GRIMM, Dieter. Condições da produção democrática do direito.
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Transcript of GRIMM, Dieter. Condições da produção democrática do direito.
Dieter Grimm.
Condições da produção democrática do direito.
(tradução para uso acadêmico)
Original: GRIMM, Dieter. Bedingungen der demokratischen Rechtsetzung.
In: GÜNTHER, Klaus & WINGERT, Lutz. Die Offentlichkeit der
Vernunft und die Vernunft der Öffentlichkeit: Festschrfit für Jürgen
Habermas. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 489-506, 2001.
I.
[p.489] Jürgen Habermas dedicou-se, desde cedo, ao problema da validade de normas
jurídicas, assim como ao processo legislativo em sua relação com a legitimação do poder. Algo
que, inclusive, voltou a fazer parte de suas obras posteriores. De acordo com dois de seus
recentes trabalhos1, podemos dizer que, para ele, como todo poder exige uma certa forma
jurídica, ele tem que se alimentar da pretensão de legitimidade do próprio direito. Isso seria
duplamente verdadeiro no estado democrático constitucional: materialmente, graças à
conformidade da legislação com os direitos fundamentais e, formalmente, graças à forma do
processo legislativo no qual todos os possíveis implicados podem tomar parte discursivamente.
Nenhuma dessas garantias é independente uma da outra, senão se apóiam reciprocamente. Os
direitos fundamentais assegurariam – entre outras coisas – os pressupostos comunicativos da
formação democrática da vontade, assim como, inversamente, os procedimentos democráticos
aumentariam as chances de respeito às liberdades juridicamente fundadas.
O modelo é, evidentemente, rico em pressupostos2. As condições elementares para a
legitimidade da regulação jurídica consistem em uma igualdade de chances e direitos de acesso
na produção do direito, por parte de todos os cidadãos. Como hoje tais condições são largamente
enfraquecidas seja pelo número de implicados, seja pela complexidade dos objetos da regulação,
seja pela quantidade de decisões necessárias, a decisão democrático-popular acerca do direito
torna-se, em realidade, a exceção. Em regra, profissionais cada vez mais numerosos e distintos
são encarregados dessa tarefa, discutindo e decidindo sobre o conteúdo das normas a serem
1 HABERMAS, Jürgen. Über den internen Zusamennhang von Rechtstaat und Demokratie. In: Die Einbeziehung
des Anderen. Frankfurt am Main, 1996, p. 293; Idem, Zur Legitimation durch Menschenrechte. In: Die
postraditionale Konstellation. Frankfurt am Main, 1998, p. 170. Ambos incluídos em: Idem, Faktizität und
Geltung, Frakfurt am Main, 1992. 2 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung (Cap. 1), sobretudo p. 208 ss; GRIMM, Dieter. Die politische
Parteien. In: BENDA, Ernst et allí. (Orgs.) Handbuch des Verfassungsrechts, 1994, p. 599.
produzidas. O lugar que eles habitariam seria, senão, o parlamento, de onde o poder executivo
recebe a pauta legal para suas próprias ações. [490] Por seu turno, os parlamentares, em sua
atuação legislativa, são observados, estimulados e criticados por seus mandatários. Para tanto,
estes últimos necessitam, de sua parte, de observadores e intérpretes profissionais nos meios de
comunicação, sem os quais, por outro lado, seus representantes não poderiam ter uma idéia clara
acerca da ressonância de suas incumbências no público representado pelos eleitores.
A separação entre a detenção e o exercício do poder estatal nos traz, evidentemente, o
problema vinculação dos representantes ao seu eleitorado. Se, na democracia representativa,
autores e destinatários das leis se separam, a própria idéia de democracia como autonomia dos
cidadãos exige, conceitualmente, que os destinatários das leis possam ser ao mesmo tempo
entendidos como seus autores3. A igualdade de direitos e chances deve ser, portanto, garantida
não só no que tange à atividade legislativa, mas, sob essas condições, também no que tange à
escolha dos representantes. Dessa forma, aquele imperativo normativo de igualdade valeria de
modo bem amplo, mas valeria, sobretudo, no que se refere à escolha daquele grupo proveniente
da população que disputa seu apoio eleitoral, pois restrições nesse plano teriam, eles mesmos, um
relevante efeito falsificador da vontade democrática.
A eleição precisa ser, portanto, amplamente livre. Isso pressupõe a formação livre de
alternativas elegíveis e veda restrições e diminuições da capacidade de concorrência que possam
ser impostas apenas a um único grupo. A liberdade de escolha proíbe ainda qualquer pressão
sobre os eleitores assim como qualquer constrangimento ou restrição relativa ao voto. A
liberdade também implica, porém, que seja possível uma discussão ilimitada sobre as pessoas e
programas envolvidas nas eleições. Se é esperado da minoria que esta se dobre à vontade da
maioria, ela tem de ter, por outro lado, ao menos a oportunidade de introduzir suas posições no
debate. Estreitamentos artificiais da discussão são incompatíveis com essa premissa. Daí se
conclui que os meios de comunicação devem manter, por seu turno, uma posição de distância
crítica em relação à política, informando amplamente os eleitores a partir dessa posição. [491]
Finalmente, os vencedores das eleições não podem usar a autorização para legislar adquirida para
excluir do processo político os perdedores ou para prejudicá-los na disputa que continua durante
o intervalo até as próximas eleições.
3 HABERMAS, Jürgen. Über den internen Zusamennhang von Rechtstaat und Demokratie. In: Die Einbezihung des
Anderen. Frankfurt am Main, 1996, p. 298.
Por sua vez, para que o direito produzido pelos representantes seja reconhecido como
legítimo, é fundamental que o processo discursivo que precede à decisão tenha efeitos sobre o seu
resultado. Num sistema de concorrência democrática, isso não significa que todas posições e
interesses tenham que ser atendidos. Ao final, a maioria tem sempre o direito de fazer valer sua
posição. Isso exige, no entanto, que ela entre abertamente na discussão, fazendo-o com respeito
aos diferentes pontos de vista. Mas só chegamos a esse ponto, por outro lado, se os deputados
tiverem mandatos livres, pois, de outro modo, a discussão parlamentar não teria qualquer
relevância decisória. As discussões e decisões que ali se passam tem ainda que se passar
publicamente, para que, assim, a discussão extraparlamentar possa com ela se relacionar
possibilitando que os eleitores estejam aptos a circunstancialmente corrigi-la numa próxima
eleição, de acordo com decisões de preferência fundamentadas.
Finalmente, os resultados dos processos decisórios devem ser aplicáveis a todos os
incluídos no grupo representado pelos autores da lei, pois, do contrário, o nexo de interesses entre
autores e destinatários estaria rompido. Para a lei, a generalidade é compreendida de modo
conceitualmente bastante estreito diferenciando-se completamente de qualquer idéia de uma
decisão isolada, particular, arbitrária. Essa diferenciação, contudo, não pode ser confundida com
a existência de decisões singulares e particulares que guardem, ainda assim, a forma legislativa.
A garantia tem de ser quanto à generalidade potencial de destinatários, se quisermos ver
assegurada a força racionalizante implícita que a lei contém por abstrair, nesse sentido
delimitado, quaisquer referências a conteúdos caracterizadores dos destinatários. Uma tal
proibição vale sobretudo para leis retroativas, porque o a regulação das relações a que elas visam
só pode se dar mediante o conhecimento prévio do público. A forma legislativa contém, nesse
sentido, uma preciosa vantagem: ela representa um controle de formas arbitrárias de dominação,
uma previsibilidade do exercício do poder estatal, uma conexão da administração incapaz de se
legitimar por ela mesma com o contexto legitimatório democrático e, por fim, uma possibilidade
de apreciação judicial do direito.
[492] Muitas dessas suposições são, no entanto, contraditórias em relação aos interesses
dos atores políticos que desejam a efetivação ilimitada de seus pontos de vista. Estes agentes
permanecem, então, em busca de autorização legislativa para fortalecer as suas próprias posições
ou para enfraquecer aquelas de seus adversários. Exatamente por isso aqueles pressupostos tem
que ser assegurados constitucionalmente. A constituição não pode, entretanto, garantir
imediatamente todos aqueles pressupostos normativos. Algumas das condições da própria
legislação democrática dependem muito mais da disponibilidade dos implicados que sempre
podem se esquivar de alguns desses preceitos. A constituição, nesses casos, limita-se a
estabelecer condições de possibilidade de existência normativa segundo estruturas e
procedimentos que favoreçam a consecução daqueles objetivos. Evidentemente, a posição da
constituição é muito mais precária que a de leis comuns, pois ela se impõe aos próprios
detentores do poder, não dispondo, portanto, de qualquer instância impositiva acima de si mesma.
E tal fraqueza do direito constitucional não pode ser, por sua vez, totalmente compensada por
meio da jurisdição constitucional, somente atenuada.
Os pressupostos do direito legítimo, portanto, são sempre apenas razoavelmente
cumpridos. O déficit mais relevante verificado no início do Estado de Direito consistiu em que os
representantes detinham poder limitado de decisão, localizando-se esses poderes decisórios,
sobretudo, no interior dos partidos políticos. Isso é veraz sobretudo no que se refere a grandes
democracias com eleições continuadas e inquebrantáveis necessidades decisórias. Somente com a
redução e simplificação dos processos de decisão podem esses Estados fazer tais escolhas terem
efeitos de imposição jurídica. A disputa partidária também funciona como um importante
mecanismo de retro-acoplamento entre encarregados e comitentes. São os partidos oriundos da
própria sociedade que superam o abismo entre estado e sociedade. Na instituição estatal eles
podem ocupar posições de mando mediante eleições, configurando, portanto, um Estado do Povo.
Por outro lado, são próprios partidos que produzem, sob as condições de uma política cada vez
mais profissionalizada, aquele que talvez seja o maior ponto fraco do sistema democrático.
Esse problema tem suas raízes no fato de que os partidos políticos, para poderem, sob o
quadro das permissões constitucionais, transformar seus programas em normas jurídicas
impositivas, não têm como prescindir de revesti-los com o poder estatal que as eleições oferecem.
[493] Desde seu ponto de vista, para que isso se torne possível, eles tratam como “racional”
apenas aquilo que interfere no acúmulo ou perda de poder. Os partidos operam, então, sob o
imperativo da obtenção e manutenção de poder. Eles se entendem nesse código e somente por
meio dele percebem os sinais provenientes de seu meio ambiente, medindo a partir dele o seu
sucesso ou fracasso. Na verdade, tal código pode ser interpretado de diferentes modos, podendo,
no entanto, ser ignorado apenas ao custo de fracassos. Com efeito, os profissionais se comportam
como quem se orienta apenas mediante esse código. Isso, aliás, não é uma especificidade da
política, senão uma condição sob a qual opera qualquer sistema em uma sociedade
funcionalmente diferenciada. Com efeito, é no sistema político de cujos partidos são a força
motriz onde podem ser mais facilmente reconhecidas as conseqüências prejudiciais do egoísmo
dos diferentes subsistemas; isso sem que se possa desobrigar o processo político em relação
àquelas condições acima mencionadas.
Isso evidentemente tem repercussões para a normatização jurídica. O controle das funções
políticas pelos partidos trouxe consigo a conseqüência de que hoje também os processos
deliberativos e as próprias decisões se separam. As discussões mais relevantes se deslocam do
parlamento para os partidos. Caso as decisões – graças a conjunturas políticas ou mesmo jurídico-
constitucionais – tenham de se dar de acordo com uma maioria supra-partidária, deslocam-se
então para o círculo das coalizões ou mesmo das discussões entre as lideranças da maioria e da
minoria. No parlamento, como lugar da deliberação, não há mais qualquer discussão deliberativa
com efeitos sobre o resultado. Certamente, só o parlamento pode emprestar validade jurídica à
decisão política. Porém, as discussões que precedem as votações não mais necessitam serem
levadas a cabo com qualquer intenção real de convencimento. Com efeito, os diferentes pontos de
vista são, nesse contexto, apenas “representados” para o público. Por isso, tais discussões podem
ser realizadas até mesmo para um parlamento vazio, e ainda quando da votação a presença se
torna cada vez mais irrelevante, já que apenas as decisões da maioria são realmente admitidas.
A realidade parlamentar se aproxima, sob tais circunstâncias, de um mandato imperativo
que não se vincula à noção de um livre mandato eleitoral, mas, na verdade, às decisões da
bancada parlamentar. As garantias constitucionais relativas ao mandato livre tem assim somente a
função, certamente não desprezível, de assegurar aos possíveis dissidentes uma posição
temporária de imunidade e, assim, realizar os pressupostos da pluralidade e da discussão intra-
partidárias. [494] Apesar das sessões plenárias do parlamento só tomarem lugar depois de já
terem sido formadas os convencimentos dos parlamentares, permitem-se os debates, em uma
forma reduzida, sempre, contudo, com atenção às posições partidárias. Isso porque as discussões,
onde quer que sejam realizadas, ajudam o público a formar seu próprio juízo. Onde o conteúdo da
lei não advém das negociações públicas entre confrontantes políticos, não se verifica essa
representação de pontos de vista opostos tão importante para a formação da opinião pública e,
portanto, as respectivas imposições de responsabilidades.
Entretanto, essas alterações, exaustivamente descritas pela teoria democrática, não fazem
com que os processos constitucionais previstos para a produção do direito percam de todo seu
sentido. Em verdade, o que se vê é que elas levam a desvios nos próprios objetivos da
democracia. A deliberação não se extingue ela mesma, mas é deslocada e fragmentada. Com
efeito, ela é nomeadamente levada a cabo no interior dos partidos. Porém, como seu resultado
tem de seguir o processo parlamentar para adquirir força de lei, as decisões têm ainda de se
referir às reuniões parlamentares. As discussões intra-partidárias podem ser conduzidas sem o
respeito às críticas da oposição e sem as reações da opinião pública. Mas, por outro lado, elas
devem certamente antecipá-las, fazendo com que os adversários e o público estejam virtualmente
presentes. No que segue, devemos tratar, diante de tais circunstâncias, de duas novas tendências
teóricas que tocam os pressupostos desse modelo e, no mínimo, ameaçam a racionalidade
democrática da produção do direito. Na primeira, trata-se da perda de significado da lei, na
segunda, trata-se de um novo modo de surgimento e, logo, um respectivo substituto para a lei.
II.
A afirmação de que a lei “perde significado” parece difícil de ser aceita diante da já
conhecida queixa quanto a uma “maré legislativa” existente na Alemanha. Ela se volta no entanto
apenas a uma pequena parte dos intentos legislativos da política. E a afirmação tem, com efeito,
causas preponderantemente objetivas. [495] Entre elas sobressaem os custos externos originados
pelos diferentes subsistemas sociais na perseguição de seus objetivos em outros subsistemas.
Nesse ponto, originalmente, posicionam-se, num primeiro plano, os custos sociais da economia
de mercado. Isso ao mesmo tempo em que os riscos provenientes dos avanços técnico-científicos
e dos usos comerciais de seus resultados tornam-se a fonte fundamental de novas e crescentes
necessidades de regulação. Nessas áreas, a regulação jurídica é, em parte, até mesmo um
mandamento constitucional, graças aos imperativos associados ao Estado de Direito. Nesse
sentido, de acordo com a atual compreensão, os direitos fundamentais não só funcionam como
limites para o Estado, senão também o obrigam a proteger contra ameaças por parte de terceiros
as liberdades fundamentais dos cidadãos. Tais deveres de proteção são primariamente elaborados
em lei. Além disso, as cláusulas sociais impedem que o Estado conte apenas com o potencial
regulatório implicitamente contido no próprio mercado.
Tal circunstância também se mostra verdadeira em uma nova fonte de necessidades de
regulação legal: a privatização do que até então havia sido desempenhado pelo estado. Algo que
foi causado, em parte, pelo direito comunitário europeu, em parte, pelo avanço das idéias
neoliberais e, em parte, pelas necessidades financeiras dos Estados. As privatizações foram
justificadas graças ao suposto crescimento da eficiência administrativa, à diminuição dos preços e
a um incremento da disponibilização de serviços para os cidadãos em conseqüência da
concorrência. Elas têm também um outro lado. Enquanto o Estado, ao prestar serviços públicos,
encontra-se imediatamente submetido às imposições jurídicas materializadas na carta magna e
sobretudo nos direitos fundamentais e sociais, os agentes privado não se submetem da mesma
forma a tais dispositivos. Os direitos fundamentais lhes garantem, aliás, a livre disposição sobre
seus recursos. Igualmente, porém, devem ser garantidos padrões fundamentais de tratamento
igual, inclusão social e atenção aos interesses legítimos de terceiros. Algo que só pode ser feito
por lei. De fato, em lugar de diminuí-los, até hoje as privatizações aumentaram os imperativos
para a regulação.
A contradição entre o incremento legislativo e a perda de significado das leis se resolve se
nós fazemos uma diferenciação entre quantidade e efetividade. Assim, sabemos que, enquanto o
número de leis cresce, seu poder de regulação diminui4. Essa “fraqueza” disseminada não
significa, no entanto, que as leis simplesmente percam sua vigência, tampouco que tal
circunstância seja algo isento de problemas. [496] Déficits de implementação podem surgir
apenas onde as normas possuem um satisfatória vigência regulativa (regulative Kraft), mas lhes
faltam vontade ou meios para que possam se afirmar frente a destinatários refratários. A fraqueza
na implementação tem, portanto, suas causas fora da norma. Por outro lado, a perda desse poder
de regulação dos comportamentos, que independe do ramo jurídico de aplicação, relaciona-se
também com uma característica interna à própria norma. Isso se torna especialmente evidente no
direito administrativo – mas não somente – já que aí se deve controlar o comportamento de atores
privados assim como da administração estatal. As causas são freqüentemente buscadas em um
fracasso do legislador, mas, na realidade, elas se encontram num plano mais profundo.
Há algum tempo já é perceptível que, nesse ramo do direito, surge um novo tipo de
regulação que se afasta consideravelmente da forma clássica. Essa última é descrita,
tradicionalmente, como um programa condicional que segue o esquema “se, então”. A ação
4 Cf. GRIMM, Dieter. Wachsende Staataufgaben – sinkende Steurungsfähigkeit. Baden-Baden, 1990.
estatal contra os indivíduos é determinada integralmente por um pressuposto e pela previsão de
sua conseqüência de modo que a administração só pode executar um programa abstrato com
respeito a uma circunstância concreta legalmente tipificada. É comum a qualquer regulação
jurídica que possam surgir dúvidas, tornando necessárias, até mesmo, fórmulas em branco, as
quais permitiriam à administração uma reação adequada em casos difíceis ou de exceção não
contidos nas formulações abstratas da lei. Entretanto, no núcleo dessa definição, o
comportamento da administração está determinado antecipadamente, o que implica, ao mesmo
tempo, vantagens de previsibilidade e controle da ação estatal.
Esse tipo de regulação deve seu uso disseminado à ascensão do Liberalismo que rompe
com a finalidade estatal voltada para o bem-estar, reduzindo-a ao status de resultado de uma
ordem pressuposta na qual a justiça social é compreendida não como o produto de uma realização
política planejada, mas como conseqüência da atuação livre e individual. A lei serve ao
liberalismo, então, como reação a ameaças dessa estrutura social e para favorecer o necessário e
pronto restabelecimento da ordem contra transtornos, assim como para a limitação das próprias
ambições estatais de regulação da atuação individual. A atividade estatal que segue esse modelo
exibe três características. [497] Ela é reativa: antes que a ação seja executada, um perigo precisa
ameaçar concretamente ou um distúrbio precisa ser realmente verificado. Ela é pontual: a ação
estatal se esgota na reação contra a ameaça localizada ou no que seja necessário para o
restabelecimento da ordem. Ela é, finalmente, bipolar: a ação da lei se encerra numa relação entre
a coação estatal e o particular “subversivo”. Reduzida a essa forma, a intervenção estatal se deixa
compreender facilmente como um ato típico do esquema “se, então”. É justamente da redução
das finalidades estatais que resulta uma força determinante da lei relativamente aumentada.
Atividades estatais dessa forma existem sobretudo no que diz respeito ao campo central
da ação policial. Aqui os programas condicionais têm lugar de modo radical. No entanto, há
tempos, a atividade estatal não mais se reduz a esse único tipo. A partir de um processo iniciado
já no século XIX, foram cada vez mais restringidos modelos de auto-regulação social incapazes
de satisfazer as próprias expectativas. Ao mesmo tempo, o Estado passou a se encarregar, cada
vez mais, de novas atividades estruturadoras da ordem e do bem-estar sociais. Essa compreensão
ampliada da atividade estatal se diferencia da concepção clássica pois, de acordo com ela, é a
ordem, na qual os agentes privados são deixados, e que, agora, é perseguida pelo Estado, a qual
passa a ser o centro das atenções. Ela se torna, em realidade, para o Estado, uma
responsabilidade. Em contraposição à ação meramente conservadora de uma ordem pré-existente,
essa atividade estruturadora não é nem reativa, nem pontual, nem bipolar. Ela é muito mais
prospectiva, planificadora e multipolar.
Para a regulação de um tal tipo de atuação os programas condicionais se mostraram
amplamente inadequados. Em seu lugar entram cada vez mais em cena novos tipos de norma que
podem ser delineados em associação com aquilo que Luhmann apontou como programas
teleológicos (Finalprogramm)5. Esses tipos de programa fixam fins determinados para a
administração, que ela deve respeitar em sua perseguição finalística, e impõem declarações
acerca dos meios e regras de procedimento que devem ser adotados para tanto. Esse tipo de
programa não pode ser perseguido como programas condicionais. Ele exige decisões que sejam
adequadas passo a passo às situações e que devido, a essa dependência situacional, sejam
normativamente determinadas apenas maneira relativa. [498] O programa normativo a que
responde a administração só será completado no próprio curso da aplicação normativa. A lei
contém nesse sentido apenas a direção e a moldura em cujo interior a administração estatal se
controla a si mesma. O conceito de poder executivo é o aquele que mais acertadamente o
descreve.
A lei é evidentemente o meio pelo qual se realizam tanto o Estado de Direito como a
própria democracia6. Se ela perde poder de determinação, perdem-se também algumas das
garantias racionais relativas à produção democrática do direito, as quais estavam referidas, então,
ao tipo clássico de regulação. As decisões acerca dos programas de ação da administração
seguem as decisões do legislador parlamentar apenas como degraus de determinação debilmente
determinados. A rigor, não são mais os representantes eleitos que conduzem as discussões e
chegam a uma decisão, mas sim os membros da administração estatal. Seu discurso se diferencia
do parlamentar pois, enquanto esse temde se apresentar, pelo menos em algum momento,
“publicamente”, a atividade administrativa pode se passar sem isso. Na realidade, uma certa
quantidade de leis – sobretudo aquelas que dizem respeito ao estabelecimento e ratificação de
instituições técnicas importantes – prevê uma participação pública dos implicados. Com efeito,
elas chegam a realizar, mesmo que precariamente, uma consulta ao público. Mas o fazem, na
5 Cf. LUHMANN, Niklas. Zweckbegriff und Systemrationalitat. Frankfurt am Main, 1977, p. 257 ss.
6 GRIMM, Dieter. Die Zukunft der Verfassung, 2. Frankfurt am Main, 1994, p. 159 ss.
verdade, somente a título de fundamentação, enquanto a decisão real é tomada, no entanto,
apenas pela própria administração.
Tanto menos a lei determina a atividade administrativa de modo exaustivo, tanto mais
perde importância o princípio da estrita legalidade da administração relacionado ao contexto
democrático de legitimação. Onde a lei não mais vincula, a administração decide desvinculada,
sem precisar responder democraticamente por suas decisões. As lacunas democráticas daí
provenientes não se deixam limitar pela diretivas políticas de um governo. Isso porque ordens
relativas a um exercício limitado das capacidades administrativas, sob tais condições, não podem
ser respeitadas pelos agentes públicos administrativos. Onde a administração não está vinculada,
ela decide livremente e, onde ela decide livremente, faltam aos tribunais os critérios de acordo
com os quais eles podem controlar a adequação da administração à lei. [499] Os tribunais
desistem do controle preciso da administração e, assim, aumentam o déficit jurídico-normativo.
Frente a isso, se eles tentam controlá-la, fechando tais lacunas jurídico-normativas, terminam
somente por abrir novas lacunas democráticas.
As estratégias com as quais a ciência do direito se tranqüiliza diante desse diagnóstico tão
alarmante tampouco nos levam adiante7. Aliás essas preocupações não diminuem graças à
suposição de que aquele déficit surge somente no campo das novas atividades estatais, enquanto
nos ramos clássicos o velho modelo funcionaria sem restrições. O giro “preventivo” da atividade
estatal abarca igualmente aqueles velhos campos do direito8. Mesmo o velho direito policial –
para o qual o modelo de regulação jurídico-estatal clássico foi formulado – vale como exemplo
desse fenômeno. Originalmente, onde o poder estatal se opunha a um indivíduo com maior
intensidade, a lei definia com a maior exatidão possível quando e como poderia se dar a
intervenção administrativa. Mas a onda intervencionista foi uma ameaça concreta a essa atuação
limitada do Estado. Antes era necessário que estivesse em curso um processo de causa e efeito
que ameaçasse um bem jurídico, senão mesmo já o tivesse atingido. No que tange a persecução
penal, esse limite constituía a suspeita criminal, assim como um indício concreto a favor de uma
pessoa tivesse praticado um delito.
7 Cf. ROSSEN, Helge. Vollzug und Verhandlung: die Modernisierung des Verwaltungsvollzug. Tübingen, 1999.
Ver sobretudo seu debate com Riner Pitschas: Idem, Verwaltungverantwortung und Verwaltungsverfahren.
München, 1990. Cf. DREIER, Horst. Hierarchische Verwaltung um demokratischen Staat. Tübingen, 1991. 8 Cf. GRIMM, Dieter. Die Zukunft der Verfassung, p. 197.
Essas limitações há algum tempo não parecem valer do mesmo modo. O alargamento dos
riscos que o avanço técnico-científico traz consigo, a mudança de mentalidade social referente a
esses riscos, assim como a dimensão crescente de seus prejuízos potenciais levaram a uma
expansão das competências e atividades policiais. Trata-se não mais apenas de um esquema de
reação a ameaças à ordem e persecução penal, senão de uma minimização dos riscos mediante
providências profiláticas. Para isso podem ser levadas a cabo pretensões defensivas. Elas exigem
evidentemente a ampliação da atividade policial tanto no campo do controle dos riscos quanto no
que se refere à atividade punitiva. Com efeito, a missão da policia está já relacionada com as
próprias fontes do risco e com o comportamento que possa ser interpretado como passível de
punição. Ou seja, em lugar de relacionar-se com uma suspeita a ser investigada, sua atuação se
relaciona com a própria informação que levaria a tal suspeita. [500] A atividade policial se
amplia objetivamente, espacialmente, temporalmente e pessoalmente. O Estado “preventivo” tem
que ter uma tendência a ser onipresente e onisciente.
Aqui não tratamos da tão discutível eficiência da atividade preventiva, senão dos seus
efeitos sobre o direito. Tais efeitos consistem em que foram superados os limites tradicionais da
atividade estatal sem que tenham se tornado disponíveis os respectivos e fortes vínculos jurídicos
para essas novas funções. Os questionamentos acerca de certo fato consistir realmente num risco
ou acerca da possibilidade de que alguém venha a ser processado e punido é tratado somente a
partir de um campo de observação com contornos bastante vagos, no qual tudo ou qualquer um
pode se tornar relativamente relevante. Uma limitação jurídica dificilmente parece ser possível.
Isso repercute, por sua vez, no controle judicial, que, adicionalmente, sofre com o fato de que as
condições de sucesso do reconhecimento incipiente das condições de regulação preventiva são o
sigilo e segredo. O direito torna-se não muito mais que a fixação de garantias procedurais na qual
os riscos que dão motivo àquela atividade policial expandida são enumerados, e do qual são
excluídos determinados métodos de observação, sendo somente regulados os modos possíveis de
utilização informações obtidas para a finalidade regulatória.
III.
A expansão das atividades estatais não se limita, no entanto, somente a uma reforma do
direito, senão leva a uma mudança radical no instrumental estatal. Exatamente nas atividades de
estruturação da ordem e de seu asseguramento futuro encontram-se as fronteiras dos meios
estatais de comando e coação. Em parte, o emprego de meios imperativos é faticamente
impossível, porque os objetos desse tipo de disposições se esquivam da própria regulação.
Resultados de pesquisa, conjunturas de desenvolvimento, mudanças de mentalidade não se
deixam comandar. Em parte ainda, tal emprego é juridicamente inadmissível, porque os direitos
fundamentais asseguram a livre decisão dos atores sociais. Ordens de investimento, a instituição
estatal da obrigação de certa forma de utilização da força de trabalho, ordens ou proibições acerca
da perseguição de determinadas metas de pesquisa científica, nada disso seria admitido pela
constituição. [501] Por outra parte, no entanto, esse tipo de medidas se torna possível e mesmo
admissível, apesar de não oportuno, já que faltam ao Estado as informações exigíveis para a
formulação de programas de regulação efetivamente imperativos nesse grau. Com efeito, sabe-se
como são altos os custos de implementação de direito imperativo, o que faz, muitas vezes, com
que o Estado não possa ou mesmo não queira empregá-lo.
Nessas esferas, desde algum tempo, o Estado lança mão de meios de motivação com
efeitos indiretos: estímulos, intimidações, medidas que, no mais das vezes, são efetivadas
sobretudo mediante a manipulação de recursos financeiros, e que podem forçar os destinatários a
se adequar, de acordo com um cálculo de interesses livre, às exigências estatalmente assinaladas
relativas ao bem comum. Entretanto, o Estado abandona, com isso, a posição de domínio que
desempenhava em nome do interesse público, passando a negociar num mesmo patamar com os
atores privados. Nesse diapasão, a realização dos objetivos estatais depende da possibilidade de
sucesso dessas negociações. Isso proporciona aos atores privados uma posição de veto contra o
Estado que aumenta suas chances de afirmar seus próprios interesses contra aqueles referentes ao
interesse público. Além disso, essa posição é melhorada na medida em que, com a globalização,
enquanto seu campo de ação se expande, o do Estado encolhe. Em regra, porém, esse poder de
veto não se apresenta na forma de recusas, senão na forma de uma disponibilidade à cooperação,
que o Estado entretanto tem que honrar de boa vontade mediante seus programas de regulação.
O Estado reagiu a essa nova situação com a criação de um sistema de negociações no qual
atores públicos e privados se encontram para chegar a um acordo quanto aos programas de
regulação. Essas negociações não são novas no plano administrativo. Elas têm lugar onde quer
que o direito dê margem à avaliação ou a organização a serem preenchidos em acordo com os
destinatários. Elas são difundidas também na administração estritamente vinculada pelo direito.
Podemos encontrá-las, até mesmo, no direito tributário, onde a instituição da exação se dá
freqüentemente deste modo, fazendo com que a administração tributária prefira chegar a um
acordo com o contribuinte mediante negociação. A negociação encontra lugar inclusive no campo
da persecução penal. Não raramente, seguindo-se o modelo americano do plea bargaining, o
Estado se abstém de processar ou punir alguns delitos se, em troca, o acusado entrega outros
implicados, reduzindo, assim, os custos da investigação.
[502] Negociações, porém, difundem-se igualmente no campo legislativo9. À formação da
vontade acerca das exigências do interesse público associa-se, às vezes, uma negociação com os
causadores de problemas. Tais negociações se dirigem àquilo que pode ser passível de acordo
entre as partes, com atenção ao interesse público, sem que seja necessário um custo excessivo
tanto financeiro quanto em relação às opiniões públicas. Às vezes, o Estado se limita a definir o
problema a ser solucionado, deixando, porém, a própria solução para o resultado de acordos
negociados. Isso leva a um compromisso quanto ao conteúdo da lei entre os atores públicos e
privados ou a uma recusa do Estado à regulação e, por seu turno, a uma promessa de bom
comportamento da parte do agente privado. O direito estatal legislado funciona, assim, apenas
como meio de ameaça com o qual se pode aumentar a disponibilidade do setor privado para fazer
concessões. Isso, aliás, representa vantagens para ambos os lados: o lado privado aufere uma
moderação das obrigações e o lado estatal obtém as informações de que dependem uma regulação
legal eficiente ou mesmo a economia nos custos de implementação que podem existir no direito
promulgado unilateralmente.
Apesar de acordos desse tipo ficarem no campo da informalidade, eles só podem ter os
efeitos pretendidos se ambos os lados se sentirem vinculados. Graças, aliás, a essa vinculação,
não se pode mais compreender o fenômeno da negociação a partir da categoria da influência, mas
apenas a partir da categoria da participação. Com isso, podem-se encontrar nesse modelo algumas
disposições de racionalidade que contribuem para a legitimidade do direito de acordo com o
modelo de tradicional de regulação. De um lado há o privado que não mais se limita ao status
geral de cidadão estatal que permitia a participação nas eleições, a participação no discurso
público e a substituição de seus interesses frente ao Estado. Em lugar disso, o privado toma parte
na formação da vontade estatal sem que precise estar incluído nos contextos de responsabilidade
9 Cf. BENZ, Arthur & SEIBEL, Wolfgang (Orgs.). Zwischen cooperation und Korruption. Baden-Baden, 1992;
BENZ, Arthur. Kooperative Verwaltung. Baden-Baden, 1994; HELBERG, Andreas. Normabwendende
Selbstverpflichtungen als Instrumente des Umweltrechts. Sinzheim, 1999.
e de legitimação democráticos que valiam para todos aqueles que estivessem submetidos ao
poder público. De outro lado, são desvalorizados, na mesma medida, as instâncias de decisão e os
procedimentos constitucionalmente previstos, já que o Estado se compromete desde já com
determinados tipos de comportamento.
[503] Os efeitos desse fenômeno atingem sobretudo a instância central de fixação do
direito: o parlamento. Ele não toma parte em tais “negociações”. Do lado estatal, elas são sempre
conduzidas pelo executivo. Exsurge das negociações um modelo legal que, na verdade, só
poderia obter validade mediante uma resolução parlamentar. Mas o parlamento não se encontra aí
em nenhuma posição de ratificação parecida com aquela que detém no caso das resoluções sobre
direito comum. Ele pode apenas aceitar ou negar os resultados das negociações, mas jamais
alterá-los. Na nova sociedade, no que tange à sua atividade de fixação de normas jurídicas gerais,
seu campo de ação é apenas faticamente limitado, mas não juridicamente. A limitação, aí, não
opera, porém, de modo menos efetivo, pois toda violação do processo legislativo, mesmo que
seja apenas no plano fático, coloca em jogo todo o resultado. Por outro lado, no que tange ao
modelo da negociação, logo que se torne possível uma renúncia à regulação, o parlamento não
mais é colocado em jogo. Todavia, uma renúncia do executivo à regulação não evita que o
parlamento tome para si a iniciativa legislativa. Porém, a maioria parlamentar de que todo
governo é dotado tem, em realidade, que se desarvorar daquilo com que raramente tem que
contar.
Com a redução do papel do parlamento e com a possibilidade de uma renúncia negociável
à regulação, caem também as qualidades contidas na fase parlamentar do processo legislativo.
Quer dizer, perde sua força sobretudo o debate público em que a necessidade, os objetivos e os
meios a serem utilizados por uma medida legislativa são justificados e no qual a crítica pode ser
publicamente exposta. Com isto, o público é retirado de uma posição desde a qual pode
influenciar no processo. Essa possibilidade era, antes, de especial importância para aqueles que
não estivessem num ponto em que sua opinião tivesse de ser obrigatoriamente ouvida.
Em contraste, de acordo com o novo modelo legislativo, ao lado dos debates
parlamentares, que ainda podem ser realizados de modo apenas “simulado”, há um processo de
negociações verdadeiramente decisivo. A questão é que falta a esse processo a força para ligar o
discurso da sociedade ao discurso estatal. Assim, como o que estabelece a regulação é o resultado
da negociação, não se abre mais nenhum fórum que permita ao público fazer valer suas próprias
compreensões ou mesmo a inclusão de seus possíveis interesses desprezados.
[504] Essas fraquezas continuam no que diz respeito ao conteúdo das leis ou a seu
substrato informal: a promessa de comportamento dos atores privados. Aí não se adquire aquele
potencial de reconhecimento geral que funcionava como um fundamento de legitimidade das
normas produzidas. As negociações não incluem todos os implicados, mas apenas aqueles que
detêm uma posição de veto. E os interesses que têm mais chance de serem respeitados não são os
que se fundam apenas no poder extra-estatal acumulado, senão os que detêm poder no interior
dos próprios processos disponibilizados pelo Estado. Isso premia, então, as posições de poder
social que buscam neutralizar a força dos procedimentos jurídico-constitucionais relativos à
produção do direito. Nessa situação, onde vale o princípio constitucional da igualdade estrita,
formam-se, na verdade, privilégios. E, na mesma medida, é enfraquecido o significado das
eleições, pois elas não mais distribuem sozinhas o peso político no processo de produção do
direito. Se se quer, apesar disso, cobrar democracia dos sistemas de negociação, exclui-se todo
contato com a instituição da eleição política, como bem acentuou Luhmann contra Willke10
.
Essas reflexões ocasionaram recentemente, no ministério federal alemão para economia e
tecnologia, uma consulta a experts que advertiu o órgão acerca da difusão do modelo de
negociação. Para a consultoria, estavam em primeiro plano os efeitos sobre a economia de
mercado, tendo também, contudo, encontrado a devida atenção os custos democráticos desse
modelo. Frente a isso, ela não considerava totalmente o lado jurídico-estatal da legislação
racional. Com efeito, para a adequação do acordo jurídico compromissório tornava-se importante
o crescente controle normativo judicial. Em face daquele mencionado déficit da democracia
partidária, tal controle contribuiria essencialmente para a legitimação do direito. O direito
negociado era, nesses termos, consideravelmente valorizado. Porém, as normas negociadas
permaneciam na esfera da informalidade, não restando qualquer objeto ao controle judicial. Para
a observação dos compromissos não haveria, então, sanções jurídicas, mas apenas sanções
políticas. Se o conteúdo do acordo não é conhecido, a verificação do seu cumprimento por parte
ator privado seria, até mesmo, dificultada.
10
LUHMANN, Niklas. Die Politik der Gesellschaft. Frankfurt am Main, 2000, p. 137.
[505] O próprio Habermas reconheceu que ocorrem negociações paralelamente às
discussões do processo político de produção normativa11
. Ele tinha como objeto a diferença entre
ambos os modelos. Na discussão, os participantes procuram convencer com argumentos e chegar
cooperativamente a uma solução que fosse aceitável por todos. Na negociação, eles aspiram a um
compromisso entre seus diferentes interesses. Entretanto, em Habermas, o conceito de
negociação mostra-se muito menos discutido que o de discussão. Ele dá a entender, é verdade,
sob quais pressupostos tal modelo de produção normativa pode ser tratado de modo racional. Ele
vê a possibilidade de que, se existem interesses conciliáveis e os parceiros estão
aproximadamente na mesma condição, as negociações poderiam ter efeitos, ao menos limitados
aos diretamente implicados. Neste ponto, ele sustenta que seria suficiente que as negociações
decorressem sob garantias de fairness estatais, que, por sua vez, precisariam novamente de uma
institucionalização jurídica. Caso contrário, o Estado teria que deixar seu papel moderador,
determinando unilateralmente o conteúdo das normas.
Na maioria das rodadas de negociação público-privadas em que o conteúdo das leis ou a
medida do comportamento legalmente delimitado é definida por acordo, verificam-se claramente
esses pressupostos. Todavia, isso se mostraria menos auspicioso se se limitassem
constitucionalmente as negociações, pois que elas têm motivos estruturais para existirem que são
consideravelmente imunes às proibições constitucionais. Por outro lado, o modelo de negociação
provoca profundas rachaduras nas disposições racionais do direito constitucional relativas à
produção do direito. Se as pretensões jurídicas e democráticas devem ser mantidas, as novas
formas de atuação têm então de ser constitucionalizadas. É, então, assunto para a constituição
determinar o campo de utilização das soluções negociadas, regulando seus pressupostos a partir
do ponto de vista dos implicados em lugar ao invés de fazê-lo desde o ponto de vista do poder,
conduzindo, ao mesmo tempo, com publicidade as negociações na medida em que elas são
informalmente realizadas e, finalmente, disponibilizando os adequados mecanismos de controle
sobre os seus resultados.
[506] Habermas comparou, em 1973, em seu livro sobre a crise de legitimação no
capitalismo avançado, teorias democráticas pretensiosas com teorias democráticas reducionistas.
A realidade parece confirmar, no entanto, as teorias de segundo tipo. O que dá peso a essa
afirmação é a circunstância de que sua causa está menos na carência de uma disponibilidade para
11
HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 173 ss, 204 ss.
a democracia do que em crescentes obstáculos estruturais a modelos democráticos pretensiosos.
As tendências aqui debatidas, no sentido de uma redução da quantidade de direito legítimo são
exemplos a favor dessa tese. Uma posição de resignação quanto a esse quadro de desvalorização
da constituição e do direito seria, contudo, uma falsa conseqüência desse fenômeno. Na realidade,
temos de nos acostumar com o fato de que a constituição não pode mais regular a produção de
decisões coletivas vinculantes sob as mesmas circunstâncias como era possível sob as condições
de um Estado reduzido à mera garantia da ordem. Com efeito, não é supérfluo, porém, conservar
o Estado de Direito dessa ressaca reducionista, adaptando-o à nova situação em uma medida que
seja exeqüível.