motorista à espera. Continuava ao nível de transporte de executivo, em que tinha de se remediar com um sedan Mercury Grand Marquis.

­ Um momento, Mister KrendIer ­ disse ela, lá fora, antes que ele pudesse chegar ao carro.

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KrendIer virou­se na sua direcção com um olhar ínterrogativo. Uma rendição irritada? ­ Ficou de antenas no ar.

­ Estamos aqui ao ar livre ­ replicou Starling. ­ Não há mecanismos de escuta, excepto se trouxer um. ­ Acometeu­a um impulso que não conseguiu dominar. Para trabalhar com os livros poeirentos, vestira uma camisa de ganga solta por cima de um top reduzido, Não devia fazer isto. Que se foda!

Agarrou nas bandas da camisa e abriu­a de rompante. ­ Veja, Não tenho escuta. ­ Também não tinha soutien. ­ Esta é talvez a única vez em que falaremos em privado e quero fazer uma pergunta. Há anos que desempenho o meu trabalho e sempre que pôde espetou­me a faca nas costas. Qual é o seu problema, Mister KrendIer?

­ Pode falar nisso à vontade... Até lhe dou tempo, se quiser passar em revista...

­ É agora que estamos a falar.­ Pense bem, Starling.

­ Foi por eu não querer vê­lo às escondidas? Foi quando o mandei ir ter com a sua mulher?

Ele voltou a olhá­la. Ela não estava realmente ligada.

­ Não se iluda, Starling esta cidade está cheia de ratínhas provincianas boas como o milho.

Entrou e sentou­se ao lado do motorista, bateu com a mão no painel de instrumentos e o grande carro pôs­se em movimento. Os lábios moveram­se, como se desejasse ter dito «ratinhas provincianas boas como milho como a tua». KrendIer acreditava que o seu futuro incluiria muitos discursos políticos e queria aperfeiçoar o seu caraté verbal, tirar o melhor partido da mordacidade do som.

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capitulo cinquenta

­  Garanto que poderia funcionar ­ declarou KrendIer para o escuro ofegante em que Mason se mantinha 

mergulhado. ­ Há dez anos seria impossível, mas agora ela consegue movimentar listas de clientes naquele computador com a velocidade do cagar. ­ Moveu­se no sofá sob as luzes intensas da área de convívio.

KrendIer avistava a silhueta de Margot recortada no aquário. Habituara­se a praguejar diante dela e gostava da sensação. Apostava que Margot gostaria de ter um caralho. Apetecia­lhe dizer «caralho» na frente de Margot e pensou numa maneira: ­ Foi assim que alinhou as preferências de Lecter. Provavelmente até era capaz de dizer para que lado ele arruma o caralho.

­ Pegando no dito, Margot, manda entrar o Doutor Doemling­ replicou Mason.

o Dr. Doemling mantivera­se à espera na sala de recreio entre os gigantescos animais de peluche. Mason estava a vê­lo no vídeo a examinar o escroto de peluche da enorme girafa. Tal como os Viggerts haviam rondado a estátua de David. No ecrã, parecia muito mais pequeno do que os brinquedos, como se se tivesse comprimido, numa melhor maneira de encontrar o caminho para outra infância que não

a sua.

Observado à luz da área de convívio de Mason, o psicólogo era um indivíduo seco, extremamente cuidado mas flácido, com um tufo de cabelo no crânio manchado e um emblema da Phi Betta Kappal na corrente do relógio. Sentou­se na mesa do café do lado oposto a KrendIer e parecia familiarizado com o espaço.

Reparou que a maçã, virada para si na taça com frutas e nozes, tinha bicho. o Dr. Doemling virou­a para o outro lado. Por detrás

1 Nome de uma sociedade honorífica para eruditos. (N. da T

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224        THOMAS HARRIS

das lentes, os olhos seguiram Margot com uma expressão apreciativa, quase aparvalhada, quando ela foi buscar  mais um par de nozes e regressou ao seu lugar junto ao aquário.

­ o Doutor Doemling é chefe do Departamento de Psicologia na Baylor University Ocupa a cátedra Verger ­  indicou Mason a KrendIer. ­ Perguntei­lhe que tipo de ligação poderia haver entre o Doutor Lecter e a agente  do FBI, Clarice Starling. O Doutor...

Doemling endireitou­se no assento como se fosse um banco de testemunhas e voltou a cabeça na direcção de  Mason, como o faria diante de um júri. KrendIer detectava nele os modos treinados, o cuidadoso sectarismo da  testemunha perita paga a dois mil dólares por dia.

­ Mister Verger está, obviamente, a par das minhas qualificações. Quer que as enumere? ­ inquiriu Doemling.

­ Não ­ respondeu KrendIer.

­ Examinei as notas dessa mulher Starling sobre as suas entrevistas com Hannibal Lecter, as cartas que ele lhe  escreveu e o material que me forneceu sobre o passado de ambos ­ começou Doemling.

KrendIer esboçou um trejeito de desagrado ante esta declaração e Mason acrescentou: ­ o Doutor Doemling  assinou um acordo de confidencialidade.

­ Cordell colocará os seus slides na ranhura quando quiser, Doutor ­ replicou Margot.

­ Primeiro, alguns dados do passado ­ redarguiu Doemling, consultando os apontamentos. ­ Sabemos que Hannibal Lecter nasceu na Lituânia. o pai era um conde com um título que datava do século X e a mãe uma aristocrata italiana, uma Visconti. Durante a retirada alemã da Rússia, alguns panzers nazis que iam a passar bombardearam a propriedade da família, próximo de Vilius, da estrada e mataram os pais e a maioria dos criados. Os filhos desapareceram depois disto. Eram dois, Hannibal e a irmã. Desconhecemos o que aconteceu à irmã. o importante é que Lecter era um órfão, como Clarice Starling.

­ o que eu lhe disse ­ observou Mason, impaciente.

­ Mas que conclusões tirou? ­ questionou o Dr. Doemling. Não estou a sugerir uma espécie de simpatia entre dois órfãos, Mister Verger. Não é disso que se trata. A simpatia não está em causa. E a piedade muito menos. Ouça­me. o que a experiência de ser órfão proporciona ao Doutor Lecter é apenas uma melhor capacidade de compreendê­la e essencialmente controlá­la. o âmago da questão é o controlo.

­ A mulher Starling passou a infância em instituições e, pelo que me diz, não mantém qualquer relação pessoal estável com um homem. Vive com uma ex­colega, uma jovem afro­americana.

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HANNIBAL              225

­ É provavelmente uma coisa de sexo ­ comentou KrendIer. o psiquiatra nem sequer se dignou olhar para KrendIer... Krendier foi automaticamente posto de lado. ­ Nunca se pode afirmar com certezas por que é que uma pessoa vive com outra.

­ É uma das coisas mantidas em segredo, segundo diz a Bíblia­ replicou Mason.

­ Starling parece bastante apetitosa para quem gosta de pão integral ­ interferiu Margot.

­ Acho que a atracção é da parte de Lecter e não dela ­ retorquiu KrendIer. ­ já a viu... é uma pessoa bastante fria.

­ É bastante fria, Mister KrendIer? ­ Margot parecia divertida.

­  Achas que ela é lésbica, Margot? ­ perguntou Mason.

­ Como hei­de saber, raios? o que quer que seja, acho que é lá com ela... foi a minha impressão. Penso que é uma mulher dura, e tinha uma expressão de circunstância, mas não me parece fria. Não falámos muito, mas foi o que concluí. Tudo isto foi antes de precisares que te ajudasse, Mason... correste comigo, lembras­te? Não vou dizer que é fria. Uma rapariga com a aparência de Starling tem de manter uma certa distância porque passa o tempo a ser chagada por idiotas.

Nesta altura, KrendIer teve a sensação que Margot o fitava tempo de mais, embora somente lhe divisasse a silhueta.

Que curiosas, as vozes neste quarto. o cuidado estilo burocrático de KrendIer, a aspereza pedante de Doemling, o tom fundo e ressonante de Mason com as consoantes explosivas mal pronunciadas e a falta de sibilantes e Margot, um tom brusco e baixo, sem papas na língua e ressentida. Em fundo, a máquina que proporciona a respiração a Mason.

­ Faço uma ideia da sua vida privada, tendo em conta a aparente fixação no pai ­ prosseguiu Doemling. ­ Lá chegarei dentro em pouco. Agora, temos três documentos do Doutor Lecter relativos a Clarice Starling. Duas cartas e um esboço. o esboço é o do Relógio da Crucificação que desenhou enquanto estava no hospital psiquiátrico. ­ o Dr. Doemling ergueu os olhos para o ecrã. ­ o slide, por favor.

Algures, do lado de fora do quarto, Cordell colocou o fantástico esboço no monitor elevado. o original é a carvão em papel pardo. o exemplar de Mason foi feito em fotocópia e os traços são de um azul arroxeado.

­ Ele tentou registar a patente ­ replicou o Dr. Doenling.­ Como podem ver, aqui está Cristo crucificado no mostrador de um relógio e os braços Dele vão girando e marcando o tempo, como nos relógios do rato Mickey É interessante porque o rosto, a cabeça

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pendente, é a de Clarice Starling. Ele desenhou­a na altura das entrevistas. Aqui está uma fotografia da mulher, e podem ver. Cordell, é esse o nome? Cordell, coloque a fotografia, por favor.

Não havia dúvida que a cabeça de Jesus era Starling.

­ Uma outra anomalia reside em que a figura está pregada à Cruz pelos pulsos e não pelas palmas das mãos.

­ Está certo ­ replicou Mason. ­ Tem de se pregar pelos pulsos e usar grandes anilhas de madeira, caso contrário soltam­se e começam a abanar. Idi Amin e eu descobrimos isso no duro quando voltámos a encenar toda a coisa no Uganda, na Páscoa.

o nosso Salvador foi crucificado através dos pulsos. Todas as pinturas da Crucificação estão erradas. É uma tradução incorrecta entre o Hebreu e as Bíblias latinas.

­ Obrigado ­ agradeceu o Dr. Doemling sem sinceridade.­ A Crucificação representa visivelmente a destruição de um objecto de veneração. Reparem que o braço que forma o ponteiro dos minutos está nas seis, tapando decorosamente os orgãos genitais. o ponteiro das horas está nas nove, ou um pouco depois. Nove é uma indubitável referência à hora tradicional em que Jesus foi crucificado.

­  E quando se junta seis e nove, reparem que se obtém 69, um número popular nas relações sexuais ­ observou Margot, incapaz de se conter. Em resposta ao olhar crítico de Doemling quebrou as nozes e as cascas caíram ruidosamente no chão.

­ Passemos, agora, às cartas do Doutor Lecter a Clarice Starling. Se pudesse colocá­las, Cordell ­ pediu Doemling, tirando um ponteiro laser do bolso. ­ Podem verificar que a escrita, uma fluente caligrafia executada com uma caneta de ponta antiga, tem a regularidade de uma máquina. Encontrava­se este tipo de escrita nas bulas papais da idade Média. É bastante bonita, mas estranhamente regular. Não possui nada de espontâneo. Ele está a planear. Escreveu esta primeira carta pouco depois de ter escapado, matando cinco pessoas nesta fase. Vamos ler um pouco do texto:

Então, Clarice, os cordeiros deixaram de gritar?

Deve­me uma informação, bem sabe, e esta é a que eu desejaria. Um anúncio na edição nacional do Times e do  Internacional Herald­Tribune, no primeiro dia de qualquer mês, estará bem. Melhor aínda, ponha­o também no China Mail.

Não ficarei surpreendido se a resposta for sim e não. Os cordeiros deixarão de gritar por agora. Mas, Clarice,  julgue­se a si mesma com toda a misericórdia da balança da masmorra de Threave; terá de voltar a conquístá­lo, uma e outra vez, ao bendito sílÊncío. Porque é a adversidade que a move, ver a adversidade, e a adversidade  não acabará, nunca.

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HANNIBAL              227

Não tenho qualquer intenção de a visitar, Clarice, pois o mundo é mais interessante consigo nele. Veja se me concede a  mesma cortesia...

o Dr. Doemling ajeitou os óculos sem aros e pigarreou. ­ Este é um exemplo clássico do que designei como avunculismo... começa a ser referido frequentemente na literatura profissional como avunculísmo de Doemling. Será possivelmente incluído no próximo Manual de Diagnósticos e Estatísticas. Para os leigos pode ser definido como o acto de se colocar na posição de um sábio e atento patrono que promove a ordem do dia.

­ Concluo com base nos apontamentos sobre o caso que a questão dos gritos dos cordeiros se refere a uma experiência de infância de Clarice Starling, o abate dos cordeiros no rancho de Montana, o seu lar adoptivo ­ prosseguiu o Dr. Doemling no seu tom de voz seco.

­  Ela trocava informações com Lecter ­ replicou Krendier.­ Ele sabia algo sobre o psicopata assassino Buffalo Bill.

­ A segunda carta, escrita sete anos depois, é, à primeira vista, uma carta de condolências e apoio ­ declarou Doemling. ­ Atormenta­a com referências aos pais, que ela parece venerar. Designa o pai de «o guarda­nocturno» morto e a mãe de «empregada doméstica». E depois investe­os das excelentes qualidades que ela podia imaginar que tinham, e acentua estas qualidades para desculpar as falhas dela na carreira. Trata­se de insinuação, trata­se de controlo. Penso que a mulher Starling pode ter uma persistente ligação ao pai, uma imagem, que a impede de estabelecer facilmente relações sexuais e pode levá­la a pender para o Doutor Lecter a nível de qualquer tipo de transferência, que, na sua perversidade, ele agarraria de imediato. Nesta segunda carta, ele volta a encorajá­la a contactá­lo através de um anúncio pessoal e dá­lhe um nome de código.

Deus do céu, o homem continuou por ali fora! A impaciência e o tédio eram uma tortura para Mason, pois não podia mexer­se.­ Muito bem, excelente, perfeito, Doutor! ­ interrompeu Mason. ­ Abre um bocadinho a janela, Margot. Tenho uma nova pista sobre Lecter, Doutor Doemling. Alguém que conhece Starling e Lecter, os viu juntos e passou mais tempo com Lecter do que qualquer outra pessoa. Quero que lhe fale.

Krendier agitou­se no sofá e as entranhas começaram a dar sinal ao aperceber­se do rumo que as coisas tomavam.

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capitulo cinquenta e umMason falou ao intercomunicador e uma figura alta entrou no quarto. Era tão musculado quanto Margot e estava vestido de branco.

­  Este é Barney ­ apresentou Mason. ­ Chefiou a ala dos violentos no Hospital Estadual para Criminalmente Insanos de Baltimore durante seis anos, quando Lecter lá esteve. Agora, trabalha para mim.

Barney preferia ficar de pé em frente do aquário ao lado de Margot, mas o Dr. Doemling queria­o sob a luz. Sentou­se junto de KrendIer.­ Barney não é verdade? Agora, Barney, qual é a sua experiência profissional?

Sou um ED.

É um enfermeiro diplomado? óptimo. Nada mais?

Tenho um bacharelato em Ciências Humanas da Faculdade Americana por Correspondência ­ replicou Barney, num tom inexpressivo. ­ E um certificado de frequência da Cummins School de Ciência Mortuária. Serviu­me durante o curso de enfermagem.

­ Quer dizer que passou o curso de enfermagem a trabalhar como funcionário da morgue?

­ Sim, a remover corpos de cenários de crimes e assistindo a autópsias,

­ Antes disso?

­ Fuzileiro Naval.

­ Percebo. E enquanto esteve a trabalhar no hospital estadual assistiu a uma interacção de Clarice Starling e Hannibal Lecter... o que quero dizer é que os viu a falar juntos?

­ Pareceu­me que eles...

­ Comecemos exactamente com o que viu, não o que achou sobre o que viu, é possível?

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HANNIBAL             229

­ Ele é suficientemente esperto para dar a sua opinião. Conhece Clarice Starling, Barney

­ Sim,

­ Conheceu Hannibal Lecter durante seis anos.­ Sim.

­ o que havia entre eles?

De início, Barney teve dificuldade em entender o tom elevado e áspero de Barney, mas foi KrendIer que fez a pertinente pergunta. Lecter teve um comportamento diferente nas entrevistas com Starling, Barney?

­ Sim. Por norma, não reagia às visitas ­ replicou Barney Às vezes abria os olhos o tempo bastante para insultar qualquer académico, que tentava consultá­lo na qualidade de perito. Levou às lágrimas um professor. Era duro com Starling, mas respondía­lhe mais do que à maioria. Estava interessado nela. Ela intrigava­o.

­ Como?

­ Raramente via mulheres ­ replicou Barney com um encolher de ombros. ­ Ela é realmente bem parecida...

­ Não preciso da sua opinião a esse respeito ­ interrompeu KrendIer. ­ É tudo o que sabe?

Barney manteve­se em silêncio. Fixou KrendIer como se os hemisférios esquerdo e direito de KrendIer fossem dois cães colados. Margot partiu outra noz.

­ Continua, Barney ­ incitou Mason.

­ Eram francos um com o outro. Nesse aspecto, ele desarma as pessoas. Tem­se a sensação de que não se dignaria mentir.

­ Não faria o quê para mentir? ­ redarguiu KrendIer.­ Dignaria ­ disse Barney

­ D­I­G­N­A­R­I­A ­ soletrou Margot Verger do escuro. Condescender. Ou rebaixar­se a, Mister KrendIer.

­ o Doutor Lecter disse­lhe algumas coisas desagradáveis sobre ela e outras agradáveis ­ prosseguiu Barney ­ Ela conseguia enfrentar as más e depois usufruir melhor as boas, sabendo que não se tratava de conversa da treta. Ele achava­a encantadora e divertida.

­ Consegue avaliar o que Hannibal Lecter achava «divertido»?­ interferiu o Dr. Doemling. ­ Como é o seu critério nesse campo, enfermeiro Barney?

­ Ouvindo­o rir, Doutor Doemling. Ensinaram­nos isso na escola, numa palestra intitulada «Cura. e a Aparência Risonha».

Ou foi Margot que soltou uma risada ou o aquário nas suas costas que produziu o ruído.

Trocadilho com Dummy ­ idiota. (N. da T)

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­ Calma, Barney. Conta­nos o resto ­ pediu Mason.

­ Muito bem, sir Por vezes, o Doutor Lecter e eu falávamos até altas horas, quando tudo estava calmo. Falávamos sobre os cursos que eu andava a tirar e outras coisas. Ele...

­ Andava por acaso a tirar qualquer curso por correspondência em psicologia? ­ não se conteve Doemling.

­ Não, sir Para mim a psicologia não é uma ciência. Tão pouco para o Doutor Lecter ­ replicou Barney rapidamente, antes que o respirador de Mason lhe permitisse uma censura... ­ Só posso repetir o que lhe ouvi... ele via no que ela estava a tornar­se, era encantadora como um filhote, um filhotezinho que acabará por ser... uma gata. Uma gata com que não pode brincar­se mais tarde. Dizia que ela tinha o ímpeto dos filhotes. Tinha todas as armas em miniatura e em crescimento e tudo o que sabia até essa altura consistia em lutar com outros filhotes. Isso divertia­o.

­ A forma como tudo começou entre eles, pode dizer­lhe alguma coisa. No começo, ele mostrou­se delicado, mas punha­a à distância... depois, quando ela ia a sair, um outro preso atirou­lhe sémen. Isto perturbou o Doutor Lecter, incomodou­o. Foi a única vez em que o vi perturbado. Ela também se apercebeu e tentou usá­lo contra ele. Acho que ele lhe admirava a personalidade.

­ Como é que ele reagiu contra o outro?... o que lhe atirou o sémen. Tinham alguma relação?

­ Não propriamente ­ respondeu Barney ­ o Doutor Lecter limitou­se a matá­lo nessa noite.

­ Estavam em celas separadas? ­ interessou­se Doemling.­ Como é que o fez?

­ A três celas de distância, em lados opostos do corredor explicou Barney ­ A meio da noite, o Doutor Lecter falou­lhe durante algum tempo e depois disse­lhe que engolisse a língua.

­ Portanto, Clarice Starling e Hannibal Lecter tornaram­se... amigos? ­ sugeriu Mason.

­ Dentro de uma estrutura formal ­ anuiu Barney ­ Trocavam informações. o Doutor Lecter deu­lhe pistas sobre o serial kíller que ela perseguia e ela pagou­lhe com informações pessoais. o Doutor Lecter disse­me que achava que Starling tinha coragem de mais, um «excesso de zelo», como lhe chamava. Achava que ela era mulher para se arriscar demasiado, se pensasse que a missão o exigia. E disse­me uma vez que ela estava «amaldiçoada pelo gosto». Não sei o que tal significa.

­ Ele quer fodê­la, matá­la, comê­la ou o quê? ­ perguntou Mason, esgotando todas as possibilidades em que conseguia pensar.­ Provavelmente as três coisas ­ respondeu o Dr. Doemling.

­ Não gostaria de prever a ordem pela qual deseja realizar estes actos.

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É este o âmago da questão. Por mais que os tablóides ­ e as mentalidades dos tablóides ­ possam querer dar um toque romântico e tentar fazer de tudo isto a Bela e o Monstro, ele tem por objectivo a degradação, o sofrimento e a morte dela. Reagiu duas vezes: quando ela foi insultada pelo sémen que lhe lançaram à cara e quando foi arrasada pelos jornais após ter alvejado aquela gente. Surge no papel de mentor, mas é o sofrimento que o excita. Quando a história de Hannibal Lecter for escrita e é o que vai acontecer, será registada como um caso de avunculismo Doemlíng. Para o atrair é preciso que ela esteja a sofrer.

Uma ruga formou­se no largo espaço esponjoso entre os olhos de Barney ­ Posso acrescentar uma coisa, Mister Verger, já que me pediu? ­ Não esperou permissão e continuou: ­ No hospital psiquiátrico, o Doutor Lecter reagiu quando ela se dominou, limpou a cara do sémen e cumpriu o seu trabalho. Nas cartas chama­lhe guerreira e vinca que ela salvou aquela criança no tiroteio. Admira­lhe e respeita­lhe a coragem e a disciplina. Diz que não tem planos para a visitar. Uma coisa que ele não faz é mentir.

­ É exactamente a esse tipo de raciocínio tablóide que estava a referir­me ­ replicou Doemling. ­ Hannibal Lecter não possui emoções como admiração e respeito. Não sente simpatia ou afecto. Isso é uma ilusão romântica e revela os perigos de alguma educação.

­ Não se lembra de mim, pois não, Doutor Doemling? ­ redarguiu Barney ­ Eu estava a chefiar a ala quando o senhor tentou falar com o Doutor Lecter. Muitas pessoas tentaram, mas foi o único que se afastou a chorar, tanto quanto me recordo. Depois, ele fez a crítica do seu livro na revista da Associação Psiquiátrica Americana. Não o censuraria, se a crítica o tivesse feito chorar.

­ Basta, Barney ­ ordenou Mason. ­ Trata do meu almoço.­ Não há nada pior do que um autodidacta inexperiente ­ comentou Doemling quando Barney saiu do quarto.

­ Não me disse que tinha entrevistado Lecter, Doutor ­ retorquiu Mason.

­ Nessa altura ele estava catatónico e nada poderia arrancar­se.­ E isso fê­lo chorar?

­ Não é verdade.

­ Não liga, portanto, ao que Barney diz.­ Está tão enganado como a rapariga.

­ o próprio Barney sente­se excitado com Starling ­ replicou KrendIer.

Margot riu de si para si, mas suficientemente alto para ser ouvida por KrendIer.

­ Se quer tornar Clarice Starling atraente para o Doutor Lecter, permita que ele a veja angustiada ­ insinuou Doemling. ­ Deixe

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que o dano que vê lhe sugira o dano que pode causar. vê­la ferida de uma forma simbólica vai excitá­lo tanto como se a visse a masturbar­se. Quando a raposa escuta o grito do coelho vem a correr, mas não para ajudar.

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capitulo cinquenta e dois

­   Não posso entregar Clarice Starling ­ decidiu KrendIer depois de Doemling sair. ­ Posso indicar onde ela 

está e o que está fazer, mas não consigo controlar os desígnios do Bureau. E se o Bureau a colocar como isco, acredite que a protegerão.

KrendIer apontou o dedo através do escuro na direcção de Mason, para vincar bem a sua posição. ­ Não poderia dar a volta a essa cobertura e interceptar Lecter. A vigilância descobriria a sua gente num abrir e fechar de olhos. Em segundo lugar, o Bureau só actuará se ele voltar a contactá­la ou houver provas de que ele está próximo... já lhe escreveu antes e nunca apareceu. Seriam necessárias, no mínimo, doze pessoas para a vigiar e ficaria caro. Estaria em melhor posição se não lhe tivesse tirado a castanha quente no tiroteio. Será uma confusão trocar de campo e tentar voltar a atormentá­la com isso.

­ Seria, devia, podia ­ replicou Mason, expressando­se da melhor forma. ­ Margot, vê aí o jornal de Roma, Corriere della Sera, de sábado, um dia depois de Pazzi ser assassinado e verifica o primeiro anúncio da secção dos «pessoais». Lê­nos.

Margot aproximou as letras apertadas da luz. ­ Está em inglês e dirigido a A. A. Aaron. Diz: Entregue­se às autoridades mais próximas, os inímigos estão próximos. Hannah. Quem é Hannah?

­ É o nome da égua que Starling tinha em criança ­ respondeu Mason. ­ É um aviso de Starling a Lecter. Na carta que lhe escreveu, ele indicou­lhe como o contactar.

­ Céus! ­ exclamou KrendIer, pondo­se de pé. ­ Ela não podia ter sabido sobre Florença. Se sabe, também deve saber que lhe tenho mostrado as coisas.

Mason suspirou e interrogou­se sobre se KrendIer teria esperteza bastante para ser um político útil. ­ Ela não sabia nada. Fui eu

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que pus o anúncio no La Nazione e Corríere della Sera e no Internacional Herald Tribune um dia depois de nos virarmos para Lecter. Assim, se falhássemos, ele iria pensar que Starling tentou ajudá­lo. Ainda temos uma ligação com ele através de Starling.

­ Ninguém o leu.

­ Não. Exceptuando talvez Hannibal Lecter. Ele pode agradecer­lhe... por correio, pessoalmente, quem sabe? Agora, ouça­me bem: ainda tem o correio dela sob vigilância?

Krendier esboçou um aceno de cabeça. ­ Claro ­ respondeu.­ Se lhe mandar o que quer que seja, vê­lo­á antes dela.

­ Quero que me escute com atenção, Krendier: dada a forma como este anúncio foi posto e pago, Clarice Starling nunca pode provar que não foi ela a pô­lo, o que é um delito grave. Um ultrapassar da linha. Pode dar cabo dela com este trunfo, Krendier. Sabe bem que o FBI não lhe pega, quando trabalha na clandestinidade. Podia ser comida para cão. Nem sequer conseguirá uma licença de porte de arma por baixo da mesa. Serei o único a vigiá­la. E Lecter saberá que ela estará entregue aos seus próprios meios.

Mason fez uma pausa e depois acrescentou: ­ Tentaremos outras coisas primeiro. ­ Se não resultarem, seguiremos o conselho de Doemling e «perturbamo­la» com este anúncio... perturbamo­la, raios. Podemos rachá­la ao meio. o meu conselho é salvar metade com a rata. A outra parte é demasiado honesta. Oi... Não era minha intenção blasfemar.

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capitulo cinquenta e trêsClarice Starling correndo através de folhas caídas num parque estadual de Virginia, a uma hora de casa, um lugar favorito, sem vestigio de qualquer outra pessoa neste fim­de­semana outonal, um necessário dia de folga.

Corria por um caminho conhecido nos montes cobertos de florestas junto ao rio Shenandoah. A atmosfera recebia todo o calor inicial do topo das vertentes e nas valas inesperadamente frescas o ar aquecia­lhe o rosto e era em simultâneo frio nas pernas.

A terra não se apresentava sólida sob os passos de Starling; parecia­lhe mais firme quando corria.

Starling correndo através do dia claro, raios de luz dançando através das folhas, o caminho ora pontilhado ora raiado pelas sombras dos troncos de árvores sob o sol baixo da manhã. Na sua frente, três veados puseram­se em marcha, duas coroas e um cervo abrindo caminho num único movimento, com as hastes brancas e elevadas reluzindo na obscuridade da funda floresta, enquanto avançavam aos saltos. Starling seguiu­os alegremente e ao mesmo ritmo.

Com a imobilidade de uma figura numa tapeçaria medieval, Hannibal Lecter sentava­se entre as folhas caídas no monte sobre o rio. Avistava cento e cinquenta metros da pista de corrida, com os binóculos protegidos contra o reflexo por um cartão de fabrico caseiro. Primeiro, assistiu à partida dos veados e, aos saltos, atrás deles e subindo o monte, avistou Clarice Starling na totalidade pela primeira vez desde há sete anos.

Sob os binóculos, o rosto não mudou de expressão, mas as narinas dilataram­se com uma profunda inspiração, como se conseguisse inalar­lhe o perfume a esta distância.

A respiração trouxe­lhe o cheiro a folhas secas com um travo de canela, à mistura com o das bolotas da floresta levemente apodrecidas,

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um laivo de caganitas de coelho a alguns metros, o forte cheiro selvagem de uma pele de esquilo protegido debaixo das folhas, mas não o odor de Starling que teria identificado onde quer que fosse. Avistou os veados na frente dela, continuou a avistá­los aos saltos muito depois dela os ter perdido de vista.

Ela recortou­se no seu campo de visão durante menos de um minuto, correndo facilmente, sem esforço. Levava uma pequena mochila aos ombros com uma garrafa de água. Com a luz incidindo por detrás, o alvorecer indefinindo os contornos, como se a pele tivesse sido salpicada de pólén dourado. Acompanhando­a na corrida, os binóculos do Dr. Lecter foram atingidos por um reflexo emitido pela água e que o deixou a ver apenas manchas durante uns minutos. Clarice desapareceu quando o caminho começou a descer perdendo­se na distância e as costas foram a última imagem dela, com o rabo de cavalo abanando qual haste de um veado­galheiro.

o Dr. Lecter conservou­se quieto e não esboçou qualquer tentativa para a seguir. Tinha a imagem dela claramente gravada na sua mente. Correria na sua mente, durante o tempo que ele quisesse. A primeira imagem real em sete anos, sem contar as fotos dos tablóides, sem contar visões de relance e à distância de uma cabeça num carro.

Deitou­se para trás nas folhas com os braços a servirem de almofada, observando a escassa folhagem de um ácer tremulando contra o céu, o céu tão escuro que era quase púrpura. Púrpura, púrpura, o cacho de uvas moscatel selvagens que apanhara na subida para este sítio era púrpura, começando a retrair­se na videira cheia e coberta de pó e comeu várias, apertando­as na mão e lambendo o sumo, como uma criança lambendo a palma da mão aberta. Púrpura, púrpura.

Púrpura era a beringela nojardim.

Não havia água quente na cabana de caça no alto do monte a meio do dia e a ama de Mischa transportou a  gasta banheira de cobre para o jardim da cozinha até ao sol para aquecer a água do banho da menina de dois  anos. Mischa sentou­se na banheira reluzente, colocada entre os legumes, sob o sol quente, com as borboletas  brancas esvoaçando em redor A água só tinha altura bastante para lhe tapar as perninhas rechonchudas, mas o  seu solene irmão Hannibal e o enorme cão estavam posicíonados para a observar, enquanto a ama foi até lá  dentro buscar um lençol turco.

Para alguns dos criados, Hanníbal Lecter era uma criança assustadora, assustadoramente intensa,  assustadoramente sabida, mas não assustava a velha ama, que conhecia a sua profissão, e não assustava  Mischa que lhe pousava as mãos de bebé em forma de estrela sem rodeios no rosto e ria à gargalhada.

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Míscha estendeu os braços para a beringela, que adorava contemplar

ao sol. Os olhos não eram castanhos­avermelhados como os do irmão Hannibal mas azuis e enquanto fixava a beringela dava a sensação que os olhos absorviam a cor e escureciam. Hanníbal Lecter sabia que a cor era a paixão dela. Depois de a levarem para dentro de casa e da ajudante da cozinheira ter vindo despejar a banheira no jardim, resmungando entre dentes, Hannibal ajoelhou­se junto à fila de beringelas e as bolhinhas de sabão emitiram reflexos, púrpura e verde, até rebentarem no solo cultivado. Tirou do bolso o pequeno canivete e cortou  o caule de uma beringela, lustrou­a com o lenço, o vegetal quente do sol enquanto o levava, quente como um animal para o berçário de Míscha e o punha onde ela podia vê­lo. Mischa adorava o púrpura­escuro, adorou a  cor roxa da beringela enquanto viveu.

Hannibal Lecter fechou os olhos para voltar a ver o veado aos saltos diante de Starling, para a ver correr aos saltos pelo caminho, o corpo delineado a ouro pelo sol a bater­lhe por detrás, mas este era o falso veado, era o veadinho com a seta espetada, puxando, puxando para se livrar da corda à volta do pescoço, enquanto o levavam para o machado, o veadinho que comeram antes de comerem Mischa e a calma abandonou­o, levantou­se com as mãos e a boca manchadas do púrpura das uvas moscatel, os lábios descaídos como os de uma máscara grega.

Procurou com os olhos Starling descendo o caminho. Respirou fundo pelo nariz e aspirou o cheiro revigorante da floresta. Fixou o olhar no sítio onde Starling desapareceu. o caminho que ela pisara parecia mais leve do que os bosques circundantes, como se tivesse deixado um rasto de luz atrás.

Subiu rapidamente até ao cume e começou a descer o monte na direcção contrária, rumo à área de estacionamento de um acampamento próximo, onde deixara a furgoneta. Queria sair do parque antes de Starling regressar ao seu automóvel, parado a uns dois quilómetros e meio no estacionamento principal, junto à cabana do guarda florestal, agora fechada para a época.

Decorreriam, pelo menos, quinze minutos antes que ela pudesse regressar a correr ao carro.

o Dr. Lecter estacionou ao lado do Mustang e deixou o motor ligado. Tivera várias oportunidades de lhe examinar o carro no parque de estacionamento de uma mercearia próximo da casa dela. Fora o autocolante de ingresso no parque estatal na janela do velho Mustang de Starling que primeiro tinha alertado Hannibal Lecter para este lugar e comprara imediatamente mapas do parque, explorando­o à vontade.

o carro estava fechado à chave, descido sobre os largos pneus como que adormecido. o carro dela divertia­o. Era em simultâneo

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excêntrico e muito eficiente. Mesmo baixando­se até muito próximo da pega de metal da porta, não absorveu qualquer cheiro. Abriu o canivete e enfiou­o na porta, por cima da fechadura. Alarme? Sim? Não? Clique. Não.

o Dr. Lecter entrou no carro onde a atmosfera era intensamente Clarice Starling. o volante era grosso e forrado de cabedal. Tinha escrita a palavra «Momo» no centro. Fixou a palavra com a cabeça de lado como a de um papagaio e os lábios formaram a palavra «Momo». Recostou­se no assento, de olhos fechados, respirando, as sobrancelhas erguidas como se estivesse a escutar um concerto.

Depois, como se tivesse uma vontade própria, a ponta rosa e afilada da língua surgiu, qual pequena cobra saindo­lhe do rosto. Sem alterar a expressão, como que inconsciente dos seus movimentos, inclinou­se para diante, descobriu o volante forrado de cabedal através do olfacto, e enroscou a língua à volta dele, apalpando com a língua as reentrâncias dos dedos na parte inferior do volante. Saboreou o lugar mais coçado no volante onde a palma da mão dela costumava assentar. Depois recostou­se no assento, recolheu a língua e a boca fechada moveu­se como se apreciasse um vinho. Inalou fundo e susteve a respiração, enquanto saía e fechava à chave o Mustang de Clarice Starling. Sem deixar sair o ar, conteve­a na sua boca e pulmões, até a velha furgoneta ter saído do parque.

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capitulo cinquenta e quatroDa Ciência Comportamental faz parte o axioma de que os vampiros são territoriais, enquanto os canibais se espalham largamente pelo país.

A vida nómada era pouco apelativa para o Dr. Lecter. o seu sucesso em furtar­se às autoridades estava muito ligado à qualidade das suas falsas identidades a longo prazo, ao cuidado com que as mantinha e à pronta disponibilidade financeira. o acaso e mudança frequente nada tinham a ver com isso.

Com duas identidades alternativas há muito estabelecidas, ambas com excelente credibilidade, mais uma terceira ligada a veículos, não teve problema em ajeitar um confortável ninho nos EUA, uma semana depois de ter chegado.

Optara por Maryland, a cerca de uma hora de carro do sul da Muskrat Farm de Mason Verger e a uma distância razoável da música e teatro em Washington e Nova Iorque.

Nada no negócio visível do Dr. Lecter chamava as atenções e qualquer das suas outras identidades teria boas hipóteses de aguentar uma auditoria normal. Depois de fazer uma visita a um dos seus cofre­fortes em Miami, alugou por um ano a um politiqueiro alemão uma casa simpática e isolada na costa de Chesapeake.

Por intermédio de dois telefones com toques diferentes e colocados num apartamento barato de Filadélfia, conseguia munir­se de referências excelentes sempre que eram necessárias e sem ter de abandonar o conforto da sua nova casa.

Dado pagar sempre em dinheiro, os especuladores depressa passaram a arranjar­lhe os melhores bilhetes para as sinfonias, bailados e óperas que lhe interessavam.

Entre as agradáveis características do seu novo lar contava­se uma ampla garagem dupla com uma oficina e portas largas. Era aí

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que o Dr. Lecter guardava os seus dois veículos, uma velha camioneta Chevrolet de seis anos que tinha no chão um conjunto de tubos e um torno de bancada comprados a um canalizador e a um pintor de casas e um jaguar sedan de supercompressão alugado a uma firma em Delaware. A camioneta mudava de aspecto diariamente. o equipamento que podia colocar na parte de trás ou nos tubos incluía uma escada de pintor, canos, uma caldeira e um reservatório de butano.

Tratadas que estavam as suas questões domésticas, permitiu­se uma semana de música e museus em Nova Iorque e enviou catálogos das exposições mais interessantes ao seu primo, o famoso pintor Balthus, para França,

No Sothebys, em Nova lorque, comprou dois fantásticos instrumentos musicais, ambos raridades. o primeiro era um cravo flamengo do final do século xviii quase idêntico ao Dulkin Smithsoniano de 1745, com um teclado superior para se tocar Bach ­ o instrumento era um digno sucessor do gravicembalo que ele tinha em Florença. A outra compra foi um instrumento electromagnético, um teremim, inventado em 1930 pelo professor Theremim. Desde há muito que o teremim fascinava o Dr. Lecter.

Construíra um em criança. Toca­se através de gestos das mãos num campo electromagnético. São os gestos que provocam o som. Agora estava perfeitamente instalado e podia entreter­se...

o Dr. Lecter conduziu de volta a este agradável refúgio na costa de Maryland depois da sua manhã nos bosques. A visão de Clarice Starling correndo através das folhas mortas no caminho da floresta estava agora bem gravada no Palácio da Memória da sua mente. É para ele uma fonte de prazer, ao alcance em menos de um segundo a partir da entrada. Vê Starling a correr e a qualidade da sua memória visual é tão elevada que consegue rebuscar novos detalhes, consegue ouvir os grandes e saudáveis veados­galheiros ultrapassando­o aos saltos pelo monte, detectar as calosidades nas articulações, uma rebarba de erva no pêlo da barriga do mais próximo.

Guardou esta imagem numa soalheira divisão do palácio, o mais longe possível do pequeno veado ferido...

Novamente em casa, novamente em casa, a porta da garagem baixando com um som surdo por detrás da sua camioneta.

Quando a porta voltou a levantar­se ao meio­dia, saiu o Jaguar preto transportando o Doutor vestido para ir à cidade. o Dr. Lecter gostava imenso de ir às compras. Seguiu directamente para o Hammacher­SchIemmer, o fornecedor de artigos domésticos de qualidade, acessórios desportivos e equipamento de culinária, e não se apressou.­

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Ainda com o seu humor florestal, serviu­se de uma fita métrica de bolso para verificar as dimensões de três grandes cestos de piquenique, todos de vime envernizado com correias de cabedal e sólidos enfeites de latão. Por fim, decidiu­se pelo cesto médio, pois destinava­se apenas a um conjunto individual.

o cesto de vime continha um termo, copos, louça da China resistente e talheres de aço inoxidável. A embalagem só era vendida com os acessórios. Tinham de se comprar.

Mediante sucessivas paragens em Tiffany e Christofle, o Doutor conseguiu substituir os pesados pratos de piquenique por um dos modelos de chasse de louça da China Gein francesa com desenhos de folhas e pássaros das montanhas. No Christofle comprou um dos seus conjuntos favoritos de talheres de prata do século xix, desenho Cardinal, com a marca do fabricante na cavidade das colheres e a de Paris sob os cabos. Os garfos eram profundamente curvos, com os dentes bem espaçados e as facas pesavam agradavelmente na palma da mão. As peças manipulavam­se como que para um bom duelo de pistola.

Quanto aos cristais, o Doutor estava indeciso sobre o tamanho dos copos de aperitivo e optou por um balão para o brandy, mas relativamente aos copos de vinho não hesitou. o Doutor optou por Reidel, que comprou em dois tamanhos com muito espaço para o nariz caber no interior da borda.

No Christofle, encontrou também toalhetes individuais de linho creme e uns bonitos guardanapos num tom de damasco com uma pequena rosa­damasco, semelhante a uma gota de sangue, bordada no canto. o Dr. Lecter pensou na comédia de Damasco e comprou seis guardanapos para estar sempre prevenido, quando os mandasse para a lavandaria.

Comprou dois bons fogões portáteis, do género que os restaurantes usam para preparar pratos junto à mesa, uma sofisticada caçarola em cobre para saucé e um fait­tout de cobre para molhos, ambos fabricados pela Dehilleren em Paris e dois batedores. Não conseguiu encontrar facas de cozinha de aço carbono que preferia indubitavelmente ao aço inoxidável, nem tão pouco algumas das facas para fins especiais que tinha sido obrigado a deixar em Itália.

A última paragem foi numa firma de fornecimento clínico a pouca distância do Mercy General Hospital onde encontrou em saldo uma serra de autopsiar Stryker praticamente nova em folha, que podia ser amarrada na perfeição no fundo do cesto do piquenique por norma destinado ao termo. Ainda estava na garantia e trazia acopladas lâminas para fins generalizados e escalpe do crânio, bem como uma chave cranial para assim completar a sua batteríe de cuisíne.

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As janelas da casa do Dr. Lecter estão abertas, deixando entrar o ar frio da noite. A baía estende­se a negro e prata sob a lua e as sombras móveis das nuvens. Encheu de vinho um dos seus novos copos de cristal e pousou­o num castiçal junto ao cravo. o aroma do vinho mistura­se com a brisa salgada e o Dr. Lecter pode apreciá­lo sem mesmo tirar as mãos do teclado.

Possuiu, na sua época, clavicórdios, virginais e outros instrumentos antigos de teclado. Prefere o som e o toque do cravo, porque é impossível controlar o volume das cordas de bico de pena, a música acontece como uma experiência, súbita e total.

o Dr. Lecter contempla o instrumento, abrindo e fechando as mãos. Aproxima­se do recém­adquirido cravo como poderia aproximar­se de uma atraente estranha mediante um interessante e leve comentário... toca uma ária escrita por Henrique VIII, Green Grows the HoUy.

Entusiasmado, tenta a sonata de Mozart em B maior. Ele e o cravo ainda não são íntimos, mas a forma como o mesmo responde às suas mãos indicam­lhe que assim será em breve. A brisa aumenta e as velas tremulam, mas os olhos do Dr. Lecter estão fechados à luz, tem o rosto erguido e toca. Bolas de sabão voam das mãos em forma de estrela de Mischa, enquanto ela as agita na brisa sobre a banheira e quando ataca o terceiro movimento, voando levemente através da floresta, Clarice Starling corre, corre, o barulho das folhas quebradas pelos seus pés, o som do vento no alto das árvores e os veados ultrapassando­a, um cervo e duas coroas, aos saltos pelo caminho como as batidas do coração. o chão está subitamente mais frio e os homens esfarrapados arrastam o pequeno veado para fora dos bosques, com uma seta espetada, o veado puxando para se libertar da corda enrolada à volta do pescoço, os homens ferindo­o para não terem de o transportar até ao machado, e a música pára sobre a neve manchada de sangue, enquanto o Dr. Lecter finca os dedos na beira do banco de piano. Respira fundo, respira fundo, coloca as mãos sobre o teclado, força uma frase e depois outra que findam em silêncio.

Escutamos­lhe um grito agudo e penetrante que acaba tão bruscamente como a música. Mantém­se sentado durante muito tempo com a cabeça inclinada sobre o teclado. Levanta­se sem produzir um som e abandona a sala. É impossível dizer onde ele se encontra na casa escura. o vento lá fora, no Chesapeake ganha força, chicoteia as chamas das velas até as apagar, penetra nas cordas do cravo imerso nas trevas... ora um toque acidental ou um agudo grito de há muito.

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capitulo cinquenta e cincoA exposição regional do médio atlântico de armas e facas no War Memorial Auditorium. Acres de mesas, uma planície de armas, na sua maioria revólveres e espingardas de assalto. Os raios vermelhos de laser piscam no teto.

Poucos genuínos apreciadores do ar livre aparecem nas exposições de armas por uma questão de gosto. As mostras de armas são insípidas, incolores e tão tristes como a paisagem interior de muitos que as frequentam.

Vejam só esta multidão: sujos, rancorosos, irritados, limitados, verdadeiramente amargos. Constituem o verdadeiro perigo ao direito do cidadão privado de posse de uma arma de fogo.

As armas que preferem são armas de assalto desenhadas para produção em massa, de marcas baratas e destinadas a fornecer elevada potência de fogo a tropas ignorantes e sem treino.

o Dr. Hannibal Lecter, dotado de uma imperial forma física, movimentava­se por entre as barrigas inchadas de cerveja e o branco leitoso e flácido dos atiradores de interior. As armas de fogo não o interessavam. Dirigiu­se de imediato à exposição do principal negociante de facas do circuito.

o negociante chama­se Buck e pesa 162 quilos e meio. Buck dispõe de uma série de punhais de fantasia e cópias de objectos medievais e bárbaros, mas possui também as melhores facas verdadeiras. o Dr. Lecter detectou de imediato a maioria dos artigos constantes da sua lista, coisas que tivera de deixar em Itália.

­ Posso ajudar? ­ É Buck, um homem de expressão amistosa, sorriso simpático e olhos maléficos.

­ Sim. Quero aquela Harpy, por favor, e uma Spyderco com uma lâmina de serrilha de dez centímetros de um lado e o esfolador do outro.

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Buck juntou os artigos.

­ Quero a serra para caça. Não essa, a outra, de qualidade. Deixe­me apalpar essa bainha de cabedal, a preta... ­ o Dr. Lecter examinou a mola da pega. ­ Levo­a.

­ Mais alguma coisa?

­ Sim. Quero uma Spyderho Civilian. Não a vejo aqui.

­ Não são muitos os que sabem da sua existência. Só mando vir uma de cada vez.

­ Também não preciso de mais.

­ Custa duzentos e vinte dólares, mas cedo­lha por cento e noventa com o estojo.

­ óptimo. Tem facas de cozinha de aço antigas?

­ As antigas só se encontram numa feira da ladra ­ retorquiu Buck, abanando a maciça cabeça. ­ É onde arranjo as minhas. Pode­se afiá­las com o pires de uma molheira.

­ Embrulhe­mas e volto a buscá­las dentro de minutos.

Buck não recebera frequentemente ordens para fazer um embrulho e fê­lo de sobrancelhas erguidas.

Tipicamente, esta exposição de armas não era uma exposição, era um bazar. Havia algumas mesas com recordações poeirentas da Segunda Guerra Mundial, que começavam a ter um aspecto antigo. Podiam comprar­se espingardas M­1, máscaras de gás com o vidro rachado nos óculos de protecção, cantis. Havia ainda as costumadas amostras de recordações nazis. Podia comprar­se uma caixa de gás Zyklon­B, se se estivesse virado para aí.

Não havia quase nada das guerras da Coreia ou do Vietnane e nada da Tempestade do Deserto.

Muitos dos compradores usavam camuflagem como se tivessem regressado da linha da frente por um breve espaço de tempo, a fim de assistirem à mostra de armas e havia mais roupa de camuflagem para venda, incluindo o fato completo de ajudante de caça para fuga total a um atirador ou um arqueiro... uma importante subdivisão da mostra era dedicada a equipamento para caça com arco.

o Dr. Lecter estava a examinar o fato de ajudante de caça quando se apercebeu da presença de uniformes muito próximo. Pegou numa luva de arqueiro. Virando­se para observar a marca do fabricante à luz, verificou que os dois agentes ao lado dele eram do Departamento de Caça e Pesca Interiores de Virginia, que tinha uma cabine de manutenção na mostra.

­ Donnie Barber! ­ exclamou o mais velho dos dois guardas, apontando com o queixo. ­ Se alguma vez o apanharem em tribunal, informa­me. Adorava arrancar esse cabrão dos bosques para sempre.

Observavam um homem de cerca de 30 anos, postado no extremo oposto da exposição de equipamento de arqueiros. Ele estava

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de frente para eles a ver um vídeo. Donnie Barber estava camuflado e tinha a camisola atada à cintura e presa pelas mangas. Vestia uma T­shírt de caqui cavada para exibir as tatuagens e um boné de basebol posto ao contrário.

o Dr. Lecter afastou­se lentamente dos agentes, observando os vários objectos pelo caminho. Fez uma pausa numa mostra de pistolas laser a uma ala de distância e, através de uma treliça com coldres, o Doutor ficou a ver o vídeo que prendia a atenção de Donnie Barber.

Era um vídeo sobre a caça ao veado de orelhas compridas com arco e flecha.

Tudo indicava que alguém perseguia um veado com uma câmara ao longo de uma sebe através de um terreno relvado, enquanto o caçador retesava o arco. o caçador estava ligado a um microfone para se ouvir o som. A respiração tornou­se ofegante. Sussurrou: ­ Não consigo melhor que isto.

o veado deu um salto quando a flecha o atingiu e embateu contra a sebe duas vezes, antes de pular o arame farpado e desaparecer. Enquanto observava, Donníe Barber estremeceu e emitiu um grunhido ante o disparar da flecha.

Agora, o caçador do vídeo estava prestes a ir prestar assistência ao veado.

Donnie Barber parou a cassete e rebobinou­a até ao disparar da flecha uma série de vezes, até o concessionário se lhe dirigir.

­ Vá­se lixar, idiota ­ retorquiu Donnie Barber. ­ Não lhe comprava a ponta de um corno.

No quiosque seguinte, comprou algumas flechas amarelas, largas com uma lâmina de rebarba na ponta. Havia uma caixa para o sorteio de um prémio e, com a sua compra, Donnie Barber recebeu um boletim. o prémio era uma caçada ao veado de dois dias. Donmie Barber preencheu o boletim, enfiou­o na ranhura, sem devolver a caneta ao vendedor e desapareceu com o enorme embrulho no meio dos jovens camuflados.

Da mesma maneira que os olhos da rã detectam qualquer movimento, os olhos do vendedor apercebiam­se de uma pausa na multidão que por ali desfilava. o homem na sua frente estava completamente imóvel.

­ Este é a melhor besta que tem? ­ perguntou o Dr. Lecter ao vendedor.

­ Não ­ respondeu o homem, tirando um estojo de baixo do balcão. ­ É esta a melhor. Gosto mais da recurva, se for preciso transportá­la. Está munida de um molinete que possibilita disparar­se de um berbequim eléctrico ou o emprego manual. Sabe que não

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pode usar­se uma besta contra um veado na Virginia, excepto se se for deficiente? ­ acrescentou.

­ o meu irmão perdeu um braço e está ansioso por matar algo com o outro ­ redarguiu o Dr. Lecter.

­ Oh, entendi­o.

Nos cinco minutos seguintes, o Doutor comprou uma excelente besta e duas dúzias de quadrelos, as pequenas e grossas setas usadas com uma besta.

­ Faça um embrulho ­ pediu o Dr. Lecter.

­ Preencha este boletim e pode ganhar uma caçada ao veado. Dois dias numa boa propriedade ­ retorquiu o vendedor.

o Dr. Lecter preencheu o seu boletim para o sorteio e enfiou­o na ranhura da caixa.

Mal o vendedor iniciou conversa com outro cliente, o Dr. Lecter foi novamente ter com ele.

­ Que maçada! ­ exclamou. ­ Esqueci­me de indicar o número de telefone no meu boletim do sorteio. Posso?

­ Claro. Faça favor.

o Dr. Lecter tirou a tampa da caixa e pegou nos dois boletins do topo. Acrescentou a falsa informação no dele e fixou demoradamente o boletim que estava por baixo, pestanejando uma vez, como uma máquina a fotografar.

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capítulo cinquenta e seis

o ginásio em Muskrat Farm é de alta tecnologia, em negros e cromados, com a gama completa de máquinas, 

pesos livres, equipamento de aeróbica e um bar de sumos.

Barney estava quase no final dos exercícios, a arrefecer numa bicicleta, quando se apercebeu que não estava só na sala.

Margot Verger estava a fazer aquecimentos a um canto. Tinha uns calções elásticos e um top por cima de um soutien desportivo a que acrescentou nesse momento um cinto de levantamento de pesos. Barney ouvia o bater dos pesos no canto. Ouvia­lhe a respiração enquanto ela fez uma série de extensões de aquecimento.

Barney pedalava na bicicleta sem resistência e enxugava a cabeça com uma toalha no momento em que ela se aproximou pelo meio do equipamento.

Fixou os braços dele e desviou o olhar para os seus. Eram praticamente iguais. ­ Qual é a tua marca em elevações? ­ perguntou.­ Não sei.

­ Espero bem que saibas.

­ Talvez trezentas e oitenta e cinco, uma coisa assim.

­ Trezentas e oitenta e cinco? Não me parece, rapagão. Não me parece que consigas trezentas e oitenta e cinco.

­ Talvez tenhas razão.

­ Tenho aqui cem dólares que dizem que não consegues.­ Contra?

­ Contra cem, que raio achas? E estarei de olho aberto. Barney fitou­a e enrugou a testa. ­ Tudo bem ­ anuiu. Nivelaram os pesos e Margot contou os que se encontravam

no extremo da barra que Barney carregara, como se ele pudesse enganá­la. Ele reagiu, contando com todo o cuidado os do lado de Margot

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Agora, ele estava no banco e Margot por cima da sua cabeça, com os calções Spandex. A junção das coxas e do abdómen dela assemelhava­se a uma estrutura barroca e o tronco maciço quase parecia chegar ao tecto.

Barney acomodou­se, sentindo o banco de encontro às costas, As pernas de Margot cheiravam a bálsamo fresco. Ela tinha as mãos levemente apoiadas na barra, com as unhas pintadas de um tom coral, mãos bem modeladas para uma tal força.

­ Pronto?

­ Sim. ­ Ele elevou o peso na direcção do rosto inclinado sobre ele.

Não foi muito difícil para Barney. Devolveu o peso ao seu lugar, na frente de Margot. Ela tirou o dinheiro do saco de ginástica.

­ Obrigado ­ agradeceu Barney

­ Consigo fazer mais agachamentos ­ foi o único comentário dela.

­  Eu sei.

­ Sabes como?

­ Consigo mijar de pé.

­ Também eu ­ retorquiu, enquanto o sangue lhe afluía ao pujante pescoço.

­ Cem dólares? ­ perguntou Barney­ Prepara­me um batido ­ pediu.

Havia uma taça com fruta e nozes no bar dos sumos. Enquanto Barney esmagava a fruta no misturador, Margot agarrou em duas nozes e quebrou­as.

­ Consegues fazer isso só com uma noz sem a apertar contra nada? ­ inquiriu Barney, ao mesmo tempo que partia dois ovos na beira do misturador e os deitava lá dentro.

­ E tu? ­ retorquiu Margot, estendendo­lhe uma noz.

A noz estava na palma da mão aberta de Barney ­ Não sei respondeu. ­ Arranjou espaço na frente, em cima do bar, e uma laranja rolou e caiu junto a Margot. ­ Uuups! Desculpa! ­ disse Barney

Ela apanhou­a do chão e voltou a colocá­la na taça.

o grande punho de Barney fechou­se com força. Os olhos de Margot passaram do punho ao rosto dele, iniciando um percurso de ida e volta, enquanto as veias do pescoço de Barney se retesavam com o esforço e a face se afogueava. Começou a tremer, um leve ruído de algo a quebrar­se vindo do pulso, a expressão sombria de Margot e ele movendo o punho trémulo até ficar sobre o misturador e o som aumentando. Uma gema e a clara caíram para dentro do misturador. Barney ligou a máquina e lambeu as pontas dos dedos. Margot soltou uma risada involuntária.

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Barney serviu os batidos em copos. Observados do outro lado da sala, podiam dar uma imagem de lutadores ou levantadores de pesos em duas classes diferentes.

­ Sentes­te como se tivesses de fazer tudo o que os homens faZem? ­ indagou.

­ Salvo as idiotices.

­ Queres tentar uma aliança?

o sorriso de Margot desapareceu. ­ Não tentes apanhar­me numa treta de pila, Barney

Ele abanou a pujante cabeça. ­ Põe­me à prova ­ disse.

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capitulo cinquenta e seteNa «casa de Hannibal», as informações aumentavam diariamente, à medida que Clarice Starling percorria os corredores do gosto do Dr. Lecter:

Rachel DuBerry era um pouco mais velha do que o Dr. Lecter quando fora benfeitora no activo da Orquestra Sinfónica de Baltimore. Tratava­se de uma mulher muito bonita, como Starling podia verificar nas fotografias da Vogue dessa altura. Isso tinha sido há dois maridos ricos atrás. Era actualmente Mrs. Franz Rosencrantz dos têxteis Rosencrantz. A sua secretária para os assuntos sociais passou­lhe a chamada:

­ Agora, limito­me a mandar o dinheiro da orquestra, querida. Estamos demasiado longe para que possa envolver­me activamente­ explicou a Starling Mrs. Rosencrantz ex­DuBerry ­ Se for qualquer assunto de impostos, posso dar­lhe o número dos nossos contabilistas.

­ Mistress Rosencrantz, quando era um elemento activo da administração da Filarmónica e da Westover School conheceu o Doutor Hannibal Lecter?

Um silêncio prolongado.­ Mistress Rosencrantz?

­ Acho preferível anotar o seu número e telefonar­lhe através do posto telefónico do FBI.

­ Com certeza.

Depois de retomada a conversa:

­ Sim, conheci socialmente Hannibal Lecter há uns anos e a imprensa não me tem deixado em paz por esse motivo. Era um homem de um encanto extraordinário, absolutamente invulgar. Do tipo de causar pele de galinha numa rapariga, se me entende. Levei anos a acreditar no outro lado dele.

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­ Alguma vez lhe ofereceu presentes, Mistress Rosencrantz?­ Costumava receber um cartão no dia do meu aniversário,

mesmo depois de ter sido preso. De vez em quando um presente, antes de ser condenado. Ele oferece os mais requintados presentes.

­  E o Doutor Lecter deu o famoso jantar de aniversário em sua honra. Com as colheitas de vinhos coincidentes com a data do seu aniversário?

­ Sim ­ anuiu. ­ Suzy chamou­lhe a festa mais memorável desde o Baile Preto e Branco de Capote.

­ Se tiver notícias dele, Mistress Rosencrantz, pode fazer o favor de telefonar para o número do FBI que lhe dei? Gostava ainda de lhe perguntar mais uma coisa, se me permite. Tem algumas datas especiais a comemorar com o Doutor Lecter? Preciso também de saber a sua data de nascimento, Mistress Rosencrantz.

Um nítido sobressalto do outro lado da linha. ­ Julguei que pudesse conseguir facilmente essa informação.

­ É verdade, madame, mas existem algumas contradições entre a data do seu cartão de segurança social, o certificado de nascimento e a carta de condução, De facto, nenhuma coincide. Desculpe, mas estamos a meter no computador encomendas de cliente quanto a artigos de luxo destinados aos aniversários de relacionamentos conhecidos do Doutor Lecter.

­ Relacionamentos conhecidos. Sou, portanto, agora um relacíonamento conhecido, que expressão horrível ­ comentou Mrs. Rosencrantz com uma risada. ­ Que idade tem, agente Starlíng? acrescentou no tom de voz fundo característico de uma geração dada a cocktails e cigarros.

­ Tenho trinta e dois, Mistress Rosencrantz. Farei trinta e três dois dias antes do Natal.

­ Direi que espero que tenha alguns relacionamentos conhecidos na sua vida. Ajudam a passar o tempo.

­ Decerto, madame, e a sua data de nascimento?

Mrs. Rosencrantz forneceu, por fim, a informação correcta, caracterizando­a como «a data que é familiar ao Dr. Lecter».

­ Se me permite, madame compreendo a mudança do ano de nascimento, mas porquê o mês e o dia?

­ Queria ser do signo Virgem, conjuga­se melhor com Mister Rosencrantz. Saíamos juntos nessa altura.

As pessoas que o Dr. Lecter conhecera enquanto vivia numa cela, encaravam­no de uma forma um tanto diferente:

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Starling salvara Catherine, a filha da ex­senadora Ruth Martin, do poço infernal do serial kíller Jame Gurab e caso a senadora Martin não tivesse sido derrotada nas eleições seguintes, poderia ter beneficiado

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muito Starling. Mostrou­se calorosa com Starling ao telefone, deu­lhe notícias de Catherine e quis saber notícias dela.

­ Nunca me pediu nada, Starling. Se alguma vez quiser emprego...

­ Obrigada, senadora Martin.

­ Quanto a esse maldito Lecter, não, teria obviamente informado o Bureau se recebesse notícias dele e vou pôr o seu número junto ao telefone. Chalsie sabe como lidar com o correio. Não espero ouvir falar dele. A última coisa que esse safado me disse em Menphis foi «Adoro o seu vestido». Ele fez a coisa mais cruel que alguém me fez na vida e sabe o que foi?

­ Sei que a atormentou.

­ Quando Catherine desapareceu, quando estávamos desesperados e ele afirmou que tinha informações sobre Jame Gumb e eu estava a suplicar­lhe, perguntou­me, fixou­me no rosto com aqueles olhos de cobra e perguntou­me se eu tinha amamentado Catherine. Queria saber se lhe dera o peito. Respondi­lhe que sim. E ele retorquíu: «Um trabalho duro, não é?». Revivi tudo subitamente, agarrando­a em bebé, sedenta, esperando que ela se satisfizesse, e doeu­me como nada me havia doído até então e ele bebeu­me a dor.

­ De que género era, senadora Martin?­ De que género... desculpe?

­ Que género de vestido usava e que agradou ao Doutor Lecter.­ Deixe­me pensar... um Givenchy azul­marinho, feito por medida ­ respondeu a senadora Martin, um pouco melindrada com as prioridades de Starling. ­ Quando voltar a prendê­lo, venha visitar­me, Starling, e montaremos a cavalo.

­ Obrigada, senadora. Não me esquecerei.

Dois telefonemas, cada um ligado às facetas do Dr. Lecter, um comprovativo do seu encanto, o outro do seu calibre. Starling escreveu:

Colheitas de vinhos ligadas a aniversários, que já estava considerado no seu pequeno programa. Tomou nota para acrescentar Givenchy à sua lista de artigos de qualidade. Como reflexão posterior escreveu amamentada ao peito, por nenhum motivo que conseguisse expressar e também não teve tempo de se debruçar sobre o assunto, pois o seu telefone vermelho estava a tocar.

­ É da Secção Comportamental? Estou a tentar pôr­me em linha com Jack Crawford. Daqui fala o xerife Dumas, de Clarendon County, Virginia.

­ Sou a assistente de jack Crawford, xerife. Hoje, ele está no tribunal. Posso ajudá­lo. Sou a agente especial Starling.

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­ Preciso de falar com jack Crawford. Temos um tipo na morgue que foi aparado para carne. É o departamento indicado?

­ Sim, sir, este é... sim sir, claro. Se me disser onde está exactamente, ponho­me a caminho e avisarei Mister Crawford, mal ele acabe de testemunhar.

o Mustang de Starling arrancou a velocidade bastante de Quantico para fazer com que o guarda dos fuzileiros franzisse o sobrolho, a advertisse com o dedo e contivesse um sorriso.

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Capítulo cinquenta e oitoA morgue do condado de Clarendon, na Virginía do Norte encontra­se ligada ao Hospital Dístrital por uma câmara de compressão com um exaustor no tecto e portas duplas em cada ponta, a fim de facilitar o acesso dos mortos. Um ajudante do xerife: encontrava­se diante destas portas para manter afastados os cinco jornalistas e cameraman que se aglomeravam à volta dele.

Atrás dos jornalistas, Starling pôs­se nos bicos dos pés e mostrou o distintivo. Quando o ajudante de xerife o detectou e esboçou um aceno de cabeça, ela abriu caminho pelo meio do grupo. Os flashes dispararam de imediato.

Tranquilidade na sala de autópsia, apenas quebrada pelo tilintar dos instrumentos pousados num tabuleiro metálico.

A morgue do condado tem quatro mesas de autópsia de aço inoxidável, cada uma equipada com balança e lavatório. Duas das mesas estavam ocupadas e os lençóis bizarramente erguidos pelos restos que tapavam. Um post­mortem de rotina do hospital decorria na mesa mais próxima das janelas. o patologista e a assistente procediam a qualquer operação delicada e não levantaram os olhos quando Starling entrou.

o ruído agudo de uma serra eléctrica enchia a divisão e, momentos depois, o patologista pôs cuidadosamente de lado o escalpe de um crânio e ergueu nas mãos em concha um cérebro, que pousou na balança. Sussurrou o peso ao microfone que tinha posto, examinou o órgão no prato da balança e tacteou­o com um dedo enluvado. Ao detectar Starlíng que espreitava por cima do ombro do assistente, deixou cair o cérebro na cavidade do peito aberto do cadáver, atirou as luvas de borracha para uma lata do lixo e deu a volta à mesa, avançando ao seu encontro.

Starling sentiu um arrepio ao apertar­lhe a mão.

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Clarice Starling, agente especial, FBI.

­ Sou o Doutor Hollingsworth, médico legista, patologista do hospital. ­ Hollingsworth tem olhos azuis­claros, brilhantes como ovos bem descascados. Dirigiu­se à assistente, continuando a fixar Starling: ­ Marlene, chame o xerife que está na unidade cardíaca de cuidados intensivos e destape esses restos, por favor.

Segundo a experiência de Starling, os médicos legistas eram por norma inteligentes, mas frequentemente idiotas e irreflectidos em conversas de ocasião e gostavam de se exibir. ­ Está a questionar­se sobre aquele cérebro? ­ perguntou Hollingsworth, seguindo o olhar de Starling.

Ela esboçou um aceno de cabeça e abriu as mãos num gesto interrogativo.

­ Aqui não somos descuidados, agente especial Starling. o facto de não voltar a colocar o cérebro na caixa craniana é um favor que presto à agência funerária. Neste caso, terão o caixão aberto e um velório demorado e é impossível impedir que fluidos do cérebro escorram para a almofada, portanto empalhamos o crânio com qualquer material, fechamo­lo novamente e faço um entalhe no escalpe por cima das orelhas, de forma a que não escorregue. A família recebe o corpo inteiro de volta e todos ficam felizes.

­ Compreendo.

­ Diga­me se também compreende isto ­ replicou. ­ Nas costas de Starling, a assistente do Dr. Hollingsworth retirara os lençóis que tapavam as mesas de autópsia.

Starling virou­se e avistou tudo numa só imagem que iria durar para o resto da sua vida. Lado a lado, nas mesas de aço inoxidável, havia um veado e um homem. Do corpo do veado saía uma seta amarela. o fuste da seta e as hastes do veado tinham mantido o lençol erguido, quais estacas de uma tenda.

o homem tinha uma seta mais curta e grossa a perfurar­lhe a cabeça, na oblíqua, através das pontas das orelhas. Ainda tinha uma única peça de vestuário, um boné de basebol colocado ao contrário e agarrado à cabeça pela seta.

Ao olhar para ele, Starling foi acometida por um absurdo ataque de riso, dominado tão rapidamente que poderia passar por repugnância. As posições semelhantes dos dois corpos, colocados de lado em vez da posição anatómica, revelava que haviam sido abertos quase de forma idêntica, tendo­lhes sido retirada a parte do lombo e quadris com perícia e parcimónia, bem como as pequenas postas que se encontram sob a espinha.

Uma pele de veado em cima de aço inoxidável. A cabeça erguida pelas hastes na almofada metálica, a cabeça virada e o olho branco, como se, através dele, tentasse fixar de revés o fuste de cor viva que o matara... a criatura, deitada de lado com o seu próprio reflexo

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neste lugar de uma ordem obsessiva, parecia mais selvagem, mais estranha ao homem do que um veado o parecia nos bosques.

Os olhos do homem estavam abertos e um pouco de sangue escorria dos sacos lacrimais, idêntico a lágrimas.

­ Que estranho vê­los assim juntos! ­ exclamou o Dr. Hollingworth. ­ Os corações de ambos pesavam exactamente o mesmo.­ Fixou Starling e concluiu que ela estava bem. ­ Há uma diferença no homem que pode ver aqui onde as costelas menores foram separadas da espinha e os pulmões arrancados às costas. Quase parecem asas, não acha?

­ A Águia Sangrenta ­ murmurou Starling, após uma breve reflexão.

­ Nunca vi tal coisa antes.­ Nem eu.

­ Há um termo designativo? Como lhe chamou?

­ A Águia Sangrenta. Na Academia de Quantico há literatura explicativa. Trata­se de um ritual de sacrifício dos Nórdicos. Atravessar as costelas menores e arrancar os pulmões pelas costas, espalmando­os de forma a parecerem asas. Havia um neo­Viking que o fez no Minnesota, na década de 30.

­ Vê muito destas coisas, não me refiro exactamente a isto, mas deste género.

­ Algumas vezes, sim.

­ Afasta­se um pouco da minha linha. Apanhamos na maioria pela frente com crimes simples... pessoas alvejadas e apunhaladas, mas quer saber a minha opinião?

­ Gostaria muito, Doutor.

­ Acho que o homem, que segundo o FBI se chama Donnie Barber, matou o veado ilegalmente ontem, um dia antes do começo da época ­ sei que é quando ele morreu. A seta condiz com o restante equipamento. Ele estava a esquartejá­lo a toda a pressa. Ainda não analisei os antigénios daquele sangue nas suas mãos, mas é sangue de veado. Preparava­se para tratar o animal à maneira dos caçadores de veados e iniciou um trabalho desleixado com este pequeno corte imperfeito aqui. Depois, teve uma grande surpresa quando esta seta lhe trespassou a cabeça. Da mesma cor, mas um tipo de seta díferente. Sem entalhe na ponta. Admite a hipótese?

­ Parece uma disputa com bestas ­ redarguiu Starling.

­ Uma segunda pessoa, talvez a que estava munida da besta, acabou de esfolar o veado, fazendo um trabalho muito melhor, e depois, fez o mesmo ao homem. Verifique a precisão e a firmeza das incisões. Nada se estragou ou desperdiçou. Michael Debakey não o faria melhor. Não há vestígio de qualquer abuso sexual. Foram simplesmente esquartejados.

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Starling levou os nós dos dedos aos lábios. Por um segundo, o patologista julgou que ela estivesse a beijar um amuleto.

­ Faltavam os fígados, Doutor Hollíngsworth?

Uma batida do tempo antes do médico responder, perscrutando­a por cima dos óculos. ­ Falta o fígado do veado.

Parece que o fígado de Mister Barber não estava à altura. Foi parcialmente cortado e examinado. Há uma incisão ao longo da veia porta. o fígado apresentava­se com uma cirrose e sem cor.

Ainda permanece no corpo. Quer vê­lo?­ Não, obrigada. É óptimo?

­ Faltam as molejas nos dois casos. Ainda ninguém pronunciou o nome, pois não, agente Starling?

­ Não ­ replicou Starling. ­ Ainda não.

Uma lufada de ar da câmara de compressão e um homem magro e pálido, vestido com um casaco desportivo de tweed e calças de caqui surgiu na ombreira da porta.

­ Xerife, como está Carleton? ­ cumprimentou Hollingsworth.­ Este é o xerife Dumas, agente Starling. o irmão do xerife está lá em cima, na UCI de cardiologia.

­ Está a aguentar­se. Dizem que está estável, e «vigiado», o que quer que isso signifique ­ respondeu o xerife e chamou lá para fora:­ Chega aqui, Wilburn.

o xerife apertou a mão de Starling e apresentou o outro homem:­ Este é o agente Wilburn Moody, é um guarda­florestal.

­ Se quiser estar perto do seu irmão, podemos regressar lá acima, Xerife ­ sugeriu Starling.

­ Não me deixam vê­lo novamente durante mais uma hora e meia ­ disse o xerife, abanando a cabeça. ­ Sem ofensa, miss, mas telefonei a pedir a presença de Jack Crawford. Ele vem aí?

­ Está preso no tribunal... encontrava­se a depor quando chegou o seu telefonema. Espero que tenhamos notícias dele muito em breve. Apreciamos, de facto, que nos tenha telefonado tão rapidamente.

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­ o velho Crawford foi professor da minha aula da Polícia Nacional na Academia em Quantico, há muitos anos. Um tipo dos diabos. Se a mandou, é porque a acha competente... quer prosseguir?­ Faça favor, xerife.

o xerife tirou um bloco de apontamentos do bolso do casaco.­ o indivíduo com a seta atravessada na cabeça é Donnie Leo Barber e mora num atrelado em Trail’s End Park, Cameron ­ indicou.­ Não se lhe conhece emprego. Dispensa desonrosa da Força Aérea há quatro anos. Foi em tempos mecânico de aviões. Pagou uma multa por disparar uma arma de fogo dentro dos limites da cidade, pagou uma multa por delito criminal na última época de caça. Confessou­se

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culpado por caçar veados ilegalmente no condado de Sumtnit quando foi isso, Wilburn?

­ Há duas épocas, recuperou a licença. É conhecido do departamento. Não se incomoda a seguir pistas, depois de disparar. Se o animal não cai, limita­se a esperar por outro... uma vez...

­ Conta­nos o que encontraste hoje, Wilburn.

­ Bom, eu ia pela estrada nacional quarenta e sete, a cerca de um quilómetro e meio a oeste da ponte, por volta das sete horas, esta manhã, quando o velho Peckman me fez parar. Respirava com dificuldade e tinha a mão no peito. Só conseguia abrir e fechar a boca e apontar para os bosques. Caminhei não mais que uns cento e cinquenta metros pelo bosque cerrado e para lá estava esse Barber empalado numa árvore com uma seta a atravessar­lhe a cabeça e aquele veado com uma seta espetada. Estavam mortos pelo menos, há um dia.

­  Desde ontem de manhã cedo, diria, pela temperatura dos corpos ­ interferiu o Dr. Hollingsworth.

­ Ora, a época de caça só abriu esta manhã ­ prosseguiu o guarda­florestal. ­ Este Donnie Barber tinha com ele um estrado para disfarçar nas árvores que ainda não montara. Dava a sensação de que tinha ido lá ontem para se preparar para hoje, ou melhor invadiu propriedade alheia. Não vejo outro motivo para levar o arco, se tencionasse apenas montar o estrado. Foi então que surgiu este belo veado e ele não conseguiu controlar­se... já vi muitas pessoas fazerem o mesmo. Este tipo de comportamento é tão vulgar como trilhos de porcos... E depois apareceu o outro quando ele estava a esfolar. Não consegui detectar nenhuma pista nos trilhos, pois caiu uma chuvada enorme...

­ Foi por isso que batemos umas chapas e tirámos de lá os corpos ­ replicou o xerife Dumas. ­ o velho Peckman é o dono dos bosques. Este Donnie tinha uma permissão legal de dois dias para caçar a partir de hoje e assinada por ele. Peckman vendia sempre uma licença anualmente, fazia publicidade e firmava contratos com alguns accionistas. Donnie tinha também uma carta no bolso de trás das calças que dizia «Parabéns, ganhou uma caça ao veado». os documentos estão molhados, Míss Starling. Não tenho nada contra a nossa gente, mas não seria possível tirar as impressões digitais no vosso laboratório? Também as setas estavam todas molhadas, quando lá chegámos. Tentámos não lhes tocar.

­ Quer levar essas setas consigo, agente Starling? Quer que as arranque? ­ inquiriu o Dr. Hollingsworth.

­ Se as segurar com retractores e as serrar em duas do lado da pena e puxar o resto, ato­as ao meu teclado com alguns fios ­ redarguiu Starling, abrindo a mala.

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­ Não me parece que ele tenha lutado, mas quer aparas das unhas?

­ Gostaria de submetê­las ao ADN. Não as quero identificadas dedo a dedo, mas separe as das duas mãos, se for possível, doutor.­ Consegue fazer o PCR­STR?

­ No laboratório principal. Dentro de três a quatro dias, teremos algo para si, xerife.

­ Conseguem analisar aquele sangue de veado? ­ inquiriu o guarda­florestal Moody

­ Apenas conseguimos identificá­lo como sangue de animal retorquiu Starling.

­ E se viesse a encontrar a carne de veado no Frigidaire de alguém, quereria saber se provém desse veado, não? ­ sugeriu Warden Moody ­ Por vezes, temos de saber diferenciar os veados através do sangue para construir um processo de invasão de propriedade. Cada veado é um caso. Nunca tal lhe ocorreria, certo? Temos de mandar sangue para Portland, Oregon, para a Oregon Game & Fisli e recebe­se a informação se se esperar tempo bastante. Indicam «Este é o veado número 1» ou chamam­lhe apenas «Veado A» com um número, pois como sabe um veado não tem nome. Que saibamos.

Starling simpatizava com o velho e gasto rosto de Moody ­ Vamos chamar «John Doe» a este, guarda Moody É útil essa informação sobre Oregon, pois talvez tenhamos de fazer negócio com eles, obrigada ­ agradeceu, fazendo­o corar e pôr­se às voltas com o chapéu.

Enquanto ela baixava a cabeça para remexer no saco, o Dr. Hollingsworth fitou­a por simples prazer. o rosto iluminara­se­lhe um momento, ao falar com o velho Moody Aquele sinalzinho na face assemelhava­se muito a vestígios de pólvora seca. Desejava perguntar­lhe, mas pensou melhor.

­ Onde é que meteu os documentos? Não dentro de plástico?­ dirigiu­se Starling ao xerife.

­ Sacos de papel pardo. Um saco de papel pardo nunca causou grandes danos. ­ o xerife esfregou a nuca com a mão e pousou os olhos em Starling. ­ Sabe por que telefonei à sua unidade, porque desejava que Jack Crawford viesse até cá. Sinto­me satisfeito com a sua presença. Agora que me lembro quem é. Ninguém pronunciou «canibal» fora desta sala porque a imprensa arrasará céus e terra, mal escute a palavra. Apenas sabem que pode tratar­se de um acidente de caça. Ouviram dizer que talvez houvesse um corpo mutilado. Desconhecem que Donnie Barber foi esquartejado para ser comido. Não há assim tantos canibais, agente Starling.

­ Não, xerife. Não há.

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É um trabalho de mestre. É mesmo.

Pode ter­me ocorrido por ele ser tão citado nos jornais... parece­lhe obra de Hannibal Lecter?

Os olhos de Starling fixaram­se num pedaço de pele humana no escoadouro da mesa de autópsia vazia. ­ A nona vítima do Doutor Lecter foi um arqueiro... a última vítima antes de ser apanhado ­ replicou.

­ Comeu­o?

­ A esse, não. Deixou­o pendurado num contador de bilhar com todo o tipo de ferimentos. Assemelhava­se a uma ilustração médica medieval chamada Homem Ferido. Ele interessa­se por questões medievais.

o patologista apontou para os pulmões esparramados nas costas de Donnie Barber. ­ Disse que se tratava de um antigo ritual.­ Penso que sim ­ anuiu Starling. ­ Ignoro se o Doutor Lecter foi o autor de tudo isto. Se o fez a mutilação não é um fetiche... este tipo de cenário não é compulsivo no caso dele.

­ o que é então?

­ Um capricho ­ respondeu, com um olhar a certificar­se de que os desconcertava com a palavra exacta. ­ É um capricho e é o que o prendeu da última vez.

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capitulo cinquenta e nove

o laboratório de AI)N era novo, cheirava a novo e o pessoal era mais jovem do que Starling. Era algo a que teria de  

habituar­se, pensou, sobressaltada. Dentro de muito pouco tempo teria mais um ano.

Uma mulher jovem com «A. Benming» no cartão de identificação assinou a entrega das duas setas trazidas por Starling.

A. Benming tivera algumas más experiências com a recepção de provas, a avaliar pela expressão de visível alívio quando notou que os dois mísseis estavam cuidadosamente ligados com fios ao quadro de provas de Starling.

­ Nem imagina o que, por vezes, se me depara quando abro essas coisas ­ replicou A. Benming. ­ Tem de compreender que não posso dizer­lhe nada do tipo em cinco minutos...

­ Não ­ interrompeu Starling. ­ Não há referência RFI­P sobre o Doutor Lecter. Fugiu há demasiado tempo e os objectos foram poluídos, manipulados por uma centena de pessoas.

­ o tempo do laboratório é precioso de mais para passar a pente fino todas as amostras, como digamos catorze pêlos de um quarto de motel. Se me trouxer...

­ Ouça­me e depois fale ­ arguiu Starling. ­ Pedi à Questura de Itália que me mandasse a escova de dentes que acham que pertenceu ao Doutor Lecter. Pode retirar algumas células epiteliais da face, a partir dela. Faça o RFI­P e testes de repetição. Este quadrelo da besta esteve debaixo de chuva e duvido que consiga tirar muitas conclusões, mas veja aqui...

­ Desculpe. Julguei que não compreendia...

­ Deixe lá, A. Bening. Vamos dar­nos bem ­ disse Starling, com um sorriso. ­ Veja. As setas são as duas amarelas. o quadrelo da besta é amarelo porque foi pintado à mão, nada mal, só um pouco riscado. Veja aqui. o que lhe parece por baixo da tinta?

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­ Talvez um pêlo da escova?

­ Talvez. Mas veja que curva para um lado e termina com um pequeno bulbo. E se for uma pestana?

­ Se tiver o folículo...­ Isso mesmo.

­ Ouça, posso fazer o PCR­STR... três cores... na mesma linha e obter­lhe três sítes AI)N ao mesmo tempo. Serão necessários treze sites como prova em tribunal, mas uns dias bastarão para saber com bastante certeza se se trata dele.

­ A. Benming, sabia que podia ajudar­me.

­ Você é Starling. Quero dizer a agente especial Starling. Não foi minha intenção começar com o pé esquerdo, só que deparo com uma série de provas de má qualidade que muitos polícias enviam, Não tem nada a ver consigo.

­ Eu sei.

­julguei que fosse mais velha. Todas as raparigas... as mulheres conhecem o seu caso, quero dizer todos conhecem, mas é assim...­ A. Bening desviou os olhos ­ muito especial para nós. ­ A. Benning levantou o pequeno polegar rechonchudo. ­ Boa sorte com o Outro. Se não se importa que lho diga.

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capitulo sessentaCordell, o mordomo de Mason Verger, era um homem robusto com traços largos e que poderia considerar­se bonito, não fora a ausência de expressão. Tinha 37 anos e não poderia voltar a trabalhar na assistência social na Suíça, nem ter ali qualquer emprego que exigisse contacto próximo com crianças.

Mason pagava­lhe um salário elevado para se encarregar da ala dele, sendo responsável pelos cuidados e alimentação necessários. Verificara que Cordell era da máxima confiança e capaz de tudo. Cordell testemunhara actos de crueldade em vídeo quando Mason entrevistava crianças e que teriam levado qualquer outra pessoa à raiva ou lágrimas.

Nesse dia Cordell estava um tanto preocupado com o único assunto que considerava sagrado: dinheiro.

Deu o seu familiar toque duplo na porta e entrou no quarto de Mason. Estava completamente às escuras, exceptuando o aquário iluminado. A moreia apercebeu­se da sua presença e ergueu­se do buraco, na expectativa.

­ Mister Verger?

Um momento, enquanto Mason despertava.

­ Preciso de dizer­lhe uma coisa. Tenho de fazer um pagamento extra esta semana, em Baltimore, à mesma pessoa de que falámos antes. Não é em nenhuma base de emergência, mas seria prudente. Franklin, aquele miúdo negro, tomou veneno para ratos e estava em situação crítica no início desta semana. Contou à mãe adoptiva que lhe sugeriu que envenenasse o gato para impedir que a polícia o torturasse. Portanto, deu o gato a um vizinho e tomou ele o veneno para rato.

­  Mas que absurdo! ­ exclamou Mason. ­ Nada tive a ver com o assunto.

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­ Claro que é absurdo, Mister Verger.

­ Quem está a queixar­se? A mulher onde arranjas os miúdos?­ É ela mesmo a quem tem de pagar­se imediatamente.

­ Não te meteste com o cabrãozinho, Cordell? Não descobriram nada nele no hospital, pois não? Sabes que descobrirei.

­ Não, sir Na sua casa? Nunca, juro. Sabe que não sou estúpido. Adoro o meu emprego.

­ Onde está o Franklín?

­ Maryland, Misericordia Hospital. Quando sair, irá para uma instituição. A mulher em casa de quem vivia, foi corrida da lista de adopções por fumar marijuana. É a que se queixa de si. Podemos ter de nos encarregar dela.

­ Não deve ser um grande problema.

­ Não conhece ninguém para seguir com a coisa. Acho que necessita de um tratamento cuidadoso. A assistente social quer que ela se cale.

­ Vou pensar nisso. Paga o cheque à assistente social.­ Mil dólares.

­ Certifica­te bem que ela saiba que não receberá mais.

Deitada no sofá de Mason, no escuro, com as faces tensas de lágrimas secas, Margot Verger escutou a conversa entre Cordell e Mason. Estivera a tentar chamar Mason à razão, quando ele adormeceu. Mason pensava sem dúvida que ela se tinha ido embora. Abriu a boca para respirar calmamente, tentando acompanhar o ritmo do silvo do respirador dele. Uma luz acinzentada no quarto quando Cordell saiu. Margot continuou deitada no sofá. Esperou quase 20 minutos, até a bomba assinalar o ritmo de sono de Mason, antes de abandonar o quarto. A moreia viu­a sair, mas Mason não.

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capitulo sessenta e umMargot Verger e Barney tinham começado a relacionar­se. Não falavam muito, mas viam televisão na sala de recreio: futebol, Os Simpsons, por vezes, concertos e seguiam a série Eu, Cláudio. Quando o turno de Barney o obrigava a perder alguns episódios, mandavam vir o vídeo.

Margot gostava de Barney, gostava de se sentir um compincha ao lado dele. Era a única pessoa que conhecera assim tão fixe. Barney era muito esperto e emanava algo de sobrenatural. o que também lhe agradava.

Margot tinha uma boa educação em ciências humanas e informática. Barney, um autodidata, defendia opiniões que se situavam entre a criancice e a perspicácia. Ela podia dar­lhe o contexto.

Margot Verger fez com que Barney pagasse a piada quanto a agachar­se para mijar. Acreditava que tinha pernas mais fortes do que as dele e o tempo provou que estava certa. Fingindo dificuldade com os pesos mais baixos, engodou­o a uma aposta de pressão de pernas e recuperou os 100 dólares. Além disso, servindo­se da vantagem de ser mais leve, venceu­o em elevações com um braço, mas apostava somente no braço direito, pois o esquerdo ficara mais fraco durante uma briga que tivera com Mason em criança.

Por vezes, à noite, quando acabava o turno de Barney ao serviço de Mason, trabalhavam juntos, vigiando­se mutuamente na máquina de pesos. Era um exercício sério, largamente silencioso, apenas cortado pelas respirações. Por vezes, apenas diziam boa­noite enquanto ela arrumava o saco de ginástica e desaparecia rumo às instalações da família, separadas das do pessoal.

Nessa noite, ela apareceu no ginásio de negros e cromados directamente do quarto de Mason e com lágrimas nos olhos.

­ Então, então! ­ exclamou Barney ­ Sentes­te bem?

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­ Uma treta de família, que mais posso dizer? Estou bem respondeu Margot.

Deitou­se ao exercício com um ardor dos diabos, com pesos demasiados e demasiadas repetições.

Numa das vezes, Barney aproximou­se e tirou­lhe uma barra de peso da mão, abanando a cabeça. ­ Ainda vais fazer qualquer lesão­ replicou.

Ela ainda pedalava na bicicleta de exercícios quando ele deu a sessão por terminada e se colocou debaixo do duche a ferver do ginásio, deixando que a água quente deitasse pelo cano o stress de um longo dia. Era um duche vulgar de ginásio com quatro bocais por cima da cabeça e mais alguns à altura da cintura e das coxas. Barney gostava de abrir dois duches e fazer convergir os jactos no corpo robusto.

Barney depressa ficou envolto numa espessa névoa que eliminou tudo, à excepção da água a cair­lhe na cabeça. Barney gostava de reflectir no duche: nuvens de vapor. As Nuvens. Aristófanes. o Dr. Lecter dando explicações sobre o lagarto mijando em Sócrates. Ocorreu­lhe que, antes de ser esmagado pelo martelo implacável da lógica do Dr. Lecter, alguém como Doemling podia ter­lhe dado a volta.

Quando ouviu o ruído de outro duche a correr, prestou pouca atenção e continuou a esfregar­se. Outros elementos do pessoal usavam o ginásio, mas na maioria das vezes ao começo da manhã ou ao fim da tarde. Faz parte da etiqueta masculina prestar pouca atenção aos companheiros num duche comum de um ginásio, mas Barney imterrogou­se sobre quem seria. Esperava que não fosse Cordell que lhe provocava pele de galinha. Era raro alguém mais servir­se do duche à noite.

Quem seria, raios? Barney virou­se para deixar que a água embatesse na nuca. Nuvens de vapor, pedaços da pessoa ao lado dele aparecem entre os rolos de fumo, semelhantes a fragmentos de um fresco numa parede caiada. Aqui um ombro robusto, ali uma perna. Uma mão bem modelada esfregando um pescoço e um ombro musculosos, unhas pintadas num tom de coral, era a mão de Margot. Aquelas unhas dos pés pintadas. Era a perna de Margot.

Barney inclinou a cabeça para trás, colocando­a sob o jacto fumegante do duche e respirou fundo. Ao lado dele, a figura virou­se, esfregando­se de uma forma despreocupada. Lavando o cabelo, agora. Era o ventre liso de Margot, os seios pequenos ressaltando, os bicos duros com o jorro de água, era a virilha de Margot, na juntura do corpo e coxa, e era necessariamente a ratinha de Margot, enquadrada num triângulo de pêlos louros e aparados.

Barney inspirou o máximo de ar que conseguiu e reteve­o... sentia­se à beira de sarilhos. Ela reluzia como um cavalo, levada ao limite pelo duro exercício. A medida que o interesse de Barney se foi

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tornando mais visível, ele virou­lhe as costas. Talvez lhe fosse possível ignorá­la até ela sair do duche.

A água deixou de correr junto dele, mas ouviu­se a voz dela: Ei, Barney.. qual é a margem de compra e venda nos Patriots?

­ Com... com o meu conhecido podes conseguir cinco e meio­ respondeu, olhando por cima do ombro.

Ela estava a secar­se mesmo ao nível do jacto de Barney Tinha o cabelo escorrido. o rosto estava fresco e sem lágrimas. Margot tinha uma pele óptima.

­ Vais então aproveitar? ­ retorquiu. ­ As apostas no escritório da Judy..

Barney não conseguiu prestar atenção ao resto. o triângulo de Margot, adornado de gotinhas de água, enquadrado a rosa. Barney sentia o rosto em fogo e teve uma enorme erecção. Ficou surpreendido e perturbado. Um arrepio percorreu­lhe o corpo. Nunca se tinha sentido atraído por homens. Contudo e apesar de todos os músculos, Margot não era visivelmente um homem e agradava­lhe.

Que merda fora também aquela de se ter metido no duche com ele? Desligou a água e virou­se para ela. Sem pensar duas vezes, pousou a mão enorme na face dela. ­ Céus, Margot! ­ exclamou com a voz entalada na garganta.

Ela fixou a nudez masculina. ­ Raios, Barney Não...

Barney esticou o pescoço e inclinou­se para diante, tentando beijá­la suavemente em qualquer sítio da face, sem lhe tocar com o membro, mas acabou por tocá­la e ela afastou­se, de olhos fixos na haste erecta entre ele e o seu ventre liso, atingiu­o no peito robusto com um antebraço digno de um defesa médio, os pés dele falharam­lhe e esparramou­se no chão do duche.

­ Cabrão de um raio ­ sibilou. ­ Devia ter adivinhado. Paneleiro. Pega nessa coisa e mete­a...

Barney pôs­se de pé e saiu do duche, vestiu a roupa sem se secar e abandonou o ginásio sem uma palavra.

Os aposentos de Barney ficavam num edifício separado da casa, nuns antigos estábulos com telhado de ardósia que agora haviam sido transformados em garagens com apartamentos. A noite ia avançada e ele mantinha­se a teclar no computador, ocupado com um curso por correspondência na Internet. Sentiu que o chão tremia quando alguém pesado subiu as escadas.

Um ligeiro toque na porta. Quando a abriu, deparou com Margot, vestida com uma camisola grossa e um boné enterrado na cabeça.­ Posso entrar um minuto?

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Barney baixou os olhos pelo espaço de um minuto, antes de se afastar da porta.

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­ Ei, Barney Desculpa lá o que se passou ­ disse. ­ Entrei em pânico. Quero dizer, lixei tudo e depois entrei em pânico. Gosto que sejamos amigos.

­ Também eu.

­ julguei que podíamos ser, sabes, amigos vulgares.

­ Ora, Margot. Disse que seríamos amigos, mas não sou o raio de um eunuco. Entraste na porra do duche comigo. Agradaste­me, não consegui evitá­lo. Entras no duche e vejo duas coisas juntas de que gosto mesmo.

­ Eu e a minha rata ­ replicou Margot.

Surpreenderam­se por rirem juntos. Ela entrou e envolveu­o num abraço que poderia ter magoado um homem menos corpulento. Escuta. Se houvesse um tipo na minha vida, serias tu. Mas não é o meu género. Não é mesmo. Não é, nem será.

­ Eu sei ­ redarguiu Barney com um aceno de cabeça. ­ Só que me descontrolei.

Mantiveram­se quietos um minuto, num abraço mútuo.­ Queres tentar sermos amigos? ­ perguntou ela.

­ Sim ­ respondeu Barney, depois de reflectir um minuto. Mas tens de ajudar­me um bocado. É este o contrato: vou tentar fazer um esforço para esquecer o que vi no duche e tu não voltas a mostrar­mo. E também não me mostras as mamas, quando lá estiveres. Que tal?

­ Posso ser uma boa amiga, Barney. Aparece amanhã, lá em casa. A Judy cozinha e eu cozinho.

­ Sim, mas talvez não cozinhes melhor do que eu.­ Põe­me à prova ­ desafiou Margot.

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capítulo sessenta e dois

o Dr. Lecter ergueu uma garrafa de Chãteau Petrus e examinou­a à luz. Colocara­a na posição vertical e pusera­a a 

assentar um dia inteiro na eventualidade de poder haver depósito. Consultou o relógio e decidiu que chegara a hora de abrir o vinho.

Tratava­se do que o Dr. Lecter considerava um sério risco, superior ao que gostava de correr. Não queria precipitar­se. Gostava de apreciar a cor do vinho numa garrafa de cristal. E se, depois de tirar a rolha cedo de mais, decidisse que não existia qualquer sagrada respiração para decantar? A luz revelou a existência de um pouco de depósito.

Retirou a rolha com o mesmo cuidado com que poderia trepanar um crânio e colocou o vinho no aparelho de decantar que era accionado por uma manivela e parafuso para inclinar a garrafa por movimentos de acréscimo. Que a brisa salgada tivesse a sua influência e depois resolveria.

Acendeu o lume com ásperos pedaços de carvão e preparou uma bebida. Lillet e uma rodela de laranja com gelo, enquanto meditava no fond em que andara a trabalhar durante dias. o Dr. Lecter seguiu o método inspirado de Alexandre Dumas quanto a modelar a matéria­prima. Há três dias, quando regressara dos bosques da caça ao veado, acrescentara à panela um gordo corvo, que andara a empanturrar­se de bagas de junípero. Pequenas penas pretas flutuavam nas águas calmas da baía. As penas principais guardara­as para fabricar palhetas para o seu cravo.

Neste momento, o Dr. Lecter esmagava bagas de junípero e começou a picar cebolinhas numa panela de cobre. Com um impecável nó cirúrgico atou um pedaço de fio à volta de um raminho de ervas aromáticas e deitou uma concha de caldo na panela por cima de tudo.

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o filet que o Dr. Lecter retirou do seu pote de cerâmica apresentava­se escuro de ter estado a marinar e pingava. Secou­o, dobrou o extremo ponteagudo sobre si próprio e atou­o a fim de obter um diâmetro igual a todo o comprimento da carne.

o lume ficou pronto a seu tempo, circunscrito a uma área muito quente e um intervalo entre os carvões. o filet chiava ao fogo e um fumo azul rodopiava pelo jardim, como que movimentando­se ao som da música nos altifalantes do Dr. Lecter. Ele tocava a comovente composição If True Love Reigned, de Henrique VIII.

Pela noite dentro, com os lábios manchados do Chãteau Petrus tinto e um pequeno copo de cristal cheio de um Château d’Yquem cor de mel em cima do castiçal, o Dr. Lecter toca Bach. Na sua mente, Starling corre por entre as folhas. Os veados arrancam na frente dela e sobem o monte junto ao Dr. Lecter, sentado tranquilamente na vertente. Correndo, correndo, chega à segunda variação das Variações de Goldberg com a luz do candelabro elaborando um jogo de luz nas suas mãos em movimento... uma pausa na música, um flash de neve ensanguentada e dentes sujos, desta vez apenas um flash que desaparece com um som distinto, um baque cavo, a seta de uma besta trespassando um crânio... e de novo os bosques agradáveis, o escoar da música e Starling, envolta numa luz polvilhada a ouro desaparece da vista, com o rabo de cavalo abanando qual hastes de veado e toca, ininterruptamente, o movimento até ao final. o silêncio que se seguiu emanava toda a riqueza do Château d’Yquem.

o Dr. Lecter examinou o copo à luz da vela. A chama tremulou por detrás como o sol incidindo na água e o próprio vinho tinha a cor do sol de Inverno na pele de Clarice Starling. o aniversário dela estava próximo, reflectiu o Doutor. Interrogou­se sobre se haveria uma garrafa de Chãteau d’Yquem do seu ano de nascimento. Talvez um presente fosse oportuno para Clarice Starling que, dentro de três semanas, teria vivido tanto como Cristo.

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Capítulo sessenta e trêsNo momento em que o Dr. Lecter observava o vinho à luz da vela, A. Benning, que ficara até tarde no laboratório de ADN examinava o último teste à luz e fitou as linhas electrofóricas pontilhadas a vermelho, azul e amarelo. A amostra era constituída por células epiteliais trazidas do Palazzo Capponi na mala diplomática italiana.

­ Uuuumm uuummm uuummm ­ murmurou e marcou o número de Starling de Quantico.

Foi Eríc Pickford a atender.

­ Posso falar com Clarice Starling, por favor?

­ Ela hoje não vem e sou eu que estou de serviço. Em que posso ajudá­la?

­ Tem um número de bipper para onde a contacte?­ Ela está no outro telefone, o que pretende?

­ Diga­lhe, por favor, que fala Benning do laboratório de ADN. Diga­lhe ainda que o pêlo da escova de dentes e a pestana retirada da seta condizem. É o Doutor Lecter. E peça­lhe que me telefone.

­ Dê­me a sua extensão. Claro que vou dizer­lhe imediatamente. Obrigado.

Starling não estava no outro telefone. Pickford telefonou para casa de Paul KrendIer.

A. Benning ficou um pouco desiludida por Starling não lhe telefonar para o laboratório. A. Benning tinha feito uma série de horas extraordinárias. Foi para casa muito antes de Píckford ter telefonado a Starling para casa.

Mason soube uma hora antes de Starling.

Trocou umas breves palavras com Paul KrendIer, sem se apressar, ao ritmo da respiração. Tinha a mente muito clara.

­ Chegou a altura de afastar Starling antes deles pensarem em usarem­na como isco. É sexta­feira e tem o fim­de­semana. Desencadeie

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o processo, KrendIer. Tire­a daqui, chegou a altura dela ir. E KrendIer?

­ Queria apenas que...

­ Faça­o e quando receber o próximo postal ilustrado com as ilhas Caimãs, já terá um novo número escrito por baixo do selo.­ De acordo. Eu... ­ KrendIer ouviu o sinal de desligado, antes de poder acrescentar algo.

A breve conversa foi extremamente cansativa para Mason. Pouco antes de mergulhar num sono agitado, chamou Cordell e

indicou­lhe: ­ Manda vir os porcos.

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capitulo sessenta e quatroDá mais trabalho fisicamente deslocar um porco semi­selvagem contra vontade dele do que raptar um humano. Os porcos são mais difíceis de agarrar do que uma pessoa, os grandes são mais fortes do que uma pessoa e não se consegue intimidá­los com uma arma. Há ainda as presas a considerar, caso se deseje manter a integridade do abdómen e pernas.

Os javalis com presas desventram instintivamente quando lutam com as espécies verticais, homens e ursos. Por norma, não magoam, mas podem aprender rapidamente a fazê­lo.

Caso se necessite de manter o animal vivo, não é possível aplicar­se choques eléctricos, pois os porcos selvagens são dados a fibrilação coronária mortal.

Carlo Deogracias, o dono dos javalis, tinha a paciência de um crocodilo. Fizera experiências com sedativos para animais, servindo­se da mesma aceprornazina que planeava usar no Dr. Lecter. Agora, sabia exactamente que quantidade era necessária para amansar um javali de cinquenta quilos e os intervalos de dosagem que o manteriam calmo durante catorze horas, sem efeitos secundários duradouros.

Na medida em que a firma Verger era uma importadora e exportadora em larga escala de animais e associada do Departamento da Agricultura em programas experimentais de criação, o caminho estava aberto para os porcos de Mason. o impresso 17­129 do Serviço de Veterinária foi enviado por fax para o Serviço de Inspecção de Saúde de Animais e Plantas em Riverdale, MI), segundo o requerido, juntamente com declarações veterinárias da Sardenha e o pagamento de 39.50 dólares por cinquenta tubos de sémen congelado que Carlo quis trazer.

As licenças relativas aos porcos e sémen chegaram num fax de resposta com a dispensa da costumada quarentena Key West para porcos e uma confirmação de que um inspector a bordo se encarregaria

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dos animais no Aeroporto Internacional de Baltimore­Washington.

Carlo e os seus ajudantes, os irmãos Piero e Tommaso FalciOne juntaram os engradados. Eram engradados óptimos com portas Corrediças de cada lado, com areia e almofadados no interior. No último minuto, lembraram­se de encaixotar igualmente o espelho bordello. Algo na sua moldura rococó e no reflexo dos porcos encantou Mason nas fotografias.

Com todo o cuidado, Carlo dopou dezasseis porcos ­ cinco javalis criados no mesmo curral e onze porcas, uma delas prenha e nenhuma na fase de cio. Quando ficaram inconscientes, procedeu a um minucioso exame físico. Testou com os dedos os dentes aguçados e as pontas das enormes presas. Agarrou­lhes os horríveis focinhos nas mãos, observou os estreitos olhos nublados e aplicou o ouvido para se certificar que os tubos respiratórios estavam desobstruídos e manipulou os pequenos e elegantes tornozelos. Depois, arrastou­os em oleados para os engradados e fez deslizar as portas corrediças.

Os camiões desceram ruidosamente das montanhas Germargentu até Caligari. No aeroporto esperava­os um jacto da Count Flect Airlines, uma companhia aérea especialista no transporte de cavalos de corrida. Este avião levava e trazia habitualmente cavalos americanos para as corridas de Dubai. Transportava agora um cavalo, recolhido em Roma. o cavalo ficou muito agitado ao sentir o cheiro dos porcos selvagens; pôs­se a relinchar e aos coices na sua estreita divisória almofadada, até que a tripulação foi forçada a descarregá­lo e deixá­lo, o que mais tarde custou muito caro a Mason, pois teve de mandar o cavalo por barco até ao dono e pagar indemnização para evitar um processo.

Carlo e os ajudantes viajaram com os suínos na cabine de carga pressurizada. De meia em meia hora enquanto sobrevoavam as águas agitadas, Carlo visitava individualmente os javalis, pousava a mão nos flancos espinhosos e sentia o bater dos corações selvagens.

Mesmo sendo de qualidade e esfaimados, não podia esperar­se que dezasseis porcos consumissem o Dr, Lecter totalmente de uma assentada. Tinham levado um dia a devorar por completo o realizador do filme.

No primeiro dia, Mason queria que o Dr. Lecter os observasse a comerem­lhe os pés. Lecter seria mantido vivo numa calha com sal, de uma noite para a outra, à espera do prato seguinte.

Mason prometera a Carlo uma hora a sós com ele no intervalo. No segundo prato, os javalis podiam comè­lo já oco e consumir a carne do lado do ventre e o rosto no espaço de uma hora, pois o primeiro turno composto pelos porcos maiores e a fêmea prenha retirava­se saciado e entrava a outra vaga, De qualquer maneira, nessa altura já o entretenimento teria acabado.

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capítulo sessenta e cincoBarney nunca estivera no celeiro até então. Entrou por uma porta lateral por baixo das bancadas que rodeavam os três lados de um antigo espaço de mostra. Vazio e silencioso à excepção do arrulhar dos pombos nas traves, o rinque detinha ainda uma aura de expectativa. Atrás do lugar do leiloeiro estendia­se o celeiro aberto. Grandes portas duplas davam para a ala do estábulo e divisão dos acessórios.

Barney ouviu vozes e chamou: ­ Está alguém?

­ Aqui na sala dos acessórios, Barney Entra ­ soou a voz funda de Margot.

o espaço era alegre, enfeitado com arreios e selas de formas graciosas. Cheiro a cabedal. A luz quente do sol entrando por janelas de vidros poeirentos, mesmo sob os beirais, aumentavam o cheiro a cabedal e feno. Um sótão aberto num dos lados dava para o palheiro do celeiro.

Margot estava a arrumar as almofaças e alguns arreios. Tinha o cabelo mais louro do que a palha e os olhos de um azul igual ao do carimbo da inspecção na carne.

­ Olá! ­ cumprimentou Barney da porta. Achou que a sala estava um tanto teatral, preparada para crianças que fossem visitá­la. A nível da altura e da luz na oblíqua proveniente das janelas elevadas assemelhava­se a uma igreja.

­ Olá, Barney Aguenta um bocado e comemos daqui a vinte minutos.

A voz de Judy Ingram chegou das águas­furtadas por cima. Barneeeey. Bom dia. Espera até veres o que temos para o almoço! Margot, queres tentar comer lá fora?

Todos os sábados, Margot e Judy costumavam escovar os diversos tipos de póneis Shetland reservados para serem montados pelas

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crianças que visitavam o estábulo. Compravam sempre um almoço para piquenique.

­ Vamos tentar no lado sul do celeiro, ao sol ­ respondeu Margot.

Todos pareciam demasiado alegres. Uma pessoa com a experiência hospitalar de Barney sabe que a alegria excessiva não é um bom sinal para os que a vivem.

A sala dos acessórios era dominada pela cabeça de um cavalo, colocada na parede um pouco acima da altura de uma pessoa, com o freio e os antolhos, e enfeitado com as cores de corrida dos Vergers.

­ Esse é o Fleet Shadow, que ganhou a corrida de obstáculos em cinquenta e dois, o único campeão que o meu pai teve ­ explicou Margot. ­ Era demasiado vulgar para o mandar embalsamar. Ergueu os olhos na direcção da cabeça do cavalo. ­ Parece­se muito com o Mason, certo?

Havia uma fornalha e o respectivo fole no canto. Margot construíra um pequeno fogo a carvão contra o frio. Ao lume estava uma panela com qualquer coisa que cheirava a sopa.

Numa bancada via­se disposto um conjunto completo de ferramentas de ferreiro. Margot pegou num martelo de ferreiro, de cabo curto e uma cabeça pesada. Com uns braços e peito de tal corpulência, Margot bem podia ter sido um ferreiro ou um ferrador de peitorais especialmente vincados.

­ Atiras­me as mantas cá para cima? ­ perguntou Judy cá para baixo.

Margot agarrou numa trouxa de mantas para as selas lavadas de fresco e com um movimento circular do robusto braço, atirou­a num arco para o sótão aberto.

­ Okay. Agora vou lavar­me e tirar as coisas do jeep. Comemos dentro de quinze minutos, certo? ­ disse Judy, enquanto descia a escada.

Barney, consciente do escrutínio de Margot, não olhou para o traseiro de Judy Havia alguns fardos de palha com mantas de cavalo dobradas em cima, a servir de assentos. Margot e Barney sentaram­se.

­ Não viste os póneis. Foram para o estábulo em Lester ­ replicou Margot.

­ Ouvi os camiões esta manhã. Como assim?

­ Negócios do Mason. ­ Um curto silêncio. Sempre se tinham dado bem com o silêncio, mas não com este tipo de silêncio, ­ Muito bem, Barney Chega­se a um ponto em que não se pode falar mais, excepto se se for fazer qualquer coisa. É aí que estamos?

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­ Como numa relação ou algo assim ­ redarguiu Barney e a infeliz analogia pairou no ar.

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­ Relação ­ repetiu Margot. ­ Tenho muito melhor do que isso para ti. Sabes do que estamos a falar.

­ Digamos que sim ­ anuiu Barney

­ Mas se decidisses que não querias fazer uma coisa e mais tarde ela viesse a acontecer, compreendes que nunca poderias vir falar­me disso? ­ prosseguiu Margot, batendo na palma da mão com o martelo de ferreiro, talvez distraidamente, perscrutando­o com os olhos azuis de carniceiro.

Barney observara algumas expressões na sua época e mantivera­se vivo, lendo­as. Viu que ela estava a falar verdade.

­ Eu sei.

­ o mesmo se aplica se fizermos algo. Serei extremamente generosa uma vez e apenas uma vez. Contudo, seria bastante. Queres saber quanto?

­ Margot, nada vai acontecer durante o meu turno. Nada, enquanto estiver a pagar­me para cuidar dele.

­ Porquê, Barney?

­ Um acordo é um acordo ­ respondeu, sentando­se no fardo e encolhendo os ombros robustos.

­ Chamas a isso um acordo? Um acordo é isto ­ contrapôs Margot. ­ Cinco milhões de dólares, Barney. Os mesmos cinco que Krendier supostamente receberá por trair o FBI, se queres saber.

­ Estamos a falar de tirar sémen suficiente de Mason para engravidar a Judy.

­ Falamos também de algo mais. Sabes que se tirares sémen a Mason e o deixares vivo, ele te apanha, Barney Não conseguirias fugir para longe bastante. mas parar à porra dos porcos.

­ Iria onde?

­ o que é isso, Barney, Semper Fi, como diz no teu braço?­ Quando lhe aceitei o dinheiro, prometi que cuidaria dele. Enquanto trabalhar para ele, não lhe farei mal.

­ Não tens de lhe fazer... fazer nada excepto o exame médico, depois dele estar morto. Não posso tocar­lhe lá. Não, mais uma vez. Podes ter de ajudar­me com o Cordell.

­ Se matas o Mason, só recebes uma fornada ­ lembrou Barney

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­ Recebe­se cinco centímetros cúbicos, mesmo com uma quantidade baixa de esperma, põem­se­lhe dilatadores, era possível tentar cinco vezes com inseminação e podíamos fazê­lo in vítro... a família da Judy é muito fértil.

­ Pensaste em comprar o Cordell?

­ Não. Nunca manteria o acordo. A palavra dele não vale um chavo. Mais tarde ou mais cedo, viria ter comigo. Teria de ir embora.­ Reflectiste muito no assunto.

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­ Exacto. Barney, tens de controlar a sala de enfermagem. Os monitores têm back­up e gravam cada segundo. Há circuito televisivo directo, mas sem gravação. Nós... eu meto a mão por dentro do respirador e imobilizo­lhe o peito. o monitor indica que o respirador continua a trabalhar. Na altura em que a pulsação e a pressão arterial denotarem alteração, entras imediatamente, ele está inconsciente e podes tentar reanimá­lo o tempo que quiseres. A única coisa é que não reparas em mim. Eu apenas continuo a carregar­lhe no peito até ele estar morto, Barney. Assististe a bastantes autópsias, Barney o que é que eles procuram quando suspeitam de asfixia?

­ Hemorragias por detrás das pálpebras.­ Mason não tem pálpebras.

Ela estava bem informada e habituada a comprar tudo e todos. Barney fitou­a no rosto mas sem largar o martelo na sua visão periférica quando respondeu: ­ Não, Margot.

­ Se te deixasse foderes­me, fazia­lo?­ Não.

­ Se tivesse fodido contigo, fazia­lo?­ Não.

­ Se não trabalhasses aqui, se não tivesses nenhuma responsabilidade médica para com ele, fazia­lo?

­ Provavelmente não.

­ É uma questão de ética ou um medo do caraças?­ Não sei.

­ Vamos descobrir. Estás despedido, Barney

Ele esboçou um aceno de cabeça, sem se mostrar particularmente surpreendido.

­ E Barney? ­ Levou um dedo aos lábios. ­ Chiu. Dás­me a tua palavra? Tenho de dizer­te que podia matar­te com aquele antecedente na Califórnia? Não preciso dizer­to, pois não?

­ Não tens de te preocupar ­ retorquiu Barney ­ Sou eu que tenho de me preocupar. Não sei como o Mason se desfaz das pessoas. Talvez elas apenas desapareçam.

­ Também não precisas preocupar­te com isso. Direi a Mason que tiveste hepatite. Não sabes muito sobre o negócio dele, excepto que está a tentar ajudar a lei... e ele sabe que temos o teu antecedente. Vai deixar­te 

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ir.

Barney interrogou­se sobre quem é que o Dr. Lecter achara mais interessante na terapia, Mason Verger ou a irmã.

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capitulo sessenta e seisEra noite quando o longo transporte prateado estacionou junto ao celeiro, em Muskrat Fann. Vinham atrasados e a paciência era pouca.

As disposições no Aeroporto Internacional de Baltimore­Washington tinham corrido bem no início e o inspector do Departamento de Agricultura carimbou o embarque de dezasseis suínos. o inspector possuía um conhecimento de perito sobre suínos e nunca vira nada que se lhes assemelhasse.

Depois, Carlo Deogracias espreitou para dentro do camião. Era um transportador de gado, cheirava como tal, e denotava vestígios de muitos ocupantes anteriores. Carlo não permitiu que descarregassem os seus porcos. o avião esperou, enquanto o irritado motorista, Carlo, e Piero Falcione descobriam outro camião de gado mais adequado a engradados móveis e descobriram um sítio de lavagem de camiões com mangueira a vapor, tendo limpo a vapor toda a área da carga.

É chegada ao portão principal de Muskrat Fann, um último aborrecimento. o guarda verificou a tonelagem do camião e recusou­lhes entrada, citando um limite de peso sobre uma ponte ornamental. Reencaminhou­os para a estrada de serviço através da floresta nacional. Ramos de árvore arranharam o elevado camião, enquanto transpunha os derradeiros três quilómetros.

Carlo gostou do amplo e limpo celeiro em Muskrat Fann. Agradou­lhe o pequeno elevador bifurcado que transportou suavemente os engradados para as divisórias dos póneis.

Quando o motorista do camião de gado se aproximou dos engradados com um furador eléctrico para gado e sugeriu espetar um deles para ver até que ponto estava drogado, Carlo arrancou­lhe o objecto das mãos e assustou­o tanto que ele não se atreveu a pedir a sua devolução.

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Carlo deixaria que os grandes e selvagens suínos recuperassem do torpor na semiobscuridade, só permitindo que saíssem das jaulas quando estivessem sobre as quatro patas e alerta. Receava que os que despertassem primeiro pudessem dar uma dentada num dos que continuavam adormecidos e drogados. Qualquer figura deitada os atraía quando não estavam todos a dormir.

Piero e Tômmaso tinham de tomar cuidados redobrados desde que a vara comera o realizador Oreste e, mais tarde, o assistente congelado. Os homens não podiam estar no curral ou no pasto juntamente com os porcos. Os suínos não ameaçavam nem arreganhavam os dentes como é hábito dos javalis, mas limitavam­se a observar os homens com a terrível obstinação de um suíno e iam­se aproximando de lado até estarem à distância suficiente para atacarem.

Carlo, igualmente obstinado, não descansou até ter percorrido com uma lanterna a sebe que cercava os bosques de Mason, contíguos à grande floresta nacional.

Carlo escavou a terra com a navalha de bolso, examinou os frutos da floresta caídos das árvores e descobriu bolotas. Na noite anterior, ao entrar, ouvira gaios e achara provável que houvesse bolotas. Havia, obviamente, carvalhos por aqui, mas não demasiados. Não queria que os javalis fossem excessivamente independentes a nível da alimentação.

Do lado oposto ao espaço aberto do celeiro, Mason tinha construído uma resistente cerca com um portão holandês semelhante ao que o próprio Carlo tinha na Sardenha. Resguardado por esta cerca, Carlo podia alimentá­los, fazendo passar roupa atufalhada de galinhas mortas, pernas de borrego e vegetais por cima da sebe, até meio.

Estes não estavam amansados, mas não tinham medo do homem. Nem mesmo Carlo podia entrar no curral. Um porco não é semelhante aos outros animais. Há um lampejo de inteligência e um terrível comportamento prático nos porcos. Não ameaçavam nem denotavam a mínima hostilidade. Apenas tinham fome. Não caminhavam, deslocavam­se de lado como que para o atrair, até estarem suficientemente próximos para atacar. Tinham patas ligeiras como um touro Miura, podiam cortar caminho como um cão pastor e os movimentos à volta dele tinham a sinistra qualidade da premeditação.

Nunca tinha havido suínos como estes, maiores do que o javali europeu e tão selvagens quanto ele. Carlo sentia que os criara. Sabia que o que eles fariam, o mal que destruiriam, seria o mérito de que alguma vez precisaria de futuro.

À meia­noite, estavam todos adormecidos no celeiro: Carlo, Piero e Tommaso, dormiam sem sonhos no sótão da divisão dos acessórios, os porcos ressonavam nas jaulas onde os elegantes pezinhos começavam a trotar nos seus sonhos, e um ou dois mexiam­se nos oleados limpos. o crânio do cavalo trotador, Fleet  Shadow, fracamente iluminado pelo lume de carvão na fornalha de ferreiro, vigiava tudo aquilo.

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capitulo sessenta e seteAtacar um agente do Federal Bureau. of Investigation com as provas falsas de Mason era um salto enorme para KrendIer. Deixava­o um tanto sem fôlego. Se a procuradora­geral o apanhasse, esmagá­lo­ia como a uma barata.

Exceptuando o risco pessoal, a questão de arruinar Clarice Starling não custava tanto a KrendIer como se se tratasse de destruir um homem. Um homem tinha uma família a sustentar ­ KrendIer sustentava a sua família, embora fossem um bando de gananciosos e ingratos.

E Starling tinha impreterivelmente de se afastar. Deixada a sós, seguindo as pistas com a perspicácia detalhada e curiosa de uma mulher, Clarice Starling descobriria Hannibal Lecter. Se tal acontecesse, Mason Verger não daria nada a KrendIer.

Quanto mais depressa fosse despojada dos seus recursos e colocada como isco, melhor.

KrendIer já destruíra outras carreiras na sua subida rumo ao poder, primeiro como advogado de acusação activo na política e, mais tarde, na justiça. Sabia por experiência que dar cabo da carreira de uma mulher é mais fácil do que prejudicar um homem. Se uma mulher obtém uma promoção que habitualmente não está reservada às mulheres, a forma mais eficaz é afirmar que a ganhou na cama.

Seria impossível uma acusação deste tipo pegar no caso de Clarice Starling pensou. Na verdade, não lhe ocorria ninguem mais necessitado de uma boa foda vadia. Havia alturas em que lhe passava pela cabeça essa situação abrasiva, enquanto metia o dedo no nariz.

KrendIer seria incapaz de explicar a animosidade que sentia relativamente a Starling. Era uma coisa visceral e pertencia a um lugar de si próprio até onde não conseguia chegar. Um lugar com forros nos maples, uma lâmpada no tecto, maçanetas de portas e manivelas

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de janelas e uma rapariga com a cor de Starling mas não a sua sensatez e as cuecas à volta do tornozelo, perguntando­lhe que raio de problema era o dele, por que não o fazia, se era uma bicha? uma bicha? uma bicha?

Para quem não conhecesse que tipa era Starling, reflectiu KrendIer a actuação dela preto no branco era muito superior a que as promoções indicavam, tinha de confessar Obtivera poucos louvores: acrescentando a necessária gota de veneno à folha dela ao longo dos anos, KrendIer conseguira influenciar suficientemente o conselho de carreiras do FBI, de forma a bloquear uma série de missões que deveriam ir parar­lhe à mão e a personalidade independente e a ausência de papas na língua dela, ajudara a sua causa.

Mason não esperaria pela decisão quanto ao caso do Feliciana Fish Market. E não havia qualquer garantia que Starling saísse culpada da audiência. o tiroteio contra Evelda Drungo e os outros era obviamente o resultado de uma falha de segurança. Foi um milagre que Starling tivesse conseguido salvar o filho da mãe do bebé. Mais um que a assistência tinha de alimentar. Por aí seria difícil apanhar Starling,

Era preferível à maneira de Mason. Seria rápido e ela ficaria longe dali. A altura era propícia.

Um axioma de Washington, comprovado mais vezes do que o teorema de Pitágoras, diz que na presença de oxigénio, um sonoro peido com um culpado óbvio cobrirá muitas pequenas bufas na mesma sala, desde que sejam quase simultâneos.

Logo, o processo de acusação estava a distrair o Departamento de justiça o suficiente para que ele fizesse descarrilar Starling. Mason pretendia alguma cobertura de imprensa para ser vista

pelo Dr. Lecter. No entanto, competia a KrendIer fazer com que a cobertura parecesse um infeliz acaso. Por sorte, aproximava­se uma ocasião que lhe convinha na perfeição: o aniversário do FBI.

KrendIer mantinha uma consciência tranquila com que se absolver. Consolava­o o facto de que se Starling perdesse o emprego, na pior das hipóteses, aquele ninho de fufas onde Starling vivia teria de passar sem a antena parabólica do desporto. Na pior das hipóteses estava a fazer com que uma bala de canhão solta deixasse de rolar e constituir uma ameaça.

Uma bala de canhão borda fora deixaria de fazer oscilar o barco, pensou, satisfeito e reconfortado como se duas metáforas navais constituissem uma equação lógica.

Krendier nutria a mais activa fantasia que a sua imaginação permitia. Nesse momento, para gozo próprio, imaginava Starling velha e tropeçando nas mamas, com as pernas bem torneadas já pesadas e inchadas pelas varizes, subindo e descendo as escadas aos tropeções carregada com a roupa suja, virando a cara às manchas dos lençóis,

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trabalhando para viver numa pensão barata de dormida e pequeno­almoço, propriedade de duas velhas e peludas fufas.

Imaginou o que lhe diria no auge do triunfo.

influenciado pela análise do Dr. Doemling, queria aproximar­se dela depois de a ver desarmada e pronunciar sem mover os lábios, «És velha para continuares a foder com o teu pai, mesmo para sulistas brancas de merda». Repetiu mentalmente a deixa e tomou em consideração apontá­la no bloco notas.

KrendIer tinha as ferramentas, o tempo e o veneno de que precisava para dar cabo da carreira de Starling e, enquanto se preparava para tal, foi extraordinariamente ajudado pelo destino e o correio italiano.

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capítulo sessenta e oito

o Battle Creek Cemetery A saida de Hubbard, Texas, é uma pequena cicatriz no refúgio do centro do 

Texas, em Dezembro. o vento sopra ali neste momento e sempre soprará. Não se pode eliminá­lo.

A nova secção do cemitério tem campas rasas, portanto torna­se fácil aparar a relva. Hoje, um balão em forma de coração prateado paira numa comemoração de aniversário sobre a campa de uma menina. Na parte mais antiga do cemitério, andam sempre a aparar a relva dos caminhos e metem­se por entre as sepulturas com um aparador de relva o máximo de vezes possível. Pedaços de fitas e ramos de flores secas misturam­se no solo. Nas traseiras do cemitério há uma camada de estrume para onde se deitam as flores murchas. Entre o balão dançante em forma de coração e o monte de estrume, uma escavadora está parada, um jovem negro está no controlo da máquina e outro, no chão, protege um fósforo do vento com a mão em concha, enquanto acende um cigarro...

­ Mister Closter, quis que estivesse presente quando fizéssemos isto para poder ver ao que nos opomos. Tenho a certeza de que irá desencorajar os entes queridos de assistirem ­ disse Mr.  Greenlea, director da Agência Funerária Hubbard. ­ Esse caixão... e quero cumprimentá­lo pelo seu gosto... esse caixão fará vista e  é tudo o que necessitam ver. Sinto­me feliz por lhe fazer o desconto  profissional. o meu próprio pai, já falecido, descansa num exactamente igual.

Esboçou um aceno de cabeça ao operador da escavadora e a pá da máquina arrancou um pedaço à campa afundada e cheia de ervas daninhas.

­ Não tem dúvidas sobre a lápide, Mister Closter?

­ Não ­ respondeu o Dr. Lecter. ­ Os filhos querem uma lápide para a mãe e o pai.

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Mantiveram­se em silêncio, com o vento roçando as bainhas das calças, até a escavadora parar a cerca de sessenta centímetros de fundo.­ A partir daqui, será preferível utilizarmos pás ­ replicou Mr. Greenlea, ­ Os dois operários desceram para o buraco e começaram a retirar o lixo com movimentos práticos e ágeis.

­ Cuidado ­ avisou Mr. Greenlea. ­ Não havia um caixão como deve ser. Nada que se parecesse com este.

o caixão barato de cartão prensado tinha, de facto, deixado cair o ocupante. Greenlea mandou que os seus coveiros limpassem o lixo à volta e fizessem deslizar uma lona por baixo do fundo da caixa que ainda estava intacto. o caixão foi erguido neste oleado e depositado nas traseiras de um camião.

Numa mesa armada na garagem da Agência Funerária Hubbard, as peças do caixão afundado foram afastadas e revelaram um esqueleto de tamanho considerável.

o Dr. Lecter examinou­o rapidamente. Uma bala furara a costela por cima do fígado e havia uma fractura e um buraco de bala por cima da têmpora esquerda. o crânio, cheio de musgo e somente exposto em parte, denotava maçãs do rosto proeminentes que ele já vira antes.

­ o solo não conserva muito ­ redarguiu Mr. Greenlea. Pedaços apodrecidos de calças e os farrapos de uma camisa de cowboy cobriam os ossos. As molas de madrepérola dos botões da camisa tinham caído através das costelas. Um chapéu à cowboy, um feltro de três bicos, descansava sobre o peito. Tinha um rasgão na aba e um buraco no cimo.

­ Conhecia o morto? ­ inquiriu o Dr. Lecter.

­ Apenas comprámos esta agência e tomámos conta deste cemitério para alargar o nosso grupo, em mil novecentos e oitenta e nove ­ respondeu Mr. Greenlea. ­ Agora, vivo aqui, mas a sede da nossa firma é em St. Louis. Quer tentar preservar a roupa ou posso arranjar­lhe um fato, mas não me parece...

­ Não ­ interrompeu o Dr. Lecter. ­ Escove os ossos e não deixe roupa à excepção do chapéu, do cinto e das botas. junte os ossinhos das mãos e dos pés e coloque­os na sua melhor mortalha de seda juntamente com o crânio e os ossos compridos. Não é preciso ajeitá­los, basta juntá­los. Guardar a lápide vai compensá­lo por tapar novamente a campa?

­ Sim, caso assine aqui e dou­lhe as respectivas cópias ­ respondeu Mr. Greenlea, amplamente satisfeito devido à venda do caixão. A maioria dos gerentes de agências funerárias que vinham buscar corpos teriam enviado os ossos numa caixa de cartão e vendido um caixão deles à família.

Os documentos de exumação do Dr. Lecter estavam perfeitamente de acordo com o Código 711.004 de 

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Saúde e Segurança do

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Texas, como ele sabia, dado ter sido ele a prepará­los, depois de obter os requisitos e impressos da Texas Association of Counties Quick Reference Law Library

Os dois operários, gratos pela existência da comporta de descarga no camião alugado do Dr. Lecter, fizeram rolar o caixão novo e desceram­no até ficar ao lado do outro único objecto no camião, um guarda­roupa de cartão.

­ É uma belíssima ideia trazer o seu próprio armário. Evita que amarrote roupa de cerimónia dentro de uma mala, certo? ­ retorquiu Greenlea.

Em Dallas, o Doutor tirou de dentro do armário uma caixa de viola onde meteu a sua carga de ossos embrulhados em seda, cabendo o chapéu perfeitamente na secção inferior, a servir de almofada ao crânio. Deixou deslizar o caixão das traseiras do camião no Fish Trap Cemetery e pagou o aluguer no Dallas­Fort Worth Airport, onde enviou a caixa da viola directamente para Filadélfia.

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iv

Ocasiões importantes no calendário do horror

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capitulo sessenta e noveNa segunda­feira, Clarice Starling teve de passar a pente fino as compras exóticas do fim­de­semana e havia falhas no seu sistema que necessitavam a ajuda do seu técnico de informática. Mesmo com listas severamente condensadas de duas ou três das colheitas mais especiais de cinco vinicultores, a redução a duas fontes para o foíe gras americano e cinco charcutarias da especialidade, a quantidade de compras foi surpreendente. Os contactos com lojas de bebidas por intermédio do número de telefone indicado na lista tiveram de ser anotadas à mão.

Baseando­se na identificação do Dr. Lecter no assassínio do caçador de veados de Virginia, Starling reduziu a lista a compras na Costa Leste, com excepção do foie gras Sonoma. Fauchon, em Paris, recusou cooperar. Starling não conseguiu perceber o que Vera dal 1936, em Florença, disse ao telefone e mandou um fax à Questura, pedindo ajuda na eventualidade do Dr. Lecter encomendar trufas brancas.

No final do dia de trabalho na segunda­feira, 17 de Dezembro, Starling deparou com doze hipóteses a averiguar. Tratava­se de combinações de compras por cartão de crédito. Um homem tinha comprado uma caixa de Petrus e um jaguar de supercompressão, com o mesmo cartão. Outro fizera uma encomenda de uma caixa de Bâtard­Montrachet e uma caixa de ostras Gíronde verdes.

Starling comunicou todas as hipóteses para investigação através da linha local de ligação ao Bureau.

Starling e Eric Pickford trabalhavam com turnos separados mas sobrepostos a fim de terem o gabinete sempre a funcionar.

Era o quarto dia de Pickford no emprego e gastou uma parte a programar o seu telefone. Não colocou etiquetas nas teclas. Quando ele foi tomar café, Starling carregou na primeira tecla do telefone dele. Foi Paul KrendIer a atender.

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Desligou e conservou­se sentada, a reflectir. Era a hora de regressar a casa. Fazendo girar lentamente a cadeira, foi observando todos os objectos da «Casa de Hannibal». As radiografias, os livros, arranjo de mesa individual, Depois, espreitou através das cortinas,

o gabinete de Crawford estava aberto e vazio. A camisola que a falecida mulher lhe tricotara, estava pendurada num bengaleiro a um canto. Starling estendeu a mão na direcção da camisola sem lhe tocar, pôs o seu casaco ao ombro e iníciou a longa caminhada até ao carro.

Não voltaria a ver Quantico.

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capitulo setentaNa noite de 17 de Dezembro, a campainha da porta de Clarice Starling tocou. Avistou o carro de um xerife federal atrás do Mustang na rampa de acesso.

o marshal era Bobby que a tinha trazido a casa do hospital, depois do tiroteio no Feliciana.

­ Olá, Starling.

­ Olá, Bobby Entra.

­ Gostaria, mas tenho de dizer­te primeiro uma coisa. Tenho aqui um bilhete que preciso entregar­te.

­ Então, entrega­mo dentro de casa, onde está quente ­ redarguiu Starling, com um aperto no estômago.

o bilhete, com a letra do inspector­geral do Departamento de justiça notificava­a para uma audiência no dia seguinte, 18 de Dezembro, às 9 horas da manhã no edifício J. Edgar Hoover.

­ Queres boleia, amanhã? ­ perguntou o xerife.

Starling abanou a cabeça. ­ Obrigada, Bobby ­ recusou. Levo o meu carro. Bebes um café?

­ Não, obrigado. Lamento, Starling. ­ o marshal desejava obviamente ir embora. Seguiu­se um silêncio incomodativo. ­ A tua orelha está com bom aspecto ­ comentou ele, finalmente.

Starling acenou­lhe, quando ele saiu de marcha atrás do gramado. A carta indicava simplesmente que se apresentasse. Não era indicado um motivo.

Ardelia Mapp, veterana das guerras mortíferas do Bureau, preparou­lhe imediatamente o mais forte chá medicinal da avó, famoso por intensificar o poder da mente. Starling receava sempre o chá, mas não havia forma de fugir­lhe.

Mapp tocou no cabeçalho da carta com a ponta do dedo. ­ o inspector­geral. não tem de dizer­te a porra de nada ­ retorquiu Mapp

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entre os goles. ­ Se o nosso Gabinete de Responsabilidade Profissional tivesse acusações, ou o DOS do GRP possuísse algo contra ti, teriam de comunicar­te, apresentar­te documentos. Teriam de apresentar­te a porra de um 645 ou 644 com as acusações por escrito e, se fossem criminosas, cabia­te o direito de um advogado, tudo a que os criminosos têm direito, certo?

­ Certíssimo.

­ Assim, não sabes nada de nada. o inspector­geral pode assumir qualquer caso.

­ Assumiu este.

­ Por influência do KrendIer. Seja o que for, se decidires ir para a frente com um caso de oportunidades iguais, tenho todos os números de telefone. Agora, ouve­me bem, Starling, tens de dizer­lhes que queres uma gravação para ti. o IG não usa depoimentos assinados. Lomie Gainns meteu­se numa embrulhada com eles por causa disso. Eles gravam o que dizes e por vezes a gravação é mudada. Nunca pões os olhos numa cópia.

Quando Starling telefonou a Jack Crawford, pareceu­lhe que o apanhara a dormir.

­ ignoro do que se trata, Starling ­ garantiu. ­ Vou fazer uns telefonemas. Uma coisa sei e é que estarei lá, amanhã.

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capitulo setenta e umManhã e a gaiola de cimento armado do Edifício Hoover pairando sob um aglomerado de nuvens brancas.

Nesta era de carros armadilhados, a entrada principal e a das traseiras estão fechadas na maior parte dos dias e à volta do edifício há um anel de velhos automóveis do Bureau, como que formando uma barreira de choque improvisada.

A polícia de D.C. segue uma política despreocupada, passando multas a alguns dos carros da barreira dia após dia, e os molhos de papéis acumulam­se sob os limpa­vidros e acabam por ser arrrastados pelo vento ao longo da rua.

Um sem abrigo que se aquecia sobre um gradeamento no passeio saudou Starling e acenou­lhe quando ela passou. Tinha um dos lados da cara laranja devido a uma pincelada de Betadíne aplicada em qualquer urgência de hospital. Estendeu uma chávena, gasta nos bordos. Starling procurou um dólar na bolsa e deu­lhe dois, debruçando­se sobre a corrente de ar quente e fétida e o vapor que saía das grades.

­ Deus te ajude ­ disse.

­ Bem preciso ­ retorquiu Starling. ­ Qualquer coisinha serve. Starling pediu um café duplo no Au Bon Pain situado do lado da Tenth Street do edifício Hoover, como tantas vezes fizera ao longo dos anos. Precisava do café depois de uma noite mal dormida, mas não queria precisar de ir à casa de banho durante a audiência. Optou por beber metade.

Avistou Crawford através da montra e apanhou­o no passeio.­ Quer dividir este café enorme, Mister Crawford? Dão­me outra chávena.

­ É descafeinado?­ Não.

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­ Então prefiro não aceitar. Ficarei com os nervos em franja.­ Parecia emagrecido e velho. Tinha um pingo a cair­lhe do nariz. Mantiveram­se afastados da vaga de gente que se escoava na direcção da entrada lateral da sede do FBI.

­ Ignoro o motivo desta reunião, Starling. Que eu saiba nenhum outro participante no tiroteio do Feliciana foi convocado. Estarei ao seu lado. ­ Starling estendeu­lhe um Meenex e meteram­se no meio dos que chegavam para o turno do dia.

Starling achou que o pessoal administrativo tinha um ar invulgarmente janota.

­ Nonagésimo aniversário do FBI. Bush vem discursar hoje recordou­lhe Crawford.

Havia quatro carrinhas da televisão com satélite na travessa. Uma equipa do WFUL­TV estava instalada no passeio a filmar um jovem de cabeça rapada, que falava para um microfone de mão. Um assistente de produção posicionado em cima da carrinha avistou Starling e Crawford no meio da multidão.

­ É ela, é ela com a gabardina azul­marinho ­ gritou lá para baixo.

­ Lá vamos nós ­ decidiu o Cabeça Rapada. ­ Acção.

A equipa fez um grande plano da multidão para focar o rosto de Starling.

­ Agente especial Starling, pode comentar a investigação do massacre no Feliciana Fish Market? o relatório já foi apresentado? É acusada de ter morto os cinco... ­ Crawford tirou o chapéu que o protegia da chuva e fingindo abrigar os olhos das luzes, conseguiu tapar momentaneamente a lente da câmara. Só a porta de segurança deteve a equipa de televisão.

Os cabrões tinham recebido uma dica.

Uma vez para lá da segurança, pararam no átrio. o nevoeiro lá fora cobrira Starling e Crawford de gotas minúsculas. Crawford pôs­se a secar um comprimido de Ginko­bilobal.

­ Acho que podem ter escolhido este dia por causa de toda a agitação sobre o processo crime e o aniversário. o que quer que pretendam fazer pode ter escapado no meio de toda a confusão.

­ Porquê então a dica à imprensa?

­ Porque nem todos nesta audiência lêem a música pela mesma pauta. Tem dez minutos. Quer pôr um pouco de pó de arroz no nariz?

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1 Ervas naturais. (N. da T)

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capítulo setenta e doisStarling raramente tinha ido ao sétimo andar executivo do Edifício J. Edgar Hoover. Ela e os outros elementos da sua aula de fim de curso haviam­se reunido ali há sete anos para ver o director felicitar Ardelia Mapp como melhor aluna e, uma vez, um assistente do director mandara­a chamar para lhe dar uma medalha como campeã de combate com revólver.

A alcatifa do gabinete do director­adjunto Noonan era muito macia. Na atmosfera agradável dada por sofás de cabedal da sua sala de reuniões pairava o distinto odor a cigarros. Interrogou­se sobre se tinham esmagado as pontas e abanado o ar antes dela entrar.

Três homens levantaram­se quando ela e Crawford entraram na sala e um não o fez. Os que se encontravam de pé eram os ex­patrões de Starling, Clint Pearsall da secção de Washington, Buzzard’s Point; DIR/A Noonan do FBI e um homem alto e ruivo, com um fato de seda crua. Sem sair do lugar, estava Paul KrendIer, do Gabinete do Inspector­Geral. KrendIer rodou a cabeça no alto pescoço como se estivesse a localizá­la pelo cheiro. Quando a enfrentou, ela avistou­lhe as orelhas redondas em simultâneo. Estranhamente, um xerife federal que ela não conhecia, conservava­se a um canto da sala.

o pessoal do FBI e da justiça mantêm por norma uma aparência cuidada, mas estes homens estavam preparados para aparecer na televisão. Starling apercebeu­se de que deveriam estar presentes, mais tarde, nas cerimónias que decorreriam lá em baixo com o ex­presidente Bush. Caso contrário, teria sido convocada ao Departamento de justiça em vez do Edifício Hoover.

KrendIer franziu o sobrolho ao avistar Jack Crawford ao lado de Starling.

­ Não acho que a sua presença tenha sido pedida neste processo, Mister Crawford.

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­ Sou o supervisor imediato da agente especial Starling. o meu lugar é aqui.

­ Não me parece ­ redarguiu KrendIer e virou­se para Noonan ­ Clint Pearsall é o chefe que consta do dossier e ela está apenas em trabalho temporário com Crawford. Penso que a agente Starling deve ser interrogada em particular ­ explicou. ­ Se precisarmos de informações adicionais, podemos pedir ao chefe de secção Crawford que esteja contactável.

­ As suas declarações serão indubitavelmente bem vindas, Jack, depois de ouvirmos o testemunho independente prestado pela... pela agente especial Starling ­ concordou Noonan com um aceno de cabeça. ­ Quero que se mantenha por perto, Jack. Se quiser servir­se da sala de leitura da biblioteca, instale­se à vontade e depois chamá­lo­ei.

Crawford pôs­se de pé. ­ Director Noonan, posso dizer...­ Pode sair, é isso o que pode fazer ­ interferiu KrendIer.­ Calma, por favor. Esta reunião é minha até eu lhe passar a

liderança, Mister KrendIer ­ arguiu Noonan levantando­se. ­ Jack, nós os dois somos antigos. o cavalheiro da justiça ainda foi nomeado há muito pouco tempo para compreender isso. Terá oportunidade de se pronunciar. Agora, deixe­nos sós e Starling falará por ela replicou Noonan que, em seguida, se inclinou para KrendIer, dizendo­lhe algo ao ouvido que o fez corar.

Crawford fitou Starling. Apenas podia lamentar o sucedido.­ Obrigada por ter vindo, sír ­ disse ela.

o xerife abriu a porta a Crawford.

Ao ouvir o ruído da porta a fechar­se, Starling endireitou­se e enfrentou os homens sozinha.

A partir desse momento, o processo continuou com a velocidade de uma amputação no século xviii.

Noonan era a autoridade mais elevada do FBI na sala, mas o inspector­geral podia superá­lo e, aparentemente, o inspector enviara KrendIer como seu plenipotenciário.

­ Quer fazer o favor de se identificar para a gravação? ­ pediu Ncionan, agarrando no dossier que tinha na frente.

­ Agente especial Starling. Há uma gravação, director Noonan? Gostaria muito que assim fosse.

Ao ver que não obtinha resposta, acrescentou: ­ Importa­se que grave o processo? ­ Tirou um pequeno 

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gravador Nagra do saco.­ Por norma, este tipo de reunião preliminar deveria efectuar­se no gabinete do inspector­geral ­ replicou KrendIer. ­ Fazemo­lo aqui porque assim convém a todos devido à cerimónia de hoje. No entanto, continuam a aplicar­se as leis do IG. Trata­se de uma questão de alguma sensibilidade diplomática. Não é possível gravar.

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­ Ponha­a ao corrente das acusações, Mister KrendIer ­ indicou Noonan.

­ É acusada, agente Starling, de divulgação ilegal de matéria importante a um criminoso em fuga ­ obedeceu KrendIer, com uma expressão controlada. ­ Especificando, é acusada de colocar este anúncio em dois jornais italianos, avisando o fugitivo Hannibal Lecter de que corria o risco de ser capturado.

o xerife trouxe a Starling uma página de uma edição esborratada do La Nazione. Ela virou­se para a janela, a fim de ler as linhas assinaladas com um círculo:

A. A. Aaron... Entregue­se às autoridades mais próximas, os inimigos estão perto. Hannah.

­ o que tem a alegar?

­ Não o fiz. É a primeira vez que vejo isto.

­ Como explica o facto de ser usado um nome de código «Hannah» apenas conhecido do Dr. Hannibal Lecter e deste Bureau? o nome de código que Lecter lhe pediu que usasse?

­ Não sei. Quem descobriu isto?

­ o Serviço de Documentação da Langley apanhou­o casualmente quando se encarregava da tradução da cobertura do La Nazione sobre Lecter.

­ Se o código é um segredo dentro do Bureau, como é que o Serviço de Documentação da Langley o reconheceu no jornal? É a CIA a responsável pelo Serviço de Documentação. Perguntemos quem lhes chamou a atenção para «Hanmah».

­ Estou certo que o tradutor conhecia o dossier do caso.

­ A este ponto? Duvido. Perguntemos quem sugeriu que se estivesse à espreita do mesmo. Como é que eu poderia saber que o Dr. Lecter estava em Florença?

­ É a única que descobriu o inquérito por computador da Questura em Florença quando ao dossier VICAP de Lecter ­ contrapôs KrendIer. ­ o inquérito chegou vários dias antes do assassínio de Pazzi. Ignoramos quando o descobriu. Que outro motivo levaria a Questura de Florença a indagar sobre Lecter?

­ Que motivo possível teria para o avisar? Por que é que isto é matéria para o IG, director Noonan? Estou disposta a submeter­me a um exame do detector de mentiras em qualquer altura. Podem trazê­lo a esta sala.

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­ Os italianos registaram um protesto diplomático relativo à tentativa de aviso a um conhecido criminoso do país deles ­ replicou Noonan, esboçando um gesto na direcção do indivíduo ruivo ao seu lado. ­ Este é Mister Montenegro da Embaixada da Itália.

­ Bom dia, sir E como é que os Italianos descobriram? ­ inquiriu Starling. ­ Não por intermédio da Langley

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­ o corpo diplomático coloca a bola de serviço no nosso lado do court ­ interferiu Krendier, antes que Montenegro pudesse abrir a boca. ­ Queremos que o assunto seja resolvido a contento das autoridades italianas, a meu contento e do IG e de ontem para hoje. É melhor para todos, se examinarmos todos os factos juntos. o que se passa entre si e o Dr. Lecter, Miss Starling?

­ Interroguei várias vezes o Dr. Lecter por ordem do chefe de secção Crawford. Desde a fuga do Dr. Lecter, recebi duas cartas dele em sete anos. Ambas estão em vosso poder ­ respondeu Starling.

­ Na verdade, temos mais ­ arguiu Krendier. ­ Recebemos isto, ontem. o que mais pode ter recebido, ignoramos. ­ pôs a mão atrás das costas para pegar numa caixa de cartão, cheia de carimbos e deteriorada pelos Serviços Postais.

KrendIer fingiu saborear as fragâncias que a caixa emanava. Apontou com o dedo a etiqueta de despacho, sem se dar ao trabalho de a mostrar a Starling. ­ Dirigida à sua casa em Arlington, agente especial Starling. Quer dizer­nos o que são estes objectos, Mister Montenegro?

o diplomata italiano pôs­se a remexer nos objectos embrulhados em tecido e os botões de punho reluziam.

­ Sim. Há loções, sopa di mandorla, o famoso sabonete de amêndoas de Santa Maria Novella em Florença, da farmácía de lá e alguns perfumes. o tipo de coisas que as pessoas oferecem quando estão apaixonadas.

­ Foram examinados quanto a toxinas e irritantes, certo Clint?­ inquiriu Noonan ao ex­supervisor de Starling.

Pearsall parecia envergonhado. ­ Sim ­ anuiu. ­ Não têm nada de especial.

­ Um presente de amor ­ exclamou Krendier com alguma satisfação. ­ Agora, temos a nota final. ­ Desdobrou a folha de pergaminho da caixa e ergueu­a, mostrando o rosto de Starling da fotografia do tablóide com o corpo alado de uma leoa. Virou a folha e leu o que estava escrito com a caligrafia elegante do Dr. Lecter: Alguma vez pensou, Claríce, por que é que os Filisteus não a compreendem? Porque é a  resposta ao enigma de Sansão: É o mel da leoa.

­ Il miele dentro Ia leonessa, é bonito ­ comentou Montenegro, memorizando a frase para seu uso pessoal mais tarde.

­ É o que?

o italiano ignorou a pergunta com um gesto, consciente de que Krendier nunca ouviria a música da metáfora do Dr. Lecter, nem sentiria as suas evocações tácteis.

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­ o inspector­geral quer que o assunto seja levado daqui, devido às ramificações internacionais ­ elucidou Krendier. ­ Onde se enquadrará, nas acusações administrativas ou criminosas, depende

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do que descobrirmos na continuação do inquérito. Se forem do âmbito criminal, agente especial Starling, o caso será entregue à Secção de Integridade Pública do Departamento de justiça, e esta Secção levá­lo­á a tribunal. Será informada a devido tempo para se preparar. Director Noonan...

Noonan respirou fundo e empunhou o machado. ­ Clarice Starling, coloco­a em dispensa administrativa até este assunto ser adjudicado. Entregará as armas e a identificação do FBI. o seu acesso limitar­se­á apenas às facilidades federais públicas. Será escoltada até ao exterior do edifício. Entregue, por favor, as armas e o cartão de identificação ao agente especial Pearsall.

Ao aproximar­se da mesa, Starling visualizou os homens por segundos como se fossem alvos de um torneio de tiro. Podia matar os quatro, antes que algum deles tivesse tempo de sacar da arma. o momento passou. Tirou o seu 45, não desviou os olhos de KrendIer quando deixou cair o pente das balas na mão, o pousou em cima da mesa e esvaziou o carregador. KrendIer apanhou­o no ar e apertou­o até os nós dos dedos ficarem brancos.

Seguiram­se o distintivo e o cartão de identificação.

­ Tem uma arma de recurso? ­ perguntou KrendIer. ­ E uma espingarda?

­ Starling? ­ incitou Noonan.

­ Fechadas à chave no meu carro.

­ Importa­se de as recolher quando escoltar Miss Starling ao automóvel, Xerife? ­ retorquiu KrendIer. ­ Tem telemóvel?

­ Sim.

KrendIer ergueu as sobrancelhas num sinal a Noonan.­ Ligue­o ­ indicou Noonan.

­ Quero dizer algo. Julgo ter esse direito.

­ Fale ­ acedeu Noonan, olhando para o relógio.

­ Tudo isto é uma armadilha. Acho que Mason Verger está ele próprio a tentar capturar Lecter com o objectivo de uma vingança pessoal. Acho que não conseguiu apanhá­lo em Florença. Acho que Mister KrendIer pode estar aliado a Verger e deseja que o esforço do FBI contra o Dr. Lecter resulte a favor de Verger. Acho que Paul KrendIer do Departamento de justiça está a ganhar dinheiro com isto e acho que 

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está disposto a destruir­me para tal. Mister KrendIer já se comportou comigo antes de uma maneira imprópria e agora continua a fazê­lo por uma questão de rancor e de interesse pessoal financeiro. Ainda esta semana me chamou uma «cona provinciana». Desafio Mister KrendIer diante deste grupo a utilizar um detector de mentiras comigo nestas questões. Estou à vossa disposição. Podíamos fazê­lo, agora.

­ Agente especial Starling, é bom que não esteja aqui hoje sob juramento... ­ começou KrendIer.

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­ Mas ponha­me sob juramento. Faça­o também.

­ Quero garantir­lhe que se não forem encontradas provas, tem direito a ser readmitida sem agravo ­ replicou KrendIer no seu tom mais amável. ­ Entretanto, receberá o seu salário e beneficiará do seguro e regalias médicas. A dispensa administrativa não é um castigo, agente Starling e use­a em vantagem própria ­ prosseguiu KrendIer, adoptando um tom confidencial. ­ De facto, se quisesse aproveitar este intervalo para tirar essa mancha da face, estou certo que os serviços médicos...

­ Não é uma mancha ­ interrompeu Starling. ­ É pólvora. Não admira que não a identificasse.

o xerife esperava, de mão estendida na sua direcção.

­ Lamento, Starling ­ replicou Clint Pearsall, as mãos cheias com o equipamento dela.

Ela fitou­o e desviou os olhos. Paul KrendIer deslizou até junto dela enquanto os outros homens esperavam que o diplomata, Montenegro, fosse o primeiro a sair da sala. KrendIer começou a pronunciar algo entre dentes, tinha a frase pronta: ­ Starling, és velha para ainda continuares...

­ Desculpem. ­ Era Montenegro. ­ o alto diplomata virara as costas à porta e viera ter com ela.

­ Desculpem ­ repetiu Montenegro, sem deixar de fixar Krendier até ele se afastar, com uma expressão distorcida.

­ Lamento que isto lhe tenha acontecido ­ declarou. ­ Espero que esteja inocente. Prometo que pressionarei a Questura em Florença para descobrirem como o ínserzione, o anúncio, foi pago no La Nazione. Se pensar em algo... uma pista que eu possa seguir na minha área em Itália, diga­me, por favor, e insistirei nela. ­ Montenegro estendeu­lhe um cartão, pequeno, rijo e com letras grossas e pareceu não reparar na mão estendida de KrendIer, quando abandonou a sala.

jornalistas, com ingresso permitido pela porta principal devido à cerimónia de aniversário, aglomeravam­se no pátio. Alguns pareciam saber a quem estar atento.

­ Tem de agarrar­me no braço? ­ perguntou Starling ao xerife.­ Não, madame não tenho ­ respondeu e abriu­lhe caminho pelo meio dos microfones e das perguntas gritadas.

Desta vez o Cabeça Rapada parecia conhecer o tema. A pergunta que lhe gritou foi: ­ É verdade que foi suspensa do caso Hanmibal Lecter? Prevê que lhe sejam dirigidas acusações criminosas? o que tem a dizer às acusações italianas?

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Na garagem, Starling entregou o seu colete antibalas, o capacete, a espingarda e o revólver de reforço. o xerife aguardou enquanto

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ela descarregava o pequeno revólver e o limpava com um pano sujo de óleo.

­ Vi­a disparar em Quantico, agente Starling ­ comentou. Eu próprio cheguei aos quartos­de­final para o cargo de xerife. Vou limpar a sua 45, antes de a guardarmos.

­ Obrigada, xerife.

Ele deixou­se ficar um pouco depois de a ver entrar no carro. Fez qualquer comentário acima do ruído do Mustang. Starling baixou o vidro e ele repetiu:

­ Odeio que isto lhe tenha acontecido.­ Obrigada, sir Agradeço­lhe as palavras.

Um carro de perseguição da imprensa aguardava à saída da garagem. Starling carregou no acelerador do Mustang para o despistar e foi mandada parar por excesso de velocidade a três quarteirões do Edifício J. Edgar Hoover. Fotógrafos dispararam as máquinas enquanto o polícia de patrulha passava a multa.

o director­adjunto Noonan conservava­se sentado à secretária depois da reunião ter acabado, esfregando as marcas que os óculos lhe deixavam nos dois lados do nariz. Livrar­se de Starling não o incomodava muito ­ acreditava que havia uma parte emocional nas mulheres que frequentemente não se encaixava no Bureau. Contudo, magoava­o ver Jack Crawford afastado. Jack fora um dos rapazes. Talvez Jack tivesse um fraco pela jovem Starling, mas essas coisas acontecem ­ a mulher de Jack tinha morrido e isso tudo. Uma vez, Noonan vivera uma semana em que não conseguia tirar os olhos de uma bonita estenógrafa e tivera de se ver livre dela porque lhe causou alguns problemas.

Noonan pôs os óculos e apanhou o elevador para a biblioteca. Encontrou Jack Crawford na área de leitura, numa cadeira e com a cabeça encostada à parede. Noonan julgou que ele adormecera. o rosto de Crawford estava cor de cinza e transpirava. Abriu os olhos e soltou uma exclamação abafada.

­ Jack? ­ Noonan deu­lhe uma palmada no ombro e depois tocou­lhe na face pegajosa. Depois, a voz de Noonan, soando bem alto na biblioteca: ­ Você, bibliotecário, chame os médicos!

Crawford foi levado para a enfermaria do FBI e depois para a Unidade Cardíaca de Cuidados Intensivos do Jefferson Memorial.

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capitulo setenta e trêsKrendIer não podia ter pedido uma melhor cobertura.

o nonagésimo aniversário do FBI coincidiu com uma volta dos jornalistas pelo novo centro de gestão de crise. o telejornal tirou o máximo partido deste invulgar acesso ao Edifício Edgar Hoover, com a C­SPAN a transmitir em directo todas as declarações do ex­presidente Bush juntamente com as do director. A CNN fez excertos dos discursos e os restantes canais fizeram a cobertura para os telejornais da noite. Foi quando os altos dignatários se encontravam no pódio que KrendIer teve o seu momento. o jovem Cabeça Rapada, que estava mais próximo do estrado, fez a pergunta:

­ Mister KrendIer, é verdade que a agente especial Clarice Starling foi suspensa da investigação de Hannibal Lecter?

­ Acho que seria prematuro e injusto para a agente pronunciar­me sobre o assunto nesta altura. Limitar­me­ei a declarar que o gabinete do inspector­geral está a analisar o caso Lecter. Não foram emitidas acusações contra ninguém.

A CNN também apanhou algo no ar: ­ Mister KrendIer, fontes noticiosas italianas afirmam que o Dr. Lecter pode ter recebido indevidamente informações de uma fonte governamental a avisá­lo que fugisse. É esse o fundamento da suspensão da agente especial Starling? É por esse motivo que há o envolvimento do gabinete do inspector­geral em vez do gabinete interno de Responsabilidade Profissional?

­ Não posso fazer comentários sobre fontes noticiosas estrangeiras, Jeff. Apenas posso dizer que o gabinete do IG está a investigar alegações que até agora ainda não foram provadas. Temos tanta responsabilidade para com os nossos dirigentes como frente aos nossos amigos além­mar ­ respondeu KrendIer, agitando o dedo no ar, como um Kenedy ­ o caso Hannibal Lecter encontra­se em boas

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mãos, não só nas mãos de Paul KrendIer, mas de peritos especialistas em todas as matérias do FBI e do Departamento de justiça. Há um projecto em curso que será revelado a seu tempo quando tiver dado frutos.

o politiqueiro alemão e que era senhorio do Dr. Lecter mobilara a casa com um enorme televisor Grundig, tentando apagá­lo no meio da decoração ao colocar uma das suas estatuetas de bronze de Leda e do Cisne em cima do aparelho ultramoderno.

o Dr. Lecter estava a ver um filme chamado Uma Breve História do Tempo sobre o renomado astrofísico Stephen. Hawking e a sua obra. já o vira muitas vezes antes. Esta era a sua parte favorita em que a chávena cai da mesa e se escaqueira no chão.

Hawking, contorcido na sua cadeira de rodas, fala na sua voz gerada por computador:

De onde vem a díferença entre o passado e o futuro? As leis da ciência não diferenciam entre o passado e o  futuro. Contudo, na vida corrente, há uma grande diferença entre o passado e o futuro.

Podem ver uma chávena de chá cair de uma mesa e escaqueirar­se no chão. Contudo, nunca verão os  pedaços da chávena ajuntar­se e a saltarem de volta à mesa.

o filme, rebobinado, mostra a chávena a ficar novamente inteira em cima da mesa. Hawking prossegue:

o aumento da desordem ou entropía é o que distingue o passado do futuro, proporcionando uma direcção ao  tempo.

o Dr. Lecter tinha uma grande admiração pelo trabalho de Hawking e seguia­o o mais de perto que lhe era possível nas publicações de matemática. Sabia que outrora Hawking tinha acreditado que o universo pararia de se expandir e voltaria a retrair­se. Mais tarde, Hawking afirmou que estava enganado.

Lecter era bastante entendido no âmbito da alta matemática, mas Stephen Hawking encontra­se num plano completamente diferente do resto do mundo. Durante anos, Lecter andara às voltas com o problema, desejando muito que Hawking tivesse acertado da primeira vez e que o universo em expansão parasse, a entropia se reestruturasse e Micha, comida, ficasse novamente inteira.

o tempo. o Dr. Lecter parou o vídeo e regressou à informação.

Eventos televisivos e noticiosos relativos ao FBI aparecem diariamente no site público do FBI. o Dr. Lecter visitava o site todos os dias na Internet para se certificar de que ainda utilizavam a sua velha fotografia em Os Dez Mais Procurados. Ficou assim ao corrente do aniversário do FBI com muito tempo para assistir.

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Sentou­se na grande poltrona, de casaco e gravata, e observou KrendIer a mentir. Observou KrendIer, de olhos semicerrados, segurando o balão de brandy sob o nariz e agitando suavemente o conteúdo. Não via aquele rosto pálido, desde que KrendIer estivera de pé, do lado de fora da sua cela, em Menphis, há sete anos, mesmo antes da sua fuga.

No noticiário local de Washington viu Starling a receber uma multa enquanto lhe enfiavam microfones pela janela do Mustang. Agora, no telejornal, Starling era «acusada, de violar a segurança dos EUA» no caso Lecter.

os olhos castanho­avermelhados do Dr. Lecter arregalaram­se ao vê­la e nas profundezas das pupilas voaram centelhas em redor da imagem do rosto dela. Reteve em mente a total e perfeita compostura feminina muito depois dela ter desaparecido do ecrã e premiu­a a uma outra imagem, Mischa, premiu­as até do plasma vermelho daquela fusão, se libertarem centelhas, transportando a imagem unificada para Leste, rumo ao céu nocturno e às estrelas por cima do mar.

Agora, se o universo se contraísse, se o tempo recuasse e as chávenas se unissem, poderia haver um lugar no mundo para Mischa. o lugar mais precioso que o Dr. Lecter conhecia: o lugar de Starling. Mischa poderia ocupar o lugar de Starling no mundo. Se se chegasse aí, se esse tempo voltasse, o desaparecimento de Starling deixaria um lugar para Mischa, tão reluzente e limpo como a banheira de cobre no jardim.

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capitulo setenta e quatro

o Dr. Lecter estacionou a camioneta a um quarteirão do Maryland­Misericordia Hospital e limpou as 

moedas, antes de as meter na ranhura. Vestido com o macacão forrado com que os operários se protegem do frio e um boné de orelhas para se ocultar das câmaras, entrou pela porta principal.

Haviam passado mais de 15 anos desde que o Dr. Lecter estivera no Maryland­Misericordia Hospital, mas a disposição básica parecia não ter mudado. Pôr os olhos neste lugar onde começara a exercer medicina, nada significava para ele. As áreas de segurança do andar superior tinham sido submetidas a uma renovação cosmética, mas estavam praticamente na mesma desde que ali exercera, segundo as plantas do departamento de construção.

Um passe de visitante obtido na recepção deu­lhe acesso aos andares dos pacientes. Percorreu o corredor, lendo os nomes dos doentes e dos médicos escritos nas portas dos quartos. Esta era a unidade de convalescença pós­operatória, para onde vinham os pacientes depois de terem alta dos Cuidados Intensivos a seguir a uma operação cardíaca ou cerebral.

Observando o Dr. Lecter a percorrer o corredor, iria pensar­se que ele lia com muita dificuldade, pois os lábios moviam­se em silêncio e coçava a cabeça de vez em quando como um provinciano. Sentou­se depois na sala de espera de onde podia ver o corredor. Aguardou uma hora e meia entre mulheres de idade que contavam tragédias familiares e suportou o Preço Certo na televisão. Avistou, finalmente, o que lhe interessava, um cirurgião com a bata verde de operar a fazer a ronda sozinho. Deveria ser... o cirurgião ia ver um doente do... Dr. Silvermann. o Dr. Lecter levantou­se e coçou a cabeça. Pegou num jornal amarrotado que estava numa das mesas do fundo e saiu da sala de espera. Havia outro quarto com um doente

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Silvermann duas portas mais abaixo. o Dr. Lecter entrou furtivamente. o quarto estava imerso na semiobscuridade, o doente satisfatoriamente adormecido, com a cabeça e um dos lados da cara todo ligado. No ecrã do monitor um verme de luz avançava firmemente.

o Dr. Lecter desfez­se a toda a pressa do fato de macacão forrado, revelando uma bata de cirurgião. Colocou as protecções dos sapatos, uma touca, máscara e luvas. Tirou do bolso um saco do lixo de plástico e desdobrou­o.

o Dr. Silvermann entrou, falando por cima do ombro para alguém que estava no corredor, Viria alguma enfermeira com ele? Não. o Dr. Lecter pegou no cesto de papéis e pôs­se a despejar o conteúdo para dentro do seu saco do lixo, de costas para a porta.

­ Desculpe, doutor, vou já sair do seu caminho ­ disse o Dr. Lecter.

­ Não tem importância ­ retorquiu o Dr. Silvermann, pegando na prancheta que estava aos pés da cama. ­ Faça o seu trabalho.­ Obrigado ­ agradeceu o Dr. Lecter e atingiu a base do crânio do cirurgião com uma matraca e um simples movimento do pulso, segurando­o com os braços à volta do peito quando ele se afundou.É sempre surpreendente observar o Dr. Lecter a levantar um corpo; tamanho por tamanho tem a força de uma formiga. o Dr. Lecter transportou o Dr. Silvermann para a casa de banho do doente e puxou­lhe as calças para baixo. Sentou o Dr. Silvermann na sanita.

o cirurgião deixou­se ficar com a cabeça pendente sobre os joelhos. o Dr. Lecter ergueu­o o suficiente para lhe examinar as pupilas e retirar os vários cartões de identificação pregados na frente da bata de cirurgião.

Substituiu as credenciais do médico servindo­se do próprio passe de visitante, às avessas. Colocou o estetoscópio do cirurgião à volta do pescoço e os elaborados óculos de aumentar do médico foram postos no alto da cabeça. Enfiou a matraca de cabedal na manga.

Agora, estava pronto para entrar no coração do Maryland­Misericordia.

o hospital segue regras federais muito rígidas quanto à distribuição dos narcóticos. Nos andares dos pacientes, os armários com drogas de cada sala das enfermeiras estão fechados à chave. Para os abrir, são necessárias duas chaves, em poder da enfermeira de serviço e da assistente. Existe um livro de requisições.

Nas suites operatórias, a área mais vigiada do hospital, cada suite recebe os medicamentos para a próxima ministração uns minutos antes da entrada do paciente. As drogas para o anestesista são colocadas próximo da mesa de operações num armário que tem uma parte congelada e uma outra à temperatura 

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ambiente.

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o stock de medicamentos é mantido num dispensário separado

de cirurgia, próximo do vestiário. Contém uma série de preparados que não se encontram no dispensário geral do andar de baixo, os poderosos sedativos e exóticos sedativos­hipnóticos que possibilitam a cirurgia de coração aberto e cirurgia ao cérebro num paciente acordado e consciente.

o dispensário está sempre vigiado durante o dia de trabalho e os armários não se encontram fechados à chave, enquanto o farmacologista está na sala. Numa emergência de cirurgia ao coração, não há tempo para se andar à procura de chave. o Dr. Lecter, de máscara colocada, empurrou as portas giratórias de acesso às suites cirúrgicas.

Num esforço para tornar a sala mais alegre, a cirurgia havia sido pintada com uma combinação de várias cores berrantes que até mesmo os moribundos achariam agressivas. Vários médicos que seguiam na frente do Dr. Lecter assinaram à entrada e seguiram para o vestiário. o Dr. Lecter pegou na prancheta com as assinaturas e movimentou uma caneta sobre a mesma, sem escrever nada.

A escala indicada mencionava a remoção de um tumor no cérebro na Suite B a começar dentro de vinte minutos, a primeira operação do dia. No vestiário, tirou as luvas, meteu­as nos bolsos, lavou­se cuidadosamente até aos cotovelos, secou as mãos, pôspó de talco e voltou a calçar as luvas. No corredor, agora. o dispensário devia ser na porta seguinte, à direita. Não. Uma porta pintada de cor de pêssego com a tabuleta «Geradores de Emergência» e depois as portas duplas da Suite B. Uma enfermeira parou junto ao seu cotovelo.­ Bom dia, doutor.

o Dr. Lecter tossiu por detrás da máscara e murmurou um bom­dia entre dentes. Virou­se com um grunhido para o vestiário, como se se tivesse esquecido de algo. A enfermeira seguiu­o momentaneamente com os olhos e entrou na sala de operações. o Dr. Lecter descalçou as luvas e atirou­as para a lata do lixo. Ninguém estava a prestar atenção. Pegou noutro par. o seu corpo estava ali no vestiário, mas, na verdade, corria ao longo do seu Palácio da Memória, junto ao busto de Plínio e subindo as escadas até ao salão de arquitectura. Numa pequena área bem iluminada, dominada pelo modelo de São Paulo de Christopher Wrenn, as plantas do hospital aguardavam em cima de um estirador. As plantas das suites cirúrgicas do Maryland­Misericordia, linha a linha, do Department de Construção Civil de Baltimore. o dispensário era ali. Não. Os desenhos estavam errados. Os planos deviam ter sido alterados depois das plantas serem arquivadas. Os geradores eram mostrados do lado oposto, no espaço à saída do corredor para a Suite A. Talvez as etiquetas estivessem ao contrário. Tinha de ser. Não podia dar­se ao luxo de investigar.

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o Dr. Lecter saiu do vestiário e seguiu pelo corredor que levava à Suite A. Porta à esquerda. A porta indicava IRM. A seguinte. Era o díspensário. Tinham dividido o espaço no plano entre o laboratório de imagem de ressonância magnética e uma área separada para armazenar os medicamentos.

A pesada porta do díspensário estava aberta e assim mantida com um encosto de porta. o Dr. Lecter esgueirou­se rapidamente para o interior e fechou a porta atrás de si.

Um corpulento farmacologista estava de cócoras a arrumar algo numa prateleira baixa.

­ Posso ajudá­lo, Doutor?­ Sim, por favor.

o jovem ia a levantar­se, mas nunca chegou a consegui­lo. Uma pancada da matraca e o farmacologista. deu um peido ao cair por terra, o Dr. Lecter levantou a fralda da sua bata cirúrgica e enfiou­a sob o macacão que tinha por baixo.

Uma olhadela rápida pelas prateleiras, lendo etiquetas à velocidade de um raio: Ambíen, Amyutal amobarbítal,  hídrato de carbono, Dalmane, Flurazepan, Alcion e metendo dúzias de frascos nos bolsos. Passou ao frigorífico, lendo e examinando, Midazolam, Noctec, Escopolamína, Pentotal, Quazepan, Solzidem.

Em menos de quarenta segundos, o Dr. Lecter estava de volta ao corredor, fechando a porta do dispensário atrás de si.

Voltou a atravessar o vestiário e examinou­se ao espelho por causa de volumes. Sem pressa e passando de novo pelas portas giratórias, com o cartão de identificação deliberadamente ao contrário, a máscara posta e os óculos colocados com as lentes binoculares erguidas, trocando cumprimentos entre dentes com os outros médicos. Descendo no elevador, cada vez mais para baixo, de olhos fixos numa prancheta em que pegara ao acaso.

Os visitantes que entravam podiam ter estranhado vê­lo de máscara até ter descido os degraus e se ter afastado das câmaras de vigilâncía. Os transeuntes podem ter­se interrogado por que é que um médico conduzia uma camioneta tão velha e em mau estado.

Na sala de cirurgia, um anestesista, depois de bater impacientemente na porta do dispensário, encontrou o farmacologista ainda inconsciente e passou mais um quarto de hora antes que se desse pelo desaparecimento das drogas.

Quando o Dr. Silverman recuperou os sentidos, tinha escorregado para o chão, ao lado da sanita, com as calças descidas. Não se recordava de ter entrado ali, nem fazia ideia de onde estava. Pensou que pudesse ter tido um acidente cerebral, possivelmente causado por um esforço feito pelos intestinos. Movimentou­se com muito cuidado receoso de deslocar um coágulo. Deslizou pelo chão, até conseguir

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colocar a mão no corredor. Os exames revelaram uma leve contusão.

o Dr. Lecter fez mais duas paragens antes de regressar a casa. Passou pelos correios nos subúrbios de Baltimore o tempo suficiente para levantar uma encomenda que mandara vir pela Internet de uma agência funerária. Tratava­se de um smoking já preparado com camisa e gravata e a racha nas costas.

Agora, só precisava do vinho, algo verdadeiramente festivo. Para tal, precisaria deslocar­se a Annapolis. Teria sido óptimo poder dispor do jaguar para a viagem.

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capítulo setenta e cincoKrendler estava vestido para fazer jogging ao frio e teve de correr o fecho éclair do fato de treino para não ter demasiado calor quando Eric Pickford lhe telefonou para a sua casa de Georgetown.­ Eric, vai ao café e telefona­me de uma cabine.

­ Desculpe, Mister KrendIer?­ Faz o que te digo.

Krendier tirou a fita da cabeça e as luvas, deixando­as cair em cima do piano, na sala de estar. Foi tocando o tema de Dragnet com um dedo, até ao final da conversa: ­ Starling era uma entusiasta da informática. Ignoramos como pode ter ligado os telefones. Vamos garantir a segurança do governo.

­ Certo, sir.

­ Starling telefonou­me, Mister KrendIer. Queria a planta e as coisas dela ­ aquele estúpido pássaro de indicar o tempo que bebe do copo. Contudo, disse­me algo importante. Disse­me que descontasse o último dígito dos códigos postais das assinaturas de revistas suspeitas se for três ou menos. Afirmou que o Dr. Lecter poderia usar vários sítios postais convenientemente próximos uns dos outros.­ E?

­ Fui bem sucedido. A Revista de Neurofisiologia tem um código postal e a Psysíca Scrípta e ICARUS vão para outro. Distam dezasseis quilómetros. As assinaturas estão em nomes diferentes e são pagas por vales postais.

­ o que é ICARUS?

­ É a Revista Internacional de Estudos do Sistema Solar. Há vinte anos que ele fez a assinatura. As entregas postais são em Baltimore e habitualmente por volta do dia dez de cada mês. Há um minuto atrás, houve mais uma coisa, uma venda de uma garrafa de Cháteau, como se diz, Yuchum?

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­ Sim. Pronuncia­se EEE­Kim. o que houve?

­ Uma luxuosa loja de vinhos em Annapolis. Meti a compra no computador e coincide com a lista de datas importantes de Starling. o programa indicou o ano de nascimento de Starling. É o ano em que fabricaram este vinho, o ano do nascimento dela. o homem pagou trezentos e vinte e cinco dólares em dinheiro e...

­ isso foi antes ou depois de falar com Starling?­ Pouco depois, há um minuto...

­ Então, ela não sabe.­ Não. Devia telefonar...

­ Quer dizer que lhe telefonaram da loja apenas por causa da compra de uma única garrafa?

­ Exacto, sir o dono da loja tem indicação de que só há três garrafas daquelas na Costa Leste. Ele tinha as três registadas. É caso para admirar.

­ Quem a comprou? Que aspecto tinha?

­ Indivíduo branco, estatura média, de barba. Estava muito agasalhado.

­ A loja de vinhos tem uma câmara de segurança?

­ Tem, sír Foi a primeira coisa que perguntei. Informei que mandaríamos alguém buscar a cassete. Ainda não o fiz. o empregado da loja não tinha lido o boletim, mas comunicou ao dono por se tratar de uma compra tão invulgar. o dono saiu apressadamente a tempo de ver o indivíduo ­ julga que era ele ­ afastando­se numa velha camioneta. Cinzenta com um torno atrás. Se é Lecter, acha que ele tentará entregá­la a Starling? É melhor alertá­la.

­ Não ­ contrapôs Krendier. ­ Não lhe digas nada.­ Posso mandar ao VICAP o boletim e o dossier Lecter?

­ Não ­ replicou KrendIer, pensando a toda a velocidade. Há alguma resposta da Questura sobre o computador de Lecter?­ Não, sir.

­ Então, não podes mandar ao VICAP, até termos a certeza de que Lecter não o lê. Pode ter o código de acesso de Pazzi. Ou a própria Starling podia lê­lo e passar­lho de qualquer forma como o fez em Florença.

­ Oh, percebo. o gabinete de Annapolis pode conseguir a cassete.

­  Deixa tudo comigo.

Pickford ditou a morada da loja de vinhos.

­ Continua a investigar as assinaturas ­ ordenou KrendIer. Podes falar das assinaturas a Crawford quando ele voltar ao trabalho. Ele organizará a vigilância do correio depois do dia dez.

KrendIer marcou o número de Mason e iniciou a corrida da sua casa em Georgetown, num ritmo fácil até Rock Creek Park.

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Na obscuridade, apenas a sua fita de cabeça branca Nike e os ténis Nihe e a faixa branca ao longo do fato de treino escuro Nike se distinguiam, como se não houvesse um homem no meio da marca.

Foi uma corrida de meia hora. Ouviu o ruído das pás de um helicóptero no preciso momento em que avistou o terreno de aterragem próximo do Zoo. Conseguiu dobrar­se sob as pás do aparelho e atingir o degrau sem reduzir a marcha. A subida do helicóptero a jacto excitou­o, a cidade, os monumentos iluminados desaparecendo enquanto o aparelho o elevava até às alturas que merecia, até Amapolis rumo à gravação e a Mason.

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capítulo setenta e seis

­ Focas esse foda­se, Cordell? ­ A voz profunda e de rádio de Mason, com as consoantes de «focas» e «foda­

se» sem se perceberem.

KrendIer encontrava­se ao lado de Mason na parte escura do quarto, a melhor para ver o monitor elevado. No calor do quarto de Mason, despira a parte de cima do fato de treino de yuppíe e atara as mangas à cintura, mostrando a T­shírt Princeton. A fita na cabeça e os ténis brilhavam à luz do aquário.

Na opinião de Margot, KrendIer tinha os ombros de uma galinha. Mal se tinham cumprimentado quando ele chegara.

Não havia gravação na câmara de vigilância da loja de bebidas e a época de Natal era agitada. Cordell andava rapidamente com a cassete para diante, através dos clientes que faziam compras. Mason passou o tempo com comentários desagradáveis.

­ o que disse quando entrou na loja de bebidas vestido com o fato de treino e puxou do distintivo, KrendIer? Disse que estava nas Olimpíadas Especiais? ­ Mason tratava­o com muito menos respeito, desde que KrendIer depositava os cheques.

­ Respondi que estava disfarçado ­ disse KrendIer, ignorando o insulto, pois eram os seus interesses que estavam em jogo. Que tipo de cobertura tem agora sobre a Starling?

­ Diz­lhe, Margot ­ redarguiu Mason, que aparentemente desejava poupar o seu próprio e escasso fôlego para insultos.

­ Mandámos vir doze homens da nossa Segurança em Chicago. Estão em Washington. Três grupos, estando um membro de cada um como delegado no estado de Illinois. Se a polícia os apanhar a deter o Doutor Lecter, dizem que o reconheceram, que se trata da prisão de um cidadão e blá­blá­blá. o grupo que o apanhar entrega­o ao Carlo. Voltam a Chicago e é tudo o que sabem.

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A cassete continuava a passar.

­ Um minuto, Cordell... rebobina trinta segundos ­ ordenou Mason. ­ Vejam isto.

A câmara da loja de bebidas abrangia a área desde a porta de entrada à caixa registadora.

Na imagem nublada da cassete sem som, entrou um homem de boné, blusão de cabedal e luvas. Tinha patilhas compridas e usava óculos escuros. Virou­se de costas para a câmara e fechou a porta atrás de si.

o comprador demorou um momento a explicar o que pretendia ao empregado e seguiu o homem, desaparecendo com ele no meio dos expositores de vinho.

Passaram três minutos. Regressaram finalmente ao alcance da câmara. o empregado limpou o pó da garrafa e protegeu­a com uma embalagem almofadada, antes de a meter num saco. o cliente tirou apenas a luva da mão direita e pagou em dinheiro. A boca do funcionário moveu­se, pronunciando um «obrigado» nas costas do homem, quando ele ia a sair.

Uma pausa de uns segundos e o funcionário chamou alguém que a câmara não mostrava. Um homem corpulento desenhou­se no ecrã e precipitou­se para a porta.

É o dono, o tipo que viu a camioneta ­ observou KrendIer. Podes fazer uma cópia desta gravação e aumentar a cabeça do tipo, Cordell?

­ Um segundo, Mister Verger. Ficará desfocado.­ Fá­lo.

­ Ele conservou a luva esquerda calçada ­ replicou Mason.­ Posso ter sido lixado com aquela radiografia que comprei.

­ Pazzi disse que ele tinha operado a mão, não foi? Que retirara o dedo extra? ­ lembrou KrendIer.

­ Pazzi podia ter colocado o próprio dedo por cima da extremidade do outro, já não sei em quem acreditar. Tu viste­o, Margot, o que achas? Era o Lecter?

­ Passaram dezoito anos ­ respondeu Margot. ­ Fiz apenas três sessões com ele e estava sempre de pé atrás da secretária, quando eu entrava, sem nunca dar a volta. Era realmente calmo. Lembro­me da voz, mais do que de qualquer outra coisa.

A voz de Cordell no intercomunicador: ­ Mister Verger. Carlo está aqui.

Carlo cheirava a porcos e a mais. Entrou no quarto segurando o chapéu contra o peito e o cheiro rançoso a javali da cabeça dele fez com que KrendIer expelisse o ar pelo nariz. Como sinal de respeito, o raptor sardenho recolheu inteirinho para dentro da boca o dente de veado que estava a mastigar.

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­ Olha para isto, Carlo. Cordell, rebobina e passa a partir da entrada.

­ É mesmo esse strongo cabrão ­ garantiu Carlo, antes do sujeito no ecrã ter dado quatro passos. ­ Deixou crescer a barba, mas o andar é o dele.

­ Viste­lhe as mãos em Firenze, Carlo.­ si.

­ Cinco dedos ou seis na esquerda?... Cinco.

Hesitaste. Só para pensar como se diz cinque em inglês. São cinco, tenho a certeza.

Mason entreabriu os dentes expostos no único arremesso possível de sorriso. ­ Adoro a ideia. Usa a luva para tentar manter os seis dedos na descrição ­ replicou.

Talvez o mau cheiro de Carlo se tivesse impregnado no aquário através da bomba de ventilação. A moreia veio espreitar e conservou­se cá fora, desenhando o seu infindo oito e mostrando os dentes enquanto respirava.

­ Acho que podemos acabar com isto muito em breve ­ declarou Mason. ­ Tu, Piero e Tôminaso são o meu primeiro grupo. Confio em ti, embora ele te tenha passado a perna em Florença. Quero que mantenhas Clarice Starling sob vigilância no dia anterior ao seu aniversário, no próprio dia e no seguinte. Serás substituído, enquanto ela estiver a dormir, em casa. Vou dar­te um motorista e a carrinha.­ Padrone ­ disse Carlo.

­ Sim?

­ Quero um tempo a sós com o dottore, em memória do meu irmão, Matteo. Disse­me que era possível. ­ Carlo benzeu­se ao pronunciar o nome do homem morto.

­ Compreendo inteiramente os teus sentimentos, Carlo. Tens a minha mais profunda simpatia. Carlo, quero que o Doutor Lecter seja consumido em duas sessões. Na primeira noite, quero que os javalis lhe comam os pés, com ele a observar através das grades. Para isso, quero­o em boa forma. Traz­mo em boa forma. Nada de pancadas na cabeça, nem ossos partidos ou danos nos olhos. Depois pode esperar de uma noite para outra, sem os pés, para que os javalis acabem com ele no dia seguinte. Falarei um bocado com ele e depois podes tê­lo durante uma hora, antes da sessão final. Peço que lhe deixes um olho e fique consciente para que possa vê­los aproximarem­se. Quero que lhes veja os focinhos, quando lhe comerem a cara. Se, digamos, quiseres tirar­lhe a virilidade, é inteiramente contigo, mas quero que aqui o Cordell se encarregue da hemorragia. Quero filmar.

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­ E se ele sangrar até à morte logo da primeira vez, no curral?­ Não sangrará. Nem morrerá de uma noite para a outra. Apenas vai esperar com os pés comidos. Cordell zelará por isso e substituirá os fluidos vitais. Espero que ele se aguente com um intravenoso toda a noite, talvez dois.

­ Ou quatro, se for necessário ­ soou a voz indiferente de Cordell nos altifalantes. ­ Posso fazer­lhe cortes nas pernas.

­ Podes cuspir e mijar no intravenoso, antes de o rolares para dentro do curral ­ disse Mason a Carlo no seu tom de voz mais simpático. ­ Ou vires­te em cima dele, se quiseres.

o rosto de Carlo iluminou­se ante a ideia e depois lembrou­se da presença da robusta signorina e lançou­lhe um olhar culpado de lado. ­ Mille grazie, padrone. Pode ir vê­lo morrer?

­ Não sei, Carlo. o pó do celeiro faz­me mal. Posso assistir pelo vídeo. Podes trazer­me um javali? Quero colocar a mão num deles.­ Aqui a este quarto, padrone?

­ Não. Podem levar­me lá abaixo, por pouco tempo, na unidade de alimentação.

­ Teria de pôr um deles a dormir, padrone ­ replicou Carlo, hesitante.

­ Põe uma das fêmeas. Trá­la até ao relvado diante do elevador. Podes trazer a escavadora sobre a relva.

­ Está a pensar fazer isto com uma carrinha ou uma carrinha e um carro de assalto? ­ inquiriu KrendIer.

­ Carlo?

­ A carrinha chega. Dê­me um ajudante do xerife para conduzir.­ Trouxe algo mais para si ­ informou Krendier. ­ Podemos ter mais luz?

Margot accionou o reóstato e KrendIer pousou a mochila na mesa, ao lado da taça de fruta. Calçou luvas de algodão e tirou do interior o que parecia ser um pequeno ecrã com uma antena e um suporte, juntamente com um cabo exterior e uma bateria recarregável.

­ É difícil vigiar Starling porque ela vive num beco, sem lugar para esconderijos. Contudo, tem de sair... Starling é uma dependente do exercício físico ­ prosseguiu KrendIer. ­ Tem de se inscrever num ginásio particular, pois já não pode utilizar o do FBI. Apanhámo­la estacionada no ginásio na quinta­feira e colocámos um sinal de rádio sob o carro. É um NiCad e recarrega quando o motor está ligado, portanto não o descobrirá por falta de bateria. o software abrange os cinco estados adjacentes. Quem vai trabalhar com esta coisa?

­ Chega cá, Cordell ­ chamou Mason.

Cordell e Margot ajoelharam­se ao lado de KrendIer e Carlo inclinou­se sobre eles, com o chapéu à altura das narinas de ambos.

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­ Veja ­ disse KrendIer, ligando o ecrã. ­ É como um sistema de navegação de um carro, só que indica onde está o carro de Starling. ­ Uma vista da metropolitana Washington surgiu no ecrã.­ Aumente aqui e movimente a área com as setas, percebeu? Um sinal de rádio de Starling e ouvirá um beep. Pode apanhar a origem no ecrã e aumentar. o beep aumenta à medida que se aproximar. Aqui está o bairro de Starling numa escala de mapa. Neste momento não apanha um beep do carro dela, porque estamos fora de alcance. Apanharia se estivessemos em qualquer lugar de Washington or Arlington. Apanhei­o do helicóptero, quando saí. Aqui tem o conversor para aplicar na sua carrinha. Uma coisa. Tem de garantir­me que isto nunca irá parar às mãos erradas. Podia arranjar grandes sarilhos, pois ainda não está comercializado na espionagem. Ou volta para mim, ou vai parar ao fundo do Potomac. Entendido?

­ Entendido, Margot? ­ inquiriu Mason. ­ Tu, Cordell? Chama o Mogli para conduzir e dá­lhe instruções.

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capitulo setenta e seteA beleza da espingarda de pressão de ar residia em poder ser disparada com o cano no interior da carrinha sem ensurdecer ninguém por perto... não havia necessidade de enfiar o cano pela janela, permitindo que o público a visse.

A janela espelhada abria­se uns centímetros e o pequeno projéctil hipodérmico voava, transportando uma enorme carga de acepromazina até à massa musculosa das costas ou nádegas do Dr. Lecter.

Haveria apenas o som produzido pelo gatilho da arma, semelhante ao quebrar de um ramo verde, sem ruído de tiro nem relatório balístico do míssil subsónico que chamasse a atenção.

Da forma como tinham ensaiado, quando o Dr. Lecter começasse a desfalecer, Piero e Tommaso, vestidos de branco, assísti­lo­iam na carrinha, garantindo aos transeuntes que iam levá­lo para o hospital. Tommaso falava melhor inglês, pois estudara a língua no seminário, mas tinha dificuldades com o «h» aspirado.

Mason tinha razão em conceder aos italianos a prioridade de apanharem o Dr. Lecter. Mal­grado haverem falhado em Florença, eram de longe os mais capacitados na caça física ao homem e os mais passíveis de trazerem o Dr. Lecter com vida.

Mason só permitiu mais uma arma na missão além da espingarda com o tranquilizante ­ a do motorista, Johnny Mogli, um ex­ajudante do xerife de Illinois e há muito ao serviço dos Vergers. Mogli cresceu a falar italiano em casa. Era uma pessoa que concordava com tudo o que a vítima dizia antes de a matar.

Carlo e os irmãos Piero e Tommaso tinham a sua rede, o saco com os feijões, o Mace e uma série de outras armadilhas. Seria mais do que suficiente.

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Encontravam­se em posição ao nascer do dia, a cinco quarteirões da casa de Starling em Arlington, estacionados num lugar para deficientes numa rua comercial.

Nesse dia, a carrinha estava assinalada com cartazes aderentes de «Transporte Médico de Cidadãos». Tinha uma etiqueta falsa de deficientes pendurada no espelho retrovisor e uma matrícula falsa de deficientes no pára­choques. No compartimento das luvas havia uma factura de uma recente substituição do pára­choques ­ podiam mencionar uma troca na garagem e gerar a confusão, se o número da etiqueta fosse questionado. Os números de identificação do veículo e o registo eram legítimos. Bem como as notas de cem dólares dobradas no interior dos documentos e destinadas a um suborno.

o monitor, colado no painel de instrumentos e saindo do buraco do isqueiro, brilhava com um mapa da vizinhança de Starling. o mesmo satélite de posicionamento global que agora localizava a posição da carrinha, mostrava também o carro de Starling, um ponto luminoso em frente da casa dela.

Às nove da manhã, Carlo deixou que Piero comesse algo. Às dez e meia foi a vez de Tonmaso. Não queria que tivessem ambos a boca cheia em simultâneo, para a eventualidade de uma longa perseguição a pé. As refeições da tarde também estavam escalonadas. Tommaso remexia a arca frigorífica, procurando uma sanduíche a meio da tarde, quando ouviram o beep.

A cabeça mal­cheirosa de Carlo virou­se na direcção do monitor.­ Ela vai sair ­ disse Mogli e ligou o motor da carrinha. Tômmaso voltou a colocar a tampa na arca frigorífica.

­ Cá vamos nós. Cá vamos nós... Ela vai a subir Tindal e dirige­se à rua principal. ­ Mogli esgueirou­se para o meio do trânsito. Tinha a grande vantagem de poder manter­se a três quarteirões, onde Starling não tinha hipótese de o ver.

Tão pouco Mogli estava em condições de detectar a velha camioneta cinzenta a meter­se no trânsito, à distância de um quarteirão de Starling, com um pinheiro de Natal pendurado na parte das traseiras.

Conduzir o Mustang era um dos poucos prazeres que Starling podia permitir­se. o potente carro, sem tracção era muito útil em ruas escorregadias durante a maior parte do Inverno. Quando as ruas estavam livres, era agradável esticar um pouco o V­8 em segunda e ouvir o ruído do motor.

Mapp, uma coleccionadora de cupões, mandara com Starling um monte de cupões pregados na lista das mercearias. Ela e Starling iriam preparar presunto, um assado e dois pratos no forno. Outras trariam o peru.

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Um jantar de Natal no dia do seu aniversário era a última coisa que interessava a Starling. Tinha de cooperar porque Mapp e um número surpreendente de agentes mulheres, algumas das quais só conhecia superficialmente e não gostava muito, iriam aparecer para a apoiar no infortúnio.

Jack Crawford pesava­lhe na consciência. Não podia visitá­lo nos Cuidados Intensivos, nem podia telefonar­lhe. Deixava­lhe bilhetes na sala das enfermeiras, divertidos retratos de cães com as mensagens mais divertidas que conseguia escrever.

Starling distraia­se no meio da sua infelicidade brincando com o Mustang, metendo mudanças à corredor, servindo­se da compressão do motor para abrandar na curva para o parque de estacionamento do supermercado Publix, aflorando apenas os travões para surgirem as luzes de aviso aos condutores que vinham atrás.

Teve de dar quatro voltas ao parque antes de encontrar um sítio para estacionar vago que estava bloqueado por um carrinho de compras de supermercado vazio. Saiu e tirou­o do caminho. Quando estacionou, já outro cliente aproveitara o carrinho.

Encontrou outro próximo da porta e começou a empurrá­lo na direcção da mercearia.

Mogli viu­a voltar e parar no ecrã do monitor e, à distância, surgiu o grande supermercado Publix à direita.

­ Ela vai à mercearia. ­ Mogli deu a curva para o parque de estacionamento. Levou uns segundos a localizar o carro dela. Avistou uma mulher jovem a empurrar um carrinho de compras para a entrada.

Carlo assestou os binóculos. ­ É Starling ­ garantiu. ­ Parece­se com as fotografias. ­ Estendeu os binóculos a Piero.

­ Gostava de lhe tirar uma fotografia ­ disse Piero. ­ Tenho a minha zoom aqui.

Havia um lugar de estacionamento para deficientes mesmo em frente do carro dela. Mogli aproveitou­o, tomando a dianteira a um grande Líncoln com matrícula de deficiente. o motorista buzinou irritado.

Agora, espreitavam pela janela das traseiras da carrinha para a retaguarda do carro de Starling.

Talvez por estar habituado a observar carros americanos, foi Mogli quem reparou primeiro no velho camião, parado num lugar de estacionamento afastado, próximo do extremo da fila. Só conseguia ver as traseiras cinzentas da camioneta.

Apontou o camião a Carlo. ­ Ele tem um tomo nas traseiras? Foi o que disse o tipo da loja de bebidas? Atesta os binóculos nele. Não consigo ver por causa da porra da árvore. Carlo cè una morsa sul camíone?

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­ Si. Sim, está lá o torno. E ninguém dentro.

­ Temos de vigiá­la dentro da loja? ­ Tommaso não fazia muitas perguntas a Carlo.

­ Não. Se ele o fizer, será aqui ­ respondeu Carlo.

Os produtos do dia­a­dia eram os primeiros. Starling consultou os cupões, escolheu queijo para um prato no forno e alguns pãezinhos. Que raio ter de fazer rolos de carne para esta gente. Tinha chegado ao balcão do talho, quando verificou que esquecera a manteiga. Deixou o carrinho das compras e voltou atrás para ir buscá­la.

Quando regressou ao balcão do talho, o seu carrinho desaparecera. Alguém tirara as poucas compras que tinha lá dentro, colocando­as numa prateleira próxima. Tinham ficado com os cupões e a lista.

­ Raios! ­ praguejou Starling num tom suficientemente alto para ser ouvido pelos clientes mais próximos. Olhou à volta. Ninguém tinha na mão um maço de cupões. Respirou fundo algumas vezes. Podia pôr­se à espreita junto às caixas registadoras e tentar reconhecer a sua lista, se ainda mantivessem os cupões presos. Ora, que se lixassem os dólares de poupança. Não lhe estragariam o dia.

Não havia carrinhos de supermercado livres próximo das caixas registadoras. Starling foi até lá fora buscar um outro ao parque de estacionamento.

­ Ecco! ­ Carlo avistou­o, surgindo de trás dos veículos com o seu passo rápido e ligeiro, o Dr. Hannibal Lecter vestido com um sobretudo de pêlo de camelo e um chapéu de feltro, transportando um presente num acto da máxima extravagância. ­ Madonna! Ele está a aproximar­se do carro dela! ­ Então, o caçador que vivia em Carlo tomou as rédeas da situação e pôs­se a controlar a respiração, preparando­se para o tiro. o dente de veado que estava a mastigar apareceu de relance por entre os dentes.

A janela das traseiras da carrinha não desceu.

­ Metti ín móto! Recua de lado para ele ­ indicou Carlo. o Dr. Lecter parou junto ao lugar dos passageiros do Mustang, depois mudou de opinião e dirigiu­se ao lado do condutor, provavelmente com a intenção de cheirar o volante.

Olhou em volta e tirou o canivete da manga.

A carrinha estava agora de lado. Carlo com a espingarda preparada. Tocou no botão eléctrico da janela. Nada aconteceu.

A voz de Carlo, invulgarmente calmo, agora em acção: ­ Mogli, il finestrino!

Tinha de ser o fecho de segurança das crianças e Mogli tacteou­o. o Dr. Lecter enfiou o canivete na fenda ao lado da janela e destrancou a porta do carro de Starling. Preparou­se para entrar.

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Praguejando, Carlo abriu uma fenda da porta e ergueu a espingarda. Piero deixou­lhe o caminho livre e a carrinha balouçou quando a espingarda emitiu o ruído.

o dardo brilhou à luz e com um pequeno silvo atravessou o colarinho engomado do Dr. Lecter e espetou­se no pescoço. A droga actuou rapidamente, uma dose elevada num lugar crítico. Ele tentou endireitar­se, mas os joelhos cediam. o embrulho caiu­lhe das mãos e rolou para baixo do carro. Conseguiu tirar uma navalha de ponta e mola do bolso e abri­la enquanto se afundava entre a porta e o carro e o tranquilizante lhe reduzia os membros a água. ­ Micha pronunciou quando a visão lhe faltou.

Piero e Tômmaso atiraram­se sobre ele como gatos assanhados, imobilizando­o entre os carros até terem a certeza de que ele estava desmaiado.

Starling, empurrando o segundo carrinho de compras do dia através do parque de estacionamento, ouviu o ruído da espingarda de pressão de ar e reconheceu­o de imediato como a assinatura de um cano... mergulhou por reflexo, enquanto as pessoas à volta dela continuavam a andar imperturbáveis. Difícil dizer de onde viera. Olhou na direcção do seu carro, avistou as pernas de um homem a desaparecerem no interior de uma carrinha e julgou que se tratava de um assalto.

Levou a mão ao lado do corpo onde já não havia arma e pôs­se a correr, ziguezagueando pelo meio dos carros na direcção da carrinha. o Líncoln com o motorista de idade estava de volta e buzinava

para se meter no lugar dos deficientes bloqueado pela carrinha, abafando os gritos de Starling.

­ Alto! Parem! FBI! Parem ou disparo! ­ Talvez conseguisse ver a matrícula.

Piero viu­a aproximar­se e, actuando rapidamente, cortou o pipo da válvula do pneu da frente de Starling do lado do condutor com a faca do Dr. Lecter e mergulhou para dentro da carrinha. A carrinha passou por cima de uma lomba de estacionamento e dirigiu­se à saída. Ela conseguiu ver a chapa de matrícula. Escreveu o número no pó do capot de um carro com o dedo.

Starling tirou as chaves. Ouviu o silvo do ar a sair da válvula quando entrou no carro. Ainda viu o cimo da carrinha rodando na direcção da saída.

Bateu nos vidros da janela do Lincoln, que agora lhe buzinava.­ Tem um telemóvel? FBI, por favor, tem um telemóvel?

­ Segue, Noel ­ disse a mulher que ia no carro, com a mão na perna do condutor e beliscando­o. ­ São sarilhos, é qualquer truque. Não te envolvas. ­ o Lincoln arrancou.

Starling correu para uma cabine telefónica e marcou o número da polícia.

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o ajudante de xerife Mogli conduziu no limite de velocidade durante quinze quarteirões.

Carlo retirou o dardo do pescoço do Dr. Lecter, aliviado ao ver que do buraco não brotava um esguicho de sangue. Havia o hematoma com cerca do tamanho de um cêntimo por baixo da pele. Supostamente, a injecção diluíra­se na massa muscular. o filho da mãe ainda podia morrer, antes que os javalis pudessem comê­lo.

Ninguém falava na carrinha. o silêncio era apenas cortado pela pesada respiração dos homens e o ruído do scanner da polícia debaixo do painel de instrumentos. o Dr. Lecter estava deitado no chão da carrinha, vestido com o seu belo sobretudo, o chapéu caído da cabeça, uma mancha de sangue vivo no colarinho, tão elegante como um faisão no balcão de um talhante.

Mogli meteu por uma garagem de estacionamento e subiu até ao terceiro piso, só parando o tempo suficiente para arrancar os cartazes dos lados da carrinha e mudar as chapas de matrícula.

Não precisava ter­se dado a esse trabalho. Riu intimamente quando o scanner da polícia sintonizou o boletim. A telefonista do 911, confundindo aparentemente a descrição de Starling de uma carrinha cinzenta ou mini­bus» emitiu um boletim para um autocarro Greyhound. Há a acrescentar que o 911 conseguiu apanhar correctamente todos menos um dígito da chapa de matrícula falsa.

­ Tal como em Illinois ­ comentou Mogli.

­ Vi a faca e receei que ele se matasse para se livrar do que o espera ­ confessou Carlo a Piero e Tômmaso. ­ Vai desejar ter cortado as goelas.

Quando Starling verificou os outros pneus, avistou o embrulho no chão, por baixo do carro.

Uma garrafa de 300 dólares de Chãteau d’Yquem e o bilhete, escrito com a caligrafia familiar: «Feliz aniversário, Clarice».

Foi nessa altura que compreendeu a cena a que assistira.

1 Cinzento ­ grey em inglês. (N. da T)

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Capítulo setenta e oitoStarling tinha de memória os números de que precisava. Devia conduzir dez quarteirões até ao seu telefone? Não, de volta à cabine telefónica, arrancando o auscultador peganhento das mãos de uma mulher jovem, pedindo desculpa, metendo moedas, a mulher chamando um guarda da loja de mercearias.

Starling telefonou para a brigada do Gabinete de Operações de Washington, Buzzard’s Point.

Sabiam tudo sobre Starling na brigada onde ela servira tanto tempo e passaram­na ao gabinete de Clint Pearsall, ela procurando mais moedas e falando em simultâneo com o segurança da loja de mercearias e o segurança pedindo­lhe vezes sem conta a identificação. Finalmente, a voz familiar de Pearsall ao telefone.

­ Mister Pearsall, vi três homens, talvez quatro, a raptarem Hannibal Lecter no parque de estacionamento do Publix há uns cinco minutos. Esvaziaram­me o pneu e não pude segui­los.

­ Está a falar do caso do autocarro, do comunicado da polícia?­ Não sei de nenhum autocarro. Esta era uma carrinha cinzenta, com matrícula de deficiente.­ Starling indicou o número.­ Como sabe que era Lecter?

­ Ele... deixou­me um presente. Estava debaixo do meu carro.­ Entendo... ­ Pearsall fez uma pausa e Starling interrompeu o silêncio:

­  Mister Pearsall, sabe bem que Mason Verger se encontra por detrás disto. Ninguém mais o faria. É um sádico e vai torturar o Doutor Lecter até à morte e desejará assistir. Precisamos de uma ordem de apreensão para todos os carros de Verger e conseguir que o procurador­geral de Baltímore passe um mandado de busca a casa dele.

­ Starling... Deus do céu, Starling. Ouça, vou fazer­lhe uma pergunta, uma vez só. Tem a certeza do que viu? Pense um segundo.

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Pense em todas as boas coisas que fez aqui. Pense no juramento que prestou. Não há recuo a partir daqui. o que viu?

o que devo dizer.. Não sou uma histérica? É a primeira coisa que as histéricas dizem. Percebeu nesse momento quanto descaíra na confiança de Pearsall e como a confiança dele era fraca.

­ Vi três homens, talvez quatro, a raptarem um homem no parque de estacionamento do Publix. No local do crime, encontrei um presente do Doutor Hannibal Lecter, uma garrafa de vinho Chãteau d’Yquem do ano do meu aniversário, acompanhada de um bilhete com a sua caligrafia. Descrevi o veículo. Estou a fazer­lhe o relatório a si, Clint Pearsall, comandante estratégico de Buzzard’s Point.

­ Vou accionar um processo de rapto, Starling.

­ Sigo para aí. Podia ser indigitada ajudante e acompanhar a brigada.

­ Não venha. Não poderia deixá­la entrar.

Uma pena que Starling não se tivesse afastado antes da chegada da polícia de Arlington ao parque de estacionamento. Foram precisos quinze minutos para corrigir o boletim sobre o veículo. Uma corpulenta mulher polícia de calças de cabedal recebeu o depoimento de Starling. o livro de multas e a rádio da mulher, o Mace,  arma e algemas ressaltavam em vários ângulos por trás do farto traseiro e as abas do casaco abriam. A agente não conseguia decidir­se se colocar FBI ou «nenhuma» no espaço destinado à profissão. Quando Starling a irritou ao antecipar­lhe as perguntas, a mulher abrandou os esforços. Quando Starling apontou as marcas de lama e pneus de neve nos sítios onde a carrinha passara sobre a lomba do estacionamento, ninguém tinha uma máquina fotográfica. Indicou aos agentes como usarem a dela.

Enquanto repetia as perguntas, Starling remoia incansavelmente em pensamento, Devia ter ido atrás, devia ter  ido atrás. Devia ter­lhe arrancado o rabo do Lincoln e ido atrás.

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Capítulo setenta e noveKrendIer apanhou os primeiros relatos excitados sobre o rapto. Informou­se junto das suas fontes e depois  telefonou a Mason de uma linha segura.

­ Starling assistiu ao rapto. Não tinhamos contado com isso. Está a agitar o Gabinete de Operações de  Washington. A recomendar um mandado de busca à sua casa.

­ Krendier... ­ Mason aguardou o ritmo do respirador ou talvez estivesse exasperado, KrendIer não sabia. ­ Já  apresentei queixas junto das autoridades locais, o xerife e o gabinete do procurador­geral, de que Starling me  incomodava, telefonando­me a altas horas da noite com ameaças incoerentes.

­ E telefonou?

­ Claro que não, mas não pode provar que está inocente, o que enlameia a água. Posso impedir um mandado neste condado e neste Estado. Mas quero que telefone ao procurador­geral daí e o lembre que essa cabra histérica me persegue. Posso encarregar­me das autoridades locais, acredite.

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Capítulo oitentaFinalmente liberta da polícia, Starling mudou o pneu e seguiu para casa, até junto dos seus telefones e computador. Fazia­lhe imensa falta o telemóvel do FBI e ainda não o tinha substituído.

Havia uma mensagem de Mapp no atendedor de chamadas: «Starling, tempera o guisado e mete­o no forno em lume brando. Não juntes ainda os legumes. Lembra­te do que aconteceu da última vez. Estou presa numa maldita audiência até cerca das cinco.»

Starling ligou o computador e tentou chamar o ficheiro do Violence Criminal Apprehension Program sobre Lecter, mas foi­lhe negado não só o acesso ao VICAP, mas a toda a rede de computadores do FBI. Tinha um acesso idêntico ao do mais insignificante agente rural da América.

o telefone tocou.

Era Clint Pearsall. ­ Molestou Mason Verger por telefone, Starling?

­   Nunca, juro.

­ Ele garante que sim. Convidou o xerife a ir até lá e dar uma volta pela propriedade, exigiu­lhe na verdade que fosse e estão neste momento a caminho para inspeccionarem. Portanto, não há mandado nem haverá. Não conseguimos encontrar mais nenhuma testemunha do rapto. Só você.

­ Havia um Lincoln branco com um casal de idade lá dentro. Que tal verificar as compras por cartão de crédito no Publíx pouco antes do acontecimento, Mister Pearsall? Essas vendas têm a indicação da hora.

­ Conseguiremos, mas vai...­... demorar tempo ­ concluiu Starling.­ Starling?

­ Sim, sir?

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HANNIBAL              331

­ Entre nós, mantê­la­ei ao corrente da questão. Mas conserve­se afastada. Não é uma agente da lei enquanto estiver suspensa e não é suposto que possua informações.

­ Eu sei, sir

Para onde se olha, enquanto se toma uma decisão? Não pertencemos a uma cultura meditativa, não erguemos os olhos para os montes. Na maior parte das vezes decidimos as coisas críticas enquanto fixamos o oleado do chão do corredor de uma instituição, ou sussurrando apressadamente numa sala de espera com uma televisão despejando baboseiras aos berros.

Starling, procurando algo, qualquer coisa, atravessou a cozinha e entrou na tranquilidade e ordem do lado do duplex pertencente a Mapp. Observou a fotografia da corajosa e pequena avó de Mapp, a autora do chá. Fixou a apólice de seguro da avó de Mapp emoldurada na parede. o lado de Mapp dava a sensação de que era habitado por Mapp.

Starling regressou ao lado que lhe pertencia. Parecia desabitado. o que é que ela emoldurara? o seu diploma da academia do FBI. Nem uma fotografia dos pais sobrevivera. Estivera sem eles muito tempo e apenas os tinha na memória. Por vezes, no meio dos aromas do pequeno­almoço ou num cheiro, num pedaço de conversa, numa expressão caseira escutada casualmente, sentia­lhes as mãos sobre ela: sentia­as mais fortemente a nível do seu conceito de certo e errado.

Quem era ela, com mil raios? Quem alguma vez lhe dera valor? É uma guerreira, Clarice. Pode ser tão forte quanto o quiser ser. Starling conseguia entender que Mason quisesse matar Hanmibal Lecter. Se ele o tivesse feito com as próprias mãos ou contratado alguém para o fazer, poderia aguentar; Mason tinha um ressentimento. Não conseguia, porém, tolerar a ideia do Dr. Lecter torturado

até à morte; renegava­a tanto como ao abate dos cordeiros e dos cavalos há muito tempo atrás.

É uma guerreira, Clarice.

Quase tão repugnante como o próprio acto era o facto de que Mason o faria com o tácito acordo de homens que haviam jurado cumprir a lei. É assim o mundo.

Com este pensamento, tomou uma simples decisão:

o mundo não será assim em tudo o que estiver ao meu alcance. Viu­se no seu armário, em cima de um banco, estendendo a mão até ao cimo.

Trouxe para baixo a caixa que o advogado de John Brigham lhe entregara no Outono. Parecia ter decorrido uma eternidade.

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Há muita tradição e mística no legado de armas pessoais a uma camarada de profissão sobrevivente. Relaciona­se com uma continuidade de valores para lá da mortalidade individual.

As pessoas que vivem numa segurança proporcionada por outros podem ter dificuldade em compreender isto.

A caixa em que vieram as armas de John Brigham foi ela própria um presente. Devia tê­las comprado no Oriente, quando era fuzileiro. Uma caixa de mogno com a tampa incrustrada de pérolas. As armas eram puras Brigham, usadas, mantidas e imaculadamente limpas. Um Colt semi­automático L9LLAI de calibre 45, uma versão reduzida do 45 para transporte camuflado, um punhal de enfiar na bota com um gume de serrilha. Starling tinha o seu próprio estojo de cabedal. o velho distintivo de John Brighan do FBI estava montado numa placa de mogno. o distintivo do DEAL estava solto na caixa.

Starling arrancou o distintivo do FBI da placa e meteu­o no bolso. o revóver de calibre 45 desapareceu no seu coldre Yaqui por detrás da anca, tapado pelo casaco.

o 45 mais pequeno foi metido junto a um dos tornozelos e o punhal no outro, por dentro das botas. Retirou o diploma da moldura e dobrou­o de forma a caber no bolso. No escuro, alguém poderia confundi­lo com um mandado. Enquanto amachucava o grosso papel sabia que não estava a ser ela própria e sentiu­se contente.

Mais três minutos ao computador. Foi ao site dos mapas, e imprimiu um mapa em larga escala da Muskrat Farm e da Floresta Nacional à volta. Observou por momentos o reino da carne de Mason e traçou os limites com o dedo.

Os grandes tubos de escape do Mustang dobraram a relva quando arrancou do seu acesso para fazer uma visita a Mason Verger.

Drugs Enforcement Administration. (N. da T)

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Capítulo oitenta e umUm silêncio pairando sobre Muskrat Farm semelhante à calma do antigo sabbath. Mason excitado e extremamente orgulhoso de poder consumar o acto. No íntimo, comparava a sua proeza à descoberta da rádio.

o texto ilustrado de ciências de Mason era o que melhor se recordava dos seus livros de escola; era o único livro com altura suficiente para lhe permitir que se masturbasse na aula. Observava frequentemente uma ilustração de Madame Curie enquanto o fazia e pensava nela agora e nas toneladas de uraninite que ela queimou para obter o rádio. Os esforços dela assemelhavam­se muito aos seus, pensou.

Mason imaginou o Dr. Lecter, o produto de toda a sua busca e gastos, reluzindo no escuro como o frasco no laboratório de Madame Curie. Imaginou os javalis que o comeriam, indo depois dormir para os bosques, de barrigas luzidias como lâmpadas.

Era sexta­feira à noite, quase escuro. Os grupos de manutenção tinham ido embora. Nenhum dos operários assistira à chegada da carrinha, pois esta não atravessara o portão principal, mas viera pela estrada lateral ao longo da Floresta Nacional que servia de caminho de serviço de Mason. o xerife e o seu grupo tinham finalizado a sua busca superficial e há muito que estavam bem longe quando a carrinha chegou ao celeiro. Agora, o portão principal estava vigiado e somente uma equipa de confiança se mantinha em Muskrat.

Cordell estava no seu posto na sala de recreio... o substituto da noite de Cordell chegaria à meia­noite. Margot e o ajudante Mogli, que ainda não tirara o distintivo com que iludira o xerife, estavam junto de Mason, e o grupo de ­raptores profissionais encontrava­se ocupado no celeiro.

No final de domingo tudo estaria terminado, as provas queimadas ou ruminando nas entranhas dos dezasseis suínos. Mason pensou

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que poderia dar à moreia qualquer guloseima do Dr. Lecter, o nariz talvez. Depois, nos anos vindouros, Mason poderia observar a feroz fita, desenhando o seu eterno oito, e saber que o sinal de infinito que ela desenhava significava Lecter morto para sempre, morto para sempre.

Por outro lado, Mason sabia que é perigoso conseguir­se exactamente o que se deseja. o que faria depois de ter morto o Dr. Lecter? Podia destruir alguns lares de pais adoptivos e atormentar algumas crianças. Podia beber Martinis feitos de lágrimas. Mas de onde viria a diversão porca?

Que estúpido seria em arruinar este êxtase com lágrimas sobre o futuro. Aguardou o spray encostado ao olho, aguardou que o olho arregalado se desumificase, depois exalou a respiração para um tubo: sempre que quisesse podia ligar o vídeo e ver o seu troféu...

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capitulo oitenta e dois

o cheiro de uma fogueira a carvão na divisão de acessórios do celeiro de Mason e os cheiros residentes de 

animais e homens. A luz do fogo incidindo no enorme crânio do cavalo de trote Fleet Shadow, tão vazio como Providence, observando tudo com anteolhos.

Carvões incandescentes na fornalha do ferreiro chispam e reluzem ao ritmo do silvo dos foles, enquanto Carlo aquece uma barra de ferro, já em brasa.

o Dr. Hannibal Lecter está pendurado na parede por baixo do crânio do cavalo, semelhante a uma terrível peça de altar. Tem os braços esticados de cada lado dos ombros, atado com uma corda a um balancim, uma cruzeta de madeira de carvalho retirada da carroça dos póneis. A cruzeta está colocada como uma canga nas costas do Doutor e presa à parede com uma grilheta fabricada por Carlo. As pernas não tocam no chão. As pernas estão atadas por cima das calças, lembrando cordéis à volta de um assado, com nós a espaços. Não foram usadas correntes ou algemas... nada de metal que possa danificar os dentes dos javalis e desencorajá­los.

Quando o ferro em cima da fornalha atinge o branco, Carlo trá­lo até à bigorna com as tenazes e balança o martelo, malhando­o e moldando­o numa grilheta, enquanto chispas incandescentes voam pelo escuro, roçando­lhe o peito e roçando a figura pendurada do Dr. Hannibal Lecter.

A câmara de televisão de Mason, bizarra no meio das velhas ferramentas, espreita o Dr. Lecter do seu tripé metálico. Na bancada está um monitor, agora escuro.

Carlo volta a malhar a grilheta de ferro e precipita­se com ela lá para fora para a prender à empilhadeira, enquanto ainda está incandescente e flexível. o martelo ecoa na altura imensa do celeiro, o brilho e o eco, BANG­bang, BANG­bang.

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Um guincho arranhado do sótão aberto quando Piero sintoniza a transmissão de um jogo de futebol em onda curta. A sua equipa de Cagliari está a defrontar o odiado Juventus em Roma.

Tômmaso está sentado numa cadeira de verga, com a espingarda do tranquilizante encostada à parede, ao lado dele. Os olhos escuros de padre nunca abandonam o rosto do Dr. Lecter.

Tommaso detecta uma mudança na imobilidade do homem atado. É uma mudança subtil, da inconsciência para um invulgar autodomínio, talvez não mais que uma diferença do som da respiração.

Tommaso levanta­se da cadeira e grita para o celeiro:­ Si sta sveglíando.

Carlo regressa à divisão dos acessórios, fazendo rodar o dente de veado de um lado para o outro na boca. Transporta um par de calças atulhadas de fruta, legumes e galinhas. Esfrega as calças contra o corpo do Dr. Lecter e debaixo dos braços.

Mantendo a mão cuidadosamente afastada da cara, agarra no cabelo do Dr. Lecter e ergue­lhe a cabeça.

­ Buona sera, Dottore.

Um estalido no altifalante do monitor de televisão. As luzes do monitor e surge o rosto de Mason...

­ Acende a luz por cima da câmara ­ ordenou Mason. ­ Boa noite, Dr. Lecter.

o Doutor abriu os olhos pela primeira vez.

Carlo teve a sensação de que os olhos do demónio deitavam chispas, mas podia ter sido apenas o reflexo das chamas. Benzeu­se contra o olho do Diabo.

­ Mason ­ dirigiu­se o Doutor à câmara. Por detrás de Mason, Lecter avistava a silhueta de Margot, recortada a escuro junto ao aquário. ­ Boa noite, Margot ­ acrescentou num tom cortês. Sinto­me satisfeito por voltar a vè­la. ­ Pela clareza do discurso, há algum tempo que o Dr. Lecter podia estar acordado.

­ Doutor Lecter ­ soou a voz rouca de Margot.

Tommaso descobriu o reflector de imagem por cima da câmara e ligou­o.

A luz intensa cegou­os a todos pelo espaço de um segundo.

Mason, com as suas belas modulações radiofónicas: ­ Doutor, dentro de vinte minutos vamos dar aos javalis o seu primeiro prato, que será os seus pés. Depois teremos uma pequena festa do pijama, você e eu. Nessa altura, pode vestir calções. Cordell vai mantê­lo vivo durante muito tempo...

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Mason continuou a falar e Margot inclinou­se para diante, a fim de observar a cena no celeiro.

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HANNIBAL               337

o Dr. Lecter fixou o monitor para ter a certeza de que Margot

o observava. Depois sussurrou a Carlo, com a voz metálica soando, premente, ao ouvido do raptor:

­ Nesta altura o teu irmão Matteo deve cheirar pior do que tu. Cagou­se quando o esfolei.

Carlo levou a mão ao bolso traseiro das calças de onde tirou o aguilhão eléctrico para o gado. À luz intensa da câmara de televisão, fê­lo zunir junto à cabeça do Dr. Lecter. Agarrando os cabelos do Doutor com uma das mãos, premiu o botão do cabo, aproximando o aguilhão da cara do Dr. Lecter enquanto a corrente de alta voltagem passava numa linha viciosa entre os eléctrodos do extremo.

­ Que se foda a tua mãe ­ insultou e aproximou­a em arco na vista do Dr. Lecter.

o Dr. Lecter não emitiu um único som ­ o som veio do altifalante, com Mason rosnando tanto quanto lhe permitia a respiração e Tômmaso esforçou­se por afastar Carlo. Piero, desceu do sótão para vir ajudar. Sentaram Carlo na cadeira de verga. E prenderam­no.

­ Se o cegares, acabou­se o dinheiro ­ gritaram­lhe aos dois ouvidos e em simultâneo.

o Dr Lecter ajustou as sombras do seu Palácio da Memória para minorar o horrível clarão. Aaaahhhh. Encostou a cara  aoflanco de mármorefrio de Vénus.

o Dr. Lecter virou o rosto totalmente para a câmara e pronunciou num tom claro: ­ Não aceito o chocolate, Mason.

­ o filho da mãe é doido. Bom, já sabíamos que era doido retorquiu o ajudante de xerife Mogli. ­ Mas Carlo também é.

­ Desça até lá abaixo e separe­os ­ ordenou Mason.

­ De certeza que não estão armados? ­ retorquiu Mogli.­ Foi contratado para ser duro, certo? Não, não estão. Só têm a arma com o tranquilizante.

­ Deixa­me ser eu ­ interferiu Margot. ­ Vou impedir que comecem qualquer treta de machos entre eles. Os italianos respeitam as mães ­ E Carlo sabe que sou eu que lido com o dinheiro.

­ Avancem com a câmara e mostrem­me os javalis ­ disse Mason. ­ o jantar é às oito!

­ Não tenho de assistir! ­ redarguiu Margot.­ Tens, sim ­ contrapôs Mason.

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capitulo oitenta e trêsMargot respirou fundo do lado de fora do celeiro. Se estava disposta a matá­lo, tinha de ser capaz de o olhar. Sentiu o cheiro de Carlo antes mesmo de abrir a porta da divisão dos acessórios. Piero e Tommaso estavam posicionados de cada lado de Lecter. De frente para Carlo, sentado na cadeira.

­ Buona sera, signori ­ saudou Margot. ­ Os seus amigos têm razão, Carlo. Se dá cabo dele agora, não há dinheiro. E saiu­se tão bem até aqui.

Os olhos de Carlo não se desviaram um só momento do rosto do Dr. Lecter.

Margot tirou um telemóvel do bolso. Carregou algumas teclas no mostrador iluminado e estendeu­o a Carlo. ­ Pegue­lhe. ­ Segurou­o na linha de visão dele. ­ Leia.

o marcador automático indicava «Banco Steuben».

­ É o seu Banco em Cagliari, Signore Deogracias. Amanhã de manhã, quando isto acabar, quando o tiver obrigado a pagar pelo seu corajoso irmão, telefonarei para este número, indicarei o meu código ao seu banqueiro e digo: «Dê ao Signore Deogracias o resto do dinheiro que tem guardado para ele». o seu banqueiro dar­lhe­á a confirmação por telefone. Amanhã à noite, estará no ar, a caminho de casa, um homem rico. A família de Matteo também ficará rica. Pode levar­lhes os colhões do Doutor num saco de fecho de correr para os consolar. Contudo, se o Doutor Lecter não assistir à sua própria morte, se não vir os javalis a aproximarem­se para lhe comerem a cara, nada recebe. Seja um homem, Carlo. Vá buscar os seus javalis. Eu fico sentada junto do filho da mãe. Dentro de meia hora, pode ouvi­lo gritar, enquanto lhe comem os pés. ­ Carlo atirou a cabeça para trás e respirou fundo. ­ Piero, andiamo! Tu, Tommaso, rímani.

Tommaso ocupou o seu lugar na cadeira de verga junto à porta.

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­ Tenho tudo sob controlo, Mason ­ falou Margot para a câmara.­ Quero levar o nariz dele comigo para a casa. Diz a Carlo ­

replicou Mason. ­ o ecrã apagou­se. Deslocar­se para fora do quarto constituía um imenso esforço para Mason e para as pessoas que o rodeavam, exigindo a ligação dos tubos a recipientes na maca de rodas e a mudança do respirador habitual para um conjunto de corrente alternativa.

Margot perscrutou o rosto do Dr. Lecter. o olho atingido estava fechado entre as queimaduras pretas que os eléctrodos haviam deixado em cada extremo da sobrancelha.

o Dr. Lecter abriu o olho que não fora afectado. Conseguia manter a sensação refrescante do flanco de mármore de Vénus no seu rosto.­ Gosto do cheiro desse bálsamo. Cheira a fresco e a limão retorquiu o Dr. Lecter. ­ Obrigado por ter vindo, Margot.

­ Foi exactamente isso o que me disse quando a matrona me introduziu no seu gabinete no primeiro dia, Quando estavam a fazer a pré­sentença de Mason na primeira vez.

­ Foi o que disse? ­ Tendo acabado de regressar do Palácio da Memória, onde relera as suas entrevistas com Margot, sabia que era assim.

­ Sim. Eu estava a chorar, receosa de lhe falar de Mason e de mim. Também tinha medo de me sentar. Mas nunca pediu que me sentasse... sabia que eu tinha pontos, certo? Fomos até ao jardim. Recorda­se do que me disse?

Não tinha mais culpa do que lhe aconteceu.­­­

... do que se tivesse sido mordida no traseiro por um cão raivoso ­ foi o que me disse. Facilitou­me as coisas nessa altura e durante as outras visitas também e senti­me grata durante algum tempo.­ Que mais lhe disse?

­ Disse que era muito mais estranho do que eu alguma vez o seria ­ redarguiu. ­ Disse que nada havia de mal em ser estranho.­ Se tentar, pode lembrar­se de tudo o que dissemos. Lembre­se...­ Por favor, não mo peça agora. ­ Saíram­lhe as palavras. Não tencionava pronunciá­las daquela maneira.

o Dr. Lecter mexeu­se um pouco e as cordas rangeram. Tommaso levantou­se e veio verificar os nós. ­  

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Attenzione alla bocca, signorina. Cuidado com a boca.

Ignorava se Tommaso, se referia à boca do Dr. Lecter ou às palavras dele.

­ Margot, passou muito tempo desde que a tratei, mas quero falar­lhe da sua história clínica, apenas por um momento, em privado. ­ Virou o olho bom na direcção de Tommaso.

Margot reflectiu um instante. ­ Tommaso, pode deixar­nos sós por um momento.

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­ Não. Lamento, signorína, mas posso ficar lá fora com a porta aberta. ­ Tommaso saiu, levando a espingarda, para o celeiro e ficou a observar o Dr. Lecter à distância.

­ Nunca a colocaria numa situação incómoda, suplicando­lhe, Margot. Tenho interesse em saber por que é que está a fazer isto. Diz­me? Começou a aceitar o chocolate, como Mason gosta de se expressar, depois de o ter combatido tanto tempo? Não precisamos de fingir que está a vingar o rosto de Mason.

Ela contou­lhe. Sobre Judy, sobre desejar o bebé. Levou­lhe menos de três minutos; ficou surpreendida ante a facilidade com que os seus problemas se resumiam.

Um ruído à distância, um guincho e um grito abafado. Lá fora no celeiro, encostado à cerca que construíra do lado aberto do celeiro, Carlo andava às voltas com o gravador, preparando­se para chamar os javalis do pasto arborizado com gravações de gritos de angústia das vítimas há muito mortas ou resgatadas.

Se o Dr. Lecter ouviu, não o demonstrou. ­ Margot, acha que Mason lhe vai dar o que prometeu? Está a suplicar a Mason. Suplicar ajudou alguma coisa quando ele a rasgou? É o mesmo que aceitar o chocolate e deixar que ele faça o que quer. Contudo, ele fará com que a Judy beba o leite. E ela não está habituada.

Margot não respondeu, mas pôs uma expressão sombria.

­ Sabe o que aconteceria se, em vez de rastejar até Mason, lhe estimulasse a glande da próstata com o aguilhão para o gado do Carlo? Está a vê­lo ali na banca?

Margot fez menção de se levantar.

­ Ouça­me bem, sibilou o Doutor. ­ Mason irá recusar. Sabe que terá de o matar, sabe­o há vinte anos. Sabe­o desde que ele lhe disse que mordesse a almofada e não fizesse tanto barulho.

­ Está a dizer que o faria por mim? Nunca confiaria em si.­ Não, claro que não. Mas podia confiar em que nunca negaria tê­lo feito. Seria, de facto, mais terapêutico para si matá­lo com as suas próprias mãos. Lembre­se que foi o que lhe aconselhei quando era uma criança.

­ «Espere até poder fazê­lo», disse­me. E senti­me um pouco confortada.

­ Profissionalmente, é o tipo de catarse que tinha de aconselhar. Agora, tem idade suficiente. E que diferença me fará mais uma acusação de assassínio? Sabe que terá de o matar. E quando o fizer, a lei seguirá o dinheiro ­ que a levará a si e ao bebé. Sou o outro único suspeito de que dispõe, Margot. Se eu morrer antes de Mason, quem seria o suspeito? Pode fazê­lo quando lhe convier e escrever­lhe­ei uma carta a vangloriar­me do prazer que tive em matá­lo.

­ Não, Doutor Lecter. Lamento, mas é tarde de mais. Tomei as

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minhas disposições. ­ Fixou­o bem de frente com os olhos azuis claros de carniceiro. ­ Posso fazer isto e depois dormir e sabe que estou a falar verdade.

­ Sim, sei que pode. Foi algo que sempre me agradou em si. É muito mais interessante, mais... capacitada do que o seu irmão. Levantou­se, disposta a ir embora. ­ Desculpe se é que vale a pena, Doutor Lecter.

Antes dela chegar à porta, ele perguntou: ­ Margot, quando é que a Judy volta a estar no período de ovulação?

­ o quê? Dentro de dois dias, acho.

­ Tem tudo o que necessita? Extensores, equipamento de congelação?

­ Tenho todo o equipamento de uma clínica de fertilização.­ Faça­me uma coisa.

­ Sim?

­ Insulte­me e arranque­me um bocado de cabelo, mais para trás, se não se importa. Fique com um bocado de pele na mão. Segure­a na mão, enquanto volta para casa. Pense em colocá­la na mão de Mason. Depois dele estar morto.

­ Quando chegar a casa, peça o que deseja a Mason. Veja o que ele responde. Entregou­me e a sua parte do negócio está finalizada. Segure o cabelo na mão e peça­lhe o que deseja. Veja o que ele responde. Quando ele se rir na sua cara, volte aqui. Basta­lhe pegar na espingarda com o tranquilizante e disparar contra o que está atrás de si. Ou bater­lhe com o martelo. Ele tem uma navalha de bolso. Corte­me as cordas num dos braços e dê­me a navalha. E vá­se embora. Encarrego­me do resto.

­ Não.­ Margot?

Ela pousou a mão na porta, preparada para um desafio.­ Ainda consegue partir uma noz?

Ela meteu a mão no bolso, de onde tirou duas. Os músculos do antebraço retesaram­se e as nozes estalaram.

­ Excelente! ­ elogiou o Doutor com uma pequena risada. Pode oferecer algumas a Judy para ajudá­la a esquecer o sabor de Mason. Margot voltou a aproximar­se dele, com uma expressão sombria.

Cuspiu­lhe no rosto e arrancou­lhe uma madeixa de cabelo próximo do cimo da cabeça. Era difícil saber o significado que dava àquele acto. Ouviu­o assobiar, quando saiu da divisão.

Enquanto Margot se dirigia à casa iluminada, o pequeno pedaço de escalpe colava­se­lhe à mão com sangue, os 

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cabelos pendendo da mão, sem que precisasse de os rodear com os dedos.

Cordell passou junto dela com um carro de golfe carregado de equipamento médico para preparar o paciente.

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Capítulo oitenta e quatroDe uma passagem sobre a auto­estrada a norte da saída 30, Starling avistou a oitocentos metros a casa do guarda, bastante avançada, na frente da Muskrat Farm. Starling tomara uma decisão a caminho de Maryland: entraria pelas traseiras. Se fosse pelo portão principal, sem credenciais nem mandado, apenas conseguiria uma escolta do  xerife até fora do condado ou até à prisão, Quando estivesse novamente cá fora, tudo estaria acabado.

Que se lixasse a permissão. Seguiu até à saída 29, bastante afastada da propriedade de Muskrat e regressou pela estrada de serviço. o caminho parecia muito escuro, depois das luzes da auto­estrada. Estava delimitado pela auto­estrada à direita, uma vala à esquerda e uma elevada cerca com uma corrente separava a estrada da escurídão de breu da Floresta Nacional.

o mapa de Starling indicava um caminho de cascalho intersectando esta estrada a um quilómetro e meio à frente e bem a coberto da vigilância do portão. Foi onde tinha parado por engano na sua primeira visita. Segundo o mapa, a estrada secundária atravessava a Floresta Nacional até Muskrat Farm. Estava a medir pelo odómetro. O motor do Mustang parecia mais ruidoso do que o habitual, avançando quase lentamente, rasando as árvores.

Recortando­se diante dos faróis surgiu um pesado portão feito de gradeado metálico e encimado por arame farpado. A tabuleta de «Entrada de Serviço» que vira na primeira visita desaparecera agora. Ervas daninhas tinham crescido diante do portão e por cima da vala com o esgoto.

Os faróis mostraram­lhe que as ervas daninhas havíam sido recentemente esmagadas, Onde o cascalho fino e a areia tinham voado do pavimento e formado um pequeno montículo, divisou as MarcaS de pneus para a lama e a neve. Eram as mesmas marcas da carrinha

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que vira no estacionamento do Publix? Ignorava se seriam exactamente as mesmas, mas podiam ter sido.

Uma corrente e um cadeado cromados prendiam o portão. Nenhuma hipótese ali. Starlíng observou os dois lados da estrada. Não vínha ninguém. Uma entradazinha ílegal aqui. Tinha um sabor de crime. Verificou se havia sensores nos suportes dos portões, Nenhuns. Servindo­se de dois ganchos e prendendo a lanterna entre os dentes, levou menos de quinze segundos a abrir o cadeado. Atravessou a entrada e prosseguiu ao longo das árvores, antes de retroceder pelo mesmo caminho, a fim de fechar o portão. Voltou a colocar a corrente no portão, com o cadeado do lado de fora. Deixou as pontas caídas para dentro, de forma a poder rebentá­lo mais facilmente com o carro, se fosse necessário.

Pelos seus cálculos no mapa com o polegar, faltavam cerca de cinco quilómetros pela floresta até à propriedade. Atravessou o escuro túnel da estrada secundária, com o céu nocturno por vezes visível sobre a sua cabeça, outras não, enquanto os ramos se fechavam, Avançou em segunda um pouco acima da velocidade normal, apenas com as luzes de estacionamento ligadas, tentando que o Mustang fizesse o mínimo de ruído e sentindo as ervas roçarem os chassís. Quando o odómetro indicou cerca de um quilómetro e meio, parou. Com o motor desligado, ouvia um corvo no escuro, o corvo estava írritado  com algo. Quisesse Deus que fosse um corvo.

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capitulo oitenta e cincoCordell entrou na divisão de acessórios com um ar de carrasco, garrafas intravenosas debaixo dos braços e tubos pendentes das mesmas. ­ o Doutor Hannibal Lecter! ­ exclamou. ­ Desejei tanto aquela sua máscara para o nosso clube em Baltimore. A minha namorada e eu temos uma coisa parecida de cabedal.

Pousou as suas coisas na bancada da bigorna e pôs uma tenaz a aquecer no fogo.

­ Boas notícias e más notícias ­ anunciou Cordell na sua voz jovial de enfermeiro com um leve sotaque suíço. ­ Mason falou­lhe na sequência do processo? Então, é assim: dentro em pouco, trarei Mason cá para baixo e os javalis virão comer­lhe os pés. Depois, esperará toda a noite e amanhã, Carlo e os irmãos dão­lhe comida através das grades de cabeça para baixo, para que os porcos possam comer­lhe a cara, como os cães comeram a de Mason. A minha função é mantê­lo vivo com intravenosas e torniquetes até ao fim. Está mesmo feito, sabe. Estas são as más notícias.

Cordell olhou para a câmara de televisão, a fim de se certificar que estava desligada. ­ As boas notícias são que não tem de ser muito pior do que uma ida ao dentista. Observe bem isto, Doutor. convidou Cordell, segurando uma seringa hipodérmica com uma comprida agulha diante do rosto do Dr. Lecter. ­ Falemos como dois entendidos em medicina. Podia pôr­me por trás de si e dar­lhe uma injecção na espinha que o impediria de sentir o que quer que fosse. Podia fechar os olhos e tentar não ouvir. Sentiria apenas uns sacões e puxões. E depois de Mason ter dado a festa da noite por terminada e recolhido a casa, podia dar­lhe algo que lhe parasse o coração. Quer ver? ­ Cordell deu uma pequena palmada num frasco de Pavulon e aproximou­o o suficiente do olho aberto do Dr. Lecter, mas não o suficiente para ser mordido.

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o brilho das chamas incidia num dos lados do rosto ávido de Cordell e ele tinha um olhar excitado e feliz. ­ É um homem muito rico, Doutor Lecter. Toda a gente o diz. Eu sei como a coisa funciona ­ também ponho dinheiro em vários sítios. Levanto­o, transfiro­o, manejo­o. Posso transferir o meu por telefone e aposto que também pode.

Cordell tirou um telemóvel do bolso. ­ Telefonamos ao seu banqueiro, indica­lhe um código, ele confirma­mo e tratarei de si. Ergueu a seringa. ­ Esguicha. Esguicha. Fala comigo.

o Dr. Lecter murmurou entre dentes, de cabeça pendente. «Mala» e «cofre forte» foram as palavras que Cordell conseguiu ouvir.

­ Vá lá, Doutor, e depois pode dormir. Vá lá,

­ Notas de cem não numeradas ­ disse o Dr. Lecter e a voz perdeu­se num fio.

Cordell aproximou­se mais e o Dr. Lecter esticou o pescoço, apanhou a sobrancelha de Cordell entre os dentes pequenos e aguçados e arrancou­lhe um bocado considerável, quando Cordell deu um salto para trás. o Dr, Lecter cuspiu a sobrancelha para o rosto de Cordell como se fosse uma grainha de uva.

Cordell aplicou um pano na ferida e colocou um adesivo que lhe conferiu uma expressão estranha.

Arrumou a seringa. ­ Tanto alívio desperdiçado ­ comentou.­ Vai encarar tudo de forma diferente ao amanhecer. Sabe que tenho estimulantes para produzirem o efeito contrário. E farei com que espere.

Retirou a tenaz do fogo.

­ Agora, vou prendê­lo ­ disse Cordell. ­ Sempre que me resistir, queimo­o. É esta a sensação.

Tocou com a ponta incandescente da tenaz no peito do Dr. Lecter e queimou­lhe o mamilo através da camisa, Teve de apagar o crescente círculo de fogo que se formou no peitilho da camisa do Doutor. o Dr. Lecter não emitiu um único som.

Carlo fez recuar o empilhador para a divisão de acessórios. Com Piero e Carlo a erguerem em uníssono e Tommaso a postos com a espingarda do tranquilizante, mudaram o Dr. Lecter para a empilhadora e acorrentaram a cruz de madeira à frente da máquina, Ficou sentado na forquílha, com os braços atados à cruz e as pernas esticadas e cada uma atada a um dente da forquilha,

Carlo espetou uma agulha com soro intravenoso nas costas de cada uma das mãos do Dr. Lecter. Teve de se colocar de pé num fardo de feno para pendurar as garrafas de plasma na máquina de cada lado dele. Cordell recuou e admirou a sua obra. Estranho ver o Doutor esparramado ali com uma intravenosa em cada mão, semelhante a uma paródia de algo que Cordell não conseguia lembrar­se.

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Cordell aplicou torniquetes por cima de cada um dos joelhos amarrando­lhes cordas que podiam ser puxadas do lado de trás da sebe para impedir que o Doutor se esvaísse em sangue. Não podiam ser apertadas neste momento. Mason ficaria furioso se os pés de Lecter estivessem dormentes.

Chegara a altura de trazer Mason cá para baixo e metê­lo na carrinha. o veículo, estacionado atrás do celeiro, estava frio. Os sardenhos tinham deixado os almoços lá dentro. Cordell praguejou e atirou­lhes a arca frigorífica para o chão. Teria de aspirar aquela coisa em casa. E arejá­la também. Os cabrões dos sardenhos também tinham fumado, apesar da sua proibição. Tinham tirado o isqueiro e deixado o fio do monitor da vigia do carro pendurado do painel de instrumentos.

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Capítulo oitenta e seisStarling desligou a luz do interior do Mustang e carregou no botão do porta­bagagens antes de abrir a porta.

Se o Dr. Lecter estivesse ali, se conseguisse apanhá­lo, talvez pudesse metê­lo algemado de pés e mãos no porta­bagagens e chegar à prisão do condado. Tinha quatro pares de algemas e corda suficiente para o atar e impedir que desatasse ao pontapé. Era preferível não pensar na força que ele tinha.

Havia geada no gramado, quando pôs os pés de fora. o velho carro rangeu quando o seu peso libertou as molas.

­ Tinhas de queixar­te, certo, meu cabrão? ­ murmurou entre dentes para o carro. Lembrou­se subitamente de falar a Hannah, a égua que fugiu durante a noite do abate dos cordeiros. Não fechou completamente a porta do carro. Meteu as chaves num bolso apertado para que não tilintassem.

A noite estava clara sob um quarto de lua crescente, o que lhe permitia caminhar sem a lanterna, enquanto houvesse um pedaço de céu aberto. Apalpou a beira do gramado e verificou que era solto e irregular. Era mais seguro avançar por um trilho de pneus no gramado, olhando em frente para avaliar o caminho com a sua visão periférica e com a cabeça ligeiramente inclinada para um dos lados. Sentia os pés a esmagar o cascalho, mas não conseguia ver o solo.

o momento mais difícil viveu­o quando deixou de ver o Mustang, embora conseguisse sentir­lhe as formas atrás dela. Não queria abandoná­lo.

Era subitamente uma mulher de 32 anos, sozinha, com uma carreira de serviço civil arruinada e desarmada, numa floresta, de noite. Viu­se com nitidez, viu os pés de galinha começando a formar­se aos cantos dos olhos. Desejou desesperadamente regressar até junto

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do carro. o passo seguinte foi mais lento, parou e conseguia ouvir a própria respiração.

o corvo grasnou, uma brisa agitou ruidosamente os ramos por cima da sua cabeça e depois o grito rasgou a noite. Um grito tão horrível e desesperado, subindo, descendo, terminando numa súplica de morte e numa voz tão distorcida que poderia ter pertencido a quem quer que fosse. ­ Uccidimi! ­ E novamente o grito.

o primeiro petrificou Starling, o segundo levou­a a mover­se a toda a velocidade, ziguezagueando através do escuro, com a 45 ainda metida no coldre, uma das mãos agarrando a lanterna apagada e a outra apalpando o escuro na sua frente. Não, Mason. Não o farás. Depressa, depressa. Verificou que podia manter­se no trilho, escutando os próprios passos e sentindo o cascalho solto de cada lado. o caminho curvava e seguia ao longo de uma cerca. Uma boa cerca, uma cerca de postes, com 1,92 metros de altura.

Surgiram soluços de terror e súplicas e diante de Starling, para lá da cerca, ouviu movimento no meio dos arbustos, o movimento transformando­se em trote, mais suave do que o de cascos de cavalos, de um ritmo mais veloz. Ouviu grunhidos que reconheceu.

Mais próximos os sons de agonia, visivelmente humanos mas distorcidos, com um guincho único sobrepondo­se aos gritos por um segundo e Starling soube que estava a ouvir uma gravação ou uma voz amplificada com feedback no microfone. Luz por entre as árvores e os contornos do celeiro. Starling premiu a cabeça contra o ferro frio para olhar através da cerca...

Sombras escuras movendo­se rapidamente. A seguir a quarenta metros de solo descoberto, a extremidade aberta de um celeiro com as grandes portas escancaradas, uma barreira ao fundo do celeiro com um portão holandês, um espelho ornamentado suspenso sobre o portão, o espelho reflectindo a luz do celeiro num rectângulo no chão. De pé, no pasto descoberto no exterior do celeiro, um homem corpulento de chapéu, com um radiogravador. Tapava um dos ouvidos com a mão, enquanto a máquina emitia uma série de uivos e soluços.

Surgiram agora dos arbustos, os javalis de focinhos selvagens, uma rapidez semelhante à do lobo, patas compridas e lombos corpulentos, espinhos cinzentos e aguçados.

Carlo recuou através do portão holandês e fechou­o quando os javalis ainda estavam a trinta metros. Os animais pararam num semicírculo, à espera, com os dentes enormes e curvos num arreganhar permanente dos beiços. Semelhantes a juizes de linha num antecipar do bater da bola, avançavam, paravam, grunhiam e faziam soar os dentes.

Starling já tinha observado gado na sua vida, mas nada que se assemelhasse a estes suínos. Emanavam uma beleza terrível, feita de graciosidade e rapidez. Observavam a entrada da porta, empurrando­se

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e avançando para depois recuarem, sem virarem costas ao portão no extremo aberto do celeiro.

Carlo disse algo por cima do ombro e desapareceu no interior do celeiro.

A carrinha apareceu com os faróis das traseiras acesos. Starling reconheceu imediatamente o veículo cinzento. Recuou de forma a formar um ângulo com o portão e parou. Cordell saiu e fez deslizar a porta lateral. Antes dele ter apagado a luz do tejadilho, Starling conseguiu avistar Mason no respirador, apoiado nos almofadões, com o cabelo enrolado numa trança sobre o peito. Projectores acenderam­se junto à porta.

Do chão, ao lado dele, Carlo apanhou um objecto que Starling não reconheceu logo. Pareciam as pernas de alguém, ou a parte inferior de um corpo. Caso se tratasse mesmo de metade de um corpo, Carlo era um homem de grande robustez. Por um segundo, Starling receou que fossem os restos do Dr. Lecter, mas as pernas dobraram­se de uma forma que as articulações não permitiriam.

Só poderiam ser as pernas do Dr Lecter, se ele tivesse sido posto sobre rodas e amarrado, pensou durante um mau momento. Carlo gritou algo para o celeiro, atrás dele. Starling ouviu o ligar de um motor.

o empilhador surgiu diante dos olhos de Starling, com Piero a conduzir o Dr. Lecter erguido pela forquilha, de braços esticados na cruz de madeira e as garrafas de soro intravenoso por cima das mãos oscilando ao ritmo do movimento do veículo. Suspenso de maneira a poder avistar os sôfregos javalis, a ver o que o esperava.

o empilhador avançou a um impressionante passo de procissão, com Carlo caminhando ao lado e, do outro lado, Johnny Mogli, armado.

Starling fixou os olhos por instantes no distintivo do ajudante de xerife Mogli. Uma estrela diferente da utilizada pelos locais. Cabelo branco, camisa branca, idêntica à da do motorista da carrinha do rapto.

Do interior da carrinha surgiu a voz profunda de Mason. Cantarolava Pompa e Círcunstâncía e soltou uma risada.

Os javalis não demonstraram medo da máquina e bem pelo contrário deram a sensação de a acolher de bom grado.

o empilhador parou junto do portão da cerca. Mason disse algo ao Dr. Lecter que Starling não conseguiu ouvir. o Dr. Lecter não mexeu a cabeça nem denotou qualquer indício de ter escutado. Encontrava­se ainda a uma altura maior do que Piero, no controlo. Olhou na direcção de Starling? Ela nunca o soube, porque começara a andar depressa ao longo da cerca, ao longo do celeiro, descobrindo as portas duplas por onde a carrinha havia recuado.

Carlo içou as calças atufalhadas sobre o curral. Os javalis avançaram de imediato, apinhando­se e afastando os que estavam mais próximo.

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Arreganhando os dentes, puxando e rasgando, esfarrapando as galinhas mortas que se encontravam no interior das calças e abanando as cabeças de um lado para o outro com as entranhas das galinhas pendentes. Um campo de dorsos pejados de espinhos em movimento.

Carlo fornecera somente o mais leve dos aperitivos, umas meras três galinhas e uma salada. Momentos depois, as calças estavam esfarrapadas e os suínos viraram novamente os ávidos olhinhos na direcção do portão da cerca.

Piero baixou o empilhador à altura do solo. A parte superior do portão holandês manteria de momento os porcos afastados dos orgãos vitais do Dr. Lecter. Carlo descalçou os sapatos e as meias ao Doutor.

Mason pôs­se a cantarolar da carrinha.

Starling avançava por detrás deles. Estavam todos de costas, de frente para os suínos. Ela passou pela porta da divisão dos acessórios e avançou até ao centro do celeiro.

­ Agora, não o deixem esvair­se em sangue ­ avisou Cordell da carrinha. ­ Estejam a postos quando disser que apertem os torniquetes. ­ Estava a limpar o olho arregalado de Mason com um pano.

­ Tem algo a dizer, Doutor Lecter? ­ soou a voz profunda de Mason.

o 45 soou no recinto do celeiro em simultâneo com a voz de Starling: ­ Mãos no ar e quietos. Desligue o motor.

Piero parecia não entender.

­ Fermate il motore ­ traduziu amavelmente o Dr. Lecter. Agora, ouvia­se apenas o guincho impaciente dos javalis. Starling avistou uma arma, na anca do homem de cabelos brancos, que usava a estrela. Antes do mais, deitar os homens por terra. Cordell deslizou rapidamente para trás do volante, e a carrinha pôs­se em movimento com Mason aos gritos. Starling furtou­se ao avanço da carrinha, detectou o gesto do homem de cabelos brancos pelo canto do olho, deu meia volta na sua direcção enquanto ele sacava a arma do coldre para a matar, gritando Polícia, e atingiu­o com dois tiros no peito.

A arma 357 que ele empunhava disparou para o chão, ele recuou meio passo e caiu de joelhos, olhando para si próprio, com o distintivo perfurado pela bala da 45 que lhe chegara ao coração. Mogli caiu de costas e ficou imóvel.

Na divisão de acessórios, Tômmaso ouviu os tiros. Agarrou na espingarda de ar comprimido e trepou ao sótão aberto do celeiro, ajoelhou­se por entre o feno solto e rastejou até à parte das águas furtadas que dava para o celeiro.

­ o próximo ­ ordenou Starling numa voz que ela própria desconhecia. Era preciso actuar depressa, enquanto ainda estavam de­

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baixo do choque da morte de Mogli. ­ No chão, de cabeça para a parede. Tu, no chão, vira­te para aqui. Para aqui.

­ Girati dall’altra parte ­ explicou o Dr. Lecter, do empilhador. Carlo ergueu os olhos para Starling, percebeu que ela o mataria e conservou­se imóvel. Ela algemou­os rapidamente com uma das mãos e de cabeças viradas em direcções opostas, o pulso de Carlo atado ao tornozelo de Piero e o tornozelo de Piero ao pulso de Carlo. Sem nunca deixar de apontar o Colt  45 a um dos ouvidos de ambos.

Desembainhou a faca da bota e deu a volta ao empilhador até ao Doutor.

­ Boa noite, Clarice ­ cumprimentou, quando conseguiu distingui­la.

­ Consegue andar? As suas pernas respondem?­ Sim.

­ Consegue ver?­ Sim.

­ Vou libertá­lo, Com o devido respeito, Doutor, se tentar lixar­me, mato­o sem hesitar. Entende?

­ Perfeitamente.

­ Cumpra as regras e sobreviverá.­ Falou como uma protestante.

Ela não perdera tempo. A faca que trazia na bota estava afiada. Verificou que o gume de serrilha cortava rapidamente a corda nova e escorregadia.

o braço direito dele soltou­se.

­ Posso encarregar­me do resto, se me der a faca.

Ela hesitou. Recuou até ao alcance do braço dele e passou­lhe o canivete. ­ o meu carro está a uns cem metros, na estrada secundária. ­ Tinha de observá­lo e aos homens deitados no chão.

Ele libertara uma perna. Ocupava­se da outra,­forçado a cortar cada um dos nós em separado. o Dr. Lecter não podia olhar para trás, na direcção de onde Carlo e Piero estavam deitados de cara para baixo.

­ Quando estiver liberto, não tente fugir. Nunca chegará à porta. Vou dar­lhe dois pares de algemas ­ indicou Starling, ­ Há dois tipos algemados no chão, atrás de si. Obrigue­os a rastejar até ao empílhador e algeme­os de forma a não poderem chegar a um telefone. Depois algeme­se a si.

­ Dois? ­ retorquiu ­ Cuidado, devíam ser três.

No momento em que falou, voou o dardo da espingarda de Tommaso, um fio prateado sob os projectores e alojou­se no meio das costas de Starling. Ela girou sob os calcanhares, de imediato tonta, a visão obscurecida, tentando localizar um alvo, divisou o cano no sótão

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aberto e disparou, disparou, disparou, disparou. Tommaso rolando e atingido por pedaços de madeira, enquanto o fumo azul dos disparos se erguia para as luzes. Ela disparou uma vez mais enquanto a vista lhe faltava e levou a mão atrás da anca em busca dos cartuchos, embora os joelhos cedessem.

o barulho pareceu incitar os suínos e ao verem os homens naquela posição convidativa por terra, guinchavam e grunhiam, embatendo contra o portão da sebe.

Starling caiu de cara no chão, a pistola vazia fazendo ressaltar a culatra aberta. Carlo e Piero ergueram as cabeças e puseram­se a rastejar desajeitadamente quais morcegos na direcção do corpo de Mogli, da sua pistola e das chaves das algemas. Som de Tommaso carregando a espingarda de tranquilizante no sótão. Restava­lhe um dardo. Levantou­se e aproximou­se da beira do recinto, olhando por cima do cano, procurando o Dr. Lecter do outro lado do empilhador.

Tommaso começou a caminhar pela beira do sótão aberto. Não havia lugar para esconderijos.

o Dr. Lecter pegou em Starling ao colo e recuou a toda a pressa na direcção do portão holandês, tentando manter o empilhador entre ele e Tommaso, que caminhava atento ao seu equilíbrio na beira das águas­furtadas. Tommaso disparou e o dardo, destinado ao peito de Lecter, acertou no osso da canela de Starling. o Dr. Lecter arrancou o fecho do portão holandês.

Piero agarrou freneticamente no porta­chaves de Mogli, Carlo esforçou­se para apanhar a arma e os suínos precipitaram­se para comer a refeição que se debatia por se levantar. Carlo conseguiu disparar a 357 uma vez e um javali caiu, enquanto os restantes trepavam por cima do corpo do suíno morto e se atiravam a Carlo, Piere, e ao cadáver de Mogli. Outros mais entraram de rompante pelo celeiro e pela noite. o Dr. Lecter, com Starling ao colo, encontrava­se por detrás do portão quando os javalis avançaram.

Do sótão, Tommaso avistou a cara do irmão no molhe e que logo se transformou numa pasta de sangue. Deixou cair a espingarda no feno. o Dr. Lecter, com a postura de um bailarino e transportando Starling nos braços, saiu descalço do celeiro, pelo meio dos javalis. Alguns dos grandes, um deles a fêmea prenha, rasparam as patas no chão e baixaram as cabeças para atacar.

Quando ele os enfrentou e não cheiraram o medo, trotaram de volta às presas fáceis, estendidas no chão.

o Dr. Lecter não viu quaisquer reforços vindos da casa. Uma vez debaixo das árvores da estrada secundária, parou para arrancar o dardo de Starling e sugar as feridas da canela. A agulha espetada na pele, dobrara no osso.

Os javalis atravessaram os arbustos próximos.

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Descalçou as botas a Starling e enfiou­as nos pés nus. Estavam

um tanto apertadas. Deixou­lhe o 45 no tornozelo, de forma a que transportando­a, pudesse deitar­lhe a mão.

Dez minutos depois, o guarda do portão principal ergueu os olhos do jornal ao ouvir um som à distância, um ruído semelhante ao de um caça que descolasse para bombardear. Era um Mustang de5 litros a 5800 rpm, rumo à passagem interestadual.

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capítulo oitenta e seteMason gemendo e gritando para ser levado de volta para o quarto, gritando como o fizera quando alguns dos rapazes e raparigas mais pequenos o enfrentavam no acampamento e conseguiram levar a melhor, antes que conseguisse esmagá­los sob o seu peso.

Margot e Cordell levaram­no de elevador até à sua ala e puseram­no na cama, ligado às suas permanentes fontes de vida.

Mason estava mais irritado do que Margot alguma vez o vira e as veias pulsavam sob os ossos expostos do rosto.

­ É melhor dar­lhe alguma coisa ­ sugeriu Cordell quando já estavam na sala de recreio.

­ Ainda não, Tem de reflectir um pouco. Dá­me as chaves do teu Honda.

­ Porquê?

­ Alguém tem de ir lá ver se ficou alguém vivo. Queres ir tu?­ Não, mas...

­ Posso guiar o teu carro até à divisão de acessórios, a carrinha não cabe pela porta. Agora, dá­me a porra das chaves.

Lá em baixo, agora, depois no gramado. Tommaso, atravessando o campo, vindo dos bosques, correndo, olhando para trás. Pensa Margot. Consultou o relógio. Oito e vinte. À meia­noite, chegaria o substituto de Cordell. Havia tempo para mandar vir homens de Washíngton de helicóptero que limpassem tudo. Avançou com o carro ao encontro de Tommaso, através da relva.

­ Tentei chegar junto deles mas um javali deitou­me ao chão. Ele... ­ Tommaso fez uma pantomima do Dr. Lecter transportando Starling ao colo. ­... a mulher. Meteram­se naquele carro barulhento. Ela tem due... ­ Ergueu dois dedos. ­ freccette. ­ Apontou para as costas e a perna. ­ Freccette. Dardi. Enfiados. Bam. Duefreccette. ­ Fez a pantomima de um tiroteio.

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­ Dardos ­ traduziu Margot.

­ Dardos, talvez demasiado narcótico. Talvez esteja morta,­ Entra ­ ordenou Margot. ­ Temos de ir ver.

Margot atravessou os portões laterais duplos por onde Starling entrara no celeiro. Guinchos, grunhidos e dorsos de pêlos ásperos contorcendo­se. Margot seguiu em frente buzinando e conseguiu afastar os javalis o suficiente para verificar que havia três restos humanos, todos eles irreconhecíveis.

Seguiram para a divisão de acessórios e fecharam as portas atrás deles.

Margot reflectiu que Tommaso era o único que ficara vivo e alguma vez a tinha visto no celeiro, sem contar com Cordell.

A mesma ideia pode igualmente ter ocorrido a Tommaso. Conservou­se a uma distância cautelosa dela, sem despregar os olhos negros e inteligentes dos dela. Lágrimas corriam­lhe pela face.

Pensa, Margot. Não queres merda com os sardos. Eles sabem que és tu que mexes os cordéis ao dinheiro. Limpam­te o sebo em segundos. Os olhos de Tommaso seguiram o percurso da mão, quando a meteu no bolso.

o telemóvel. Carregou nas teclas para Sardenha, para casa do banqueiro Steuben, às duas e meia da manhã, Trocou umas breves palavras com ele e passou o aparelho a Tommaso. Ele acenou com a cabeça, respondeu, voltou a acenar e devolveu­lhe o telemóvel. o dinheiro era dele. Subiu ao sótão e pegou na mochila, juntamente com o sobretudo e chapéu do Dr. Lecter. Enquanto ele estava a reunir as coisas, Margot agarrou no aguilhão do gado, testou a corrente e enfiou­o na manga. Pegou também no martelo de ferreiro.

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Capítulo oitenta e oitoTommaso, ao volante do carro de Cordell, deixou Margot em casa. Deixaria o Honda no parque de estacionamento a longo prazo do Aeroporto internacional de Dulles. Margot prometeu­lhe que enterraria o que restava de Piero e Carlo o melhor que pudesse.

Havia algo que ele sentia dever dizer­lhe e esmerou­se no inglès: Sígnorina, os porcos, deve saber, os porcos ajudam o Dottore. Afastam­se dele, rodeiam­no. Matam o meu irmão, matam Carlo, mas afastam­se do Doutor Lecter, Acho que o adoram. ­ Tommaso benzeu­se, ­ Devia deixar de o perseguir.

E durante a sua longa vida na Sardenha, Tommaso contaria a história desta maneira. Quando chegou aos  sessenta anos, continuou a contar que o Dr. Lecter, com a mulher ao colo, deixara o celeiro levado pelos porcos.

Quando o carro começou a descer a estrada secundária, Margot deteve­se uns minutos de olhos erguidos para as  janelas iluminadas de Mason. Avistou a sombra de Cordell, movendo­se nas paredes, enquanto se afadigava junto de Mason, substituindo os monitores que zelavam pela respiração e pulsação do irmão.

Enfiou o cabo do martelo de ferreiro na parte de trás das calças e cobriu a cabeça com a aba do casaco,

Cordell ia a sair do quarto de Mason com algumas almofadas no momento em que Mason saiu do elevador,

­ Prepara­lhe um martini, Cordell.­ Não sei­­­

­ Eu sei. Prepara­lhe um martíní.

Cordell pousou as almofadas no sofá e ajoelhou­se diante do congelador do bar.

­ Há algum sumo? ­ perguntou Margot, aproximando­se dele pelas costas. Aplicou­lhe um golpe forte com o  martelo de ferreiro

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na base do crânio e ouviu um estalido. A cabeça dele embateu no frigorífico, ressaltou e ele caiu de costas, prostrado de olhos abertos, uma pupila dilatando­se, a outra não. Margot virou­lhe a cabeça de lado contra o chão e baixou o martelo, atingindo­o na têmpora e o sangue brotou, espesso, dos ouvidos.

Ela nada sentiu.

Mason ouviu o ruído da porta do quarto e fixou o olho aberto. Adormecera uns momentos sob a luz suave. A moreia também estava adormecida sob a sua rocha.

A estrutura corpulenta de Margot recortou­se na ombreira da porta. Fechou a porta atrás de si.

­ Olá, Mason.

­ o que aconteceu lá em baixo? Por que raio demoraste tanto?­ Estão todos mortos lá em baixo, Mason. ­ Margot aproximou­se da cabeceira da cama, desligou a linha do telefone de Mason e atirou­o ao chão.

­ Piero e Carlo e Johnny Mogli estão todos mortos. o Doutor Lecter escapou e levou a mulher Starling ao colo.

Mason praguejou e um fio de espuma Surgiu­lhe entre os dentes.­ Mandei Tommaso para casa com o dinheiro dele,

­ Tu o quê???? Estúpida cabrona, fica sabendo que vamos limpar tudo isto e começar do princípio. Temos o fim­de­semana. Não precisamos preocupar­nos com o que Starling viu. Se Lecter a levou, é como se estivesse morta.

­ Ela nunca me viu ­ replicou Margot, encolhendo os ombros.­ Contacta Washington e arranja quatro cabrões para virem cá. Manda o helicóptero. Mostra­lhes a escavadora... depois mostra­lhes Cordell! Vem cá! ­ Mason assobiou para os seus tubos. Margot afastou os tubos e inclinou­se sobre o irmão, de forma a que ele pudesse ver­lhe o rosto.

­ Cordell não vira, Mason. Cordell está morto,­ o quê?

­ Matei­o na sala de recreio. Agora, Mason vais dar­me o que me deves. ­ Levantou os apoios laterais da cama e, agarrando no enorme rolo de cabelo entrançado, destapou­lhe o corpo. As pequenas pernas não eram mais grossas do que rolinhos de massa doce. A mão, a única extremidade que conseguia mover, procurou o telefone, o respirador recebia e expelia o ar a um ritmo regular.

Margot tirou do bolso um preservativo sem espermicida e ergueu­o para que ele o visse. Da manga tirou o aguilhão de gado.­ Lembras­te de como costumavas cuspir no caralho para o lubrificar? Achas que consegues arranjar um bocado de cuspo? Não? Talvez eu consiga.

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Quando a respiração lhe permitiu Mason soltou uma série de

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sons semelhantes a zurros, mas a operação acabou em meio minuto e de forma muito produtiva.

­ Estás morta, Margot. ­ Mais parecia «Nargot», pela forma como pronunciou.

­ Ora, estamos todos, Mason. Não sabias? Mas estes não estão­ retorquiu, prendendo a blusa sobre o quente recipiente. ­ Eles mexem­se. Vou mostrar­te como. Vou mostrar­te como se mexem...

Margot agarrou nas luvas próprias para agarrar nos peixes e que se encontravam junto ao aquário.

­ Podia adoptar a Judy ­ disse Mason. ­ Ela podia ser minha herdeira e podíamos fazer uma procuração.

­ Claro que sim ­ concordou Margot, erguendo uma carpa do tanque. Trouxe uma cadeira da área de convívio e, subindo para cima dela, retirou a tampa do grande aquário. ­ Mas não o faremos.

Inclinou­se sobre o aquário e meteu os robustos braços dentro de água. Pegou na carpa pela cauda junto à gruta e quando a moreia saiu, agarrou­a por trás da cabeça com a forte mão e ergueu­a para fora de água, por cima da sua cabeça. A enorme moreia pendente e contorcendo­se, tão forte e grossa quanto o braço de Margot e de pele reluzente. Agarrou na moreia também com a outra mão e quando ela tentou furtarse, manteve­se firme com as luvas de pontas aguçadas metidas na gruta.

Desceu cuidadosamente da cadeira e aproximou­se de Mason, transportando a moreia que se contorcia, de cabeça em forma de parafuso, os dentes batendo com um som semelhante ao de um telégrafo, e os dentes curvos a que nenhum peixe escapava. Deixou cair a moreia em cima do peito dele, no respirador e prendendo­a com uma das mãos, atou­lhe o rabo de cavalo à volta, à volta, à volta.­ Mexe­te, mexe­te, Mason ­ disse.

Prendeu a moreia por detrás da cabeça com uma das mãos e com a outra, puxou para baixo o maxilar de Mason, forçou o caminho, apoiando todo o seu peso no queixo dele, enquanto o irmão se debatia com todas as forças e, por fim, com um estalido a boca dele abriu­se.

­ Devias ter comido o chocolate ­ disse Margot e enfiou a pança da moreia na boca de Mason, enquanto ela lhe agarrava a língua com os dentes aguçados como o faria a um peixe sem a largar, sem nunca a largar, com o corpo preso na trança de cabelo de Mason. o sangue brotou do buraco do nariz de Mason e ele afogava­se.

Margot deixou­os juntos, Mason e a moreia, com a carpa sozinha, às voltas, no aquário. Compôs­se na secretária de Cordell e ficou a observar os monitores até os sinais de vida de Mason se apagarem.

A moreia ainda se mexia quando regressou ao quarto de Mason. o respirador subia e descia, inchando a vesícula natatória da moreia, enquanto ela bombeava espuma sanguinolenta dos pulmões de Mason. Margot lavou o aguilhão de gado no aquário e meteu­o no bolso.

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Margot retirou de um saquinho que tinha no bolso o pedaço do escalpe do Dr, Lecter e a madeixa do seu cabelo. Enfiou sangue do escalpe sob as unhas de Mason, um trabalho dificultado pelos movimentos da moreia, e entrelaçou­lhe o cabelo nos dedos. Por fim, meteu um único cabelo numa das luvas para agarrar os peixes,

Margot saiu sem um olhar para o cadáver de Cordell e foi ter com judy a casa, transportando o seu quente troféu, enfiado onde ele se manteria quente.

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capítulo oitenta e noveClarice Starling mantém­se inconsciente numa grande cama debaixo de um lençol de linho e de um édredon. Os braços, cobertos pelas mangas de um pijama de seda, estão por cima da roupa e atados com écharpes de seda, apenas para lhe conservar as mãos afastadas do rosto e proteger o tubo da intravenosa que tem nas costas da mão.

Há três pontos luminosos no quarto, o candeeiro de abat­jour e os pontinhos vermelhos no centro das pupilas do Dr. Lecter, enquanto a observa.

Ele está sentado numa cadeira de braços, com os dedos apoiados sob o queixo. Passado algum tempo levanta­se e mede­lhe a pressão arterial. Examina­lhe as pupilas com uma pequena lanterna de bolso. Mete a mão por baixo da roupa, pega­lhe no pé, tira­o debaixo dos cobertores e, observando­a atentamente, estimula­lhe a planta do pé com a ponta de uma chave. Mantém­se de pé um instante, parecendo imerso nos seus pensamentos e agarra­lhe o pé com suavidade, como se tivesse um animalzinho na mão.

Inteirou­se dos componentes através do fabricante do tranquilizante do dardo. Dado o segundo dardo que atingiu Starling ter embatido no osso, ele acredita que ela não recebeu uma dose dupla completa. Ministra­lhe protectores estimulantes com uma enorme atenção.

Nos intervalos dos cuidados que prodigaliza a Starling mantém­se sentado na cadeira de braços com um grande bloco de papel pardo, imerso em cálculos. As páginas estão cheias com os símbolos de astrofísica e física molecular. Os poucos matemáticos com capacidade para o acompanharem diriam que as suas equações começam de forma brilhante e depois declinam, ensombradas pela fé naquilo que se deseja ser verdade: o Dr. Lecter pretende que o tempo volte para

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trás... a crescente entropia deixaria de marcar a direcção do tempo. Ele pretende que seja a ordem crescente a assinalar o caminho. Quer que os dentes de leite de Mischa voltem a nascer. Por detrás dos seus cálculos febris está o desejo desesperado de arranjar um lugar para Mischa no mundo, talvez o lugar agora ocupado por Clarice Starling.

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Capítulo noventaA mão e um sol luminoso na sala de recreio de Muskrat Farm. Os grandes animais empalhados com os olhos de botões fixam o corpo de Cordell, agora tapado.

Mesmo no meio do Inverno, uma mosca­varejeira descobriu o corpo e passeia por cima do lençol, manchado de sangue.

Caso Margot Verger estivesse a par da tensão ablativa interligada aos princípios de um homicídio entregue aos media, talvez nunca tivesse enfiado a moreia pela garganta do irmão. A sua decisão de não haver tentado limpar a sujeira reinante na Muskrat Farm, limitando­se a esconder­se até passar a tempestade, foi inteligente. Ninguém com vida a viu em Muskrat, quando Mason e os restantes foram mortos.

o seu álibi foi o de que o primeiro grito frenético do enfermeiro do turno da meia­noite a acordara na casa, que partilhava com Judy. Dirigiu­se ao cenário e chegou pouco depois dos primeiros ajudantes do xerife.

o principal investigador ao serviço do departamento do xerife, o detective Clarence Franks, era um homem jovem de olhos um pouco juntos, mas não tão estúpido quanto Margot esperava que o fosse.

­ Uma pessoa qualquer não pode subir até aqui naquele elevador, pois não? É precisa uma chave para entrar, certo? ­ perguntou­lhe Frank. ­ o detective e Margot sentaram­se desajeitadamente ao lado um do outro no pequeno sofá.

­ Suponho que sim, se é por aí que eles vieram.

­ Eles, Miss Verger? Acha que podiam ser mais do que um?­ Não faço ideia, Mister Franks.

Vira o corpo do irmão ainda unido à moreia e tapado com um lençol. Alguém desligara o respirador. Os criminalistas estavam a levar amostras da água do aquário e a tirar pedaços de sangue do chão.

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Avistou o bocado de escalpe do Dr. Lecter na mão de Mason. Ainda não o tinham descoberto. Os criminalistas fitaram Margot com indiferença.

o detective Franks garatujava no bloco de notas.

­ Sabe quem eram essas outras pobres pessoas? ­ indagou Margot. ­ Tinham família?

­ Estamos a averiguar­ respondeu Franks. ­ Há três armas de que podemos seguir o rasto.

Na verdade, o departamento do xerife não tinha a certeza sobre quantas pessoas tinham morrido no celeiro, pois os javalis haviam desaparecido na profundeza dos bosques, arrastando os restos para mais tarde.

­ No decurso desta investigação, podemos ter de pedir­lhe e à sua... companheira de há muito para se submeterem a um exame do polígrafo, ou seja um detector de mentiras. Estaria disposta a aceder, Miss Verger?

­ Farei tudo o que for necessário para apanhar essas pessoas. Respondendo especificamente à sua pergunta, chame­me e a Judy, quando precisar de nós. Devo falar com o advogado da família?­ Não, se não tiver nada a esconder, Miss Verger.

­ Esconder? ­ repetiu Margot, conseguindo forjar algumas lágrimas.

­ Por favor. Tenho de fazer isto, Miss Verger ­ redarguiu Franks que ia a colocar a mão no ombro robusto dela, mas pensou duas vezes.

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capítulo noventa e umStarling acordou na semiobscuridade refrescante, sabendo por uma qualquer intuição primitiva que se encontrava próximo do mar. Mexeu­se um pouco na cama. Sentia o corpo todo dorido e depois voltou a perder a consciência. Quando acordou de novo, uma voz falava­lhe suavemente e oferecia­lhe uma chávena com uma bebida quente. Aceitou e o gosto era semelhante ao do chá de ervas que a avó de Mapp, lhe enviava.

Dia e noite outra vez, o cheiro a flores frescas na casa e outra leve picada de uma agulha. Semelhantes ao estampido e estalidos de um fogo de artifício à distância, os restos de medo e dor explodiam no horizonte, mas não próximos, nunca próximos. Ela estava no jardim do olho do furacão.

­ Acordando. Acordando com calma. Acordando num quarto agradável ­ dizia uma voz. Ouviu o som de música de câmara. Sentia­se muito limpa e a sua pele tinha o perfume de menta

devido a um qualquer bálsamo que lhe proporcionava um profundo e reconfortante calor.

Starling abriu os olhos.

o Dr. Lecter mantinha­se a alguma distância dela, muito quieto, como estivera na sua cela quando o viu pela primeira vez. Agora, estamos habituados a vê­lo sem grilhetas. já não é chocante vê­lo num espaço aberto com outro ser humano.

­ Boa noite, Clarice.

­ Boa noite, Doutor Lecter ­ respondeu no mesmo tom sem uma verdadeira noção do tempo.

­ Se sentir uma impressão desagradável, deve­se apenas às nódoas negras que sofreu numa queda. Ficará bem. Contudo, gostaria de ter a certeza de uma coisa. Importa­se, de olhar na direcção desta luz, por favor? ­ Aproximou­se dela, munido de uma pequena lanterna. o Dr. Lecter cheirava a lã fresca.

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Forçou­se a manter os olhos abertos, enquanto ele lhe examinava as pupilas para, em seguida, se afastar novamente.

­ Obrigado. Há uma casa de banho muito confortável, ali. Quer experimentar? Os chinelos estão junto da sua cama. Desculpe, mas tive de pedir­lhe emprestadas as suas botas.

Ela estava e não estava acordada. A casa de banho era realmente confortável e equipada com todas as comodidades. Nos dias seguintes usufruiu de longos banhos, mas nem se incomodou a olhar­se no espelho, tão distante estava dela própria.

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capítulo noventa e doisDias de conversa, por vezes ouvindo­se e interrogando­se sobre com quem estava a falar e que tão bem conhecia os seus mais íntimos pensamentos. Dias de sono e um caldo revigorante e omoletas.

E um dia, o Dr. Lecter disse: ­ Deve estar cansada dos seus robes e pijamas, Clarice. Há algumas coisas no roupeiro que talvez lhe agradem... apenas se quiser vesti­las. ­ E no mesmo tom: ­ Coloquei os seus objectos pessoais, a bolsa, a arma e a sua carteira na gaveta de cima da cómoda, se quiser algum.

­ Obrigada, Doutor Lecter.

No armário havia uma variedade de roupas, vestidos, fatos­calça e um brilhante vestido comprido com um top de contas. Havia calças de caxemira e pullovers que lhe agradavam. Optou por um conjunto de caxemira castanho e mocassins.

Na gaveta estava o seu cinto e o coldre Yaqui, desprovido do perdido 45, mas o coldre do tornozelo encontrava­se ao lado da bolsa e continha a versão mais reduzida do automático de 45. o pente estava cheio de cartuchos, não havia nada na câmara, tal como a usava na perna. E a faca da bota também estava ali, no estojo. As chaves do carro dentro da bolsa.

Starling era ela e não era. Quando se interrogava sobre os acontecimentos, era como se os observasse de lado, como se se visse à distância.

Ficou feliz ao ver o seu carro na garagem quando o Dr. Lecter a levou até lá fora. Examinou os limpa­vidros e resolveu substitui­los.

­  Clarice, como acha que os homens de Mason nos seguiram até ao supermercado?

Ela fixou momentaneamente o tecto da garagem, reflectindo.

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Levou­lhe menos de dois minutos a descobrir a antena colocada entre o assento traseiro e a prateleira dos embrulhos, após o que seguiu o fio da antena até ao sinal de rádio escondido.

Desligou­o e levou­o até à casa, arrastando­o pela antena, como se levasse um rato pela cauda.

­ Muito giro ­ elogiou. ­ Muito moderno. Bem instalado também. Estou certa de que tem a marca de Mister KrendIer. Arranja­me um saco de plástico?

­ Será que podem procurá­lo pelo ar?

­ Agora está desligado. Apenas poderiam procurá­lo por avião. se KrendIer confessasse que o usou. Sabe que ele não o faria. Mason poderia varrer a área com o helicóptero.

­  Mason está morto.

­ Uuummmm ­ murmurou Starling. ­ Pode tocar para mim?

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capítulo noventa e trêsNos primeiros dias depois dos crimes, Paul KrendIer oscilou entre o tédio e um medo crescente. Obteve relatórios directamente do gabinete de operações local do FBI, em Maryland.

Sentia­se relativamente tranquilo frente a uma auditoria aos livros de contabilidade de Mason, pois a passagem de dinheiro de Mason para a sua própria conta numerada tinha um desvio bastante seguro nas Ilhas Caimãs. Mas com o desaparecimento de Mason, ficara com grandes planos e sem patrão. Margot Verger sabia da existência do seu dinheiro e sabia que ele comprometera a segurança dos dossiers do FBI sobre Lecter. Margot tinha de manter a boca fechada.

o monitor do sinal de rádio do carro preocupava­o. Tirara­o do edifício de manutenção de Quantico sem assinar qualquer recibo, mas nesse dia constava do livro de registo de entradas na manutenção.

o Dr. Doeniling e o corpulento enfermeiro, Barney, tinham­no visto em Muskrat, mas somente num papel legítimo, a falar com Mason Veger sobre como apanhar Hannibal Lecter.

o alívio foi geral na quarta tarde a seguir aos crimes, quando Margot Verger passou para os investigadores do xerife uma mensagem recentemente gravada no seu atendedor de chamadas.

Os polícias mantiveram­se surpreendidos no quarto, de olhos fixos na cama que ela partilhava com judy e escutando a voz do demónio. o Dr. Lecter vangloriava­se da morte de Mason e garantia a Margot que fora extremamente prolongada e dolorosa. Ela soluçava, enquanto judy a amparava. Por fim, Frank levou­a para fora do quarto, com as palavras: ­ Não precisa voltar a ouvi­la.

Por insistência de Krendier a fita do atendedor de chamadas foi levada para Washington e uma gravação de voz confirmou que a chamada tinha sido feita pelo Dr. Lecter.

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Contudo, o maior alívio para KrendIer verificou­se por intermédio de um telefonema na noite do quarto dia.

o autor da chamada era nem mais nem menos do que o deputado Parton Vellmore de Illinois.

KrendIer apenas falara com o congressista em algumas ocasiões, mas conhecia­lhe a voz da televisão. o mero facto do telefonema constituía um factor de tranquilidade; VelImore pertencia ao Subcomité judiciário e era um extraordinário alcoviteiro; afastar­se­ia logo de KrendIer se ele estivesse comprometido...

­ Mister Krendier, sei que conhecia bem Mason Verger.­ É verdade, sír.

­ Bom, que vergonha dos diabos este caso. Aquele sádico filho da mãe, mutilou­o e depois regressou e matou­o. ignoro se está a par, mas um dos meus constituintes morreu igualmente nessa tragédia. Johnny Mogli, serviu a população de Illinois durante anos no cumprimento da lei.

­ Não, sír Não estava a par. Lamento.

­ Na verdade, KrendIer, temos de prosseguir. o legado de filantropia dos Verger e o seu marcado interesse pela política pública continuará. Sobrevive à morte de um homem. Tenho falado com várias pessoas do 27. distrito e com os Verger. Margot Verger inteirou­me do seu interesse pelo serviço público. Uma mulher extraordinária. Tem uma faceta realmente prática. Vamos reunir­nos muito em breve, de uma forma informal e tranquila, e falar do que podemos fazer no próximo Novembro. Queremo­lo connosco. Acha que consegue estar presente na reunião?

­ Claro, senador. Sem dúvida.

­ Margot telefona­lhe para lhe dar os pormenores. Dentro de uns dias.

KrendIer pousou o auscultador e inundou­o uma sensação de alívio.

A descoberta no celeiro do Colt 45 registado em nome do falecido John Brigham, agora conhecido como pertencendo a Clarice Starling, constituiu um embaraço considerável para o Bureau.

Starling estava dada como desaparecida, mas o caso não foi citado como um rapto, pois ninguém a viu ser raptada. Nem sequer era uma agente desaparecida do activo. Starling era uma agente suspensa, de paradeiro desconhecido. Foi emitido um boletim relativo ao seu carro com a matrícula, mas sem qualquer ênfase relativa à identidade do dono.

o rapto exige muito mais esforço da aplicação da lei do que o caso de uma pessoa desaparecida. A classificação irritou Ardelia Mapp a tal ponto que escreveu a sua carta de demissão ao Bureau, depois pensou melhor e achou preferível esperar e investigar ainda em funções.

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Mapp deu por si a dirigir­se vezes sem conta ao lado do duplex pertencente a Starling para a procurar.

Mapp, achava o dossier VICAP e os dossiers da Informação de Crime Nacional totalmente estáticos e somente com acréscimos triviais: A polícia italiana conseguira finalmente encontrar o computador do Dr. Lecter... e os Carabinieri estavam a fazer de Super Mários a lidar com ele, o computador ficara limpo, mal os investigadores carregaram na primeira tecla.

Mapp abordou todas as pessoas influentes a que tinha acesso no Bureau. desde que Starling desapareceu.

Os repetidos telefonemas que fez para casa de jack Crawford ficaram sem resposta.

Telefonou para a Secção de Ciência Comportamental e ínformaram­na que Crawford fora internado no jefferson Memorial Hospital com dores no peito, Não lhe telefonou para lá. No Bureau, ele era o último anjo de Starling.

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Capítulo noventa e quatroStarling não tinha a noção do tempo. As conversas processaram­se ao longo das noites e dos dias. Ouvia­se falar durante minutos sem fim e escutava­se.

Ria por vezes de si própria, ouvindo revelações desajeitadas que normalmente a teriam ­mortificado. As coisas que contava ao Dr. Lecter surpreendiam­na com frequência, eram por vezes desagradáveis a uma sensibilidade normal, mas as palavras correspondiam sempre à verdade. E o Dr. Lecter também falava. Num tom baixo e sem modulações. Expressava interesse e encorajamento, mas nunca surpresa ou censura.

Falou­lhe da sua infâncía, sobre Mischa.

Por vezes, olhavam um único objecto luminoso em simultâneo para dar início às conversas, quase sempre havia uma única fonte luminosa na sala. o objecto luminoso mudava diariamente.

Hoje, começaram pela única luz que incidía num dos lados de um bule, mas à medida que a conversa evoluiu, o Dr. Lecter pareceu pressentir a chegada de ambos a um corredor por explorar da mente dela. Talvez ouvisse fantasmas lutando do outro lado da parede. Substituiu o bule por uma fivela de prata de um cinto.

­ É a do meu pai ­ exclamou Starling, batendo palmas, como se fosse uma criança.

­ É ­ admitiu o Dr. Lecter. ­ Gostaria de falar com o seu pai, Clarice? o seu pai está aqui. Gostaria de falar com ele?

­ o meu pai está aqui! Ei! óptimo!

o Dr. Lecter colocou as mãos de cada lado da cabeça de Starling, por cima das têmporas, o que poderia fornecer­lhe tudo o que necessitava do pai. Fítou­a fundo, bem fundo nos olhos.

­ Sei que gostaria de lhe falar em privado. Agora, vou­me embora.

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Pode observar a fivela e, dentro de minutos, vai ouvi­lo bater à porta. De acordo?

­ Sim! Fantástico!!

­ Terá apenas de esperar uns minutos.

Uma leve picada de uma fina agulha... Starling nem sequer baixou os olhos... e o Dr. Lecter saiu da sala.

Ficou a olhar a fivela até surgirem as pancadas, duas firmes pancadas na porta e o pai entrou como se lembrava dele, alto e recortado na ombreira da porta, de chapéu na mão e o cabelo alisado com água, como sempre avançava até junto da mesa da ceia.

­ Olá, miúda! A que horas se come por aqui?

Desde a sua morte há vinte e cinco anos que não a abraçava, mas quando a puxou para ele, a pressão de encontro à frente da camisa foi a mesma, cheirava a sabonete e a tabaco e ela sentiu­lhe o imenso volume do coração.

­ Então, miúda. Caíste? ­ Era igual a quando a levantava ao ar no pátio, depois dela ter tentado montar um bode, ­ Estavas a ir muito bem, até ele se abanar. Anda até à cozinha e vejamos o que conseguimos encontrar.

Duas coisas em cima da mesa da cozinha da sua infância, um pacote de celofane de SNO­BALLS e um saco de laranjas.

o pai de Starling abriu o seu canivete Barlow de lâmina rectangular e descascou algumas laranjas, enquanto as cascas caíam enroscadas no oleado. Sentaram­se nas cadeiras de cozinha com espaldar de travessas e ele ia cortando os gomos, comendo um e dando o seguinte a Starling. Ela cuspiu as sementes para a mão e conservou­as no colo. Ele era alto na cadeira, como John Brigham

o pai mastigava mais com um dos lados da boca do que com o outro e um dos incisivos laterais denotava uma coroa metálica, a forma de tratamento seguida pelos dentistas do Exército na década de40. Brilhava quando ele ria. Comeram duas laranjas e um SNO­BALL cada e ele ensinou­lhe algumas adivinhas.

Starling esquecera aquela maravilhosa sensação de um fofo glacé sob o coco. A cozinha desapareceu e puseram­se a confessar como adultos.

­ Como estás, miúda? ­ Era uma pergunta séria.­ Andam em cima de mim no trabalho.

­ Eu sei. É essa gente da Justiça, querida. Não há grupo mais deplorável. Nunca abateste ninguém. Não foi preciso.

­ Acredito nisso. Há outra coisa.­ Nunca mentiste sobre o assunto.­ Não, sir

Rebuçados. (N. da T.)

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­ Salvaste aquele bebé.

­ Ele saiu­se bem.

­ Fiquei muito orgulhoso.­ Obrigada, sir.

­ Tenho de ir­me embora, querida. Falaremos depois.­ Não pode ficar.

­ Nunca podemos ficar, miúda ­ respondeu, pondo­lhe a mão sobre a cabeça. ­ Ninguém pode ficar como desejaria.

Beijou­a na testa e saiu da sala. Ela viu­lhe o buraco da bala no chapéu quando lhe acenou, uma figura alta  recortada na ombreira.

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Capítulo noventa e cincoClarice Starling amou o pai tanto quanto amamos alguém e teria imediatamente enfrentado qualquer mancha à  sua memória.

Contudo, em conversa com o Dr. Lecter, sob a influência de uma poderosa droga hipnótica, são estas as  palavras:

­ Sinto­me enraivecida com ele. Quero dizer, como é que raio ele estava atrás de uma maldita loja a meio da  noite, lutando contra dois cabrões que o mataram. Emperrou aquela velha arma e apanharam­no. Eles não  eram nada e apanharam­no. Ele não sabia o que estava a fazer. Nunca aprendeu nada na vida.

Esbofetearia qualquer outra pessoa que tivesse feito esta afirmação.

o monstro recostou­se na cadeira. ­ Aaah, chegamos finalmente ao âmago. Estas lembranças de rapariguinha começavam a tornar­se monótonas. Starling tentou balouçar as pernas por baixo da cadeira como

em criança, mas as pernas eram demasiado compridas. ­ Ele tinha aquele emprego, sabe, entrava e cumpria o que lhe diziam, fazia a ronda com aquele maldito relógio de guarda­nocturno e depois morreu. E a Mamã estava a lavar o sangue do chapéu para o enterrar junto dele. Quem veio a casa ver­nos?

Ninguém. Muito poucos SNO­BALLs depois disso, garanto. A mamã e eu a limparmos quartos de motel. As pessoas deixando preservativos usados na mesa de cabeceira. Ele deixou­se matar e abandonou­nos porque era demasiado estúpido. Devia ter dito àqueles idiotas da cidade que metessem o emprego no cu.

Coisas que jamais teria dito, coisas banidas da parte consciente do cérebro.

Desde o início do seu conhecimento que o Dr. Lecter a espicaçara sobre o pai, chamando­lhe um guarda­nocturno. Agora, transformava­se em Lecter, o Guardião da memória do seu pai.

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­ Clarice, ele sempre desejou apenas a sua felicidade e bem­estar.­ Ponha os desejos numa mão e merda na outra e veja qual delas se enche primeiro ­ retorquiu Starling. ­ Este provérbio do orfanato devia ter parecido desagradável vindo daquele rosto atraente, mas o Dr. Lecter parecia satisfeito, entusiasmado mesmo.

­ Vou pedir­lhe que me acompanhe a outra divisão, Clarice disse o Dr. Lecter. ­ o seu pai visitou­a, nas melhores condições possíveis. Viu que apesar do seu enorme desejo de mantê­lo ao seu lado, ele não podia ficar. Visitou­a. Agora, chegou a altura de ser você a visitá­lo.

Ao longo de um corredor, até um quarto de hóspedes. A porta estava fechada.

­ Espere um momento, Clarice ­ pediu, desaparecendo no interior.

Ela ficou no corredor com a mão na maçaneta e ouviu o riscar de um fósforo.

­ Clarice, sabe que o seu pai está morto. Sabe isso melhor que ninguém.

­ Sim.

­ Entre e veja­o.

Os ossos do pai estavam dispostos numa de duas camas separadas, com os ossos maiores e as costelas tapadas com um lençol. Os restos viam­se em relevo sob o pano branco, semelhantes ao boneco de neve de uma criança.

o crânio do pai, limpo pelas pequenas aves da praia do Dr. Lecter, seco e esbranquiçado, repousava na almofada.

­ Onde estava o distintivo dele, Clarice?

­ Levaram­no. Disseram que custava sete dólares.

­ Isto é o que ele é agora, é tudo o que resta dele. É aquilo a que o tempo o reduziu.

Starling fixou os ossos. Virou­se e saiu rapidamente do quarto. Não era uma retirada e Lecter não a seguiu. Aguardou na obscuridade. Não tinha medo, mas ouviu­a regressar com ouvido tão apurado como o de uma cabra perseguida. Algo de metal reluzente na mão dela. Um distintivo, uma estrela, a estrela de John Brigham Pousou­a em cima do lençol.

­ o que é que uma estrela dessas pode significar para si, Clarice? Atravessou uma com um tiro, no celeiro.

­ Significava tudo para ele. Era só isso o que sabia. ­ A última palavra saiu­lhe distorcida e de lábios descaídos. Agarrou no crânio do pai e sentou­se na outra cama, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe saltavam dos olhos e escorriam pelas faces.

idêntica a uma miúda, agarrou na ponta da camisola, chegou­a ao rosto e soluçou, enquanto lágrimas amargas caíam com um ruído

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de gotejar de torneira sobre o buraco do crânio do pai, assentando­lhe no regaço, e o dente de coroa reluzia. ­ Amo o meu pai, ele era tão bom para mim quanto sabia ser. Foi a melhor época da minha vida. ­ E era verdade, tão verdade como a raiva que deixara escoar anteriormente.

Quando o Dr. Lecter lhe deu um lenço de papel, limitou­se a agarrá­lo e a limpar a face.

­ Clarice, vou deixá­la aqui com estes restos. Restos, Clarice. Grite todo o seu sofrimento para os buracos dos olhos e não obterá resposta. ­ Colocou­lhe as mãos nas têmporas. ­ o que necessita do seu pai está aqui, na sua cabeça, e sujeito ao seu julgamento, não ao dele, Agora, vou deixá­la. Quer as velas?

­ Sim, por favor.

­ Quando sair, traga somente o que precisar.

Aguardou na sala de estar, diante da lareira. Passou o tempo a tocar o seu teremim, movimentando as mãos vazias no campo electromagnético para criar música, movimentando as mãos que pousara nas têmporas de Clarice Starling, como se agora orquestrasse a músíca. Teve consciência de que Starling se encontrava atrás dele, algum tempo antes de acabar a música.

Quando se virou para ela, Claríce esboçava um sorriso suave e triste e tinha as mãos vazias.

Como sempre, procurava um padrão,

Sabia que, como todas as criaturas sensíveis, Starling formava matrizes com base nas suas primeiras experiências, estruturas que mais tarde possibilitavam a compreensão.

Ao falar com ela através das grades do hospício há muitos anos atrás, descobrira uma delas muito importante para Starling, o abate dos cordeiros e cavalos no rancho, que era o seu lar adoptivo, Ela ficara marcada pelo infortúnio dos animais.

A sua obsessiva e frutífera caçada a Jame Gurab foi despoletada pelo infortúnio da cativa.

Salvara­o da tortura pelo mesmo motivo. óptimo. Comportamento segundo um padrão.

Sempre à procura de cenários de situação, o Dr. Lecter acreditava que Starling viu em John Brigham as qualidades do pai e, em simultâneo com as virtudes do pai, o infeliz Brigham recebeu também o tabu incestual. Brigham, e possivelmente Crawford, tinham as qualidades do pai. Onde estavam os defeitos?

o Dr. Lecter procurava completar a matriz. Servindo­se de drogas e técnicas hipnóticas muito diferentes da terapia teórica, ia descobrindo na personalidade de Clarice Starlíng nódulos duros e persistentes,

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semelhantes a nós da madeira e velhos ressentimentos ainda tão inflamáveis como resina.

Encontrou tableaux de uma impiedosa clareza, com anos de vida mas bem cuidados e pormenorizados, que emitiam uma raiva límbica pelo cérebro de Starling como um raio numa tempestade.

A maior parte envolvia Paul KrendIer. o ressentimento dela pelas verdadeiras injustiças que sofrera nas mãos de KrendIer estava carregado da raiva contra o pai e que jamais confessaria. Era incapaz de perdoar ao pai por ter morrido. Ele abandonara a família, deixara de descascar laranjas na cozinha. Condenara a mãe à esfregona e ao balde. Deixara de abraçar Starling contra o peito, o grande coração palpitando como o coração de Hannah, enquanto cavalgavam pela noite.

KrendIer era a imagem do fracasso e frustração. Podia ser culpabilizado. Mas podia ser desafiado? Ou será que KrendIer e todas as outras autoridades e tabus detinham poderes para encurralar Starling no que era, segundo a perspectiva do Dr. Lecter, a sua vidinha?

Aos seus olhos, havia um sinal de esperança: embora conservasse o estigma do distintivo, ainda era capaz de abrir um buraco num deles e matar quem o usava. Porquê? Porque foi impelida à acção, identificou o portador como um criminoso e fez o juízo sem atender à imagem cunhada do distintivo. Flexibilidade potencial. As regras do córtex cerebral? Tal significaria espaço para Mischa dentro de Starling? Ou era simplesmente outra qualidade do espaço que Starling tinha de abandonar?

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capítulo noventa e seisBarney, de volta ao seu apartamento em Baltimore, de volta ao seu trabalho na Misericórdia, tinha o turno das três às onze horas da noite. Parou para comer uma sopa no café no caminho para casa e era quase meia­noite quando entrou no apartamento e acendeu a luz...

Ardelía Mapp estava sentada à sua mesa de cozinha. Apontava­lhe um revólver preto semiautomático ao rosto, A julgar pelo buraco do cano, Barney calculou que se tratava de uma arma de calibre 40.

­ Sente­se, enfermeiro ­ ordenou Mapp. ­ Expressava­se num tom rouco e os olhos denotavam um tom laranja à volta das pupilas escuras. ­ Puxe a cadeira para aqui e encoste­a para trás à parede.

o que o assustava mais do que o revólver na mão dela, era a outra pistola no pano de tabuleiro na sua frente. Tratava­se de um Colt Woodsman 22 automático com um silenciador de plástico preso no cano.

A cadeira rangeu sob o peso de Barmey ­ Se as pernas da cadeira se partirem, não me dê um tiro. A culpa não é minha ­ retorquiu.­ Sabe alguma coisa sobre Clarice Starling?

­ Não.

­ Não estou aqui para brincar, Barney ­ vincou Mapp, pegando na arma de pequeno calibre. ­ Mal me cheire que está a mentir, enfermeiro, vou escurecer esse banco, entendido?

­ Sim. ­ Barney não tinha a menor dúvida.

­ Vou repetir a pergunta, Sabe alguma coisa que possa ajudar­me a encontrar Clarice Starling? Os Serviços Postais garantem que o seu correio foi enviado para casa de Mason Verger durante um mês Que porra é essa, Barney?

­ Trabalhei lá. Estava a tratar de Mason Verger e ele perguntou­me tudo sobre Lecter. Não gostei das coisas por lá e despedi­me. Mason era um bom filho da mãe.

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­ Starling desapareceu.

­ Eu sei.

­ Talvez Lecter a apanhasse, talvez fossem os suínos. Se foi ele, o que lhe faria?

­ Estou a falar­lhe honestamente... não sei. Ajudaria Starling, se pudesse. Por que não o faria? Gostava dela e ela andava a livrar­me. Procure nos relatórios ou notas ou...

­já o fiz. Quero que entenda uma coisa, Barney Vou fazer­lhe uma oferta única. Se sabe qualquer coisa, é melhor dizer­me agora. Caso alguma vez descobrir, não importa daqui a quanto tempo, que me escondeu algo que podia ter ajudado, voltarei aqui e esta arma será a última coisa que verá na vida. Dou­lhe cabo desse enorme e feio cu. Acredita­me?

­ Sim.

­ Sabe alguma coisa?

­ Não. ­ o maior silêncio de que conseguia lembrar­se.­ Deixe­se ficar aí sentado até me ir embora.

Barney levou uma hora e meia a adormecer. Manteve­se deitado a olhar para o tecto, com a testa, da largura da de um golfinho, ora transpirada, ora seca. Barney pensava em próximas visitas. Antes de apagar a luz, dirigiu­se à casa de banho e tirou do seu hit dos fuzileiros um espelho de barbear de aço inoxidável.

Foi até à cozinha, abriu a caixa da electricidade metida na parede e colou o espelho do lado de dentro da caixa.

Nada mais podia fazer. Remexeu­se no sono como um cão. Depois do turno seguinte, trouxe do hospital um kit das violações.

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capítulo noventa e seteEra tudo o que o Dr. Lecter podia fazer na casa alemã, sem se desfazer do mobiliário. Flores e biombos deram uma ajuda. Tornava­se interessante observar o colorido ressaltando por entre as peças maciças e o escuro; formava um interessante contraste.

o seu senhorio ausente parecia ter uma fixação em Leda e o Cisne. o acasalamento entre espécies estava representado em nada menos do que quatro bronzes de diferente qualidade, sendo o melhor uma reprodução de Donatello, e oito quadros. Um deles fazia as delícias do Dr. Lecter, um Anne Shingleton com uma genial articulação anatómica e verdadeiro arrebatamento na foda. Tapou os restantes. A horrorosa colecção de bronzes do senhorio também recebeu o mesmo tratamento.

De manhã cedo, o Doutor pôs cuidadosamente a mesa para três, estudando­a de vários ângulos, com a ponta do dedo junto ao nariz, mudou duas vezes os candelabros e trocou os toalhetes individuais cor de damasco por uma toalha, a fim de dar um aspecto mais acolhedor à mesa de jantar oval.

o aparador escuro e desgracioso ficou menos parecido com um porta­aviões quando foi decorado com peças do serviço e terrinas de cobre. Na verdade, o Dr. Lecter retirou algumas das gavetas e ocupou o espaço vazio com flores, numa espécie de efeito de jardim suspenso.

Verificou que havia demasiadas flores na sala e tinha de acrescentar mais para conseguir o resultado pretendido. De mais era de mais, mas havia maneiras de dar a volta ao «de mais». Decidiu­se por dois arranjos de flores para a mesa: um, baixo, de peónias numa bandeja de prata, com a brancura dos SNO­BALLS, e um outro mais alto de campainhas­de­Irlanda, íris holandesas, orquídeas e tulipas que retiravam dimensão à mesa, criando um espaço íntimo.

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Os cristais encontravam­se diante dos pratos, mas os talheres de prata apenas seriam colocados no último momento.

o primeiro prato seria preparado à mesa e ele organizou os queimadores de álcool, com ofait­toute de cobre, a molheira e a caçarola do sauté, os condimentos e a serra de autópsia.

Poderia arranjar mais flores quando saísse. Clarice Starling não ficou perturbada quando lhe comunicou que ia sair. Sugeriu que talvez lhe apetecesse dormir,

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capítulo noventa e oitoNa tarde do quinto dia depois dos crimes, Barney acabara de se barbear e punha álcool nas faces, quando ouviu passos nas escadas. Eram quase horas de ir trabalhar.

Uma pancada firme. Margot Verger recortou­se na porta. Trazia uma bolsa grande e um saco pequeno.

­ Olá, Barney ­ Parecia cansada.­ Olá, Margot. Entra.

Convidou­a a sentar­se à mesa da cozinha. ­ Queres uma cola?­ Recordou­se depois que a cabeça de Cordell fora empurrada para um frigorífico e lamentou a oferta.

­ Não, obrigada ­ agradeceu.

Sentou­se do outro lado da mesa, em frente dela. Ela perscrutou­lhe os braços como uma musculadora rival e depois fixou novamente o rosto.

­ Estás bem, Margot?

­ Acho que sim ­ respondeu.

­ Segundo o que li, parece que não tens com que te preocupar.­ Às vezes, penso nas nossas conversas, Barney Julguei que ias dar­me notícias.

Barney interrogou­se sobre se ela teria o martelo na bolsa grande ou no saco pequeno.

­ Talvez um dia gostasse de saber como estás, se não te importares. Nunca pedirei nada. Estás à vontade comigo, Margot.

­ É só que podes preocupar­te com algumas pontas soltas. Não que tenha algo a esconder.

Barney sabia que ela tinha o sémen. Era quando a gravidez fosse anunciada, se a conseguissem, que se preocuparia com Barney­ Quero dizer, a morte dele foi uma dádiva de Deus. Não vou mentir sobre isso.

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A forma como a conversa se arrastava, indicava a Barney que ela estava a criar ambiente.

­ Talvez aceite a Coca­cola ­ disse ela.

­ Antes de ir buscá­la, deixa­me mostrar­te algo que tenho para ti. Acredita que posso tranquilizar­te e não te custará um chavo. Espera um segundo. Aguenta aí.

Escolheu uma chave de parafusos de uma série de ferramentas que estavam em cima do balcão. Fê­lo de lado para Margot.

Na parede da cozinha havia o que se tratava aparentemente de duas caixas da electricidade. Na verdade, uma delas substituíra a antiga do edifício e só a da direita se encontrava em funcionamento.

junto às caixas de electricidade, Barney teve de virar as costas a Margot. Abriu rapidamente a da esquerda. Agora, podia vê­la reflectida no espelho colado no interior da porta da caixa. Ela meteu a mão no interior da bolsa grande. Meteu, não a tirou.

Removendo quatro parafusos, conseguiu tirar da caixa o painel desligado dos fusíveis. Por detrás do painel havia o espaço na parede oca. Metendo cuidadosamente a mão no interior, Barney retirou um

saco de plástico. Ouviu o silvo da respiração de Margot quando exibiu o objecto que se encontrava lá dentro. Era o famoso rosto animalesco... a máscara que o Dr. Lecter tinha sido forçado a usar no Hospital Estadual para os Criminosamente Insanos de Baltimore, a fim de impedi­lo de morder. Este era o último e o mais valioso objecto da colecção de Barney das recordações do Dr. Lecter.

­ Uau! ­ exclamou Margot.

Barney colocou a máscara de rosto para baixo num pedaço de papel vegetal sob a forte luz da cozinha. Sabia que o Dr. Lecter nunca obtivera permissão de limpar a sua máscara. Saliva seca estava pegada ao interior da abertura da boca. No sítio em que as correias se atavam à máscara, havia três cabelos presos durante a manipulação e arrancados pela raiz.

Um olhar para Margot garantiu­lhe que, de momento, ela estava bem. Barney tirou o seu kit de violação do armário da cozinha. A caixinha em plástico continha gaze, água esterilizada, amostras de tecido e frascos vazios.

Com um cuidado infindo, limpou os pedaços de saliva com uma gaze humedecida. Meteu­a num frasco. Soltou os cabelos da máscara e colocou­os num segundo frasco.

Encostou com força o polegar aos lados pegajosos de dois bocados de fita adesiva, deixando uma nítida impressão digital de cada uma das vezes e tapou os frascos. Entregou os dois frascos a Margot num saquinho.

­ Digamos que me meti em qualquer sarilho, perdi a cabeça e tentei pôr­me em cima de ti... digamos que tentei contar à polícia

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qualquer história a teu respeito para me limpar de algumas acusações. Há aí provas de que fui, pelo menos, cúmplice na morte de Mason Verger e talvez tenha sido o autor de tudo. Pelo menos, dei­te o ADN.

­ Conseguirias imunidade antes de seres envolvido na tramóia.­ Por conspiração talvez, mas não por participar num assassínio tão publicitado. Prometiam­me imunidade a nível de conspiração e depois fodiam­me quando imaginassem que ajudei. Estaria lixado para sempre. Está aí nas tuas mãos. ­ Barney não tinha muitas certezas a este respeito, mas achava que as palavras haviam sido convincentes.

Ela podia igualmente aplicar o ADN de Lecter em Barney se precisasse e ambos o sabiam.

Fitou­o durante o que pareceu uma eternidade com os olhos azuis­claros de talhante e pousou o saco pequeno em cima da mesa.­ Há montes de dinheiro aí ­ indicou depois. ­ o suficiente para veres todos os Vermeer deste mundo. Uma vez. ­ Parecia um tanto ébria e estranhamente feliz. ­ Tenho o gato de Franklim no carro e preciso ir­me embora. Franklin, a madrasta e a irmã Shirley e um tipo qualquer chamado Stringbean e sabe­se lá quem mais vão para Muskrat, quando Franklim sair do hospital. Custou­me cinquenta dólares a apanhar o cabrão do gato. Estava a viver ao lado da velha casa de Franklim com outro nome.

Não meteu o saco de plástico na bolsa grande. Levou­a na mão que tinha livre. Barney concluiu que ela não queria que ele visse a outra opção que tinha na bolsa.

À porta, Barney perguntou: ­ Mereço um beijo?

Ela pôs­se nos bicos dos pés e beijou­o apressadamente nos lábios.­ É o que se arranja ­ replicou, arrogante. ­ Os degraus rangeram sob o seu peso, enquanto descia.

Barney fechou a porta à chave e deteve­se uns minutos com a testa encostada ao frigorífico.

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Capítulo noventa e noveStarling acordou ao som de uma remota música de câmara e com os acentuados cheiros de cozinhados. Sentia­se maravilhosamente refrescada e esfomeada, Uma pancada na porta e o Dr, Lecter entrou vestido com umas calças escuras, uma camisa branca e gravata. Trazia­lhe um saco com roupa e um cappuccíno quente.

­ Dormiu bem?

­ Lindamente, obrigada.

­ o chef informa­me que jantaremos dentro de uma hora e meia. Cocktails daqui a uma hora, de acordo? julguei que pudesse gostar... veja se lhe agrada. ­ Pendurou o saco no armário e saiu sem mais uma palavra.

Ela só foi espreitar o armário depois de um demorado banho e quando o fez, ficou satisfeita. Encontrou um vestido comprido de noite de seda bege, justo e com um acentuado decote sob um requintado casaco bordado a pérolas.

Na cómoda havia um par de brincos com pendentes de esmeraldas, não lapidadas, mas com um brilho ofuscante.

o cabelo nunca lhe dava problemas. Fisicamente, sentia­se muito à vontade com esta roupa. Embora não estivesse habituada a este tipo de vestido, apenas se olhou o suficiente no espelho para ver se estava tudo em ordem.

o senhorio alemão construiu as lareiras com um tamanho acima do normal. Na sala de estar, Starling encontrou um fogo agradável. Aproximou­se do calor com um fru­fru de seda.

Música do cravo, no canto. Sentado em frente, o Dr. Lecter de laço.

Ergueu os olhos, viu­a e a respiração morreu­lhe na garganta. Também as mãos pararam sobre o teclado. As cordas do cravo não

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produzem ressonância e, no repentino silêncio da sala de estar, ambos o ouviram retomar o fôlego.

Duas bebidas aguardavam diante da lareira. Ele ocupou­se delas. o Dr. Lecter estendeu uma a Clarice Starling.

­ Se a partir de agora a visse todos os dias, lembrar­me­ia sempre deste momento ­ disse, com os olhos escuros, absorvendo­lhe a figura.

­ Quantas vezes me viu? Que eu desconheça?­ Apenas três.

­ Mas aqui...

­ Está fora do tempo e o que eu possa ver a tratar de si, não compromete a sua privacidade. Fica no lugar próprio com a sua ficha clínica. Confessarei que é agradável olhá­la a dormir. É muito bonita, Clarice.

­ Os olhares são casuais, Doutor Lecter.

­ Se a beleza fosse uma conquista, continuaria a ser bonita.­ Obrigada.

­ Não diga obrigada. ­ Uma pequena viragem da cabeça foi suficiente para expressar um aborrecimento qual vidro atirado para a lareira.

­ Digo o que penso ­ retorquiu Starling. ­ Preferia que respondesse «Ainda bem que o acha». Seria um pouco mais elegante e igualmente verdade.

Ergueu o corpo sob o seu olhar de pradaria, sem obter resposta.

Nesse momento, ocorreu ao Dr. Lecter que com todo o seu conhecimento e perspicácia, nunca conseguia totalmente antecipá­la ou possui­la. Conseguia sussurrar através da crisálida; o que nascia seguia a própria natureza dela e ultrapassava­o. Interrogou­se sobre se ela teria a 45 na perna, sob o vestido.

Clarice Starling sorriu­lhe, as esmeraldas reluziram sob a luz da lareira e o monstro perdeu­se numa autocongratulação pelo seu requintado gosto e perspicácia.

­ o jantar apela ao gosto e cheiro, Clarice, os mais antigos sentidos e os mais próximos do centro da mente. o gosto e o cheiro encontram­se alojados em partes do espírito que antecedem a piedade e não há lugar para a piedade na minha mesa. Em simultâneo, representando na cúpula cortex, quais figuras na cúpula de uma igreja, estão as cerimónias, perspectivas e permutas do jantar. Pode ser mais envolvente do que o teatro. ­ Aproximou o rosto do dela, lendo­lhe o olhar. ­ Quero que compreenda a riqueza que lhe traz, Clarice, e quais são os seus direitos. Tem observado o seu reflexo no espelho ultimamente, Clarice? Não me parece. Duvido que alguma vez o faça. Venha até ao corredor e contemple­se no espelho.

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o Dr. Lecter agarrou num dos candelabros pousados na cornija da lareira. o espelho de corpo inteiro era uma das antiguidades valiosas do século XVIII, mas ligeiramente falho de brilho e rachado, Pertencera ao Chãteau Vaux­le­Vicorate e só Deus sabe ao que assistira.

­  Veja, Clarice. Essa deliciosa visão é você. Esta noite irá contemplar­se à distância durante algum tempo. Verá o que é justo, dirá o que é verdade. Nunca lhe faltou coragem para expressar o que pensa, mas foi sempre vítima de restrições. Vou repetir­lhe que não há lugar para a piedade nesta mesa.

­ Se se fizerem comentários momentaneamente desagradáveis, verá que o contexto pode situá­los entre a idiotice e a bizarria. Se se disserem coisas dolorosamente verdadeiras, será apenas passageiro e mudará. ­ Bebeu um gole do copo. ­ Se sentir o nascer da dor no seu íntimo, depressa se transformará em alívio. Compreende­me?

­ Não, Doutor Lecter, mas lembro­me do que disse. Que se lixe a perfeição. Quero um jantar agradável.

­ Isso posso prometer ­ sorriu, uma atitude que assusta alguns.

Nenhum deles fixou o reflexo dela no espelho pouco nítido; olhavam­se através das chamas do castiçal e o espelho observava­os por sua vez.

­ Veja, Clarice.

Ela observou os pontinhos vermelhos dos olhos castanho­avermelhados e sentiu a excitação de uma criança aproximando­se de uma feira.

Do bolso do casaco, o Dr. Lecter tirou uma seringa com uma agulha da grossura de um cabelo e sem olhar, apenas sentindo, enfiou a agulha no braço dela. Quando a retirou, a pequena ferida nem sequer sangrou.

­ o que estava a tocar quando eu entrei? ­ perguntou ela.­ f Love Now Reigned.

­ É muito antigo?

­ Henrique VIII compô­la por volta de mil quinhentos e dez.­ Toca­a para mim? ­ retorquiu. ­ Acaba­a, agora?

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capítulo cemA brisa da entrada deles na sala de jantar agitou as chamas dos castiçais e das caçarolas cobertas. Starling apenas vira a sala de jantar de passagem e era maravilhoso testemunhar a mudança verificada. Luminosa, convidativa. Cristais reflectindo as chamas das velas sobre os guardanapos cremes dos lugares e o espaço reduzido à intimidade com um biombo de flores isolando o resto da mesa.

o Dr. Lecter trouxera os talheres de prata de junto da caçarola coberta no último minuto e quando Starling explorou as proximidades, sentiu um calor quase febril no cabo da faca.

o Dr. Lecter serviu o vinho e deu­lhe somente um pequeno amusegueule para aperitivo, uma única ostra Belon e uma rodela de morcela, enquanto se sentava a beber meio copo de vinho e admirando­a no contexto da sua mesa.

A altura dos castiçais era perfeita. As chamas iluminavam­lhe o cavado decote e ele não tinha que se preocupar com as mangas.­ o que vamos comer?

­ Nunca se pergunta. Estraga a surpresa ­ retorquiu, levando um dedo aos lábios.

Falaram sobre os enfeites das penas da cauda dos corvos e o seu efeito no som de um cravo e por um único momento ela lembrou­se de um corvo roçando o carrinho de serviço da mãe numa varanda de um motel há muito tempo. À distância, considerou a memória irrelevante nesta altura tão agradável e pô­la deliberadamente de lado.

­ Com fome?­ Sim!

­ Então, comeremos o primeiro prato.

o Dr. Lecter retirou uma bandeja do aparador para um espaço junto ao seu lugar na mesa e empurrou um carrinho de apoio até ao

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lado da mesa, Aqui estavam as suas caçarolas, queimadores e condimentos distribuídos por pequenas taças de cristal.

Acendeu os bicos e colocou por uma boa porção de manteiga Charante na caçarola fait­toute de cobre, volteando a manteiga e regulando a chama para obter beurre­rioísette. Quando a manteiga adquiriu o acastanhado da noz, colocou­a de lado num tripé.

Sorriu a Starling, exibindo os dentes muito brancos.

­ Clarice, lembra­se da nossa conversa sobre comentários agradáveis e desagradáveis e das coisas divertidas em determinado contexto?

­ A manteiga cheira maravilhosamente, Sim, lembro­me.

­ E lembra­se de quem viu no espelho e de como ela era bonita?­ Se não se importa que lhe diga, Doutor Lecter, a conversa está a ficar um tanto monótona. Lembro­me perfeitamente.

­ Bom. Mister Krendier vai juntar­se­nos no nosso primeiro prato.

o Dr. Lecter mudou o grande arranjo de flores da mesa para o aparador.

o delegado do inspector­geral Paul Krendier, em carne e osso, estava sentado à mesa numa sólida cadeira de braços de carvalho. KrendIer abriu os olhos e olhou em redor. Tinha a fita de corrida à volta da cabeça e um elegante smoking com camisa e gravata. Dada a roupa ser aberta atrás, o Dr. Lecter conseguira dispô­la de forma a encobrir os metros de fita adesiva que o prendiam à cadeira.

As pálpebras de Starling talvez tivessem descaído um pouco, acompanhadas do ligeiro premir de lábios que algumas vezes se notavam na carreira de tiro.

o Dr. Lecter agarrou num par de pinças de prata que se encontravam no aparador e arrancou o adesivo que tapava a boca de Krendier.

­ Mais uma vez boa noite, Mister KrendIer.

­ Boa noite ­ respondeu KrendIer, que não parecia estar em si. No seu lugar havia uma pequena terrina.

­ Gostaria de dar as boas­noites a Míss Starling?

­ Olá, Starling ­ redarguiu, parecendo animar­se. ­ Sempre desejei vê­la comer.

Starling olhou­o à dístância, como se fosse o espelho antigo, recolhendo imagens. ­ Olá, Mister KrendIer. ­ Ergueu o rosto para o Dr. Lecter, ocupado com as caçarolas. ­ Como conseguiu apanhá­lo?

­ Mister KrendIer vai a caminho de uma importante conferência sobre o seu futuro na política ­ elucidou o Dr. Lecter. ­ Margot Verger convidou­o para me fazer um favor, Uma espécie de quíd pro quo, Mister KrendIer ia a fazer jogging em Rock Creek Park, ao encontro do helicóptero dos Verger. Mas acabou por viajar comigo. Gostaria

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de dizer a acção de graças antes da refeição, Mister KrendIer? Mister KrendIer?

­ Acção de graças? Sim. ­ KrendIer fechou os olhos. ­ Pai agradecemos­te as bençãos que estamos prestes a receber e oferecemos­tas. Starling já é uma rapariga crescida para andar a foder o pai, embora sendo sulista. Por favor, perdoa­lhe e põe­a ao meu serviço. Em nome de Jesus, amen.

Starling reparou que o Dr. Lecter manteve os olhos piedosamente fechados durante a oração.

Sentia­se perspicaz e calma. ­ Paul, tenho de dizer­lhe, que o Apóstolo Paulo não teria feito melhor. Também ele odiava as mulheres. Deveria ter­se chamado Appall.

­ Desta vez, é que deitou mesmo tudo a perder, Starling. Nunca mais será reintegrada.

­ Era uma oferta de emprego, o que meteu na oração? Nunca vi tamanho tacto.

­ Vou para o Senado ­ redarguiu KrendIer com um sorriso desagradável. ­ Apareça na sede da campanha e talvez lhe arranje alguma coisa que fazer. Pode ser empregada de escritório. Sabe dactilografar e arquivar?

­ Claro.

­ Estenografia?

­ Uso o software de reconhecimento de voz ­ redarguiu Starling e acrescentou num tom avaliador: ­ Desculpe falar­lhe de negócios à mesa, mas não tem rapidez bastante para roubar no Senado. Não consegue compensar uma inteligência de segunda categoria através de jogo sujo. Durará mais como braço direito de um ladrão em grande.

­ Não espere por nós, Mister KrendIer ­ incitou o Dr. Lecter.­ Coma o seu caldo, enquanto ainda está quente. ­ Levou a potagére tapada e uma palha aos lábios de KrendIer.

­ Esta sopa não sabe muito bem ­ queixou­se KrendIer com uma careta.

­ Na verdade, é antes uma infusão de salsa e tomilho ­ corrigiu o Doutor ­ e mais para seu bem do que nosso. Beba mais alguns goles e deixe­a circular.

Starling parecia estar a avaliar uma questão, servindo­se das palmas das mãos como os pratos da balança da justiça. ­ Sabe, Mister KrendIer, sempre que me olhava de soslaio, sentia uma aguilhoada como se tivesse feito algo para o merecer. ­ Movia as palmas das mãos criteriosamente para baixo e para cima, como se afiasse uma

1 Medricas, o que permite o trocadilho a nível de Paul e medo das mulheres. (N. da T)

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navalha. ­ Eu não o merecia. Sempre que escrevia um parecer negativo na minha folha de serviço, ficava magoada, mas prosseguia a auto­análise. Duvidava momentaneamente e tentava afastar a irritação de que os mais velhos sabem mais.

­ Não sabe mais, Mister Krendier ­ prosseguiu. ­ De facto, não sabe nada. ­ Starling sorveu um gole do seu maravilhoso Borgonha branco e dirigiu­se ao Dr. Lecter: ­ Adoro isto. Acho, porém, que devíamos retirá­lo do gelo. ­ Virou­se novamente, atenta anfitriã, para o seu convidado: ­ Será eternamente um... um idíota, um zero à esquerda. ­ E basta de falar sobre si nesta encantadora mesa. Uma vez que é convidado do Doutor Lecter, espero que aprecie a refeição.

­ Quem é você, afinal? ­ replicou Krendier. ­ Não é Starling. Tem a mancha na cara, mas não é Starling.

o Dr. Lecter adicionou cebolinhas à sua manteiga quente e acastanhada e quando o aroma se sentiu, deitou­lhe alcaparras picadas. Retirou a caçarola do fogo, e colocou o sauté a aquecer. Pegou numa grande taça com água gelada que estava no aparador e numa salva de prata, pondo­as ao lado de Paul KrendIer.

­ Tinha alguns planos para essa línguinha afiada ­ retorquiu Krendier ­, mas agora nunca a contrataria. De qualquer forma, quem lhe marcou entrevista?

­ Não estou à espera que mude inteiramente de atitude como fez o outro Paul, Mister Krendier. ­ Não segue pela estrada rumo a Damasco, nem pela estrada rumo ao helicóptero dos Verger.

o Dr. Lecter retirou a fita desportiva da cabeça de Krendier, como se tira a fita de borracha de uma lata de caviar.

­ Apenas lhe pedimos que mantenha uma mente aberta. Cuidadosamente e servindo­se das duas mãos, o Dr. Lecter cortou o cimo da cabeça de Krendier, pousou­a na salva e levou­a para o aparador. Mal pingou uma gota de sangue da incisão perfeita, pois os vasos sanguíneos principais tinham sido atados e os restantes selados com um anestésico local, e o cérebro cerrado à volta na cozinha, uma meia hora antes da refeição.

o método do Dr. Lecter de remover o topo do crânio de Krendier era tão antigo quanto a medicina egípcia, só que tinha a vantagem de uma serra de autópsia com serra cranial, uma chave própria e melhores anestésicos. o cérebro em si fica insensível à dor.

A parte superior rosa do cérebro de Krendier era visível sobre o crânio truncado.

Debruçando­se sobre Krendier com um instrumento semelhante a uma colher de tonsura, o Dr. Lecter removeu uma fatia do lóbulo pré­frontal de Krendier, depois outra, até ter quatro. Krendier ergueu os olhos, como se estivesse a seguir o que se passava. o Dr.

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Lecter colocou as fatias na taça com água gelada, estando a água acidificada com o sumo de um limão para que não amolecessem.

­ Would you like to swing on a star ­ cantou Krendier repentinamente. ­ Carry moonbeams home in a jar. Na cozinha tradicional, os miolos são embebidos, depois esmagados e conservam­se no gelo uma noite para que fiquem firmes. o grande desafio de lidar com matéria fresca reside em impedir que se desfaçam simplesmente numa massa gelatinosa.

Com uma espantosa destreza, o Doutor colocou as fatias firmes numa bandeja, passou­as ao de leve por farinha e em seguida por pão ralado fresco.

Raspou uma trufa negra fresca para o molho e finalizou a tarefa com uma pitada de sumo de limão.

Panou rapidamente as fatias até ficarem acastanhadas dos dois lados.

­ Cheira optimamente! ­ exclamou KrendIer.

o Dr. Lecter dispôs os miolos panados sobre fatias de pão torrado nos pratos aquecidos e regou­os com o molho e pedaços de trufa. A apresentação ficou completa com um pé de salsa, alcachofras e um único ramo de chagueira em cima de agrião para aumentar o volume.

­ Que tal está? ­ interessou­se KrendIer, novamente por detrás das flores e falando num tom descontroladamente elevado como é natural nas pessoas sujeitas a lobotomias.

­ Excelente ­ elogiou Starling. ­ Nunca tinha comido alcachofras.

o Dr. Lecter achou intensamente comovente o brilho que o molho de manteiga lhe deixara no lábio.

KrendIer entoava por detrás das plantas, na sua maioria canções infantis e convidando à réplica.

Indiferentes à sua presença, o Dr. Lecter e Starling discutiam Mischa. Starling conhecia o destino da irmã do Doutor das conversas de ambos sobre a perda, mas agora o Doutor referia­se de uma forma esperançosa ao seu possível regresso. Nesta noite, Starling não achava despropositado que Mischa pudesse voltar. Deu mesmo voz à esperança de conhecer Mischa.

­ Nunca poderia atender o telefone no meu gabinete. Parece uma cona provinciana ­ gritou Krendier através das flores.

­ Veja se não lhe soou a Oliver Twist quando peço MAIS ­ retorquiu Starling, arrastada pelo regozijo do Dr. Lecter que ele mal podia conter.

Uma segunda incisão consumiu a maioria do lóbulo frontal, até ao córtex pré­motor. KrendIer ficou reduzido a 

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observações irrelevantes

Se numa estrela quiseres balouçar, leva num jarro raios de luar (N. da T)

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sobre coisas recortadas na sua visão imediata e à récita desafinada por detrás das flores de um comprido poema lascivo chamado Shine.

Absortos na sua conversa Starling e Lecter não se mostraram mais perturbados do que ficariam pelo cantar de uns parabéns na mesa ao lado de um restaurante, mas quando o volume da voz de KrendIer se tornou incomodativo, o Dr. Lecter foi buscar a besta a um canto.

­ Quero que escute o som deste instrumento de cordas, Clarice. Aguardou um momento de silêncio de KrendIer e disparou uma seta do outro lado da mesa por entre as flores.

­ Se voltar a ouvir em qualquer contexto esta frequência particular da corda da besta, ela apenas significa a sua total liberdade, paz e auto­suficiência ­ replicou o Dr. Lecter.

As penas e uma parte da seta permaneceram do lado visível do arranjo de flores e moviam­se à velocidade aproximada de uma batuta orquestrando um coração. A voz de KrendIer deteve­se e, umas batidas depois, também a batuta parou.

É um Ré abaixo de um Dó médio? ­ perguntou Starling. Exacto.

Um momento depois, KrendIer emitiu um som gorgolejante por detrás das flores. Era apenas um espasmo na laringe causado pela crescente acidez do sangue, dado ter morrido há pouco.

­ Passemos ao prato seguinte ­ disse o Doutor. ­ Um pouco de sorvete para refrescar os palatos antes da codorniz. Não, não se levante. Mister KrendIer vai ajudar­me a levantar os pratos, se lhe permitir.

Tudo se processou rapidamente. Por detrás do biombo de flores, o Dr. Lecter limitou­se a despejar os restos dos pratos para o interior do crânio de KrendIer e amontoou­lhos no colo. Voltou a colocar o topo da cabeça de KrendIer e pegando na corda atada a um estrado colocado sob a sua cadeira, puxou­o até à cozinha.

Ali, o Dr. Lecter rebobinou a besta. Serviu­se curiosamente da mesma bateria do que para a sua serra de autópsia.

As peles da codorniz eram ásperas e estavam recheadas de foie gras. o Dr. Lecter falou dos dotes de compositor de Henrique VIII e Starling elucidou­o sobre a ajuda do computador na produção de sons de motor, a réplica de modulações agradáveis.

o Dr. Lecter anunciou que a sobremesa seria servida na sala de estar.

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capitulo cento e umUm soufflé e copos de Chãteau d’Yquem diante da lareira na sala de estar, o café pronto numa mesa junto ao cotovelo de Starling.

As chamas dançando no vinho dourado, o aroma sobrepondo­se ao crepitar do toro ardente.

Falaram de chávenas de chá, do tempo e do princípio da desordem.

­ E foi assim que acabei por acreditar que tinha de haver um lugar no mundo para Mischa, um lugar de primeira vazio para ela e concluí, Clarice, que o melhor lugar do mundo era o seu.

o fogo da lareira não iluminava tão satisfatoriamente o corpete do vestido como as chamas do castiçal, mas era maravilhosa a forma como lhe incidia nos ossos do rosto.

­ Deixe­me fazer­lhe uma pergunta, Doutor Lecter ­ redarguiu, depois de reflectir um momento. ­ Se há necessidade de um lugar de primeira para Mischa neste mundo e não duvido que haja, o que há de errado com o seu lugar? Está bem ocupado e sei que nunca lho negaria. Ela e eu poderíamos ser como irmãs. E, se como diz, existe lugar em mim para o meu pai, porque não há em si para Mischa?

o Dr. Lecter pareceu satisfeito, embora fosse impossível saber se com a ideia ou a solução de Starling. Talvez sentisse uma vaga preocupação por a sua obra ser superior ao que pensava.

Quando ela voltou a colocar o copo na mesa ao lado, empurrou a chávena de café que se estilhaçou na lareira. Nem sequer a olhou. o Dr. Lecter examinou os cacos, e estavam imóveis.

­ Não acho que tenha de decidir­se neste preciso momento redarguiu Starling. Os olhos e as esmeraldas brilhavam sob o fogo da lareira. Um suspiro das chamas, o calor das chamas através do seu vestido e Starling foi invadida por uma recordação passageira... o Doutor

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Lecter, há tanto tempo atrás, perguntando à Senadora Martin se ela deu o peito àfilha. Um momento precioso agitando a calma invulgar de Starling: por um instante, alinharam­se muitas janelas na sua mente e divisou para lá da sua própria experiência. ­ Hannibal Lecter, a sua mãe alguma vez o amamentou? ­ inquiriu.

­ Sim.

­ Alguma vez sentiu que tinha de dar o peito a Mischa? Alguma vez sentiu que tinha de abdicar por ela?

Uma batida do coração. ­ Não me lembro, Clarice. Se abdiquei, fi­lo de bom grado.

Clarice Starling meteu a mão em concha no cavado decote do vestido e libertou o seio. ­ Não tem de abdicar deste ­ declarou.­ Sem o desfitar, retirou o quente Chãteau d’Yquem da boca com o indicador e uma espessa e doce gota ficou suspensa do mamilo qual cabochão dourado e estremeceu ao ritmo da respiração.

Ele levantou­se imediatamente da cadeira, dobrou­se apoiado num joelho diante dela e baixou a cabeça elegante e de cabelos negros ao encontro dos tons bege e coral iluminados pela lareira.

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capítulo cento e doisBuenos Aires, Argentina, três anos mais tarde:

Barney e Lillian Hersh passeavam junto ao Obelisco na Avenida9 de Julho, de manhã cedo. Miss Hersh ensina na London University e está de licença. Ela e Barney conheceram­se no Museu de Arqueologia na cidade do México. Gostam um do outro e há duas semanas que viajam juntos, tentando um dia de cada vez e está a tornar­se cada vez mais agradável. Não se sentem cansados um do outro.

Tinham chegado tarde de mais a Buenos Aires para poderem visitar o Museu Nacional, onde se encontrava um Vermeer de empréstimo. A missão de Barney de ver todos os Vermeer do mundo divertia Lillian Hersh e não interferia nos bons momentos que viviam juntos. Ele já tinha visto um quarto dos Vermeer e ainda restavam muitos.

Andavam à procura de um café simpático, onde pudessem comer na esplanada.

Limusinas faziam fila no Teatro Colón, a ópera espectacular de Buenos Aires. Pararam a observar a entrada dos amantes de ópera. Tamerlane estava em cartaz com um fantástico elenco e vale a pena assistir à multidão que acorre a uma noite de estreia em Buenos Aires.

­ Gostas de ópera, Barney? Pensei que gostarias. Eu desembolso.

Divertia­o quando ela usava calão. ­ Se conseguires fazer com que passe, desembolso eu ­ retorquiu Barney ­ Achas que nos deixam entrar?

Nesse momento, um Mercedes Maybach, azul e prateado descreveu silenciosamente a curva. Um porteiro acorreu a abrir a porta. Um homem elegante de gravata branca, saiu e estendeu a mão

a uma mulher. A visão feminina despertou um sussurro de admiração

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na multidão junto à entrada. o cabelo formava um capacete platinado e usava um leve véu de tule coral. Esmeraldas reluziam a verde no pescoço. Barney apenas a divisou de relance por entre as cabeças da multidão e ela, juntamente com o cavalheiro, desapareceram no interior.

Barney conseguiu ver melhor o homem. Tinha uma cabeça esguia qual lontra e o nariz formava um arco imperial semelhante ao de Perón. o porte fazia com que parecesse mais alto do que na realidade o era.

­ Barney? Oh, Barney ­ dizia Lillian ­ Quando voltares a ti, se é que isso vai acontecer, responde se gostarias de ir à ópera. Se nos deixarem entrar à civil. Bom, já disse, mesmo que não seja adequado... mas sempre desejei dizer que estava à civil.

Ao ver que Barney não comentava, olhou­o de lado. Ele tinha sempre qualquer observação.

­ Sim ­ respondeu finalmente Barney, distraído. ­ Eu desembolso. ­ Barney tinha montes de dinheiro. Era cuidadoso, mas não agarrado. Mesmo assim, os únicos bilhetes disponiveis eram os destinados a estudantes.

Prevendo a qualidade dos lugares, alugou binóculos no hall. o imenso teatro é um misto de Renascença italiana, estilos grego e francês, com cobres, dourados e veludo vermelho. jóias brilhavam no meio da multidão semelhantes a lâmpadas num jogo de futebol.

Lillian explicou­lhe a trama antes da abertura, falando­lhe baixinho ao ouvido.

Pouco antes das luzes se apagarem, varrendo toda a casa, Barney detectou­os, a loura platinada e o acompanhante. Tinham acabado de transpor as cortinas douradas do camarote ornamentado junto ao palco. As esmeraldas na garganta feminina brilhavam tanto como as luzes da sala, no momento em que se sentou.

Barney apenas lhe vira de relance o perfil do lado direito quando ela entrara no teatro. Agora, via também o esquerdo.

Os estudantes que os rodeavam, veteranos dos «galinheiros», haviam trazido todo o tipo de ajuda visual. Um deles tinha uma lente tão longa que batia no cabelo da pessoa da frente. Barney negociou o equipamento com ele a fim de observar o longínquo camarote. Tornava­se difícil detectar novamente o camarote no limitado campo de visão do comprido tubo, mas quando o conseguiu, verificou que o par se mantinha surpreendentemente próximo.

A face da mulher denotava um sinal. Os olhos dela varreram o teatro, vaguearam pelo lugar onde ele se encontrava e prosseguiram. Parecia entusiasmada e com um perfeito controlo da boca cor de coral. Inclinou­se para o acompanhante, murmurou algo e riram em uníssono. Ela pousou a mão na dele e agarrou­lhe no polegar.

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­ Starling ­ pronunciou Barney, ofegante.

­ o quê? ­ sussurrou Lillian.

Barney sentiu uma tremenda dificuldade em acompanhar o primeiro acto da ópera. Mal as luzes se acenderam para o primeiro intervalo, apontou novamente a lente para o camarote. o cavalheiro pegou numa taça de champagne da bandeja de um empregado e estendeu­a à senhora, e também agarrou numa para si. Barney ampliou o perfil, o formato das orelhas.

Passeou a lente a todo o comprimento dos braços expostos da mulher. o seu olhar experiente apreciou a nudez e os músculos. Enquanto Barney observava, a cabeça do cavalheiro virou­se,

como que para apreender um som distante, na direcção de Barney o cavalheiro ergueu os binóculos à altura dos olhos. Barney iria jurar que os binóculos estavam assestados nele. Colocou o programa diante dos olhos e deslizou no lugar para tentar parecer de estatura média.

­ Quero que me faças um grande favor, Lillian ­ disse.

­ Uuumm! ­ exclamou. ­ Se for como os outros, acho melhor ouvir primeiro.

­ Vamos embora quando as luzes se apagarem. Vais esta noite comigo para o Rio. Sem perguntas.

o Vermeer de Buenos Aires é o único que Barney nunca viu.

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Capítulo cento e trêsSeguir este elegante par à saída da ópera? De acordo, mas com muito cuidado...

No milénio, Buenos Aires encontra­se possuída pelo tango e a noite parece pulsar. o Mercedes, com os vidros descidos, a fim de deixar entrar a música dos clubes de dança, rola devagar através do bairro Recoleta até à Avenida Alvear e desaparece no pátio de um requintado edifício das Belas­Artes, próximo da Embaixada da França.

A atmosfera está fresca e uma ceia tardia aguarda no terraço do último andar, mas não se vêem criados.

Reina a alegria entre o pessoal desta casa, mas são regidos por uma disciplina férrea. Estão proibidos de entrarem no último andar da mansão antes do meio­dia. Ou depois de servirem o primeiro prato, ao jantar.

o Dr. Lecter e Clarice Starling conversam frequentemente ao jantar noutros idiomas que não o inglês nativo de Starling. Ela assistiu a aulas de francês e de espanhol e descobriu que tem bom ouvido. Falam muito italiano à hora das refeições; ela encontra uma curiosa liberdade nas nuances visuais da língua.

Por vezes, o nosso par dança à hora do jantar. Outras, não acabam de jantar.

A sua relação tem muito a ver com a integração de Clarice Starling, que ela recebe e encoraja avidamente. Tem muito a ver com o envolvimento de Hannibal Lecter, muito para lá das fronteiras da sua experiência. É possível que Clarice Starling pudesse assustá­lo. o sexo é uma fabulosa construção a que adicionam algo diariamente.

o Palácio da Memória de Clarice Starling está igualmente a ser construído. Partilha algumas salas com o próprio Palácio da Memória do Dr. Lecter ­ ele descobriu­a várias vezes por lá ­, mas o palácio dela cresce independentemente. Está cheio de coisas novas. Lá pode

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visitar o pai. E Hannah também tem o seu pasto. Lá, também se encontra Jack Crawford quando ela decide vê­lo inclinado sobre a secretária... passado um mês após o regresso a casa de Crawford do hospital, as dores no peito reapareceram de noite. Em vez de chamar uma ambulância e passar de novo pelo mesmo, optou simplesmente por rolar para o conforto do lugar da cama deixado pela falecida mulher:

Starling soube da morte de Crawford durante uma das visitas regulares que o Dr. Lecter fazia ao site público do FBI na Internet para admirar a sua parecença com a dos Dez Mais Procurados. A fotografia do Dr. Lecter que o Bureau utiliza situa­se há uns dois semblantes atrás.

Depois de Starling ter lido a notícia da morte de Jack Crawford, caminhou sozinha a maior parte do dia e sentiu­se contente por regressar a casa à noite.

Há um ano, mandou incrustrar uma das suas esmeraldas num anel. Tem no interior a gravação «AM­CS». Ardelia Mapp recebeu­o num envelope sem remetente e com um bilhete. «Querida Ardelia, estou bem, estou óptima. Não me procures. Adoro­te. Desculpa ter­te assustado. Queima isto. Starling».

Mapp levou o anel até ao rio Shenandoah, onde Starling costumava correr. Caminhou durante muito tempo com ele bem apertado na mão, furiosa, disposta a atirar o anel para o rio, imaginando o arco que descreveria no ar e o pequeno chapinhar na água. Por fim, enfiou­o no dedo e meteu a mão no bolso. Mapp não chora muitas vezes. Continuou a caminhar até se acalmar. Estava escuro quando regressou ao carro.

É difícil saber o que Starling se recorda da sua antiga vida, o que opta por guardar. As drogas que a aguentaram nos primeiros dias não desempenharam qualquer papel nas vidas de ambos durante muito tempo. Nem as longas conversas com uma única luz na sala.

Ocasionalmente e de propósito o Dr. Lecter deixa que uma chávena de chá se estilhace no chão. Fica satisfeito quando os cacos não se unem. Há muitos meses que não vê Mischa nos seus sonhos.

Algum dia, talvez os cacos de uma chávena se unam. Ou algures Starling possa ouvir o retesar do arco de uma besta e ter um despertar involuntário, se é que, de facto, dorme.

Agora, também nos vamos retirar, enquanto eles dançam no terraço ­ o esperto Barney já deixou a cidade e temos de seguir­lhe o exemplo. Se algum deles nos descobrisse, seria fatal.

Apenas podemos saber tudo isto e continuar vivos.

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AgradecimentosNa tentativa de compreender a estrutura do Palácio da Memória do Dr. Lecter fui ajudado pela notável obra de Frances A. Yates The Art of Memory e por The Memory Palace of Matteo Ricci de Jonathan D. Spence.

o uso da tradução de Robert Pinsky de o Inferno de Dante foi uma dádiva e um prazer, juntamente com as notas de Nicole Pinsky o termo «pele festiva» pertence à tradução de Pinsky de Dante.

«No jardim do lho do tufão» é uma frase de John Ciardi e o título de um dos seus poemas.

Os primeiros versos do poema que Clarice Starling recorda no hospício são de Burnt Norton de T. S. Eliot.

Os meus agradecimentos a Pace Barnes pela coragem, apoio e sábios conselhos.

Carole Bacon, a minha editora e amiga, ajudou­me a escrever um romance melhor.

Athena Varounis e Bill Trible, nos EUA, e Ruggero Perugim em Itália, elucidaram­me sobre a aplicação da lei. Nenhum deles é uma personagem deste livro, nem qualquer outra pessoa viva. Fui buscar a perversão existente ao meu próprio íntimo.

Niccolo Capponi partilhou comigo o seu profundo conhecimento de Florença e da sua arte e permitiu que o Dr. Lecter utilizasse o seu palazzo de família. Os meus agradecimentos também a Robert Held pela sua erudição e a Caroline Michalielles pelo muito da sua percepção de Florença.

Os funcionários da Carnegie Public Library em Coaliorna. Courity, Mississipi, fizeram investigações de anos. Obrigado.

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Devo muito a Marguerite Schmitt: Com uma trufa branca e a

magia do seu coração e mãos, proporcionou­nos acesso às maravilhas de Florença. É tarde de mais para agradecer a Marguerite; neste momento final, quero pronunciar o nome dela.