Gunther Anders

84
See discussions, stats, and author profiles for this publication at: http://www.researchgate.net/publication/271964723 O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ - Uma Tradução Crítica de “O Antiqüismo do Homem”, de Günther Anders THESIS · DECEMBER 2007 DOI: 10.13140/2.1.1355.3442 DOWNLOADS 32 VIEWS 16 1 AUTHOR: Thiago Scarelli University of São Paulo 4 PUBLICATIONS 0 CITATIONS SEE PROFILE Available from: Thiago Scarelli Retrieved on: 03 August 2015

description

Teoria Geral

Transcript of Gunther Anders

Page 1: Gunther Anders

Seediscussions,stats,andauthorprofilesforthispublicationat:http://www.researchgate.net/publication/271964723

OMUNDOCOMOFANTASMAEMATRIZ-UmaTraduçãoCríticade“OAntiqüismodoHomem”,deGüntherAnders

THESIS·DECEMBER2007

DOI:10.13140/2.1.1355.3442

DOWNLOADS

32

VIEWS

16

1AUTHOR:

ThiagoScarelli

UniversityofSãoPaulo

4PUBLICATIONS0CITATIONS

SEEPROFILE

Availablefrom:ThiagoScarelli

Retrievedon:03August2015

Page 2: Gunther Anders

Universidade de São Paulo

Escola de Comunicações e Artes

Departamento de Jornalismo e Editoração

O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ

Considerações Filosóficas sobre o Rádio e a Televisão

– Uma Tradução Crítica de “O Antiqüismo do Homem”, de Günther Anders –

Thiago Scarelli

São Paulo

Dezembro de 2007

Page 3: Gunther Anders

O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ

Considerações Filosóficas sobre o Rádio e a Televisão

– Uma Tradução Crítica de “O Antiqüismo do Homem”, de Günther Anders –

Monografia apresentada à Escola de Comunicações e

Artes da Universidade de São Paulo como requisito

para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação

Social pelo aluno Thiago Scarelli, sob a orientação do

Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho.

São Paulo

Dezembro de 2007

Page 4: Gunther Anders

“Escrever textos sobre a moral, textos que apenas colegas acadêmicos

leriam, parecia-me sem sentido, estranho, quando não mesmo imoral.

Tão sem sentido quanto um padeiro que assa pães apenas para outros

padeiros. Em suma: eu tentei formular a moral de tal forma que a

mensagem chegasse.”

Günther Anders (1902-1992)

Page 5: Gunther Anders

Esse trabalho é dedicado aos amigos Carolina de Oliveira e Victor Strazzeri,

pela sempre brilhante e carinhosa companhia.

E a Marilia Chaves,

que me traz para perto daquilo que sou.

Page 6: Gunther Anders

Resumo

Esta monografia apresenta a primeira tradução em português comentada e anotada

do texto “Die Welt als Phantom und Matrize. Philosophische Betrachtungen über Rundfunk

und Fernsehen” (“O Mundo como Fantasma e como Matriz. Considerações Filosóficas sobre

o Rádio e a Televisão”), realizada a partir de excertos selecionados do livro “Die

Antiquiertheit des Menschen 1: Über die Seele im Zeitalter der zweiten industrielen

Revolution” (“O Antiqüismo do Homem 1: Sobre a Alma na Era da Segunda Revolução

Industrial”), considerado o principal trabalho do filósofo alemão Günther Stern Anders (1902-

1992). Nos trechos dispostos aqui, Günther Anders – um dos primeiros pensadores a tomar

por tema filosófico rigoroso a moderna comunicação-de-massa – argumenta contra a

neutralidade da técnica e discute as conseqüências da existência do rádio e da televisão

enquanto transmissores de notícias.

Palavras-chave: Günther Anders; Técnica; Televisão; Rádio; Notícia; Tradução;

Teoria da Comunicação; Medienphilosophie.

Abstract

This paper presents the first commented Portuguese translation of the text “Die

Welt als Phantom und Matrize. Philosophische Betrachtungen über Rundfunk und

Fernsehen”, made through selected excerpts from the book “Die Antiquiertheit des

Menschen 1: Über die Seele im Zeitalter der zweiten industrielen Revolution”, considered

the main work of the German philosopher Günther Stern Anders (1902-1992). On the

passages at hand here, Günther Anders – one of the pioneering researchers to take modern

mass-media as a rigorous philosophical theme – argues against the neutrality of technique and

debates the consequences of the existence of radio and television as news transmitters.

Keywords: Günther Anders, Technique; Television; Radio, News, Translation,

Theory of Communication; Medienphilosophie.

Page 7: Gunther Anders

ÍNDICE

PREFÁCIO .......................................................................................................... 07

APRESENTAÇÃO BIOGRÁFICA DE GÜNTHER ANDERS ........................................... 09

NOTA DO TRADUTOR......................................................................................... 16

O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ

Considerações filosóficas sobre o rádio e a televisão ........................................ 20

I. O MUNDO ENTREGUE EM DOMICÍLIO .............................................................. 22

§ 1. Nenhum meio é apenas um meio ................................................................. 22

§ 2. O consumo-de-massa acontece hoje solisticamente –

Cada consumidor é um trabalhador doméstico não-remunerado

na produção do homem-de-massa .................................................................... 24

§ 3. Rádio e televisão tornam-se mesa familiar negativa; a família torna-se

público en miniature ......................................................................................... 27

§ 4. Uma vez que os aparelhos nos tomam a fala, eles nos transformam

em dependentes e servos ................................................................................... 29

§ 5. Os acontecimentos chegam a nós, não nós a eles ....................................... 32

II. O FANTASMA ................................................................................................ 38

§ 11. A relação homem-mundo torna-se unilateral; o mundo, nem presente,

nem ausente, torna-se um fantasma ................................................................... 38

§ 12. Imagem e reprodução na TV são sincrônicas. Sincronia é a forma

de atrofia da presença ....................................................................................... 40

Page 8: Gunther Anders

III. A NOTÍCIA .................................................................................................. 44

§ 17. Pragmática teoria do juízo: Aquele que recebe a notícia é livre, uma

vez que ele dispõe sobre o ausente; não-livre, uma vez que ele, ao invés da

coisa em si, conserva apenas seu predicado ...................................................... 45

§ 18. Transmissões apagam a diferença entre coisa e notícia. Elas são

juízos ornamentados ........................................................................................ 49

§ 19. Mercadorias são juízos camuflados. Fantasmas são mercadorias.

Fantasmas são juízos camuflados ..................................................................... 51

IV. A MATRIZ ................................................................................................... 54

§ 20. O todo é menos verdadeiro que a soma das verdades de seus

fragmentos – Disfarce realista dos padrões objetiva a padronização

da experiência................................................................................................... 54

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Sobre a filosofia da notícia e a prática do jornalismo ......................................... 62

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 67

BIBLIOGRAFIA CRONOLÓGICA DE GÜNTHER ANDERS .......................................... 71

ANEXO: LOB DER STURHEIT ............................................................................... 75

Page 9: Gunther Anders

7

PREFÁCIO

A definitiva inspiração para o presente trabalho se deve a um livro que me caiu

nas mãos quase por acaso há cerca de sete meses; mais especificamente, deve-se a um texto

curto, de não mais que uma dezena de páginas, que se encontra nele. “A incrível atualidade de

Günther Anders” contava sobre um certo filósofo alemão, contemporâneo de todas as

celebridades frankfurtianas, que tinha impressionado Jean-Paul Sartre mas nunca conquistou

nem mesmo um sorriso de Theodor Adorno. Não demorou para que eu descobrisse que este

senhor Günther Anders, autor de mais de trinta livros, entre obras filosóficas e literárias,

continua ainda um pensador desconhecido no Brasil – seu único trabalho publicado por aqui é

uma crítica literária sobre Franz Kafka, cuja sobrevivência editorial depende muito mais de

Kafka do que de Anders. Não surpreende, portanto, que mesmo nessa louvável exceção a

biografia disponível sobre o autor seja imprecisa.

Este trabalho, bastante ciente de suas restrições, não tem a pretensão de resolver

essa lacuna. Limita-se apenas a oferecer um possível caminho até um dos livros mais

importantes de Anders, a saber, “O Antiqüismo do Homem”. Digo possível porque já de

partida não dá conta de toda a obra – distribuída em dois volumes e 818 páginas –, mas sim

apresenta uma seleção de 11 capítulos entre aqueles que compõem a seção “O Mundo como

Fantasma e Matriz”, não por acaso aqueles nos quais o filósofo se concentra na discussão

sobre o rádio, a televisão e a natureza da notícia.

Antes da tradução em si, esta monografia realiza uma breve introdução biográfica

a respeito de Günther Anders, baseada principalmente em um site assinado por Harold

Marcuse, neto de Herbert Marcuse e considerado por Anders como seu “neto postiço”; e em

um texto do sociólogo alemão Mathias Greffrath, que entrevistou o filósofo em 1977 como

uma das fontes de seu livro “Die Zerstörung einer Zukunft”. Em tempo: o texto original de

Greffrath em alemão está em anexo no final do trabalho.

Em seguida, na seção “Nota do Tradutor”, são apresentados os princípios gerais

da metodologia que orientou o trabalho de tradução. Aqui são discutidas as linhas teóricas da

atividade, assim como são justificadas algumas das opções feitas na presente versão lusófona.

Page 10: Gunther Anders

8

A parte central do trabalho consiste na tradução anotada e comentada de excertos

do livro “Die Antiquiertheit des Menschen”, os quais estão situados no intervalo entre as

páginas 97 e 170 da edição publicada em 2002 pela editora C.H. Beck, cujo texto corresponde

integralmente à edição original de 1956, lançada pela mesma editora.

Finalmente, discute-se a pertinência dos argumentos de Anders para o jornalismo

atual, em um texto que revisita concisamente a lógica do filósofo com o objetivo de apontar a

importância transversal do autor para a atividade do jornalista. Depois disso, elenca-se a

bibliografia consultada na elaboração desta monografia, seguida por uma bibliografia

cronológica de Günther Anders, que lista as publicações originais do autor de 1924 a 2002.

Aproveito a ocasião para agradecer a confiança e simpatia de Ciro Marcondes

Filho, autor do texto citado no início deste prefácio e com quem tive a felicidade de levar a

cabo este trabalho; e o permanente apoio e a insubstituível atenção de minha família durante

toda a minha graduação.

Page 11: Gunther Anders

9

APRESENTAÇÃO BIOGRÁFICA DE GÜNTHER ANDERS

Günther Stern Anders não gostava de ser chamado de filósofo. Ele – assim como

Hannah Arendt, sua primeira esposa – acreditava que a figura do filósofo profissional tinha

perdido o contato com o mundo das relações sociais, com o mundo real, e não se dedicava a

outra coisa senão filosofar sobre a própria filosofia. Os dois, ao contrário, distanciaram-se

dessa figura tradicionalista e, munidos das ferramentas do método filosófico, debruçaram-se

sobre o mundo dos homens: ela, dedicando-se a um projeto eminentemente político de análise

do totalitarismo; ele, a uma crítica ontológica da técnica que levaria a uma oposição militante

na questão atômica.

***

O pensador nasceu Günther Stern, filho do casal judeu Willian e Clara Stern, em

12 de julho de 1902, na cidade de Breslau, na época pertencente à Alemanha, hoje Wrocław,

na Polônia. Sobre seu pai, o psicólogo Willian Stern, sabe-se que foi o criador do conceito de

“QI” e autor dos livros “Person und Sache” e “Psychologie des frühen Kindheit”, este último

inspirado nas observações sobre o jovem Günther e sua irmã Hilde.1 Ao senhor Stern é que o

filho vai recorrer mais tarde, nos momentos de dificuldades financeiras, e é ao senhor Stern

que o pensador vai dedicar, cinco décadas depois, o seu livro mais importante2.

Aos quinze anos de idade, Günther é enviado junto com outros estudantes para

destruir plantações de frutas na França, a um ano do final da Primeira Guerra Mundial. De

acordo com o que ele mesmo contava em sua vida adulta, as principais lembranças da

campanha militar – que seriam também mais tarde as raízes de seu pacifismo militante –

foram duas: a imagem dos soldados mutilados nas estações de trem, à espera de voltar para

casa; e um mapa da Europa cujas fronteiras tinham sido apagadas por ele com tinta branca.

“Europa Unita” era como ele chamava o projeto.

1 Cf. GREFFRATH, 2002. 2 “Em memória dele, que plantou de modo inextinguível em seu filho o conceito de dignidade humana, foram escritas estas tristes páginas sobre a devastação do homem”, escreve Günther Anders nas primeiras páginas de “Die Antiquiertheit des Menschen”, de 1956.

Page 12: Gunther Anders

10

Cinco anos após o final da guerra, Günther Stern se forma em filosofia sob a

orientação de Edmund Husserl em Freiburg. O estudante freqüentou também o círculo de

influência íntimo de Martin Heidegger – sem cultivar, no entanto, muita simpatia pelo

filósofo que uma década mais tarde se tornaria reitor durante o governo nazista. Günther Stern

criticava em Heidegger sua provinciana visão de mundo e suas ilusões antropocêntricas3 e

afirmava que sua filosofia reduzia o homem a uma existência vegetal4.

Depois de formado, Günther Stern trabalhou alguns anos com ensaios, críticas e

pequenas reportagens para jornais franceses e alemães, até escrever seu primeiro trabalho

filosófico independente: “Über das Haben. Sieben Kapital zur Ontologie der Erkenntnis”,

publicado em 1928. Já nessa época, estava entre seus planos seguir uma carreira acadêmica

em Frankfurt, onde tentou estudar filosofia da música com Theodor Adorno. Este, no entanto,

nunca aceitou acolhê-lo no grupo formado ao redor do Instituto de Pesquisas Sociais,

afirmando que ele não era “suficientemente marxista”.5

Em Berlim, no ano de 1929, o filósofo desprestigiado Günther Stern se casa com

uma senhorita judia de nome Johana Arendt, inteligente e charmosa, que na época se dedicava

a estudar o conceito de amor em Augustinus, orientada por Karl Jaspers. No ano seguinte, a

partir de uma indicação de Bertolt Brecht, ele passa a escrever para o jornal Berliner Börsen-

Courier, onde seria definitivamente rebatizado com o nome que lhe é adjetivo.

Eu escrevia sobre tudo. De crianças delinqüentes a um Congresso

Hegeliano ou um suspense policial. A cada dia deveria haver alguma coisa

lá, de modo que pudéssemos viver, até que um dia [o chefe de redação

Herbert] Ihering me chamou: “não podemos assinar a metade de nossos

artigos com Günther Stern!”. “Então me chame de um nome diferente”, eu

propus. “Muito bem”, disse ele, “a partir de agora o senhor se chama

Günther Diferente [em alemão, Anders]”. 6

3 MARCONDES FILHO, 1998:50. 4 Cf. GREFFRATH, 2002. Tradução nossa. 5 Segundo a biógrafa de Hannah Arendt, Elisabeth Young-Bruehl, Adorno teria sido contrário ao trabalho de Günther Anders sobre música no concurso de professor agregado em Frankfurt, em 1929, porque este ignorara sua recém publicada sociologia da música (ap. MARCONDES FILHO, 2006:30). 6 Cf. GREFFRATH, 2002. Tradução nossa.

Page 13: Gunther Anders

11

Com a ascensão do nazismo e a conseqüente perseguição aos judeus, ele a esposa

fugiram para a França já nos primeiros meses de 1933. Durante os três anos de exílio em

Paris, Anders veicula dois textos na publicação francesa Recherches Philosophiques: “Une

interprétation de l’aposteriori” e “Pathologie de la liberté”, este último recebido por Jean-

Paul Sartre como uma das fontes de inspiração para o desenvolvimento do seu

existencialismo, na medida em que aponta o homem como vítima de sua própria liberdade7.

Na mesma época, Anders trabalha sobre o romance “Die molussische

Katakombe”, no qual descreve um país imaginário de nome Molússia a partir das várias

histórias contadas por presos políticos confinados em uma catacumba. O livro, que é escrito

segundo o espírito da referencialidade múltipla de “Mil e uma noites”, não tem outro objeto

diante de si senão o totalitarismo e a vida depois dele. No entanto, a editora do Partido

Comunista, que publicava textos em alemão na França, recusou o livro alegando que ele não

seguia à risca a linha do partido e Anders se encontrou novamente em apertos financeiros –

situação que contribuiria para o iminente rompimento com sua esposa. Ainda assim, é

perceptível o carinho com o qual ele carrega a obra por toda a vida, citando-a diversas vezes

em seus outros textos. A edição definitiva de sua “Catacumba Molússica”, no entanto, só será

publicada no ano de sua morte, seis décadas depois.

***

Em 1936, Anders se separa de Hannah Arendt – que achava seu pessimismo

“difícil de aturar”, como ele mesmo contaria depois8 – e parte para o exílio nos Estados

Unidos. Depois de morar em Los Angeles, trabalha por um curto período no Escritório para

Informações de Guerra em Nova York – um dos poucos empregos bem-remunerados que

Anders teria na vida e que ele recusou alegando que a propaganda de guerra norte-americana

era tão fascista quanto a alemã.

O escritor volta então para a Costa Oeste, para Hollywood, onde morou na mesma

casa de Herbert Marcuse, vizinho de seu amigo Brecht, a alguns quarteirões dos irmãos Mann

e “a uma distância elegante” de Horkheimer e Adorno.9 Diferente do que aconteceu com eles,

Anders não dispunha de uma fama que lhe permitisse capitalizar a reputação de exilado e, ao 7 MARCONDES FILHO, 1998:49. 8 Cf. MARCUSE, 2007. 9 Cf. GREFFRATH, 2002.

Page 14: Gunther Anders

12

mesmo tempo, não se sentia em casa nessa “Outra Alemanha”. Ao contrário, foi um dos

poucos a criticar severamente a postura da intelectualidade alemã na Califórnia, julgando-os

“demasiado ausentes do que de fato ocorria na chacina hitlerista”10. Anders abdica desta

postura e assume aquela que ele julgava mais ética: até 1950, quando volta para a Europa, ele

trabalhou como empregado na linha de montagem de uma fábrica norte-americana.

Nessas condições, Anders dedicou-se à sua chamada “filosofia casual”. Durante

todo o tempo em que esteve nos Estados Unidos, anotava em um diário as manifestações da

chamada “segunda revolução industrial”: a inveja e a vergonha humana diante do

desenvolvimento técnico, a passividade diante dos novos meios de comunicação eletrônicos, a

padronização do mundo, a hegemonia do comportamento em série, a destruição do único. Sua

conclusão radical era que o homem havia se tornado antiquado.

Em 1950, o filósofo volta à Europa, recusa uma vaga como professor em Berlim

Oriental oferecida por Ernst Bloch e se muda definitivamente para Viena. Um ano depois vem

publicado aquele que seria seu mais conhecido trabalho em crítica literária (e também o

primeiro livro assinado com o sobrenome “Anders”): “Kafka: Pro und Contra”, que é logo

traduzido para o francês, italiano e inglês. É justamente esse o único trabalho de Anders

conhecido no Brasil, em uma tradução de Modesto Carone de 1968, revisada e relançada em

2007.

Mas a despeito do reconhecimento de seus ensaios sobre Estética – além do texto

sobre Kafka, existem registros de seminários de Filosofia da Arte realizados por Anders na

New School for Social Research, em Nova York em 1949 e 1950 –, o seu projeto filosófico

tinha outras ambições e outros compromissos.

A mais sólida realização desse projeto se deu em 1956, com a publicação do

primeiro volume de “Die Antiquiertheit des Menschen”, livro que é considerado a sua obra-

prima. Aqui ele finalmente levaria às últimas conseqüências, em primeiro lugar, a crítica à

técnica colecionada nos anos anteriores em seus diários norte-americanos; e, em seguida, o

trauma físico-intelectual experimentado por ele com a explosão da bomba atômica em

Hiroshima e Nagasaki.

10 Cf. MARCONDES FILHO, 1998:50.

Page 15: Gunther Anders

13

Anders relata que após 6 de agosto de 1945 ele ficou calado por anos, sem poder

escrever ou falar nada, porque o entendimento daquele fenômeno era “sobreliminar”11. Ao

contrário das sensações subliminares, que não são entendidas por estar abaixo do nível de

percepção humana, a possibilidade técnica da autodestruição nuclear ultrapassava os limites

da sensibilidade. Esse é o precisamente o princípio daquilo que ele chamaria “cegueira

apocalíptica” e motivo pelo qual Anders afirma que somos incapazes de temer de fato a

devastação atômica. “A possibilidade de nossa aniquilação definitiva é, ainda que esta nunca

se realize, a definitiva aniquilação de nossas possibilidades”12, resumiria o filósofo.

A questão atômica torna-se então uma constante em suas atividades. Ele foi um

dos iniciadores do movimento mundial contra as armas nucleares – ao lado de Robert Jungk,

Primo Levi e Bertrand Russell – e em 1958 decidiu-se por uma visita ao Japão. As anotações

feitas durante sua estadia seriam publicadas no ano seguinte em “Der Mann auf der Brücke.

Tagebuch aus Hiroshima und Nagasaki”.

Ainda em 1959, Anders começa um intercâmbio de cartas com o piloto norte-

americano Claude Eatherly, membro da esquadra que lançara as ogivas atômicas. A

correspondência entre o piloto e o filósofo compõe o livro “Off limits für das Gewissen”

(“Burning conscience”, no original em inglês) – a mais popular obra de Günther Anders,

lançada em 1961 e traduzida em 18 idiomas.

Nesta época, Anders já trabalhava sobre os textos que formariam o segundo

volume de “Die Antiquiertheit des Menschen”; sua publicação, no entanto, acontece apenas

duas décadas depois. Esse intervalo de tempo entre o primeiro e o segundo volume, segundo o

próprio Anders explica no prefácio do livro, não significa que ele tivesse renunciado ao seu

maior argumento filosófico, mas sim que havia a necessidade mais urgente de ações práticas.

Será perguntado a mim porque eu prossigo com esse segundo volume

apenas agora, quase um quarto de século depois. A pergunta é ainda mais

justa se levado em conta que muitos dos ensaios aqui reunidos já tinham

sido preparados mesmo antes de 1960, alguns até impressos; há tempos,

portanto, eu teria como ter publicado uma continuação.

11 Cf. MARCONDES FILHO, 1998:50. 12 Cf. ANDERS, 1972.

Page 16: Gunther Anders

14

O que me teria levado a abandonar meu principal tema: a destruição da

humanidade e a possível auto-aniquilação física do gênero humano? (...)

Quais temas mais agradáveis me teriam levado à deserção?

A resposta é: eu não desloquei o tema principal (apesar de que às vezes

apenas com dificuldades eu podia me opor à tentativa de deslocá-lo), eu não

cedi a vez a nenhum outro tema, eu não tinha desertado. (...)

Um filósofo, moralmente medíocre tanto quanto grandíssimo especulador,

desses que se tornaram mundialmente famosos, alertou-me há mais de

cinqüenta anos seguindo seu bel-prazer quanto a “desertar para a prática”.

Esta palavra eu não pude esquecer; já naquela época me parecia essa

moralizante advertência sobre a moral profundamente indizível. Seja como

for: eu fiz exatamente isso. 13

Anders se refere aqui precisamente aos anos em que manteve a militância na

questão atômica (cujos argumentos seriam reunidos em “Endzeit und Zeitende”, de 1972);

quando se dedicou a revisitar o holocausto (nos livros “Wir Eichmannsöhne”, de 1964, e “Die

Schrift na der Wand”, de 1967, onde é narrada a visita a Auschwitz e Breslau) e o posterior

envolvimento com as críticas à Guerra do Vietnã (“Visit beautiful Vietnam”, de 1968). Nesse

contexto, Anders participa também do Tribunal de Russel a respeito dos crimes norte-

americanos nesta guerra.

***

Nas duas décadas seguintes, o mundo experimentava uma Guerra Fria e as idéias

de Anders ganhariam relevo. Ele lançaria pelo menos outros 20 livros, entre trabalhos

filosóficos e literários, mas a despeito de sua produção teimosamente ininterrupta o escritor

não chega a alcançar uma situação financeira estável. Ele casou-se ainda outras duas vezes

(com a escritora austríaca Elizabeth Freundlich, em 1945, e com a pianista norte-americana

Charlotte Louis Zelka, em 1957), mas manteve-se o resto da vida como um homem de raros

amigos e de hábitos austeros.

13 ANDERS, 1980:11-13. Tradução nossa.

Page 17: Gunther Anders

15

Entre os móveis de uma pequena casa alugada em Lackierergasse, na capital

austríaca, onde Anders passou seus últimos 40 anos, encontravam-se duas estantes, um sofá e

uma escrivaninha, sobre a qual uma máquina de escrever cujas teclas ele podia apertar apenas

com a ajuda de uma caneta entre seus dedos curvados em função da artrite. Nas paredes, um

papel escrito em japonês, uma toalha de seda branca trazida de Hiroshima, uma foto de seu

pai e uma litografia com as figuras de Sancho Pansa e Dom Quixote14.

Günther Stern Anders morreu em Viena, em 17 de dezembro de 1992.

14 Cf. GREFFRATH, 2002.

Page 18: Gunther Anders

16

NOTA DO TRADUTOR

O tradutor é um personagem, por definição, arrogante: ele decide sozinho em que

medida teremos acesso a um discurso que não nos é compreensível em seu idioma original;

ele julga sozinho qual interpretação é a pertinente e de que modo isso pode ser dito em uma

segunda língua.

Justamente em função desse caráter é que a presente nota se justifica. Se o leitor

estará refém das minhas interpretações, é legítimo que ele saiba, ainda que de modo conciso,

o que me motivou a tomá-las. Serão expostos aqui, portanto, os princípios teóricos que o

presente tradutor toma enquanto concepção da atividade em si e, em seguida, os parâmetros

aplicados nesta tradução específica.

***

No momento em que um autor escreve, realiza ele uma série de escolhas dentro

daquilo que em seu idioma é necessário e/ou possível. No momento em que um tradutor

traduz, realiza ele, a partir das decisões do autor, uma nova série de escolhas que obedecem a

um segundo campo lingüístico do necessário e/ou do possível.15 Uma vez que o conjunto das

novas decisões extrapola o conjunto das decisões originais – ou seja, que elas nem foram nem

podiam ter sido tomadas pelo autor em seu idioma original –, conclui-se de imediato que

nesse desnível reside o trabalho e a responsabilidade do tradutor; justamente aí onde cada

escolha tradutória não é necessária e unívoca, mas sim apenas contingente.

Tomemos a unidade mínima do discurso. A palavra ‘α’ do idioma ‘A’ dentro de

um contexto ‘x’ carrega um valor fonético, um valor semântico, um valor sintático, uma

história etimológica, uma consagração pragmática específica, etc.16 Na hipotética tradução

15 Quando classifico as decisões da composição do discurso em uma língua dada em necessárias e/ou possíveis, tenho como ponto de partida a definição de Roman Jakobson: “As línguas diferem essencialmente naquilo que devem expressar, e não naquilo que podem expressar. Numa língua dada, cada verbo implica necessariamente um conjunto de escolhas binárias específicas, como por exemplo: o evento anunciado é concebido com ou sem a referência à sua conclusão; o evento é apresentado ou não como anterior ao processo de enunciação? Naturalmente, a atenção dos enunciadores e ouvintes estará constantemente concentrada nas rubricas que sejam obrigatórias em seu código verbal” (JAKOBSON, 1969:70). 16 Essa lista pode ser enxugada ou aumentada de acordo com o conjunto de premissas ou divisões de cada corrente da lingüística; o objetivo aqui não é dar conta de modo exaustivo de todas as tonalidades dessas classificações, mas sim demonstrar que cada elemento do discurso concentra uma pletora de variáveis.

Page 19: Gunther Anders

17

para um idioma ‘B’, a equivalência ideal se daria com a palavra ‘β’ de mesmo valor fonético,

valor semântico, etc.17 Diante desta (impossível) palavra ‘β’, a tarefa do tradutor é, portanto,

decidir quais dos valores originais de ‘α’ ele vai buscar no idioma ‘B’, e quais ele vai omitir –

por isso o ato tradutório é incompleto; por isso a escolha tradutória é contingente. 18 Estenda-

se a mesma lógica aplicada à palavra ‘α’ para o texto como um todo e estaremos diante de

uma complexa atividade criativa.

Afirmar que cada escolha tradutória é contingente não significa, no entanto,

admitir que ela seja aleatória. Uma tradução coerente deve orientar cada decisão particular a

partir de um horizonte comum, a saber, constituído segundo pressupostos, métodos e

finalidades específicas. Exemplo: um tradutor que tome a construção fonética de uma poesia

como seu elemento fundamental terá como preocupação levar rimas análogas para um outro

idioma, tomará o valor fonético do discurso como lastro, em detrimento de outros valores.

Exemplo de contraste: a tradução de um manual de instruções de um rádio se orientará por

outros valores.19

Nesse ponto fica claro que, admitindo esses pressupostos, a questão da fidelidade

não pode ser analisada em si, de modo absoluto, mas antes a partir de referenciais dados, de

seu próprio horizonte. A tradução infiel é, a rigor, infiel a ela mesma.

***

17 Rosemary Arrojo aponta que a crença nessa “substituição” está presente, por exemplo, no lingüista J. C. Catford, segundo o qual a tradução seria “substituição do material textual de uma língua pelo material textual equivalente de outra língua” (ap. ARROJO, 2005:12). 18 Umberto Eco trata da prática da tradução seguindo uma abordagem semelhante. Ele a define como o ato de “dizer quase a mesma coisa”, em um procedimento que se dá mediante um processo de “negociação”: “Di qui l’idea che la traduzione si fondi su alcuni processi di negoziazione, la negoziazione essendo appunto um processo in base al quale, per ottenere qualcosa, si rinuncia a qualcosa d’altro – e alla fine le parti in gioco dovrebero uscirne con un senso di ragionevole e reciproca soddisfazione alla luce dell’aureo principio per cui non si può avere tutto” (ECO, 2003:18). 19 Radegundis Stolze propõe uma divisão das “categorias lingüísticas do compreender e do formular no traduzir” que cataloga de modo metódico os diferentes vetores aos quais eu me refiro aqui. Em Stolze, a partir das cinco categorias-chave (Thematik, Semantik, Lexik, Pragmatik, Stilistik) as questões da tradução podem ser formuladas e fundamentadas, o que permitiria uma resolução responsável e crítica por parte do tradutor (STOLZE, 1994:196-206). Outra proposta de classificação, mais recente e menos abrangente, pode ser encontrada Amparo Hurtado Albir, que propõe uma “classificação da tradução” a partir de quatro eixos: “Métodos de Traducción (según el método traductor empleado); Clases de Traducción (según la naturaleza del proceso traductor en el individuo); Tipos de Traducción (según el ámbito socioprofesional); Modalidades de Traducción (según el modo traductor)” (HURTADO ALBIR, 2001:94).

Page 20: Gunther Anders

18

Assim, elenco os critérios maiores que guiaram a prática da presente tradução:

a) O texto traduzido tem caráter eminentemente filosófico, o que demanda um

rigor lexical bastante específico, a saber, um rigor que leve em conta o uso consagrado das

expressões e argumentos que o autor retoma. Isso significa que a decisão por traduzir

Vorstellung por “representação” – em todos os momentos em que o autor tem em mente o

conceito consagrado pelos textos schopenhauerianos – orienta-se necessariamente pelas

traduções de Schopenhauer que antecedem este trabalho.

b) Rigor filosófico análogo me obriga a traduzir os conceitos centrais na

argumentação de Günther Anders de modo idêntico em todos os momentos em que ele os

retoma durante o texto. Nesse sentido, Bild está presente sempre como “imagem”; aber, por

sua vez, aparece como “mas”, “no entanto” ou “todavia”, de acordo com a conveniência

estilística do momento. – A mesma preocupação vale nas construções de paralelismos: nos

trocadilhos que Anders constrói aproximando duas palavras de mesma raiz, efeito análogo é

ensaiado em português, por vezes recorrendo a uma nota de rodapé. Um exemplo desse caso é

a nota de número 100, que trata de um paralelismo em torno de betrachten.

c) Anders emprega outros quatro idiomas estrangeiros ao alemão ao longo do

texto (inglês, francês, latim e grego antigo). Nada justificaria incorporar inadvertidamente em

texto corrido todas essas intervenções não-casuais. A expressão estrangeira foi, assim, grifada

e acompanhada de breve nota de rodapé que explicita sua origem e seu sentido no contexto

dado. Nos casos em que a expressão aparece no texto original sem destaque, a nota denuncia a

interferência com os dizeres “grifo nosso”.

d) Em alguns casos, existe a tentativa de reproduzir em português o caráter

sintético de substantivos compostos e neologismos, cuja formação na língua alemã é

incentivada por sua gramática. Nesses casos, recorreu-se à justaposição acompanhada de

hífen, como em “consumo-de-massa” e “ração-para-ouvido”. – A esse respeito, vale notar que

a tradução francesa de Christophe David (L’obsolescence de l’homme. Sur l’âme à l’époque

de la deuxième révolution industrielle. Paris: Ivrea, 2002) opta, ao contrário, pela tradução

analítica e reconstrói Bilderbuch-Effekt, por exemplo, em cet effet analogue à celui que

produit un livre illustré. Embora mais imediata ao leitor, a expressão perde seu destaque ao

ser diluída, passa a exigir menos atenção e tem suas possibilidades de interpretação

restringidas. A opção por “efeito-livro-de-figuras”, portanto, aceita a desvantagem de não soar

Page 21: Gunther Anders

19

espontânea em português em troca de manter a abrangência original. Outro exemplo:

Unfreiheit – servitude – “não-liberdade”.

e) Anders raramente usa uma figura de expressão, uma frase feita, uma construção

consagrada da fala, de modo inadvertido ou meramente metafórico. Esse uso consciente e

engenhoso das expressões prontas impede uma escolha exclusiva entre tradução literal ou

expressão de sentido análogo – um dilema clássico das teorizações sobre tradução – e me

obriga, ao contrário, a desdobrá-las sempre, na maior parte das vezes em notas de rodapé.

Quando Anders escreve lügen wie gedruckt, não posso escolher entre “mentir como se

estivesse impresso” ou “mentir descaradamente”, mas sim devo registrar os dois, porque o

autor explicitamente se refere aos dois.

f) O mesmo acontece nos momentos em que Anders leva a cabo raciocínios que se

baseiam na etimologia alemã de um conceito; nesses casos, diante da impossibilidade rigorosa

de produzir mesmo efeito com os recursos oferecidos pela língua portuguesa, as notas são

necessariamente mais detalhadas. Nos casos em que o argumento não é pontual, mas se

desenvolve em uma rede de referências mais extensa, os conceitos originais foram inseridos

no texto corrido – em itálico e entre colchetes – ao lado da tradução.

g) Anders recorre a um conjunto de referências externas com uma familiaridade

que pode nos ser estranha, seja quando ele retoma um fato da história contemporânea alemã,

seja quando ele se refere a uma passagem clássica de Goethe, seja quando ele cita um autor da

filosofia ou da antropologia apenas por seu sobrenome. Em todos esses casos, a interferência

do tradutor tem o objetivo de apenas apontar com maior individuação a referência feita pelo

autor. Diante de um texto rico como este, no entanto, seria pretensão exagerada imaginar que

as notas de rodapé possam esgotá-las. O tradutor responde sozinho por eventuais omissões.

h) A divisão estrutural dos parágrafos foi rigorosamente mantida com o objetivo

de permitir o cotejamento direto com o texto original. Assim, por exemplo, o leitor pode

encontrar correspondência imediata entre o terceiro parágrafo do § 5 no texto em alemão e no

texto em português.

i) A tradução foi realizada integralmente a partir da edição publicada em 2002

pela editora C.H. Beck, cujo texto corresponde à sua primeira edição, publicada em 1956 pela

mesma editora.

Page 22: Gunther Anders

20

O MUNDO COMO FANTASMA E MATRIZ:

Considerações filosóficas sobre o rádio e a televisão

Page 23: Gunther Anders

21

Como ao rei pouco agradava que seu filho, deixando as

ruas controladas, por entre o campo vagasse, para um

próprio juízo sobre o mundo formar, presenteou-o carroça

e cavalo. “Agora não precisas mais ir a pé”, foram suas

palavras. “Agora não deves mais fazê-lo”, seu sentido.

“Agora não conseguirás mais”, seu efeito.

De: “Histórias Infantis”

Page 24: Gunther Anders

22

I. O MUNDO ENTREGUE EM DOMICÍLIO

§ 1. Nenhum meio é apenas um meio

A primeira reação à crítica, à qual se submetem aqui o rádio e a televisão, dirá: tal

generalização é proibida; isso depende de modo exclusivo daquilo que nós “fazemos” desses

equipamentos; de como nos servimos deles; com qual finalidade o empregamos como meio:

se para o bem ou para o mal, para o humano ou para o desumano, para o social ou para o anti-

social.

Nascido na primeira revolução industrial, este otimista argumento – até onde se

pode chamar assim uma frase feita – é conhecido; e sobrevive em todos os espaços com a

mesma despreocupação.

Sua validade é mais do que duvidosa. A liberdade em dispor da técnica que ele

supõe, sua crença em que existam pedaços de nosso mundo que não sejam nada além de

“meios”, que podem servir ad libitum20 para “justos fins”, é pura ilusão. Os equipamentos em

si são fatos; e, em verdade, tais que nos marcam. E o fato de que eles nos marcam,

independente da finalidade para qual os utilizamos, não é destruído quando verbalmente os

degradamos a “meios”. Com efeito, a tosca separação de nossa vida entre “meio” e “fim”,

como consumada neste argumento, não tem nada a ver com a realidade. Nosso existir 21

repleto de técnica não se desagrega em caminhos individuais, por mágica um do outro

separados, que por meio de placas de rua se identificam: um como “meio” e o outro como

“fim”. Legítima é esta partição apenas em ações individuais e em isolados procedimentos

maquinais. Lá, onde se trata do “todo”, na política ou na filosofia, não. Quem articula nossa

vida como todo com ajuda dessas duas categorias, entende-o segundo o modelo do agir

funcional já como fenômeno técnico: o que de imediato é testemunho de barbaridades – de

modo particular se elas surgem como a máxima “os fins justificam os meios” – contra as

quais tão solicitamente o homem se revolta. A negação dessa fórmula atesta tanta grosseria

como sua (muito raramente expressa) afirmação: pois também quem nega, afirma, mesmo

sem pronunciá-lo, a justeza das duas categorias; também este admite que sua aplicação na 20 Do latim, “à vontade”, “segundo o desejo”. (Nota do Tradutor) 21 Dasein é traduzido em português também por “ser-aí” ou “estar-no-mundo”. (N.d.T.)

Page 25: Gunther Anders

23

vida seja totalmente legítima. De fato a humanidade começa apenas aí onde essa

diferenciação perde o sentido: onde o meio tanto quanto o fim estão tão impregnados de

hábito e moral que os fragmentos individuais da vida ou do mundo não podem sequer ser

reconhecidos, onde não cabe sequer perguntar se se trata de “meio” ou de “fim”; apenas aí,

“onde o caminho à fonte

é tão bom quanto o beber”.

É claro que podemos utilizar a televisão com o objetivo de participar de uma

missa. Todavia aquilo que, queiramos ou não, precisamente nos “marca” ou nos “transforma”,

tanto quanto a missa em si, é o fato de que não participamos dela de modo imediato, mas sim

consumimos apenas sua imagem. Este efeito-livro-de-figuras é, no entanto, nitidamente não

apenas diferente do “intencionado”, mas o seu contrário. O que justamente nos marca e

desmarca, o que nos forma e deforma, são não apenas os objetos através dos “meios”

mediados, mas os meios em si, os aparelhos em si: os quais não são apenas objetos de

aplicações possíveis, mas já determinam sua aplicação através de suas determinadas estruturas

e funções e com isso determinam também o estilo de nossa atividade e de nossa vida, em

suma: determinam a nós.

Como leitor das próximas páginas tenho eu em vista os consumidores, ou seja, os

ouvintes e telespectadores. Filósofos profissionais e técnicos em rádio e televisão apenas na

segunda fileira. Aos filósofos será estranha a matéria; aos técnicos, o modo como eu a trato. –

Decerto não me dirijo a todos os consumidores, mas apenas aos quais já aconteceu alguma

vez de, durante uma transmissão ou depois dela, depararem-se perplexos com a pergunta: “E

o que eu estou fazendo aqui exatamente? E o que é feito de mim aqui exatamente?” Aos assim

perplexos devem ser dados alguns esclarecimentos no que se segue. –

Page 26: Gunther Anders

24

§ 2. O consumo-de-massa22 acontece hoje solisticamente – Cada consumidor é um

trabalhador doméstico não-remunerado na produção do homem-de-massa

Antes de terem sido instaladas as torneiras culturais dos rádios em cada um de

seus domicílios, aglomeravam-se no cinema os Schmids e Müllers, os Smiths e Millers, para

consumir coletivamente, ou seja, enquanto massa, as mercadorias que para eles em massa e

estereótipo tinham sido produzidas. Poderia ser vista nessa situação uma certa unidade de

estilo: a congruência entre produção-de-massa e o consumo-de-massa; mas isso seria

equivocado. Nada contradiz mais grosseiramente a intenção da produção-de-massa do que

uma situação de consumo na qual um e o mesmo exemplar (ou uma e a mesma reprodução)

de uma mercadoria é desfrutado por muitos ou mesmos inúmeros consumidores ao mesmo

tempo. Para o interesse do produtor-em-massa permanece indiferente se este consumo em

conjunto representa uma “verdadeira vivência social” ou apenas a soma de muitas

experiências individuais. Para ele, trata-se não da massificada massa como tal, mas da massa

destrinchada no maior número possível de compradores; não da chance de que todos

consumam o mesmo, mas de que cada um compre a mesma coisa motivado pela mesma

necessidade (cuja produção é igualmente providenciada). Em inúmeras indústrias esse ideal

foi alcançado integralmente, ou ao menos está próximo disso. Que isso possa ser atingido pela

indústria cinematográfica, parece-me questionável. E talvez justamente porque esta, que segue

a tradição do teatro, serve sua mercadoria ainda como uma exibição simultânea para muitos.

Isso representa sem dúvida uma herança arcaica. Nenhuma surpresa que a indústria do rádio e

da televisão, a despeito da gigantesca evolução do filme, tenha podido competir com este:

ambas as indústrias tiveram inclusive a chance extra de vender enquanto mercadoria, além das

mercadorias para consumo, o aparelho requisitado para este consumo; e de fato, diferente do

filme, a quase todas as pessoas. E também é pouco excepcional que quase todas as pessoas

tenham aproveitado que a mercadoria, diferente do filme, através do aparelho podia ser

entregue em domicílio. Logo se sentaram em casa os Schmids e os Smiths, os Müllers e os

Millers, em tantos os finais de tarde que eles antes passavam no cinema, para “captar” as

peças radiofônicas ou o mundo. No cinema, a situação evidente – o consumo da mercadoria-

de-massa por uma massa – foi aqui abolida, o que claramente não significou uma minoração

da produção-de-massa; ao contrário, a produção-de-massa entrega ao homem-de-massa esta 22 Com o objetivo de nos aproximar dos conceitos originais, os termos Massenkonsum, Massenmenschen, Massenproduktion, Massenproduzenten, Massenwaren e análogos foram traduzidos respectivamente para “consumo-de-massa”, “homem-de-massa”, “produção-de-massa”, “produtores-de-massa”, “mecadorias-de-massa”, etc. (N.d.T.)

Page 27: Gunther Anders

25

que é a produção do próprio homem-de-massa em diariamente mais altas excursões. A

milhões de ouvintes foi servida a mesma ração-para-ouvido; cada um deles foi, através deste

produto en masse23, tratado como homem-de-massa, como “artigo indefinido”; cada um deles

foi na sua característica, ou na sua falta de característica, fixado. Apenas o consumo coletivo,

justamente através da produção-de-massa dos aparelhos de recepção, foi tornado supérfluo.

Os Schmids e os Smiths então consumiam os produtos-de-massa apenas en famille24 ou

mesmo sozinhos; quanto mais solitários eles eram, tanto mais rendosos: era nascido o tipo do

eremita-de-massa; que em milhões de exemplares senta-se, apenas um do outro separado e

ainda assim um igual ao outro, reclusamente em seu casulo – não para renunciar ao mundo,

mas para, se Deus quiser, não perder nenhum fragmento de mundo em effigie25.

É sabido que a indústria abriu mão do fundamento da centralização – que seguia

incólume ainda na última era –, em grande parte por motivos estratégicos, a favor do princípio

da “dispersão”. Menos sabido é, ao contrário, que este princípio da dispersão hoje também já

vale para a produção do homem-de-massa. Eu digo: para sua produção, a despeito de termos

falado apenas de dispersão do consumo. Mas este salto do consumo para a produção é aqui

legítimo, uma vez que ambos coincidem de modo particular; uma vez que (num sentido não-

materialista) o homem “é o que o ele come”26: o homem-de-massa é produzido ao se permitir

que ele consuma mercadoria-de-massa; o que ao mesmo tempo significa que o consumidor de

mercadoria-de-massa se faz, por meio de seu consumo, co-trabalhador na produção do

homem-em-massa (ou co-trabalhador na reformação de si mesmo em um homem-em-massa).

Assim consumo e produção aqui coincidem. Seja dado o consumo “disperso”, idem a

produção do homem-de-massa. E de fato em qualquer lugar onde aconteça o consumo: diante

de cada aparelho de rádio, diante de cada aparelho de televisão. Cada um é de certa maneira

empregado e ocupado como trabalhador doméstico. Certamente como um trabalhador

doméstico de um tipo bastante incomum, pois ele realiza seu trabalho – a metamorfose de si

mesmo em um homem-de-massa – por meio de seu consumo de mercadoria-de-massa, ou

seja, por meio do lazer. – Enquanto o clássico trabalhador doméstico produzia mercadorias

para garantir para si o mínimo de bens de consumo e lazer, consome ele hoje o máximo de 23 Do francês, “em massa”. Grifo nosso. (N.d.T.) 24 Do francês, “em família”. Grifo nosso. (N.d.T.) 25 Do francês, “representação (em pintura, escultura) de uma pessoa”, “representação da figura convencional de uma personagem”, “imagem, figura, retrato”. Grifo nosso. (N.d.T.) 26 Der Mensch ist was er ißt: provérbio alemão que se constrói a partir do trocadilho entre ist, do verbo “ser”, e ißt (lê-se “isst”), do verbo “comer”. (N.d.T.)

Page 28: Gunther Anders

26

produtos de lazer para co-produzir o homem-de-massa. Completamente paradoxal se torna

este fenômeno uma vez que o trabalhador doméstico, ao invés de receber pela sua

colaboração, tem de pagar por ela; a saber, pelo meio de produção (o aparelho e, em muitos

países, também pela emissão), cuja utilização lhe permite transformar-se em homem-de-

massa. Ele paga, portanto, para vender a si mesmo; e inclusive sua própria não-liberdade,

justamente esta que ele mesmo co-produz, ele deve adquirir por compra, uma vez que esta se

transformou em mercadoria. –

No entanto, mesmo se recusada essa etapa estranha – enxergar nos consumidores

das mercadorias-de-massa co-trabalhadores na produção do homem-de-massa –, não se

poderá questionar que para a produção do hoje desejado tipo de homem-de-massa não é mais

necessária a efetiva massificação em forma de reunião-de-massa. As observações de Le Bon27

sobre as situações-de-massa enquanto modificadoras do homem se tornaram ultrapassadas,

uma vez que a desformação da individualidade e o nivelamento da racionalidade podem

realizar-se em casa. A encenação-de-massa no estilo de Hitler é desnecessária: para fazer do

homem um ninguém (até mesmo orgulhoso de ser um ninguém), não é mais necessário afogá-

lo na maré da massa; não é mais necessário chumbá-lo na construção massiçamente produzida

da massa. Nenhum ato de desformar, de desapossar o homem enquanto homem é mais

eficiente do que aquele que aparentemente valoriza a liberdade da personalidade e o direito à

individualidade. O procedimento do “conditioning”28 acontece com cada um separadamente:

no casulo do indivíduo, no isolamento, nos milhões de isolamentos; tanto melhor funciona ele

então. Uma vez que o tratamento se dá enquanto “fun”29; uma vez que não ele denuncia ao

sacrificado que solicita dele sacrifício; uma vez que ele não interfere na ilusão de sua

privacidade, ao menos na ilusão de seu espaço privado, permanece ele integralmente discreto.

De fato, o antigo ditado “fogão próprio vale ouro”30 se tornou novamente verdade; mesmo

que em um sentido completamente novo. Pois ora ele vale ouro não para o proprietário, que

dá colheradas na sopa conditioning31; mas sim para os proprietários do proprietário do fogão:

os cozinheiros e os entregadores, que servem a sopa como marmita.

27 Gustav Le Bon (1841-1931), psicólogo francês considerado o fundador da psicologia social, discute o comportamento dos indivíduos enquanto membros de uma massa (cf. LE BON, 1954). (N.d.T.) 28 Do inglês, “condicionamento”. (N.d.T.) 29 Do inglês, “diversão”, “lazer”. (N.d.T.) 30 Tradução literal do ditado alemão “eigner Herd ist Goldes wert”, onde fogão é metonímia para “lar”. (N.d.T.) 31 Grifo nosso. (N.d.T.)

Page 29: Gunther Anders

27

§ 3. Rádio e televisão tornam-se mesa familiar negativa;

a família torna-se público en miniature32

É compreensível que este consumo-de-massa habitualmente não seja chamado

pelo seu nome correto. Ao contrário, ele é apresentado como chance para um renascimento da

família e da privacidade – o que é de fato compreensível, mas compreensivelmente hipócrita:

as novas invenções recorrem de bom grado aos velhos ideais como a nenhuma outra coisa,

ideais que sob certas circunstâncias podem aparecer como forças inibidoras de consumo. “A

família francesa descobriu”, afirma-se no jornal vienense “Presse” 33 de 24.12.54, “que a

televisão é um meio extraordinário de afastar os jovens de passatempos caros, de prender as

crianças em casa... e de dar um novo estímulo aos encontros familiares”. A chance contida de

fato nesta forma de consumo consiste, ao contrário, em dissolver integralmente a família de

modo tão natural que essa dissolução mantém – ou mesmo adota – a aparência da prezada

vida familiar. Mas ela é dissolvida, pois aquilo que então reina em casa através da TV é o

transmitido – real ou fictício – mundo exterior; e este reina tão ilimitado que torna inválida e

fantasmagórica a realidade do lar – não apenas aquele das quatro paredes e da mobília, mas

justamente aquele da vida em comum. Quando o distante se aproxima, aquilo que está

próximo se distancia ou se dissipa. Quando o fantasmagórico se torna verdadeiro, o

verdadeiro se torna fantasmagórico. O lar real se degrada à condição de “container”, sua

função se esgota em conter a tela para o mundo exterior. “Assistentes sociais”, afirma um

relatório policial de 2.10.54, em Londres, “retiraram de um apartamento no oeste de Londres

duas crianças abandonadas com um e três anos de idade. O quarto no qual elas brincavam

estava mobiliado com apenas algumas cadeiras quebradas. Em um canto, porém, havia um

pomposo novo aparelho de televisão. Os únicos alimentos disponíveis na casa eram uma fatia

de pão, um pedaço de manteiga e uma lata de leite condensado”. Foram com isso liquidados

os últimos restos daquilo que mesmo nos países mais padronizados persistia de ambiente

caseiro, de vida em comum, de atmosfera familiar. Sem que com isso fosse desencadeado um

confronto entre o reino do lar e o reino dos fantasmas, mesmo sem que sequer fosse

necessário declarar tal confronto, estes já foram vitoriosos no instante em que o aparelho entra

na casa: ele veio, fez ver e venceu. Assim que eles gotejam sobre os muros, as paredes se

32 Do francês, “em miniatura”. Grifo nosso. (N.d.T.) 33 Jornal austríaco “Die Presse”, fundado em 1848. (N.d.T.)

Page 30: Gunther Anders

28

tornam translúcidas, a argamassa entre os membros da família se esfacela, a privacidade em

comum está destruída.

Há décadas se pode perceber que o móvel-ícone-social da família – a mesa maciça

situada no meio da sala com a família reunida à sua volta – começa a perder sua força

gravitacional, tornar-se obsoleto e ser excluído das novas configurações domésticas. Apenas

agora, justamente com o aparelho de televisão, ele encontrou um verdadeiro sucessor; apenas

agora ele foi substituído por um móvel, cujo poder simbólico e coercitivo pode ser comparado

ao da mesa; o que certamente não significa que a TV tenha se tornado o centro familiar. Ao

contrário: o que o aparelho representa e encarna é justamente sua descentralização, seu ex-

centro; a televisão é a mesa familiar negativa. Ela não traz o ponto central comum da família,

ela o substitui pelo ponto de fuga comum. Enquanto a mesa fizera centrípeta a família e a

contivera sentada ao seu redor para permitir os movimentos dos interesses, dos olhares, das

conversas, para lá e para cá, como lançadeiras de tear que seguem tecendo o tecido familiar, a

tela da televisão orienta a família de modo centrífugo. De fato, agora os membros da família

não se sentam um diante do outro, a organização das cadeiras diante da tela é mera

justaposição; a possibilidade de que um enxergue o outro, de que um olhe para o outro,

consiste ainda somente no engano34; a possibilidade de que um fale com o outro (quando isso

absolutamente ainda se quer ou se pode), somente no acaso. Eles não estão mais juntos, estão

um com o outro, ou melhor, um ao lado do outro, meros espectadores. Não se pode mais falar

em uma toalha na qual eles tecem juntos, de um mundo que eles constroem juntos, ou no qual

eles participam juntos. O que acontece é que os membros da família simultaneamente (juntos,

na melhor hipótese, mas nunca coletivamente) escapam rumo a um ponto de fuga para um

reino de irrealidade ou para um mundo que eles de fato não compartilham com ninguém, uma

vez que dele nem eles mesmos participam; ou, quando compartilham, o fazem com cada um

dos milhões de “solistas do consumo-de-massa” que, como eles e simultâneos a eles, estão

vidrados em seus televisores. A família é assim reestruturada em um público en miniature e o

cinema é feito modelo do lar. Se existe algo que a família ainda vivencia ou realiza não

apenas ao mesmo tempo, não apenas um ao lado do outro, mas realmente em coletividade, é a

esperança de que – é o trabalho para que – em um momento estejam pagas todas as prestações

do aparelho e a coletividade familiar seja encerrada de uma vez por todas. O objetivo

inconsciente de sua última coletividade é, portanto, sua própria extinção. 34 Anders faz aqui um jogo entre os verbos sehen (“ver”, “enxergar”) e zusehen (“olhar para”) e o substantivo Versehen (“engano”, “equívoco”). (N.d.T.)

Page 31: Gunther Anders

29

§ 4. Uma vez que os aparelhos nos tomam a fala,

eles nos transformam em dependentes e servos35

Dizíamos: aqueles que se sentam diante da tela falariam uns com os outros, na

medida em que ainda quisessem ou pudessem, apenas por acaso.

Isso vale também para os ouvintes de rádio. Também eles falam apenas

enganadamente. E de fato querem e podem fazê-lo menos a cada dia – o que naturalmente não

significa que eles se calem em sentido positivo; apenas que seu papear adquire uma forma

passiva. Se, na fábula de nossa epígrafe, as palavras do rei “agora não precisas mais ir a pé”

significavam finalmente “agora não conseguirás mais”, desse modo também para nós o “agora

vocês não precisam falar por conta própria” seria um “agora vocês não conseguem mais fazê-

lo”. Uma vez que os aparelhos nos tomam o falar, nos levam também a linguagem; eles nos

roubam nossa capacidade de expressão, nossa oportunidade de fala, nosso desejo de fala –

exatamente como a música do gramofone e do rádio nos rouba nossa música doméstica.

Os apaixonados que com seu falante “portable” 36 passeiam às margens do

Hudson, do Tâmisa ou do Danúbio não falam um com o outro, eles escutam a uma terceira

pessoa: a pública, em geral anônima, voz do programa, que eles levam para passear como um

cachorrinho; ou melhor: que os leva para passear. Seu passeio eles fazem não a dois, mas a

três, uma vez que eles são apenas o público-miniatura, que segue a voz do programa. Não se

pode falar aqui em uma conversa íntima, essa está desde o começo descartada; e se eles

mesmo assim chegam a alguma intimidade, eles devem atribuir a instrução e o impulso para

isso – e mesmo a própria excitação – não a eles próprios, mas a uma terceira pessoa: o

programa de fala quente ou sensual ou de voz estridente, que prescreve – pois que outro

significado tem “programa”? – o que e como eles devem sentir e o que se tem a fazer, na

ordem do dia, ou da noite. Uma vez que eles fazem aquilo que é prescrito na presença do

35 Da die Geräte uns das Sprechen abnehmen, verwandeln sie uns in Unmündige und Hörige. O título antecipa um dos jogos etimológicos que Anders vai desenvolver neste trecho, a saber: de um lado, a relação entre os conceitos jurídicos de “emancipação”, “maioridade”, e a idéia de “ter boca”, “falar por si próprio”, “responder por si”, que coincidem no termo alemão mündig, adjetivo ligado a Mund (“boca”); e, por outro lado, hörig, adjetivo ligado ao verbo hören (“ouvir”), que significa “servo”, “dependente de um senhor” e cuja origem no idioma alemão, especula-se, derivar-se-ia da tradução do latim cliens (“vassalo”, “cliente”, em oposição a patronus), que por sua vez se ligaria ao verbo latino cluere (“ouvir”, “ouvir-se chamar de”). A tese de Anders aqui é: uma vez que os aparelhos falam por nós, a nossa fala própria atrofia, nos tornamos dependentes, perdemos a voz (Unmündige); diante do aparelho que domina a fala, nós somos aquele que ouve, nós somos os servos (Hörige) (cf. KLUGE, 2002; cf. FARIA, 1975). (N.d.T.) 36 Do inglês, “portátil”, aqui em referência ao rádio portátil. (N.d.T.)

Page 32: Gunther Anders

30

terceiro, fazem-no em uma situação acusticamente indiscreta. Não importa quão agradável*

essa sua submissão possa parecer aos dois, não se pode mais afirmar que eles se distraiam*

um ao outro. Muito mais eles são distraídos*, justamente por aquele terceiro que sozinho é

dono da voz: e este conversa* em nome deles não apenas no sentido de “converser” 37;

tampouco apenas no sentido de “amuser”38 ; mas também – uma vez que este enquanto

terceiro na reunião oferece todo apoio e incentivo que eles, não sabendo o que devem

começar um com o outro, não poderiam dar – no sentido de “soutenir”39.40 Em um mundo que

não apenas o sabe, como também o pratica enquanto obviedade, não é preciso esconder

timidamente que o faire amour 41 de hoje na maior parte das vezes acontece com

acompanhamento do rádio (e não apenas do “swooning”42 musical). De fato, o rádio – hoje

permitido ou requisitado em qualquer situação – corresponde àquela governanta munida de

uma tocha que os antigos ocupavam como testemunha de suas alegrias amorosas; e a

diferença entre ambos consiste apenas no fato de que a governanta de hoje é uma mecanizada

“public utility”43; no fato de que ela com sua tocha deve não apenas iluminar como também

aquecer; e no fato de que, pelo amor de Deus, não se espera que ela se cale, ao contrário, que

seja tagarela de tal modo a, enquanto barulho de fundo, sobrepor-se com músicas e com

palavras àquele horror vacui 44 que não os abandona nem mesmo in actu 45 . Este

“background”46 é tão fundamentalmente importante que desde 1954 foi incorporado às então

nascentes “voicepondences”47, ou seja, nas fitas cassetes que as pessoas enviavam umas para

as outras. Se um apaixonado declama uma tal analfabeta carta de amor, então ele declama

sobre um fundo acústico, a saber, musicalmente já preparado, porque um “nada além de sua

37 Do francês, “conversar”. (N.d.T.) 38 Do francês, “divertir”, “entreter”. (N.d.T.) 39 Do francês, “sustentar”, “apoiar”. (N.d.T.) 40 Estes dois últimos períodos são construídos ao redor das tonalidades do verbo unterhalten, cujos três principais sentidos Anders explora de modo explícito, tomando o francês como referência. As três acepções trabalhadas são: a) unterhalten como converser: “conversar”, “dialogar”; b) unterhalten como amuser: “divertir”, “distrair”; e c) unterhalten como soutenir: “sustentar”, “amparar”, “apoiar”. (N.d.T.) 41 Do francês, “fazer amor”, “namorar”. Grifo nosso. (N.d.T.) 42 Do inglês, “desfalecimento lânguido”. (N.d.T.) 43 Do inglês, “utilidade pública”. (N.d.T.) 44 Do latim, “horror ao vazio”, “horror à desocupação”. Grifo nosso. (N.d.T.) 45 Do latim, “em ato”, “em ação”. Grifo nosso. (N.d.T.)

* Traduções distintas para o mesmo verbo unterhalten , cf. nota 40. (N.d.T.) 46 Do inglês, “pano de fundo”. (N.d.T.) 47 Neologismo inglês formado entre voice (“voz”) e correspondence (“correspondência”). (N.d.T.)

Page 33: Gunther Anders

31

voz” para sua adorada destinatária provavelmente permaneceria um presente demasiado nu.

Aquilo que deve falar com ou se dirigir à destinatária, de certa forma enquanto coisa

transformada em aquele-que-pede-a-mão-da-noiva, é novamente a terceira voz.

Mas a situação amorosa é apenas um exemplo, o mais crasso. Em sentido

semelhante eles se deixam distrair em qualquer situação, em qualquer atividade; e mesmo

quando eles inadvertidamente falam um com o outro, fala atrás deles, enquanto pessoa

principal, enquanto tenor, a voz do rádio e oferece a eles o confiável e seguro sentimento de

que ela ainda o fará mesmo se for encerrada a conversa deles. Mesmo depois da morte deles.

Em verdade, uma vez que o falar lhes é apenas assegurado e entregue pronto

gotejado no ouvido, eles deixaram de ser ζωα λóγον έχοντα48; do mesmo modo que ao se

tornar aquele que come o pão eles deixaram de ser homines fabri49: pois eles formam sua

própria nutrição léxica tão pouco quanto ainda assam seu próprio pão. Palavras são para eles

não mais algo que se fala, mas algo que apenas se ouve; falar é para eles não mais algo que se

faz, mas apenas algo que se recebe. É evidente que eles “têm”, assim, um sentido para logos

completamente diferente daquilo que Aristóteles queria dizer em sua definição; do mesmo

modo que eles com isso se tornaram seres infantis – no sentido etimológico da palavra –,

justamente: dependentes, não-falantes.50 – Assim também, em qualquer espaço civilizatório-

político no qual este desenvolvimento de dê em direção a άνευ λόγον ειναι51, o efeito final no

qual ele desemboca deve ser o mesmo: a saber, consistir em um tipo de homem que, por não

falar por si só, não tem mais nada a dizer; aquele que, por apenas ouvir, é cada vez mais

“servo52”. O primeiro efeito desta limitação sobre o apenas-ouvir já está claro. Ele consiste,

em todas as culturas lingüísticas, no embrutecimento, empobrecimento e perda de interesse da

fala.53 E não consiste apenas nisso, mas também no embrutecimento e empobrecimento da

48 Do grego, “animal dotado de razão” e “ser vivente que governa a palavra”; expressão usada por Aristóteles no livro “Política”. (N.d.T.) 49 Do latim, “operários”. Grifo nosso. (N.d.T.) 50 De fato, o sentido próprio do termo latino infans é: a) “aquele que não fala”, “incapaz de falar”. Daí decorre: b) “que não tem o dom da palavra” e c) “criança” (cf. FARIA, 1975). (N.d.T.) 51 Do grego, “ente desprovido de palavras”. (N.d.T.) 52 Höriger: “vassalo” e “aquele que ouve”, cf. nota 35. (N.d.T.) 53 Um antecedente deste definhamento da fala, que agora se torna universal, nós já experimentamos uma vez: a saber, o definhamento da cultura da carta, realizado em 50 anos de telefone; e de fato de modo tão exitoso que nós atuais tomamos as cartas que as pessoas de cultura mediana de um século atrás escreviam umas às outras enquanto obras-primas de exata aplicação e de exata informação. O que se atrofia com isso – uma vez que o

Page 34: Gunther Anders

32

vivência, ou seja, do próprio homem. E de fato porque o “interior” do homem, sua riqueza e

sutileza, não tem nenhuma existência sem a riqueza e a sutileza do discurso; pois não é válido

apenas que a língua é a expressão do homem, mas também que o homem é produto de sua

fala; em suma: porque o homem é assim articulado, assim como ele mesmo articula; e assim

desarticulado, assim como ele não articula.54

§ 5. Os acontecimentos chegam a nós, não nós a eles

O tratamento do homem se dá enquanto entrega em domicílio, não diferente do

que acontece com o gás ou a eletricidade. O que é emitido, porém, não são apenas produtos

artísticos, não apenas algo como música ou radionovelas, mas também os acontecimentos

reais, justamente estes. Pelo menos aqueles que enquanto “realidade” ou no lugar desta são

para nós escolhidos, quimicamente purificados e preparados. Quem quer “estar por dentro”55,

quem quer saber o que existe lá fora, precisa se dirigir até sua casa, onde os acontecimentos

“encomendados para contemplação” já esperam por ele como a água encanada na torneira.

Como poderia ele do lado de fora, no caos da realidade, estar em condições de extrair alguma

coisa real com mais do que um significado local? Pois o mundo exterior encobre o mundo

exterior. Apenas se a porta atrás de nós se fecha torna-se visível o externo; apenas se nos

tornamos mônadas sem janelas56, reflete-se nos o universo; apenas quando nos abjuramos da

homem é assim articulado, assim como ele mesmo articula – é não apenas a sutilidade de sua expressão, mas a sutilidade do próprio homem. (Nota do Autor) 54 Nada está hoje mais fora de lugar do que a chorosa e soberba demanda dos irracionalistas de que nossa fala não alcançaria a abundância e a profundidade de nossa experiência. Os grandes do passado, com cuja abundância e profundidade nós pouco podemos nos medir, estavam lingüisticamente bem à altura de suas experiências; o poder de seu discurso alcançou até a situação mais extrema, e a incompetência da fala, a insuficiência no dizer, apresentavam eles sempre apenas muito tarde, apenas entre os últimos. Quanto menos o homem tem a dizer, tanto mais precipitado o homem faz da miséria um fanatismo e da pobreza uma riqueza; tanto antes o homem se ostenta para com isso provar a condição efusiva de sua própria vivência, com a falência da fala. Rapidamente a juventude abandona o indizível. A verdadeira miséria e embaraço de hoje não consiste no fato de que nós “podemos destruir-pela-fala” nossa suposta abundância e nossa suposta profundidade; ao contrário, consiste no fato de que nós podemos levar nossa abundância à diluição, na medida em que nós ainda a temos, e podemos levar nossa profundidade à expedição, pois nascidos com a linguagem, começamos a desaprender o falar. (N.d.A) 55 Im Bilde sein: literalmente, “estar na imagem”; seu uso corrente, porém, é “estar informado”, “estar por dentro”. A (pertinente) oposição entre “estar por dentro” e “acontece lá fora”, portanto, não está presente no texto original; a referência de Anders seria antes em relação à questão da imagem. (N.d.T.) 56 Referências à idéia de mônada segundo o filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716): substância simples, inesgotável, indivisível, ativa, que constitui o elemento último das coisas. A mônada leibniziana espelha em si o universo todo; representa a si mesma; tende a fugir da dor e desejar o prazer; e desprovida de porta e

Page 35: Gunther Anders

33

torre de tal forma que ao invés de sentarmo-nos sobre ela, sentamo-nos dentro dela, o mundo

se torna nossa propriedade, o mundo é nosso gosto, tornamo-nos Linceu57.58 No lugar da

antiga garantia: “veja, o bem se encontra tão perto” com a qual nosso pai nos deve ter

tranqüilizado sobre a pergunta “por que vagar no distante?”, hoje a garantia teria de surgir

como: “veja, o distante se encontra tão perto”; quando não mesmo: “veja, apenas as coisas

distantes ainda se encontram perto”. E com isso estamos no tema. Pois os acontecimentos –

eles mesmos, não as notícias sobre eles – as partidas de futebol, as missas, as explosões

atômicas nos visitam; a montanha vai até o profeta. E o fato de que o mundo vai até o homem,

ao invés do homem ir até ao mundo, é, ao lado da produção do eremita-de-massa e da

metamorfose da família em um público-miniatura, o verdadeiro efeito transformador que o

rádio e a T.V. trouxeram.59

Esta terceira transformação é agora o verdadeiro objeto de nossa investigação.

Pois esta se ocupa quase exclusivamente das mudanças características que perfazem o homem

enquanto ser abastecido de mundo; e das não menos características conseqüências que a

entrega-do-mundo levam consigo sobre o conceito de mundo e sobre o mundo em si. Para

mostrar que aqui existem perguntas verdadeiramente filosóficas, estão nomeadas, primeiro em

uma ordem ainda pouco sistemática, algumas das conseqüências que devem ser discutidas no

decorrer da investigação.

janelas, não recebe os conhecimentos de fora, mas pode exprimir o universo a partir de si mesma (cf. ROBERT, 1967; cf. LEIBNIZ, 2000). (N.d.T.) 57 Linceu, (do grego antigo, Λυγκεύς, “aquele que enxerga como um lince”) personagem da mitologia grega, foi um dos argonautas. Famoso por sua visão apurada, conta-se que ele podia ver através das paredes e enxergar o subterrâneo. – Anders se refere aqui diretamente à citação do personagem mitológico em “Fausto”, livro do escritor alemão Johann von Wolfgang Goethe (1749-1832). No quinto ato da segunda parte, Goethe dedica um canto a Linceu, o vigia, cujos primeiros versos são: Zum Sehen geboren, / zum Schauen bestellt, / dem Turme geschworen, / gefällt mir die Welt (em tradução de Jenny Klabin Segall: “A ver destinado, / à torre preposto, / vigia jurado, / o mundo é meu gosto”) (GOETHE, 1986:195; GOETHE, 2002:426). (N.d.T.) 58 A representação das “torres de marfim”, que o homem ergue para si e nas quais ele se recolhe para não mirar a realidade nos olhos, está mais e mais ultrapassada. A construção das torres é há muito levada a cabo pela realidade em si; ela é sua feitora e senhora. Não nos sentamos diante delas como exilados, mas sim somos encerrados nelas como inquilinos compulsórios. Mas quando elas nos alojam, o fazem não para que então nós nos proporcionemos uma fantástica, totalmente nova imagem de mundo, mas sim para que nós vivamos em imagens suas. Certamente não em suas verdadeiras imagens, mas sim naquelas falsas, as quais elas pretendem, por interesses reais, que sejam tomadas por “elas próprias”. Elas nos trancam para que ao se mostrar aparente ela no desvie de si. Mas esse desvio elas realizam por certo segundo o bastante realista interesse de nos marcar realmente por meio de sua imagem falsa, para nos trabalhar de tal maneira que então nossa realidade humana se torne utilizável para elas em nível ótimo. Àqueles que apresentam resistência, elas nomeiam “introvertidos”; às suas vítimas submissas, “extrovertidos”. (N.d.A.) 59 A idéia do “mundo que vem até nós” tornou-se de tal forma familiar que nós tomamos por visitantes tudo aquilo que passa por nosso caminho telúrico: ontem discos voadores marcianos, hoje super-homens de Sírio. (N.d.A.)

Page 36: Gunther Anders

34

1. Se o mundo chega a nós, ao invés de nós a ele, então não estamos mais “no

mundo”; somos exclusivamente seus consumidores como no país das maravilhas.

2. Se ele chega a nós, mas apenas enquanto imagem, ele é meio presente e meio

ausente, ou seja, fantasmagórico.

3. Se podemos evocá-lo a qualquer hora (de fato, não administramos, mas

podemos ligá-lo e desligá-lo), somos possuidores de poderes semelhantes aos poderes

divinos.

4. Se o mundo fala conosco sem que nós possamos falar com ele, estamos

condenados a ser mudos, ou seja, não-livres.

5. Se ele nos é perceptível, mas apenas isso, ou seja, se ele não é passível de

interferência, nós somos transformados em espiões ou voyeurs.

6. Se um acontecimento que se dá em um determinado local pode ser emitido e

enquanto “emissão” pode ser gerado para entrar em cena em qualquer outro lugar, então ele é

transformado em um bem móvel, quase onipresente, e perdeu o espaço enquanto principium

individuationis60.

7. Se ele é móvel e surge em virtualmente inúmeros exemplares, então ele

pertence, segundo sua classe de objeto, aos produtos em série; se se paga pela emissão dos

produtos em série, o acontecimento é uma mercadoria.

8. Se ele é socialmente relevante antes em sua forma de reprodução, está

suprimida a diferença entre ser e parecer, entre realidade e imagem.

9. Se o acontecimento é socialmente mais importante em sua forma de reprodução

do que em sua forma original, então deve o original orientar-se por suas reproduções, o

acontecimento se torna mera matriz de suas reproduções.

10. Se a dominante experiência com o mundo se alimenta de tais produtos em

série, então o conceito de “mundo” (na medida em que por “mundo” se entende onde

60 Do latim, “fundamento de identificação”, “princípio de individuação”. Grifo nosso. (N.d.T.)

Page 37: Gunther Anders

35

estamos) está destruído, o valor do mundo foi perdido e a postura do homem produzida por

meio das emissões foi feita “idealista”. –

Está claro o bastante, portanto, que não faltam problemas filosóficos. Todos esses

aqui nomeados serão discutidos no decorrer da investigação. Até o último ponto: o estranho

emprego da expressão “idealista”. Este deve, por isso, ser imediatamente esclarecido.

Que para nós enquanto consumidores de rádio e televisão o mundo não aparece

mais como mundo exterior, no qual estamos, mas sim como nosso, já foi formulado no ponto

1. De fato, o mundo está sim de um modo particular transladado: ele não se encontra, como

na fórmula trivial do idealismo, “na nossa consciência” ou mesmo “no nosso cérebro”; no

entanto, uma vez que ele está sim deslocado de fora para dentro, uma vez que ele, ao invés de

se encontrar lá fora, agora encontrou no meu quarto seu lugar, e de fato enquanto imagem a

consumir, enquanto mero eidos61, ele se assemelha sim ao deslocamento do idealismo clássico

no modo mais evidente. O mundo tornou-se agora meu, minha representação; ele se tornou –

se estamos prontos para entender a palavra “representação” de uma só vez em dois sentidos:

não apenas no sentido schopenhaueriano 62 , mas também no sentido teatral – em uma

“representação para mim”. Neste “para mim” consiste o elemento idealista. Pois “idealista”,

no mais amplo sentido, é qualquer atitude que transforma o mundo em algo meu, em algo

nosso, em algo sob o qual se pode dispor, em suma, em uma possessão, justamente em minha

“representação” ou em meu (fichteano 63) “produto do pôr”. Se o termo “idealista” aqui

61 A expressão em grego eidos foi incorporada no alemão culto – por isso ela aparece aqui grafada em letras latinas – mantendo seu significado do grego antigo, a saber: “figura”, “imagem”, “representação”, ou, em Platão, “idéia” (cf. KNAUR, 1985). (N.d.T.) 62 Referente à tese do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), para quem o mundo existe em relação ao sujeito apenas enquanto representação. Nas palavras do filósofo: Es wird ihm dann deutlich und gewiß, daß er keine Sonne kennt und keine Erde; sondern immer nur ein Auge, das eine Sonne sieht, eine Hand, die eine Erde fühlt; daß die Welt, welche ihn umgiebt, nur als Vorstellung da ist, d.h. durchweg nur in Beziehung auf ein Anderes, das Vortellende, welcher er selbst ist (em tradução de M. F. Sá Correia, “Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas os olhos que vêem este sol, mãos que tocam esta terra; em uma palavra, ele [o homem] sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem”) (SCHOPENHAUER, 1988:31; SCHOPENHAUER, 2001:9). (N.d.T.) 63 Filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), representante do idealismo alemão pós-kantiano, entende o ser enquanto produto de uma atividade intelectual, produto de um agir do espírito. Em “Grundrechte der Gesammten Wissenschaftlehre”, Fichte afirma: Und dies macht es denn völlig klar, in welchem Sinne wir

Page 38: Gunther Anders

36

surpreende, é somente porque ele assevera habitualmente o ser-meu apenas de modo

especulativo, enquanto aqui ele marca uma situação na qual a metamorfose do mundo em algo

sobre o qual eu disponho é realmente realizada de modo técnico. É evidente que também a

mera asseveração se origina de um imensurável direito de liberdade, uma vez que nela o

mundo é justamente reclamado enquanto propriedade. – Hegel empregou a expressão

“idealismo” neste mais amplo sentido e não receou, na sua “Filosofia do Direito”64, em

chamar de “idealista” ao animal que se alimenta, na medida em que na forma do bote ele se

apropria do mundo, incorpora o mundo e pensa o mundo, ou seja, dispõe dele como “seu”65. –

Fichte foi idealista porque via o mundo como algo por ele “posto”, como produto da ação de

seu eu66, ou seja, como seu produto. – Comum a todos os idealismos no sentido mais amplo é

o pressuposto que o mundo está lá para o homem, seja como algo dado, seja como algo

produzido na liberdade – de tal forma que o homem em si não realmente pertence ao mundo;

ele representa o pólo contrário do mundo, não um pedaço do mundo. A interpretação dessa

coisa dada, deste “datum” 67 , enquanto “datum-sensível” é apenas um tipo de jogo do

idealismo entre vários, e não dos mais graves.68

hier das Wort Ich brauchen, und führt uns auf eine bestimmte Erklärung des Ich, als absoluten Subjects. Dasjenige, dessen Seyen (Wesen) bloss darin besteht, dass es sich selbst als seyend setzt, ist das Ich, als absolute Subject. So wie es sich setzt, ist es; und so wie es ist, setzt es sich; und das Ich ist demnach für das Ich schlechthin und nothwendig. Was für sich selbst nicht ist, ist kein Ich (em tradução nossa: “E isto esclarece integralmente em que sentido precisamos aqui da palavra Eu, enquanto sujeito absoluto. Aquele cujo ser (essência) consiste meramente em por a si mesmo enquanto ente é o Eu, enquanto sujeito absoluto. Assim como ele se põe, ele é; e assim como ele é, ele se põe; e o Eu é então, para o Eu, de modo simples e necessário. O que para si mesmo não é, não é nenhum Eu”) (FICHTE, 1971:97). (N.d.T.) 64 No título integral, Grundlinien der Philosophie des Rechts ou “Princípios da Filosofia do Direito”. (N.d.T.) 65 Anders se refere às anotações (Zusatz) do §44 do livro “Grundlinien der Philosophie des Rechts” (não traduzidas nas versões em português), onde Hegel afirma: Der freie Wille ist somit der Idealismus, der die Dinge nicht, wie sie sind, für an und für sich hält, während der Realismus dieselben für absolut erklärt, wenn sie sich auch nur in der Form der Endlichkeit befinden. Schon das Tier hat nicht mehr diese realistiche Philosophie, denn es zehrt die Dinge auf und beweist dadurch, daß sie nicht absolut selbstäntig sind. (em tradução nossa: “A vontade livre é assim o Idealismo, que não considera as coisas, como elas são, em si e por si, enquanto o Realismo explica as mesmas como absolutas, mesmo se elas só se encontrem na forma de finitude. Mesmo o animal já não tem mais essa filosofia realista, pois ele consome as coisas e comprova com isto que elas não são absolutamente autônomas”) (HEGEL, 1970a:106-7). (N.d.T.) 66 O termo fichteano original é Tathandlung, formado a partir das palavras Tat (“fato”) e Handlung (“o agir”, “ação”). (N.d.T.) 67 Do latim, “dom”, “dádiva”, “presente”, “coisa dada”. (N.d.T.) 68 A formulação clássica do mundo como “dádiva” se encontra na história da criação que apresenta o mundo como criado para o homem. Não é nenhum acaso que os idealismos modernos sejam pós-copernicanos: em determinado sentido, eles todos representam a tentativa de ainda salvar este bíblico “para nós”, que se entendia com a imagem de mundo pré-copernicana, mas não concordava com a pós-copernicana; ou seja, a tentativa de manter firme um geocentrismo e/ou um antropocentrismo em um universo descentralizado. (N.d.A.)

Page 39: Gunther Anders

37

Se isso vale para todos os tipos de jogos do idealismo – que ele reimprime o

mundo em uma possessão: em um reino (Gênesis); em uma imagem de percepção

(sensualismo); em um bem de consumo (o animal hegeliano); em um produto do pôr ou do

criar ([Johann Gottlieb] Fichte); em propriedade ([Max] Stirner) – então no nosso caso a

expressão de fato pode com a melhor das intenções ser cognata, uma vez que todas as

possíveis nuances da possessão estão aqui reunidas.

Até onde os aparelhos de rádio e de televisão também queiram escancarar a janela

para o mundo, ao mesmo tempo eles fazem “idealistas” aos consumidores de mundo.

Evidentemente essa afirmação soa, depois que falamos da vitória do mundo

exterior sobre o mundo interior, estranha e contraditória. A mim também. O fato de que se

pode estabelecer ambas as afirmações parece mostrar uma antinomia no comportamento

homem-mundo. Esta antinomia não se resolve de golpe. Fosse isso possível, tornar-se-ia

nossa investigação supérflua. Pois esta é posta em marcha por meio do paradoxo; e apresenta

in toto69 nada além do que a tentativa de esclarecer situações paradoxais.

69 Do latim, “integralmente”, “na completude”. Grifo nosso. (N.d.T.)

Page 40: Gunther Anders

38

II. O FANTASMA

O mundo nos é entregue em domicílio. Os acontecimentos nos são servidos.

Mas como eles são servidos? Enquanto acontecimentos? Ou apenas como suas

representações? Ou apenas como notícias sobre os acontecimentos?

Para poder responder essas perguntas, que guiam os próximos parágrafos,

traduzamo-nas em um primeiro momento em alguma outra língua; e perguntemos: Como são

os enviados acontecimentos em relação a quem recebe? Como é quem recebe em relação a

eles? Realmente presente70? Apenas aparentemente presente? Ausente? De que modo presente

ou ausente?

§ 11. A relação homem–mundo torna-se unilateral;

o mundo, nem presente, nem ausente, torna-se um fantasma

Por um lado, eles parecem realmente estar “presentes”: quando escutamos a

transmissão de rádio de uma cena de guerra ou de uma sessão do parlamento, então ouvimos

não apenas a notícia sobre as explosões ou sobre os oradores, mas eles próprios. – Não

significaria isso que os acontecimentos, dos quais nós antes não conseguíamos, nem podíamos

(nem devíamos) participar, agora estão realmente conosco? E nós com eles?

E, novamente, não. Pois seria isso presença viva? Se, ainda que de fato o acesso

a nós esteja livre às vozes do mundo, ainda que estas de fato tenham direito a estar conosco,

nós, por outro lado, permanecemos sem direitos e sem voz diante dos acontecimentos

entregues? Se não podemos responder a ninguém, a quem quer que esteja falando, mesmo

àquele que parece falar conosco; e se não podemos intervir em nenhum acontecimento, cujo

barulho ruge em nosso entorno? Não seria parte da presença verdadeira que a relação homem-

mundo fosse recíproca? Não estaria aqui esta relação amputada? Não teria se tornado

unilateral, de modo tal que para o mundo o ouvinte, ao contrário, é imperceptível? Não

70 Gegenwärtig: adjetivo “presente” também no sentido de “contemporâneo”. (N.d.T.)

Page 41: Gunther Anders

39

permaneceria ele fundamentalmente pré-concebido no “don´t talk back”71? Essa mudez não

significaria impotência? Não seria a onipresença, com a qual somos agraciados, a presença da

não-liberdade? E não seria o não-livre – uma vez que ele é tratado como não-ser, como vento,

e não pode ter nada a comunicar – ausente?

Pois nitidamente ausente. E ainda assim seria de novo possível interpretar a

unilateralidade ao contrário, a saber, enquanto garantia da liberdade e enquanto presença: não

significaria liberdade, se pudéssemos participar de cada acontecimento à distância, ou seja,

intocáveis e invulneráveis, em função da unilateralidade? Com o privilégio de utilizá-lo

enquanto deleite e bem de distração? Não seria verdadeiramente presente este, que não pode

ser caçado por nenhum dos acontecimentos, dos quais ele é testemunha, na fuga, ou seja, na

ausência?

Também isso soa, de novo, plausível. E seria completamente compreensível que

uma voz interrompesse essas perguntas e explicasse como descabido esse vai-e-vem sobre a

presença ou a ausência daquilo que é transmitido. “Aquilo que o rádio ou a TV nos entrega”,

escuto-a, “são imagens72. Representações, não presença! E que os símbolos não permitem

intervenção e que nos tratam como vento, isso é óbvio e é um fato há tempos conhecido sob o

título de ‘aparência estética’”.

Mesmo tão esclarecedor, seu argumento é falso. Pois – e esta é uma constatação

fenomenológica fundamental – não existem aqui “imagens acústicas”: o gramofone não nos

apresenta a imagem da sinfonia, mas sim ela própria. Chega-nos pelo rádio uma manifestação

social, então o que temos para ouvir não é nenhuma “imagem” da multidão barulhenta, mas os

seus barulhos, mesmo quando a multidão em si não nos alcança fisicamente. – Além disso, no

entanto, tomamos uma atitude enquanto ouvintes – a não ser que seja transmitida uma obra de

arte (algo como um drama), que leva em conta seu caráter de aparência – que não poderia ser

menos estética: quem escuta uma partida de futebol, o faz como torcedor excitado, considera

que ela realmente acontece e não sabe nada a respeito do “como se” da arte.

71 Do inglês, “não responda”. Grifo nosso. (N.d.T.) 72 “Imagem” aqui (e em todo este capítulo) não se restringe ao sentido óptico, visual, do termo, mas sim traduz Bild em seu sentido extenso: “apresentação figurativa”, “ilustração”, “figura”, “idéia”, “noção”, “representação”, “símbolo”, “metáfora”. (N.d.T.)

Page 42: Gunther Anders

40

Não, a voz que nos interrompeu está errada. O que recebemos não são puras

imagens. Mas, do mesmo modo, também não estamos realmente presentes na realidade. A

pergunta: “estamos presente ou ausentes?” é de fato descabida; não porque a resposta

“imagem” (e com isso “ausente”) seja óbvia; mas porque a particularidade da situação criada

por meio da transmissão consiste em sua ambigüidade ontológica; porque os acontecimentos

enviados são ao mesmo tempo presentes e ausentes, ao mesmo tempo são verdadeiros e

aparentes, ao mesmo tempo estão lá e não estão lá, em suma: porque são fantasmas. –

§ 12. Imagem e reprodução na TV são sincrônicas.

Sincronia é a forma de atrofia da presença

“Mas”, continuará a voz, “aquilo que vale para o ouvinte de rádio não vale

assim, sem mais, para a televisão. Que ela nos entrega imagens não se pode discutir”.

Não. Mas elas tampouco são “imagens” em seu sentido original. À essência da

imagem, ou seja, na história das imagens feitas pelo ser humano até hoje, fundamentalmente

pertenceu que entre ela e objeto que ela reproduz houvesse, mesmo se não-expressamente,

uma diferença de tempo, um “desnível temporal”. Em alemão, esse desnível é

pertinentemente expresso por meio da partícula “nach”73: ou se pinta uma imagem segundo

um modelo, ou um verdadeiro é estabelecido segundo um modelo. Ou a imagem segue seu

sujeito enquanto cópia [Nachbild] ou monumento, para retomar seu passado, para remeter à

sua transitoriedade, ou seja, para salvá-lo e reter sua presença; ou ela foi precedente em

relação ao seu objeto, enquanto mágico aparelho provocativo ou enquanto idéia, blue print74,

modelo [Vorbild], para então, recolhida do realizado acontecimento ou objeto, sumir; ou ela

foi finalmente um outro meio – e mesmo este modo de neutralização apresenta um outro

comportamento em relação ao tempo –, através do qual nos colocamos ou julgamos nos

colocar em uma dimensão fora da presença, além do tempo. Seria difícil apontar uma imagem

na qual não tenha sido efetivo nenhuma dessas relações temporais entre o homem e o mundo;

73 Nach: preposição pertinente aos seguintes casos: (espacialmente) “para”, “em direção a”; (temporalmente) “depois”; (em relação a uma ordem ou seqüência); “em seguida”; (em correspondência lógica) “segundo”, “conforme”, “a partir de”; (em escala de medida) “em”, “por”. (N.d.T.) 74 Do inglês, “plano”, “projeto”. Grifo nosso. (N.d.T.)

Page 43: Gunther Anders

41

e é duvidoso que as formas, às quais faltam este desnível, podem ser chamadas de “imagens”.

Tais formas, no entanto, são as imagens que a televisão veicula:

Pois aqui não se pode mais falar em uma relação temporal com as reproduções,

apesar de, enquanto vídeo, rodar dentro do tempo. O que chamamos “desnível temporal” é

atrofiado a zero; as imagens entram em cena simultâneas e sincrônicas com os

acontecimentos que elas reproduzem; elas mostram, nada diferente do telescópio, o presente.

E não significam “ausência”? São as formas, que mostram o ausente, imagens?75

Este problema não permaneceu despercebido; mas sua nomeação seguiu

insatisfatória. Recorreu-se, a saber, à já existente expressão “instantâneo”76, que sabidamente

se aproximava, e com isso acreditou-se poder despachar o fenômeno. Mas a expressão de

imediato dissimula o problema. Instantâneos são sim – uma vez que querem fixar o instante

transitório – imagens em seu mais legítimo sentido: a saber, imagens-monumento; sua função

imagética segue os monumentos, próprias múmias, mais próximas do que os fantasmas

televisivos. Porém em relação a estes fantasmas não se pode falar em tal fixação, pois eles não

apenas entram em cena ao mesmo tempo em que os acontecimentos por eles reproduzidos,

como também ao mesmo tempo desaparecem: ou seja, a menos que elas fossem mais uma vez

capturadas, elas são exatamente tão efêmeras quanto eles. Sejam elas imagens momentâneas,

então são no máximo imagens do momento para o momento, ou seja, parentes das imagens

de espelho: pois estas são sim simultâneas e sincrônicas com o instante espelhado; portanto,

sob qualquer ponto de vista, puro presente.

Mas não teríamos feito aqui um mero jogo com a palavra “presente”? Não nos

utilizamos do fato de que a palavra oscila entre dois significados para suscitar problemas

imaginários? Pois nitidamente a utilizamos em sentido duplo: de um lado, para designar

presente concreto, ou seja, a situação na qual homem e homem, ou homem e mundo,

encontram-se em contato real de fato e, na condição em que um diz respeito ao outro, um vai

75 Em um programa de televisão, tive a questionável chance de ver e ouvir uma atriz que encenava um esquete e, ao mesmo tempo, suas sete projeções em TV. Digno de nota foi 1) que, para os olhos, a atriz se partia em sete irmãos idênticos, mas tinha apenas uma única voz, não repartida, que ecoava pelas duas salas. 2) que as imagens operavam mais naturais do que o original, uma vez que este teve que se arranjar justamente para emprestar sua naturalidade às reproduções. E 3) (e isso, mais do que digno de nota, foi assustador) que a heptagonal corporificação da atriz já não mais assustava: com tal obviedade já esperamos apenas produtos em série. (N.d.A.) 76 Momentaufnahme: literalmente, “captura do momento”, expressão de uso corrente na área da fotografia enquanto “instantâneo”. (N.d.T.)

Page 44: Gunther Anders

42

ao encontro do outro, um é pertinente ao outro, crescem juntos (= concrescunt77) para a

“situação”; de outro, para indicar mera simultaneidade formal; ou seja, o fato de que o homem

e um acontecimento qualquer, em estando no mesmo ponto extremo do momento-agora,

dividem o instante do mundo. – Mas que a palavra receba este duplo significado – e não

apenas em alemão – não é nenhum acaso. Este duplo significado se baseia antes no fato de

que realmente não se deixa traçar a fronteira na qual um acontecimento ou um pedaço do

mundo nos diz tão pouco respeito que seja “presente” apenas no sentido da simultaneidade.

Aquilo que é presente se torna apenas simultâneo; este é o caso-limite; é aquele que menos

me diz respeito, ou seja, o mais longínquo; todavia, aquilo que não se retrai para a

“irrealidade” mostra, com isso, que ainda me diz respeito.78

Mas mesmo que a fronteira entre os dois significados se deixasse traçar: não

somos nós quem joga com esse duplo sentido; é a televisão. Sim, este jogo é exatamente o

princípio da transmissão; pois seu efeito consiste justamente em remeter o apenas ou quase

apenas simultâneo de modo que ele opere enquanto presente vedadeiro; em conceder ao

presente apenas formal a aparência de presente concreto; em apagar completamente a já

pouco exata linha fronteiriça entre os dois “presentes” e, com isso, entre o relevante e o

irrelevante. Toda emissão de imagens fala, e em verdade com razão: “agora estou aqui – e não

apenas eu, a emissão; mas eu, o acontecimento emitido”. E por meio deste “eu sou agora”, por

meio desta atualidade, ela faz dela mesma um fenômeno que vai além de todo mero

imagético; ela faz dela mesma, uma vez que ela tampouco é o real presente, uma coisa

intermediária; uma coisa intermediária entre ser e parecer, aquela que nós, enquanto

falávamos da transmissão de rádio, justamente nomeamos como “fantasmas”. –

Sobre a própria diluição da fronteira entre os dois presentes não só não haveria

nada contra o que se opor, como ela seria inclusive, quando corretamente conduzida, digna de

elogios. Pois existem hoje coisas demais que descartamos injustamente enquanto “apenas

simultâneas”, enquanto adiaphoron79 , embora elas nos digam respeito e nos possam ser

77 Verbo latino concrescere – “formar-se ou crescer por agregação ou por condensação” – flexionado na terceira pessoa do plural na forma ativa do presente do indicativo. Grifo nosso. (N.d.T.) 78 Acontecimentos de relevância subconsciente, e eles se dão em nosso próprio corpo, não são “presentes”, mas apenas simultâneos; e isso não porque eles não foram “dados” de forma consciente; muito mais eles não são “dados” justamente por serem irrelevantes. (N.d.A.) 79Conceito herdado do grego antigo αδιάφορα como “coisa indiferente”, “coisa irrelevante”, habitualmente empregado no campo da ética e da teologia cristã para designar algo que não seja nem bom, nem mal. (N.d.T.)

Page 45: Gunther Anders

43

pertinentes (e nós a elas); coisas que são nostra res80, o mais concreto e mais ameaçador

presente. O perigo da provincialização não é menor do que aquele da falsa globalização.

Técnicas que possibilitem o alargamento de nosso horizonte moral de presente para além de

nosso evidente ambiente sensível seriam, portanto, absolutamente necessárias. Mas esse

alargamento, justamente, a televisão não realiza. Muito mais ela dilui nosso horizonte de

modo tão integral que nós não mais conhecemos sequer o verdadeiro presente; mesmo diante

do acontecimento que realmente deveria nos afetar, manifestamos apenas algum interesse

aparente, interesse que aprendemos a fornecer com as coisas-aparentemente-presentes que nos

foram entregues em domicílio.

Desnecessário acrescentar que o número de presentes-fantasma é ilimitado. Uma

vez que o princípio que traz o consumidor e o acontecimento para um denominador comum é

abstrato e pontual – consiste justamente em um mero agora comum –, ele também é universal.

Não existem acontecimentos que caem para fora do agora global; como também não existe

nada que não possa ser metamorfoseado em algo supostamente presente. Mais quanto mais

presente isso é feito, tanto menos presente isso é. Entre os fãs de rádio e de televisão que me

são conhecidos, nunca soube de um único que por meio de sua porção diária de

simultaneidade tenha sido educado para ser menos alheio ao mundo ou pelo menos como

companheiro de uma mesma época. Ao contrário, conheço muitos que se tornaram por esta

refeição diária desprovidos de mundo, desprovidos de relacionamento e dispersos: ou seja,

meros companheiros de um mesmo agora.

80 Do latim, “coisa nossa”, “assunto nosso”, “interesse nosso”. (N.d.T.)

Page 46: Gunther Anders

44

III. A NOTÍCIA

“Enquanto qual tipo”, perguntamos no início do trecho anterior, “enquanto qual

tipo de estrutura nos chegam os acontecimentos entregues em domicílio?” E sobre isso demos

uma resposta ambígua: “enquanto fantasma” – com o que mostramos que eles não nos

chegam nem como eles próprios, nem como puras imagens dos acontecimentos, mas sim

como uma terceira coisa.

Mas seria isso realmente algo tão espantoso? Não seria isso um fenômeno

completamente cotidiano, ao qual por meio de uma expressão estranha emprestamos uma

aparência estranha? Coisa semelhante não acontece a cada instante? E, de fato, a cada

noticiação81?

O que significa isso?

Suponhamos que nosso depósito de carvão esteja vazio. A esse respeito nos é

notificado. O que nos é aí notificado? O que nos é aí “entregue em domicílio”? O objeto em

si? O depósito vazio?

A imagem do depósito de carvão esvaziado?

Nem isso, nem aquilo. Pois o que recebemos é um ‘objeto’ sui generis82, um

‘terceiro objeto’, que de maneira própria se encontra fora dessas alternativas: a saber, que a

caixa de carvão vazia está; um fato, pois. Que este fato não seja idêntico ao depósito em si é

uma constatação fenomenológica evidente: o fato em si não está vazio; contudo é do mesmo

modo evidente que o fato, que nos é transmitido através da notícia, não se esgota em ser uma

imagem.

O que traz a notícia não é nem a coisa, nem sua imagem. Não se sugeriria, em

função dessa semelhança estrutural, simplesmente conjecturar que as emissões sejam

notícias?

81 Benarichtigung: “ação de noticiar”, “informação”, “aviso”, “notificação”. (N.d.T.) 82 Do latim, “particular”, específico”, “característico”. (N.d.T.)

Page 47: Gunther Anders

45

Para responder essa pergunta temos que nos afastar do tema, ou seja, investigar

antes a própria natureza da notícia. Uma tal divagação é mais urgente do que a aparência que

nossos atuais argumentos possam ter sugerido, como se advogássemos com ilícita

exclusividade pelo monopólio da urgência.

§ 17. Pragmática teoria do juízo83: Aquele que recebe a notícia é livre, uma vez que dispõe

do ausente; não-livre, uma vez que, ao invés da coisa em si, conserva apenas seu predicado

O que é então notícia? No que consiste seu efeito?

Consiste em dar àquele que recebe a notícia informação sobre algo ausente, e de

tal maneira que esse, o destinatário, apenas indiretamente, sem experiência pessoal, tome

conhecimento sobre o ausente, conforme uma percepção substituta. – O surgimento da

palavra “ausente” nos aponta que não deixamos o círculo de questionamentos ao qual

pertence o problema da ambigüidade da presença e não-presença. – A definição de notícia

demanda mais esclarecimentos.

Falar significa: falar sobre algo ausente: ou seja, apresentar algo que não está

presente a alguém que não está presente.

Inclusive a não-notificativa, a mais direta forma de discurso: ao imperativo

pertence um comportamento de ausência e presença: pois o imperativo chama aquele que está

afastado, ou seja, ausente, para ouvir e participar, rumo à condição de presença. Mas enquanto

o imperativo evoca o interlocutor para fora da condição de ausência, a notificação chama da

ausência aquele do qual trata o discurso. Não existe de fato nenhum discurso que, não

estivesse o discursado ausente, fosse mais do que falatório; nenhum que tivesse lugar se não

pelas costas do falado, da “terceira”, por definição ausente, “pessoa” ou coisa; nenhum que

tivesse outra intenção que não tornar presente o ausente. – Este comportamento com o ausente

83 Durante todo o texto o substantivo Urteil se traduz por “juízo”. Deve-se ter em mente, todavia, que neste termo convergem os sentidos de “julgamento”, “veredicto”, em seu senso judicial inclusive, e “conceito”, “idéia”. A título de exemplo, retomemos o contexto da epígrafe, onde o verbete aparece pela primeira vez: “ao rei pouco agradava que seu filho vagueasse pelo campo para formar um juízo próprio sobre o mundo”. Aqui fica claro o cabimento das duas acepções simultâneas; a saber: “... para formar um veredicto próprio sobre o mundo” e “...para formar um conceito próprio sobre o mundo”. O mesmo princípio – “julgar” enquanto “emitir um conceito” – vale em todo o texto. (N.d.T.)

Page 48: Gunther Anders

46

a língua naturalmente herdou de mostrar: dico – δείχνυμι.84 Pois aquele que mostra aponta

fundamentalmente para o presente, apenas porque este está ausente (a saber, ausente do ponto

de vista ou da atenção daquele para quem é mostrado); com a finalidade única de trazê-lo para

a condição de presença do objeto; para dar a ele a chance de experimentar diretamente ou

alcançar efetivamente o objeto.

Essa chance parece então por certo não oferecida àquele que recebe a notícia: nem

ele é levado pela notícia ao objeto, nem o objeto a ele. Ou sim?

Sim. Pois também através da notícia se faz algo presente. Em verdade, não o

objeto em si. Mas algo com origem no objeto; algo sobre este; um singularíssimo novo objeto,

que não por acaso, uma vez que é ‘feito’ do antigo objeto, chama-se “factum”85. O novo

objeto é “singular” por ser, ao contrário do antigo, fundamentalmente móvel e transmissível.

Entretanto, a despeito dessa diferença, aquele que recebe este novo objeto – o “factum” –, ou

seja, o destinatário, recebe também o antigo; ou melhor, ele tem, através deste, algo com

origem no antigo. E, em verdade, extraordinariamente bastante:

A notícia transmissora do “factum” coloca o destinatário, a saber, em condições

de se comportar como se o objeto estivesse presente: a saber, calcula-o e integra-o em sua

disposição prática. A razão-de-ser da notícia consiste em possibilitar ao destinatário

orientar-se por ela86.

Do ponto de vista pragmático, ela faz o objeto realmente “presente” para ele. O

destinatário toma ciência sobre ele. E essa palavra “sobre” não é apenas um capricho da

língua. A notícia indica muito mais um real estar-sobre, um poder que o destinatário ora tem

em dispor sobre o objeto e sobre a situação modificada pelo objeto. Em função da notícia “o

depósito de carvão está vazio” decido eu então pela encomenda de carvão novo. – Em outras 84Anders se refere aqui à etimologia comum do termo latino dico (“dizer”, “proclamar”, “expor”, “pronunciar”, “fixar”, “regular”) e do termo grego arcaico δείχνυμι (“mostrar”, “apontar”, “demonstrar”, “fazer ver”). De fato, a raiz significante “mostrar” se prestou a especializações diversas, como em grego διχειν, e de outro lado δίχη, e em latim dicis e dico, etc. (cf. CHANTRAINE, 1968). Grifos nossos. (N.d.T.) 85 Anders se refere aqui à palavra latina factum, particípio passado do verbo “fazer” (facĭo, -is, -ĕre, fēcī, factum), daí adjetivo para “feito” (factus, -a, -um) e substantivo para “fato, ação, empresa, obra, feito” (fāctum, -ī). (N.d.T.) 86 Este período se constrói em torno de um jogo semântico entre a palavra Nachricht (“notícia”) e a expressão nach ihr zu richten (“orientar-se por ela”). De fato, a origem etimológica de Nachricht remonta ao século XVI seguindo o conceito latino īnstrūctio (“instrução”, “ensino”, “lição”, “informação”), em alemão traduzido por nach etwas ausrichten (“orientar-se por”) e em seguida generalizado para “comunicação”, “notificação”, “notícia” (cf. KLUGE, 2002). (N.d.T.)

Page 49: Gunther Anders

47

palavras: quando o destinatário recebe, ao invés do objeto ausente em si, apenas algo “com

origem nele”, apenas algo desprendido, aquilo que é recebido não é um substituto deficitário,

mas justamente aquilo que “acontece” com o objeto87; justamente aquele fator do objeto que

realmente ou supostamente se dirige ao destinatário; este tem de fato motivo para perseguir

aquele; aquele pelo qual este deve orientar-se.88 O que se lhe dirige é algo que na notícia já

está expressamente feito, para ele trabalhado e preparado; e é neste estado de preparação que

lho é remetido. No idioma da lógica, que lidou com este espantoso trabalho inúmeras vezes,

mas muito raramente o admirou, esta coisa que “acontece”, este preparado, chama-se

“predicado”. O predicado é uma mercadoria-pronta, já fabricada para o receptor. Uma vez

que a notícia remete esta mercadoria-pronta trabalhada, este “fato” com origem no objeto

original, ela pressupõe uma fragmentação [Teilung]: a ação deste fragmentar se chama

“julgar” [Urteilen]89. Deste modo se decompõe a notícia em duas partes: S e p. O destinatário

experimenta, ao invés do objeto único “depósito de carvão”, o factum binário “o depósito de

carvão está vazio”. – Contudo, a notícia não é algo binário por ser um juízo, o juízo é binário

por ser uma notícia. –

Em outras palavras: o predicado, que habitualmente fora tratado apenas na lógica

formal, é de longe de interesse geral. Como já demonstrou nossa ênfase a respeito do “sobre”,

o predicado indica a liberdade (de dispor sobre algo): aquele que decide sobre o ausente a

partir do predicado recebido, aquele que o calcula, aquele que pode se orientar por ele, este

expandiu sim seu horizonte de presença e seu horizonte de poder; este se fez independente do

contingente local de sua permanência; este se detém aqui e lá. Quem através da notícia recebe

o relevante (aquilo que “se desprende” 90 ) já enquanto fragmento desprendido, isolado,

87 Anders faz neste período um trocadilho com a partícula los, que enquanto adjetivo significa “solto”, “separado”, “desprendido”, mas que na linguagem usual integra a expressão etwas los sein, que se deixa traduzir por “acontecer”. (N.d.T.) 88 A tese hoje tão energicamente defendida de que o translado da verdade para o juízo seria eo ipso* uma deturpação do conceito de verdade precisa ser limitada no instante em que se entende por “juízo” aquilo que ele originalmente é: justamente notícia. Por meio de sua função de notícia, ou seja, por meio do fato de que ele coloca o ausente em condição de se orientar pelo ausente, i.e., de tratar o ausente enquanto presente, o juízo realiza já um decisivo “desrecolhimento”. Por si só o intercâmbio de notícias, i.e. falar, abre o mundo; por si só este intercâmbio diz respeito à verdade do homem enquanto sociedade; e por si só ele funda finalmente cada “universalidade” que cabe ao lógico. (N.d.A.) 89 Ander trabalha a partir deste período com um jogo semântico entre as palavras Teilen (“dividir em partes”), Urteilen (“julgar”, “emitir juízo”), o neologismo Ur-Teil (“fragmento original”, “parte primordial”) e Vor-Urteil (análogo à construção “pré-conceito”), que compartilham do mesmo radical teil (“parte”, “fração”, “fragmento”). (N.d.T.) 90 V. nota 87. (N.d.T.)

* Do latim, “de si mesmo”, “por si só”. Grifo nosso. (N.d.T.)

Page 50: Gunther Anders

48

preparado, predicado, enquanto mercadoria-pronta de λέγειν91, sem ter de se carregar com o

peso do irrelevante que cada objeto de percepção arrasta consigo, este é aliviado e libertado

do trabalho próprio.

No entanto, a notícia representa, por outro lado – e antes este segundo ponto de

vista é para nós o decisivo – um roubo de liberdade. E, de fato, surpreendentemente pelos

mesmos motivos pelos quais ela é um aparelho de liberdade: ou seja, novamente porque ela

não oferece o ausente em si, mas algo “sobre este” ou “perto deste”. Porém ora recebe este

fato uma outra acentuação. Enfatizemos: a notícia oferece apenas um fragmento do objeto

ausente; exclui-se aquele fragmento [Teil], a partir do qual juízo [Urteil] se chama “fragmento

original” [“Ur-Teil”]; ela oferece apenas o preparado, que se chama “predicado”. A notícia

não põe outra coisa à disposição do destinatário que não isso. Ou seja, ela orienta-o, mesmo

antes que ele possa fazer seu próprio juízo, a partir de uma escolha; ou seja, ela estabelece

para ele um limite fixo; ou seja, prepara-o. Para quem ouve uma notícia, o predicado não está

subordinado ao sujeito, é o sujeito que se esgota no fragmento, no predicado. Cada notícia é

então, enquanto entrega de fragmento, já um pré-conceito [Vor-Urteil], que pode ser

verdadeiro, mas também pode ser falso; cada predicado é um juízo prévio92; e o objeto em si,

por meio de cada conteúdo da notícia, é usurpado do destinatário, uma vez que ele, detrás dos

predicados entregues, remanesce no escuro. O destinatário, uma vez que foi coagido para

dentro de uma determinada perspectiva (aquela do predicado) e uma vez que o objeto, que

supostamente contém o juízo, foi dele usurpado, é feito dependente.

“Take it or leave it”93 parece dizer a notícia ao destinatário. “Ou você aceita o

fragmento do ausente, o ausente em sua versão-mercadoria-pronta, já fracionada e julgada, ou

não recebe absolutamente nada”. O mensageiro é o senhor dos senhores.

Usualmente fica a diferença entre a experiência mediata e a imediata

absolutamente clara. Uma vez que a experiência imediata, ou seja, a percepção, incorpora

91 Do grego antigo, “discurso”, “falar”. (N.d.T.) 92 Präjudiz é utilizado também no sentido de “precedente judicial”. (N.d.T.) 93 Do inglês, “aceite-o ou deixe-o”. (N.d.T.)

Page 51: Gunther Anders

49

imagens pré-predicativas; e aquela mediada surge através da notícia na forma “S é p”, a

dúvida sobre a forma de experiência ou a confusão entre ambas é de fato pouco possível.

Mesmo um rato de livros ou um rato de jornal, que vive no horizonte das experiências

intermediadas e delas se alimenta, raramente chega, pelo menos na consumação da

experiência em si, à idéia de que ele experimenta de modo imediato aquilo que é

intermediado, ou o contrário; ou mesmo quando ele mais tarde, diante de um conteúdo

submerso no porão de seus conhecimentos, queira especular no escuro se este se deve a uma

experiência direta ou indireta. –

Com isso estamos no ponto de onde nos tínhamos desviado.

§ 18. Transmissões apagam a diferença entre coisa e notícia.

Elas são juízos ornamentados

Pois a própria ambigüidade na transmissão de rádio e televisão consiste no fato de

que elas, de partida e de princípio, deslocam o receptor para um estado no qual é apagada a

diferença entre ter a vivência e ser informado, entre a condição imediata e a condição

intermediada; um estado no qual não é claro se ele se está diante de uma coisa ou de um fato,

diante de um objeto ou de um fato. O que significa isso?

Como vimos, o característico do fato consiste, em oposição à maioria das coisas,

em sua mobilidade: o mensageiro não pode transportar a casa em chamas, ele pode expedir e

transmitir ao destinatário o fato de que ela queima. Pois agora os objetos em si, ou pelo menos

os seus fantasmas, são expedidos nas transmissões: o que me alcança é sim a sinfonia; não o

fato de que ela é tocada; o orador; não o fato de que ele discursa. A transportabilidade, antes

propriedade dos fatos, parece ter contaminado os objetos em si. Não teria ela, deste modo,

transformado-os em fatos?

A pergunta soa estranho. Pois fatos, pelos menos os fatos transportados pelas

notícias, decompõem-se sim como juízos em suas duas partes S e p94. As imagens enviadas,

94 Anders faz referência aqui à divisão gramatical (elevada por ele à condição de categoria lógica) entre sujeito S e predicado p, conforme será evidenciado em seguida. (N.d.T.)

Page 52: Gunther Anders

50

no entanto, claramente não o fazem. O orador que eu escuto é de fato “ele mesmo” e não

“algo sobre ele”. Ou sim?

Sim. –

Acreditemos por ora que na tela da televisão apareça o candidato Smith para se

apresentar aos eleitores. Entende-se por si só que este Smith mostrará que tipo de pleasing

personality95 ele é; e que ele é obrigado a nos sorrir tão de modo tão charmoso quanto

possível. Mas estas constatações simples não descrevem sua aparição de modo suficiente. Ele

vai impingir seu charme em primeiro plano justamente enquanto característica exclusiva, para

nos fazer esquecer que ele consiste em outras coisas além de seu sorriso. O que se mostrará na

tela, apesar de se apresentar o Senador Smith (chamemo-no S.) aparentemente por inteiro,

será exclusivamente o fato ou a pretensão de que ele seja uma pleasing personality 96

(chamemo-na p); ou seja, exclusivamente “S é p”; ou ainda o p ao invés do S. – O que

receberemos para ver será (aqui podemos inserir a fórmula que utilizamos na análise da

característica de juízo da notícia) “o sujeito esgotado em seu predicado”. – Sim, queremos

inclusive ter razão em enxergar apenas este p: pois não raro acontece que este qui pro quo97

entre sujeito e predicado se torna realidade; que S., no final metamorfoseado em seu próprio

predicado, não seja mais do que isto, não possa ser mais do que isto; então, julgado enquanto

ser-p, sai por aí efetivamente como sorridor profissional. Freqüentemente termina a história

mentirosa em uma verdadeira mentira mentida.

A apresentação do candidato realiza assim exatamente o mesmo que a notícia.

Não, ainda mais. Ela é exatamente uma notícia que se presta a ornamentar o fato de que

representa um juízo já pronunciado. E, medido a partir de seu resultado, este é um bônus

potente, pois com isso são escondidos quaisquer efeitos que, como agora mesmo se mostrou,

pertencem fundamentalmente ao juízo: ou seja, o preconceito e o roubo da liberdade. Para

persuadir o consumidor de que nada lhe será persuadido, o juízo metamorfoseado em uma

imagem renuncia à sua forma; metamorfoseia-se o juízo de aparentemente em S., do qual se

trata, naquele S. cuja vivacidade não denuncia a decomposição em S e p, e de nenhum modo

tão incômodo como o juízo normal. 95 Do inglês, “personalidade agradável”. Grifo nosso. (N.d.T.) 96 Grifo nosso. (N.d.T.) 97 Do latim, “uma coisa por outra”, “isto por aquilo”; empregado usualmente no sentido de “confusão”, “troca”. Grifo nosso. (N.d.T.)

Page 53: Gunther Anders

51

O fenômeno, apesar de cotidiano, é filosoficamente digníssimo de nota, pois ele

representa uma inversão na ordem normal. Enquanto costumeiramente, no caso fundamental,

a notícia persegue o fato que ela informa e se orienta por ele, aqui se orienta o fato pelo juízo.

A desejada frase “Senator Smith is a pleasing personality” tem a primazia; a ela segue então

S. e a imagem de S., que age como se fosse o homem em si, desse modo algo que ainda não

pertenceria ao campo do juízo. Em verdade, ao contrário, este homem, o S, não é nada além

de p, mas exatamente em uma ornamentação que não permite mais que a estrutura do juízo

transpareça. O que este juízo metamorfoseado em imagem pretende (no sentido de “simular”)

é não pretender nada (no sentido de “preparar”, “predizer”, “prejulgar”)98. Aí a expressão

“ornamentar” não se adéqua integralmente, pois a ornamentação, que ela conduz, é uma

negativa: o juízo reveste-se em aparente nudez; ele se enfeita com o adorno de ausentes

predicados. –

§ 19. Mercadorias são juízos camuflados. Fantasmas são mercadorias.

Fantasmas são juízos camuflados.

Achar-se-á nosso exemplo totalmente não-característico. Não que todo fantasma,

objetar-se-á, seja a exibição de um p; não que todo fantasma – pois a essa classe pertence

nosso exemplo – seja uma propaganda; assim como não seria também todo fantasma um

juízo e/ou um preconceito. Objetar-se-á que seja admitido que nem todos fariam uma

propaganda de modo tão penetrante como este – inventado com tal objetivo – candidato

Smith. Mas o que permanece é que todos os fantasmas, uma vez que são entregues em

domicílio, são mercadorias. E isto é decisivo. Pois enquanto tais são eles juízos.

Isso soa de novo esquisito. O que devem ter em comum o juízo, que pertence à

Lógica, e a mercadoria, que pertence à Economia?

A resposta declara: o predicado.

Cada mercadoria é, na medida em que é exposta e se oferece – e apenas como tal,

apenas enquanto coisa oferecida ela é mercadoria – justamente seu próprio julgamento; e, de

98 Vorgeben se deixa traduzir por “alegar”, “afirmar”, “pretender”, “fingir”, “simular”. As explicações em parênteses são do próprio autor. (N.d.T.)

Page 54: Gunther Anders

52

fato, seu auto-elogio. Ao entrar em cena ela já se sugere; na vitrine, apresenta-se já como

visível pré-julgamento de suas próprias qualidades. Claro: na frase “S é p” ela se decompõe

tão pouco quanto nosso candidato Smith; suas qualidades não serão expressas, não

necessariamente (mesmo quando o seja bastante freqüentemente nos textos de propaganda);

de qualquer forma, no entanto, ela é arranjada. E arranjamento significa que seu p (ou seja,

aquilo que “acontece” com ela99, suas verdadeiras ou supostas qualidades), dela desprendido e

enquanto propriedade-solta, é evidenciado e colocado em primeiro plano; significa que apenas

este, e não a mercadoria como todo, torna-se visível. O que oferecido ao observador é

primariamente a perspectiva sob a qual ele deve “considerar” a mercadoria 100 ; está

perspectiva é fixa e, mesmo antes que a mercadoria em si seja entregue, já está pré-entregue.

O caráter-de-juízo da mercadoria é, deste modo, indiscutível. Se constatamos, nos

últimos parágrafos, que o efeito negativo da notícia consistia em: podar a liberdade do

destinatário, encarregar-se dele, fixar o ponto de vista a partir do qual ele deve tomar o

ausente em consideração e entregar junto este ponto de vista já como mercadoria pronta;

então com isso também está caracterizado o efeito da mercadoria mencionada. Assim, ao

invés do destinatário, entra em cena o cliente – ainda separado da mercadoria pela vidraça,

ainda “ausente” – que deve ser retirado de sua ausência através do p exposto para se tornar

comprador. Mas esta diferença não causa nenhuma ruptura no paralelismo.

Já tínhamos constatado no início de nossa investigação que são mercadorias os

acontecimentos metamorfoseados em fantasmas e entregues em domicílio. Aquilo que é

válido para qualquer mercadoria – que ela é um juízo, mesmo quando ornamentado – vale

também para eles.101 Também eles, deste modo, são declarações sobre os acontecimentos;

embora se ofereçam – “envoltos em nudez e enfeitados com o adorno de ausentes predicados”

– enquanto os acontecimentos em si. Uma vez que nenhum juízo é tão insuspeito, tão discreto,

tão sedutor quanto aquele que aparentemente não é outra coisa senão a coisa em si, sua força

enganadora está na renúncia ao construído “esquema S é p”. O que consumimos, sentados na

frente de um rádio ou de uma tela, é, ao invés da cena, sua preparação, ao invés do suposto 99 Anders repete aqui o trocadilho com los sein, v. nota 87. (N.d.T.) 100 Existe aqui um paralelo entre Betrachter (“observador”) e “in Betracht ziehen” (“considerar”), que justifica o uso das aspas; literalmente teríamos algo como “o que é oferecido ao observador é primariamente a perspectiva sob a qual ele deve ‘observar’ a mercadoria” e, ao mesmo tempo, “o que é oferecido ao ‘considerador’ é primariamente a perspectiva sob a qual ele deve ‘considerar’ a mercadoria”. (N.d.T.) 101 É desnecessário comentar sobre cada transmissão que abertamente surge enquanto propaganda de sabão em pó ou gasolina. (N.d.A.)

Page 55: Gunther Anders

53

Sujeito S, seu predicado p; em suma: um preconceito que aparece sob a forma imagética e

que, como qualquer preconceito, esconde seu caráter de juízo; no entanto, uma vez que ele

secretamente ainda o é, impede o consumidor de, por sua vez, tomar para si o esforço de

julgar. Ele realmente não toma esta idéia em consideração, não mais do que diante de outras

mercadorias preparadas; algo semelhante à sua postura diante das frutas em conserva já

cozidas, que ele compra para não precisar cozinhá-las ele mesmo. – O que vale para a notícia:

que ela nos torna não-livres por nos mostrar o ausente apenas em sua preestabelecida,

preparada, preanunciada versão-mercadoria-pronta, ou absolutamente nada; vale tanto mais

para a transmissão: somos dispensados de formar um juízo próprio; e de forma tão profunda

que não podemos nos esquivar de aceitar o juízo entregue como a realidade em si.

Page 56: Gunther Anders

54

IV. AS MATRIZES

§ 20. O todo é menos verdadeiro que a soma das verdades de seus fragmentos –

Disfarce realista dos padrões objetiva a padronização da experiência

De modo final e certo, aquilo que é preparado para ser vendido não é apenas uma

emissão individual. Esta, sob certas circunstâncias, é inclusive não-preparada e objetivamente

verdadeira; várias delas o são de fato; e, uma vez que nada agrada mais à mentira do que o

álibi da verdade – ou pelo menos da verdade em parte –, elas o são de bom grado. Nenhuma

mentira que se preze contém inverdade. O que finalmente é preparado é muito mais a

imagem-de-mundo como um todo, a qual é composta a partir das emissões individuais; e

aquele completo tipo de homem, que é nutrido exclusivamente de fantasmas e simulações.

Mesmo se cada singular fosse enviado como tal de modo fiel à realidade, poder-se-ia ainda –

apenas a partir do fato de que muitas verdades não são mostradas – transformar o todo em um

mundo preparado e o consumidor do todo em um homem preparado. Este todo é, portanto,

menos verdadeiro do que a soma das verdades de suas partes; ou, em adaptação da famosa

frase hegeliana: “o todo é a mentira; apenas o todo”102. A tarefa daqueles que nos entregam a

imagem-de-mundo consiste deste modo em mentir para nós um todo a partir de várias

verdades.

O que é pretendido como todo é certamente não uma teórica, mas uma

pragmática imagem-de-mundo; e esta expressão não deve significar apenas que aquilo que se

oferece no lugar da verdade como mundo suposto termine em uma mera “visão-de-mundo

subjetiva”103; mas sim que isso apresenta um aparelho prático, um aparelho de exercício, que

tem em vista formar nossa atitude, nossa tolerância, nosso comportamento, nossa omissão,

102 Anders se refere aqui à frase ao trecho do prefácio de “Fenomenologia do Espírito” onde o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) escreve: Das Wahre ist das Ganze. Das Ganze aber ist nur das durch seine Entwicklung sich vollendende Wesen (em tradução de Paulo Meneses: “O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através do seu desenvolvimento”) (HEGEL, 1970b:24; HEGEL, 2007:36). (N.d.T.) 103 As imagens características que o final do século 19 e o começo do século 20 produziram e chamaram de “visão-de-mundo” foram apenas inofensivas e tímidas formas anteriores dos atuais “modelos-de-estímulo”. Nenhuma “visão-de-mundo” que não fosse mais do que isso pôde sobreviver. Sobreviveram exclusivamente aquelas que claramente puderam se estabelecer como modelos-de-estímulo. Os atuais modelos-de-estímulo, no entanto, renunciam já à aparência de visão-de-mundo, mesmo se eles, certamente enquanto luxo supérfluo, toleram que a partir deles acadêmicas visões-de-mundo sejam destiladas. (N.d.A.)

Page 57: Gunther Anders

55

nossas preferências, com isso até todo o conjunto de nossas práticas; ademais justamente um

aparelho que, ao mesmo tempo, para dissimular essa sua finalidade de aparelho, aparece

vestido como “mundo”. Ele é um instrumento em forma de um modelo pseudo-microcósmico,

que por sua vez se propor a ser o mundo em si.

Essa fórmula soa demasiado obscura. Mas uma analogia vai torná-la mais clara.

Nos planetários temos diante de nós justamente objetos do mesmo tipo: pois estes são por um

lado instrumentos – uma vez que querem treinar nosso conhecimento (do mundo das estrelas)

e nossa prática (do encontrar estrelas) – ; mas, por outro lado, eles entram em cena enquanto

modelos microcósmicos e tentam enquanto micromodelos, decerto ingenuamente, provocar a

ilusão de ser o próprio céu estrelado. – Completamente pertinente seria a comparação com um

pseudo-planetário, algo como um planetário astrológico, no qual quiséssemos treinar a partir

de suas imagens como enxergar o verdadeiro céu estrelado, a despeito de sua errônea

pretensão em ser um modelo do firmamento. Um objeto deste tipo particular é o “mundo” que

nos é construído e mediado através das transmissões: um modelo-de-estímulos, portanto, a

partir do qual nos exercitamos, com ajuda do qual ensaiamos “behavior patterns”104, padrões

de comportamentos, e com o qual devemos alinhar “reflexes” 105 ; e de fato alinhar tão

profundamente que por meio destes trilhos estamos incapacitados de nos comportar diante do

mundo real diferentemente do que faríamos diante do modelo-de-estímulo; e incapacitados de

permitir que o mundo nos tome e nos utilize de modo diverso do que faria aquele. O que é

pretendido aqui é a ação de congruência do mundo real e do modelo. Esta ação de

congruência não deve, porém, acontecer na forma de uma teórica declaração de identidade,

uma vez que esta já concederia uma diferença prévia, mas sim como “equação

pragmática”106 : portanto como comportamento efetivo no mundo e como tratamento do

mundo, no qual a suspeita de que o mundo possa não congruir com, possa não ser idêntico ao

modelo de estímulo, nem sequer apareça; ou, onde ela surgir, que não possa, em última

análise, produzir efeitos. É conhecido um exemplo de tal “equação pragmática” na Alemanha

nacional-socialista: para o leitor do “Stürmer”107, que vivenciava seu “conditioning”108, sua

104 Do inglês, “padrões de comportamento”. Grifo nosso. (N.d.A.) 105 Do inglês, “reflexos”. Grifo nosso. (N.d.A.) 106 Gleichung: O termo “equação”, emprestado da matemática também no original, deve ser entendido em seu sentido próprio, a saber: “ação de tornar dois termos iguais”. (N.d.A.) 107 “Der Stürmer” (literalmente, “aquele que toma de assalto”), jornal anti-judaico fundado em 1923 por Julius Streicher. Suas caricaturas tinham como mote principal sugerir que os judeus eram a causa de todas as infelicidades alemãs. Grifo nosso. (N.d.T.)

Page 58: Gunther Anders

56

cunhagem, por meio do modelo de judeu ou de “mundo judeizado” aí publicado, a diferença

entre o judeu real e seu modelo-de-estímulo não era algo apenas insignificante, ela

simplesmente não existia; a dualidade entre real e imagem compreendia este leitor tão pouco

que ele só podia tratar – como de fato o fez – os judeus reais como se eles não fossem outra

coisa que não suas imagens. O fenômeno pode ser caracterizado como “magia invertida”:

pois enquanto o feiticeiro faz a imagem na qual deve ser encontrado aquilo que é copiado,

deseja-se aqui, na medida em que a diferenciação ainda vale, encontrar a imagem naquilo que

é real.109

Em algum sentido, essas imagens presentes no Stürmer ainda eram decerto

atrasadas, não estavam de modo algum à altura do desenvolvimento psicotécnico que o

nacional-socialismo já tinha alcançado; e não é de modo algum impensável que o desdém que

Streicher110 contraiu daqueles que realmente levavam a cabo seus objetivos de assassínio, no

final das contas, justificasse este atraso de seu método. Na fabricação de modelos de estímulo

e reações padronizadas, nada é tão importante quanto a omissão do fato de que se trata de

artifícios fabricados. Essa omissão, porém, o Stürmer não conduziu; ou seja, por desdém

(infelizmente justificado), ele em nenhum momento considerou digno de esforço diante das

aspirações seus consumidores dissimular que ele mentia; uma comodidade com a qual ele

causou escândalo mesmo diante dos assassinatos em massa. – Expresso em termos positivos:

é de altíssimo interesse da indústria-de-padrões conceder a seus padrões uma alta dose de

realismo. Se o padronizado modelo de estímulo deve ser efetivo enquanto todo, então ele

deve ser apresentado como “realidade”. De fato, o nacional-socialismo também seguiu sim

este princípio; e as fotos montadas por ele para seus objetivos pertencem à constituição

clássica de modelos-de-estímulos que mentem com realismo.

108 Grifo nosso. (N.d.T.) 109 Uma vez que pensar nos milhões de mortos já é indizível, a afirmação adicional de que esse holocausto se deu em função de imagens ou mediado por imagens quase não pode aumentar nosso horror. – Aquela idéia fundamental que, para nós, educados na crença em um aumento da humanização, fora uma vez evidente: a idéia da humanidade instituída naquele instante da História em que sacrifícios humanos se realizaram por imagens; Isaac substituído pelo carneiro – essa idéia não podia ser mais terrivelmente desiludida do que por meio dos homens vitimados no lugar das imagens. (N.d.A.) 110 Julius Streicher (1885-1946), membro do partido nacional-socialista alemão, fundador e editor do jornal anti-judaico “Der Stürmer” (1923-1945). Julgado pelos Tribunais de Guerra de Nuremberg em 1946, Streicher foi condenado à forca por crime contra a humanidade. (N.d.T.)

Page 59: Gunther Anders

57

Hoje, os obsoletos modelos do tipo Streicher estão quase completamente fora de

uso.111 É amplamente reconhecido enquando princípio de produção que os padrões alcançam

seu máximo de eficiência apenas quando se fantasiam com um máximo de realismo; e não

existe quase nenhum periódico, quase nenhum filme, sabidamente nenhum telejornal em que

esse princípio não seja seguido. Não vivemos na Era do Surrealismo, mas na Era do Pseudo-

Realismo; na Era da Ornamentação 112 , que se apresenta ornamentada como Era da

Revelação. Onde se mente – e onde isso não seria feito? – não se mente mais como se

estivesse impresso 113 , mas como se estivesse fotografado; não, não como se estivesse

fotografado, mas efetivamente fotografado. O meio fotografia é de tal forma fidedigno, de tal

forma “objetivo”, que ele absorve mais inverdade, que ele pode se permitir mentir mais do

que qualquer outro meio. Assim, quem quer tornar a realidade padronizada, disfarça, com o

meio fotografia, realisticamente seus padrões. Para poder fazê-lo, para poder encobrir a

realidade com uma pretensa imagem do real, é novamente necessário uma imagem especial

do real, uma sobrereal, ou “surreal”, se preferir, de qualquer forma uma que seja ofuscante,

em suma: a imagem-sensação, que apesar de ser verdadeira em si sob certos aspectos, pelo

mesmo motivo é de ponta a ponta não-verdadeira, uma vez que reduz o diafragma e junto com

outras imagens-sensação contribui com aquela imagem geral do mundo à qual nada na

realidade corresponde. A partir daí, onde os padrões devem ser produzidos, o sensacional se

torna o cerne da realidade. Isso pode soar estranho, uma vez que sob o título “padrão” se

imagina habitualmente algo monótono. Mas isso não é simples assim. O sensacional pertence

essencialmente ao padrão; e de fato não apenas porque ele serve como sua cobertura e

encobrimento; mas também porque ele mesmo tende para se tornar um padrão; pois, a saber,

não existe nada tão estereotípico do que o pretenso diariamente novo, e nada que se iguale de

modo tão indistinto ao misteriosíssimo homicídio de ontem como o misteriosíssimo

homicídio de hoje. Em verdade, queira um historiador daqui a centenas de anos compor um

mosaico de nosso tempo atual a partir das páginas sanguinolentas que as publicações

111 O que, aliás, também tem a ver com o retrocesso internacional da caricatura e das revistas satíricas: escárnio do poder – e nisso consiste sempre uma verdadeira caricatura – simplesmente se tornou uma iniciativa delicada. – Naturalmente os desenhos do Stürmer não eram verdadeiras caricaturas ou sátiras, uma vez que elas fundamentalmente escolhiam como vítimas apenas as vítimas. (N.d.A.) 112 Verbrämem assume aqui o seu sentido próprio como “ornamentar”, “guarnecer”, “enfeitar”, “bordar”, “florear”, mas é necessariamente acompanhado pelo sentido decorrente de “dizer veladamente”, “dissimular”, “paliar”, “coonestar”; de modo que a Era da Ornamentação é também a Era da Dissimulação. (N.d.T.) 113 Lügen wie gedruckt: literalmente, “mentir como se estivesse impresso”; significa “mentir descaradamente”. (N.d.T.)

Page 60: Gunther Anders

58

oferecem como “o real de hoje”, chegaria ele a um resultado não apenas em geral absurdo,

não apenas arrepiante, mas também bastante tedioso. –

Mas a despeito de, como foi dito, os fabricantes de padrões colocarem em

marcha seu sensacional pseudo-realismo apenas com o objetivo de esconder o fato de que eles

querem produzir um mundo-de-padrões, ou seja, para evitar que o cliente suspeite que ele está

sendo contentado com padrões, também este espera, até mesmo demanda um tipo

particularíssimo de “surrealidade”, de realidade gritante, ou seja, padrões. O que é pouco

impressionante, uma vez que as fôrmas entregues diariamente já cunharam a busca do cliente.

Também ele demanda assim sensações e padrões, e de fato ambos ao mesmo tempo, ambos

sim ao mesmo tempo no mesmo objeto. O que o comprador de revistas demanda é o bom e

velho nunca-antes-acontecido, o inaudito do mesmo tipo daquele que ele ouviu ontem e antes

de ontem, e o mais limitado mundo-de-todo-mundo114 composto por homicidas, estrelas,

“pires voadores”115 e outras louças planetárias, o qual se intitula “meio-mundo”, o “extenso”,

o “colorido”, o “grande”, embora seu ingrediente de mundo não seja sequer infinitesimal.

Aquele que sempre tenta – e esse tentar por sorte não morre mesmo nunca – romper com o

numerus clausus116 desses temas e desse modo de apresentação tem que para isso se preparar

não apenas contra a amargada resistência dos fabricantes de padrões, cujas regras-do-jogo ele

infringiu; mas também contra a resistência dos próprios clientes, cujo horizonte de

expectativas é da mesma forma coagulado e que recebem como impertinência ou inverdade

tudo aquilo que cai fora da moldura da tipicamente familiar estranheza, ou sequer o recebem:

pois na maior parte das vezes permanece o não-típico completamente “inexistente”. E a

pergunta sobre qual método a verdade deve escolher para concorrer com a mentira, a saber,

para também ser acreditada; se ela deve, uma vez que o mundo da mentira se compõe de

verdades, vestir-se de mentira (se ela o pudesse) – até hoje não apenas não encontrou resposta,

como sequer chegou a ser satisfatoriamente formulada. –

Mas mesmo a fórmula: não se mente mais como se estivesse impresso, mas

como fotografado; não, não mais como fotografado, mas efetivamente fotografado, já está

hoje ultrapassada. A máxima dimensão em realismo é naturalmente reservada ao fantasma

114 Allerwelts-Welt: “mundo-de-todo-mundo” em sentido depreciativo, como “mundo indistinto”, como “serve para qualquer um e não serve para ninguém”. (N.d.T.) 115 Untertassen: os pires aqui correspondem aos “discos voadores”. (N.d.T.) 116 Do latim, “número fechado”, “número determinado”. Grifo nosso. (N.d.T.)

Page 61: Gunther Anders

59

televisivo, uma vez que este pode persuadir seus consumidores de que ele não é uma

representação da realidade, mas a realidade em si. E como poderia, pensa o consumidor

leviano, como poderia a realidade em si não ser realista? Como ela poderia testemunhar

contra si mesma? – A mentira nunca possuiu um aparelho melhor: não mais com ajuda de

falsas imagens ela mente contra a realidade, mas com a ajuda desta mesma realidade.117

A “equação pragmática”, ou seja, a identificação entre modelo-de-estímulo e

realidade, que antes estava sabidamente sujeita a atritos e dúvidas – pois um mínimo de

ceticismo pode a imagem enquanto imagem produzir no espectador –, funciona agora de

modo imediato numa condição ideal desprovida de empecilho. Ao olhar o modelo, o

consumidor acredita enxergar o mundo em si; ao reagir sobre modelo, acredita reagir sobre o

mundo em si. Irritado ou entusiasmado por fantasmas-modelos, considera-se ele irritado ou

entusiasmado pelo real; de tal modo que se o mundo aparece para ele realmente – e os padrões

são sim fabricados enquanto aparelhos de treino para esse caso – o consumidor não enxerga

no mundo outra coisa que não aquilo que os padrões lhe ensinaram a enxergar; não sente

diante dele outra coisa que não os sentimentos que os padrões lhe indicaram. Os padrões são,

deste modo, formas condicionantes; mas não apenas aquelas do conceber; não apenas aquelas

do sentir; não apenas aquelas do compreender; mas também aquelas do comportar-se e agir –

ou seja, matrizes de uma universalidade de efeitos e de horizontes de aplicação como nem

mesmo os mais especulativos filósofos jamais previram; ainda mais para a era do empirismo

na qual supostamente vivemos.

A única mentalidade que poderia ser comparada a esta é a dos “primitivos”, que

(na medida em que as suposições de Frazer118, Lévy-Bruhl119, Cassirer120 e etc. estiverem

117 O modelo desta mentira corresponde estruturalmente ao modelo de todas as atuais contra-revoluções, que fundamentalmente lutam com ajuda daquelas contra as quais elas se dirigem. (N.d.A.) 118 Sir James George Frazer (1854-1941), antropólogo britânico, elenca no livro “O Ramo de Ouro” uma série de descrições de religiões “primitivas” e práticas mágicas. Frazer supõe que “a razão da crença dos povos ‘primitivos’ na magia se devia à sua falta de capacidade para distinguir associações de idéias feitas mentalmente e conexões causais entre coisas no mundo real” (BEATTIE, 1971:80). (N.d.T.) 119 Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939), antropólogo francês, afirma que o pensamento “primitivo” é diferente do pensamento “civilizado” porque se encontra em uma situação pré-lógica, simbólica e mística. No avant-propos do livro “L’Âme Primitive”, Lévy-Bruhl afirma: L’examen des faits m’a amené à reconnaître qu’ils n’en ont pas, à proprement parler, de notions. C’est en presénce de « prénotions » que je me suis trouvé (em tradução nossa: “O exame dos fatos me levou a reconhecer que eles [os ‘primitivos’] não possuem, dito propriamente, noções. É na presença de ‘pré-noções’ que eu me encontrei”) (LÉVY-BRUHL, 1927: “avant-propos”). (N.d.T.) 120 Ernst Cassirer (1874-1945), filósofo alemão, interpretou o mito e a fala como fenômenos determinantes na formação do ser humano enquanto animal symbolicum (cf. WEBER, 2003). Em “Filosofia das Formas Simbólicas”, Cassirer afirma: Blickt man dagegen auf den Mythos selbst hin, auf das was er ist und als was er

Page 62: Gunther Anders

60

corretas) viviam em um código de moral e de concepção tão definitivamente estrito e fixado

que eles não podiam “considerar”, nem teórica nem praticamente, aquilo que não estivesse

previsto nele.

Evidentemente a expressão “formas condicionais apriorísticas” não deve ser

entendida de modo literal, ou seja, no sentido kantiano121. São imprensáveis fenômenos que

sejam menos “inatos” do que aqueles que são produzidos e gravados nos homens. Mas elas

são apriorísticas, a despeito disso, na medida em que enquanto moldes, ou seja, enquanto

condições, antecedem o experimentar, o sentir e o agir e esta “condition”, portanto

“condicionamento”. E uma vez que essa condição não pré-julga apenas como é, mas sim o

que é e o que não é experimentado, sentido, etc., seu poder é de extraordinária força e seu

horizonte de ação é de extraordinária amplitude. Quem é marcado por ela não está pronto para

nada que não seja aquilo para o qual a emissão em domicílio lhe preparou. Apenas isso ele vê,

apenas nisso ele pensa, apenas isso ele sente, apenas isso ele ama, apenas isso ele faz. Neste

efeito matricial e preparativo consiste a finalidade da emissão. Porém, uma vez que, como

vimos, as formas matriciais não devem denunciar que são matrizes, precisam entrar em cena

as condições em forma de coisas, as matrizes enquanto pedaços do mundo.

Esta última constatação é para a totalidade de nossa investigação de fundamental

importância. Isso por dois motivos:

1. Aquela suposta “ambigüidade ontológica” da emissão, a fantasmagoria que

discutimos no começo, é com isso despida de sua condição enigmática: uma vez que o

fabricante de matrizes quer ocultar que os padrões são padrões, que as formas condicionais

são formas condicionais, ele as oferece enquanto “mundo” e enquanto “coisa”. Isso significa,

porém: enquanto fantasma. Pois fantasmas não são outra coisa senão formas que surgem

enquanto coisas. O caráter fantasmagórico da emissão revela-se assim um efeito desejado; e

selbst sich weiß, so erkennt man, daß gerade diese Trennung des Ideellen vom Reelen, diese Scheidung zwischen einer Welt des unmittelbaren Seins und einer Welt der mittelbarer Bedeutung, dieser Gegensatz von „Bild“ und „Sache“ ihm Fremd ist (em tradução nossa: “Observando, por outro lado, o mito em si, aquilo que ele é e aquilo no qual ele se reconhece, percebe-se que justamente essa separação entre ideal e real, esse corte entre um mundo do ser imediato e um mundo do significado mediato, essa oposição entre ‘imagem’ e ‘coisa’ lhe é estranha”) (CASSIRER, 1954:51). 121 A priori (do latim, “de princípio”), aqui em referência ao conceito trabalhado pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), diz respeito a um juízo anterior à experiência e, assim, independente desta, necessário e válido em si mesmo. (cf. KANT, 1982)

Page 63: Gunther Anders

61

sua suposta “ambigüidade ontológica” apenas a forma fenomênica de uma ambigüidade

moral: um engano.

2. Aquele conceito de “idealismo”, que introduzimos no começo de nossa

investigação, experimenta por meio de nossas considerações uma necessária complementação.

Como se pode lembrar, caracterizamos lá como “idealista” toda atitude possessiva diante do

mundo, toda atitude por meio da qual o mundo aparece como “apenas meu mundo”, porque

eu efetivamente o adéquo a mim. Mas é fundamentalmente diferente se um conquistador (ou,

como em Hegel: um animal que se alimenta) faz dele o mundo; ou se o mundo é feito meu; e

como ele é feito meu. “Meu” pode ser várias coisas: mesmo o número queimado no braço do

prisioneiro de um campo de concentração. Se, como justamente foi descrito, o mundo é

entregue ao homem-de-massa na forma de uma totalidade-de-padrões, entra no lugar do

mundo uma totalidade-de-representação, mas exatamente uma que é “sua” apenas porque lhe

é estampada. “Que minha representação seja vosso mundo”, fala o desejo daquele que produz

matrizes. Assim falava Hitler. Seria impensável um partidário de Hitler que tivesse dito: “o

mundo é a minha representação”122. E de fato não porque ele enquanto homem-de-massa

tomava sua representação por seu mundo, mas porque o que lhe valia enquanto “mundo” era

uma representação alheia que lhe era entregue em domicílio.123

122 Primeira frase do livro “O Mundo como Vontade e Representação”, de Arthur Schopenhauer. (N.d.T.) 123 É de modo geral aceito que seja assim. Evidentemente não como fato filosoficamente relevante como ele aparece em Marx, pois para ele aquilo que ele chama “ideológico” tem origem em um cruzamento específico do “idealismo” com o “esquema do senhor e do escravo” hegeliano: “ideologia” significa para ele a representação de mundo do senhor, que para o escravo sem consciência de classe vale eo ipso como “o mundo”; portanto, como representação que não era realmente propriedade do escravo, mas sim propriedade de seu proprietário. Com sua tese de que a filosofia de uma época é sempre a filosofia da classe dominante, Marx não queria dizer outra coisa. – Decerto este esquema marxista não pode ser aplicado sem mais sobre os atuais comportamentos da sociedade-em massa. E não pode sê-lo porque cada mercadoria, seja ela cigarros, filmes ou visões-de-mundo, já é produzida de antemão de tal forma que corresponda ao maior patamar; ou seja, de tal forma que de antemão atente para os verdadeiros ou supostos desejos dos consumidores. E (2º) porque os produtores são co-consumidores das mercadorias (cigarros, filmes, visões-de-mundo) produzidas por eles: o que tem a conseqüência dialética de que a “classe dominante” é co-formatada pelos produtos-em-massa que ela produz, não para si, mas para a massa. No lugar da fórmula hegeliana “o senhor se torna o escravo do escravo”, ela teria que se colocar como: “o senhor se torna o escravo entre os escravos”. (N.d.A.)

Page 64: Gunther Anders

62

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Sobre a filosofia da notícia e a prática do jornalismo

Logo no primeiro capítulo de seu livro “O Mundo como Fantasma e Matriz”,

Günther Anders afirma de modo categórico que seu texto sobre a ontologia dos aparelhos de

comunicação-de-massa se dirige, em primeiro lugar, aos consumidores – telespectadores e

ouvintes – e depois, “na segunda fileira”, a filósofos e técnicos em rádio e televisão. Aos

jornalistas, de modo particular, Anders não se refere em momento algum; nem sequer na

seção que recebe justamente o título de “A Notícia”. A despeito desse aparente descaso, é

exatamente ao ouvido viciado dos jornalistas que a argumentação dele pode soar mais radical

– e mais necessária.

De fato, Anders não se propõe aqui a responder aos dilemas clássicos da prática

jornalística – a rigor, ele nem sequer os menciona. Seu valor está, ao contrário, e em levantar

a questão que antecede esta prática, que pode ser formulada da seguinte maneira: “quais são

as conseqüências sociais da presença da possibilidade tecnológica de transmissão de som e

imagem de modo industrial?” Antes de situar o jornalismo diante do texto, é válido

acompanhar como Anders resolve essa argumentação.

A questão sozinha já indica uma postura não-neutralista em relação à técnica: ao

analisar as conseqüências da presença de algo, acredita-se que este algo é decisivo não apenas

pelo que se possa fazer dele, mas sim em função dele próprio. Nos anos 50, quando o texto foi

escrito, Anders já apontava o dedo para a superficialidade das análises – também hoje

consagradas – que entendem um aparelho “apenas como um meio” que pode “ser ligado e

desligado”, que “pode ser utilizado para finalidades boas ou más”. Nesse sentido, o autor é

rigoroso: a técnica é o fato que nos marca, não suas eventuais aplicações124.

124 Em 1964, oito anos depois da publicação de “O Antiqüismo do Homem”, Marshall McLuhann defenderia tese análoga no livro “Undestanding Media”, onde estampa a frase que o consagrou: The medium is the message (MCLUHAN, 1964:7).

Page 65: Gunther Anders

63

Quando Anders descreve os efeitos da presença da televisão no ambiente familiar

(§ 3), essa questão fica clara. Ele diz que a TV, ao trazer para dentro de casa o reino do

mundo exterior, esfacela a privacidade doméstica; ela substitui a mesa centrípeta, ao redor da

qual os membros da família se encontram, por um ponto-de-fuga comum que desestimula o

contato entre eles – e isso tudo pode ser discutido de modo independente daquilo que eles

“decidam” fazer com a TV, ou seja, sem mencionar o caráter do programa que cada um deles

“escolha” assistir.

Ao lado das alterações impostas no âmbito familiar, Anders argumenta que o

rádio e a televisão são determinantes na formação do homem-de-massa, na desformação de

sua individualidade e no nivelamento de sua racionalidade. É evidente que estes aparelhos não

“inventaram” o conceito de mercadoria industrial padronizada, cujo consumo leva à

massificação do homem; essa é uma herança da primeira revolução industrial. A novidade

radical é que os aparelhos modernos permitiram tecnicamente que a mercadoria-de-massa

fosse “entregue em domicílio”.

Temos então um aparelho que permite a transmissão de sons e imagens que são

entregues de modo individual, porém idêntico, a cada um dos consumidores. Conseqüências

lingüísticas e políticas: diante da máquina que fala por mim, minha capacidade de articulação

atrofia e, logo, a capacidade de decisão autônoma – uma argumentação que Anders leva para

o campo etimológico ao fazer uso dos conceitos de “ouvinte” e “vassalo”, que em alemão

coincidem em uma só palavra.

Do ponto de vista rigorosamente filosófico, a conseqüência é que este consumidor

assume uma postura idealista, ou seja, entende que o mundo existe para ele. Em tempo: existe

aqui uma crítica ao idealismo que justifica uma das (muitas) ironias do texto, que já no título

“O Mundo como Fantasma e Matriz” se remete ao livro do idealista Arthur Schopenhauer “O

Mundo como Vontade e Representação”.

O passo seguinte, justamente o que traz a discussão para o campo do jornalismo, é

discutir a possibilidade de transmitir “fatos reais” através destes aparelhos. Nesse ponto,

Anders observa a transmissão de notícias com uma definição original e rigorosa: a

particularidade dessas transmissões se deve à sua ambigüidade ontológica, ou seja, os

acontecimentos enviados estão presentes, uma vez que tomamos conhecimento deles e

podemos nos orientar por eles; mas ao mesmo tempo ausentes, porque somos incapazes de

Page 66: Gunther Anders

64

interferir neles. A relação homem-mundo, mediada pelo aparelho, é unilateral; aquilo que nos

alcança não é outra coisa senão um fantasma, simultaneamente verdadeiro e aparente.

Às conseqüências discutidas aqui se somam, então, as características próprias da

“notícia”. Noticiar, afirma Anders, é dar uma informação sobre algo ausente, o que coloca o

destinatário em condições de se comportar como se este estivesse presente. Observe-se,

porém, que a notícia não leva ao destinatário o objeto, mas algo com origem no objeto – e

essa limitação é decisiva: é justamente aqui é que o mundo deixa de ser mundo e se torna algo

a respeito do mundo. Na ausência do objeto todo, prossegue Anders, recebe-se apenas seu

predicado, que não é outra coisa senão uma mercadoria preparada de antemão125.

Retomando as características técnicas do rádio e da televisão, Anders vai concluir

que: quando a notícia é transmitida nas condições de ambigüidade ontológica particulares

destes aparelhos, em oposição a outras formas de intermediação com a realidade, o receptor é

deslocado para um estado no qual a fronteira entre vivenciar e ser informado é diluída. Logo,

somos dispensados de formar um juízo próprio porque entendemos o juízo entregue como a

realidade em si126. Na lógica unilateral da transmissão de notícias, se o mundo vai até o

homem, o homem está dispensado de ir até o mundo.

Esta análise toma como referência o destinatário, quais as conseqüências da

ambigüidade ontológica da televisão e do rádio na transmissão da notícia para aquele que a

recebe. Mas, do outro lado do processo, o próprio objeto assume outras formas diante desta

lógica: se um acontecimento é socialmente mais relevante nas suas formas reproduzidas,

descolado de sua realização única em um espaço e tempo determinado, está novamente

suprimida a relação entre ser e parecer127. O original passa, portanto, a orientar-se por suas

reproduções: ele se torna uma matriz.

125 Umberto Eco e Lucien Sfez também desenvolveriam a tese de que os meios de comunicação operam em um círculo tautístico: escolhemos as escolhas que já foram feitas por nós de antemão (Cf. MARCONDES FILHO, 1002:175). 126 Umberto Eco e Arthur Kroker retomariam mais tarde a tese de que a televisão é vista como própria realidade (Cf. MARCONDES FILHO, 2002:175.). 127 Jean Baudrillard vai se referir ao mesmo fenômeno quando postula a tese de que o simulacro ocupa o lugar do original e é sempre mais importante que o original (Cf. MARCONDES FILHO, 2002:175).

Page 67: Gunther Anders

65

Essa é justamente a última etapa da análise: foi discutido como a lógica dos

fantasmas opera em cada uma das transmissões individuais; consideradas como um todo,

conclui Anders, as transmissões de notícias operam segundo matrizes. Estas não seriam outra

coisa senão grandes modelos que orientam o conjunto de nossas práticas. Um modelo-de-

estímulos, define um autor, que condiciona nosso comportamento como se fosse o mundo real

de tal forma que continuamos agindo sob sua lógica quando de fato nos encontramos com o

mundo real.

E na composição desse todo falso, adverte o autor contra eventuais ingenuidades,

pouco importa que cada uma das partes seja verdadeira. “Mesmo se cada singular fosse

enviado como tal de modo fiel à realidade, poder-se-ia ainda transformar o todo em um

mundo preparado e o consumidor em um homem preparado”, diz Anders no § 20. “A tarefa

daqueles que nos entregam a imagem-de-mundo consiste deste modo em mentir para nós um

todo a partir de várias verdades”.

Não é preciso muita criatividade para imaginar que o filósofo se refere aqui ao

jornalista, “aquele que nos entrega a imagem-de-mundo”. Segundo a lógica que Anders

denuncia, portanto, o “jornalista” é o profissional técnico que opera os mecanismos de

reprodução dos padrões, que – consciente disso ou não – transmite os fantasmas e ratifica as

matrizes. Esse modelo pressupõe uma inversão sensível: o jornalista está submetido à

mercadoria “notícia” e não o contrário; o que encerra radicalmente a ilusão de protagonismo

que o jornalista tem a respeito de si mesmo. Por isso é possível afirmar que o descaso de

Anders com o “jornalista” é aparente: o filósofo assume que este não é outra coisa senão um

trabalhador técnico do rádio e da televisão e coloca-o, de modo pertinente, na segunda fileira.

Em suma, o filósofo escreve um texto sobre a natureza da notícia e não o dedica

aos jornalistas porque fazê-lo seria supor – como fazem todos os manuais modernos – que na

lógica atual toque a cada um desses profissionais, individualmente, a responsabilidade de que

a notícia seja “boa” ou “má” e, por conseqüência, de que o jornalismo em si seja “bom” ou

“mau”. A preocupação do texto aqui traduzido está, ao contrário, em mostrar ao consumidor

que mesmo se todas as notícias-mercadorias forem “boas” (ou verdadeiras), o mundo que elas

descrevem, o mundo que elas compõem, não é o mundo real. O que justifica a presente

monografia é justamente a necessidade de dizê-lo ao jornalista inadvertido e obrigá-lo a

questionar a si mesmo.

Page 68: Gunther Anders

66

Como última consideração, dedicada ao leitor eventualmente ansioso por uma

resposta que alivie o pessimismo da argumentação de Anders, repito o filósofo:

E a pergunta sobre qual método a verdade deve escolher para concorrer

com a mentira, a saber, para também ser acreditada; se ela deve, uma vez

que o mundo da mentira se compõe de verdades, vestir-se de mentira (se ela

o pudesse) – até hoje não apenas não encontrou resposta, como sequer

chegou a ser satisfatoriamente formulada.

Page 69: Gunther Anders

67

BIBLIOGRAFIA

ANDERS, Günther. Die Antiquiertheit des Menschen. Band 1: Über die Seele im Zeitalter der

zweiten industriellen Revolution. München: C.H. Beck, 1956.

_____. Die Antiquiertheit des Menschen. Band 2: Über die Zerstörung des Lebens im

Zeitalter der dritten industriellen Revolution. München: C.H. Beck, 1980.

_____. L’obsolescence de l’homme. Sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution

industrielle. Trad. Christophe David. Paris: Ivrea, 2002.

_____. Kafka: Pro & Contra – os autos do processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo:

Cosac Naify, 2007.

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. A teoria na prática. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2005.

BEATTIE, John. Introdução à antropologia social: objetivos, métodos e realizações da

antropologia social. São Paulo: Ed. Nacional; Ed. da USP, 1971.

BENJAMIN, Walter. “Die Aufgabe des Übersetzers”. Gesammelte Schriften. 4 vols. Frankfurt

am Main: Suhrkamp, 1991, vol. 4, t. 1.

BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

CASSIRER, Ernst. Philosophie der Symbolischen Formen. Zweiter Teil: Das Mythische

Denken. Tübingen: Bruno Cassirer Oxford, 1954.

CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire des mots.

Paris: Éditions Klincksieck, 1968

COLETIVO NTC. Pensar-Pulsar. Cultura comunicacional, tecnologias, velocidade. São Paulo:

Edições NTC, 1998.

Page 70: Gunther Anders

68

DICIONÁRIOS EDITORA. Dicionário de alemão-português. Porto: Porto Editora, 1999.

ECO, Umberto. Dire quasi la stessa cosa. Milano: Bompiani, 2003.

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 5ª ed. Rio de Janeiro: Fename, 1975.

FICHTE, Johann Gottlieb. “Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre” in: Fichtes Werke.

Band I: Zur theoretischen Philosophie I. Berlin: Walter de Gruyter, 1971

FOWLER, H. W. (ed.) & FOWLER, F. G. (ed.). The concise Oxford dictionary of current

english. Fourth Edition. London: Oxford University Press, 1958.

FRAZER, James George. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Faust. Der Tragödie Zweiter Teil. Stuttgart: Philipp Reclam,

1986.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. Belo Horizonte: Ed.

Itatiaia, 2002.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt a. M.:

Suhrkamp, 1970a.

_____. Phänomenologie des Geistes. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1970b.

_____. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes; Bragança

Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2007.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2001.

HURTADO ALBIR, Amparo. Traducción y traductología: Introducción a la traductología.

Madrid: Ediciones Cátedra, 2001.

Page 71: Gunther Anders

69

JAKOBSON, Roman. “Aspectos lingüísticos da tradução”. Em: Lingüística e comunicação. São

Paulo, Cultrix, 1969.

KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1982.

KELLER, Alfred Josef. Michaelis dicionário escolar alemão : alemão-português, português-

alemão. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 2002.

KLUGE, Friedrich. Etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache. Berlin; New York: de

Gruyter, 2002.

KNAUR. Das Deutsche Wörterbuch. München: Lexikographisches Institut, 1985.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Novos ensaios sobre o entendimento humano. São Paulo: Nova

Cultural, 2000. (Col. “Os Pensadores”)

MANIATOGLOU, Maria da Piedade Faria. Dicionário de grego-português. Porto: Porto Editora,

2004.

MARCONDES FILHO, Ciro. “A incrível atualidade de Günther Anders”. Em: Cenários do novo

mundo. São Paulo: Edições NTC, 1998.

_____. O espelho e a máscara: o enigma da comunicação no caminho do meio. São Paulo:

Discurso Editorial; Ijuí: Editora Unijuí, 2002. (Col. “A Comunicação”, 1)

_____. “Ser é ser percebido. Sobre um pensador da comunicação que jamais foi, apesar de

sempre ter sido: Günther Anders”. Communicare: Revista de Pesquisa, Centro

Interdisciplinar de Pesquisa, Faculdade Cásper Líbero. V. 6, nº 2 (2006). São Paulo:

Faculdade Cásper Líbero, 2006.

MILTON, John. Tradução: teoria e prática. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Coleção

leitura e crítica).

Page 72: Gunther Anders

70

ROBERT, Paul. Dictionnaire alphabétique & analogique de la langue française. Paris: Société

du Nouveau Littré, 1967.

SCHOPENHAUER, Arthur. Die Welt als Wille und Vorstellung. Erster Band. Zürich: Haffmans

Verlag, 1988.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Trad. M. F. Sá Correia.

Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

STOCK, Leo. Langenscheidt Kurzgrammatik Lateinisch. Berlin; München: Langenscheidt,

1970.

STOLZE, Radegunis. Übersetzungstheorien: Eine Einführung. Tübingen: Narr, 1994.

WEBER, Stefan (org.). Theorien der Medien: von der Kulturkritik bis zum Konstruktivismus.

Konstanz: UVK, 2003.

Jornais

GREFFRATH, Mathias. “Zeitläufte: Lob der Sturheit”. Die Zeit. Hamburg, 28/2002. (em anexo)

Sites

MARCUSE, Harold. Günther Anders: biography, texts and links. Disponível em:

<http://www.history.ucsb.edu/faculty/marcuse/projects/anders.htm>. Último acesso em: 12

de novembro de 2007.

Page 73: Gunther Anders

71

BIBLIOGRAFIA CRONOLÓGICA DE GÜNTHER ANDERS128

STERN, Günther. Die Rolle der Situationskategorie bei den "logischen Sätzen". Erster Teil

einer Untersuchung über die Rolle der Situationskategorie. Dissertação [não editada].

Freiburg/Breisgau, 1924.

_____. Über das Haben. Sieben Kapitel zur Ontologie der Erkenntnis. Bonn: Cohen, 1928.

_____. “Une interprétation de l’aposteriori”. Recherches Philosophiques, 1935.

_____. “Pathologie de la liberté”. Recherches Philosophiques, 1936.

_____. “On the pseudo-concreteness of Heidegger’s philosophy”. Philosophy and

phenomenological research, vol. 3, 1948.

ANDERS, Günther. Kafka: Pro und Contra. Die Prozeßunterlagen. München: C. H. Beck,

1951.

- Reeditado em: Mensch ohne Welt. München: C. H. Beck, 1985.

_____. Die Antiquiertheit des Menschen. Band I. Über die Seele im Zeitalter der zweiten

industriellen Revolution. München: C. H. Beck, 1956.

_____. Der Mann auf der Brücke. Tagebuch aus Hiroshima und Nagasaki. München: C. H.

Beck, 1959.

- Reeditado em: Hiroshima ist Überall. München: C. H. Beck, 1982.

- Edição com licença para a DDR: Berlin (Ost): Union Verlag, 1965, posfácio de G. Wirth.

_____. George Grosz. Zürich: Arche, 1961.

- Reeditado, com adição de prefácio, em: Mensch ohne Welt. München: C. H. Beck, 1984.

128 Compilada a partir da bibliografia catalogada por Heinz Scheffelmeier em 1995; revisada e aumentada segundo o atual catálogo da editora C.H. Beck. As datas correspondem ao ano de lançamento da primeira edição.

Page 74: Gunther Anders

72

_____. Off limits für das Gewissen. Der Briefwechsel zwischen dem Hiroshima-Piloten

Claude Eatherly und Günther Anders. Editado por Robert Jungk, prefácio de Bertrand

Russell. Reinbek: Rowohlt Verlag, 1961. [Tradução das cartas originais em inglês para o

alemão]

- Reeditado em: Hiroshima ist überall. München: C. H. Beck, 1982.

_____. Gunther Anders / Claude Eatherly, Burning Conscience. The Case of the Hiroshima

Pilot, Claude Eatherly, Told in his Letters to Gunther Anders with a Postscript for American

Readers by Gunther Anders. Introdução de Robert Jungk e prefácio de Bertrand Russell.

New York: Monthly Review Press, 1962.

_____. Bert Brecht. Gespräche und Erinnerungen (1941). Zürich: Arche Verlag, 1962.

- Reeditado em: Mensch ohne Welt. München: C. H. Beck, 1984.

_____. Wir Eichmannsöhne. Offener Brief an Klaus Eichmann. München: C. H. Beck, 1964.

- 2ª edição, aumentada em uma carta, 1988.

_____. Die Toten: Rede über die drei Weltkriege. Köln: Pahl-Rugenstein Verlag, 1965.

- Reeditado em: Hiroshima ist überall. München: C. H. Beck, 1982.

_____. Philosophische Stenogramme. München: C. H. Beck, 1965.

_____. Die Schrift an der Wand. Tagebücher 1941-1966. München: C. H. Beck, 1967.

- Edição com licença para a DDR: Berlin (Ost): Union Verlag, 1969.

- Reedição da Parte 1 (Capítulos I-VII) em: Tagebücher und Gedichte. München: C. H. Beck,

1985.

- Reedição da Parte 2 (Capítulo VIII) sob os títulos "Auschwitz 1966" e "Breslau 1966" em:

Besuch im Hades. München: C. H. Beck, 1979.

_____. Nürnberg und Vietnam. Synoptisches Mosaik. Voltaire Flugschrift 6, ed. Bernward

Vesper. Frankfurt a. M.: Edition Voltaire, 1967.

Page 75: Gunther Anders

73

_____. Der Blick vom Turm. Fabeln. Com 12 ilustrações de A. Paul Weber. München: C. H.

Beck, 1968.

- Edição com licença para a DDR: Leipzig/Weimar: Gustav Kiepenheuer Verlag, 1984.

_____. Visit beautiful Vietnam: ABC der Aggressionen heute. Köln: Pahl-Rugenstein Verlag,

1968.

- Edição com licença para a DDR [reprodução de trechos escolhidos aumentada com textos

inéditos]: Eskalation des Verbrechens. Aus einem ABC der amerikanischen Aggression

gegen Vietnam. Berlin (Ost): Union Verlag, 1971.

_____. Der Blick vom Mond. Reflexionen über Weltraumflüge. München: C. H. Beck, 1970.

_____. Eskalation des Verbrechens. Aus einem ABC der amerikanischen Aggression gegen

Vietnam. Berlin (Ost): Union Verlag, 1971.

_____. Endzeit und Zeitenende. Gedanken über die atomare Situation. München: C. H. Beck,

1972.

- Reeditado em: Die atomare Drohung. Radikale Überlegungen. München: C. H. Beck, 1981.

_____. Kosmologische Humoreske. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978.

- Reeditado em: Erzählungen. Fröhliche Philosophie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.

_____. Besuch im Hades. Auschwitz und Breslau 1966. Nach "Holocaust" 1979. München: C.

H. Beck, 1979.

_____. Die Antiquiertheit des Menschen. Band II. Über die Zerstörung des Lebens im

Zeitalter der dritten industriellen Revolution. München: C. H. Beck, 1980.

_____. Die atomare Drohung. Radikale Überlegungen. München: C. H. Beck, 1981.

_____. Hiroshima ist Überall. München: C. H. Beck, 1982.

_____. Ketzereien. München: C. H. Beck, 1982.

Page 76: Gunther Anders

74

_____. Mensch ohne Welt. Schriften zur Kunst und Literatur. München: C. H. Beck, 1984.

_____. Das Günther Anders Lesebuch. Ed. Bernhard Lassahn. Zürich: Diogenes Verlag,

1984.

_____. Tagebücher und Gedichte. München: C. H. Beck, 1985.

_____. Lieben gestern. Notizen zur Geschichte des Fühlens. München: C. H. Beck, 1986.

_____. Gewalt: ja oder nein. Eine notwendige Diskussion. Ed. Manfred Bissinger. München:

Knaur,

1987.

_____. Günther Anders antwortet. Interviews und Erklärungen. Ed. Elke Schubert. Berlin:

Edition Tiamat, 1987.

_____. Mariechen. Eine Gutenachtgeschichte für Liebende, Philosophen und Angehörige

anderer Berufsgruppen (1946). München: C. H. Beck, 1987.

_____. Die molussische Katakombe. Roman (1938). München: C. H. Beck, 1992.

_____. Über philosophische Diktion und das Problem der Popularisierung (1949). Göttingen:

Wallstein, 1992.

_____. Obdachlose Skulptur. Über Rodin (1944). [Traduzido do inglês por Werner Reimann].

München: C. H. Beck, 1994.

_____. Über Heidegger. Editado por Gerhard Oberschlick, posfácio de Dieter Thomä.

München: C. H. Beck, 2001.

_____. Übertreibungen in Richtung Wahrheit. Gedanken und Aphorismen. Editado por

Ludger Lütkehaus. München: C. H. Beck, 2002.

Page 77: Gunther Anders

75

ANEXO:

LOB DER STURHEIT

Eine Erinnerung an Günther Anders - den Philosophen und Pamphletisten, den Analytiker

und Kämpfer, der am 12. Juli 100 Jahre geworden wäre

Von Mathias Greffrath

Der Mann, der mir im Juli 1977 im ersten Stock eines grauen Mietshauses in der

Lackierergasse in Wien die Tür öffnet, ist flüchtig rasiert. Offenes weißes Hemd,

Kassenbrille, schwarze Hosen, Wollsocken in Schnürstiefeln. Er sieht eher aus wie ein

Arbeiterveteran. "Haben Sie es gefunden?", sagt er mit einer sehr hellen, scharf konturierten

Stimme. "Ein Wunder. Mich kennt hier niemand."

Er geht in die Küche, um Tee zu kochen. Das Parkett knarrt. In zwei einfachen

Regalen weniger Bücher als bei jedem Philosophiestudenten, auf dem Sofa die Wolldecke.

Der Schreibtisch: ein altes Küchenmöbel, von den gedrechselten Beinen blättert die weiße

Farbe. Darauf die Maschine, deren Tasten er seit Jahren nur noch mit Bleistiften drücken

kann, die er zwischen die arthritisch gekrümmten Finger klemmt. Eine Exilantenwohnung.

Als er mit dem Tee kommt, deutet er auf die Wand hinter mir. "Ich will Ihnen

erklären, was dort hängt", sagt er mit altmodisch pathetischer Geste. Ich sehe ein angekohltes

Stück Papier mit japanischen Schriftzeichen ("Das wurde aus den Trümmern von Hiroshima

gezogen") und ein weißes, bedrucktes Seidentuch: "Ich habe es bei der Prozession in Kyoto

benutzt, es war sehr heiß." Darunter ein verblasstes Passbild: "Mein Vater, William Stern." In

dessen Psychologie der frühen Kindheit sind Günther Anders' erste philosophische Versuche

dokumentiert - auch die Frage: "Und wer hat den lieben Gott gemacht?"

William Stern war Mitglied der jüdischen Reformgemeinde in Breslau, die den

Sabbat am Sonntag feierte, mit Musik von Meyerbeer. Ein kaisertreuer Goethe-Deutscher, ein

Kriegspatriot. Unglücklich war er nur über die Freundschaft seines Sohnes mit einem

zionistischen Ostjuden. "Durch den lernte ich Flaubert, Hamsun, Tolstoj kennen. Mein Vater

war darüber indigniert. So geschah das Paradoxe, dass meine persönliche Emanzipation vom

Page 78: Gunther Anders

76

Vater und meine Solidarisierung mit dem Ursprung: mit dem Judentum, zusammenfielen."

Das Weltbild des Psychologen William Stern, Professor in Breslau und später in Hamburg,

brach erst 1933 zusammen. Er starb im Exil, 1938, in Durham/North Carolina.

Breslau, Heidegger, Hollywood

Wie wird man zum "Berufsmoralisten", habe ich Anders gefragt, und ein strenger,

nein, fast mitleidiger Blick kommt als erste Antwort. Aber dann beginnt er zu erzählen. Wie

er ein Jahr vor dem Ende des Ersten Weltkriegs, als 15-Jähriger, mit einem paramilitärischen

Schülerverband von Hamburg aus nach Frankreich geschickt wurde: "Angeblich zur Ernte, in

Wahrheit, um die Obstkulturen zu vernichten. Unterwegs, auf einem Bahnhof, wohl in

Lüttich, sah ich eine Reihe von Männern, die sonderbarerweise an den Hüften anfingen. Das

waren Soldaten, die man auf ihre Stümpfe gestellt und an die Wand gelehnt hatte. So warteten

sie auf den Zug in die Heimat." Ein paar Wochen später - inzwischen war er nächtelang von

seinen deutschnationalen Kameraden gequält worden - gründete der Schüler Günther Stern

den "ersten Völkerbund des Jahrhunderts": nachts, im Garten des Militärlazaretts, mit dem

Sohn eines Franktireurs. "Bei Kerzenlicht übermalten wir auf einer Karte von Europa mit

weißer Farbe die Grenzen und schnitten uns E. U. in die Handflächen. Wir bluteten wie die

Schweine und rannten zur Krankenschwester, einer Elsässerin. Die verstand sofort und wurde

das dritte Mitglied. Durch dieses Erlebnis wurde ich zum Moralisten gemacht. Sehr verändert

habe ich mich nicht."

Zunächst sah alles nach einer Universitätskarriere aus. Ontologische Lehrjahre bei

Martin Heidegger in Freiburg - dem er zum Abschied vorwarf, er betreibe Wurzelphilosophie,

reduziere den Menschen auf eine pflanzliche Existenz. Dann die Promotion bei Heideggers

Freiburger Kollegen Edmund Husserl, dessen phänomenologischer Blick "zurück auf die

Dinge" ihm jedoch allzu klang- und geruchs- und berührungslos war. Er wollte über die Welt

philosophieren und nicht über die Philosophie.

1930 hatte er vor, nach Wanderjahren durch Europa, sich in Frankfurt am Main zu

habilitieren. Aber Max Wertheimer, Paul Tillich und Karl Mannheim baten ihn um Geduld

die Nazis seien gerade zu stark an der Universität - "in ein, zwei Jahren werden sie

abgewirtschaftet haben". Inzwischen war er mit Hannah Arendt verheiratet und verdingte

Page 79: Gunther Anders

77

sich, von Bertolt Brecht vermittelt, beim Berliner Börsen-Courier. "Ich schrieb über alles.

Über vergewaltigte Kinder ebenso wie über einen Hegel-Kongress oder eine Kriminalnovelle.

Jeden Tag musste eben etwas da sein, damit wir leben konnten, bis Ihering mich eines Tages

mit dem Ruf empfing: ,Wir können nicht die Hälfte unserer Artikel mit Günther Stern

zeichnen!' - ,Dann nennen Sie mich doch irgendwie anders', schlug ich vor. ,Gut', sprach er,

,nun heißen Sie also außerdem Anders.'"

Günther Anders - das Pseudonym wurde zum Namen. Die systematische

Anthropologie, an der er arbeitete, gab er auf. Die Zeiten waren zu ernst für philosophische

Systeme. Er organisierte Seminare über Hitlers Schriften, las Marx und schrieb Fabeln im

Brecht-Stil, Swiftiaden über die Nazis und den Krieg. "Mir schien, über Moral Texte zu

schreiben, die nur akademische Kollegen lesen würden, sei unsinnig, komisch, wenn nicht

sogar unmoralisch. So unsinnig, wie wenn ein Bäcker seine Brötchen nur für Bäcker büke.

Kurz: Ich habe versucht, Moral so zu formulieren, dass die Botschaft auch ankommt." Aber:

"Um wie viel lieber hätte ich über Tintoretto oder Berlioz geschrieben. Es ist so langweilig,

immer wieder dasselbe sagen zu müssen."

Nachdem er Mein Kampf gelesen hatte, "verdüsterte" er zunehmend, menschliche

Beziehungen, "auch mit den mir am allernächsten stehenden und allerwichtigsten Menschen"

waren plötzlich vergiftet. So fasst er diskret die Jahre zusammen, in denen er obsessiv an der

Molussischen Katakombe schrieb: Geschichten aus "Tausendundeiner Nacht", nur dass sie

von den Gefangenen in den Kellern der molussischen Staatspolizei erzählt werden - Lehrtexte

über den Faschismus und das Leben nach ihm. Das Buch sollte ein sonderbares Schicksal

haben. Sein ganzes Leben lang arbeitete Anders daran, erst 1992, im Jahr seines Todes, wurde

es veröffentlicht.

Die Bürger Molussiens, sie haben Anders immer begleitet in kleinen sokratischen

Fabeln hat er oft von ihnen erzählt, zum Beispiel von dem molussischen Philosophen Ydd.

",Wenn wir die Freiheit genießen', so schloss [er] einst einen seiner aufsehenerregenden

Aufsätze, ,in den Kulturteilen der großen molussischen Blätter die Wahrheit zu schreiben, so

nicht nur aus dem schändlichen Grunde, weil unser Staat es sich erlauben kann, uns Geistigen

Narrenfreiheit einzuräumen, sondern auch aus dem noch schändlicheren, weil unsere

Regierung die Produktion von Ventilen für erwünscht hält, wenn nicht sogar aus dem noch

schändlicheren, weil sie deren Existenz für not wendig erachtet.' Diesen Aufsatz schickte Ydd

Page 80: Gunther Anders

78

... an ein der Regierung nahestehendes Blatt - und siehe da: schon am nächsten Morgen war

seine Wahrheit dort veröffentlicht und schon am übernächsten Morgen traf das Honorar ein,

über dessen Höhe er sich nicht zu beklagen brauchte."

Anders war kein Mann für Kompromisse. Ob er sich mit der stolzen Frage "Und

einen solchen Treuebegriff halten Sie eines Philosophen für würdig?" von dem

kommunistischen Parteiverleger in Paris verabschiedete, der die Molussische Katakombe für

nicht linientreu hielt. Ob er sich für Hannah Arendt in einen "schwer erträglichen Kauz

verwandelte, der Tag für Tag kontinuierlich hasste, ja der sich, als hätte das irgendwie

irgendwann nutzen können, zum Hassen verpflichtet fühlte". Oder ob er den lukrativen Job im

Office for War Information in New York rasch aufgab, weil er die US-Kriegspropaganda

genau so faschistisch fand wie die deutsche - und es sagte. Vielen seiner Mitemigranten galt

er als arrogant, den Behörden als verdächtig. FBI-Leute suchten ihn auf, forschten ihn nach

Brecht aus, und ob er diesen - "What do you call him?"- Hegel gelesen habe. "Sie hätten mich

ebenso gut fragen können", notiert er in sein Tagebuch, "ob ich gerne Platten von (,What do

you call him?') Telemann höre. Interesse für das Vorgestern beweist Lust auf Umsturz."

1933 war Anders nach Paris geflüchtet, 1936 weiter in die USA, nach Los

Angeles. Auf den kurzen Aufenthalt in New York beim Office for War Information folgte

1942 die Rückkehr an die Westküste, nach Hollywood. Hier lebte er in einem Haus mit

Herbert Marcuse, nebenan wohnte Brecht, mit dem er gern dialektisch stritt, ein paar Straßen

weiter Hanns Eisler, die Brüder Mann, Arnold Schönberg und – Spitzen kann er sich schwer

verkneifen: "in vornehmer Gegend" - Max Horkheimer und Theodor Adorno. Ein Nobody sei

er gewesen, jemand, der zu spät geboren war, um in der Emigration eine Reputation

kapitalisieren zu können.

So schreibt er, etwas neben seiner eigentlichen Begabung, Gedichte für das New

Yorker Emigrantenblatt Aufbau, schlägt sich als Hauslehrer bei Irving Berlin durch,

schließlich als Fabrikarbeiter. Als "Leichenwäscher der Geschichte" reinigt er im

Kostümfundus von Hollywood SA-Stiefel, die dort schon - "welch atemberaubender

Optimismus" - neben griechischen Sandalen hängen. "Und Abend für Abend zog ich mir

mein ,sauberes deutsches Sprachhemd' an." Das philosophische Tagebuch wird sein Genre,

wie er es nennt: "das negative Tagebuch". Hier notiert er, wie sich die großen Katastrophen in

Page 81: Gunther Anders

79

kleinen Zeitungsmeldungen spiegeln, wie Deformationen Charaktere bilden, wie Schmerzen

Gewohnheiten erzeugen, aus Heimatlosigkeit Heimat wird.

Sein Hollywood-Job lässt ihn über den Zusammenhang von Schein und Sein, von

Kleidung und Hierarchie, von Original und Reproduktion philosophieren. Die

Gesichtsoperationen der Schauspielerin S. sind ihm Anlass, über die Verwandlung von

Menschen in Waren zu schreiben, der Dialog mit dem Polizisten, dem er verdächtig ist, weil

er kein Auto besitzt, regt ihn zu den ersten Kategorien seiner Wirtschafts-Ontologie an:

Konsumzwang, Verwertungsimperativ, Warenhunger.

1950 kehrt Anders nach Europa zurück. "Adenauer reizte mich ebenso wenig wie

Ulbricht. Und es war bald klar, dass das Ordinariat für Philosophie, das mir Bloch in Halle

,reserviert' hatte, nicht infrage kam." Also geht er nach Wien, und aus den amerikanischen

Tagebüchern entsteht sein Hauptwerk Die Antiquiertheit des Menschen, eine Untersuchung

"über die Seele im Zeitalter der zweiten industriellen Revolution", die in drei großen Kapiteln

die Auswirkungen der Maschinenwelt, der Medien und der Massenvernichtungsmittel auf die

menschliche Seele analysiert.

Er beginnt mit der "prometheischen Scham": das Minderwertigkeitsgefühl der

Menschen vor der Perfektion der Maschinen, ihre Sehnsucht nach dem "linientreuen"

Funktionieren in einem Arbeitsprozess, der sie zum Schmiermittel der Apparate macht.

Briefe vom Hiroshima-Piloten

Es folgt "die Welt als Phantom und Matrize" - unter diesem Titel philosophiert er

über die Zurichtung der Welt im Zeitalter des Fernsehens, die Formierung der Wünsche, die

"Züchtung von Ereignissen", die Entstehung des "Masseneremiten", der in einer

elektronischen Höhle mit seinen Phantomen lebt. Analysen, wie sie nur am Anfang einer

Epoche möglich sind, mit scharfem Blick auf die anthropologische "Fallhöhe". Unter den

Wortungetümen der Neusprache - "Zerstreuung", "menschliches Versagen", "ernste Musik" -

entdeckt Anders die Umformung des Menschen. Und fordert doch kein "Zurück zu den

Ursprüngen", erinnert lieber an Kants Freiheitsbegriff, der die menschliche Würde von zwei

Bedingungen abhängig sieht: seiner Welt zugehörig zu sein und nicht festgelegt.

Page 82: Gunther Anders

80

Doch vor allem im dritten Kapitel der Antiquiertheit - "Die Bombe oder die

Wurzeln unserer Apokalypse-Blindheit" - findet er zu seinem Lebensthema. Ein

"ontologisches Monstrum" hat er die Atombombe genannt, eine Waffe, die alle Zweck-Mittel-

Relationen außer Kraft setzt eine globale Vernichtungsapparatur, die gleichwohl verdrängt

wird, "weil ihre Wirkungen zu groß sind, als dass wir sie uns vorstellen können".

Die Antiquiertheit des Menschen, 1956 bei Beck in München erschienen, stand

lange im Schatten von Adorno/Horkheimers Dialektik der Aufklärung. Aber während die

"Frankfurter" in der Trauer über die verlorene bürgerliche Emanzipation endeten, ist Anders

Rebell geblieben. Und ein moralischer Monist. So wettert er auch an diesem Nachmittag in

Wien über die Weizsäckersche Devise "Mit der Bombe leben!", die der Verdrängung

Vorschub leiste, und spottet über Adorno: "Einmal habe ich ihn gebeten, auf einer

Ostermarsch-Kundgebung zu sprechen. Ich war krank geworden. Da sagte er am Telefon: ,Sie

wissen doch, dass ich hinter keiner Fahne herlaufe.' - ,Dann laufen Sie doch vor der Fahne',

entgegnete ich. Er legte auf."

Mit Primo Levi und Bertrand Russell wurde Anders zu einer Leitfigur für die

"Kampf dem Atomtod"-Bewegung der fünfziger und sechziger Jahre - wenn die Gefahr

global ist, muss die soziale Bewegung global werden, müssen die Menschen lernen, ihre

Gefühle "zu dehnen". Sein Briefwechsel mit dem Hiroshima-Piloten Claude Eatherly ("Off

Limits für das Gewissen") wurde weltweit gelesen. Eatherly, das war "die epochale

Gegenfigur zu Eichmann", das war der Soldat, der erst im Nachhinein erkannte, was er, das

Rädchen in der großen Kriegsmaschine, getan hatte. Durch sinnlose Bankeinbrüche hatte

Eatherly schuldig werden wollen und war von der Army in ein Irrenhaus gesteckt worden. Mit

seinen Briefen half Anders als Therapeut, Lehrer und intellektueller Fluchthelfer in einem -

und wurde zur Persona non grata in den USA.

In Warschau rief Anders zum universellen Streik der Rüstungsarbeiter auf - und

stieß auf eisernes Schweigen bei denen, die zwischen guten und bösen Bomben

unterschieden. "Die heute so gern zu Hilfe gerufene ,normative Kraft des Faktischen'

anzuerkennen", schrieb er angesichts der Aussichtslosigkeit solcher Aufrufe, "würde ich mich

mit Kant tief schämen. Der Ausdruck ist erbärmlich ... Auch die Geltung des Gebots ,Du

sollst nicht töten' wird ja nicht durch die Existenz von Mördern entwertet ... Hat denn die

Page 83: Gunther Anders

81

Verbindlichkeit der Bergpredigt dadurch aufgehört, dass wir seit zweitausend Jahren durch

Blut gewatet sind?"

In Universitäten verkündete er seinen atomaren Katechismus: "Ängstige Deinen

Nachbarn wie Dich selbst", oder: "Habe nur Dinge, deren Maxime auch die Maxime Deines

Handelns sein könnte." Der Philosoph wurde zum Prediger. Bis die Bewegung

zusammenbrach, als kommunistisch denunziert, und auch von der nachgodesberger

Sozialdemokratie links liegen gelassen.

Als Juror im Russell-Tribunal gegen den Vietnam-Krieg engagierte er sich noch

einmal, kritisierte die gleichgeschaltete Presse der USA, die zynische Degeneration der

öffentlichen Sprache, eine politische Kultur, die Kriegserklärungen als "rein europäischen

Brauch" verabschiedet hatte, und die neuen alten Formen der Barbarei ("Das Massaker von

My Lai: da wollten Menschen wieder wirklich selbst töten"). Dann "verdüsterte" er erneut.

Für einige Jahre verstummte er. "Ich bin nicht mehr optimistisch", sagte er damals

in Wien. "Als ich 1958 in der Prozession von Kyoto nach Hiroshima mitging, hatte ich das

Gefühl, an der Geburt einer neuen Religion teilzunehmen." Dieses Gefühl hatte ihn verlassen.

Am Abend jenes Tages in Wien, es ist der 10. Juli 1977 und also sein 75.

Geburtstag, sitzen wir in einem Restaurant an der Votivkirche: Günther Anders und seine

zweite Frau Elisabeth Freundlich, Lou Eisler und ihr Mann, zwei holländische Journalisten

und ich. Mit leicht angestrengter Heiterkeit kommentiert er noch einmal, wer alles ihm nicht

gratuliert hat, zum Beispiel die deutsche Sozialdemokratie. Dann erzählen die vier ihre

Geschichten aus der Emigration, aus Hollywood und dem Hotel Lux in Moskau.

Davongekommene.

Zum Abschied, als ich ihm "Schaffensfreude" wünsche, wird er wütend: "Glauben

Sie etwa, es ist eine Freude? Wie öde ist es, nichts anderes mehr tun zu dürfen, als dieses Ihr

dürft nicht! zu rufen. Aber es gehört zu den moralischen Postulaten von heute, diese

Langeweile auf sich zu nehmen. Jedes Zeitalter hat seine Askese." Und jede Askese hat ihre

Ökonomie - heftig besteht er darauf, die Runde einzuladen, obwohl die Blicke der Freunde

sagen: Er kann es sich nicht leisten.

Page 84: Gunther Anders

82

Sancho Pansa trauert um Don Quichotte

Zwei Jahre darauf, 1979, kommt es zum "Störfall" im US-Kernkraftwerk von

Harrisburg, der internationale Kampf gegen die Atomindustrie weitet sich aus. Es folgt der

Nato-Beschluss zur Stationierung neuer Nuklearraketen in Europa - und die

Friedensbewegung erhält wieder Auftrieb Hunderttausende demonstrieren in Bonn und New

York. Anders' Schriften werden neu aufgelegt, die Kulturpreise prasseln nur so auf ihn nieder.

Er sitzt wieder am Schreibtisch, verfasst Aufsätze, Polemiken 1980 erscheint ein zweiter Teil

der Antiquiertheit: "Über die Zerstörung des Lebens im Zeitalter der dritten industriellen

Revolution". Er radikalisiert sich noch einmal, bis hin zu der waghalsigen Erwägung, ob

Attentate auf die Betreiber von Nuklearanlagen moralisch zu rechtfertigen seien. Er ist nicht

der Einzige. Sein konservativer Kollege Robert Spaemann schreibt, mit der Einführung der

Kerntechnik sei die Bürgerkriegssituation gegeben, da der Staat nicht länger Sicherheit und

Leben seiner Bürger schützen könne. Anders ist nur deutlicher.

Seine Rigorosität ließ nicht nach, auch nicht seine Energie, bis zuletzt, bis zu

seinem Tod im Dezember 1992 in Wien. Die Frage habe nicht zu lauten: Wie wird man zum

Moralisten, hatte er mich gleich zu Beginn unserer Begegnung belehrt. "Vielmehr hat die

Frage zu lauten: "Wie kann es einem passieren, das nicht zu werden?" Gut. Aber wie hält man

es durch, ein Leben lang, "stur auf einem humanen Begriff des Menschen zu insistieren"?

Sturheit sei alles. Ohne Sturheit hätten die Juden ihre Religion nicht bewahren

können durch die Jahrtausende. Ohne die Sturheit von ein paar heiligen Toren wäre keine

soziale Bewegung je entstanden. Auch wenn er zornig sein konnte wie Moses und

selbstmitleidig wie Hiob: Günther Anders' Lieblingsprophet war Noah, der die Arche baute.

Sturheit als Lebensprinzip, als Lebensgeheimnis.

Über seinem Schreibtisch aber hing, im Hinausgehen hatte ich es noch gesehen,

eine Lithografie von A. Paul Weber: Sancho Pansa trauert um Don Quichotte.

Der Autor ist Soziologe und Publizist und lebt in Berlin und Burgund

DIE ZEIT, 28/2002