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Guillermo Cabrera Infante

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Guillermo Cabrera Infante

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Mapa Desenhado por um espião

tradução de Salvato telles de Menezes

Quetzal série américas | Cabrera Infante

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Tu não eras realmente um deles mas um espião no país deles.1

eRNeSt HeMINGway

Eis um mapa feito poucos dias antes do ataque à capital da ilha. Comose pode ver, o mapa é bastante grosseiro, mas preenche muito bem o seupropósito… Consegue perceber-se como o mapa distorce as característi-cas da cidade e dos seus arredores. Crê-se que o mapa foi feito por umespião inglês.

GuIlleRMO CaBReRa INFaNte

Although an old, consistent exile, the editor of the following pagesrevisits now and again the city of which he exults to be a native.2

ROBeRt lOuIS SteveNSON

1 e Snows of Kilimanjaro: at you were really not one of them but a spy intheir country. (N. do T.)

2 The Master of Ballantrae (Prefácio): embora seja um velho e persistente exi-lado, o editor das páginas seguintes revisita uma e outra vez a cidade de que exultaser natural. (N. do T.)

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e reader will perceive how awkward it would appear to speak ofmyself in the third person.3

Pat F. GaRRett

You may well ask why I write. And yet my reasons are quite many. Forit is not unusual in human beings who have witnessed the sack of a cityor the falling to pieces of a people to set down what they have witnes-sed for the benefit of unknown heirs or of generations infinitely remo-te; or, if you please, just to get the sight out of their heads.4

FORD MaDOX FORD

3 The Authentic Life of Billy the Kid (capítulo XvI): O leitor aperceber-se-áde como é desajeitado falar de mim na terceira pessoa. (N. do T.)

4 The Good Soldier (Parte I): Podeis perguntar-vos porque escrevo. e noentanto as minhas razões são muitas. É bastante usual que os seres humanos que tes-temunharam o saque de uma cidade ou a destruição de um povo registem aquilo aque assistiram para benefício de herdeiros desconhecidos ou de gerações extraordi-nariamente remotas; ou, se se quiser, apenas para tirar da cabeça essa visão. (N. do T.)

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Ici, il faut se garder d’exagérer: beaucoup d’entre nous ont aimé la tran-quillité bourgeoise, le charme suranné que cette capital exsangue prenaitau clair de lune; mais leur plaisir même était teinté d’amertume: quoi deplus amer que de se promener dans sa rue, autour de son église, de sa mai-rie, et d’y goûter la même joie mélancolique qu’à visiter le Colisée ou leParthénon sous la lune. Tout était ruine: maisons inhabités […], aux vo-lets clos, hôtels et cinémas réquisitionnés, signalés par des barrières blan-ches contre lesquelles on venait buter tout à coup, bar set magasins ferméspour la durée de la guerre et dont le propriétaire était déporter, mort ou dis-paru, socles sans statues, jardins coupés en deux par des chicanes ou défigu-rés par des casemates en béton armé, et toutes ces grosses lettres poussiéreusesau sommet des maison, réclames électriques qui ne s’allumaient plus.5

JeaN-Paul SaRtRe

5 Situations III – Lendemains de Guerre (1949): aqui, é conveniente não exage-rar: muitos de nós amaram a tranquilidade burguesa, o encanto antiquado que estacapital exangue adquiria ao luar, mas o seu próprio prazer estava tingido de amargu-ra: o que há mais amargo do que passear na sua rua, ao redor da sua igreja, dos seuspaços do concelho e daí retirar a mesma alegria melancólica que se tem ao visitaro Coliseu ou o Parténon ao luar.tudo estava em ruínas: casas desabitadas […], comas portadas fechadas, hotéis e salas de cinema requisitados, assinalados por barreirasbrancas nas quais se vinha subitamente tropeçar, bares e lojas fechados durante a du-ração da guerra e cujos proprietários tinham sido deportados, mortos ou desapareci-dos, pedestais sem estátuas, jardins cortados em dois por obstáculos ou desfiguradospor casamatas em cimento armado, e todas estas grandes letras empoeiradas no te-lhado das casas, reclames elétricos que já não estavam iluminados. (N. do T.)

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Prólogo

CeRtaS CRIatuRaS PaReCeM teR SIDO CRIaDaS pela DivinaProvidência, pela Natureza ou pelo acaso com o único propósitode encarnar uma metáfora – que antecederam em éones geológicosou por toda a eternidade. Como a serpente, por exemplo, ou apomba, usada até à deformação física, até à sua monstruosa re-criação mítica, por diferentes poetas hebraicos que se ocultaramatrás do anonimato bíblico. Outros animais, como a preguiça ouo chacal, personificam através dos seus nomes atitudes moraisque, nem seria preciso dizer, lhes são alheias. Do mesmo modo,alguns homens são pouco mais que uma presença metafórica,como essa figura da metafísica do mal histórico nos tempos mo-dernos, o Homem da Máscara de Ferro, que inaugura a tradiçãoe encarna a lenda do preso político desconhecido. Outros homenssão mais presciência que presença e chegam a antecipar em vá-rios anos aquele momento histórico para o qual são imprescindí-veis como metáfora.

um século antes o nome dele teria tido em Cuba um sig-nificado diferente. Os aldamas não pertenciam apenas à aristo-cracia crioula, eram a aristocracia da aristocracia crioula: isto é,encarnavam a ideia da aristocracia em Cuba. um dos aldamas,Miguel, mandou construir um palácio por medida, como se esti-vesse a encomendá-lo a um alfaiate, feito sem poupar em pedra

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de cantaria, mármore e madeiras preciosas. Ornamento central,estava situado no início de uma das mais belas avenidas de Ha-vana e, embora viesse a ser depois uma rua comercial e agora sejauma rua feia, ainda lá está, transformado num museu colonial,com a sua antiga fachada multicolor raspada até à pedra nua ecoberta de novo pela fuligem do século XX, que o escureceu comose não se tratasse do original em três dimensões mas da sua re-produção litográfica. as suas compridas colunas exteriores mos-tram, já a partir da sumptuosa entrada neoclássica – a fachada éo espelho da alma do amo –, que o dono tinha importado não sóas ideias políticas mas também o estilo de vida da França apoda-da de Revolucionária. Mas no seu foro íntimo, Miguel aldamaaspirava a ser o oposto de um francês, isto é, um inglês ocultadopor uma porta interior.

Havia no palácio uma joia inaugural – a primeira sanita quefoi instalada na américa. este aldama era um nobre patrício quepatrocinava as artes e as letras e abria as portas do seu palácio to-das as sextas-feiras para o transformar num salão literário. eratambém um patriota nobre e as suas duplamente francas opiniõespolíticas primeiro atraíram a atenção das autoridades espanholase depois trouxeram-lhe o exílio. Como toda a aristocracia crioula,os aldamas eram esclavagistas. Os seus engenhos de açúcar, assuas plantações de cana e tabaco e as suas mansões, fazendas e pes-soas, eram cuidados por milhares de escravos importados de Áfri-ca. Segundo o costume da época, os escravos dos aldamas tambémse chamavam aldama. Por ironias da História ou da biologia osaldamas brancos e aristocráticos desapareceram com o século doseu apogeu e hoje em dia o apelido ilustre de ontem é apenas usa-do pelos descendentes dos seus escravos negros. Pablo, aliás agus-tín, aldama está vivo e é, obviamente, neto ou bisneto de escravos.ainda que seja possível que nas suas veias corra algum sangue dosaldamas originais, já que mais que negro é mulato escuro.

II GuIlleRMO CaBReRa INFaNte

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Não conheço muito da vida privada de aldama, entre outrasrazões porque falava pouco e quando falava não falava da sua vidaprivada. aliás, não deve ter tido uma vida muito venturosa, excetono facto de guardar uma fotografia da sobrinha como se fosse deuma filha. (Ou talvez fosse da filha, porque uma das coisas quedescobri estudando aldama é que o homem parco de palavraspode ser um mentiroso parco de palavras.) Quando falava, alda-ma falava da sua vida pública e sobretudo dos seus méritos revolu-cionários. a julgar pela paixão loquaz que este homem taciturnopunha na enumeração das suas virtudes cívicas, as suas creden-ciais não deviam ser legítimas. Mas seja como for é verdade quetinha sido, como se diz?, um homem de ação e conservava ciosa-mente as cicatrizes testemunhais dessa época. tinha militadonum ou em vários dos chamados em Cuba «grupos de ação» dosanos 40, e algumas lacunas, certas reticências, pareciam indicarque tinha mudado de lado com frequência. Não que tivesse sidoum traidor mas, como disse o argentino, foi um «homem de su-cessivas e encontradas lealdades».

Num destes grupos sempre escudados em siglas, a uIR, al-dama conheceu ou dizia que tinha conhecido Fidel Castro, naaltura um gorila amateur. a unión Insurrecional Revolucionariacontrariava com os seus atos a fácil tentação de fazer das suas si-glas um verbo – fugir6 –, pois era composta por homens de umacoragem posta à prova demasiadas vezes. Singularmente os seusmembros partilhavam com o vesânico chefe, emilio tro, o gostopor um humor que não podia deixar de ser negro. atribuíam-sealcunhas risíveis – de modo que um coxo de guerra era conhecidocomo Patamanca, outro a quem um tiro desfez a boca passou daíem diante a ser chamado Comebalas, dois assassinos gémeos eramconhecidos como os Jiamgua, um dos chefes, J. Jesús Jinjauma,

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6 em espanhol, huir. (N. do T.)

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tinha um lugar-tenente chamado lázaro de Betania e quando li-quidava um antigo devedor de vinganças penduravam-lhe ao pes-coço um letreiro que invariavelmente dizia: A Justiça demora maschega. Numa dada ocasião conseguiram reunir num único golpeaudaz o humor negro, a coragem fanfarrona, a perfeição técnicado assassinato, certas inclinações literárias e o nome de Castro.

Outro dos grupos de ação, a aRG, capitaneado por outroJesús G. Cartas, mais conhecido pelo pseudónimo el extraño,que fazia jus à sua cara, tinha afinado uma técnica de matar im-portada da «época quente» de Chicago. Consistia simplesmenteem utilizar dois carros para um único atentado criminoso quandose tratava de ajustar contas com um bando rival. um dos carrospassava diante do objetivo ou alvo para – como diziam os jornaisda época, usando termos de jardinagem – regar com chumbo a en-trada da casa marcada. Quando, passado o alarme e para compro-var que não havia feridos, os rufias furiosos – às vezes impelidos adisparar inutilmente sobre o carro que fugia – vinham para a rua,aparecia no horizonte traseiro outro carro aleivoso que disparavaà fartazana sobre o grupo exposto. atacaram desta maneira a casada mãe de Jesús Jinjauma na altura em que a uIR lá realizavauma reunião. a organização decidiu responder ao ataque, assumiros riscos e devolver a técnica de assalto às suas origens – com umtoque de originalidade.

a desforra ocorreu na Chicago de Hollywood. Manolo Cas-tro – diretor nacional de Desportos, antigo dirigente universitárioe membro do MSR, organização aliada da aRG – estava a con-versar com um amigo empresário no vestíbulo do seu cinema «parafamílias» chamado, afetuosamente, Cinecito. Subitamente um veí-culo passou a toda a velocidade e metralhou a fachada do teatro.Castro e o amigo refugiaram atrás da bilheteira e escaparam ile-sos. Passado algum tempo, e vendo que o segundo carro fatal nãoaparecia, foram para a rua. Foi então que dois pistoleiros a pé e

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postados no passeio fronteiro dispararam sobre eles. O empresárioficou gravemente ferido mas sobreviveu, contudo Manolo Castrocaiu morto sob a cobertura iluminada da paragem de autocarros.

a aRG, o MSR e um solitário procurador acusaram o ou-tro Castro, Fidel, sem parentesco, de ser o atirador certeiro, em-bora não tenha sido provada nem a sua culpa na altura nem a suainocência agora. Mas emilio tro na sua campa – tinha morrido,pouco antes, atacado aleivosamente quando estava desarmado,como Manolo Castro, em confronto com forças coligadas doMSR e da aRG, no final de uma batalha campal em plena cida-de de Marianao, durante a qual foram usadas metralhadoras, ca-rabinas e tanques, morte que foi, ironicamente, filmada por umnoticiário local –, emilio tro no mais além dos violentos deve terpor fim sorrido descarnadamente: era da melhor tradição da uIRque houvesse dois Castros no campo de batalha. era sobretudocómico isto de um Castro matar outro Castro.

Foi ali, repito, que aldama disse ter conhecido Fidel Castro.É possível. O que era de facto verdade é que aldama guardavadesses tempos uma marca indelével: tinha sido atingido por umtiro na cabeça que lhe saiu por um olho. agora era zarolho e aoseu único olho juntava umas terríveis nevralgias no lado da carapor onde entrou ou saiu a bala. Isto vim a saber mais tarde. Noinício nem sequer dei conta de que tinha apenas um olho: usavauns sempiternos óculos espelhados escuros que não deixavam quese lhe visse nem o olho ausente nem mesmo o presente.

No dia em que o conheci havia acabado de chegar à embai-xada. tinha estado a dormir para recuperar da viagem e depoisapareceu a meio da tarde na chancelaria. Quase não passava pelaporta: era um gigante que media seis pés e seis polegadas7. eununca tinha visto um cubano tão alto. tinha os braços e os pés

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7 um metro e noventa e sete. (N. do T.)

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desmesuradamente compridos e as mãos eram gigantescas garrasde osso: era extraordinariamente magro. além disso falava comuma voz grave e profunda e quando o fazia falava pouco. Os gran-des óculos escuros, a mandíbula proeminente e o cabelo encara-pinhado cortado muito curto faziam destacar o crânio poucocoberto de carne. a impressão geral era de um hermetismo muitoeficaz: aldama era agora da polícia política e trabalhava para oMinistério dos Negócios estrangeiros. Pelo menos era isso quese comprazia em fazer crer que era. Mas isso foi no final.

No princípio chegou supostamente enviado por um vice-mi-nistro amigável para resolver amigavelmente as diferenças entreo embaixador, Gustavo arcos, e o seu primeiro secretário, JuanJosé Díaz del Real. O vice-ministro, arnold Rodríguez, tinha ou-vido rumores precisos: chegara-lhe a notícia de que o embaixadore o seu primeiro secretário pediam a cabeça um do outro depoisde terem chegado à embaixada como os melhores amigos (o em-baixador tinha solicitado o envio do seu primeiro secretário comoum favor pessoal), e temia-se até que a situação degenerasse emviolência. Díaz del Real já tinha matado um exilado cubano emSanto Domingo, quando era Ciudad trujillo e ele o embaixadorna República Dominicana. a ação dele quase lhe custou a vida eo incêndio da embaixada cubana. arcos, por sua vez, tinha partici-pado no assalto ao quartel Moncada em 1953 e, embora fosse umhomem pacífico, era capaz de se tornar violento. Os dois andavamsempre armados com pistolas. aldama era supostamente amigode ambos – melhor, quando chegou parecia mais amigo de Gus-tavo arcos do que de Díaz del Real, mas isso foi quando chegou.

Não demorou a mudar de lado – ou melhor, filiou-se numdos lados e pôs-se a favor de Díaz del Real contra Gustavo arcos.ao princípio de esguelha, falando na chancelaria quando estáva-mos sozinhos, depois passou a ser sempre porque estávamos sem-pre sozinhos, já que Pipo Carbonell (o outro funcionário cubano,

vI GuIlleRMO CaBReRa INFaNte

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terceiro secretário da embaixada) tinha feito causa comum comarcos e ao mesmo tempo tinha discutido com Díaz del Real, quetinha sido seu padrinho e que tinha pedido a arcos para o trazerpara a Bélgica. Neste cruzamento de lealdades e deslealdades di-ferentes e encontradas tentava eu sobreviver como adido cultural,sem me ligar a nenhum dos grupos, por minha conta e risco,usando a astúcia para sobreviver e em princípio conseguindo issoapenas devido aos meus conhecimentos de francês, pois num de-terminado momento era o único na embaixada (arcos agora numhospital checo, tentando que lhe curassem a ferida incurável quelhe tinha sido infligida durante o assalto ao Moncada) que falavafrancês. O equilíbrio era precário e num momento difícil, já queuma intriga de Carbonell me afastou de arcos durante algumtempo – até que este se apercebeu de que tinha demasiados ini-migos na embaixada e de que o meu trabalho era imprescindívelpara a sua sobrevivência. Nesta altura aldama quase já não falavacom arcos, mas não se tinha esquecido das sucessivas confidên-cias que arcos lhe tinha feito (como fazia a qualquer pessoa queconsiderasse ser sua amiga), muitas delas de índole política muitoséria, confidências acerca do carácter nefasto de Fidel Castro quequase chegavam a ser escandalosas. tudo isto era guardado poraldama (e também por Díaz del Real) para usarem no futurocontra arcos.

aldama vivia no último andar da embaixada, num quartopequeno, que tinha tornado quase um covil, no qual entrava di-retamente pelo elevador que subia da garagem. aí o fui ver umavez em que desapareceu durante vários dias e parecia estar doen-te, estendido na grande cama que o seu enorme corpo deitadotornava minúscula. estava com uma das suas frequentes ne-vralgias faciais. a empregada, uma galega amável, ignorante ebondosa ouviu-o queixar-se uma noite e levantou-se para lhe per-guntar se se sentia mal e ele tinha respondido que ninguém lhe

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fazia mal. Contou-me isso no dia seguinte, de modo que subi àtoca dele. tinha um cheiro indescritível, uma vez que a única ja-nela estava hermeticamente fechada e o quarto às escuras. Foi aúnica vez que o vi sem os óculos escuros e pude observar o seuolho vesgo, aumentado e morto, como se fosse de vidro, talvez devidro. Com o outro observava todos os meus nervosos movimen-tos no quarto – e confesso que na altura tive medo: não sei de quê,não sei de quem, talvez recordasse o passado terrível que tinhaproduzido este ciclope, talvez tivesse então uma intimação do fu-turo e do papel que este inválido aparente desempenharia nele. Seique saí do quarto com suficientes elementos para sentir pena dele– mas não sentia nenhuma.

Com o passar do tempo a situação tornou-se insustentávelna embaixada. Houve uma altura em que Díaz del Real tirou apistola da gaveta da secretária e foi ter com Gustavo arcos, queo tinha chamado, enquanto dizia, engatilhando a arma:

– Mato esse filho da puta hoje mesmo!lembro-me de que fiquei sentado no meu gabinete, imóvel,

à espera de ouvir as detonações. Passou um período de tempo de-masiado longo e por fim Díaz del Real reapareceu, tirou a pistolada cintura, descarregou-a e voltou a metê-la na gaveta – tudo istosem falar. Nunca mais voltou a mencionar o incidente nem deuquaisquer explicações sobre as razões que o tinham levado a nãomatar o embaixador nesse dia. Foi assim que tive a impressãodefinitiva de que na realidade pensava matá-lo e que o ato de car-regar a arma era muito mais que uma mera bravata.

a intolerável situação amenizou-se um pouco quando Díazdel Real foi transferido para a Finlândia como encarregado de ne-gócios. Isto aconteceu no início do verão de 1964. Pouco depoisas relações entre mim e Gustavo tornaram-se imbatíveis. Por seulado, aldama não mostrava nenhuma inimizade em relação amim e tinha herdado o antigo escritório de Díaz del Real, ainda

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que, ao contrário deste, passasse o dia sem fazer nada. Nesse verãopassaram-se muitas coisas. a minha mãe estava de visita à Bélgicadesde o princípio do inverno e preparava-se para regressar a Cubavia Madrid, onde já estava o meu irmão a trabalhar como adidocomercial. Fui operado à garganta. lembro-me de que a últimacrise de amigdalite a apressou ou a provocou uma saída com alda-ma, que se empenhou em visitar um bar belga assombrosamentechamado New york – digo assombrosamente porque era geridopor uma beldade marroquina. Foi no regresso, nessa noite, que vo-mitei tudo o que tinha bebido e comido (aldama tinha vomitadona rua: vinho e restos não digeridos de comida) e a febre subiu--me até aos quarenta e meio. No dia seguinte o médico recomen-dou uma operação de urgência e quinze dias depois estava semamígdalas e a despedir-me da minha mãe e das minhas filhas, queesperava ver em Cuba, quando uma euforia pós-operatória me fezperceber que ainda as poderia ver em Madrid. e foi assim queiniciei a viagem no meu velho (por ser querido e não por razõestemporais) Fiat 600, de Bruxelas a Málaga, passando por Madrid,para apanhar a minha mãe e as minhas filhas e, com a minha mu-lher, percorrermos o sul de espanha.

No meu regresso, quinze dias depois, descobri que arcos(eram já meados de agosto) estava a planear uma nova viagem deférias a Cuba. Não viria ninguém de Havana para o substituir esegundo a hierarquia diplomática devia ser eu a ocupar o cargode encarregado de negócios nesse ínterim. Foi então que aldamacomeçou a mudar, embora eu não tivesse dado logo conta disso.Poucos dias antes, pelo contrário, ele tinha comprado uma má-quina de filmar de 8 mm e usado um rolo inteiro para filmar aminha mãe. Isto aconteceu antes de ela e eu termos partido paraespanha. Quando voltei ainda falávamos na cave, onde ficava achancelaria, e ele referia-se a lá em cima (o primeiro andar, ondeestavam os gabinetes do embaixador, a residência, o segundo andar,

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onde viviam os inimigos prediletos dele, arcos e Pipo Carbonell)como o lugar onde viviam os maus. eu, ao contrário deles, per-tencia a aqui em baixo. Mas em breve surgiram na conversa deleremoques referentes às minhas boas relações com o embaixador– arcos não tinha nessa altura outro nome para ele, embora al-guns meses antes lhe chamasse «o meu irmão Gustavo». Depoisa parca conversa passou a ser constituída completamente por re-moques, até que caiu no seu mutismo habitual, ainda que conti-nuasse a descer à cave e se sentasse a olhar papéis em branco como seu único olho. Pouco depois até isto deixaria de fazer.

Finalmente arcos regressou a Cuba e a mulher de PipoCarbonell acompanhou-o, ficando Pipo na embaixada durantemais algum tempo. eu passei para o primeiro andar a fim de tra-balhar como encarregado de negócios e mudei-me para o segundoandar com a minha mulher. aldama continuava a viver na tocado último andar. então o relacionamento comigo tornou-se maishermético, se é que isso era possível, ao mesmo tempo que deixoude aparecer na embaixada. levantava-se tarde e almoçávamos to-dos quase em silêncio, não só porque aldama não dizia nada, mastambém porque Pipo Carbonell receava falar à frente dele. Nes-ses alegres almoços aldama sentava-se diante de um aparadorque ficava por trás da mesa e, refletido nos espelhos do móvel, viatudo o que se passava nas suas costas. Às vezes surpreendia-lhe oolho ubíquo num dos lados dos óculos escuros e havia nele um bri-lho único. em certas ocasiões sorria para dentro. Sempre sem dizeruma única palavra. a presença dele nos almoços era tão assusta-dora que Pipo Carbonell lhe pôs a alcunha de tontón Macute.Não demorou muito para eu lhe chamar Jambón primo direito deJames Bond, em concordância com as suas ocupações favoritas.

Se aldama tinha vindo, como afirmou à chegada, para dei-tar óleo diplomático nas encrespadas águas cubanas na Bélgica,a missão tinha terminado com a partida de Díaz del Real para

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a Finlândia e agora ficava sem ter o seu segundo objetivo por per-to, já que também Gustavo arcos estava fora da embaixada, emCuba. Mas então começou a sair em misteriosas missões em Bru-xelas. embora estivesse mal equipado para as executar (não falavafrancês nem inglês e muito menos flamengo e não havia comuni-dade cubana na Bélgica), às vezes passava dois dias nestas saídassem regressar à embaixada. É verdade que uma vez, algum tempoantes, tinha sido contactado por um cubano exilado, alguém quecoxeava porque tinha a alcunha de Coxo Kaysés ou coisa parecida.lembro-me de o ver ao crepúsculo belga quando saía da embai-xada e Díaz del Real lhe perguntava se não ia armado, a perguntaa ser feita quase em código mas em voz suficientemente alta paraser ouvida, bem como a estoica resposta «Não, companheiro, nãoé preciso» ao mesmo tempo que transformava as mãos em punhos.Nunca soube qual foi o resultado da entrevista com o supra refe-rido coxo, mas parece que não saiu nada dela: aldama continuouna embaixada e nenhum coxo veio engrossar as bastante magrasfilas de exilados que faziam a viagem de regresso a Cuba.

agora as missões pareciam ter outra natureza e aldama mos-trava-se cada vez mais misterioso, quase sem falar com ninguém.este silêncio veio a ser aparatosamente interrompido pelo incên-dio do automóvel dele. aldama tinha trazido consigo (é uma ma-neira de dizer, já que ele veio de avião e o carro de barco) umvelho Buick preto e enorme, que devia ter, no mínimo, dez anos.Como não tinha lugar na garagem da embaixada estacionava-o narua, encostado ao passeio. Quando chegou o tempo frio, o Buick,obviamente habituado ao calor de Cuba, recusou-se a pegar e alificou durante grande parte do inverno, parado e coberto de neve,soturno, quase sinistro na sua composição de oximoro: um auto-mo imóvel, antediluviano, gangsteresco e para sempre inútil. alificou estacionado até à primavera quando parece que lhe arranja-ram o defeito. então pediu-me – e eu concedi – que lhe arranjasse

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um lugar na garagem. e era na garagem que aldama passava otempo quando estava em casa. De lá partiram certo dia uns gritosestentóreos chamando-me com urgência: todos – Pipo, a minhamulher e eu – corremos pelas escadas abaixo para darmos com oautomóvel em chamas e aldama paralisado pelo terror do fogo.Foi Pipo quem se lançou sobre o motor e com as mãos quasenuas apagou o incêndio, surgido, precisamente, na ignição. alda-ma tinha estado a mexer no mecanismo e havia provocado o fogo.Nesse dia, mais tarde, já depois de ele ter saído – coisa que fezimediatamente após Pipo ter controlado o incêndio – rimo-noscomo loucos, não tanto da desgraça causada pelo seu autor mas dacara de aldama em pânico. O automóvel, agora definitivamentefora de combate, ficou paralisado dentro da garagem: melhorassim: já não produzia a lamentável impressão que dava eterna-mente estacionado na rua, para espanto dos vizinhos bien que tí-nhamos e deleite dos rapazes que aproveitavam o carro comoparagem das suas patinagens rua abaixo.

a embaixada teve uma secretária substituta que era umabelga jovenzinha, bastante feiota de cara, mas alta e gordita, comas massas suficientes nas ancas e nas nádegas e nas mamas parasatisfazer o gosto de um cubano. ela, por seu lado, andava à pro-cura de quem lhe fizesse a corte. Primeiro tentou comigo e nãoteve, é claro, muita sorte: mesmo que não fosse casado nunca lheteria posto um dedo em cima, não tanto por pruridos diplomáti-cos como por motivos estéticos: detestava aquela boca de peixe epara mim as bocas femininas são muito importantes. Depois ten-tou com Pipo e teve menos sorte. Finalmente, parece que chegoua vez de aldama: a verdade é que os vimos a passear num parque,de mãos dadas, algum tempo depois de a rapariga ter deixado detrabalhar na embaixada. Isto não tem a menor importância a nãoser pelo facto de que, a seguir à partida de aldama, uma belgacom voz nada jovem telefonava para a embaixada para amaldiçoar

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quem tinha feito regressar o seu agustín a Cuba. era evidenteque o nosso Jambón era tão eficaz com os espiões como com asdamas, honrando assim o seu primo inglês.

Falando de espiões. aldama, que não trabalhava na embai-xada, que nunca trabalhou já que não havia nada que soubesse oupudesse fazer, deixou de fazer as suas estranhas saídas para se con-centrar na embaixada. tinha-se coligado com o conselheiro co-mercial (que pertencia a outro ministério, que tinha escritórionoutra zona de Bruxelas, que não vivia na embaixada) para, se-gundo murmurou um dia, «pôr aqui as coisas a claro». «aqui» eraobviamente a embaixada – ou talvez se referisse a toda a Bélgica?Noutra ocasião, porque a minha mulher tinha feito uma limpezacabal da cozinha da embaixada, na qual ia cozinhar e tinha en-contrado muito desmazelada, disse entredentes: «Parece mentira,os contrarrevolucionários fazem mais por Cuba que os revolu-cionários.» Deixei passar o comentário, como muitos outros, por-que acreditava que ele tinha os dias contados – Gustavo arcostinha-me prometido, no momento em que tomara a decisão deme encarregar da missão, que aldama estaria de regresso a Cubadentro de poucos dias. esses poucos dias, convém dizer, tornaram--se primeiro semanas, depois meses e por fim uma eternidade.agora a atenção de aldama tinha-se voltado para os assuntospessoais de arcos. estava sobretudo interessado em deitar a mãoà situação da conta bancária dele, sabe Deus com que intenção:talvez para a enviar para Cuba, embora arcos não tivesse cometi-do outro crime que não fosse pôr no banco as suas poupanças pes-soais. Como outras vezes, foi tão eficaz como discreto. «O senhorembaixador está rodeado de chamas», disse um dia ao sentar-se àmesa para almoçar. e não disse mais nada. Mas isto foi suficientepara que a minha mulher e eu nos preocupássemos a guardar ascostas de arcos. liguei para o banco e dei instruções para que nãomandassem mais extratos da conta do embaixador enquanto este

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não regressasse. Simultaneamente, a minha mulher deu-se ao tra-balho de se levantar todos os dias muito cedo para esperar pelo pri-meiro correio, que chegava às oito. aldama levantava-se sempretarde, mas uma ou duas vezes a minha mulher viu-o a rondar pelacasa, talvez à espera do correio, talvez à procura de outra coisa. Maso quê? Que mais poderia haver na embaixada que prejudicasse ar-cos em Cuba? Que se poderia fazer para nos livrarmos de aldama?

em dezembro tive de deixar duas vezes a embaixada. No dia24 a minha mulher e eu fomos a Rouen, em França, em cujos ar-redores estava temporariamente a viver Carlos Franqui. Passámoslá dois dias, preocupados com o que poderia acontecer entre al-dama e Pipo, e regressámos no dia 26. Felizmente não tinhaacontecido nada. No dia 28 parti para Barcelona, onde iria recebero prémio Joan Petit Biblioteca Breve, atribuído pela editora SeixBarral a um romance meu, o primeiro. estive mais dois dias emBarcelona, sozinho, e durante esse tempo preocupou-me muito oque poderia aldama fazer contra a minha mulher na embaixada.Quando regressei descobri que aldama e o conselheiro comercial(cujo nome nem sequer vale a pena mencionar) tinham estadosempre a rondar a casa e feito um telefonema misterioso paraMadrid, aparentemente para a embaixada de Cuba nessa cidade.Como acontecera noutras vezes, aldama repetia a sua técnica demisteriosa indiscrição ou de indiscreto mistério. Na realidade, o ob-jetivo dos seus atos era aterrorizar – mas que medo poderia inspi-rar este pobre aprendiz de agente secreto? Que mistérios poderiarevelar? Que conspirações descobrir? Na embaixada, como nasnossas vidas, tudo era diáfano e transparente: eu não passava de umfuncionário que tentava cumprir o seu dever e a minha mulher eCarbonell, enquanto lá esteve, procuraram ajudar-me na conse-cução dessa tarefa. Não havia razão para temer aldama, o que erapreciso era desfazermo-nos dele, deste peso morto sem funções.e contudo a sua técnica de incutir medo tinha alguma eficácia.

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Consistia em deambular pelo edifício às horas mais inespe-radas. Às vezes sentíamo-lo a passear pelos corredores às três damanhã. Outras vezes desaparecia, para aparecer quando menos seesperava. Não era raro vê-lo reaparecer depois de vários dias deausência e entrar na embaixada como se tivesse acabado de sairdela. No início ainda murmurava uma desculpa qualquer que davaa ideia de que essas saídas eram importantes obrigações, masdepois deixou de se incomodar a justificar esse estranho compor-tamento. Numa dada ocasião apareceu no meu gabinete para mepedir que lhe trocasse uma nota de cinquenta dólares americanospor moeda belga. Como é que esta nota lhe chegou às mãos con-tinua a ser um denso mistério, mas julgo que o objetivo delequando me pediu para que fizesse o câmbio – podia ter feito issoem qualquer banco ou agência cambial – foi espicaçar a minhacuriosidade e levar-me a perguntar-lhe de onde provinha aqueledinheiro. (Houve na atitude dele uma vaga nota que pareciainduzir-me a pensar que aquele dinheiro tinha sido obtido deagentes americanos, mas este gesto foi tão confuso que nunca pudeassegurar-me de era isso que pretendia.) estando assim as coisas,telefonei a Gustavo arcos várias vezes para Havana a fim de lhepedir que me livrasse da presença assustadora de aldama. Massem resultados favoráveis. uma vez em que tinha pedido a cha-mada quando aldama não estava na embaixada – aproveitavasempre as ausências dele para comunicar com arcos –, ela che-gou no momento em que ele regressava sub-repticiamente. Foidigno de um filme de suspense estar eu à espera da chamada nacave enquanto ouvia em cima aldama a passear-se pelo primeiroandar da chancelaria. lá acabei por conseguir levantar o auscul-tador ao primeiro toque e falar com arcos em Havana sem quealdama desse conta de nada.

Num desses dias fomos visitados por luis Ricardo alonso,embaixador cubano em londres, e mulher. Como velho amigo

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que era, expliquei a luis Ricardo o que se passava com aldama eele teve a oportunidade de ver isso com os seus próprios olhosdurante o pouco tempo em que permaneceu na embaixada.tam-bém recebemos a visita de Juan arcocha, que era attaché de im-prensa em Paris, e juntos, arcocha e alonso, planearam como melivrariam de aldama: arcocha diria ao embaixador dele em Pa-ris e alonso falaria com alguém importante do ministério, pre-sumivelmente o próprio ministro. também houve uma reuniãode chefes de missão na europa Ocidental e aí alonso e Carrillo,o embaixador em Paris, parece que apresentaram o caso ao vice--ministro arnold Rodríguez porque numa das sessões alonsodisse-me, falando do outro lado da mesa, «Já te livrámos do teupesadelo». Depois, numa viagem em separado que fiz a Paris parame voltar a encontrar com o vice-ministro, este disse-me, expres-samente: «Informa aldama que tem de regressar de imediato aHavana», e a seguir acrescentou: «Diz-lhe isso com cuidado nãová ele exilar-se.» era a primeira vez que ouvia falar dessa possibi-lidade, mas aquela advertência ligava as saídas misteriosas e a notade cinquenta dólares e a sua hermética missão com uma hipoté-tica deserção.

Mal regressei a Bruxelas, mandei chamar aldama através dasecretária. Já tinha observado que as minhas idas a Madrid e Paris,de que o tinha informado ex professo, o haviam deixado ligei-ramente nervoso, nervosismo apreciável por cima do seu herme-tismo habitual. então, quando entrou no meu gabinete, juro quequase o vi estremecer, estremecimento que se tornava mais perce-tível por causa da sua gigantesca estatura. Receava que ele tivesseuma reação inesperada quando tomasse conhecimento da trans-ferência para Havana e não nas melhores condições, tendo eu dei-xado por isso aberta a gaveta na qual Gustavo arcos guardavaa sua pequena pistola de bolso. Soa a melodrama barato, mas es-tava disposto a usar a arma se aldama fizesse o menor gesto

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ameaçador – coisa que não seria tão estranha nele como possa pa-recer. Mas aceitou a notícia do seu regresso a Cuba sem mostrasde violência. apenas pediu que se lhe concedesse mais tempo«para poder embarcar o carro em amberes e tratar de assuntospessoais em Bruxelas». É claro que isto não passava de uma me-dida dilatória. Para o dissuadir, disse-lhe aquilo que arnold tinhaacrescentado, esclarecendo-o de que as suspeitas de que pudessepedir asilo provinham das altas hierarquias do ministério. esta re-velação pareceu cegar-lhe o único olho e mexeu-se incomodado.a partir daí deixou de me tratar por tu. Disse-me: «Bom, com-panheiro, solicito-lhe que seja o senhor a enviar um telegrama aoministério transmitindo o meu pedido de embarcar apenas den-tro de quinze dias.»

ele tinha o direito de fazer aquele pedido e por isso enviei otelegrama. Quando chegou a resposta afirmativa à sua solicitação,pareceu empinar-se e disse: «Bom, parece que afinal no ministé-rio sabem o que fazem.» essa foi uma das últimas vezes em quefalei com ele e havia na voz e nos gestos dele uma clara declaraçãode guerra: era visível que a partir daí se tinha proposto destruir--me e que para conseguir isso não só ia obter a ajuda do irmão,mas também congregar a sua velha influência nos organismos desegurança do estado. essa frase foi a primeira pedra ou o primei-ro projétil que me atirou para me afundar: agora tornava-se óbvioque não descansaria enquanto o não fizesse. a pontaria dele eramá, mas contava com a ajuda dos padrinhos, ajuda que eu alegre-mente – na euforia do triunfo do bem sobre o mal – descartei pordesprezível, mas no fim de contas verificou-se que o bem tinhatriunfado sobre o mal apenas momentaneamente. O futuro ime-diato (e ainda mais: o futuro mediato) se encarregaria de mostrarque a minha aparente segurança nessa altura não passou de umaforma velada de hybris.

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