Gontijo, Rebeca, O Velho Vaqueano

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REBECA GONTIJO O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador Orientadora: Prof a . Dr a . Angela de Castro Gomes Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: História Social. NITERÓI 2006

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Tese de doutorado de Rebeca Gontijo

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REBECA GONTIJO

O velho vaqueano:

Capistrano de Abreu,

da historiografia ao historiador

Orientadora: Profa. Dr

a. Angela de Castro Gomes

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor.

Área de concentração: História Social.

NITERÓI

2006

G641 Gontijo, Rebeca.

O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao

historiador / Rebeca Gontijo. – 2006.

323 f.; il.

Orientador: Angela Maria de Castro Gomes.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,

Departamento de História, 2006.

Bibliografia: f. 299-323.

1. Abreu, João Capistrano de, 1853-1927. 2. Historiador –

Brasil - Correspondência. 3. Memória. 4. Historiografia. I.

Gomes, Angela Maria de Castro. II. Universidade Federal

Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III.

Título.

CDD 920.99072

Rebeca Gontijo

O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor.

Área de concentração: História Social.

Data da aprovação: 29/03/2006

Banca examinadora:

_________________________________________________________________________

Profa. Dr

a. Angela de Castro Gomes (Orientadora)

Universidade Federal Fluminense / CPDOC - Fundação Getúlio Vargas

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Francisco José Calazans Falcon

Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO)

_________________________________________________________________________

Profa. Dr

a. Lúcia Maria Paschoal Guimarães

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães

Universidade Federal do Rio de Janeiro / Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Ronaldo Vainfas

Universidade Federal Fluminense

Suplentes:

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Ilmar Rohloff de Mattos

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Paulo Knauss

Universidade Federal Fluminense

Agradecimentos

Esta tese começou com o “pé direito”: o projeto de pesquisa que lhe deu origem

obteve a primeira colocação na seleção para o Doutorado da Universidade Federal

Fluminense de 2002, o que foi uma grata surpresa e um enorme incentivo pra mim. Além

disso, foi decisivo para a obtenção do financiamento, sem o qual a realização do trabalho

seria muito penosa. Agradeço à CAPES pela bolsa concedida nos dois primeiros anos do

curso e à FAPERJ, que garantiu a Bolsa Nota 10 nos últimos dois anos, graças ao apoio da

Comissão de Bolsas do Programa de Pós-Graduação em História da UFF.

Não é exagero dizer que a UFF tem sido minha segunda casa há quinze anos, desde

que entrei na graduação do Curso de História, em 1991/1992. Passei boa parte do meu

tempo no campus do Gragoatá, freqüentando as aulas, perambulando pelo pátio, estudando

na biblioteca, batendo papo no tablado, contemplando a vista do estacionamento... Penso

que a conclusão desta tese encerra não apenas o Doutorado, mas uma etapa de

aprendizado, iniciada na graduação e que marca o começo da carreira dos jovens doutores

de hoje. Por isso, o desejo de lembrar e agradecer aos meus professores da graduação.

Creio que um pouco do que eles ajudaram a plantar está presente neste trabalho.

Na UFF também encontrei um grupo muito empenhado na construção de um

espaço de troca de idéias, com lugar para alunos de diferentes níveis: o Núcleo de

Pesquisas em História Cultural, NUPEHC, do qual faço parte desde 1999. Agradeço pelo

acolhimento, algo que parece raro em um meio cada vez mais competitivo.

Resumidamente, esta tese é o resultado de um processo de aprendizado da leitura,

da escrita, do diálogo, da observação e da audição. As idéias aqui expressas não foram

alimentadas apenas pela bibliografia e pelas fontes utilizadas. Elas também colheram seu

mel nas conversas com algumas pessoas especiais. Em primeiro lugar, minha orientadora,

Angela de Castro Gomes, que eu gosto de chamar de Professora com “P” maiúsculo. Ela

me deixou livre para voar, sem nunca soltar totalmente a pipa. Leitora atenta, historiadora

perspicaz, gosto de pensar que esse trabalho também é um pouco dela, que além de atuar

como orientadora, serviu como inspiração. Suas aulas (na época da graduação) e seus

textos foram fundamentais para que eu desenvolvesse o gosto pelo estudo do campo

intelectual. Suas críticas e sugestões foram sempre muito esperadas e bem vindas. Posso

dizer dela o mesmo que, certa vez, o historiador português João Lúcio de Azevedo disse a

Capistrano de Abreu: creio que escrevo com o intuito de lhe agradar, o que deve continuar

pelos tempos afora. Evidentemente, os defeitos do trabalho são por minha conta. Resta

apenas dizer que eu começaria tudo de novo de bom grado.

Em segundo, mas não menos importante, pude contar com o privilégio de possuir

um leitor “voluntário”, “sempre” disposto: meu namorado Marcelo de Souza Magalhães,

que em meio as suas mil e uma atividades, sempre arrumou um tempinho pra mim,

aceitando dividir o espaço com a Tese, personagem principal dos últimos anos da minha

vida.

Agradeço, também, aos meus queridos amigos, principalmente aqueles que têm

sido meus companheiros desde o início, com os quais desenvolvi relações intelectuais e

afetivas: Luciana Gandelman, Maria Lígia Rosa Carvalho, Larissa Moreira Vianna... foi

com eles que pude compartilhar as dificuldades da elaboração de uma tese. Também sou

grata a Luciana e Larissa, assim como a Robson Coccaro e Márcia Araújo, que me

ajudaram muito com as traduções.

Um agradecimento especial é devido aos professores que participaram do meu

exame de qualificação, em agosto de 2004: Francisco José Calazans Falcon e Manoel Luiz

Salgado Guimarães, que pacientemente leram um material ainda sem a forma definitiva

dos capítulos, algo que só foi solucionado depois. Suas sugestões foram valiosas e não

foram esquecidas, embora eu não tenha conseguido aproveitá-las integralmente.

Agradeço muito aos prestativos funcionários da Secretaria do PPGH com quem tive

mais contato: o concentrado Mário Branco, a séria Stela Maria Guerreiro e a alegre Juceli

Silva. Os funcionários da Biblioteca Central do Gragoatá e da biblioteca da Pós-Graduação

também merecem agradecimento, assim como o pessoal paciente que trabalha nas

copiadoras, cujo serviço é fundamental para a vida acadêmica. Agradeço a todos através

das figuras quase anônimas de Marcelo, do Bloco O, e Sônia, do Bloco B. Também não

posso esquecer o atencioso Wander Pires, da FAPERJ, sempre solícito.

Em outras instituições também contei com o auxílio de inúmeros profissionais: na

Biblioteca Nacional; no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; na biblioteca do

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e do Instituto de Estudos Lingüísticos, da

Universidade Estadual de Campinas; na biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo; no Instituto de Estudos Brasileiros,

também da USP; e na biblioteca da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Muito obrigada a todos vocês!

Também tive a sorte de poder contar com a ajuda de Ítala Byanca Moraes da Silva e

Paula Virgínia Pinheiro Baptista – então alunas da Universidade Estadual do Ceará – que

trabalharam na organização da documentação da Sociedade Capistrano de Abreu, sob a

guarda do Instituto Histórico do Ceará, em Fortaleza. Elas me apresentaram o acervo,

indicando fontes interessantes para futuras pesquisas e fornecendo informações sobre o

referido grêmio.

Por fim, mas não menos importante, agradeço a minha pequena e paciente família:

minha mãe Tereza e meu irmão Bento. Eles ainda não entenderam minha tese, desconfiam

da utilidade dela, mas, apesar de tudo, nunca questionaram minhas escolhas e, desconfio,

sentem até um certo orgulho de mim. Agradeço também a minha tia Ceci Julieta (Irmã

Maria Madalena, do Convento de Nossa Senhora das Graças, em Belo Horizonte), que,

embora distante, sempre esteve presente, rezando muito pra tudo dar certo. Obrigada por

tudo, hoje e sempre.

Ao meu pai, Geraldo (in memorian).

Aos meus Professores,

que me ensinaram a amar a história

e me mostraram os prazeres e os ossos

do ofício de historiador-professor.

A Angela de Castro Gomes,

verdadeira vaqueana.

Ao Marcelo.

Resumo:

A tese aborda o tema da identidade do historiador, defendendo a hipótese de que essa

construção identitária envolve dois tipos de exercícios de legitimação. O primeiro é

coletivo, pois resulta da atuação dos pares, admiradores, discípulos, biógrafos e intérpretes

do historiador, no sentido de situá-lo em relação a uma dada tradição intelectual. O

segundo é individual, pois corresponde aos investimentos feitos pelo próprio historiador a

partir de determinadas circunstâncias, de um dado campo de possibilidades, assim como,

de um certo domínio das opções, por meio das quais é possível constituir a si mesmo como

indivíduo e intelectual. Diante dessa hipótese, a opção foi escolher um entre outros

historiadores capazes de servir como um guia para acessar o “pequeno mundo” dos

intelectuais, com suas estratégias de consagração e exclusão. A escolha recaiu sobre

Capistrano de Abreu (1853-1927), considerado por muitos e há muito tempo como o mais

importante historiador brasileiro das primeiras décadas do século XX.

Palavras-chave: Capistrano de Abreu; memória; historiador; historiografia,

correspondência.

Resumé:

La thèse éxplore le thème de l‟identité d‟historien et présente, comme hipothèse centrale,

l‟idée sélon laquelle cette constrution identitaire se dévélope à travers deux sortes

d‟éxercises de légitimation. Le premier est collectif et résulte de l‟ activité des

admirateurs, discipules et interpreteurs d‟historien. Cette activité a pour but le situer par

rapport à une certaine tradition intelectuelle. Le deuxième exercise est plutôt individuel et

concerne les efforts entreinés par l‟historien lui même à partir des circonstances donnés, d‟

un champ de possibilités, d‟un certain domaine des options, parmi lesquels un historien se

constitue comme individu et comme intelectuel. À partir de cette hipothèse, j‟ai choisi un

historien – parmi d‟autres possibilites – capable de servir comme un guide pour “le petit

monde” des intelectuels, plein des estratégies de consécration et exclusion. Le choisi était

Capistrano de Abreu (1853-1927), regardé, depuis longtemps, comme le plus important

historien brésilien des premiers décades du XXème siècle.

Mot-clé: Capistrano de Abreu; memoire; historien; historiographie, correspondance.

Abstract:

The present thesis analyses the formation of the historian's identity. I argue that this

formation takes place within two realms of legitimizing practices. Firstly a collective one

resulting from the networks established among colleagues, admirers, disciples and

biographers who situate the historian within certain intellectual traditions and schools.

Secondly an individual one resulting from the choices, strategies and efforts made by the

historian himself/herself that enables him/her to build an identity both as an individual and

as an intellectual. The approach chosen for this analysis was to consider a representative

case-study. The individual chosen as a case-study was Capistrano de Abreu (1853-1927),

who is considered by many as the most important Brazilian historian of the early decades

of the Twentieth Century.

Key-words: Capistrano de Abreu; memory; historian; historiography, correspondence.

SUMÁRIO

Introdução 1

PARTE I – Morte e vida de um historiador nacional

1 – Morre o historiador da pátria: a construção de um símbolo da brasilidade 12

1.1. O homem de letras como símbolo nacional 19

1.2. O “Bem amado”: Capistrano por seus contemporâneos 32

1.3. Um símbolo da brasilidade: o historiador sertanejo 45

2 – A economia da glória: culto e comemoração 55

2.1. A “sociedade dos bons amigos de Capistrano”: a institucionalização de um culto 59

2.2. Historiadores do Brasil: o Estado Novo e a escrita da história 78

2.3. O Curso Capistrano de Abreu, no IHGB (1953) 87

2.3.1. Vida: um perfil físico-psicológico, uma trajetória, uma vocação 92

2.3.2. A obra capistraneana: contribuições para a cultura brasileira 101

3 – Memória e biografia: a trajetória de um “cruzado da inteligência” 109

3.1. Sobre a biografia 110

3.2. Capistrano biografado 121

3.3. Um modelo de intelectual 135

3.4. Com quantas pequenas histórias se faz um grande homem? 148

PARTE II – As cartas de Capistrano

4 – As cartas de Capistrano 166

4.1. Sobre a correspondência de intelectuais 171

4.2. Um mapa das cartas de Capistrano 183

5 – Modos de ser 196

5.1. “Entre quatre yeux” 197

5.2. Figuras de escritor, figuras de leitor 215

6 – Modos de fazer 227

6.1. Um olhar sobre a historiografia das primeiras décadas republicanas 229

6.2. Um projeto e um lugar para si 237

6.3. A reta e o círculo: metodologia, escrita da história e identidade do historiador 250

7 – Esboço final 269

7.1. Intelectuais, idéias e histórias 272

7.2. Tal história, qual memória? 279

7.3. Capistrano de Abreu na história da história no Brasil 288

Bibliografia 299

Vaqueano: [do esp. plat. vaqueano]: prático,

conhecedor de caminhos ou de uma região; aquele

que conduz a embarcação com segurança, firme ao

leme; pessoa hábil e entendida.

1

Introdução

O tema central desta tese tem relação com uma suposta crise da história, na medida

em que essa crise leva os historiadores contemporâneos a repensar seu ofício, seu produto

(o texto histórico) e seu próprio lugar social.1 Como observou Manoel Luiz Salgado

Guimarães, pensar a própria história pode significar:

Um exercício de legitimação para uma comunidade de profissionais cuja identidade

encontra-se fortemente assentada e construída a partir de lugares socialmente definidos de

produção de conhecimento, com suas regras próprias de consagração. Pode, também,

responder às exigências contínuas de uma reflexão sistemática sobre os métodos e o lugar

da teoria na produção do conhecimento histórico (...).2

De acordo com Guimarães, a reflexão sobre a história da história, ou seja, o esforço

para compreender a história da produção do conhecimento e da escrita da história

geralmente foi guiado por duas grandes tendências. Uma delas compreende tais estudos

mais como tarefa de filósofos (filósofos da história), do que como uma ocupação legítima

do campo historiográfico. A investigação é vista como uma espécie de “prima pobre da

pesquisa histórica”, cuja característica seria a elaboração de catálogos de autores e obras,

que, acrescidos de informações biográficas, poderiam, supostamente, explicar uma dada

produção historiográfica, justificando sua emergência. A outra tendência, mais externalista

devido à influência da história social, remete autores e obras a um determinado contexto

explicativo, considerado capaz de conferir inteligibilidade à escrita da história.3

1 Sobre a noção de crise, presente nos balanços historiográficos contemporâneos ver, por exemplo:

CARDOSO, Ciro Flamarion. “História e paradigmas rivais”. In: CARDOSO, Ciro F. e VAINFAS, Ronaldo

(Orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, Campus, 1997, p. 1-23;

VAINFAS, Ronaldo. “Caminhos e descaminhos da história”. In: CARDOSO e VAINFAS (Orgs.). Ibidem, p.

441-449; BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio

de Janeiro, UFRJ / FGV, 1998; CHARTIER, Roger. “A história hoje: dúvidas, desafios, propostas”. Estudos

Históricos – Dossiê CPDOC, 20 Anos. Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113; Idem. À beira da

falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2002. 2 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “Micro-história: reconstruindo o campo de possibilidades”. Topói.

Rio de Janeiro, Sete Letras / UFRJ, n.1, 2000, p. 217-23. 3 Idem. “Apresentação. Um historiador à margem: Fustel de Coulanges e a escrita da história francesa no

século XIX”. In: HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro,

2

Um ponto de inflexão é identificado na obra do historiador francês François Hartog,

para quem a historiografia não se limita nem ao estudo das obras pelas obras, nem à

biografia intelectual de um dado historiador. Partindo da análise de um autor e sua obra,

Hartog reconstitui o campo de conflitos em que a produção historiográfica se torna

possível e, ao mesmo tempo, reflete sobre as diferentes formas pelas quais essa produção é

apropriada. Por fim, mas não menos importante, ele trás o problema da memória para a

investigação historiográfica, destrinchando o processo de sacralização e de exclusão de um

dado historiador, Fustel de Coulanges, que serve como objeto e guia para acessar o campo

dos estudos históricos.4

De acordo com Hartog, pensar a historiografia supõe ir além de uma história da

história restrita a “uma coletânea dos erros passados cometidos por historiadores que não

podiam ter uma visão exata do passado”. Tal perspectiva nada mais faria do que afirmar

uma história “pré-científica” – assim como, “conservadora” ou “tradicional” – que é ou

deve ser ultrapassada. A crise dos grandes modelos explicativos – o marxismo, o

funcionalismo e a história quantitativa – teria favorecido, entre outras coisas, o surgimento

de condições capazes de estimular a reflexão sobre a história da história, com o objetivo de

avaliar os caminhos historiográficos percorridos.5 Essa possibilidade de reflexão é

anunciada, por exemplo, na obra coletiva Faire de l’histore (1974), organizada por Pierre

Nora e Jacques Le Goff. Na apresentação desse livro, os organizadores afirmam que:

O que obriga a história a se redefinir é, de imediato, a tomada de consciência pelos

historiadores do relativismo de sua ciência. A história não é o absoluto dos historiadores do

passado, providencialistas ou positivistas, mas o produto de uma situação, de uma história.

Esse caráter singular de uma ciência que possui apenas um único termo para seu objeto e

para si própria, que oscila entre a história vivida e a história construída, sofrida e fabricada,

obriga os historiadores, já conscientes dessa relação original, a se interrogarem novamente

sobre os fundamentos epistemológicos de sua disciplina.6

UFRJ, 2003, p. 13. Outras caracterizações da história da história podem ser encontradas em: MALERBA,

Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo, Contexto, 2006. 4 GUIMARÃES, “Apresentação...”, op. cit., p. 15.

5 HARTOG, O século XIX e a história, op. cit., p. 20. Hartog lembra algumas obras que, ao longo das últimas

décadas contribuíram para a “reintrodução da história na história”, tais como Problèmes d’historiographie

(1983), de Arnaldo Momigliano e Faire de l’histoire (1974), organizado por Pierre Nora e Jacques Le Goff.

Ibidem, p. 21. 6 LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Orgs.). História: novos problemas. 4

a edição. Rio de Janeiro,

Francisco Alves, 1995, p. 12. Originalmente publicado com o título de Faire de l’histoire, em 1974. No

Brasil, a obra foi dividida em três volumes: História: novos problemas; História: novas abordagens; e

História: novos objetos.

3

Em outras palavras, os organizadores anunciam que:

(...) a história nova se afirma na consciência de sua sujeição às suas condições de produção.

Não é gratuitamente que cada vez mais ela se interessa por si própria e concede um lugar

cada vez mais importante e privilegiado à história da história. Produto, ela se pergunta

igualmente a respeito de seu produtor, o historiador.7

É possível notar certa preocupação com o problema da identidade do historiador

nas palavras de Le Goff e Nora, ainda que o termo identidade não seja utilizado. Isso pode

ser deduzido da observação acerca do incômodo do historiador diante de seu próprio papel

e do tipo de reconhecimento social que tal papel lhe permite. Cada vez mais especializado,

esse historiador ainda não teria alcançado uma “tecnicidade” capaz de distingui-lo dos

“escreventes de historietas” e dos “vulgarizadores de baixa categoria” e, ao mesmo tempo,

alçá-lo ao patamar dos “novos heróis científicos da segunda metade do século XX, os que

controlam o átomo, a fórmula mágica, aqueles que alcançam o Prêmio Nobel”.8

O estabelecimento das diferenças é algo fundamental para a construção da

identidade, que, no caso do historiador, remete a um lugar social, às práticas de um ofício e

a um produto: o texto histórico. Deixando de lado o sonho com um prestígio passado – que

tem um exemplo na figura de Michelet – ou futuro – que tem Einstein no horizonte –, Nora

e Le Goff definem o historiador, basicamente, como um “homem de ofício” e, indo além,

como um “artista” dedicado a “fazer a história de que o presente tem necessidade”.

Defende-se uma espécie de vocação pragmática do historiador, afirmando seu papel como

artista que faz ciência: “ciência da autoridade do passado e consciência do tempo”, que

deve ser, também, “uma ciência da mudança, da transformação”.9

Como não poderia deixar de ser, as proposições de Jacques Le Goff e Pierre Nora

são datadas. Remetem a um contexto em que a história buscava definir-se como “nova”,

refletindo sobre si mesma e enfrentando questões colocadas por outras ciências humanas.

Contudo, tais proposições não deixam de ser úteis ainda hoje, após trinta e poucos anos,

quando o problema da historicidade da história e da identidade do historiador ainda tem

seu lugar.

Escrevendo no final da década de 1980, François Hartog lembra as idéias de Le

Goff e Nora e preconiza que o ponto de vista mais interessante para o estudo da história da

7 LE GOFF e NORA, História: novos problemas, op. cit., p. 14.

8 Ibidem, p. 14.

9 Ibidem, p. 14-15.

4

história será aquele capaz de aproximar dois termos: epistemologia e historiografia. Nas

palavras do autor, não seria o caso de “uma epistemologia „dura‟ (demasiado distante)”,

nem de uma “história da história „enfadonha‟ (demasiado internalista)”, mas de:

(...) uma abordagem atenta dos conceitos e contextos, das noções e dos meios, e sempre

mais ciosa de suas articulações, preocupada com a cognição e a historicização, mas

vigilante frente às seduções dos reducionismos. Em síntese, algo como uma epistemologia

histórica ou uma historiografia epistemológica (...). Diversamente da história positivista ou

metódica que rejeitava a historiografia, o momento presente leva a uma combinação entre

história da história e método, ou melhor, entre historiografia e epistemologia.10

Em tempos de incertezas, dúvidas e crise, a história estaria em busca de uma

epistemologia própria, capaz de auxiliar na redefinição de seus projetos e práticas. Esse

fenômeno reflexivo – perceptível a partir da década de 1970 – não é algo isolado, pois

possui um largo espectro, que envolve diversos “campos e canteiros” da história e das

ciências sociais.11

Além disso, está presente na historiografia de diversos países,

impossibilitando a elaboração de sínteses na forma de uma história geral da historiografia

ou, mesmo, a afirmação de um único início do “moderno pensamento histórico”.12

Horst Walter Blanke distingue três funções da história da historiografia: a função

afirmativa da tradição, a função crítica e a função exemplar.13

A função afirmativa pode ser

10

Para Hartog, o termo historiografia basta para explicar essa mescla entre historiografia e epistemologia.

Ver HARTOG, O século XIX e a história, op. cit., p. 22. Segundo Arno Wehling, com poucas exceções, a

história da historiografia não contemplou problemas epistemológicos, sendo possível identificar o

predomínio de quatro modelos de abordagem dessa história: o modelo descritivo, dedicado a inventariar a

evolução da escrita da história, com pouca referência à relação entre a historiografia e sua própria época ou

cultura; o modelo da sociologia do conhecimento, dedicado a contextualizar a produção historiográfica, com

atenção para aspectos ideológicos e fundamentação social (de classe); o modelo de compreensão do Zeitgeist

[“espírito da época”], que buscou contextualizar a produção historiográfica no ethos de uma dada cultura; o

modelo funcionalista, que identifica correntes e autores dos séculos XIX e XX em suas relações com a

produção historiográfica geral, com “grandes temas” ou cortes transversais. Restaria explorar um caminho

que o autor considera potencialmente rico: o estudo da construção do processo intelectual do conhecimento

histórico. Ver WEHLING, Arno. “Historiografia e epistemologia histórica”. In: A história escrita, op. cit., p.

176-177. 11

Ver, por exemplo, o balanço organizado por BOUTIER e JULIA, Passados recompostos, op. cit. 12

BLANKE, Horst Walter. “Para uma história da historiografia”. In: A história escrita, op. cit., p. 27-64. 13

Horst Walter Blanke propõe uma tipologia das histórias da historiografia, identificando dez tipos

principais: a história dos historiadores, a história das obras, o balanço geral, a história da disciplina, a

história dos métodos, a história das idéias históricas, a história dos problemas, a história das funções do

pensamento histórico, a história social dos historiadores e a história da historiografia teoricamente

orientada. Ibidem, p. 29-32. Outra visão da história da historiografia encontra-se no trabalho de Massimo

Mastrogregori, que propõe pensar a historiografia em relação a uma “tradição de lembranças”. Além disso,

esse autor expõe uma tipologia da história da historiografia distinta, guiada pela identificação de diferentes

métodos de abordagem: o método bibliográfico, erudito e enciclopédico; o método filosófico, pragmático,

pedagógico; o método científico; o método retórico e literário; e o método sociológico e prosopográfico. Ver

5

observada na defesa de uma historiografia estabelecida (ou oficial). A história da disciplina

é exposta como a “sobrevivência do mais preparado”, detentor de uma posição político-

científica considerada legítima e, por isso, capaz de representar ou sustentar uma dada

tradição. A atitude afirmativa também pode ocorrer quando o esforço para demonstrar que

“historiadores caídos no esquecimento” são, na verdade, “antecipadores” de uma dada

concepção de história. Assim, a afirmação pode ser utilizada tanto para consolidar posições

estabelecidas, quanto para dar lugar a novas posições. A função crítica possuiria diferentes

formas: a crítica de modelos “tradicionais”, com o objetivo de destruir uma tradição

particular, apresentada como “suspeita e antiquada”; o “redescobrimento de autores real ou

supostamente marginais” e o “reconhecimento de precursores esquecidos”. Já a função

exemplar, relaciona-se aos investimentos no sentido de elaborar material ilustrativo para a

reflexão teórica, de modo que a história da historiografia estaria restrita à periodização ou à

listagem de nomes e obras principais.14

Esta tese não nasceu diretamente da leitura dessas proposições relacionadas a uma

“nova história da historiografia”, que só muito recentemente começaram a chegar no

Brasil. Os caminhos que conduziram a este trabalho foram outros, ainda que tais

proposições possuam algo em comum com o exercício aqui proposto, provavelmente, em

função das preocupações compartilhadas por muitos historiadores da atualidade, que

buscam refletir sobre o ofício do historiador, seu produto (o texto histórico) e seu lugar

social.

A reflexão partiu do interesse por três temas de pesquisa. Em primeiro lugar, o

interesse em focalizar o indivíduo, buscando compreender ou, ao menos, mapear o

conjunto de investimentos necessários para a afirmação de uma identidade social, que

envolve a construção da memória, a elaboração de projetos e o exercício contínuo de um

MASTROGREGORI, Massimo. “Historiografia e tradição das lembranças”. In: A história escrita, op. cit., p.

65-67. 14

Ao detalhar cada uma dessas funções, Blanke recorre a diferentes tipos de estudos desenvolvidos na

Alemanha, entre meados da década de 1970 e o final dos anos 1980. O autor apresenta um panorama das

várias conferências e publicações realizadas no período, destacando as principais contribuições para uma

“nova história da historiografia”. Entre essas contribuições, cabe destacar, além daquelas com foco

nitidamente teórico, aquelas com preocupação em situar a história da história em relação: a contextos

socioculturais, a experiências de crise e catástrofes, à cultura histórica de uma época, à vida pública em geral

etc. O autor chama a atenção para a presença de uma certa dose de rebeldia na postura contemporânea em

relação à história da historiografia. Essa rebeldia é observada no esforço de revisar posições historiográficas

estabelecidas e, ao mesmo tempo, rever a posição de autores e projetos historiográficos perdedores ou

excluídos. O autor também ressalta que, embora a tentativa de valorizar posições não conformistas – através

do estudo de autores marginalizados ou excluídos – possa fazer uso de argumentos afirmativos, não se deve

esquecer que tais argumentos são comumente utilizados contra as posições estabelecidas. Isso seria suficiente

para distinguir tais esforços daqueles originalmente marcados pela afirmação em defesa da tradição

consolidada. BLANKE, “Para uma história da historiografia”, op. cit., p. 34-35.

6

olhar sobre si.15

Em segundo, o interesse em estudar intelectuais e, mais particularmente,

aqueles que se dedicam à pesquisa, à escrita e ao ensino da história.16

Por fim, mas não

menos importante, o interesse pelos problemas relacionados à leitura e à escrita (de si e da

história).17

Mais especificamente, esta tese propõe investigar o “exercício de legitimação”, a

partir do qual, aqueles que se dedicam à história podem afirmar a especificidade do

conhecimento que produzem, definir locais de produção e regras próprias de consagração.

Compreender tal exercício é um entre outros modos de construir uma história da história

no Brasil, que além de ater-se a problemas teórico-metodológicos, seja capaz de trazer à

tona o que foi chamado de “pequeno mundo” dos historiadores.18

Uma história que

também seja capaz de relativizar a interpretação comum que toma uma parte significativa

da produção historiográfica brasileira, elaborada ao longo do século XIX e das décadas

iniciais do século XX, como um todo uniforme e contínuo, caracterizado como

“positivista”.19

15

Esse interesse foi alimentado por um conjunto de leituras sobre indivíduo, memória, campo de

possibilidades e domínio das opções, que, de diferentes formas, refletem sobre o tema da liberdade e dos

condicionamentos individuais, tais como: POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos

Históricos – Dossiê Memória, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15; LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”. In:

BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, p. 133-161;

REVEL, Jacques (Org.). Jogos de Escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro, FGV, 1998;

VELHO, Gilberto. “Memória, identidade e projeto”. In: _____. Projeto e Metamorfose: antropologia das

sociedades complexas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p. 97-105; ABREU, Regina. O enigma de Os

sertões. Rio de Janeiro, Rocco / Funarte, 1996. 16

As referências mais presentes são: FALCON, Francisco José Calazans. “A identidade do historiador”.

Estudos Históricos – Dossiê Historiografia. Rio de Janeiro, vol. 9, n. 17, 1996, p. 7-30; e CERTEAU, Michel

de. “A operação historiográfica”. In: _____. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 65-119;

SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de

Janeiro, FGV / UFRJ, 1996, p. 231-269; e, também, TREBITSCH, Michel. “Avant-propos: la chapelle, le

clan et le microcosme”. Les Cahiers de L’IHTP – Sociabilites intellectuelles: lieux, milieux, réseaux. S.l.,

Centre National de la Recherche Scientifique- Institut d‟Histoire du Temps Present, n. 20, mars 1992, p. 11-

21. 17

CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra, Quarteto, 2001; CERTEAU, Michel

de. “A economia escriturística”. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994,

p. 221-246; e DIAZ, Brigitte. “Correspondance et écriture de soi”. In: _____. L’épistolaire ou la pensée

nomade. Paris, PUF, 2002, p. 139-194. 18

O presente estudo procura pensar a história da história a partir de seu cruzamento com a história das idéias

e o que na França vem sendo chamado por história dos intelectuais ou história social dos intelectuais,

considerando essa última em consonância com a história política e a história cultural. As principais

referências para pensar a história dos intelectuais são: SIRINELLI, “Os intelectuais”, op. cit.; e

TREBITSCH, “Avant-propos: la chapelle, le clan et le microcosme”, op. cit. Além disso, trata-se de uma

história da história que procura ficar atenta aos problemas colocados pela história do livro e da leitura. Ver:

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel; Rio de Janeiro,

Bertrand Brasil, 1990; Idem (Org.). Práticas da Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996. 19

Ver, por exemplo, as interpretações de: LAPA, José Roberto do Amaral. A história em questão:

historiografia brasileira contemporânea. Petrópolis, Vozes, 1976; ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo:

ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. 1a edição [1979]. São Paulo,

Unesp, 1997; DIEHL, Astor. A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo,

Ediupf, 1998.

7

Pretende-se aqui contribuir para a explicitação de um conjunto de problemas

relativos à identidade do historiador, compreendida a partir de dois sentidos

complementares: a identidade como autoconsciência do historiador, suscitada pela

intenção e/ou o exercício de um tipo específico de operação, com vistas a produzir um

texto histórico; e a identidade como reconhecimento da operação realizada e do resultado

obtido como sendo um produto historiográfico.20

A hipótese é a de que essa construção

identitária envolve dois tipos de “exercícios de legitimação”. O primeiro é coletivo, pois

resulta da atuação dos pares, admiradores, discípulos, biógrafos e intérpretes do

historiador, no sentido de situá-lo em relação a uma dada tradição intelectual. O segundo é

individual, pois corresponde aos investimentos feitos pelo próprio historiador a partir de

determinadas circunstâncias (ou de um dado campo de possibilidades) – assim como, de

um certo domínio das opções – por meio das quais é possível constituir a si mesmo como

indivíduo e intelectual.

Diante dessa hipótese, a opção foi escolher um entre outros historiadores capazes

de servir como um guia para acessar o “pequeno mundo” dos intelectuais, com suas

estratégias de consagração e exclusão. A escolha recaiu sobre João Capistrano de Abreu

(1853-1927), que é, inegavelmente, um marco na história da história no Brasil. Como

observou Francisco Falcon, trata-se de “uma espécie de quase (?) unanimidade”, um elo

entre a historiografia do século XIX – que tem Francisco Adolfo de Varnhagen como

principal referencial – e a modernista, exemplificada pelos trabalhos de Gilberto Freyre,

Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, produzidos nas décadas de 1930 e 1940.

Muitas informações circulam sobre ele, constituindo uma espécie de folclore intelectual

capaz de sustentá-lo como um mito, ao menos entre historiadores de ofício. Exemplo de

erudição e dedicação à pesquisa, explorador de arquivos, ávido leitor, crítico feroz... essas,

entre outras colocações, costumam ser temperadas por comentários acerca de sua aparência

desleixada; do seu humor irônico; da sua aversão aos títulos e às instituições; do seu

repúdio à vaidade e à presunção; assim como, da sua dificuldade para escrever. Esse último

ponto alimenta a maior parte das poucas críticas feitas ao autor, mais preocupadas com a

20

Para pensar a identidade do historiador, ver: FALCON, “A identidade do historiador”, op. cit.; e

CERTEAU, “A operação historiográfica”, in op. cit. Sobre o problema da tradição, ver: EISENSTADT, S. N.

“Intellectuals and tradition”. Daedalus – Journal of the American Academy of Art and Sciences, vol. 101, n.

2, spring 1972, p. 1-19; e SHILS, Edward. “Intellectuals, Tradition, and the Traditions of Intellectuals: some

preliminary considerations”. Daedalus – Journal of the American Academy of Art and Sciences, vol. 101, n.

2, spring 1972, p. 21-34.

8

obra que ele não produziu – mas que, segundo afirmam, poderia muito bem ter produzido –

do que com a interpretação daquilo que foi publicado.21

Seu caso indica a existência de um sólido consenso em torno de seu nome e obra,

vistos aqui como indissociáveis, pois o processo que consolidou o primeiro, supostamente,

contribuiu para a afirmação da segunda enquanto unidade coerente e significativa. Esse

consenso atravessou décadas e, aparentemente, se apresenta como um tipo de obstáculo ou

uma forma de proteção contra possíveis disputas em torno de seu legado. Cumpre

identificar as instâncias de reconhecimento atuantes e os meios de consagração utilizados

com o intuito de individualizá-lo e imortalizá-lo.

Distinguindo-se de seus antecessores e contemporâneos, Capistrano é tido como o

precursor da moderna historiografia brasileira. Um historiador ímpar, sem sucessores

diretos e sem par no campo dos estudos históricos. Contudo, persiste a ligação entre aquilo

que ele produziu e planejou produzir e a historiografia contemporânea, guardadas as

devidas diferenças. Em outras palavras, não apenas aquilo que ele efetivamente realizou,

mas também seus projetos, servem como uma espécie de referencial. Alguém que serve

como inspiração para os pesquisadores de ontem e de hoje, ainda que atualmente sua

presença seja ofuscada por outros referenciais, sobretudo europeus, que incidem

nitidamente sobre a formação das novas gerações de professores e pesquisadores da

história. Apesar disso, ele permanece como um nome a ser lembrado, pacificamente

plantado na história da História no Brasil. Cabe investigar essa operação pacificadora que o

tornou tão próximo de nós, lembrando que as artes que domesticam os mortos podem

servir, também, para lançá-los ao esquecimento. Isso ocorre quando a lembrança do morto

se dá como uma espécie de obrigação, que serve para confirmar todo um processo de

assimilação, que diz que o morto tem um lugar na história, mas que, ao mesmo tempo, ele

pertence a um outro mundo, que pode e deve ser superado e, em certa medida, esquecido.22

Capistrano foi alvo de um considerável volume de estudos e discursos, difundidos

por meios diversos: necrológios, artigos, resenhas, biografias, sonetos, retratos, charges,

fotografias, dissertações e teses, produzidos e reproduzidos ao longo de décadas. Além

disso, ele também elaborou discursos sobre si, através de sua expressiva correspondência.

21

FALCON, Francisco José Calazans. “As idéias e noções de „Moderno‟ e „Nação‟ nos textos de Capistrano

de Abreu. Os Ensaios e estudos, 4a série – comentários”. Acervo – Revista do Arquivo Nacional, Rio de

Janeiro, vol.12, n. 1/2, jan./dez., 1999, p. 6. A maior parte da produção de Capistrano é formada por

traduções, artigos, resenhas, prefácios e cartas, reunidos em livros postumamente. 22

Ver HARTOG, O século XIX e a história, op. cit., p. 133-175; e, também, MENESES, Ulpiano T. Bezerra

de. “A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais”.

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 34, 1992, p. 9-24.

9

Assim, ele pode ser visto como um objeto privilegiado, pois a variedade dos materiais que

circulam sobre ele permite ao investigador operar vários tipos de recortes na

documentação, bem como, alimentar um leque de questões.

A presente tese analisa apenas uma parte dessa produção, que contribuiu para

consolidar o nome de Capistrano entre os principais intérpretes do Brasil. É um trabalho de

recolha e análise das interpretações ditas e escritas, das imagens produzidas e divulgadas,

dos marcos cronológicos estabelecidos e de toda forma de comentários, associações,

anedotas e pequenos casos que ajudaram a compor a memória sobre o historiador e, ao

mesmo tempo, ajudaram a sustentar uma determinada história da história.

Os objetivos específicos são dois, ambos relacionados à problemática da identidade

do historiador. O primeiro é analisar a construção da memória sobre Capistrano,

considerando cinco realizações principais: 1) a produção de necrológios e artigos no

momento imediatamente posterior a sua morte, em 1927; 2) a criação da Sociedade

Capistrano de Abreu, no mesmo ano; 3) a organização de um rol de historiadores

nacionais, nos anos 1940, ou seja, durante o Estado Novo (1937-1945); 4) a comemoração

do I Centenário de Nascimento do historiador, em 1953; e 5) a elaboração de biografias,

entre as décadas de 1930 e 1960. Supostamente, tais empreendimentos além de contribuir

para consolidar o nome e a obra de Capistrano, também favoreceram a construção de uma

história da história, na qual o historiador é situado como uma espécie de “pai fundador” ou

um “descobridor” da moderna historiografia.

O segundo objetivo é compreender o modo como Capistrano construiu a si mesmo

como indivíduo, intelectual e historiador, através de sua correspondência. Esta é

considerada como uma forma peculiar de escrita de si, desenvolvida a partir da relação

com o outro. Uma escrita que favorece a subjetividade e a sociabilidade, permitindo a

construção de redes de pesquisa à distância e o estabelecimento de dois tipos de vínculos

principais: entre pares ou colaboradores e, entre um mestre e seus discípulos. Em função

desses objetivos, a tese foi organizado em duas partes bastante distintas, mas

complementares. A primeira segue a produção da memória e, a segunda, a escrita de si

através da correspondência, com foco em duas questões principais: a construção da

identidade do historiador e a “operação historiográfica”, compreendidas através do que

pode ser definido como modos de ser e modos de fazer (a história).23

A hipótese que une as

duas partes é a de que o reconhecimento e a autoconsciência que, supostamente, definem a

23

Uma referência importante para a definição desse objetivo é CERTEAU, “A operação historiográfica”, op.

cit.

10

identidade do historiador, se tornam possíveis, ao menos em parte, através da produção

memorialística e da correspondência.

No capítulo final – apresentado como um esboço, devido ao caráter não conclusivo

de suas proposições –, ao invés de simplesmente rever o caminho percorrido, propõe-se

relacionar tanto a produção da memória sobre Capistrano, quanto à escrita de si

desenvolvida pelo historiador através de suas cartas, com a história da história no Brasil. A

proposta é concluir com uma pequena discussão sobre o modo como a história da

disciplina no Brasil foi contada, indicando o lugar de Capistrano e de sua obra nessa

história.

11

I

MORTE E VIDA

DE UM HISTORIADOR NACIONAL

12

1

Morre o historiador da pátria:

a construção de um símbolo da brasilidade

“Nunca pensei que eu pudesse morrer”. Essas palavras teriam sido ditas por

Capistrano de Abreu a um grupo de amigos que o visitava em sua casa, quando ele se

encontrava adoentado, em agosto de 1927. Foram registradas pelo etnógrafo Edgar

Roquette-Pinto, que estava entre os visitantes e pouco depois escreveu:

Venho da casa de Capistrano de Abreu, o querido Mestre dos meus estudos etnográficos. A

doença prostrou o indomável sertanejo acaboclado Já não se estira na rede, companheira

fiel de tantos anos; ergue-se a custo sobre o cotovelo na posição que a dispnéia concente;

geme baixinho, sem queixa nem revolta. É um ocaso meigo o daquele sábio cheio de

bondade tolerante. No quarto de pouca luz, atravancado de livros, os amigos, os discípulos

cercam-no com a ânsia sincera de verificar uma melhora. É afinal o Brasil que se debruça

sobre o leito em que sofre um dos seus maiores filhos.1

Capistrano morreu no dia 13 de agosto, aos 74 anos. Passou seus últimos anos de

vida na casa da travessa Honorina, no 25, em Botafogo, Rio de Janeiro, onde vivia no porão

em meio a livros e papéis empilhados. Lúcido até o fim, rejeitou sucessivos apelos para

que se convertesse ao catolicismo antes do último suspiro.2 Também manifestou o desejo

de um enterro simples, sem ostentação.

1 ROQUETTE-PINTO, Edgar. “Capistrano de Abreu”. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro, vol. IV,

n. 1, março de 1928, p. 1. 2 Em 1911, a filha de Capistrano de Abreu, Honorina, entrou para o Convento das Carmelitas, em Santa

Tereza, adotando o nome de Maria José de Jesus. Desde então, ela se empenhou na conversão do pai ao

catolicismo, enviando-lhe cartas que eram “verdadeiros sermões”. Sobre a correspondência entre Capistrano

e sua filha, ver: BUARQUE, Virgínia Albuquerque Castro. Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre

Maria José. Fortaleza, Museu do Ceará, 2003. Coleção Outras Histórias, 20. No leito de morte, Capistrano

recebeu a visita de amigos católicos e padres, que tentaram em vão convertê-lo. Entre os que o visitaram

13

Anos depois, o escritor Rodrigo Otávio Filho lembrou a cena da morte em tom

trágico:

Era triste, era muito triste, aquele porão da Travessa Honorina. Ainda o vejo na sua

desordem e na sua tristeza. A pouca luz ambiente dava ao semblante de meia dúzia de

homens e de mulheres – que silenciosos e de cabeça baixa esperavam o momento último

daquele grande homem –, os contornos estáticos de figuras de tragédia.3

Em “carro fúnebre de indigente”, o corpo foi transportado por “estranho préstito”

de sua casa até o cemitério local de São João Batista. Segundo o engenheiro, polígrafo e

ex-ministro João Pandiá Calógeras, amigo íntimo de Capistrano,

Centenas de pessoas de todas as gerações, de ambos os sexos, unidos na mesma mágoa, no

mesmo luto e no mesmo respeito, olhos rasos de lágrimas, foram carregando à mão,

revezando-se, o esquife de pobre em que repousava o grande brasileiro.4

A capital federal havia presenciado grandes funerais durante a Primeira República

(1889-1930): Machado de Assis, em 1908; Afonso Pena e Euclides da Cunha, em 1909;

Joaquim Nabuco, em 1910; o Barão do Rio Branco, em 1912; Pinheiro Machado, em 1915;

Osvaldo Cruz, em 1917; Rodrigues Alves, em 1921; Rui Barbosa, em 1923. Além desses,

o traslado dos restos mortais dos imperadores Pedro II e Tereza Cristina, em 1921, causara

enorme comoção. Foram longos cortejos organizados por rígida hierarquia, com a

participação de autoridades e membros da elite, além de grande número de populares. Com

a maior pompa, alguns funerais tiveram o status de festa nacional.5

De modo recorrente, os cortejos transcorriam entre os locais da morte, do velório e

do enterro. De acordo com João Felipe Gonçalves, que analisou os grandes funerais da

Primeira República, o velório era de suma importância, devendo haver identidade entre o

estava o padre Leonel Franca, um dos mais importantes sacerdotes do país, dedicado à conversão de

intelectuais. 3 OTÁVIO FILHO, Rodrigo. “A vida de Capistrano de Abreu”. Aula inaugural do Curso Capistrano de

Abreu, 02/09/1953. Revista do IHGB, vol. 221, outubro-dezembro, 1953, p. 64. 4 CALÓGERAS, João Pandiá. [Necrológio de Capistrano de Abreu]. Atas da 6

a Sessão Ordinária do IHGB,

13/09/1927. Revista do IHGB, tomo 101, vol. 155, 1928, p. 355. 5 Como exemplos de estudos de funerais de homens públicos, ver: GONÇALVES, João Felipe. “Enterrando

Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República”. Estudos

Históricos – Dossiê Heróis Nacionais. Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 135-161; ABREU, Regina.

“Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados”. Estudos Históricos – Dossiê Comemorações.

Rio de Janeiro, vol. 7, n. 14, 1994, p. 205-230, versão digital, p. 1-24; idem, O enigma de “Os sertões”. Rio

de Janeiro, Rocco / Funarte, 1998.

14

morto e o local onde ocorria, o que exigia cuidadosas escolhas por parte dos organizadores.

Machado de Assis e Euclides da Cunha, por exemplo, foram velados na Academia

Brasileira de Letras; o Barão do Rio Branco, no Palácio do Itamaraty; Afonso Pena, no

Palácio do Catete; Rui Barbosa, na Biblioteca Nacional. Todos caracterizados por luxuosa

decoração, repleta de veludo negro, crepes, flores, altares, dosséis e guardas de honra. O

objetivo era demonstrar a especificidade da vida e das obras do finado através das

instituições com as quais ele se relacionara. Na ocasião dos funerais, espaços normalmente

interditados à população serviam como uma espécie de palco para a performance pública

das elites.6

Além do impacto simbólico dos velórios, os funerais eram uma ocasião propícia

para discursos, responsáveis pela dimensão mais cognitiva da cerimônia fúnebre. Através

de pronunciamentos grandiloqüentes e laudatórios, buscava-se a individualização e a

imortalização do morto em meio a expressões retóricas de dor.7 No caso dos mortos

ilustres anteriormente citados é notável a associação de seus nomes à nação, o que permite

considerar seus funerais como verdadeiros “rituais cívicos”.8

Contrastando com tais eventos, cercados por toda pompa e circunstância, o velório

no porão e o enterro de Capistrano de Abreu chamam a atenção pela simplicidade, assim

como, pela diversidade do séqüito. Segundo Pandiá Calógeras,

Num movimento espontâneo de amor, todos os presentes às pobres e mesquinhas exéquias

– grandes nomes nacionais; humildes índios a que tinha servido e abrigado; respeitáveis

senhoras por quem nutrira tanto afeto e que lhe retribuíam com tanta sinceridade, sem

limite de idade, das avós de cabelos brancos às mocinhas que desabrochavam à vida;

discípulos pranteando o Mestre; íntimos rememorando as expansões de sua intimidade –

todos quiseram levar os restos queridos ao cemitério com uma demonstração última,

singela e augusta, de imarcescível saudade.9

O escritor e crítico literário Humberto de Campos confirma parte do relato ao dizer

que, “o cortejo fúnebre desceu do Largo dos Leões pela Rua Voluntários da Pátria. No

6 GONÇALVES, “Enterrando Rui Barbosa”, op. cit., p. 149.

7 O ritual de “falar sobre o morto” ou “lembrar o morto” nem sempre existiu, sendo que a preocupação com a

morte individual é característica dos tempos modernos. É principalmente a partir do século XVIII que se

verifica a tendência crescente da tematização da morte individual, sendo que o culto aos mortos cresceu ao

longo do século XIX, sendo expresso através dos túmulos e dos cemitérios, assim como, pelas manifestações

de pesar pela perda e saudade do morto. Ver ARIÈS, Philipe. A história da morte no ocidente. Lisboa,

Teorema, 1989. 8 GONÇALVES, op. cit., p. 151.

9 CALÓGERAS, [Necrológio de Capistrano de Abreu], op. cit., p. 355.

15

préstito mortuário, compungidos, alguns com os olhos úmidos, deputados, senadores,

ministros, ex-ministros, banqueiros, acadêmicos, embaixadores”.10

E Rodrigo Otávio Filho

complementa ao lembrar que:

(...) não era só essa gente excelsa que acompanhava o enterro de Capistrano. Junto ao

caixão seguiam também muitos amigos sem renome ou glória, discípulos silenciosos, e

dois índios tristes, índios que ele trouxera da selva e que educara como filhos.11

Os relatos fazem questão de frisar que os membros da elite política e intelectual do

país caminharam lado a lado com gente comum, sem hierarquia. Além da curiosa presença

de dois índios, homens e mulheres anônimos de diferentes faixas etárias transitaram entre o

modesto lugar onde viveu e morreu Capistrano e o local do enterro. Os discursos valorizam

a espontaneidade das homenagens póstumas, marcadas pelo tom intimista, destacando a

sinceridade do afeto demonstrado pelo morto e exaltando a humildade, presente tanto na

vida como na morte do homenageado. O caixão foi conduzido a pé, carregado pelos

amigos e admiradores que se revezaram, entre os quais: Cândido Rondon, Rodolfo Garcia,

Francisco Sá, Afonso Celso, Rodrigo Otávio, Paulo Prado, Miguel Arrojado Lisboa,

Francisco de Assis Brasil, Graça Aranha, Miguel Couto, Assis Chateaubriand, entre outros,

inclusive os dois índios.

Durante o enterro, o historiador Rodolfo Garcia fez o elogio do morto em nome do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a mais importante instância de consagração dos

estudos históricos do país, desde a primeira metade do século XIX, quando foi criado. O

ponto alto do discurso foi a repetição das palavras emitidas pelo próprio Capistrano na

ocasião da morte de outro historiador, o ilustre Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1878.

Até então, Varnhagen era considerado o pai da historiografia brasileira, autor da História

Geral do Brasil (1854-1857) obra revisada por Capistrano e Garcia. Ao escrever o

necrológio de Varnhagen, Capistrano lamentou: “A pátria traja de luto pela morte de seu

historiador. Morte irreparável, pois que a constância, o fervor e o desinteresse que o

caracterizavam, dificilmente se hão de ver reunidos no mesmo indivíduo”.12

Após a morte,

Capistrano foi associado às mesmas características que ele valorizara em Varnhagen – a

10

CAMPOS apud OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 65. 11

OTÁVIO FILHO, ibidem, p. 65. 12

ABREU, Capistrano de. “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen”. In: _____. Ensaios e estudos:

crítica e história, 1a série. 2

a edição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975, p. 81-91.

Originalmente publicado no Jornal do Comércio, 16-20/12/1878.

16

constância, o fervor e o desinteresse –, conforme lembrou Garcia em seu discurso

fúnebre.13

Além do elogio proferido no enterro, alguns artigos foram publicados na imprensa

da capital e do Ceará, terra natal de Capistrano. O historiador João Ribeiro, por exemplo,

defendeu a decretação de luto nacional. Afirmou que o “sábio mestre” – um “homem

despido de todas as vaidades e de todas as preocupações de interesse material” – era o

único que poderia ter escrito a história do Brasil com autoridade, lastimando que ele não o

tenha feito, por não conseguir levar a cabo o que principiava. Também chamou a atenção

para as “esquisitices e singularidades” de Capistrano, observando que “ninguém como ele

parecia um índio que houvesse perfurado a civilização e subido à tona da nossa cultura,

com arco e flecha, seminu e indomável”.14

Essa associação de Capistrano aos indígenas também aparece nas observações do

jornalista Assis Chateaubriand, cujo olhar captou a presença de um índio tuxinim no

velório e no enterro. Disse Chatô:

Ao sair do pobre porão de trapista intelectual onde morava, o enterro de Capistrano de

Abreu, quando lhe tomou uma das alças do caixão, o índio tuxinim, que ele mandara

buscar, para fixar-lhe a língua, do interior do Mato Grosso, eu tive como que a sensação de

que nenhum de nós era tanto o expoente de qualquer cousa de eterno, na vida do grande

indigenista, como aquele representante dos primeiros povoadores da terra brasileira. Luís

(assim se chamava o tuxinim) ali estava, com a sua farda de soldado da brigada policial, os

olhos vermelhos de chorar, levando o esquife de Capistrano de Abreu, ao lado de Francisco

Sá, Paulo Prado, Arrojado Lisboa, Aguiar Moreira e tantos outros. A presença daquele

índio no acompanhamento fúnebre do eminente historiador, cuja paciência beneditina

reproduziu para a nossa história tantos idiomas dos nossos aborígines, em vésperas de

desaparecerem, era como um pedaço da brasilidade.15

13

O elogio fúnebre feito por Garcia é parcialmente citado por MATOS, Pedro Gomes de. Capistrano de

Abreu: vida e obra do grande historiador. Fortaleza, A. Batista Fontenele, 1953, p. 311; MENEZES,

Raimundo de. Capistrano de Abreu: um homem que estudou. São Paulo, Melhoramentos, 1956, p. 77; e

RODRIGUES, José Honório. “Rodolfo Garcia”. In: _____. História e historiografia. Petrópolis, RJ, Vozes,

1970, p. 155. 14

RIBEIRO, João. “Retrato de Capistrano de Abreu”. In: _____. Obras – Crítica, vol VI: Historiadores.

Organização de Múcio Leão. Rio de Janeiro, ABL, 1961, p. 93-94. Originalmente publicado no Jornal do

Brasil, 14/08/1927. 15

CHATEAUBRIAND, Assis. “Capistrano de Abreu”. O Jornal, 14/08/1927.

17

Para o observador, o índio choroso no velório representava “qualquer coisa de

eterno” na vida de Capistrano. Representava “um pedaço da brasilidade”, que o

historiador-indigenista pudera atingir e, de certa forma, salvar, com seus estudos.

Outro jornalista, Gonçalo Jorge – que, ao contrário dos outros comentaristas aqui

citados, não conheceu Capistrano pessoalmente – fez questão de lembrar o contraste entre

o corpo de Capistrano, “desajeitado e exótico”, e seu “espírito luminoso”. Afirmou: “no

físico, ele era um sertanejo, um filho do adusto nordeste, um homem feio, agreste,

desagradável. No espírito, que belo e alto clarão havia!”. Também frisou que a decantada

generosidade de Capistrano contrastava com sua irreverência, sarcasmo e ironia,

lamentando, como João Ribeiro, que ele não tenha legado uma grande obra ao Brasil,

como era esperado.16

O escritor Coelho Neto apresentou Capistrano como “um estranho no meio e no

tempo” por seu temperamento arredio, interpretado como uma “sobrevivência do

„bárbaro‟, latente no super-civilizado”. Para esse comentarista, Capistrano possuía uma

“alma primordial” que o impelia para o estudo do passado. Concordando com João

Ribeiro, afirma que o falecido sábio era um “selvagem, que o estudo tornou um dos

expoentes máximos da nossa cultura”.17

Além dos artigos que circularam pela imprensa, também ocorreram manifestações

de pesar na Câmara dos Deputados e no Senado e, como era de praxe, as atas das sessões

foram registradas nos anais e publicadas nos jornais.18

Por fim, seguiram-se as homenagens

nas principais instâncias de consagração do mundo intelectual da época.

Um mês após o funeral, foi feita homenagem na 6a Sessão Ordinária do IHGB,

dirigida pelo presidente perpétuo, o conde Afonso Celso.19

João Pandiá Calógeras

apresentou o necrológio daquele que considerava como um verdadeiro “tapuia

transplantado para o meio civilizado”. Suas qualidades como erudito e homem modesto,

dotado de uma alma “bondosa”, “pura”, “abnegada” e “heróica”, avesso às vaidades e a

todo pedantismo, ajudaram a tecer a imagem de um “beneditino das letras”, que era, ao

mesmo tempo, “artista e pensador”. Ao lembrar o historiador morto propôs um outro

arranjo para a tradição historiográfica brasileira: desde então, a história de Capistrano se

16

JORGE, Gonçalo. “Capistrano de Abreu”. Jornal do Brasil, 15/08/1927. 17

COELHO NETO, Henrique. “Redimido”. Jornal do Brasil, 21/08/1927. 18

Ver O Globo, 13/08/27, 15/08/27 e 18/08/27; Jornal do Comércio, 14/08/27 e 16/08/27; Gazeta de

Notícias, 14/08/27 e 16/08/27; Jornal do Brasil, 14/08/27, 15/08/27, 16/08/27, 19/08/27, 21/08/27 e

26/08/27; A Manhã, 16/08/27; O Jornal, 28/08/27. 19

A 6a Sessão Ordinária foi realizada no dia 13 de setembro de 1927. Suas atas foram publicadas na Revista

do IHGB, tomo 101, vol. 155, 1928, p. 342-356. O necrológio escrito por Pandiá Calógeras encontra-se entre

as páginas 344 e 355.

18

confundiria com a própria memória da escrita da história no Brasil. Para Calógeras, antes

de Capistrano, “havia monografias históricas, crônicas mais ou menos interessantes,

memórias e anais sem grande nexo e com escassa crítica”. Com o “Mestre” teriam

aparecido virtudes novas:

O respeito ritual pelo documento; a facilidade de verificação das origens; o grupamento

filosófico dos sucessos; as correntes formadoras do determinismo econômico e dos

conceitos espirituais; a análise mais precisa dos fatos; a ampliação do campo devassado; a

pesquisa de depoimentos mais abundantes e mais seguros; o impessoalismo da psicologia;

o apuro na preocupação de narrar e nunca de provar; a mais absoluta probidade ao citar e

no concluir; a redação “sine ira ac studio”.20

Conclui com a opinião de que Capistrano foi um “Triunfador”: triunfou sobre o

egoísmo, “com seu exemplo de vida modesta e votada ao serviço do Brasil”; sobre a

riqueza, a ignorância e a indiferença das massas, ao se impor como “maestro di color che

sanno”. Por fim, vencera a própria morte, pois sua memória inspiraria continuadores

capazes de trabalhar pela “formação moral e mental” do país.

Em outubro, durante a Sessão Magna comemorativa do 89o aniversário de fundação

do Instituto, o historiador Ramiz Galvão pronunciou algumas palavras sobre o morto. Após

uma pequena biografia, onde chamou a atenção para a presença dos livros como

companheiros e mestres de Capistrano e para sua trajetória profissional marcada pela

passagem por instituições como a Biblioteca Pública da Corte, o Colégio de Pedro II e o

IHGB, o orador confirmou a imagem de um sábio que tinha a aparência de um “filho das

selvas transplantado para o seio da civilização”. Também reafirmou a visão de Capistrano

como “uma alma boa e meiga” despida de vaidades.21

Em outra instituição importante, a Academia Brasileira de Letras, o escritor e

magistrado Rodrigo Otávio já havia pronunciado o elogio fúnebre de Capistrano, seu

amigo de longa data, lembrando as qualidades do homenageado, “vulto dos mais

conspícuos da ciência e das letras brasileiras”, “grande obreiro da literatura nacional”. Ao

seu lado, Afrânio Peixoto ressaltou o “talento da amizade” como uma das características do

20

CALÓGERAS, [Necrológio de Capistrano de Abreu], op. cit., p. 352. 21

A 7a Sessão Magna comemorativa ocorreu no dia 21 de outubro de 1927 e foi presidida por Washington

Luis, Presidente da República e presidente honorário do IHGB. As atas foram publicadas na Revista do

IHGB, tomo 101, vol. 155, 1928, p. 418-469. O necrológio escrito por Ramiz Galvão encontra-se entre as

páginas 460 e 465.

19

morto, cujo valor poderia, supostamente, ser medido pelo número e pela qualidade dos

amigos que possuiu.22

A pobreza e a desordem do ambiente onde viveu e morreu Capistrano ajudaram a

sustentar a imagem de um homem simples, sem vaidades ou interesses, que dedicou sua

vida aos estudos, avesso a homenagens e elogios públicos. Nesse sentido, as descrições do

local da morte e do enterro contrastaram e maximizaram a importância atribuída ao morto.

A morte de um indivíduo proeminente era ocasião oportuna para a construção de

representações capazes de associá-lo a ideais coletivos. O nome de Capistrano de Abreu

permitiu materializar idéias e valores considerados importantes e dignos de serem

celebrados durante a Primeira República, quando se observa um “movimento geral de

criação de heróis cívicos” e de elogio dos “grandes homens”, que, em grande parte, eram

recrutados no mundo da política e/ou das letras.23

1.1. O “homem de letras” como símbolo nacional

O interesse por figuras ilustres cresceu na Europa ao longo do século XIX, abrindo

espaço para a construção de galerias de heróis nacionais, figuras representativas dos

valores de um país ou de um dado momento da história pátria.24

Esse crescimento se deve

a uma conjunção de fatores, entre os quais o fortalecimento das nações – sustentado pela

invenção de tradições e pela identificação de símbolos capazes de representá-la – e a

afirmação do individualismo.25

A trajetória individual despertava interesse na medida em que fornecia elementos

supostamente universais, comuns não a todos os homens, mas a todas as sociedades.

Construíam-se analogias entre certos indivíduos e a coletividade, transpondo-lhes

características. Assim, uma história nacional podia ser contada como uma história de vida

22

Ata da 39a Sessão da ABL, ocorrida em 18/08/27, p. 228-232. Outras personalidades que se pronunciaram

durante a sessão foram Afonso Celso e Coelho Neto. 23

João Felipe Gonçalves defende a necessidade de analisar os rituais fúnebres da Primeira República em

conjunto, tomando cada caso como exemplo de um fenômeno mais amplo, o “movimento geral de criação de

heróis”. O objetivo é compreender o sentido comum das várias manifestações de uma prática ritualística,

supostamente caracterizada pelos seguintes elementos comuns: a construção e naturalização de hierarquias; o

reforço da estrutura social; o desenvolvimento de um individualismo da distinção. GONÇALVES,

“Enterrando Rui Barbosa”, op. cit., p. 151 e 156-57. 24

ENDERS, Armelle. “„O Plutarco Brasileiro‟: a produção de vultos nacionais no Segundo Reinado”.

Estudos Históricos – Dossiê Heróis Nacionais. Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 41. 25

Sobre nação e nacionalismo, uma das referências principais é HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo

desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. Sobre a relação entre

nacionalismo e individualismo, ver DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da

ideologia moderna. Rio de Janeiro, Rocco, 1985.

20

– a vida dos homens célebres ou dos heróis –, pois se concebia que alguns destinos

individuais poderiam estar relacionados às escolhas nacionais.26

O “grande homem” era visto como dotado de livre-arbítrio, o que lhe permitia

escapar do reino da necessidade, onde vivia a maioria dos mortais. Acreditava-se que suas

vidas tinham algo a ensinar à humanidade. Além disso, também eram portadores do tipo de

documentação mais valorizado naquele momento: os documentos escritos, produzidos no

âmbito da política e do Estado, o que contribuiu para que eles pudessem ser privilegiados

pela escrita da história. Mas, enquanto no campo da historiografia predominava o interesse

pelo “homem célebre”, na literatura havia espaço para figuras anônimas ou obscuras, de

modo que, “a história de um velho abandonado pela sorte não era „menos interessante que

a da derrota de um grande general, e o destino de uma tripulação naufragada não era menos

importante que o de seu almirante‟”.27

Ou seja, enquanto a história, interessada em

demarcar sua especificidade em relação a outros campos, optava por manter uma “dupla

contabilidade dos homens” (os célebres e os não célebres, excluídos da história), a

literatura se encontrava povoada por figuras comuns.28

Segundo José Felipe Gonçalves, os discursos das grandes celebrações fúnebres

ocorridas durante a Primeira República afirmam que os mortos celebrados haviam

construído a nação com seus dotes inatos e únicos, de modo que “o Brasil era visto como

um grande artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens com

qualidades acima do normal”; qualidades que os tornavam capazes de materializar valores,

idéias ou instituições a serem lembradas e comemoradas.29

Esse culto a determinados

indivíduos foi alimentado por uma sólida tradição herdada do Império: a do elogio do

“grande homem”, fenômeno europeu, que adquiriu características próprias no cenário

nacional.

O elogio foi um gênero oratório de sucesso na França setecentista, dedicado a

vangloriar os indivíduos que, diferindo dos reis e santos, pertenciam a “uma república de

talentos”, uma coletividade de cidadãos notáveis, que se destacavam por mérito próprio no

mundo do pensamento, das letras, da política, dos negócios, da guerra etc. Inicialmente, o

elogio restringia-se às academias de ilustrados. Posteriormente, alcançou um público mais

amplo mediante o crescimento das práticas de escrita e leitura, capazes de favorecer a

26

LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala: a

experiência da microanálise. Rio de Janeiro, FGV, 1998, p. 225-249. 27

DA PONTE, Lorenzo apud LORIGA, ibidem, p. 237. 28

LORIGA, ibidem, p. 225-249. 29

GONÇALVES, “Enterrando Rui Barbosa”, op. cit., p. 152.

21

elaboração de histórias individuais, condição para a afirmação de identidades. A

democratização de tais práticas ao longo do século XIX alimentou o que Alan Corbin

chamou de “tentação de forjar heróis”, que ganhou espaço não só entre as elites, de modo

que “qualquer um podia ser tentado a adotar a pose de herói”, ainda que fosse no interior

de círculos restritos como a família, o grupo de amigos ou pares.30

No Brasil, a tarefa de homenagear os grandes mortos coube, inicialmente, aos

membros de instituições culturais e artísticas do Império, regidas pela lógica das academias

ilustradas européias do século XVIII, que constituíram verdadeira tradição na construção

de galerias de “homens ilustres”, através de dicionários, biografias, necrológios e retratos.

O IHGB, fundado em 1838, se destacava entre essas instituições, reunindo a nata da elite

imperial, empenhada em reservar um lugar para seus membros entre os grandes da história

nacional. Como observou Armelle Enders, mais que uma “galeria nacional”, o que os

polígrafos do IHGB elaboraram foi uma “galeria de espelhos”.31

No fim do século XIX,

outra instituição veio a se destacar nessa tarefa: a Academia Brasileira de Letras, criada em

1896, com o objetivo de zelar pela língua e literatura nacionais, assim como, de trabalhar

para glorificar e imortalizar os “homens de letras”.32

Foi na Europa do Oitocentos que se difundiu a idéia do “homem de letras” como

herói nacional. Uma das célebres conferências de Thomas Carlyle, intitulada The hero as

man of letters, de 1840, exemplifica essa tendência.33

Para esse historiador inglês, o herói

como “homem de letras” é a mais importante personagem moderna, por ser capaz de

ensinar o que o mundo há de fazer e executar. Através da arte de escrever, esse herói

moderno podia ir além dos homens comuns na percepção da realidade. Suas principais

qualidades seriam a “seriedade”, a “sinceridade” e a “originalidade”, que o auxiliariam na

compreensão do real e na busca da verdade. Nas palavras de Carlyle:

30

Ver OZOUF, Mona. “Le Phanthéon, l‟École Normale des morts”. In: NORA, Pierre (Ed.). Les lieux de

memórie, t. 1 – La République. Paris, Gallimard, 1984, p. 139-166; e CORBIN, Alan. “O segredo do

indivíduo”. In: PERROT, Michelle (Org.). História da vida privada 4 – Da Revolução francesa à Primeira

Guerra Mundial. 1a ed. 1987. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 428-430 e 458-463.

31 ENDERS, “„O Plutarco Brasileiro‟”, op. cit., p. 41, 43, 45 e 59; GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado.

“Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história

nacional”. Estudos Históricos – Dossiê Caminhos da Historiografia. Rio de Janeiro, vol. 1, n.1, 1988, p. 5-27. 32

EL FAR, Alessandra. “„A presença dos ausentes‟: a tarefa acadêmica de criar e perpetuar vultos literários”.

Estudos Históricos – Dossiê Heróis Nacionais. Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, vol. 14, n. 25, 2000, p.

119-134; Idem. A encenação da imortalidade: uma análise da Academia Brasileira de Letras nos primeiros

anos da República (1897-1924). Rio de Janeiro, FGV, 2000. 33

CARLYLE, Thomas. “O herói como homem de letras. Johnson, Rousseau, Burns”. V Conferência,

19/05/1840. In: Os heróis. Lisboa, Guimarães Editores, 2002, p. 145-180.

22

O herói é aquele que vive na esfera interior das coisas, no Verdadeiro, no Divino e no

Eterno que sempre existem, (ainda quando desconhecidos pela maioria dos homens), no

temporário e no trivial; aí está o seu ser; declara e exterioriza isso, por palavras ou por

obras, conforme o caso, e declara-se também exterior (...) O homem de letras, como todo o

herói, existe para proclamar esta verdade, da melhor maneira que puder. Intrinsecamente

esta função é a mesma para o cumprimento da qual as velhas gerações nomeavam um

homem profeta, sacerdote, divindade; para o cumprimento da qual, pela palavra ou pela

obra, os heróis de todas as espécies foram enviados ao mundo.34

As noções de herói como profeta, poeta, sacerdote, literato ou estadista,

desenvolvidas por Carlyle, fizeram escola no pensamento contemporâneo, inclusive no

Brasil. Sua crítica ao materialismo, ao mecanicismo e ao utilitarismo do século XVIII era

guiada pela valorização de aspectos como a inteligência, a sensibilidade e o espírito, que o

autor relacionava às atividades do pensamento e da escrita, desenvolvidas pelos “homens

de letras”.

O trabalho de Carlyle serve como exemplo de um movimento geral de ascensão dos

“homens de letras” no cenário nacional, que embora tenha tido variantes no contexto

europeu e americano, permite supor algumas generalizações. Fernando Catroga relacionou

essa ascensão a um processo de secularização capaz de transferir uma certa aura de

sacralidade aos escritores; capaz de lhes garantir o papel de mediador entre os homens

comuns e as verdades que os ultrapassavam. Assim:

O escritor secularizado – o novo clerc – surgia revestido de uma áurea de sacralidade

decorrente de sua função de mediador de algo que o ultrapassava, mas que dizia respeito a

valores essenciais. E a sensibilidade romântica levou esta concepção às suas últimas

conseqüências, ao defini-lo como o melhor revelador do Volksgeist [espírito do povo]. Por

isso, o escritor, a quem se reconhecia o dom de perscrutar a própria essência da alma do

povo, era o mais consensual dos „grandes homens‟, o representative man por excelência da

própria nação.35

Trata-se, portanto, de um movimento que vai do elogio dos “grandes homens” à

construção do herói como um dos símbolos da nação, reservando espaço entre esses para

34

CARLYLE, ibidem, p. 146. 35

CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história”. In: _____; TORGAL, Luís Reis e MENDES, José

Amado. História da História em Portugal: séculos XIX-XX. S.l., Temas & Debates, [1998], vol. 2, p. 340.

Ver, especialmente, o item 6, A sacralização cívica da literatura, p. 339-348.

23

aqueles que se dedicavam às atividades do pensamento e da escrita, identificados pela

expressão genérica de “homens de letras”.36

Essa expressão tornara-se popular na França

do século XVIII, servindo para designar não o erudito com saber profundo sobre

determinado assunto, mas alguém que adquiriu conhecimentos sobre várias áreas do

saber.37

No Brasil da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX,

a expressão “homem de letras” servia para designar um conjunto bastante amplo e

heterogêneo de polígrafos, que incluía bacharéis em direito, médicos, engenheiros e

literatos, que se ocupavam de modo diferenciado do ensino, da escrita da história, dos

debates políticos, da literatura e dos temas sociais, através de atividades como, por

exemplo, o jornalismo, o magistério e a crítica literária.38

A figura do “homem de letras”

permitia associar as idéias de cultura e nação, materializando a noção de “Brasil culto”, tão

cara aos projetos civilizadores desde o Segundo Reinado.

Empenhado na construção da imagem de monarca esclarecido, o imperador Pedro

II apoiou as artes, ciências e letras através da criação de instituições, da concessão de

prêmios, bolsas e sinecuras.39

Tais investimentos relacionavam-se ao projeto de construção

de uma nação civilizada nos trópicos, de acordo com um modelo europeu de civilização e

progresso. Tratava-se de produzir uma cultura nacional possível de ser associada a valores

tidos como universais e, ao mesmo tempo, capaz de representar as particularidades da nova

nação.40

A implementação desse projeto civilizador exigiu a constituição de agentes sociais

capazes de atuar como construtores, portadores e disseminadores da nacionalidade.

Confirmando a idéia de que “a proteção às letras é o mais valioso atributo dos príncipes”,41

os “homens de letras” (todos os que se dedicavam à atividade da leitura e da escrita, em

36

Sobre o elogio ao “homem de letras”, ver: WERNECK, Maria Helena. “As poéticas de elogio ao homem

de letras”. In: _____. O homem encadernado: Machado de Assis na escrita das biografias. Rio de Janeiro,

UERJ, 1996, p. 31-45. 37

CHARTIER, Roger. “O homem de letras”. In: VOVELLE, Michel (Dir.). O Homem do Iluminismo.

Lisboa, Editorial Presença, 1997, p. 117-153. 38

GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro, FGV, 1996, p. 38. 39

Ver, por exemplo, SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Um monarca nos trópicos: o Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, a Academia Imperial de Belas-Artes e o Colégio Pedro II”. In: _____. As barbas do

imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 125-157. 40

Ver GUIMARÃES, “Nação e civilização nos trópicos”, op. cit.; SCHWARCZ, op. cit.; SALLES, Ricardo.

“O papo amarelo do tucano: a cultura imperial”. In: _____. Nostalgia imperial: a formação da identidade do

Brasil no Segundo Reinado. Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p. 75-113. 41

RIHGB, vol.1, p. 68. Conforme a definição da Enciclopédia (século XVIII), o termo “letras” era sinônimo

de ciência, havendo uma distinção entre as “letras humanas”, assunto de poetas, oradores e historiadores, e as

“belas-letras”, compostas pela produção dos filósofos, da geometria e das chamadas ciências sólidas. É a

partir desse termo que se define o “homem de letras” como “homem de estudo e de leitura”. Ver

CHARTIER, op. cit., p. 119-120.

24

seus diferentes gêneros) eram acolhidos e incumbidos da missão de registrar e exaltar as

particularidades nacionais. Aqueles que se interessavam pelo estudo da história, da

geografia, da geologia, da fauna e da flora locais, assim como, pelos costumes e línguas

indígenas, se empenhavam na ampliação dos saberes, revestindo-os de cientificidade.

Preocupavam-se, também, com a maneira de expor os conhecimentos sobre a nação, sendo

que a história e a literatura eram terrenos propícios para a discussão de problemas relativos

à língua e à narrativa da formação da nacionalidade.

Tão importante quanto o gênero dos textos (poemas, romances, memórias, relatos

de viagens etc.) produzidos no período era o debate que eles suscitavam, que contribuía,

entre outras coisas, para que os escritores ficassem conhecidos. O reconhecimento e a

legitimidade da produção desses letrados decorria da capacidade dos mesmos para captar e

transmitir os elementos constitutivos da nação. Estando próximos desse objetivo, os

escritores podiam almejar ter seus nomes guardados para a posteridade nas páginas dos

vários dicionários biográficos publicados no período; dos jornais, onde havia espaço para

artigos biográficos e necrológios; ou da prestigiosa revista do IHGB, onde em 1840 foi

aberta uma seção intitulada Brasileiros ilustres pelas ciências, letras, armas e virtudes

etc..., cujo objetivo era recensear e homenagear os mortos ilustres, reservando espaço para

os literatos, principalmente os poetas, tidos como capazes de captar a alma da nação.42

É possível supor que o movimento de valorização da atividade literária e da figura

do escritor recebeu impulso com as campanhas abolicionista e republicana, acontecimentos

que mobilizaram os “homens de letras”, que através das mais modernas estratégias de

propaganda, deram projeção nacional tanto à causa que defendiam quanto a seus próprios

nomes. Foi estimulado pela organização de meetings, pela proliferação de academias

literárias, sociedades e clubes abolicionistas e republicanos, pela realização de conferências

e saraus, a expansão da imprensa (da imprensa estudantil à grande imprensa) e do mundo

editorial. Também não se pode esquecer as reformas educacionais ocorridas na década de

1880, responsáveis pela ampliação das chances de acesso ao ensino superior

(predominando as faculdades de Direito, Medicina e Engenharia). Pode-se dizer que um

certo apreço pelo mundo das letras – incluindo aí tanto a produção literária quanto a

jornalística –, que se observa no fim do século XIX e início do XX, é decorrente, entre

outras coisas, desse processo de busca da profissionalização por parte dos escritores, que

pouco a pouco conquistam um papel social digno de consideração.

42

ENDERS, “„O Plutarco Brasileiro‟”, op. cit., p. 41-62. Sobre o poeta como herói, ver CARLYLE, Thomas.

“III Conferência – O herói como poeta. Dante; Shakespeare”, 12/05/1840, in op. cit., p. 79-110.

25

É sobretudo a partir da década de 1880 que se nota o avanço da imprensa

jornalística, que se torna capaz de oferecer aos escritores a possibilidade de viver da

publicação de textos. Era uma oportunidade de dedicar o tempo exclusivamente à escrita,

ainda que isso significasse estar sujeito a baixas remunerações.43

Mas, se a imprensa não

garantia os rendimentos financeiros esperados, ao menos era um bom meio de garantir

certa popularidade. Publicando em jornais e revistas, o escritor podia ampliar seu círculo

de leitores, que, mesmo restrito, ajudava a divulgar seu nome e seus escritos.44

A imprensa

contribuiu, sobretudo, para tornar a ofício do escritor-jornalista respeitável, o que não era

pouco, se for considerado que, até então, “só a política e o comércio tinham consideração e

virtude”.45

Mas, para ir da valorização das letras ao surgimento de uma aura em torno de certos

escritores é preciso passar pelo mundo editorial. Se a imprensa ajudava a colocar o nome

em evidência durante algum tempo, era a publicação de livros que, supunha-se, poderia

garantir a permanência de um autor para a posteridade. E publicá-los não era fácil. No Rio

de Janeiro, as maiores editoras eram a Garnier, a Laemmert e a Francisco Alves. A

primeira dedicava-se à publicação de obras literárias; a segunda, aos trabalhos científicos e

a terceira, à produção didática. Sendo o público de leitores bastante restrito devido ao

grande número de analfabetos, as editoras preferiam não investir na publicação das obras

de escritores desconhecidos, optando pelas traduções de romances franceses, que tinham

melhor aceitação. Era comum que os próprios escritores pagassem suas primeiras edições,

sujeitando-se às imposições dos editores.46

Desde a década de 1880 eram freqüentes as opiniões acerca do baixo status da

figura do escritor. Eram interpretações nada otimistas a respeito da vida intelectual, que

lembravam os infortúnios que rondavam os escritores, como a falta de público leitor, as

43

No início do século XX, o jornal Correio da Manhã pagava de 30 a 50 mil réis pelas colaborações,

enquanto o Jornal do Comércio oferecia até 60 mil. A Gazeta de Notícias oferecia a remuneração mais alta:

pagava de 300 a 400 mil aos redatores. Os literatos que já tivesse o nome conhecido podiam obter colunas

fixas, recebendo salário mensal, ao invés de remunerações avulsas. Ver, por exemplo: SODRÉ, Nélson

Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 251-389. 44

Cabe observar que, de acordo com o Censo de 1872, 81,4% da população brasileira não sabia ler, enquanto

18,6% eram alfabetizados. Na virada do século observa-se uma mudança significativa: há 66,9% de

analfabetos e 33,1% de alfabetizados. Ver MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da República das

Letras. São Paulo, Editorial Grijalbo, 1973, p. 253. 45

Disse Olavo Bilac: “a minha geração, se não teve outro mérito, teve este, que não foi pequeno: desbravou o

caminho, fez da imprensa uma profissão remunerada, impôs o trabalho. Antes de nós, Alencar, Macedo e

todos os que traziam a literatura para o jornalismo, eram apenas tolerados: só a política e o comércio tinham

consideração e virtude. Hoje, oh!, espanto! já há jornais que pagam verso!”. BILAC apud EL FAR, A

encenação da imortalidade, op. cit., p. 38-39. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, 02/08/1903. 46

Ver, por exemplo, MACHADO NETO, op. cit., p. 77-83 e 113-124; e HALLEWELL, Laurence. O livro

no Brasil (sua história). São Paulo, T. A. Queiroz; USP, 1985, p. 125-221.

26

baixas remunerações e as dificuldades para publicar, que sustentavam, em conjunto, um

quadro de desvalorização do trabalho literário.47

No entanto, embora os dissabores da

profissão desanimassem alguns, também serviam para estimular a construção de uma

espécie de imagem sublime dos escritores que, apresentados como honestos e abnegados,

procuravam superar todos os infortúnios, não se rendendo ao gosto fácil do público

consumidor, em defesa de uma arte mais “sincera”, “genuína” e, portanto, “verdadeira”.

Essa construção está presente em numerosos textos, por vezes autobiográficos, que

retratam a “miséria” e a “obscuridade” que rondavam os escritores do período, geralmente

enaltecendo seus próprios feitos e dificuldades. Dessa forma, é possível pensar que tais

escritos puderam contribuir para a valorização do ofício e para a construção de uma certa

figura heróica do escritor.48

Mas, a condição do “homem de letras” – sua possibilidade de obter prestígio junto

ao público, de ascender socialmente e inscrever seu nome na posteridade – era definida,

principalmente, pelo fato de pertencer ou não a determinadas instituições e/ou de participar

de certas formas de socialização.49

Em outras palavras, significa estar inserido em redes de

sociabilidade, que eram tanto intelectuais, como políticas.50

47

Sobre a desvalorização do trabalho literário ver a antologia organizada por DIMAS, Antônio. Vossa

insolência – Crônicas. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 176-79 e 184-91, que reproduz artigos da

imprensa da época; e, ainda, RIO, João do. O momento literário [1905]. Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca

Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1994. A historiografia reafirma, com freqüência, as interpretações sobre a

difícil projeção dos escritores na última década do século XIX. Ver, por exemplo, SEVCENKO, Nicolau.

Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 1a edição 1983. São Paulo,

Companhia das Letras, 2003. Leonardo Pereira mostra que as reclamações vinham desde a década de 1880,

período de expansão da imprensa, com aumento de oportunidades para os escritores e, também, de muitas

demandas. Ver PEREIRA, Leonardo Affonso de M. “Literatura e história social: a „Geração Boêmia‟ no Rio

de Janeiro do fim do Império”. História Social – Revista da Pós-Graduação em História. Campinas,

UNICAMP, 1994, n. 1, p. 29-64. 48

É expressiva a lista de textos dedicados ao tema da vida literária na virada do século XIX. Entre os mais

citados pela bibliografia especializada estão as Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto;

Cartas literárias (1895), de Adolfo Caminha; A conquista (1899), de Coelho Neto; Mocidade morta (1900),

de Gonzaga Duque; e os capítulos de um romance inacabado de Aloísio Azevedo, intitulado Rui Vaz, cenas

da vida fluminense, que foram publicados na revista A Semana, em 1885. Uma série de entrevistas com

escritores realizadas por João do Rio em 1905 e reunidas sob o titulo de O momento literário, também é

freqüentemente lembrada. 49

Chartier confirma essa tendência no caso da França do século XVIII, afirmando que o elemento que então

caracterizava o homem de letras era a participação na “sociedade de letrados”, muito mais do que a qualidade

de escritor que vive de sua pena. Ver CHARTIER, “O homem de letras”, op. cit., p. 128. É interessante notar

que, em meados da década de 1880 do século XIX, difundiu-se entre os escritores brasileiros o hábito dos

almoços e jantares comemorativos, nos quais uma data especial – o aniversário de um dos convivas ou da

primeira edição de alguma obra importante, por exemplo – era celebrada. Era uma oportunidade para o

pronunciamento de discursos laudatórios em torno de algo ou alguém. Esse tipo de encontro criava a

oportunidade para que os “homens de letras” pudessem afirmar publicamente uma imagem sobre si mesmos.

Trata-se de uma forma de sociabilidade recuperada através dos vários relatos memorialísticos sobre o

período, que pode ser útil para a compreensão da “sociedade de letrados”. Ver RODRIGUES, João Paulo

Coelho de Souza. “A geração boêmia: vida literária em romances, memórias e biografias”. In: CHALHOUB,

27

Em busca de “ocupação e repercussão”, os escritores vinham, em sua maioria, das

províncias para a Corte, depois capital da República. Alguns haviam atuado na imprensa

do interior e freqüentado academias ou grêmios locais. Munidos ou não de diploma ou de

recursos financeiros, era importante que obtivessem o apoio de “padrinhos” com prestígio

o suficiente para arrumar-lhes alguma colocação. Almejavam empregos públicos na

burocracia estatal, vislumbrando a possibilidade de um salário fixo, que lhes garantisse

algum tempo para escrever.51

Estando no local certo, no momento certo, era preciso integrar ou reunir os grupos

certos. Redes de sociabilidade eram tecidas em torno de figuras-chave ou de locais

referenciais, como redações de jornais ou revistas, salões, clubes literários etc.,

constituindo grupos de apoio mútuo que, na época, eram chamados de “igrejinha”,

“panelinha” ou “coterie”. O convívio propiciado por tais redes estimulava o hábito da

conversa, das discussões, fortalecia laços e demarcava diferenças. Supostamente, esse

convívio era de fundamental importância para o desenvolvimento de uma espécie de culto

a determinados escritores que, ainda em vida, podiam ser transformados em referência e

venerados como autoridades.

Afrânio Coutinho já chamou a atenção para o “sistema bem montado de permuta e

fogos cruzados de elogios, às vezes até de auto-elogio”,52

que ajudou a construir a fama de

muitos nomes e obras. Ainda que os limites de tais redes fossem flexíveis e difíceis de

precisar, é possível considerar que através delas tornava-se possível administrar a glória

presente e futura de indivíduos e grupos. Pode-se supor que esse “sistema bem montado”

correspondesse ao que aqui será chamado de “economia da glória”, um sistema de

produção, difusão e consumo da fama, compreendida como um bem simbólico.53

Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (Orgs.). A história contada: capítulos de história social da

literatura no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p. 233-257. 50

Sobre redes de sociabilidade intelectual, ver: Le Cahiers de l’Institut d’Histoire du Temps Present –

Sociabilites intellectuelles. Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, n.20, mars 1992 ;

SIRINELLI, Jean-Fraçois.“Os intelectuais”. In : RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de

Janeiro, FGV/UFRJ, 1996, p. 231-269. 51

A. L. Machado Neto é contundente ao afirmar que não havia a profissão do escritor no século XIX. No

entanto, quando da criação da Academia Brasileira de Letras, em 1896-97, já é possível considerar a

existência de uma profissão socialmente aceita, em parte devido ao prestígio social que o escritor obteve

através do jornalismo, ainda que tal atividade fosse mal remunerada. Com efeito, nenhum dos 60 escritores

estudados por esse autor vivia só de letras. O mais comum é que a atividade literária fosse combinada ao

emprego público e, principalmente, ao jornalismo. Ver MACHADO NETO, Estrutura social da república

das letras, op. cit., p. 81. 52

COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1962, p. 21-22. 53

Sobre a “economia da glória”, ver: BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo

literário. 1a edição 1996. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, 2

a edição; ELIAS, Norbert. Mozart:

sociologia de um gênio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995; HEINICH, Nathalie. La gloire de Van Gogh –

essai d‟anthropologie de l‟admiration. Paris, Minuit, 1991.

28

A preocupação de construir um nome capaz de ser lembrado está presente no

período focalizado, em especial na “sociedade de letrados”.54

Sendo assim, compreender a

fama como um fenômeno histórico cultural é um passo para a investigação do processo que

transformou “homens de letras” em símbolos nacionais. Nesse processo, a fundação da

Academia Brasileira de Letras em 1896 teve papel central, ao propor, como já foi dito,

trabalhar pela glorificação dos “homens de letras”. Segundo Alessandra El Far, longe de

ser um empreendimento isolado, a criação da Academia se deu num contexto de luta pelo

reconhecimento de uma profissão emergente. Assim, “pertencendo a uma agremiação

desse caráter, os literatos não só sublinhariam a importância da literatura nos debates

nacionais, como também alcançariam um prestígio social ainda inédito no trabalho das

letras”.55

A ABL surgiu num momento em que a discussão sobre a língua e a literatura – e

também sobre a história e a geografia (corografia) pátrias – ocupava um espaço

significativo nos debates sobre a chamada “questão nacional”, mobilizando lingüistas,

filólogos, literatos e polígrafos dos mais diversos, o que contribuiu para a valorização do

papel social dos “homens de letras”, de modo que, em 1907, já era possível que alguém

afirmasse que:

Há quarenta anos não havia propriamente homens de letras no Brasil: havia estadistas,

parlamentares, professores, diplomatas, homens da sociedade ou homens ricos, que, de

quando em quando, invadiam por momentos o bairro literário... Depois dessa fase, houve

outra. Apareceram poetas e escritores, querendo ser exclusivamente escritores e poetas e

orgulhando-se dessa ocupação... Que fizemos nós? Fizemos isto: transformamos o que era

então um passatempo, um divertimento, naquilo que é hoje uma profissão, um culto, um

sacerdócio... Tomamos o lugar que nos era devido no seio da sociedade... Podemos dizer

que representamos, para o progresso intelectual do Brasil, na última metade do século XIX,

54

Há muitos comentários de escritores acerca da importância da glorificação póstuma em suas vidas.

Humberto de Campos, por exemplo, dizia que se dedicava tanto ao trabalho para “enganar a morte, deixando

no mundo o meu rastro, para que os estudiosos de amanhã me procurem, depois que ela me tenha levado”.

CAMPOS, Humberto de. Diário secreto. [Rio de Janeiro], O Cruzeiro, 1954, vol. 1, p. 272. Adolfo Caminha

também escreveu sobre a constante preocupação com a popularidade e a glória dos escritores e artistas de sua

época. Afirmou que os “homens de talento”, por oposição aos “nulos” e aos “medíocres”, preferiam a

verdadeira glória, “a glória definitiva e soberana, a glória póstuma, conquistada pelo trabalho de muitos

anos”, por oposição à glória efêmera das aclamações do presente. Ver CAMINHA, Adolfo. Cartas literárias.

Rio de Janeiro, s.e., 1895, p. 13-14. Mas, a glória em vida também era importante, como demonstrou Olavo

Bilac ao exclamar: “Oh, ser imortal em vida! Há razão que resista a esse abalo?”. BILAC apud

RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia

Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas, Unicamp / Cecult, 2001, p. 129, epígrafe. 55

EL FAR, A encenação da imortalidade, op. cit., p. 14, 51-52.

29

o mesmo papel que, para o seu progresso material representaram, no século XVIII, os

heróis das „bandeiras‟... 56

No culto aos “brasileiros ilustres” a atividade literária passou a ocupar um papel

central, uma vez que a língua era considerada o substrato da nacionalidade. Sendo assim,

aqueles que a ela se dedicavam conquistavam o status diferenciado de construtores da

nação, em torno dos quais a República tratou de difundir uma aura de respeitabilidade e

admiração.57

Na França, por exemplo, os funerais de Victor Hugo, em 1885, marcaram a

entronização dos escritores no conjunto dos grandes homens da nação. Em Portugal, o

poeta e historiador Alexandre Herculano foi consagrado na comemoração de seu

centenário de nascimento em 1910.58

No Brasil, os funerais de Machado de Assis, em

outubro de 1908, podem ser considerados como o momento em que, segundo Graça

Aranha, “pela primeira vez um simples homem de letras foi enterrado neste país como um

herói”. Nas palavras de José Veríssimo, “o seu enterro foi um triunfo e jamais no Brasil um

puro intelectual, um escritor, morrendo, despertou na alma nacional tal comoção”.59

O caso de Euclides da Cunha é outro exemplo do empenho em consagrar um

escritor como herói da nação. Euclides morreu assassinado em 1909, passando a ser

sucessivamente cultuado como herói, mártir e santo. Segundo Regina Abreu, foi com

Euclides que teve início o culto organizado e de longa duração do escritor como herói

nacional.60

Cabe observar que o processo de valorização do “homem de letras” ocorreu em

meio a críticas constantes a uma certa imagem do intelectual e a algumas de suas formas de

56

Trecho de discurso proferido por Olavo Bilac, em 1907, na cerimônia em que recebeu o título de Príncipe

dos Poetas Brasileiros, promovido pela Revista Fon-Fon, no Palace Teatro, Rio de Janeiro. Citado por

MACHADO NETO, Estrutura social da república das letras, op. cit., p. 127. 57

Entre 1907 e 1913, os “homens de letras” se mobilizaram em torno da discussão da reforma ortográfica,

acontecimento que lhes permitiu defender a idéia de que eram detentores de uma missão “científica”

fundamental para a sociedade brasileira. Ver, a esse respeito: DE LUCA, Tânia. “Língua: a edificação da

cultura nacional”. In: _____. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo, Unesp, 1999, p.

239-295; e RODRIGUES, A dança das cadeiras, op. cit., p. 181-221. 58

Cabe observar que, no caso português, os “heróis políticos” e os “heróis militares”, devido ao teor mais

polêmico dos seus méritos, não suscitavam consenso, razão pela qual era difícil atribuir-lhes o lugar máximo

na hagiografia cívica em construção desde as últimas décadas do século XIX. Como em outros países

europeus, esse lugar supremo foi atribuído aos escritores. Ver CATROGA, “Ritualizações da história”, op.

cit., p. 339. 59

ARANHA, Graça. Introdução. In: Correspondência de Machado de Assis e Joaquim Nabuco. 1a edição

1923. Organização, introdução e notas de Graça Aranha. Rio de Janeiro, Topbooks / ABL, 2003, p. 82; e, no

mesmo livro, VERÍSSIMO, José. Carta a Joaquim Nabuco, de 03/10/1908, p. 202. As mortes de outros

escritores, como Olavo Bilac (1918) e João do Rio (1921), por exemplo, também causaram grande comoção

pública, ainda que seus funerais não tenham tido a mesma pompa observada no caso de Machado de Assis. 60

ABREU, Regina. O enigma de Os sertões, op. cit., p. 281 e 283.

30

expressão. Tais críticas geralmente se dirigiam à verborragia representada pela linguagem

culta e empolada de muitos intelectuais formados pela tradição bacharelesca.

Freqüentemente se associava a erudição ao pedantismo e a linguagem difícil à retórica

vazia.61

Mas, em meio a críticas e opiniões nada otimistas acerca da atividade literária,

alguns intelectuais promoviam campanhas a favor da glorificação de seus pares já mortos,

através da construção de bustos e monumentos, assim como, da organização de acervos

contendo objetos de escritores, capazes de lembrar seu papel como heróis da nação.62

A construção de um panteão de heróis, mitos e grandes personalidades ocorre em

meio a polêmicas, críticas e disputas por símbolos e alegorias. É possível afirmar que as

décadas iniciais da República no Brasil constituem um período importante para a

compreensão de alguns mitos que cercam o mundo intelectual dos pensadores e escritores

brasileiros; “homens de letras” transformados em símbolos nacionais, devido a sua

acreditada e valorizada capacidade de compreender, apresentar e explicar a nação através

de seus textos, do romance à poesia, passando pelos efêmeros artigos publicados em

jornais e revistas; pelas biografias e memórias; pelos grandes volumes de história nacional;

pelos livros de leitura escolar; pelas monografias sobre assuntos tão diversos quanto

geologia, corografia e língua indígena. No “movimento geral de criação de heróis cívicos”,

observado na Primeira República, esses intelectuais desempenharam importante papel na

consagração de si mesmos. Através do exercício da escrita, eles operaram uma lenta

distinção entre campos de conhecimento, selecionando referências teóricas ou fontes de

inspiração, adequando-se às vogas literárias, construindo tradições, elegendo figuras de

autoridade. Entre esses polígrafos, alguns se destacavam devido ao empenho em estudar a

história pátria. Tarefa considerada árdua devido a várias razões de ordem prática, tais como

a necessidade de recursos financeiros, uma vez que a obtenção de documentos – base do

trabalho historiográfico – exigia constantes visitas a arquivos, muitas vezes distantes, além

da onerosa encomenda de cópias. Mas, a tarefa também era considerada difícil devido a

exigências de outra ordem. O historiador era visto como um escritor que deveria ser capaz

de praticar a “arte de narrar”, sendo consideradas indispensáveis “as qualidades literárias, o

senso crítico e a arte de bem escrever”.63

61

Por exemplo, o grupo de intelectuais boêmios, atuante nas revistas de humor, criticava veementemente a

cultura livresca. Ver VELLOSO, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de

Janeiro, FGV, 1996, p. 208. 62

EL FAR, A encenação da imortalidade, op. cit., p. 92-96. 63

RIBEIRO, João. “Historiadores”. In: Obras: Crítica, vol. VI, op. cit., p. 7. Originalmente publicado no

Estado de São Paulo, 29/06/1927.

31

O caso de Capistrano de Abreu é um exemplo de como um estudioso da história

alcançou não um lugar de herói, mas o de uma figura de autoridade entre seus pares e de

prestígio entre os “grandes homens” do país, por vezes atingindo o status de “patrimônio

nacional”.

Retrato de Capistrano de Abreu (Santos, 1923), reproduzido a partir da primeira edição da Correspondência

de Capistrano de Abreu. Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira; Brasília, MEC, 1954, vol. 1. Ils. Sobre a foto está escrito: “O querido e inolvidável intelectual

Capistrano de Abreu, nosso patrimônio nacional, [ilegível], em Santos, outubro de 1923. [J.C.]”.

32

1.2. O “Bem amado”: Capistrano por seus contemporâneos

Capistrano de Abreu foi, em sua época, uma figura referencial. Consolidou seu

nome como intelectual transitando pelas principais instâncias de consagração no âmbito

dos estudos históricos, entre a década de 1870 e os anos 1920.

Na virada do século XIX, os jovens letrados do interior do país viviam o seguinte

dilema: ou cercear suas capacidades na província, com escassas possibilidades para acolhê-

los, ou desaparecer no anonimato da Corte, saturada de “homens de letras”.64

Como muitos

outros, João Capistrano Honório de Abreu preferiu seguir para a Corte, talvez acreditando

naquilo que – segundo ele mesmo chegou a dizer – seria o lema de todo provinciano

ingênuo: “vir, ver e vencer”.65

A bordo do navio Guará, que o conduzia de Fortaleza para o Rio, escreveu:

Ante-ontem, foi aqui dia de festa. O céu aparecia negro e obscuro como o interior de um

sepulcro. A chuva caia fina e implacável. O mar se arrojava impetuoso como as labaredas

de um incêndio, ora irrompia imenso, vário como uma floresta de montanhas. Quase todos

os passageiros sentiram-se enjoados, e até eu por cinco minutos não resisti. Foi este

espetáculo um dos mais belos que presenciei. De pé, com os braços abertos, com a

respiração suspensa, com o olhar fixo, eu assistia a todas as cambiantes que assumiu a

perspectiva e via todas as fases da luta, só tendo uma esperança – que ela durasse; só tendo

um desejo, poder tomar parte naquele combate de colossos.66

Capistrano chegou ao Rio de Janeiro no dia 25 de abril de 1875, aos 22 anos, vindo

do interior da província do Ceará, onde nascera a 23 de outubro de 1853. Chegou munido

de espírito de combate e de algumas “armas”, antevendo a entrada em uma arena de

disputas. Pouco antes de deixar sua terra natal, tivera breve contato com um famoso

conterrâneo: o escritor José de Alencar, que sobre ele escreveu, em carta ao amigo Joaquim

Serra:

64

Ver, ABREU, Regina, O enigma de Os sertões, op. cit., p. 181-202; MACHADO NETO, Estrutura social

da república das letras, op. cit., p. 65-76. 65

ABREU, Capistrano de. “Livros e Letras” (Seção). In: _____. Ensaios e Estudos (Crítica e História), 4a

série. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira / MEC, 1976, p. 104-107. Artigo não assinado, originalmente

publicado na Gazeta de Notícias, 18/11/1879. 66

Carta de Capistrano de Abreu a Ana Nunes de Melo, 23/04/1875. In: MENEZES, Raimundo de. “Há cem

anos nascia Capistrano de Abreu”. Separata da Revista Investigações, ano V, n. 51, out./nov./dez., 1953, p.

14-15.

33

Nas minhas pesquisas fui auxiliado por um jovem patrício meu, Sr. João Capistrano de

Abreu, notável por seu talento, entre tantos que pululam na seiva exuberante desta nossa

terra, que Deus fez mais rica de inteligência do que de ouro. Esse moço, que já é fácil e

elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu que, além de granjear

nele um prestante colaborador, teria o jornalismo fluminense a fortuna de franquear a um

homem de futuro o caminho da glória, que lhe estão obstruindo acidentes mínimos.67

Alencar foi uma espécie de paraninfo de Capistrano ao apoiar sua vinda para o Rio.

Conheceram-se em 1874, quando o eminente escritor visitava sua terra natal. Graças a

Alencar, Capistrano obteve a importante recomendação de Joaquim Serra ao poderoso

Machado de Assis, que assim dizia:

Meu caro Machado. Apresento-te o portador desta, o sr. João Capistrano de Abreu, moço

muito recomendável pelo seu mérito literário e que me foi apresentado pelo nosso amigo

José de Alencar. O sr. Capistrano de Abreu aprecia-te, e deseja pessoalmente conhecer-te;

estou certo que o acolherás como a um amigo e colega. Abraça-te o teu SERRA.68

Provavelmente, essa recomendação ajudou Capistrano a conseguir seu primeiro

emprego no Rio, na prestigiosa Livraria Garnier, que, na época, foi chamada de “Sublime

Porta”, pois através dela era possível ascender ao sucesso no mundo das letras. Com

humor, dizia-se que parar diante de sua porta era o mesmo que “posar para a posteridade”.

Outro observador notou que aquela livraria não era “um simples estabelecimento

comercial, mas um clube, uma academia, uma corte de mecenato”.69

Seu trabalho era escrever notas publicitárias sobre os livros lançados pela Editora

Garnier. No mesmo ano de 1875 estreou na imprensa carioca, publicando conferências que

pronunciara no Ceará, no ano anterior. Capistrano, que fizera as primeiras letras na terra

natal, não concluíra os estudos preparatórios para a Faculdade de Direito do Recife na

década de 70. Era um autodidata com alguma experiência como escritor, adquirida nos

jornais de Fortaleza e nas conferências literárias da “Academia Francesa” do Ceará. A

imprensa era, então, um pólo atrativo para intelectuais de todos os cantos do país e

Capistrano não foi uma exceção. Ao lado da diplomacia e do ensino, o jornalismo

67

ALENCAR, José de. Obras completas. Rio de Janeiro, Ed. Aguilar, s/d, vol. 4, p. 969. 68

Carta de Joaquim Serra a Machado de Assis, de 11/05/1875. Revista da Academia Brasileira de Letras,

ano II, n. 5, julho 1911, p. 70. 69

A Garnier publicava os livros de Machado de Assis, que a freqüentava assiduamente. A referência a

Garnier como “Sublime Porta” foi feita pelo escritor João Luso, na revista Kosmos, de novembro de 1908.

Ver MACHADO NETO, Estrutura social da república das letras, op. cit., p. 202.

34

completava o quadro das atividades intelectuais proeminentes. Capistrano escrevia notícias

sobre novos lançamentos literários e artigos de crítica, que geralmente se orientavam pela

provocação de polêmicas com os autores criticados.70

Por essa época também atuou como

professor de francês e português no importante Colégio Aquino.

É possível considerar que Capistrano tenha começado a ficar conhecido no meio

intelectual a partir de uma polêmica travada com um dos mais importantes críticos

literários de então, o sergipano Sílvio Romero. Em 1876, o jovem Abreu (como então

gostava de ser chamado), de vinte e quatro anos, publicou dois artigos criticando um texto

de Romero, intitulado O caráter nacional e as origens do povo brasileiro.71

Capistrano

expôs a tese de Romero para, em seguida, apontar suas contradições e defender sua própria

tese a respeito do assunto.

De acordo com Romero, o brasileiro seria distinto do português, não devido à

natureza ou à mistura com os indígenas, mas devido à presença dos negros. Utilizando a

estratégia de citar autores estrangeiros como argumento de autoridade e de reproduzir as

contradições do texto analisado, Capistrano se opôs à tese apresentada, afirmando a

importância do meio na formação da nacionalidade brasileira e ressaltando o papel do

elemento indígena. Além disso, não se esqueceu de alfinetar o alvo, dizendo: “espero ter

provado que suas idéias são incongruentes, fracos os seus argumentos, suas singularidades

abundantes”, para logo depois tentar fazer-lhe um “agrado”, registrando que o escritor

sergipano acabara de lançar um novo livro, que poderia ter um aumento de circulação, após

ser anunciado naquela seção.72

Entre uma provocação e outra, Capistrano publicou dois trabalhos que chamaram a

atenção: os necrológios de José de Alencar (1877) e do visconde de Porto Seguro,

Francisco Adolfo de Varnhagen (1878). Ressaltando o fato de Alencar ser seu conterrâneo,

Capistrano o apresentou como “o primeiro e principal homem de letras brasileiro”, “o

fundador da literatura brasileira”, chamando a atenção para um aspecto de sua obra: o

interesse pelo povo, por suas tradições, usos e costumes. Afirmou que seu nome deveria

70

Sobre as polêmicas literárias do início do século e as de Silvio Romero, em particular, ver VENTURA,

Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras,

1990. 71

ABREU, Capistrano de. “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro”. In: Ensaios e estudos, 4a

série, op. cit., p. 3-24. Originalmente publicados em O Globo, em 21/01/1876 e 08/03/1876, respectivamente. 72

Alguns anos depois, em 1880, Capistrano teve nova oportunidade de atacar Romero, pelos mesmos

motivos apontados anteriormente. Ele publicou, na Gazeta de Notícias, três artigos sob o título de História

Pátria, criticando o livro A literatura brasileira e a crítica moderna. Desta vez, buscou nas leis da ciência e

na “verdade histórica” os argumentos para contradizer seu interlocutor. Idem. “História pátria”. In: Ensaios e

estudos, 4a série, op. cit., p. 3-24. Originalmente publicados na Gazeta de Notícias, dos dias 9, 10 e 13 de

março de 1880.

35

figurar no panteão da história ao lado de grandes autores estrangeiros, destacando seu

empenho em “criar para si a imortalidade no curto prazo de vinte anos”, através de obras

que as gerações futuras deveriam ler como ensinamentos.73

Na época de sua morte, Alencar enfrentava severas críticas, tendo sua importância

como literato questionada, o que potencializava a posição assumida por Capistrano. O

escritor participara da cúpula da vida política do Império, chegando a ocupar o cargo de

Ministro de Estado, no entanto, foi lançado ao ostracismo por D. Pedro II, após ter

criticado o livro A Confederação dos Tamoios (1856), de Gonçalves de Magalhães –

escritor que fazia parte do seleto grupo de protegidos do imperador –, a política do governo

e as qualidades intelectuais do monarca.74

Esse movimento no sentido de enaltecer o morto, situado-o sobre um pedestal (algo

comum nos necrológios) também pode ser observado nos textos sobre o visconde de Porto

Seguro, publicados no Jornal do Commercio, em 1878, e na Gazeta de Notícias, em 1882.

Para o biógrafo Pedro Gomes de Matos, a morte de Alencar foi a chave que abriu as portas

do mundo intelectual carioca para Capistrano.75

Sendo assim, é possível dizer que o

necrológio de Varnhagen abriu as portas do mundo dos historiadores. Numa época em que

a obra de Varnhagen sofria severas críticas,76

Capistrano tomou para si a tarefa de valorizar

a contribuição do visconde para a historiografia brasileira, referindo-se a ele como

“historiador da pátria”, “grande exemplo a seguir e a venerar”, “o mestre, o guia, o

senhor”.77

73

Idem. “José de Alencar”. In: Ensaios e estudos, 4a série, op. cit., p. 42-45. Originalmente publicado na

Gazeta de Notícias, 13/12/1877. Sobre Alencar, Capistrano ainda publicaria outros textos: um por ocasião do

segundo aniversário de sua morte (Gazeta de Notícias, 12/12/1879) e outro pelo quinto aniversário (Gazeta

de Notícias, 12/12/1882, com continuação em 20/12/1882). Ibidem, p. 51-55 e 56-58, respectivamente. O

biógrafo Pedro Gomes de Matos conta que logo após o falecimento do romancista, o jornalista Ferreira de

Araújo, redator chefe da Gazeta de Notícias, incumbiu Machado de Assis de fazer o necrológio. Quando

Machado chegou à redação com seu texto, Araújo lhe entregou um papel dizendo: “Trouxe-me este trabalho

um Peri [Capistrano] de paletó surrado e cabelos em desalinho. Nada lhe posso dizer da cor dos olhos, porque

durante os rápidos instantes que aqui permaneceu trouxe-os velados pela impenetrável cortina de umas

pálpebras preguiçosas. Disse-me apenas que era cearense e admirador de José de Alencar. E deixou-me nas

mãos, num gesto brusco, este pedaço de papel com a respectiva residência. Um tipo original, originalíssimo,

seu Machado!”. Diante disso, Machado de Assis pôs-se a ler o trabalho do tal Peri e ao fim exclamou:

“Admirável!”, rasgando o artigo que escrevera. Ver MATOS, op. cit., p. 48. 74

SCHWARCZ, As barbas do imperador, op. cit., p. 134-35. 75

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 48. 76

Ver ARARIPE, Tristão de Alencar. “Indicações sobre a História Nacional”. Revista do IHGB, vol. LVII,

parte 2, 1894, p. 259-290. Trata-se de uma versão do discurso intitulado História Pátria – Como cumpre

escrevê-la, proferido em 1876 para a Associação Promotora da Instrução, durante as Conferências Populares

da Glória. No artigo de 1894 foi incluída uma primeira parte chamada A utilidade da história. 77

ABREU, Capistrano de. “Sobre o Visconde de Porto Seguro”. In: Ensaios e estudos, 1a série, op. cit., p.

131-147. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, dos dias 21-22-23/11/1882; Idem. “Necrológio de

Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro”, op. cit., p. 81-91. Originalmente publicado no

Jornal do Comércio, 16-20/12/1878.

36

Em 1879, passou a integrar o corpo de redatores da Gazeta de Notícias,

especializando-se na crítica literária. Em artigo desse mesmo ano, comentou a suposta

afirmação do imperador de que a aspiração de todo brasileiro seria “ser senador ou lente do

Pedro II”. Procurando relativizar tal assertiva, Capistrano se apresenta como uma exceção,

afirmando:

Nós, por exemplo, de modo nenhum aspiramos ao Senado, e desde já cedemos de nossos

direitos presentes e pretensões futuras (...) À cadeira de Pedro II bem pode ser que já

tenhamos aspirado; mas são necessárias tantas condições – a secularização do colégio, a

liberdade de opiniões, a impossibilidade de reproduzirem-se julgamentos como o do

concurso de filosofia –, enfim são necessárias tantas coisas difíceis de realizar-se que não

temos dúvida em fazer renúncia em favor de quem quiser.78

E arremata em tom irônico, afirmando seu desdém pelas instituições então

existentes:

Não vão por isso elogiar o nosso desinteresse. Ai de nós! Homo sum. Se fazemos tal

cessão, é porque pretendemos posição mais elevada: a de membro do Instituto Histórico.

Funcionar no Paço, trajar farda literária, aparecer com ela, representando a sociedade, nas

festas nacionais e nos cortejos; ser presidido pelo Visconde do Bom Retiro, assistir aos

discursos monumentos do monumental Sr. Macedo, e, honra ainda mais é invejável servir

de ponto de incidência de olhares augustos, apanhar até uma nesga da conversação

semidivina... eis o nosso desideratum. Desideratum bem difícil de ser satisfeito. O Instituto

contém a disposição de serem admitidos em seu seio aqueles unicamente que têm escrito

trabalhos históricos e geográficos. Às vezes abrem-se exceções – uma está a escapar-nos do

bico da pena... mas exceções, e nós que a elas não temos direito também nelas não nos

podemos fiar. Havendo de ceder à imposição regulamentar, hesitamos mais; já escolhemos

até o assunto. Vamos escrever a história do Instituto Histórico, uma história curiosíssima,

onde estão traçados em caracteres indeléveis os progressos da história pátria, a dignidade

de nossas letras, os efeitos da proteção sobre a literatura, enfim a origem e

desenvolvimento da literatura oficial.79

Mas, apesar das críticas ao Colégio de Pedro II e ao IHGB (aos quais acabaria por

se integrar), ainda em 1879 prestou concurso para outra instituição imperial, a Biblioteca

78

Idem, "Livros e Letras”, op. cit., p. 105. 79

Ibidem.

37

Pública da Corte, conquistando o primeiro lugar. Ao lado do Arquivo Público e do IHGB,

a Biblioteca era guardiã de um precioso acervo documental. Além disso, também reunia

profissionais conceituados por seus estudos históricos, sendo uma importante instância de

consagração intelectual, uma das “usinas de glórias”, como Capistrano se referiu certa vez

à Academia Brasileira de Letras, a Academia de Medicina e ao IHGB.80

Alguns biógrafos

consideram que foi na Biblioteca que a vocação de Capistrano para os estudos históricos se

manifestou de modo decisivo. O emprego teria contribuído para definir sua preferência

pela história, sendo que seus primeiros trabalhos sobre esse assunto foram publicados

justamente naquele momento.81

Mesmo tendo encontrado um lugar de destaque na Biblioteca, Capistrano optou por

alçar um novo vôo: prestou concurso para o Imperial Colégio de Pedro II, em 1883. A

cadeira disputada era a de maior prestígio: Corografia e História do Brasil. Defendeu a tese

O descobrimento do Brasil e foi aprovado por 17 votos contra 5. No mesmo ano começou

a lecionar. O viajante alemão Karl Von Koseritz registrou o acontecimento:

A tese de Capistrano, que trata com verdadeira maestria e grande saber do descobrimento

do Brasil e do seu desenvolvimento no século XVI, era sem dúvida a melhor e tão

excelente era que ia muito além dos horizontes dos dois limitadíssimos examinadores

Moreira de Azevedo e Matoso Maia. Se o meu amigo Sílvio [Romero], que também

pertencia à comissão, tivesse examinado, a coisa teria ocorrido de outra maneira. Mas foi

um verdadeiro exemplo de dois examinadores ignorantes e intelectualmente limitados, aos

quais o examinando superava de longe, e que, por isto, com ele se chocavam e se

comprometiam a cada momento. Eles faziam as mais extraordinárias e, por vezes, mesmo,

tolas objeções à tese do talentoso jovem, e via-se claramente como o Imperador se

aborrecia com a incapacidade dos examinadores. O candidato bateu-os em toda linha e

brilhou realmente à custa dos seus argüidores. Cada um deles examinou desta forma nada

menos que satisfatória, cerca de meia hora, e assim que a hora tinha corrido, o Imperador

deu o sinal para cessar a brincadeira cruel.82

Anos depois, a entrada de Capistrano no Colégio de Pedro II ainda era lembrada

por seus contemporâneos. Em 1907, o crítico literário José Veríssimo comentou:

80

Carta a João Lúcio de Azevedo, 13/09/1926, vol. 2, p. 365. 81

MONTEIRO, Mozart. “Curso Capistrano de Abreu” (Conferência de encerramento, 23/10/1953). Revista

do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 155. 82

KOSERITZ, Karl Von. Imagens do Brasil. São Paulo, s.e., 1943, p. 110.

38

O ponto, igual para todos os candidatos, versava sobre o descobrimento do Brasil, e seu

desenvolvimento no século XVI. Li todas essas teses. Com exceção da do Sr. Capistrano de

Abreu, eram bons resumos do que estava em Varnhagen e em outras obras vulgares, sem

nenhuma novidade, nem investigação, nem de pensamento. Ao contrário dessas, e do que

são aqui por via de regra as teses de concurso, onde os estudos próprios e a originalidade

brilham geralmente pela ausência, a do Sr. Abreu se distinguia por aquelas duas raras

qualidades, e se não revelava um lente – um sujeito capaz de ler em aula, de cor ou não, a

matéria a ensinar – mostrava claramente um professor capaz de fazer ele mesmo a sua

ciência e de transmitir aos seus discípulos o gosto e a capacidade de a fazerem.83

Com a extinção da cadeira de Corografia e História do Brasil em 1899, Capistrano

foi posto em disponibilidade, alegando incapacidade para ministrar aulas de História Geral,

por ser especialista em História do Brasil.

Antes de morrer, Capistrano já era considerado um grande erudito, espécie de

“enciclopédia” viva da história pátria. José Veríssimo, que também se dedicava ao estudo

de temas brasileiros, escreveu sobre Capistrano em 1907, comentando o livro Capítulos de

história colonial, que acabara de ser publicado. Antecipando as palavras de Calógeras após

a morte de Capistrano, Veríssimo situou o historiador cearense em relação à historiografia

brasileira, afirmando que, antes dele, a História do Brasil era escrita:

(...) à maneira de crônica, relatório ou anais, em estilo oficial das velhas relações de

sucessos portugueses, com escusadas miudezas circunstanciais, profusão minuciosa e

impertinente de datas, superfluidade enjoativa de nomes e apelidos, alcunhas e títulos.84

Sobre o livro Capítulos de história colonial, comentou:

Ainda não é a História; é, porém, mais do que tudo anteriormente feito por ele: é já o

alicerce da sua construção, são as paredes mestras do arcabouço acabado. Pelos

83

VERÍSSIMO, José. “O Sr. Capistrano de Abreu”. Jornal do Comércio, 16/09/1907. Ver ABREU,

Capistrano de. “Programa de História do Brasil”. Gazeta Litteraria, 24/11/1884, p. 377-380. Esse trabalho de

Capistrano corresponde à primeira parte de um programa de ensino da história, que, segundo o autor, poderia

ser desenvolvido posteriormente, o que não ocorreu. Apesar disso, em 1884, Capistrano era reconhecido por

Júlio Ribeiro como “a maior glória do magistério oficial brasileiro”. RIBEIRO apud FREITAS JÚNIOR,

Afonso. Discurso proferido na Sessão Magna de 1o de novembro de 1927. Revista do Instituto Histórico e

Geográfico de São Paulo, vol. XXV, 1927, p. 609. 84

VERÍSSIMO, op. cit.

39

fundamentos que ali estão, pelas paredes, sabe-se o que será o edifício e a arquitetura (...) É

um livro de mestre para mestres, e a estes cabe discuti-lo.85

Capistrano destacava-se pela “segurança da investigação, vasteza da informação,

profundidade do saber e inteligência do assunto”, qualidades que o distinguiriam de seus

antecessores e contemporâneos. Seu livro Capítulos de história colonial é considerado por

Veríssimo como “a síntese mais completa, mais engenhosa, mais perfeita e mais exata que

poderíamos desejar da nossa evolução histórica”. Síntese de aproximadamente trinta anos

de estudos históricos sobre o Brasil. O autor também chama a atenção para o conhecimento

da historiografia alemã por parte de Capistrano, valorizando sua utilização de métodos

seguros de investigação histórica. Também aponta a presença de uma direção filosófica em

sua produção, capaz de livrá-lo de ser “um simples erudito”. Seu grande mérito teria sido a

capacidade crítica, empregada na análise de documentos e na crítica dos estudos

anteriores.86

Assim,

Não só verificou os monumentos e fontes onde haviam eles [seus antecessores] bebido,

mas descobriu ou aproveitou novas, como daquelas mesmas tirou o que a eles escapou. E é

esse trabalho de crítica, preliminar indispensável a toda construção histórica, o que desde o

princípio seria principalmente o seu, que assinala proeminentemente o lugar e papel do Sr.

Capistrano de Abreu na nossa cultura histórica. Ele é sobretudo um crítico histórico ou um

historiador crítico, mas crítico com capacidades construtoras (...).87

Na mesma época, o escritor Mário de Alencar, que havia sido aluno de Capistrano

no Colégio Pedro II, publicou algumas linhas a respeito de seu antigo mestre e amigo,

destacando sua sabedoria e simplicidade. Disse ele:

Modesto e desinteressado, por mais que estude e por mais que saiba, não esquece a

suprema verdade, que o saber é relativo e ainda o mais sabedor é um ignorante. Sendo um

professor por ofício e gosto, teme parecer que o é no comércio com amigos e simples

conhecidos. Por isso evita o tom de quem fala ensinando. Raro se lhe dá de ouvir uma

afirmação, sem que lha peçam. Na própria matéria em que é autorizado por prova pública e

profissional, ele prefere ouvir a dizer, prefere consultar a mostrar que já sabe o que

85

VERÍSSIMO, José. “O Sr. Capistrano de Abreu”. Jornal do Comércio, 16/09/1907. Reproduzido na

Revista da Academia Cearense de Letras, tomo XV, 1910. 86

Ibidem. 87

Ibidem.

40

consulta. E não procede assim por simulação insidiosa: é por modéstia e ao mesmo tempo,

por curiosidade.88

Mas, além dos discursos que enalteciam suas capacidades intelectuais – entre as

quais a de falar várias línguas, do alemão ao caxinauá – e valorizavam sua obra passada,

presente e futura, também circulavam na imprensa comentários acerca de sua

personalidade e aparência excêntricas.

Em 1882, Vicente Mindello – pseudônimo de Valentim Magalhães – assim o

descreveu na seção Tipos e Tipões, da Gazetinha:

(...) rapaz forte, de estatura meã, grosso de tronco, de cabeça um tanto cúbica, dessas que

vêm bradando de longe aos olhos da gente: “Eu sou do Norte”, de pescoço atlético, olhos

pequeninos, piscos, míopes, escandalosamente míopes; trajando escuro com filosófico

descuido, chapéu raso de que sobejam sobre a fronte cabelos pretos, ninguém sabe ou

desconfia sequer quem seja ele, quando se esgueira rente à parede, cabeça levemente à

banda, com o seu passo miudinho e ligeiro (...) Pois esse rapaz é Capistrano de Abreu, a

cabeça mais ilustre, mais pensadora, mais “curvada” ao trabalho (...) Tem a bossa da

história. Digamos a história da bossa (...) Apesar de Varnhagen, de Southey (...) que

manuseia e deglute, é espírito leve, arejado, fresco, aberto ao “calembourg” e à anedota

picante. Devora o Voltaire, o Gil Blas, o Tintamarre. Gosta dos engraçados. Em filosofia

segue Spencer, com a resolução firme de deixá-lo na estrada se encontrar outro melhor (...)

Adora pimenta, a boa música e os bons poetas. É indolente; acorda tarde; fuma como um

turco; anda como um beduíno. Tem a voz doce, discreta, carinhosa, quando se dirige aos

que ama; aflautada quando pilheria; cismática e vagarosa, quando trata de ciência. Todavia

esse bom e ativo rapaz está entre dois precipícios a cuja atração precisa de resistir

heroicamente, sobranceiramente: a Comenda da Rosa e o Instituto Histórico. Coragem

Capistrano!89

Ao longo do tempo, alguns comentários sobre seus modos rudes e sua língua ferina,

além de anedotas sobre seus hábitos estranhos, considerados pouco “civilizados”, tais

como, comer pimentas, banhar-se ao ar livre, receber visitas de chinelos ou “em mangas de

camisa”, foram recuperados por seus contemporâneos através de livros de memória e,

também, por seus biógrafos. Supostamente, essas observações e anedotas ajudaram a

88

ALENCAR, Mário de. “Sobre um livro de Capistrano”. Jornal do Comércio, 25/10/07. 89

MINDELLO apud MENEZES, op. cit., p. 21. A referência do texto de Mindello é: MINDELLO, Vicente.

“Capistrano de Abreu”. Gazetinha, 19/04/1882.

41

compor uma espécie de personagem da cidade, integrado no mundo das letras e portador

de alguns de seus signos. Capistrano, em vida, aparece associado a objetos como livros e

papéis, havendo lugar para a bebida (o calembourg mencionado por Mindello) e o cigarro

– itens caros para a intelectualidade boêmia – assim como, para uma rede cearense

(lembrança de suas origens) onde ele é “visto” lendo ou dormindo.

Também é comum a menção de aspectos de sua personalidade, que ajudam a

compor um certo tipo de intelectual: a distração, a despreocupação com a vestimenta, a

aparência desleixada,90

o isolamento e a língua mordaz. Em certa época, o crítico literário e

polemista Silvio Romero chamou-o de “pérfido”, “envenenado” e “terrível intrigante”, o

que pode ser verificado no artigo, anteriormente mencionado, em que Capistrano avalia os

membros do IHGB.91

Mas, apesar disso, Romero não se furtou em afirmar que Capistrano

era o maior erudito em assuntos brasileiros do país: “uma enciclopédia viva, toda uma

academia de ciências, completa sociedade de História, um curso vivo de Humanidade, um

saber polimórfico, um oceano de conhecimentos”.92

Comentário semelhante pode ser visto

em 1905, na revista O Malho, que publicou um clichê de Capistrano caminhando pela

cidade com a seguinte legenda: “Capistrano de Abreu, o incansável pesquisador dos pátrios

arquivos, e o mais erudito dos nossos historiadores”.93

Alguns contemporâneos e intérpretes de Capistrano afirmaram que ele havia

inspirado o personagem principal do livro O Coruja, de Aloísio Azevedo, publicado como

folhetim no jornal O Paiz em 1885 e, posteriormente, na forma de livro, em 1890. Trata-se

da história da amizade entre André – o Coruja – e Teobaldo, personagens antitéticas e

interligadas. O primeiro é um menino pobre, feio, tímido, introspectivo e taciturno; um

órfão sofrendo privações materiais e sentimentais, mas que, apesar disso, é perseverante,

ordeiro, metódico, inteligente e trabalhador. Obcecado por catalogação de livros desde

criança, torna-se revisor de jornais, professor e historiador. O segundo é bonito,

extrovertido, rico, vaidoso ao extremo e egoísta. Entre eles se estabelece uma relação de

90

É notável o uso das descrições físicas para potencializar as interpretações acerca da personalidade, algo

bastante comum em fins do século XIX, conforme apontam as então modernas teorias fisiognômicas. A esse

respeito, ver, por exemplo: GONÇALVES, Márcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e história na

obra de Octávio Tarquínio de Sousa. São Paulo, FFLCH-Dep. de História, tese de doutorado do PPGHS,

2003, p. 17-19. 91

A raiva de Romero se devia, em parte, aos ataques do grupo ligado a José Veríssimo – adversário de

Romero no mundo da crítica literária – à chamada Escola do Recife, da qual Romero fizera parte. Capistrano

seria um dos membros do grupo, que se reunia na redação da Revista Brasileira. Além disso, um suposto

comentário de Capistrano acusando Romero de não saber falar alemão, mas afirmar o contrário, teria

provocado sua ira, que, aliás, também era bastante freqüente em relação a outros escritores. 92

ROMERO, Silvio. Zeverissimações ineptas da crítica (repulsas e desabafos). Rio de Janeiro, s.e., 1910;

Idem. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1888. 93

“Rio em flagrante – Os nossos instantâneos”. O Malho, 1905, p. 3.

42

dependência em que André faz todos os trabalhos escolares e acadêmicos de Teobaldo em

troca de amizade e proteção. O Coruja representa o intelectual que troca seu trabalho por

favores e, com resignação, abre mão dos créditos em prol do prestígio social de outro. É

lembrado como figura abnegada e modesta, que prefere permanecer na sombra a ter seu

mérito reconhecido.94

É difícil saber se Aloísio Azevedo se inspirou em Capistrano para compor seu

personagem ou se, na verdade, foi esse personagem que alimentou a imaginação dos

intérpretes de Capistrano, fornecendo-lhes elementos para compor o perfil particular de um

homem sábio e intelectual erudito. Apesar da dúvida, importa prestar atenção no fato de

que o autor em questão foi efetivamente associado ao Coruja da ficção: um símbolo da

sabedoria.

Os versos de Américo Facó, publicados em 1911 sob o pseudônimo de “Os Três

Mosqueteiros”, reafirmam a visão de Capistrano como erudito, um verdadeiro homem-

dicionário:

Olhos semi-cerrados de quem poupa

A luz dos próprios olhos... Indolente!

Cabelos, barba de esfiapada estopa,

Para trás, para os lados, para a frente.

Uns ares filosóficos de gente

A quem a vida vai de vento em popa:

Liga mais ao passado que ao presente

E liga à vida como liga à roupa.

Calçado sem tacão, chapéu sem abas,

Pobre, com aparência de usurário,

E, ao mesmo tempo, de morubixaba:

Tal esse é o Capistrano, o bem amado,

Velho erudito, vivo dicionário

Da História Pátria, mal encadernado...95

94

AZEVEDO, Aloísio. O Coruja. 1a edição 1890. São Paulo, Livraria Martins Editora, s/d. A associação de

Capistrano ao personagem-título do livro O Coruja pode ser localizada em: BARREIRA, Dolor. “Por que

não escreveu Capistrano a História do Brasil?”. Revista do Instituto do Ceará, tomo LVII, 1943, p. 223; e

MENEZES, op. cit., p. 59. Segundo Menezes, a identificação entre Capistrano e o Coruja, de Aloísio

Azevedo, foi feita pelos contemporâneos logo que o livro foi lançado. 95

FACÓ apud MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 33; ainda sobre o reconhecimento, em vida, de

Capistrano como um homem sábio, ver PRADO, Aécio. “O brasileiro que mais sabe”. Revista do Instituto do

Ceará, tomo XXXII, 1918, p. 74.

43

Caricatura de Capistrano de Abreu, por Castro Rebello (1923), reproduzida a partir da cópia existente na

Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional. Vê-se o cabelo desalinhado, as roupas amarrotadas, com a

camisa fora das calças, o nó da gravata desfeito e parte do lenço para fora do bolso. Compondo a figura, o

chapéu, o cigarro, o jornal e alguns papéis com anotações.

44

Caricatura do “Dr. Capistrano de Abreu”, por José Cândido (1926), reproduzida a partir da cópia existente na

Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional.

45

Esse tipo de construção, que associa elementos físicos a referências psicológicas e

comportamentais, podendo incluir objetos diversos que remetem às atividades que

Capistrano desempenhava, ajudaram a consolidar uma imagem física – corroborada por

charges e retratos dados a ver através de revistas e jornais – estabelecendo uma memória

visual do indivíduo a ser aceita coletivamente. Complementando essa imagem visual, é

possível supor que Capistrano materializou, em vida, o ideal do intelectual abnegado,

inteiramente dedicado ao estudo, avesso a interesses mundanos.96

As interpretações de

Capistrano como homem erudito, “vivo dicionário”, “enciclopédia viva” etc.

sobreviveriam após sua morte, sendo associadas a outros atributos, como se verá a seguir.

1. 3. Um símbolo da brasilidade: o historiador sertanejo

Foi como um surto atávico o aparecimento desse

espírito singular em nossas letras. O homem vinha da

tribo ancestral trazendo a rede, em que sempre dormiu,

e as flechas, das quais somente aproveitou as penas,

aparando-as, para a escrita, e um pouco de curare, com

que as ervou, dando-lhes a ironia dicaz, a sátira

mordente com que revidava a ataques dos que, de mui

baixo, pretendiam feri-lo (Coelho Neto, Redimido,

21/08/1927).97

Os discursos escritos em 1927, logo após a morte de Capistrano, parecem se guiar

pela mesma lógica da consagração em vida, ainda que haja o tom hiperbólico característico

dos elogios fúnebres. No entanto, há algumas diferenças no que diz respeito às

características do comportamento de Capistrano em suas relações sociais. Se os discursos

sobre sua inteligência privilegiada seguem a mesma linha do que era dito quando ele estava

vivo, os discursos sobre seu temperamento rude e sua língua ferina parecem ter sido

atenuados ou, até mesmo, esquecidos, dando lugar a outras interpretações, que o

apresentam como um homem bom, de alma generosa, leal aos amigos e avesso a

futilidades, como é de se esperar dos necrológios.

96

Na França do século XVIII, por exemplo, havia discursos que pedagogicamente valorizavam o desinteresse

e o afastamento do mundo em prol das atividades do pensamento. Alguns autores jesuítas supunham que,

longe das paixões e divertimentos, o homem de letras seria mais capaz de se dedicar ao que realmente

importa: o estudo socialmente útil. Tais discursos defendiam a dignidade da carreira das letras contra as

opiniões que a menosprezavam. Ver, CHARTIER, “O homem de letras”, op. cit., p. 143-144. Essa

observação pode ajudar a compreender as constantes referências a Capistrano de Abreu como um estudioso

abnegado, avesso às vaidades mundanas, um “beneditino das letras”, se for admitido que, entre alguns grupos

de intelectuais do Brasil da virada do século XIX, a sobriedade era considerada um valor. O mesmo não

ocorria no caso dos intelectuais boêmios, que valorizavam a irreverência e a esbórnia. 97

COELHO NETO, “Redimido”, op. cit.

46

Mas, a imagem mais sugestiva que pode ser extraída dos necrológios de Capistrano

diz respeito ao seu vínculo com dois universos distintos: o da “barbárie” e o da

“civilização”.

Como já foi visto, João Ribeiro considerou-o “um índio que houvesse perfurado a

civilização e subido à tona da nossa cultura, com arco e flecha, seminu e indomável”.

Coelho Neto identificou-o como um “selvagem que o estudo tornou um dos expoentes

máximos da nossa cultura”. Um ser “sombrio”, “desconfiado” e até “agressivo”, indicando

a “sobrevivência do bárbaro latente no super-civilizado”. Américo Facó, o viu como um

“indolente” e desleixado “morubixaba” (chefe indígena). Já Gonçalo Jorge recuperou

também os aspectos físicos e espirituais, tecendo a imagem de um “corpo desajeitado e

exótico”, dotado de “espírito luminoso”, um “físico de sertanejo”, “filho do nordeste”, “um

homem feio, agreste, desagradável”, dono de um “espírito de civilizado”. Edgar Roquette-

Pinto, que considerava-o como o mestre de seus estudos etnográficos, definiu-o como um

“indomável sertanejo acaboclado”.98

Assim como a erudição de Capistrano (com destaque para seu poliglotismo)

permitia associá-lo a um ideal de cultura e civilização, sua aparência, seus modos de vestir

e falar eram aspectos que permitiam recuperar características atribuídas aos indígenas e

sertanejos, o que sua origem interiorana ajudava a sustentar. A “rudeza”, a “feiúra”, a

“agressividade” e a “desconfiança” compunham uma figura de homem do interior bastante

distinto do tipo urbano, cosmopolita, do dândi de modos afrancesados, que na época

representava os ideais de progresso e civilidade.

Mas, ao lado da aparência e dos modos, que autorizavam referências ao mundo do

interior e aos indígenas, o tipo de conhecimento desenvolvido por Capistrano permitia

outro tipo de aproximação. Como observou Assis Chateaubriand em seu artigo póstumo, o

grande mérito de Capistrano teria sido compreender a brasilidade – propriedade distintiva

do Brasil e do brasileiro – traduzindo-a através de seus estudos sobre as línguas e costumes

indígenas e, também, sobre a história colonial.99

Em vida, Capistrano já era reconhecido

como uma autoridade nesses assuntos. Como já foi dito, seu livro Capítulos de história

colonial, de 1907, havia sido muito bem recebido. Outro livro, Rã-txa Hu-ni-ku-i,

publicado em 1914, também foi muito elogiado, valendo-lhe o prêmio D. Pedro II, do

IHGB, concedido e recusado três anos depois.

98

RIBEIRO, “Retrato de Capistrano de Abreu”, op. cit.; COELHO NETO, “Redimido”, op. cit.; JORGE,

“Capistrano de Abreu”, op. cit.; ROQUETTE-PINTO, “Capistrano de Abreu”, op. cit. 99

CHATEAUBRIAND, “Capistrano de Abreu”, op. cit.; ver citação na página 16.

47

O termo brasilidade havia sido utilizado pelo conde Afonso Celso, no livro Por que

me ufano do meu país, de 1900, servindo para indicar uma espécie de essência dos seres e

das coisas do Brasil, capaz de inspirar o sentimento de amor à pátria.100

Nos anos 1920, o

termo foi retomado em meio às discussões sobre modernidade, modernismo e

nacionalismo.

A reflexão sobre a brasilidade ocorreu em meio à demanda por interpretações sobre

o país e seus habitantes, num processo iniciado na primeira metade do Oitocentos, que se

estendeu pelas primeiras décadas do século XX, quando a intelectualidade se auto-

reconhecia como portadora da civilização e se afirmava como detentora de uma missão

social e política: explicar o país, apontando problemas, propondo soluções e elaborando

projetos para o futuro. Capistrano de Abreu participou desse processo, dedicando-se ao

estudo da formação da nacionalidade brasileira, tema que ocupava muitos escritores e

estudiosos.101

Em meio à busca de explicações sobre as origens dos homens, das

sociedades e das nações que marcou o período em questão, procurava-se conhecer e dar

sentido explicativo ao Brasil enfatizando seus aspectos selvagens e naturais, de modo a

caracterizar uma nação em busca de civilização. Parte significativa dos escritos sobre a

gênese nacional dizia respeito aos indígenas e à constituição do território, temas marcantes

na obra de Capistrano.102

Ao longo do século XIX, os debates sobre o lugar do indígena na construção da

nacionalidade foram marcados por dois tipos de representações: aquela construída pela

literatura romântica, inspirada pelo modelo do “bom selvagem” – exemplo de pureza e

honra –, que via o indígena como cerne da “brasilidade”; e aquela elaborada sob a

inspiração do pensamento evolucionista, que situava os indígenas, vistos como portadores

100

O livro de Afonso Celso apresenta onze motivos para a superioridade do Brasil, relacionados à natureza,

ao povo e à história. Foi publicado por ocasião das comemorações do IV Centenário do Descobrimento do

Brasil, tornando-se um marco do gênero que, posteriormente, ficou conhecido como ufanista, caracterizado

pela exaltação otimista das características naturais, culturais e históricas do Brasil. Ver CELSO, Afonso. Por

que me ufano do meu país. 1a edição 1900. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1997.

101 Berthold Zilly chamou a atenção para a persistência do tema da formação na historiografia brasileira a

partir do século XIX, quando se observa a emergência do tema nos estudos sobre o Brasil, presente na obra

de Martius, Varnhagen, Capistrano, João Ribeiro, Oliveira Lima, Manoel Bomfim, Pandiá Calógeras etc. Ver

ZILLY, Berthold. “Minha formação (1898), de Joaquim Nabuco – a estilização do brasileiro ideal”. In:

DECCA, Edgar Salvadori de & LEMARIE, Ria (Orgs.). Pelas margens: outros caminhos da história e da

literatura. Campinas, Unicamp, 2000, p. 254; e HANSEN, Patrícia Santos. Feições & Fisonomia: a história

do Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro, Access, 2000, p. 84. 102

O tema da gênese da nação é central na historiografia e na literatura européia e brasileira do século XIX.

Entre os mitos elaborados em meio à reflexão sobre a formação da nacionalidade brasileira dois se destacam:

o da mistura das três raças formadoras da nacionalidade (brancos, índios e negros) e o de um passado

ancestral representado pela figura idealizada do índio inserido em natureza idílica. Ver NAXARA, Márcia

Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil.

Brasília, UnB, 2004.

48

do atraso e da desordem, no início de uma escala evolutiva que ia da barbárie à

civilização.103

Um dos principais desafios para o conhecimento da formação da nacionalidade

brasileira era localizar e divulgar os relatos referentes a aspectos históricos e etnográficos

das sociedades indígenas. Tal tarefa foi enfrentada pelo IHGB e, também, por numerosas

revistas literárias e políticas. O estudo etnográfico fazia parte de um projeto civilizador,

que almejava fazer recuar a barbárie e, ao mesmo tempo, contribuir para o conhecimento e

a demarcação de um espaço físico integrado para a nação. A produção de saberes sobre os

indígenas e o território caminhou lado a lado com a construção de uma literatura e de uma

historiografia nacional, através das quais os “homens de letras” divulgaram suas

interpretações sobre o país e seus habitantes.104

As referências ao interior do território – o sertão – e seus habitantes, datam do

período colonial. Inicialmente, o sertão era definido por sua distância em relação ao litoral,

indicando o território imenso e desabitado longe da costa. Sertão e litoral tornaram-se

categorias complementares, pois,

(...) como em um jogo de espelhos, uma foi sendo construída em relação à outra, refletindo

a outra de forma invertida, a tal ponto que, sem seu principal referente (litoral, costa),

„sertão‟ esvaziava-se de sentido, tornando-se ininteligível, e vice-versa...105

Com o tempo, o sertão adquiriu o significado de uma região inóspita e inabitada, por

oposição ao mundo urbanizado das cidades litorâneas.106

Os escritos sobre o “sertão” contribuíram para situá-lo em relação ao mundo

urbanizado, transformando-o no espaço do outro, no lugar por excelência da alteridade,

103

Ver GUIMARÃES, “Nação e civilização nos trópicos”, op. cit., p. 11-12 e 20-21; MONTEIRO, John

Manuel. “As „raças‟ indígenas no pensamento brasileiro”. In: MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo

Ventura (Orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1996, p. 15-22. 104

MONTEIRO, op. cit.; KODAMA, Kaori. “Uma missão para letrados e naturalistas: „Como se deve

escrever a história do Brasil‟”. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de (Org.). Histórias do ensino da História no

Brasil. Rio de Janeiro, Access, 1998, p. 9-65. É importante observar que essa atividade etnográfica diferia da

perspectiva antropológica atual, por manter uma relação muito próxima com a história natural e sustentar

uma posição pragmática e filantrópica em relação aos povos indígenas, ao defender que o estudo de suas

sociedades contribuiria para sua salvação, que consistia na derrota da barbárie pela civilização. 105

AMADO, Janaína. “Construindo mitos: a conquista do Oeste no Brasil e nos EUA”. In: _____ e

PIMENTEL, Sidney Valadares (Orgs.). Passando dos limites. Goiânia, UFG, p. 51-78, especialmente p. 63-

67; Idem. “Região, sertão, nação”. Estudos Históricos – Dossiê História e Natureza. Rio de Janeiro, n. 8, p.

145-151. 106

ARAÚJO, Emanuel. “Tão vasto, tão ermo, tão longe: o sertão e o sertanejo nos tempos coloniais”. In:

PRIORE, Mary Del (Org.). Revisão do paraíso: os brasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio de

Janeiro, Campus, 2000, p. 82.

49

identificada não apenas na amplitude do território pouco habitado, mas nos próprios

habitantes, os sertanejos, com sua aparência e modos distintos daqueles observados na

população das cidades. Aos olhos daqueles que se dedicavam ao estudo do interior do país,

o sertão passou a representar tudo aquilo que se encontra fora da escrita da história e, por

conseguinte, do espaço da civilização. Uma “terra de ninguém, lugar de inversão de

valores, da barbárie e da incultura”.107

Essa região “à margem” do mundo histórico foi transformada em um tema central

da paisagem literária e da reflexão de cunho científico sobre o Brasil. Para José Honório

Rodrigues, por exemplo, “o papel do sertão e dos caminhos (...) modificou profundamente

o escrito e a metodologia histórica no Brasil”.108

No fim do século XIX já era possível

identificar duas vertentes de textos que tinham o interior como tema: uma ligada à

literatura de ficção, que incluía novelas, contos, romances e peças de teatro e, outra, às

expedições científicas, que englobavam memórias e relatos de viagens produzidos por

estrangeiros, assim como, por militares e funcionários do governo que percorriam o

interior.109

Nos contos sertanejos da década de 1890 observa-se a presença freqüente da

oposição entre “roça” e “cidade grande”. A primeira era habitada pelos tipos sertanejos

com suas variantes, o caipira, o tabaréu e o jagunço, que se opunham aos tipos urbanos,

como o malandro, o burguês, o espertalhão e o capitalista. A literatura oscilava entre

enaltecer a “cidade grande” como locus da civilização e do progresso e menosprezar a

cidade como fonte do mal, da corrupção do caráter e dos costumes. Uma das características

dessa literatura era a associação do sertanejo à pureza e à honestidade, enquanto o interior

era comumente caracterizado como lugar de tradições genuínas em vias de desaparecer.

A obra de Capistrano de Abreu pode ser inserida ao lado de outras tantas

produzidas em meio a um movimento de redescoberta do Brasil iniciado ainda no século

107

VENTURA, Roberto. “Os sertões entre dois centenários”. In: MADEIRA, Angélica e VELOSO, Mariza

(Orgs.). Descobertas do Brasil. Brasília, UnB, 2000, p. 112. 108

RODRIGUES, José Honório. “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”. Conferência proferida

no IHGB em 07/10/1953. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 136. 109

Entre os escritores que tinham o interior do país como tema e que ajudaram a consolidar a chamada

“literatura sertaneja” estavam José de Alencar, Fagundes Varela, Bernardo de Guimarães, Franklin Távora, o

Visconde de Taunay, Coelho Neto, Artur Azevedo, Catulo da Paixão Cearense, Cornélio Pires e Valdomiro

Silveira. Ver ABREU, Regina. O enigma de Os sertões, op. cit., p. 169 e 171. Antônio Cândido compreendeu

o fenômeno do “regionalismo” literário como “uma das principais vias de autodefinição da consciência

local”. O interesse pelo interior produziu uma verdadeira “aluvião sertaneja”, caracterizada pelo autor como

“artificial” e “pretensiosa”, responsável por “um sentimento subalterno e de fácil condescendência em

relação ao próprio país, a pretexto de amor à terra”. Teria sido “um meio de encarar com olhos europeus as

nossas realidades mais típicas”. Ver CÂNDIDO, Antônio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945 (panorama

estrangeiro)”. In: _____. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo, Companhia

Editora Nacional / Edusp, 1965, p. 129-165.

50

XIX e que se prolongou até, pelo menos, os anos 1950, despertando o interesse pelo

interior do país, com suas vastas regiões e populações desconhecidas. Esse movimento de

redescoberta, fundado na lógica da alteridade entre sertão e litoral, foi explorado pela

literatura romântica de meados do século XIX; pelos relatos de viajantes nacionais e

estrangeiros; pela literatura de inspiração realista e naturalista; pela literatura regionalista

ou sertaneja do fim do século; pelos relatórios produzidos por médicos sanitaristas, que

percorreram o Brasil nas primeiras décadas do século XX; pelos estudos geográficos e

etnográficos e pela escrita da história.

A literatura sertaneja surgiu não apenas como uma corrente específica, oposta à

literatura sobre temas urbanos até então muito valorizada, mas como algo capaz de inspirar

um plano de escrita da história do país, dedicado a recuperar ou inventar peculiaridades

geográficas, humanas e culturais. Os escritos sobre o sertão sustentaram a criação de uma

consciência nacional a partir de uma definição do Brasil e dos brasileiros. Permitiram

ultrapassar o parâmetro ditado pelo passado colonial, que deixara marcas profundas no

litoral, e, ao mesmo tempo, fundamentar a construção de um espaço – o sertão – e de um

tipo, o homem do interior, como autenticamente brasileiros.

No início do período republicano predominava a idéia de que uma verdadeira

conquista do território só poderia ocorrer através do seu conhecimento real e científico.

Nas palavras de Ângela de Castro Gomes, “conquistar e ocupar era, antes de tudo, estudar

e planejar o que se desejava que povo e território viessem a ser no futuro”.110

Nessa

conjuntura, o estudo e o ensino da história e da geografia se afirmaram como necessidades

estratégicas, considerando que um dos problemas cruciais para o novo regime dizia

respeito a sua credibilidade, a ser fundada sobre um conjunto coerente de referências a

serem partilhadas. Assim como ocorrera na Europa, no Brasil, a história conquistou espaço

como um saber socialmente necessário por ser capaz de fornecer as bases para uma

pedagogia cívica útil no processo de expansão dos Estados Nacionais e na consolidação

dos regimes políticos. Era preciso estabelecer uma versão consensual sobre o passado

capaz de fundamentar o modelo nacional-republicano.

A instauração da República, que suscitou um clima de instabilidade e incerteza,

coincidiu, não por acaso, com um momento de revisão crítica da historiografia e de seus

agentes produtores, observável desde, pelo menos, a década de 1870 até os anos 1920. Essa

110

GOMES, Ângela de Castro. “Através do Brasil: o território e seu povo”. In: _____; PANDOLFI, Dulce

Chaves e ALBERTI, Verena (Orgs.). A República no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira / CPDOC-FGV,

2002, p. 157-215.

51

revisão encontra-se dispersa em artigos como Organização da História Física e Política do

Brasil (1877), de Henrique Beauhepaire de Rohan; Indicações sobre a história nacional

(1894), de Tristão de Alencar Araripe; Uma grande idéia (1880), do próprio Capistrano –

que também contribuiu para a crítica historiográfica através de diversos prefácios e de

textos como o Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen (1878) e Sobre o Visconde

de Porto Seguro (1882) –; e nos vários trabalhos de João Ribeiro, incluindo Historiadores

(1927) e O culto da história (1918); além de inúmeras introduções e resenhas de novos

livros ou de reedições revistas e anotadas.111

Além de contribuir para a construção de

novas interpretações sobre a história do Brasil, essa produção fragmentada e em grande

parte efêmera (devido aos meios de sua divulgação) também ajudou a legitimar nomes e

obras. É possível supor que esse mesmo movimento crítico delineou um perfil de

historiador e um modelo ideal de escrita da história, num momento em que não se

observavam distinções hierárquicas rígidas entre a pesquisa, a escrita e o ensino.

Na época da morte de Capistrano de Abreu (1927), o tema da formação nacional

ainda estava em voga, tendo sido revitalizado pelas notórias discussões sobre nacionalismo

e modernidade predominantes após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Prevalecia há

alguns anos a visão de dois brasis: o do litoral e o do interior, sendo possível identificar

duas vertentes de interpretação sobre o sertão. Uma delas o situava como lugar do atraso,

por oposição à cidade, local do progresso e da modernidade, associado à urbanização, à

máquina, à indústria etc. Ao mesmo tempo, observa-se a interpretação do sertão como o

espaço por excelência da brasilidade, enquanto a cidade era o lugar do cosmopolitismo,

dos estrangeirismos etc. Assim, era no interior que se encontrava o “verdadeiro” Brasil.112

Quanto ao problema do tipo representativo da nacionalidade, o homem do interior

encontrava-se na berlinda. Alguns o tomavam como exemplo do atraso e da ignorância.

Outros o viam como portador da brasilidade, da “essência” da nacionalidade, precisando,

contudo, ser libertado de seus “males”.

Por exemplo, o grupo Verde-Amarelo – que expressou de modo paradigmático os

ideais do movimento modernista em São Paulo – valorizava o regionalismo e defendia o

sertanejo como elemento portador da nacionalidade. O Brasil autêntico seria o Brasil do

111

ROHAN, Henrique B. de. Organização da história física e política do Brasil. S.l., s.e., 1877; ARARIPE,

“Indicações sobre a história nacional”, op. cit.; RIBEIRO, “Historiadores”, in op. cit., p. 5-7; Idem. “O culto

da história”, in op. cit., p. 424-431. Originalmente publicado no jornal Imparcial, 18/09/1918. 112

Essas duas vertentes interpretativas podem ser mais bem compreendidas quando considerados os marcos

cronológicos do movimento modernista paulista de 1922 e 1924. A visão negativa em relação ao interior

prevalece na chamada primeira fase do movimento, enquanto uma visão mais positiva pode ser localizada,

sobretudo, após 1924. Ver MORAES, Eduardo Jardim de. “Modernismo revisitado”. Estudos Históricos –

Dossiê Modernismo. Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p. 220-238.

52

interior. Inspirados em Afonso Celso, os “verde-amarelos” definiam a brasilidade como

um estado de espírito promovido pela intuição do sentimento nacional. Em ambos os

casos, a noção remete a algo que é natural (espontâneo), passível de ser captado pela

sensibilidade e não pelo intelecto.113

O argumento, portanto, é de que durante a Primeira República foram elaboradas

interpretações sobre o Brasil que consolidaram versões sobre sua formação e, ao mesmo

tempo, conferiram autoridade a determinados intérpretes, por vezes, transformados em

exemplos da dedicação ao estudo da pátria ou em representantes do conhecimento, visto

como marca de civilidade. A valorização de seus nomes e obras ajudou a sustentar

tradições de estudo sobre o país, definindo temas e referenciais teóricos, justificando

escolhas documentais, apoiando vertentes interpretativas.

Considerando o movimento de “interiorização da civilização” – expresso pelo

binômio litoral/sertão –, iniciado no século XIX, e o da ascensão dos “homens de letras”

no cenário nacional, observa-se que alguns intelectuais alcançaram o status de símbolos

nacionais, como Machado de Assis e Euclides da Cunha. O primeiro se dedicando a

escrever sobre o mundo urbano e, o segundo, sobre o mundo do sertão. Euclides veio a

representar esse projeto de nação fundada na idéia de território, conferindo importância ao

interior e a seus habitantes. Machado passou a simbolizar a cidade, espaço da modernidade

e da civilização para alguns e lugar da decadência para outros.114

Já Capistrano, em sua ambigüidade, pôde ser visto como um intelectual que

transitava entre dois mundos: o da civilização e o da barbárie. Assim, nos discursos post

mortem se verifica a associação entre o erudito – homem culto e civilizado – e o homem do

interior, caracterizado como inculto, rústico e/ou selvagem e identificado pelas figuras do

caboclo, do sertanejo e até do indígena. Observa-se a imagem recorrente de um “homem de

letras”, cuja coragem, tenacidade e persistência permitira desbravar o passado, abrindo

caminho para outros descobridores. Como disse Paulo Prado, Capistrano o ajudara a

penetrar “na selva escura da história do Brasil”.115

Tais discursos constituíram a imagem de

Capistrano como símbolo de uma nacionalidade que se quer culta e civilizada e, ao mesmo

tempo, próxima do sertão não civilizado, lugar onde, acreditava-se, o Brasil seria mais

autêntico e verdadeiro. Uma figura referencial para a intelectualidade dedicada ao estudo

113

Ver VELLOSO, Mônica Pimenta. “A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista”.

Estudos Históricos – Dossiê Os anos vinte. Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 89-112. 114

Sobre Euclides, ver ABREU, Regina. O enigma de Os sertões, op. cit., p. 281 e 283. 115

PRADO, Paulo. Paulística: história de São Paulo. São Paulo, Cia. Gráfico/Ed. Monteiro Lobato, 1925, p.

5.

53

do Brasil, que podia então, através de seu exemplo, exorcizar as críticas que recebia devido

aos seus referenciais europeus, sobretudo franceses.

Supostamente, Capistrano materializou – por seu comportamento, suas origens,

interesses e estudos – um modelo de intelectual capaz de abarcar o sertão e a cidade, que,

assim como o “pequeno mundo” dos intelectuais, era associada a um ideal de civilidade.

Conforme observou Tristão de Athayde a respeito de outro intelectual, Eduardo Prado,

Capistrano também transitou “entre a fazenda e o boulevard”.116 Ao menos para os

herdeiros da tradição de estudos sobre o Brasil, esse historiador “sertanejo” seria uma

espécie de mediador entre os mundos da civilização e da barbárie, por possuir aquilo que

então era esperado de um historiador: erudição, cultura geral, informações originais,

“habilidade de investigação minuciosa, aliada ao método de comparação, dedução e

exposição” e, talvez o principal, o “sentimento da terra e da gente” brasileiras.117

Em meio à demanda por patriotismo e ao esforço pela demarcação dos campos de

conhecimento, o problema da escrita da história se impunha. O historiador, embora

pudesse desenvolver estudos dos mais diversos, deveria ser capaz de produzir um tipo

particular de escrita, capaz de distingui-lo de outros “homens de letras”. Método e

narrativa que, associados, favoreceriam a distinção entre história e literatura. Ao longo de

toda a Primeira República é possível encontrar exemplos de uma expectativa em torno da

elaboração de uma nova história do Brasil. Uma síntese distinta daquela produzida por

Varnhagen, até então visto por muitos – inclusive Capistrano – como o maior historiador

nacional, ainda que sua obra não fosse imune a críticas.

Flora Süssekind demonstra como, em meados do século XIX, surgiu a figura do

narrador da prosa de ficção brasileira, cujo perfil era próximo do narrador de viagens, do

cartógrafo e do paisagista. Atuando, simultaneamente, como historiador e cronista de

costumes, esse narrador adotava o ponto de vista de um viajante em movimento, capaz de

dar expressão artística ou valor científico a uma paisagem.118

É possível fazer uma ponte entre o surgimento desse narrador da prosa de ficção e a

emergência de um moderno historiador, que, interessado no tema da formação da

nacionalidade, empenhou-se no estudo do povoamento do interior do país, reconstituindo a

história dos caminhos antigos, dos primeiros habitantes e colonizadores, por vezes

recorrendo a formas de narrativa próximas do relato de viagens, com a diferença de que

116

ATHAYDE apud GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 98-106. 117

ALENCAR, “Sobre um livro de Capistrano”, op. cit. 118

Ver SUSSEKIND. Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo, Companhia das

Letras, 1990.

54

não se tratava apenas de viajar no espaço mas, também, no tempo.119

Esse modelo da

narrativa de viagens alcançou, também, a chamada literatura escolar nacional, cujo melhor

exemplo talvez tenha sido o livro Através do Brasil: narrativa (1910), de Manoel Bomfim

e Olavo Bilac.120

Combinando fatores naturais e sociais, Capistrano teria sido capaz de alcançar uma

espécie de “ponto de equilíbrio”, escapando dos paradigmas deterministas predominantes.

Enfrentando as demandas de sua época, explorou o tema da formação da nacionalidade

brasileira, estabelecendo um roteiro em três partes principais: descobrimento,

desbravamento e povoamento do território. Mas, além desses aspectos diferenciadores,

capazes de elevar Capistrano a um patamar distinto de seus antecessores, seus pontos

fracos também são apontados. Os analistas convergem ao criticar a volubilidade do

historiador. A dificuldade para terminar o que começava teria sido, como foi dito no item

anterior, “uma das fraquezas desse homem forte”.121

Apesar disso, sua obra fragmentada,

guiada pelo prazer de estudar, ler, conhecer (em detrimento de ensinar e dar-se a ler), era

um norte para a nova geração de historiadores.122

Identificado como descendente de tribos ancestrais, Capistrano teria sido salvo da

“barbárie” pela erudição, sendo transformado em paradigma do historiador, um narrador

munido com “flechas” transformadas em instrumentos para a escrita; penas “envenenadas”

com as quais deixou suas marcas no mundo das letras. Para Coelho Neto, “o livro o

purificou da barbárie fazendo-lhe o nome atingir a glória”.123

A glória de Capistrano foi

alcançada ainda em vida, adquirindo significado mais amplo logo após sua morte, quando

se observam investimentos no sentido de consolidar uma determinada memória sobre ele e,

ao mesmo tempo, sobre a história da história no Brasil. A história da vida póstuma de

Capistrano poderia até ter sido encerrada aí, sendo seu nome lembrado como marco

referencial de uma época, como um exemplo de historiador entre dois mundos. Mas, seus

discípulos, admiradores e amigos tinham outros planos.

119

Para pensar a relação entre o historiador e o viajante, ver: HARTOG, François. Memória de Ulisses:

narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte, UFMG, 2004. 120

BOMFIM, Manoel e BILAC, Olavo. 1a edição 1910. Através do Brasil: narrativa. São Paulo, Companhia

das Letras, 2000. Sobre esse livro, ver: BOTELHO, André. O aprendizado do Brasil: a nação em busca dos

seus portadores sociais. Campinas, Unicamp, 2002. 121

RIBEIRO, João. “O Descobrimento do Brasil”. In: Obras – Crítica, vol. VI, op. cit., p. 84. 122

Ângela de Castro Gomes compara o caso de Capistrano ao do historiador francês Gabriel Monod, figura

referencial para a pesquisa histórica na França da virada do século XIX, ainda que seu nome não esteja

colocado entre os principais responsáveis pela institucionalização da disciplina, como Ernest Lavisse e

Charles Seignobos. Guardando as devidas proporções, a autora argumenta que, assim como Monod,

Capistrano foi capaz de exercer atração e influência sobre outros pesquisadores, favorecendo a articulação de

um campo de estudos históricos no Brasil. Ver GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 97. 123

COELHO NETO, “Redimido”, op. cit.

55

2

A economia da glória: culto e comemoração

No dia 11 de setembro de 1927 – menos de um mês após a morte de Capistrano –

um grupo de amigos e discípulos do historiador se reuniu no local onde ele passara seus

últimos anos de vida e falecera em 13 de agosto: uma casa situada na antiga travessa

Honorina, na mesma ocasião transformada em rua Capistrano de Abreu, no Rio de Janeiro.

O objetivo do encontro era criar um grêmio dedicado a cultuar sua memória.

Esse investimento no sentido de institucionalizar o culto a um intelectual pode ser

compreendido como parte de um conjunto de realizações, que, de diferentes modos,

contribuíram para consolidar o nome de Capistrano de Abreu como uma figura importante

entre os estudiosos do Brasil. Cabe investigar tais realizações, defendendo a hipótese de

que a fabricação e perpetuação do nome e da obra de Capistrano relaciona-se a demandas

coletivas, tanto dos grupos com os quais ele diretamente se relacionou – e, aos quais, a

partir de algum momento, passou a representar –, quanto de grupos mais amplos, de

contornos difíceis de definir, para quem uma obra e um autor podem ultrapassar seu valor

literário ou intelectual e alcançar o status de símbolo, seja da nação, da intelectualidade

brasileira ou dos estudiosos da história, em particular.

Mas, antes de tudo, é preciso chamar a atenção para o fato de que, assim como

existe uma longa história da experiência de lembrar os mortos,1 existe também uma

história do culto póstumo a determinados indivíduos, considerados mais dignos de serem

lembrados do que outros. Entre esses, os escritores2 parecem ocupar um lugar especial.

3

1 ARIÈS, Philipe. Sobre a história da morte no ocidente desde a Idade Média. Lisboa, Theorema, 1989;

CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra, Quarteto, 2001. 2 O termo escritor está sendo utilizado aqui em seu sentido mais amplo, como sinônimo de “homem de

letras” (um polígrafo, que desenvolve diferentes tipos de conhecimento e participa de uma comunidade de

letrados); de intelectual (alguém que exerce as atividades de pensamento e escrita, podendo ou não se dedicar

a um campo específico de conhecimento); e de autor (aquele que tem seus escritos publicados, sendo que tais

escritos podem pertencer a diferentes gêneros, do literário ao científico). Embora os termos “homem de

letras”, “intelectual” e “autor” possuam cada qual a sua história, supõe-se que a atividade da escrita permite

relacioná-los, integrando seus diferentes significados através do nome de escritor.

56

A comemoração em torno do nome de um escritor ou de uma obra escrita parece

ser um fenômeno recente.4 Relaciona-se, entre outras coisas, ao processo de

individualização e de ascensão do “homem de letras” no cenário público e nacional,

ocorrido entre os séculos XVIII e XIX. É parte do investimento na construção de uma

pedagogia cívica, que tem nos letrados ou intelectuais um exemplo da capacidade de

compreender e explicar a sociedade e a nação, além de apontar soluções para seus

problemas. Trata-se da valorização das atividades de escrita e pensamento, bem como as

artísticas, consideradas úteis para a afirmação de uma dada identidade coletiva (nacional

ou grupal) e para a elaboração e defesa de projetos a serem partilhados.

A estética romântica – que se desenvolveu no final do século XVIII e ao longo do

XIX – privilegiava a singularidade do escritor em detrimento do caráter social ou

institucional de sua atividade literária e/ou intelectual. O romantismo dignificou a figura do

“homem de letras” a ponto de torná-lo um herói dotado de sensibilidade e inteligência e

capaz de exprimi-las através da palavra escrita. Aceito como o mais consensual dos

homens públicos, o escritor passou a ser cultuado através de instituições que adotam seu

nome, também atribuído a locais como ruas e praças; de publicações e eventos sobre sua

vida e obra, assim como, pela guarda e exibição de seus pertences, pelo fabrico de estátuas,

retratos, moedas, selos e edições comemorativas. Tornou-se comum lembrar escritores

ilustres através de elogios póstumos, da organização de exposições e, mais recentemente,

da realização de programas televisivos, filmes e documentários.5

O ato comemorativo pretende extrair uma espécie de valor simbólico daquilo que é

comemorado, algo útil na consolidação dos elos entre os vivos. Trata-se, portanto, de uma

prática socializadora capaz de mobilizar os indivíduos em torno de imperativos coletivos,

sendo que, mais do que apreender aquilo que é festejado e seu tempo, o que as

comemorações promovem são as memórias e projetos que o presente procura impor a si

mesmo. Nesse sentido, a comemoração diz mais sobre aqueles que comemoram do que

sobre o que é comemorado.6

Segundo Fernando Catroga, as comemorações tornaram-se um fenômeno comum

na Europa e na América, tendo alcançado o apogeu entre a década de 1870 e os anos de

3 Michel Foucault chama a atenção para a necessidade de investigar a importância e o significado do culto

póstumo de artistas e, particularmente, de escritores em uma dada cultura. Ver FOUCAULT, Michel. “O que

é um autor?” [1969]. In: _____. O que é um autor? 4a edição. Lisboa, Vega-Passagens, 2000, p. 29-87.

4 A comemoração é compreendida aqui em seu sentido literal, como lembrança compartilhada.

5 Ver CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história”. In: _____, TORGAL, Luís Reis e MENDES, José

Amado. História da história em Portugal, séculos XIX e XX. S.l., Temas & Debates, [1998], vol. 2, p. 339-

348. 6 Ibidem.

57

1910, quando eram observadas em diversos países. Mesmo possuindo características

semelhantes, podiam atender a interesses dos mais diversos, às vezes ultrapassando os

limites nacionais.7 Um dos aspectos semelhantes diz respeito ao fato de que toda

comemoração tem por objetivo produzir consensos em torno de algo ou alguém. Ou seja,

através da comemoração é possível atribuir coerência e sentido a um evento, a uma obra ou

a uma trajetória, de modo a erigir interpretações e consolidar memórias. Esse objetivo não

é imune a disputas, que visam garantir a hegemonia de um dado poder simbólico e,

também, político.8

Na França, por exemplo, 1878 é um ano importante no calendário das

comemorações. Foi então que se comemorou o centenário da morte de dois importantes

filósofos do Iluminismo: Voltaire e Rousseau, em meio a um movimento que visava captar

e dar novo significado à herança do século XVIII, reforçando a unidade nacional dividida

entre perspectivas distintas: a iluminista e a romântica. Lembrar a morte de ambos era

parte de um investimento maior – ocorrido de modo notável entre os anos de 1870 e 1882

– no sentido de consolidar uma instituição política, a III República, enquanto herdeira da

Revolução de 1879 e das Luzes.9

Em Portugal, a história das comemorações relacionadas ao mundo literário também

é rica, destacando-se os festejos em torno de Camões (1880 e 1924), Almeida Garrett

(1899) e Alexandre Herculano (1888 e 1910). As chamadas “comemorações camonianas”

celebraram não só um autor, mas uma época (a da expansão marítima) e uma obra, Os

Lusíadas, adquirindo um tom messiânico, anunciador do refundamento da própria nação.

Os festejos em torno do escritor romântico Almeida Garrett, marcadamente dedicados a

promover o conhecimento de sua obra, também expressaram propósitos religiosos e

cívicos. Algo semelhante ocorreu durante as comemorações em torno do poeta e

historiador Alexandre Herculano. Seus restos mortais foram conduzidos de modo

apoteótico de um humilde cemitério do interior até um mausoléu no cemitério dos

Jerônimos (panteão cívico nacional), em 1888, mobilizando, principalmente, intelectuais e

7 CATROGA, “Ritualizações da história”, op. cit. Em alguns casos, aquilo que é comemorado passou a ser

associado não apenas aos valores de uma dada sociedade ou nação, mas a algo mais amplo como a cultura

ocidental moderna. É o caso, por exemplo, de Van Gogh. Ver HEINICH, Nathalie. La gloire de Van Gogh:

essai d‟anthropologie de l‟admiration. Paris, Les Éditions de Minuit, 1991. 8 CATROGA, op. cit., p. 340. Ver, especialmente, o item 6, A sacralização cívica da literatura, p. 339-348.

9 GOULEMOT, Jean-Marie e WALTER, Éric. “Les Centenaires de Voltaire et de Rousseau: les deux

lampions des Lumières”. In: NORA, Pierre (Dir.). Les Lieux des mémoire. I – La Republique. Paris,

Gallimard, 1984, p. 381-420.

58

políticos, para, em seguida, adquirir feições populares, por ocasião do primeiro centenário

de seu nascimento, em 1910.10

No caso do Brasil, destaca-se o jubileu cívico-literário de Rui Barbosa, em 1918,

quando se comemorou o suposto cinqüentenário de seu primeiro discurso público,

momento escolhido para marcar sua entrada no mundo das letras e no cenário político

nacional. Até então, nunca um intelectual vivo havia sido consagrado no país de modo tão

grandioso através de conferências, cortejos etc., realizadas em várias partes do país.

Símbolo da cultura brasileira, da sabedoria e da capacidade oratória, Rui Barbosa foi

consagrado como “glória da latinidade”, “gênio supremo da humanidade”, “a mais alta

mentalidade do universo”, “semideus” e “apóstolo”, entre outros epítetos enaltecedores.

Tornou-se o exemplo do intelectual que transita entre os mundos da política e das letras,

conduzindo o país rumo à civilização. Seus funerais, em 1922, e o centenário de seu

nascimento, em 1949, amplificaram ainda mais o mito.11

O culto a Euclides da Cunha é outro exemplo. Assassinado em 1909, no auge de

sua vida intelectual, Euclides foi sucessivamente transformado em herói, mito e santo,

através de empreendimentos diversos como discursos fúnebres, conferências, edições e

reedições de sua obra, biografias etc. Seus admiradores criaram instituições em sua

memória (tais como o Grêmio Euclides da Cunha) e organizaram acervos com o objetivo

de preservar e cultuar seus pertences (incluindo seu cérebro). Uma série de eventos

destinados a lembrar o escritor contribuiu para a perpetuação de seu nome e de sua obra.

Assim, as “comemorações euclidianas” ocorridas de 1912 aos dias atuais foram

promovidas em diferentes pontos do país, destacando-se o núcleo de “euclidianos” de São

José do Rio Pardo, cidade do interior paulista onde Euclides viveu (1898-1901), trabalhou

como engenheiro e escreveu sua obra Os sertões (1902), considerada um épico nacional.

No primeiro aniversário da morte do escritor, uma verdadeira “romaria cívica” foi

promovida em sua homenagem, mobilizando a população local, que seguiu em

peregrinação até à cabana onde ele havia escrito seu principal livro. O evento transformou-

se em festa oficial da cidade, com apoio do governo do estado de São Paulo.12

10

CATROGA, “Ritualizações da história”, op. cit., p. 221-230 e 339-348. 11

GONÇALVES, João Felipe. “Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis

nacionais na Primeira República”. Estudos Históricos – Dossiê Heróis Nacionais. Rio de Janeiro, vol. 14, n.

25, 2000, p. 135-161. 12

ABREU, Regina. O enigma de Os sertões. Rio de Janeiro, Rocco-Funarte, 1996; Idem. “Entre a nação e a

alma: quando os mortos são comemorados”. Estudos Históricos – Dossiê Comemorações. Rio de Janeiro,

CPDOC-FGV, vol. 7, n. 14, 1994, p. 205-230, versão digital, p. 1-24.

59

Ao estudar a memória construída sobre Capistrano de Abreu é possível sustentar

que seu culto foi iniciado ainda em vida, adquirindo contornos mais definidos após sua

morte, em 1927. Por meio de uma série de atos e discursos é possível observar o

investimento feito sobre o nome de Capistrano por seus contemporâneos e por aqueles que

vieram depois. Entre esses atos e discursos estão a criação da Sociedade Capistrano de

Abreu, no mesmo ano de sua morte; a inclusão de seu nome no rol dos grandes

historiadores nacionais, elaborado durante o Estado Novo (1937-1945); e a comemoração

de seu primeiro centenário de nascimento, em 1953.

2.1. A “sociedade dos bons amigos de Capistrano”: a institucionalização de um culto

A Sociedade Capistrano de Abreu (1927-1969) foi criada por um grupo de notáveis

polígrafos que transitavam entre os mundos da política e das letras, cujas fronteiras são

difíceis de delimitar. Os fundadores eram amigos, admiradores e discípulos do historiador

e com ele conviveram pessoalmente, por vezes, através de constante troca de cartas.

Planejada pouco antes da morte de Capistrano, ganhou vida pouco depois.

Diferenciando-se das academias de ciências, artes e letras, a Sociedade foi

planejada de acordo com o molde das instituições empenhadas em divulgar a obra de seu

patrono e, também, em promover seu culto.13

Mais exatamente, os objetivos eram: guardar

e conservar sua biblioteca e seu arquivo documental; promover a publicação de seus

trabalhos inéditos, incluindo sua correspondência; e reeditar suas obras. Como extensão do

culto, também visava traduzir e publicar textos de viajantes estrangeiros sobre o Brasil,

assim como trabalhos e documentos relativos a temas nacionais, além de premiar estudos

sobre a história, a etnonologia e a lingüística brasileira.14

13

Exemplos de associações que se destacavam no culto a intelectuais, no Brasil entre as décadas de 1920 e

1940, eram: o Grêmio Euclides da Cunha [1911], mencionado anteriormente; e a Sociedade Felipe d‟Oliveira

(1933-1945). Sobre o primeiro, ver ABREU, O enigma de Os Sertões, op. cit., p. 299-365; sobre a segunda,

ver GOMES, Ângela de Castro. “Essa gente importante da Sociedade...”. In: _____. Essa gente do Rio...

Modernismo e Nacionalismo. Rio de Janeiro, FGV, 1999, p. 77-103. 14

Estatutos da Sociedade Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro, Sociedade Capistrano de Abreu, 1927. Os

estatutos podem ser facilmente encontrados no final dos livros editados pela Sociedade. Atualmente, a

correspondência da agremiação, assim como outros documentos relativos a sua administração, além da

biblioteca de Capistrano, estão sob a guarda do Instituto Histórico do Ceará, em Fortaleza. Há informações

sobre a Sociedade em AMED, Fernando José. “As edições das obras de Capistrano de Abreu”. História:

Questões & Debates. Curitiba, UFPR, ano 17, n.32, jan./jun. 2000, p. 99-117.

60

Grupo reunido na casa de Capistrano, por ocasião da fundação da Sociedade Capistrano de Abreu – Rio de

Janeiro, 11 de setembro de 1927. Fonte: Revista Fon-Fon. Cópia a partir do exemplar existente na Seção de

periódicos da Biblioteca Nacional.

Grupo reunido em frente à casa de Capistrano, na rua Honorina, em Botafogo, que na ocasião recebeu o

nome de rua Capistrano de Abreu – Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1927. Fonte: Revista Fon-Fon. Cópia

a partir do exemplar existente na Seção de periódicos da Biblioteca Nacional.

61

O quadro a seguir apresenta os sócios fundadores do grêmio, trazendo informações

sobre suas respectivas obras e trajetórias.

SÓCIOS FUNDADORES DA SOCIEDADE CAPISTRANO DE ABREU

NOME ATIVIDADES

PROFISSIONAIS E POLÍTICAS

OBRAS PRINCIPAIS

Paulo

Prado

1869-1943

Empresário e mecenas das artes e letras.

Promoveu a edição da Série Eduardo Prado –

Para melhor conhecer o Brasil, idealizada por

Capistrano e dedicada à publicação de

documentos históricos. Dirigiu a Revista do

Brasil ao lado de Monteiro Lobato, na fase de

1923 a 1925. Foi um dos patrocinadores da

Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922).

Autor de Paulística (1925) e Retrato do

Brasil (1928).

Rodolfo

Garcia

1873-1949

Notabilizou-se por seus estudos sobre a história

das expedições científicas, a etnografia e a

lingüística indígena . Foi anotador, revisor e

prefaciador de livros e documentos. Dirigiu o

Museu Histórico Nacional (1930-1932) e a

Biblioteca Nacional (1932). Também foi

bibliotecário do IHGB.

Concluiu a revisão da História Geral do

Brasil, de Varnhagen, iniciada por

Capistrano. Autor da introdução ao

Catecismo da Doutrina Cristã na Língua

Brasílica (1942), além de: Nomes de aves

em língua tupi (1929); Glossário das

palavras e frases da língua tupi (1932);

Nomes geográficos peculiares ao Brasil

(1921), Bibliografia de Geografia do Brasil

(1921). Também organizou o Dicionário

Histórico, Geográfico e Etnográfico do

Brasil, publicado pelo IHGB, e produziu o

Dicionário de Brasileirismos (1915).

João

Pandiá

Calógeras

1870-1934

Engenheiro de minas, desenvolveu pesquisas

geológicas. Foi deputado federal em várias

legislaturas, tendo sido eleito para a

Assembléia Nacional Constituinte de 1933.

Participou de muitos debates sobre questões

nacionais relevantes em sua época, tornando-se

um notório jornalista, conferencista e escritor.

Durante o governo Venceslau Brás, foi ministro

da Agricultura, Indústria e Comércio (1914-

1915), antes de se tornar ministro da Fazenda

(1915-1917). Posteriormente, foi ministro da

Guerra (1919-1922) durante o governo de

Epitácio Pessoa, tendo participado ativamente

de acontecimentos relativos à revolta do Forte

de Copacabana, em 1922.

Autor de diversos trabalhos científicos

relativos à mineração. Sua obra com maior

repercussão é As minas do Brasil e sua

legislação (1904-1905; reeditado pela

Brasiliana); Entre seus principais livros

estão: A política exterior do Império (1927-

1933), considerado como seu trabalho

historiográfico de maior importância;

Formação histórica do Brasil (1930); Os

jesuítas e o ensino (1911); Rio Branco e a

política exterior (1916); A união brasileira

(1927); Problemas de governo (1928);

Estudos históricos e políticos [1935]; O

marquês de Barbacena (Brasiliana, 1936);

Política monetária do Brasil (Brasiliana);

Problemas de administração (Brasiliana);

Problemas de governo (Brasiliana); Da

regência à queda de Rozas (Brasiliana),

entre outros trabalhos.

Miguel

Arrojado

Lisboa

1872-1932

Engenheiro e geólogo. Inspetor geral da

Secretaria de Obras contra as Secas, entre 1909

e 1912 e, posteriormente, entre 1920 e 1927.

É autor de alguns trabalhos sobre geologia,

entre os quais: Oeste de São Paulo, sul de

Minas Gerais; geologia, indústria,

mineração, clima, vegetação, solo agrícola,

indústria pastoril (1909).

62

Manuel

Said Ali

Ida

1861-1953

Lingüista, botânico, zoólogo e geógrafo.

Colaborou com Capistrano no estudo sobre a

língua dos índios caxinauás. Poliglota, foi

professor de alemão no Colégio de Pedro II e

trabalhou como tradutor. Desenvolveu método

histórico-comparativo aplicado à sintaxe e à

semântica. Além de estudos sobre lingüística,

notabilizou-se como geógrafo ao estabelecer a

divisão climatológica do Brasil e nomear a

região Nordeste.

Um de seus muitos trabalhos publicados é

Lexicografia do português histórico (1921).

Além disso, organizou edições das obras de

Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias e

Castro Alves.

Teodoro

Sampaio

1855-1937

Engenheiro baiano, filho de um padre com mãe

escrava. Participou da fundação da Escola

Politécnica e do Instituto Histórico e

Geográfico de São Paulo. Dirigiu trabalhos de

abastecimento e saneamento no mesmo estado.

Foi assistente do geólogo norte-americano

Orville Derby, diretor da Comissão Geográfica

e Geológica do estado de São Paulo,

responsável pela exploração dos rios

Itapetininga e Paranapanema. Destacou-se

como estudioso do tupi.

Publicou trabalhos sobre a língua tupi, além

de estudos sobre geografia. Autor de O rio

São Francisco e a Chapada Diamantina

(1906), O tupi na geografia nacional e A

exploração dos rios Itapetininga e

Paranapanema. Revisou e anotou a Viagem

ao Brasil (1930), de Hans Staden.

Edgar

Roquette-

Pinto

1884-1954

Médico, professor e etnógrafo. Participou da

comissão dirigida pelo Marechal Cândido

Rondon, em 1912, para construção de linhas

telegráficas. Fundou a Rádio Sociedade do Rio

de Janeiro, em 1923. Participou do Congresso

Internacional de Americanistas, em 1924. Foi

diretor do Museu Nacional (1916) e realizou a

edição da maior coleção de filmes científicos

do Brasil. Presidiu o I Congresso de Eugenia,

em 1929, tendo sido um ardoroso defensor do

valor positivo da mestiçagem. Integrou o

Movimento de Renovação Educacional do País,

subscrevendo o Manifesto dos Pioneiros da

Educação Nova, em 1932. A convite do

ministro da Educação, Gustavo Capanema,

criou e dirigiu o Instituto Nacional do Cinema

Educativo, entre os anos de 1937 e 1947.

Dirigiu a parte histórica do filme O

Descobrimento do Brasil. Foi membro da

Academia Brasileira de Letras, do IHGB, do

Partido Socialista Brasileiro e do Grêmio

Euclides da Cunha, tendo desempenhado

importante papel na construção da memória

sobre esse escritor.

Autor de um elogiado estudo antropológico

intitulado Rondônia (1917; reeditado pela

Brasiliana). Entre outros títulos, também

publicou Ensaios Brasilianos (Brasiliana,

1933) e Ensaios de Antropologia Brasiliana

(Brasiliana). Sua vasta obra trata de

educação, antropologia, fisiologia, biologia

e eugenia.

Afrânio

Peixoto

1876-1947

Médico e educador. Foi diretor da Escola

Normal (1915); professor da Faculdade de

Direito do Rio de Janeiro; diretor da Instrução

Pública do Distrito Federal (1916); professor de

História da Educação do Instituto do Rio de

Janeiro (1932) e primeiro reitor da

Universidade do Distrito Federal (UDF), criada

em 1935 e incorporada à Faculdade Nacional

de Filosofia da Universidade do Brasil, em

1939, da qual se tornou professor emérito.

Autor de Clima e Saúde: introdução

biogeográfica à civilização brasileira

(Brasiliana); Castro Alves, o poeta e o

poema (Brasiliana). Escreveu vários

trabalhos sobre medicina, direito, folclore,

história, educação e literatura, além de

romances e crônicas.

63

Eugênio

de Castro

1882-1947

Comandante da Marinha. Dedicou-se ao estudo

da história colonial, das línguas indígenas e da

geografia brasileira, colaborando na revisão e

publicação de documentos históricos.

Autor do prefácio do Diário de navegação

de Pero Lopes de Sousa, 1530-1532,

publicado pela SCA, em 1927. Escreveu,

também: A expedição de Martim Afonso de

Sousa; Ensaios de geografia lingüística

(Brasiliana); Os franciscanos no Maranhão

(RIHGB, 1924); História tributária do

Brasil (RIHGB, 1915); O ministro Pedro

Lessa (RIHGB, 1923).

Jayme

Coelho

1887-?

Estudioso do Brasil colonial, desenvolveu

pesquisas sobe a França Antártica, história

antiga e a história da América. Lecionou na

Escola de Economia e Direito, da Universidade

do Distrito Federal, criada em 1935. Também

participou dos anos iniciais da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro.

Publicou um livro escolar junto com Vicente

Tapajós e Agnaldo Pinheiro, intitulado

Caderno de História da América (2a ed.

1958).

Afonso

d‟E.

Taunay

1876-1958

Foi aluno de Capistrano. Assumiu a direção do

Museu Paulista, em 1917, e dos museus do

Estado de São Paulo, a partir de 1923. Foi

professor da Cadeira de História da Civilização

Brasileira, da Faculdade de Filosofia, Ciências

e Letras da Universidade de São Paulo, entre

1934 e 1938.

Dedicado ao estudo do período colonial, foi

um dos pioneiros na pesquisa do

bandeirismo paulista. Entre seus muitos

títulos publicados estão: Pedro II

(Brasiliana); Rio de Janeiro de antanho:

impressões de viajantes estrangeiros

(Brasiliana); Visitantes do Brasil colonial:

séculos XVI-XVIII (Brasiliana); História

seiscentista da vila de São Paulo, em 4 vols.

(1926-1929); História do café no Brasil, em

11 vols (1929-1941); História Geral das

bandeiras paulistas, em 7 vols. (1924-

1936); Escritores coloniais (1925) etc.

Também foi um importante anotador,

destacando-se na revisão de Cultura e

opulência do Brasil, de Antonil;

Nobiliarquia paulistana, de Pedro Taques;

e, História Natural do Brasil, de Jorge

Marcgrave.

Adriano

de Abreu

1883-1952

Escritor e funcionário da Companhia de Viação

e Obras Públicas. Foi amigo e correspondente

do escritor Lima Barreto.

Autor de um romance intitulado Dias de

maio.

Com exceção de Adriano de Abreu, filho de Capistrano, todos os fundadores

realizaram pesquisas relevantes para o conhecimento do Brasil e, especialmente, para o

campo de estudos históricos em formação. Mesmo sem conter dados sobre todos os

membros da Sociedade, ao longo de seus 42 anos de existência (1927-1969),15

o quadro

15

Alguns dos membros da Sociedade Capistrano de Abreu, ao longo de seus 42 anos de existência, foram:

Afonso Arinos de Melo Franco, Alberto Rangel, Alceu Amoroso Lima, Alcindo Sodré, Alfredo Ellis Júnior,

Américo Jacobina Lacombe, Barbosa Lima Sobrinho, Cândido Mariano da Silva Rondon, Carlos Malheiro

Dias, Clóvis Beviláqua, Francisco de Assis Carvalho Franco, Gastão Cruls, Guilherme Guinle, Gustavo

Barroso, Hélio Lobo, Hélio Vianna, Henri Hauser, Jonathas Serrano, José Carlos de Macedo Soares, Juarez

Távora, Júlio Mesquita Filho, Luis da Câmara Cascudo, Mário de Andrade, Roberto Simonsen, Rodrigo

Mello Franco de Andrade, Rodrigo Otávio, Rodrigo Otávio Filho, Serafim Leite, Tasso Fragoso, Tobias

Monteiro, Washington Luís.

64

pode ser considerado representativo, por indicar que os estudos realizados pelos

fundadores possuem relação direta com as atividades às quais Capistrano dedicou sua vida:

a historiografia, a geografia, a etnologia e a lingüística indígena.

O grupo enviou carta a diversos nomes da intelectualidade, convidando-os a

participar do grêmio, com os seguintes dizeres:

Amigos e discípulos de Capistrano de Abreu, sabedores de quanto seu admirável

exemplo contribuiu para elevar a intelectualidade de nosso meio, unimo-nos para procurar

tirar os corolários dessa grande vida e prolongar-lhe tempos afora o benéfico influxo.

Desejaríamos que, no mesmo modestíssimo porão, cela monástica onde viveu,

meditou, trabalhou e morreu, se conservasse intacta a biblioteca que lhe serviu de oficina

mental. Catalogada e posta em ordem; enriquecida com livros novos de continuadores dos

mesmos estudos do Mestre, se tornaria o núcleo central de uma forte cultura a bem de

nossa terra e em homenagem de respeito ao grande morto. As obras deste, esgotadas em

sua quase totalidade, seriam reeditadas e completadas; os inéditos que deixou, publicados e

distribuídos. Os valiosos documentos que são as cartas por ele escritas, e as que recebeu,

precioso manancial de estudo destes últimos trinta anos, principalmente em suas

manifestações intelectuais, viriam à luz. Criar-se-iam prêmios, estimulantes para as

investigações históricas, geográficas e etnográficas. Promover-se-ia a tradução para o

vernáculo das obras dos viajantes naturalistas e sábios que percorreram o Brasil no século

XIX, conforme um seu ardente desejo.

Para dar forma e organizar tal grêmio, preito de afeição e de respeito à memória do

brasileiro excepcional que foi Capistrano de Abreu e protesto de continuação de sua obra e

da vitalidade do espírito que o animou, tomamos a iniciativa de propor a todos aqueles que

o amavam e lhe seguiam a direção científica, colaborarem no dever de lhe servir o

pensamento.

Ao amigo convidamos, para esse fim, que nos levará a reunirmos à Travessa

Honorina, n. 45, domingo, 11 de setembro, às 2 horas da tarde.16

16

Carta do Rio de Janeiro, 23/10/1927, assinada por Paulo Prado, João Pandiá Calógeras, Eugênio de Castro,

Miguel Arrojado Lisboa, Adriano de Abreu, Manuel Said Ali Ida, Rodolfo Garcia, Afrânio Peixoto, Teodoro

Sampaio, Jayme Coelho, Afonso de E. Taunay e Edgar Roquette-Pinto. Agradeço a Ítala Byanca Morais da

Silva e Paula Virgínia Pinheiro Batista por terem fornecido a cópia dessa carta, localizada entre os

documentos da Coleção Studart, sob a guarda do Instituto do Ceará. Uma reprodução da carta pode ser

encontrada em MATOS, Pedro Gomes de. Capistrano de Abreu, vida e obra do grande historiador.

Fortaleza, A. Batista Fontenele, 1953, p. 342-343.

65

Um dos fundadores, Eugênio de Castro, recorda os propósitos da recém fundada

agremiação, deixando entrever que o plano de sua criação havia surgido pouco antes da

morte de Capistrano:

(...) Paulo Prado, teve então para quem o acompanhava a confidência de uma idéia

reveladora de fina sensibilidade. E era que, sendo Capistrano de Abreu um guia, um mestre

paternal dos que estudavam e escreviam, bem competiria a estes, discípulos e amigos, o

culto do sábio para além da existência terrena prestes a extinguir-se... Uma academia que

consagrasse tão bela vida votada ao estudo e ao bem, seria em desacordo aos sentimentos

do mestre; mas uma sociedade dos bons amigos de Capistrano... (...) o destino da alada

semente que, levada nas asas da brisa, será, tempo afora, o jequitibá gigante ou a majestosa

palmeira. Nascem os cultos como nascem as árvores.17

Assim, reafirmando a imagem de Capistrano como um homem modesto, avesso a

homenagens, seus admiradores optaram por construir um grêmio a ser regido pela relação

de amizade e afinidade entre os sócios. Apesar de reunir nomes importantes do cenário

político-cultural do país e do exterior, chegou-se a afirmar que a Sociedade Capistrano de

Abreu era “uma das mais modestas sociedades deste mundo”.18

Essa “sociedade dos bons

amigos” aparentemente se dispôs a abrir mão da formalidade, da hierarquia e da pompa

que caracterizavam instituições tradicionais como o IHGB e a Academia Brasileira de

Letras, em prol de algo mais “humilde”, mas nem por isso menos ambicioso, como se pode

deduzir das palavras de outro fundador, Paulo Prado:

A Sociedade Capistrano de Abreu, criada num ímpeto de devoção e saudade, logo após a

sua morte, empreendeu a tarefa de continuar, na medida das suas forças, esse trabalho

monumental que o Mestre animava e desenvolvia. A Sociedade é pobre como foi

Capistrano. Como ele, vive modestamente; não tem presidente, nem vice-presidente, nem –

graças a Deus – orador oficial. Mas alimenta, na humildade, uma fervorosa ambição – a de

trabalhar, como queria Capistrano, para “melhor se conhecer o Brasil”.19

Esse propósito de “conhecer o Brasil” vincula-se ao processo de reflexão sobre o

país observável desde fins do século XIX. A busca das particularidades capazes de definir

17

CASTRO, Eugênio. “Sociedade Capistrano de Abreu”. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro, vol.

IV, n.1, março de 1928, p. 11-12. 18

Ver FRANCO, Afonso Arinos de Melo. “Capistrano”. A Manhã. Suplemento literário Autores & Livros,

ano 10, vol. VI, n. 5, 06/02/1944, p. 71. Originalmente publicado em A Manhã, 25/10/1941. 19

PRADO, Paulo. “Capistrano”. O Estado de São Paulo, 26/09/1928, p. 3.

66

os contornos de uma identidade nacional brasileira mobilizou os “homens de letras”, que

através da literatura, da escrita da história, dos compêndios de geografia e língua pátria,

dos debates sobre temas políticos e sociais, dos estudos sobre geologia, fauna e flora, das

pesquisas sobre língua indígena etc., propuseram interpretações sobre a formação da

nacionalidade, em um processo incessante que se estendeu da década de 1870 até os anos

1950, com notável repercussão nas décadas seguintes.20

Gerações de pensadores se dedicaram ao estudo do Brasil e de seus habitantes, por

vezes afirmando a inexistência de um povo brasileiro ou da própria nação.21

Esse empenho

em conhecer as particularidades nacionais foi marcado pelas discussões acerca da

modernidade, observando-se a existência de variados projetos relativos à modernização

nacional desde a década de 1870. Os anos 1920, 30 e 40 foram importantes nesse processo.

Ao longo desse período, operou-se uma releitura do passado, que incluiu a revisão das

interpretações até então produzidas. O ambiente era favorável à exaltação da nacionalidade

e de tudo aquilo que pudesse ser lido como uma contribuição para a captação da

brasilidade (espécie de essência do ser brasileiro) e a compreensão do passado, do presente

e do futuro do país.22

Supostamente, foi entre o final dos anos 20 – quando a Sociedade Capistrano de

Abreu foi criada (1927) – e o início dos anos 1950, quando se deu a comemoração do

primeiro centenário de nascimento de Capistrano (1953), que a agremiação erigida em sua

homenagem desenvolveu suas principais atividades, ainda que tenha perdurado até o final

dos anos 60.23

Em 1953, José Honório Rodrigues se destacou como organizador de uma

exposição sobre Capistrano, montada no saguão da Biblioteca Nacional, em 22 de outubro.

20

Alguns autores se referem a esse processo de reflexão sobre a identidade nacional brasileira como um

movimento de “redescobrimento do Brasil”. Ver, por exemplo: MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da

cultura brasileira, 1933-1974. 8a edição. [1

a edição 1977]. São Paulo, Ática, 1994, p. 27; GOMES, Ângela de

Castro. “O redescobrimento do Brasil”. In: _____. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro, IUPERJ-

Vértice, 1988, p. 205-228; OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo,

Brasiliense, 1990; Idem, “A redescoberta do Brasil nos anos 1950: entre o projeto político e o rigor

acadêmico”. In: MADEIRA, Angélica e VELOSO, Mariza (Orgs.). Descobertas do Brasil. Brasília, UnB,

2000, p. 139-161; Idem, “Cultura e identidade nacional no Brasil do século XX”. In: GOMES, Ângela de

Castro, PANDOLFI, Dulce Chaves e ALBERTI, Verena (Coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro,

Nova Fronteira – CPDOC, 2002, p. 338-369; ORLANDI, Eli Puccinelli (Org.). Discurso fundador: a

formação do país e a construção da identidade nacional. 3a edição. São Paulo, Pontes Editores, 2003.

21 NAXARA, Márcia Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870/1920.

São Paulo, Annablume, 1998. 22

FABRIS, Annateresa. “Modernidade e vanguarda: o caso brasileiro”. In: _____ (Org.). Modernidade e

modernismo no Brasil. Campinas, Mercado das Letras, 1994, p. 9-25. 23

As últimas anotações no Livro de Atas da Sociedade Capistrano de Abreu datam de 1969. Devo essa

informação a Ítala Byanca Morais da Silva e a Paula Virgínia Pinheiro Baptista, que participaram da

organização do Fundo da SCA, sob a guarda do Instituto do Ceará, e que vêm desenvolvendo estudo sobre a

agremiação e sobre a correspondência de Capistrano, respectivamente.

67

Desde essa época, ele passou a ser o nome mais expressivo da Sociedade, afirmando-se

como o principal divulgador dos trabalhos de Capistrano, prefaciando suas obras –

inclusive sua correspondência, reunida e lançada em livro em 1954 – e produzindo artigos,

sempre valorizando suas contribuições para a historiografia brasileira.24

As atividades da Sociedade Capistrano de Abreu coincidiram, portanto, com um

período de expressivas transformações políticas e culturais no Brasil, às quais, bem ou mal,

os “bons amigos” procuraram se adaptar. Foi em meio a acontecimentos significativos

como a Revolução de 1930 e a períodos marcantes como o Estado Novo (1937-1945), só

para citar dois exemplos, que a instituição se afirmou como um local capaz de reunir

nomes expressivos da intelectualidade, que apesar de pertencerem a diferentes gerações e

postular distintas tendências políticas, científicas e/ou literárias, julgaram oportuna a

participação em um grêmio dedicado a homenagear aquele que podia ser tido por muitos

como o iniciador de um movimento de “descobrimento” do Brasil, através do estudo da

formação da nacionalidade. Muitos dos “amigos de Capistrano” possuíam em comum o

fato de participar do aparelho de Estado antes e durante o Estado Novo, desempenhando

papéis relevantes na produção cultural, através do lançamento de revistas e livros; da

organização de projetos editoriais; e da atuação em instituições ligadas à educação e à

cultura, inclusive nas universidades criadas a partir de 1934.

Em meio a diversos empreendimentos que visavam o conhecimento do Brasil,

promovidos por outras instituições, a Sociedade realizou concursos com o objetivo de

incentivar pesquisas inéditas sobre a história nacional, mais exatamente, sobre o período

colonial, ao qual seu patrono estava ligado. Uma lista de trabalhos contemplados com o

Prêmio Capistrano de Abreu pode ser vista no quadro a seguir:

Trabalhos premiados pela Sociedade Capistrano de Abreu

(Prêmio Capistrano de Abreu)

Publicação

Autor Ano da

premiação

Ano da

publicação

Editora

Anchieta e a

capitania

de São Vicente

Antônio de Alcântara

Machado

1928 1929 Livraria

Briguiet

Os companheiros

de D. Francisco de

Souza

Francisco de Assis

Carvalho Franco

1928 1929 Livraria

Briguiet

O Vale do São

Francisco

Luiz Flores

de Moraes Rego

1935 - -

24

Ver AMED, “As edições das obras de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 106.

68

Ao lado da Série Eduardo Prado – Para melhor conhecer o Brasil, idealizada por

Capistrano e organizada por Paulo Prado,25

as (re)edições financiadas pela Sociedade

podem ser lembradas como precursoras de um movimento editorial que adquiriu grande

importância a partir dos anos 1930, quando surgiram coleções de maior vulto, tais como a

Coleção Brasiliana (1931), publicada pela Companhia Editora Nacional; a Documentos

Brasileiros (1936), da Editora José Olympio e a Biblioteca Histórica Brasileira (1940), da

Livraria Martins Editora. De modo geral, o objetivo de tais coleções era reunir estudos

nacionais e estrangeiros sobre o Brasil, com destaque para as pesquisas históricas.26

Os membros da Sociedade Capistrano de Abreu procuraram construir uma

instituição representativa do “Brasil estudioso”. Como disse José Honório Rodrigues,

lembrando o discurso de Miguel Arrojado Lisboa durante a inauguração do grêmio,

tratava-se do encontro de uma “elite apurada, representativa de nossa melhor

intelectualidade e de nosso pensamento contemporâneo”, que ali se reunia

espontaneamente, “sem concerto”.27

Sobretudo, parecem ter se empenhado em deixar uma

marca no campo editorial, compreendendo que o apoio a publicações correspondia a uma

espécie de missão, menos capaz de gerar lucro financeiro do que angariar capital

intelectual e político. Além disso, pode-se supor que o culto daquele que era considerado

por muitos como o maior historiador do Brasil também garantia prestígio aos sócios, visto

que os estudos de tipo historiográfico estabeleciam uma espécie de paradigma do

pensamento social da época. Isso pode ser deduzido, por exemplo, a partir da análise da

prestigiada Coleção Brasiliana, onde o gênero mais publicado entre os anos 30 (25%) e 40

(27%) era a história.28

25

A Série é composta por cinco títulos: Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, pelo

licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões da Bahia, 1591-1592 (1922); Histoire de la mission

des peres capucins em l’isle de Maragnon et terres circunvoisines, de Claude d‟Abbeville (1922);

Denunciações da Bahia, 1591-1593 (1925); Diário de navegação de Pero Lopes de Sousa, 1530-1532

(1927); e Denunciações de Pernambuco, 1593-1595 (1929). 26

Ver: PONTES, Heloísa. “Retratos do Brasil: editores, editoras e „Coleções Brasiliana‟ nas décadas de 30,

40 e 50”. In: MICELI, Sérgio (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo, Vértice, 1989, vol.

1, p. 359-409. 27

RODRIGUES, José Honório. “Introdução”. In: ABREU, Capistrano de. Correspondência. Organizada e

prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, vol. 1, p. 27. 28

PONTES, op. cit., p. 392. A Coleção Brasiliana integrava a Biblioteca Pedagógica Brasileira, composta

por outras quatro coleções: Literatura Infantil, Atualidades Pedagógicas, Livros Didáticos e Iniciação

Científica. A Biblioteca foi organizada por Fernando de Azevedo, que também dirigiu as coleções Livros

Didáticos e Brasiliana, que, a partir de 1958, passou a ser dirigida por Américo Jacobina Lacombe, membro

da Sociedade Capistrano de Abreu. Entre 1931 e 1969, a Brasiliana publicou 211 autores e 307 títulos, que

tratavam de assuntos diversos, tais como: história, geografia, biografia e memória, educação, medicina,

folclore, arqueologia, botânica etc. De acordo com Ítala Byanca Morais da Silva, dos 307 título publicados na

Coleção Brasiliana, no período de 1931 a 1969, 89 foram escritos por 41 membros da Sociedade Capistrano

69

Um ano após a criação da Sociedade, Paulo Prado lembrou o acontecimento:

Neste mês de setembro faz um ano que se instalou no Rio de Janeiro a Sociedade

Capistrano de Abreu. Funciona no humilde porão da travessa Honorina, hoje rua

Capistrano de Abreu, e que foi nestes últimos anos o verdadeiro centro intelectual do Brasil

estudioso. Aí ainda estão, intactos como os deixou Capistrano, os livros poeirentos e

usados pelo contínuo manuseio, as pilhas de velhos jornais e revistas, a rede cearense, e, na

parede, a folhinha com a data fatídica do seu falecimento – 13 de agosto. Como nas manhãs

de longas palestras, neste quarto de estudante continua a dirigir e acoroçar os discípulos a

presença espiritual do Mestre.29

Além do apoio a publicações, observa-se o empenho do grêmio na construção de

um local de culto a Capistrano, que deveria servir como centro de referência para os

estudos sobre o Brasil. Uma espécie de mística foi elaborada em torno da casa onde ele

morou por algum tempo e morreu, que nas recordações aparece como “uma cela

monástica” ou um “porão escuro” e empoeirado, repleto de livros, jornais e documentos,

além da rede cearense, objeto freqüentemente associado ao historiador, que remete a sua

origem nordestina e a sua suposta e valorizada ancestralidade indígena. Um “quarto de

estudante”, conforme a visão de Paulo Prado. Imagem adequada à memória de um

intelectual a ser lembrado como uma espécie de mestre que é um eterno aprendiz, devido a

sua capacidade de leitura e interesse pela pesquisa.

Mas, os principais investimentos na perpetuação do nome de Capistrano parecem

ter sido mesmo a elaboração de biografias30

e a reedição sistemática de suas obras. O

levantamento dos trabalhos com teor biográfico, publicados entre 1927 e 1969 (ano em que

se registram as últimas reuniões do grêmio), permite observar que muitos foram escritos

por intelectuais que eram ou viriam a ser membros da Sociedade, conforme pode ser

verificado no seguinte quadro:

de Abreu, demonstrando a participação efetiva de parte do grupo no movimento editorial de

“redescobrimento do Brasil” ocorrido nos anos 30 e 40. Ver SILVA, Ítala Byanca Morais da. Por entre

livros, manuscritos e cartas: a Sociedade Capistrano de Abreu e a construção da memória do “Mestre” e

“Amigo” (1927-1969). Projeto de pesquisa de Mestrado. Fortaleza, 2005, p. 14. Entre os autores que mais

publicaram na Coleção está João Pandiá Calógeras, sócio fundador da Sociedade, autor de 8 títulos. 29

PRADO, “Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 3. 30

As biografias sobre Capistrano de Abreu são analisadas no capítulo 3.

70

Textos de teor biográfico sobre Capistrano de Abreu

Título Ano Formato Autor

Capistrano de Abreu:

o Homem e a Obra (Primeiro ensaio

crítico-biográfico)

1931 Separata de discurso Alba Canizares

Nascimento

Há cem anos nascia

Capistrano de Abreu

1952 Separata de artigo publicado

em periódico

Raimundo de

Menezes

Capistrano de Abreu:

ensaio biobibliográfico

1953 Livro Hélio Vianna

A vida de Capistrano de Abreu

(Curso Capistrano de Abreu)

1953 Conferência publicada em

periódico

Rodrigo Otávio

Filho

Considerações sobre Capistrano de

Abreu

(Curso Capistrano de Abreu)

1953 Conferência publicada em

periódico

Mozart Monteiro

Capistrano de Abreu – historiador

(Curso Capistrano de Abreu)

1953 Conferência publicada em

periódico

Barbosa Lima

Sobrinho

Capistrano de Abreu

(Conferência no Ministério da

Educação e Cultura)

1953 Conferência publicada em

periódico

Edgar de Castro

Rabello

Capistrano de Abreu

(Conferência na SCA)

1953 Conferência publicada em

periódico

Jayme Coelho

Capistrano de Abreu

(Oração proferida no IHGSP)

1953 Discurso publicado em

periódico

Afonso d‟E. Taunay

Capistrano de Abreu: um homem que

estudou

1956 Livro Raimundo de

Menezes

Capistrano de Abreu: tentativa

biobibliográfica

1969 Livro José Aurélio Saraiva

Câmara

Quanto às reedições, a Sociedade reuniu os trabalhos publicados por Capistrano em

vida, incluindo os livros e um considerável volume de artigos, resenhas críticas e prefácios

até então dispersos em jornais, revistas e outras publicações. A lista de trabalhos reeditados

ou publicados com o apoio do grêmio pode ser vista no quadro a seguir:

(Re)edições das obras de Capistrano de Abreu promovidas

pela Sociedade Capistrano de Abreu31

Publicação

Ano Editora

Capítulos de História Colonial (1500-1800) – 2a edição (1

a edição, 1907) 1928 Tipografia

Leuzinger

O Descobrimento do Brasil – 2a edição (1

a edição, 1883) 1929 Tip. Anuário

do Brasil

Caminhos antigos e povoamento do Brasil (coletânea) 1930 Livraria

Briguiet

Ensaios e Estudos (Crítica e História), 1a série (coletânea) 1931 Livraria

Briguiet

31

Ver ABREU, Capistrano de. Ensaios e Estudos: crítica e história, 3a série. 2

a edição. Rio de Janeiro,

Sociedade Capistrano de Abreu - Livraria Briguiet, 1969.

71

Ensaios e Estudos (Crítica e História), 2a série (coletânea) 1932 Livraria

Briguiet

Capítulos de História Colonial (1500-1800) – 3a edição 1934 Livraria

Briguiet

Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, pelo licenciado

Heitor Furtado de Mendonça (Confissões da Bahia, 1591-1592), com

prefácio de Capistrano de Abreu – Série Eduardo Prado: Para melhor

conhecer o Brasil – 2a edição (1

a edição, 1922)

1935 Livraria

Briguiet

Ensaios e Estudos (Crítica e História), 3a série (coletânea) 1938 Livraria

Briguiet

Rã-txa-Hu-ni-ku-i – A língua dos caxinauás do rio Ibuaçú, afluente do Marú

(Prefeitura de Tarauacá), acrescida de emendas do autor e estudo crítico de

Theodor Koch-Grünberg – 2a edição (1

a edição, 1914)

1941 Livraria

Briguiet

Capítulos de História Colonial (1500-1800) – 4a edição, revista, anotada e

prefaciada por José Honório Rodrigues

1954 Livraria

Briguiet

Ensaios e Estudos (Crítica e História), 3a série – 2

a edição (1

a edição 1938) 1969 Livraria

Briguiet

Capítulos de História Colonial (1500-1800) – 5a edição, revista, anotada e

prefaciada por José Honório Rodrigues

1969 Livraria

Briguiet

Segundo Fernando José Amed, as edições eram feitas com dupla tiragem, sendo

que a primeira tinha maior número (de 1000 a 2050 exemplares). A segunda (de 125 a 150

exemplares) era publicada em papel especial e, às vezes, trazia um retrato de Capistrano,

sendo destinada aos membros da Sociedade. Os livros editados eram numerados e

autenticados pela instituição através de uma marca d‟água em que aparecia o símbolo da

entidade e o nome da cidade do Rio de Janeiro. Ao final de cada edição estavam os

Estatutos e a relação de nomes que compunham a Comissão Executiva para o triênio em

vigência, antecedendo a relação dos membros em ordem alfabética. Havia, também, espaço

para divulgar os nomes daqueles que haviam recebido o Prêmio Capistrano de Abreu,

assim como, para homenagear os sócios falecidos.32

Nos Estatutos previa-se a existência de um número limitado de sócios, que não

deveria exceder a 110 membros efetivos e 30 honorários ou correspondentes. As vagas

deveriam ser preenchidas através de eleição, havendo preferência pelos autores de estudos

premiados pela própria associação. Através de reuniões anuais – que deveriam acontecer

no aniversário de Capistrano, comemorado no dia 23 de outubro –, das possíveis reuniões

extraordinárias (“assembléias sociais”) e da correspondência trocada pelos sócios, a

Sociedade construiu uma rede de intelectuais dedicados ao estudo do Brasil. Em seu

32

AMED, “As edições das obras de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 102-103.

72

primeiro triênio (1927-1930), a relação dos membros do grêmio continha noventa e oito

nomes, incluindo os doze fundadores, três sócios honorários e quatro correspondentes.33

A instituição sustentava-se com o apoio financeiro de seus sócios efetivos,

mantendo-se aberta a receber donativos extraordinários. De acordo com os Estatutos, o não

pagamento da anuidade implicava na renúncia do sócio devedor, com abertura de nova

vaga. Devido ao fervor com que se dedicavam à memória de Capistrano, os membros mais

eminentes ficaram conhecidos como “viúvas de Capistrano”.34

No caso do culto a escritores e intelectuais – cujas atividades são identificadas

pelos signos da razão e da sensibilidade – observa-se uma mudança de perspectiva no

cenário europeu. Fernando Catroga chama a atenção para uma certa desvalorização do

escritor/intelectual no período após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), em função

das dúvidas acerca da sua capacidade de gerar consensos. Tais atores sociais passaram a

ser alvo de críticas cada vez mais especializadas, sendo eventualmente homenageados

através da realização de empreendimentos de alcance relativamente limitado.35

Contudo,

no Brasil, a crise do pós Guerra ampliou o espaço de ação dos “homens de letras”,

favorecendo a repercussão de muitos nomes. Assim, ainda era possível localizar quem os

valorizasse como objeto de culto e recordação, com o objetivo de criar consensos e

promover a integração em torno de algo a ser compartilhado. Em meio a uma voga

nacionalista e às discussões sobre a modernidade, o culto aos heróis nacionais tinha seu

lugar, havendo espaço para homenagear aqueles que até então haviam se dedicado ao

estudo da nacionalidade.

Um exemplo da permanência dessa espécie de aura de sacralidade em torno de

alguns “homens de letras” no Brasil após a I Guerra Mundial é o já mencionado caso de

Rui Barbosa, cujo jubileu cívico-literário foi comemorado com grandiosidade em 1918.

Além disso, a atuação dos letrados nas comemorações do Centenário da Independência

(1922); o engajamento de muitos deles em organizações cívico-patrióticas, como a Liga de

Defesa Nacional, criada em 1916, e a Ação Social Nacionalista, de 1920; assim como, a

participação em eventos ligados à Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922,

também contribuíram para dar projeção a muitos intelectuais e artistas, empenhados na

33

Ver carta-convite dos fundadores, op. cit. e, também, os Estatutos, op. cit. 34

PEIXOTO, Afrânio. “Capistrano de Abreu, humorista”. A Manhã. Suplemento literário Autores & Livros,

ano 10, vol. VI, n. 5, 06/02/1944, p. 71. 35

CATROGA, “Ritualizações da história”, op. cit., p. 348.

73

divulgação de manifestos e na discussão sobre as formas de inserção do país na

modernidade, que mobilizou grupos por todo o Brasil.36

O culto público a Capistrano de Abreu parece ter começado a se esboçar nessa

época. Por ocasião de seu septuagésimo aniversário, em 1923, cogitou-se a possibilidade

de comemorar o acontecimento com uma festa nacional.37

Contudo, em carta a Pandiá

Calógeras, Capistrano demonstra irritação pela idéia:

Segundo sou informado, trama-se para meu próximo aniversário uma patuléia, poliantéia,

ou cousa pior e mais ridícula, se for possível. Aos meus amigos previno que considero a

tramóia como profundamente inamistosa. Não poderei manter relações com quem assim

tenta desmoralizar-me. Custe o que custar.38

O culto a si mesmo e a outros nomes parecia desagradá-lo. Quando, em agosto de

1918, foi comemorado o jubileu cívico-literário de Rui Barbosa (1849-1923), Capistrano

chegou a comentar que pretendia não sair de casa durante os dias da festa, pois temia que o

queimassem como herege.39

Desdenhava publicamente o gosto por elogios e homenagens

que identificava em Rui Barbosa. Transformado em ícone vivo do Brasil culto, Rui era

alvo das críticas de Capistrano, que, embora reconhecesse algumas de suas decantadas

qualidades – tais como a educação, a memória, a capacidade oratória e analítica –, não se

eximia de apontar aquilo que considerava como defeitos: a “falta de cultura filosófica”, as

36

Ver MOTTA, Marly Silva da. A nação faz cem anos: a questão nacional no centenário da independência.

Rio de Janeiro, FGV, 1992; e OLIVEIRA, A questão nacional na I República, op. cit., p. 148-158. É

importante lembrar que em meio a essa ampla e valorizada atuação dos “homens de letras” no espaço

público, também havia críticas à intelectualidade. Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima), por exemplo,

denunciou a postura intelectual daqueles que, segundo ele, haviam se afastado da ação política e social.

Criticava, sobretudo, a boêmia literária do pós-1889 e o artificialismo, que julgava predominar no mundo das

letras. Ver ATHAYDE, Tristão de. “Política e Letras”. [1924]. In: CARDOSO, Vicente Licínio (Org.). À

margem da história da república. São Paulo: Ed. Nacional, 1979, p. 47-79. 37

Ver OCTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 49; LEÃO, Múcio. “Capistrano de

Abreu e a cultura nacional”. Conferência pronunciada no IHGB, em 30/09/1953. Revista do IHGB, vol.221,

p. 118, out./dez. 1953. Um texto que ajuda a reforçar a idéia de que o culto a Capistrano teve início quando

ele ainda estava vivo é GAMA, Domício da. “Capistrano de Abreu”. Revista do Brasil, n. 103, julho 1924, p.

193-197. Trata-se de um elogio ao historiador, visto por Gama como “o mais notável intelectual” que já

encontrara. O autor observa que ainda não havia sido feito um estudo da personalidade de Capistrano e

sugere que o façam enquanto ele ainda estava vivo e podendo colaborar na elaboração do próprio retrato, se

inteirando do “reconhecimento que lhe devem todos os interessados no conhecimento e trato do Brasil

passado, presente e futuro”. Ibidem, p. 194. 38

Carta a João Pandiá Calógeras, “dia do corpo de deus, 1923”. In: ABREU, Capistrano de.

Correspondência. 2a edição. Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro,

Civilização Brasileira; Brasília, MEC, 1977, vol. 1, p. 407-408. Todas as cartas de e para Capistrano aqui

reunidas foram extraídas dessa publicação. Em função disso, a nota de referência mencionará apenas o nome

do destinatário, a data da carta, o volume e a página. 39

Em tom de humor, Capistrano disse a João Lúcio de Azevedo: “Pretendo não sair durante os três dias do

jubileu: são capazes de me queimar como hereje (sic)”. Carta a João Lúcio, de 07/08/1918, vol. 2, p. 109.

74

contradições, a versatilidade com que mudava de “patrões” e o interesse pela

autopromoção.40

Pouco antes, em 1917, Capistrano havia recusado um prêmio concedido

pelo IHGB ao seu estudo sobre a língua dos caxinauás. Fazendo jus à imagem de homem

modesto (e seguindo um precedente aberto por Francisco Adolfo de Varnhagen, no século

XIX), considerou o medalhão de ouro que lhe foi concedido como uma “entaladela bem

desagradável para quem como eu abomina a Satanás com todas as suas pompas e obras”.41

As comemorações em torno do Centenário da Independência, em 1922, haviam

contribuído para colocar a questão nacional na ordem do dia, estimulando a elaboração de

um novo panteão cívico. Além de personagens do passado, esse panteão deveria incluir

aqueles que eram então considerados como os melhores representantes de um Brasil que se

quer culto e civilizado: os “homens de letras”, vistos como capazes de compreender e

explicar a nação.

Nesse mesmo momento, uma revisão da historiografia brasileira se operava e o alvo

principal era a produção de Varnhagen, diretamente associada ao Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, ambos vistos como emblemas de uma tradição de estudos que se

queria ver superada. Ao longo das primeiras décadas republicanas, muitos consideravam

que a origem dos problemas nacionais estaria nas raízes culturais, no elemento português,

caracterizado como retrógrado e atrasado. O tom dominante era o da crítica à época

colonial e à influência portuguesa sobre as letras, incluindo a escrita da história, cujo

referencial era Varnhagen e sua História Geral do Brasil, publicada pela primeira vez na

década de 1850.42

De modo geral, criticava-se a historiografia e os historiadores, que

insistiam em lembrar “mazelas e desacertos” da história brasileira, ao invés de apontar

motivos para celebrar o passado. Desde o final do século XIX, a interpretação da história

do Brasil dava ênfase ao tema da formação da nacionalidade através da constituição do

40

Carta a João Lúcio de Azevedo, de 26/03/1919, vol. 2, p. 117-120. 41

Carta a Afonso Taunay, de 03/04/1918, vol. 1, p. 293-294. 42

MOTTA, A nação faz cem anos, op. cit., p. 19. Arno Wehling identifica duas correntes principais da crítica

historiográfica nos anos vinte e trinta: a revisionista e a tradicional. A primeira rejeita o paradigma de

Varnhagen, interpretado como autor de uma história do Brasil em continuidade com a história de Portugal,

que valoriza a colonização, dando grande importância a Casa de Bragança. O crítico principal desse

paradigma nos anos vinte teria sido Manoel Bomfim, posteriormente seguido por nomes como Gilberto

Freyre, Caio Prado Jr., Roberto Simonsen e Sérgio Buarque de Holanda. A segunda corrente apresenta uma

releitura da obra de Varnhagen, que preserva suas principais interpretações. Entre os nomes relacionados a

essa releitura estão: Oliveira Lima, João Pandiá Calógeras, Oliveira Vianna, Rodolfo Garcia, Max Fleiuss,

Afonso Taunay, Pedro Calmon, Hélio Vianna e Américo Jacobina Lacombe. Ver WEHLING, Arno. Estado,

História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999,

p. 204-210. É interessante observar que muitos desses nomes, relacionados à vertente mais “tradicional” da

historiografia, encontram-se diretamente ligados a Capistrano de Abreu, como discípulos ou pares, sendo que

o “destino” do mestre foi muito diferente, não pairando dúvidas acerca do caráter inovador da obra de

Capistrano, considerado uma referência para a moderna historiografia brasileira.

75

território. Assim, a escrita da história deveria narrar os grandes feitos que contribuíram

para a posse da terra em meio às adversidades.43

Essa ênfase ganhou novo fôlego no

período entre guerras.

O horizonte de expectativas da crítica em relação à historiografia era limitado por

alguns parâmetros principais. Desde a década de 1870, a crítica literária se caracterizava

pela rigidez ética, expressa através da defesa de valores com base em critérios sociológicos

e/ou retóricos; pelo pragmatismo; pela ausência de teorização; e pela indefinição de

conceitos. Sobre esse quadro comum, desenvolviam-se diferentes estratégias de crítica, em

meio à demanda por explicações sobre as particularidades do Brasil e a especificidade de

ser brasileiro. Valorizava-se o ensaio literário e histórico – onde se destacavam as noções

de raça e natureza –, capaz de permitir a associação eclética de teorias e conhecimentos dos

mais variados.44

De modo geral, dois aspectos pareciam guiar a recepção dos trabalhos

historiográficos. Um deles dizia respeito à metodologia utilizada e, o outro, ao grau de

patriotismo suscitado pelas interpretações. Não havia incongruência entre a exigência de

um método de pesquisa apoiado no empirismo e suposições ontológicas, inspiradas em

concepções naturalistas, que, de modo teleológico, observavam o passado como um

prenúncio determinante e necessário do presente. Defendia-se a adoção de novas

orientações metodológicas nos estudos históricos a fim de melhor adequá-los ao seu

principal fim: a valorização da nação. Com o avanço do século XX, se tornou cada vez

mais explícito que a escrita da história deveria seguir os cânones de uma “moderna

metodologia”, valorizando a pesquisa em arquivos. Além disso, as interpretações

precisavam suscitar patriotismo, a ser expresso através de um novo tipo de narrativa. Esta

não deveria estar preocupada com a listagem de nomes e datas, mas com a construção de

relações capazes de estimular, tanto o conhecimento da formação territorial do país e de

sua gente, quanto o amor pela história nacional.45

Importa destacar que, ao longo da década de vinte, Capistrano era identificado

como o grande historiador nacional. Sua morte em 1927 contribuiu para ampliar seu valor,

43

LUCA, Tânia Regina de. “História e geografia: revalorização da nação”. In: _____. A Revista do Brasil:

um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo, 1999, p. 90 e 97. 44

LIMA, Luiz Costa. “A crítica literária na cultura brasileira no século XIX”. In: _____. Dispersa demanda:

ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 41-43 e 47; VENTURA, Roberto.

Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo, Companhia das

Letras, 1991, p. 41. 45

LUCA, op. cit., p. 95-96; ver, também GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de

Janeiro, FGV, 1996, especialmente o capítulo 3, p. 75-124.

76

em um cenário onde alguns nomes ligados ao mundo intelectual se destacavam como

referenciais. Machado de Assis dividia opiniões entre aqueles que o consagravam como o

maior romancista do país e aqueles que o identificavam como representante máximo de

uma literatura passadista a ser esquecida. Euclides da Cunha era lido como o grande autor

nacional, vinculado ao tema da formação da nacionalidade e do território, assim como, à

análise de cunho sociológico. Rui Barbosa havia sido transformado em símbolo da nação

civilizada e culta. Nesse cenário, onde pontuavam nomes principais, Capistrano encontrou

seu lugar como o maior historiador do país. Mesmo não tendo escrito a tão esperada

história do Brasil, podia ser valorizado como o único que, efetivamente, poderia tê-la

escrito devido a, pelo menos, duas razões principais: a vasta erudição e o método. Seu

modo de escrever também despertava admiração e sua trajetória como homem do interior

que venceu na capital, através de esforço próprio e talento singular, era digna de ser

lembrada.

Ao longo dos anos 1930, o culto a Capistrano de Abreu se ampliou através de

homenagens, que iam além da Sociedade erigida em seu nome. Em 1931, por exemplo,

surgiu o primeiro trabalho de cunho biográfico escrito sobre ele: Capistrano de Abreu, o

homem e a obra, de Alba Canizares Nascimento. Trata-se, originalmente, de um discurso

pronunciado por ocasião da entrada da autora na Academia Carioca de Letras. Eleita

membro efetivo, fez o elogio de Capistrano, patrono de sua cadeira e, com o apoio da

Sociedade Capistrano de Abreu, publicou um extrato de seu discurso na forma de livro.

Escrevendo em meio a uma “atmosfera de culto”, Alba Canizares afirmou que:

Não poucas vezes vieram-me lágrimas aos olhos à emoção da obra formidável de

Capistrano de Abreu, o sábio modesto, magnânimo, desprendido como Diógenes, cuja vida

profícua e votada ao saber das cousas do Brasil é monumento de inteligência, desmarcada e

laboriosa cultura, grandeza d‟alma e patriotismo fecundo.46

Paralelamente, o historiador era criticado por alguns de seus pares. Para Manoel

Bomfim, por exemplo, Capistrano de Abreu era “um grande pensamento votado à história

do Brasil, superior a doutrinas e a consagrações”, que “timbra em ser apenas, um lúcido e

incansável pesquisador, a organizar bom material para a verdadeira história do Brasil”.47

46

NASCIMENTO, Alba Canizares. Capistrano de Abreu: o homem e a obra. Rio de Janeiro, Briguiet, 1931,

p. [2] da nota de Esclarecimento. A publicação não tem as páginas numeradas. 47

BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro,

Francisco Alves, 1930, p. 137. Sobre a crítica de Bomfim à historiografia e aos historiadores do Brasil, ver:

77

Porém, ele não é poupado da observação de que, embora pudesse ter aceitado ser o autor

da “verdadeira história nacional”, a “modéstia e um rigoroso objetivismo o tem afastado de

tal tarefa”. Disse Bomfim a seu respeito:

Não que lhe falte horizonte de idéias, nem capacidade de generalização e segurança de

conceitos, ou senso crítico, para estender o pensamento por toda a realidade do Brasil (...)

No entanto, quem tenha tratado com esse puro espécime de homem de ciência – a sua

ciência, guarda a convicção de que ele jamais se atirará a uma obra de conjunto, que tanta

vez exige – afirmar por simples dedução, ou compor em imaginação, a projetar conceitos

sem outro sustentáculo além da pura lógica. Pesquisador intransigente prendeu-se ao

regime mental do rigoroso objetivismo. Eis a significação da sua obra.48

Para João Ribeiro, embora Capistrano fosse considerado “o maior historiador

brasileiro”,

Não tinha o espírito de coordenação essencial a um plano geral da nossa história. Escreveu

fragmentos, prefácios, excursos e dissertações incompletas. Sabia começar e começou

muitas vezes, mas não sabia acabar e de fato não acabou nunca o que havia magistralmente

começado. Era uma das fraquezas desse homem forte.49

Além disso, podia mostrar-se “ferino, malévolo e até ingrato”, com relação a alguns

de seus contemporâneos. “Falhas” que, segundo Ribeiro, eram esquecidas diante de seu

mérito. O “mais afamado mestre da nossa história” teria sido, sobretudo, um “arqueólogo”

da história do Brasil, devido ao interesse pelos primeiros tempos da colonização.50

A crítica à belle époque, com seus “homens de letras” marcados pela cultura

savante dera lugar a um novo modelo de erudição. A partir dos anos vinte, o historiador

deveria caminhar “entre a fazenda e o boulevard”, equilibrando a erudição clássica com o

conhecimento das particularidades nacionais.51

Capistrano de Abreu atendeu a essa nova

demanda. Inicialmente, ele foi reconhecido e celebrado por seu grupo de convívio, que

após sua morte apressou-se em criar uma sociedade em sua homenagem. Em 1937 – dez

GONTIJO, Rebeca. Manoel Bomfim (1868-1932) e O Brasil na História. Niterói, UFF / Dep. de História,

dissertação de mestrado, 2001. Especialmente o capítulo 2, “A história no Brasil e O Brasil na História”. 48

BOMFIM, O Brasil na história, op. cit., p. 137, nota 1. 49

RIBEIRO, João. “O Descobrimento do Brasil”. In: _____. Obras – Crítica, vol. VI: Historiadores. Rio de

Janeiro, ABL, 1961, p. 86. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, de 01/01/1930. 50

Ibidem, p. 86. 51

GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 98-106.

78

anos depois de seu falecimento – o historiador francês Henri Hauser publicou um artigo

sobre a historiografia brasileira, onde elogiou as qualidades do brasileiro, identificando-o

como um “grande historiador” dotado de espírito crítico e escrita elegante.52

Era a suprema

consagração: ser reconhecido como um par num cenário internacional de historiadores.

Pouco tempo depois, o culto a Capistrano teve novo estímulo. Seu nome passou a

integrar o rol de historiadores do Brasil, construído durante o Estado Novo (1937-1945),

que deveria orientar o conhecimento do passado, tendo em vista a construção de um futuro

glorioso.

2.2. Historiadores do Brasil: o Estado Novo e a escrita da história

O Estado Novo (1937-1945) pode ser considerado como um marco divisório na

organização da cultura nacional. Parte da política cultural desenvolvida no período foi

dedicada à construção daquilo que Ângela de Castro Gomes identificou como uma “cultura

histórica”, que concedeu um lugar de destaque à história como forma de conhecimento do

social.53

Investigando o que parece ser uma tentativa para assentar as bases de uma tradição

historiográfica brasileira, de modo a constituir uma memória da escrita da História entre

nós, Gomes se detém sobre um dos principais veículos de propaganda do Estado, o jornal

A Manhã, que circulou entre os anos de 1941 e 1953. Mais exatamente, a autora analisa o

suplemento literário do jornal, Autores & Livros, que de modo exemplar apresenta uma

explícita intenção doutrinária, em defesa de uma determinada interpretação da cultura

nacional. Propondo ser um instrumento formador e ordenador da vida intelectual do país, o

suplemento compõe uma verdadeira galeria de nomes e obras, que deveria servir para

nortear o caminho para o conhecimento do Brasil.54

Como foi observado no item anterior, “conhecer o Brasil” era uma espécie de

missão desempenhada por “homens de letras”, artistas, cientistas e políticos desde o século

XIX, prevalecendo a visão da nacionalidade a partir da valorização da natureza e

persistindo a dúvida acerca da existência de um povo brasileiro. Durante a I República,

ganhou força a idéia, que não era nova, de que conhecer o país equivalia a compreender o

52

HAUSER, Henri. “Notes et réflexions sur le travail historique au Brésil”. Revue Historique, jan./mar.

1937, t. 181, fasc. 1, p. 89. Hauser participou da missão de professores estrangeiros que lecionou na

Universidade do Distrito Federal, criada e extinta na década de 1920. 53

GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 208. 54

Gomes analisa o suplemento no período que vai de 1941 a 1945, quando o mesmo era organizado pelo

jornalista Múcio Leão, membro da Academia Brasileira de Letras.

79

processo de ocupação do território, por meio de estudos científicos. Daí a relevância das

expedições de reconhecimento, dos estudos históricos, etnográficos e geográficos, que

contribuíram para o estabelecimento oficial dos limites territoriais, assim como, para o

desenvolvimento de projetos políticos, capazes de articular o movimento da população e o

desenho do espaço físico do país. Essa busca de conhecimento teve continuidade durante o

Estado Novo, quando ocorreu a implementação de uma política mais decisiva no sentido

de associar as fronteiras externas – definidas a partir de tratados internacionais – às

fronteiras internas, delineadas a partir ocupação demográfica, política e econômica do

território. Essa implementação se deu através de um amplo programa que incluía a divisão

do país em regiões geográficas, o investimento nas áreas de transportes e comunicação,

além do controle dos fluxos imigratórios e migratórios. Esse programa ficou conhecido

como a nova “marcha para o oeste”, expressão que remetia às tradições coloniais de

conquista do território, cuja figura representativa é o bandeirante paulista. Personagem

destacado pela literatura e pela história desde o final do século XIX, o bandeirante foi

consagrado durante os anos 1920 e recuperado pelo Estado Novo como o grande símbolo

da fundação do território.55

Mas, além de desvendar a realidade nacional percorrendo o espaço físico e

descobrindo suas riquezas naturais, a política do Estado Novo também promoveu um novo

tipo de olhar sobre o povo, com foco sobre suas tradições e costumes. Mais uma vez, os

estudos históricos, geográficos, etnográficos e, também, lingüísticos, contribuíram para o

conhecimento do “ser nacional”, cujas potencialidades deveriam ser valorizadas,

destacando-se o pertencimento regional. Desenvolver uma ciência da cultura nacional era o

objetivo, sendo que esse empreendimento exigia a indicação dos intérpretes que poderiam

servir como guias no processo de “redescobrimento” do Brasil.56

Cabe, portanto, tentar

compreender o papel da cultura e dos produtores culturais no projeto do Estado Novo,

observando o lugar que Capistrano de Abreu veio a ocupar em meio a uma estratégica

ordenação dos campos de saber.

Autores & Livros fez uma série de homenagens a intelectuais considerados

relevantes para a cultura brasileira, relacionando seus nomes a setores específicos do

conhecimento ou da produção cultural. Entre janeiro e abril de 1944, circularam os

55

GOMES, “Através do Brasil”. In: A República no Brasil, op. cit., p. 158, 168-176 e 192; ver, também:

LUCA, op. cit., p. 85-126; VELLOSO, Mônica Pimenta. “A literatura como espelho da nação”. Estudos

Históricos – Dossiê Identidade Nacional, vol. 1, n. 2, 1988, p. 239-263. 56

GOMES, “O redescobrimento do Brasil”, op. cit., p. 205-228; Idem. História e historiadores, op. cit.,

especialmente, p. 125-205.

80

exemplares dedicados aos historiadores do Brasil. Ao todo, são vinte homenageados, doze

dos quais são identificados como historiadores, enquanto oito são apontados como autores

que, de alguma forma, contribuíram para o desenvolvimento dos estudos históricos no país.

Através desse suplemento é possível perceber o que era tido, durante o Estado Novo, como

qualidades e insuficiências do métier do historiador.

A estratégia do suplemento foi compor perfis dos homenageados através da

recuperação e arranjo de interpretações sobre sua vida e obra. Trechos de seus escritos

também foram incluídos, assim como, um ilustrativo retrato. Observa-se a conjunção de

diferentes tempos: o do homenageado (todos falecidos), o dos comentadores e o do

organizador do suplemento, Múcio Leão. Através desses perfis delineia-se um panorama

do ofício do historiador, revelando as circunstâncias da produção historiográfica até então.

O suplemento apresenta um perfil generalizante do historiador como um tipo de autor

maduro, cuja trajetória atingiu o ápice profissional e intelectual. Os textos históricos são

vistos como o resultado de um longo e nem sempre planejado processo, vivido por

políticos, diplomatas, professores e jornalistas. Foram esses profissionais que escreveram a

história do Brasil, guiados por imperativos ético-políticos, associados a um gosto pela

pesquisa em arquivos e bibliotecas. A ação política e o combate de idéias marcaram suas

trajetórias e a erudição contribuiu para distingui-los.57

A relação entre o estudo da história e a atividade na política está presente nesse

panorama do ofício. O argumento principal sugere que o conhecimento histórico contribui

para a atividade política, tornando-a mais eficiente. Ao mesmo tempo, a atividade política

favorece o estudo da história, propiciando argúcia e clareza às análises do historiador.

Prevalece um modelo do intelectual como homem engajado nas lutas do presente.

Contudo, esse modelo tem que conviver com a proposta, até então predominante, de um

campo intelectual portador de projeto “apolítico”, lembrando que muitos dos nomes

homenageados por Autores & Livros compartilharam tal projeto.58

57

GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 76. 58

Ibidem, p. 77. Ângela de Castro Gomes observa que esse modelo de intelectual engajado se contrapõe ao

modelo existente no final do século XIX e início do XX, que propunha o afastamento do “homem de letras”

da política, de modo a favorecer uma postura intelectual mais “profissional”. Muitos dos historiadores

homenageados pelo suplemento Autores e Livros fizeram parte do grupo que defendia essa separação entre

política e letras. Esse grupo reunia-se em torno da Revista Brasileira e de Machado de Assis e foi

responsável pela criação da Academia Brasileira de Letras. A autora chama a atenção para a necessidade de

relativizar o projeto da ABL, avaliando até que ponto ele foi “mais ideal do que real”. Em outras palavras,

“até que ponto os escritores nele envolvidos conseguiram desenvolver estratégias para „separar‟

convenientemente seus espaços de atuação, de forma a fazer a política „das‟ letras e não permitir a política

„nas‟ letras”. Segundo a autora, o afastamento da política formal por parte dos “homens de letras” das

primeiras décadas do século XX equivale a uma postura política defensiva e protetora, capaz de favorecer a

81

A análise da série dedicada aos historiadores, além de contribuir para o

conhecimento da produção historiográfica e do ofício do historiador, também ajuda a

compreender a dinâmica da relação entre atividade política e trabalho intelectual.59

Nesse

sentido, o caso de Capistrano de Abreu é paradigmático, pois, entre os historiadores, ele é

destacado como figura referencial, com a história da História no Brasil se dividindo em

antes e depois de seu nome. O estudo de sua trajetória e produção, assim como do modo

como ambas foram interpretadas, é útil para que se possa destrinchar o processo de

profissionalização dos intelectuais e da constituição (ou autonomização) dos diferentes

campos de saber. 60

O estudo de Gomes permite supor que, durante o Estado Novo, Capistrano de

Abreu foi incluído pela primeira vez em uma espécie de rol oficial dos grandes

historiadores nacionais. A possibilidade de existência desse rol deriva das mutações da

historiografia ocorridas nas décadas anteriores, de modo que, a partir dos anos 1920, a

história já podia ser vista como um “campo de estudos” distinto da prosa de ficção e dos

chamados “estudos político-sociais”. Trata-se de “um saber delimitado num campo

intelectual maior”, produzido por um tipo específico de especialista, capaz de articular um

método científico, um objeto e uma escrita próprios. A existência desse “campo de

estudos” ainda não permitia configurar uma disciplina ensinável nos moldes que seriam

propostos pelas faculdades de filosofia, criadas após a reforma de Francisco Campos em

1931. No entanto, parece ter sido suficiente para estimular a formação de redes de

pesquisadores da história, de modo a consolidar uma tradição distinta daquela que

prevalecia desde o século XIX.61

ultrapassagem de obstáculos à profissionalização do intelectual. Ibidem, p. 77. Ver também: RODRIGUES,

João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras

(1896-1913). Campinas, Unicamp, 2001. 59

Ângela de Castro Gomes observa que, nos dois momentos focalizados (as três primeiras décadas do século

XX e o período de meados dos anos quarenta, quando o suplemento analisado circulava), a intelectualidade

fez grande esforço no sentido de consolidar sua esfera de competência específica. Para isso, buscou

continuamente obter certa liberdade em relação ao campo do poder político, do qual não pôde, contudo, se

afastar totalmente devido a inúmeras e diferentes razões, que vão desde o mecenato até a inserção política de

seus integrantes. GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 78. A esse respeito, cf.: PÉCAUT, Daniel. Os

intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo, Ática, 1990. 60

Ver suplemento literário “Autores & Livros”. A Manhã, ano 10, vol. VI, n. 5, 06/02/1944, p. 69-76,

dedicado a Capistrano de Abreu. 61

GOMES, op. cit., p. 90; Idem. “Gilberto Freyre e Oliveira Lima: Casa Grande & Senzala e o contexto

historiográfico do início do século XX”. História – Revista da Universidade Estadual Paulista. São Paulo,

Unesp, v. 20, 2001, p. 39-44. Sobre a constituição da história como um campo de estudos autônomo e

uma disciplina ensinável, ver também: FURET, François. “O nascimento da história”. In: _____. A

oficina da história. Lisboa, Gradiva, s/d, p. 139-135; BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. “Os

confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana”. Revista Brasileira de

História. São Paulo, vol.13, n. 25-26, set./1992 - ago./1993, p. 193-221; FONSECA, Thaís Nívea de

Lima. História & Ensino de História. Belo Horizonte, Autêntica, 2003;

82

Diferenciando-se da historiografia Oitocentista, onde predominam os trabalhos de

Francisco Adolfo de Varnhagen e João Francisco Lisboa, seguidos pelos de Gonçalves de

Magalhães e José de Alencar (que, mesmo não sendo identificados como historiadores,

teriam contribuído para os estudos históricos), Capistrano surge como um marco divisório.

Sua obra é apresentada como propositora de rupturas com o passado e formadora de uma

nova geração de historiadores. Sua morte e a fundação da Sociedade Capistrano de Abreu

(ambas ocorridas em 1927) são vistas como eventos simbólicos para a história da História

do Brasil.

Elabora-se um perfil físico e psicológico de Capistrano, que é relacionado a sua

trajetória profissional e às características de sua produção. A matéria é composta a partir de

textos publicados em épocas distintas. Além de um necrológio, há estudos sobre sua vida e

obra recolhidos de outras publicações. Os trabalhos escolhidos foram escritos por João

Ribeiro, Afrânio Peixoto, Afonso Arinos de Mello Franco, Humberto de Campos, João

Pandiá Calógeras e Honorina de Abreu, filha do homenageado, todos contemporâneos do

historiador.62

A primeira página trás uma notícia biográfica sobre Capistrano, que conta a história

de um cearense, que participou da elite intelectual de seu tempo e que desde a juventude

manifestava algumas qualidades básicas: a dedicação séria aos estudos; as opiniões

seguras; o “sarcasmo agreste” e a ironia. As primeiras letras no interior e a passagem por

Recife e Fortaleza são considerados momentos significativos, que antecederam a vinda

para o Rio de Janeiro, em meados da década de 1870. Embora jovem, Capistrano “trazia do

Norte um maduro e longo tirocínio de imprensa”. A nomeação para a Biblioteca Nacional,

o concurso para o Colégio de Pedro II, o casamento, a morte em “penosa agonia” e o

enterro conduzido a pé por seus admiradores, são os fatos marcantes de sua trajetória.

Um retrato desenhado de Capistrano ilustra a matéria, complementada por uma

pequena relação de sua obra publicada. As páginas seguintes são preenchidas com textos

62

Referências dos textos de diferentes épocas utilizados por Autores & Livros no número em homenagem a

Capistrano: RIBEIRO, João. “O Descobrimento do Brasil”. Jornal do Brasil, 01/01/1930; Idem. “Os Ensaios

e Estudos”. Jornal do Brasil, 01/11/1933; Idem. “Cartas de Capistrano”. Jornal do Brasil, 18/12/1927; Idem.

“A morte de Capistrano”. Jornal do Brasil, coluna Dia sim..., 26/08/1927; FRANCO, “Capistrano”, op. cit.,

originalmente publicado em A Manhã, 25/10/1941; PEIXOTO, “Capistrano de Abreu, humorista”, op. cit.

(referência do original não localizada); CAMPOS, Humberto de. “Capistrano de Abreu”. A Manhã,

16/08/1927; CALÓGERAS, João Pandiá. [“Necrológio de Capistrano de Abreu”]. Revista do IHGB, tomo

101, vol. 155, 1927, p. 344-355; reproduzido com o título de “Capistrano de Abreu”, em O Jornal,

14/09/1927; ABREU, Honorina de. “A meu pai” (versos). In: COELHO NETO, Henrique. “Redimido”.

Jornal do Brasil, 21/08/1927. A bibliografia de Capistrano foi extraída do Dicionário Bio-Bibliográfico

Cearense (1910), de Guilherme Studart, embora o trabalho de Tancredo de Barros Paiva, Bibliografia

Capistraneana (1931), seja mencionado.

83

sobre o homenageado e alguns trechos de seus trabalhos.63

Há, também, uma caricatura;

um “fac-símile” com amostra do autógrafo do homenageado (trecho de uma carta); uma

foto da casa onde ele viveu seus últimos anos (sede da sociedade erigida em seu nome); e

um cartão de comunicação do casamento com Maria José de Castro Fonseca, em 1881.

Esses elementos, ao lado dos estudos e citações, ajudam a compor um retrato da vida e da

obra do homenageado, havendo espaço para críticas. Nas páginas de Autores & Livros,

Capistrano é apresentado com suas qualidades e fraquezas.

Seguindo as palavras dos analistas, trata-se de um “arqueólogo da história”64

dotado

de grande erudição, que escolhia novos temas e revisava os antigos. Sua diferença em

relação a outros estudiosos da história aparece relacionada a duas dimensões, mencionadas

por Humberto Campos e apontadas por Gomes: “o faro da verdade” e “o processo de

convencer”. Capistrano é um pesquisador de arquivos, fato que ajuda a distingui-lo dos

ficcionistas e pesquisadores guiados pela imaginação. Considerando os arquivos como uma

espécie de selva e a pesquisa histórica como uma atividade semelhante a do rastreador ou,

mais exatamente, do índio capaz de embrenhar-se no mato guiando-se pelos rumores da

natureza, Campos argumenta que o historiador em questão tinha o “faro da verdade”. Esse

“faro” derivaria de qualidades natas – relativas à capacidade intuitiva ou “adivinhatória” do

investigador – e, também, da posse de um instrumental adequado à análise dos

documentos. O “faro da verdade” de Capistrano seria fruto de inteligência e, também, de

treinamento, revelado através de sua notória capacidade de argumentar e convencer.65

63

Os textos de Capistrano citados são: “Raul Pompéia”. Gazetinha, n. 47, 27/02/1882 e n. 70, 28/03/1882;

“História Pátria”. Gazeta de Notícias, 9-10-13/03/1880; O Descobrimento do Brasil. 1a edição 1900. Rio de

Janeiro, Briguiet, 1929; “Sobre a nova colônia do Sacramento” (Prefácio). In: SÁ, Simão Pereira de. História

topográfica e bélica da nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata. Rio de Janeiro, 1900. 64

RIBEIRO, “O Descobrimento do Brasil”, op. cit., p. 86. 65

GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 92; CAMPOS, “Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 74. Essa

metáfora da história como uma selva e da pesquisa histórica como uma atividade semelhante à do indígena

que rastreia sua caça no mato já havia sido utilizada antes por Paulo Prado, que diz ter penetrado na “selva

escura da História do Brasil” através da mão amiga de Capistrano. Ver PRADO, Paulo. Paulística: história

de São Paulo. São Paulo: Cia. Gráfico / Ed. Monteiro Lobato, 1925, p. v. A associação entre a pesquisa

história e a atividade do rastreador remete aos escritos sobre Capistrano produzidos logo após sua morte,

quando se nota a tecitura de uma relação entre a figura do historiador e a do homem sertanejo ou do indígena.

Através dessa relação Capistrano foi lido como um historiador sertanejo, um intelectual que conhece e

representa a própria brasilidade. É difícil não fazer uma ponte entre a metáfora da pesquisa histórica como

uma selva, que remete à habilidade venatória do historiador, e o paradigma indiciário delineado por Carlo

Ginzburg. Esse autor argumenta que, no fim do século XIX, emergiu um modelo (um paradigma)

epistemológico no seio das ciências humanas, amplamente operante, embora não teorizado, fundado no

método indiciário de investigação. Esse método, compartilhado por diferentes campos do conhecimento,

como a psicanálise e a história da arte, orientava-se por um saber de tipo venatório, caracterizado pela

capacidade de acessar uma realidade complexa, não experimentável diretamente, por meio de dados

aparentemente negligenciáveis. Ver GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In:

_____. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 143-179.

84

A questão da narrativa pode ser localizada entre os historiadores oitocentistas,

inclusive os brasileiros, observando-se a preocupação com as formas de exposição e

convencimento. Essa preocupação parece ter se ampliado nas primeiras décadas do século

XX, quando a crítica ao “modelo” de escrita de Varnhagen, identificado por seus “quadros

de ferro”, sua “ausência de enredo” e suas listas de nomes e datas, ganhou força.66

O método crítico de Capistrano sustentava-se sobre um critério de verdade fundado

na existência de provas documentais e na possibilidade de confrontar documentos oriundos

de uma mesma época, exibindo-os e desconstruindo-os passo a passo. Essa operação

deveria ser regida pela objetividade e, também, pela imparcialidade do historiador,

disposto a ouvir diferentes testemunhos do passado. Evitando preconceitos, a história não

deveria ser conduzida por uma “verdade ética” (a exemplo de uma antiga concepção da

história), mas por uma verdade fundada em fatos. Selecionando, ordenando e relacionando

tais fatos, o historiador deveria desenvolver argumentos críticos e compor uma “narrativa

sociologicamente orientada”.67

Para os analistas de Autores & Livros, Capistrano representa um novo tipo de

historiador, que teria emergido a partir das seguintes mutações: 1) a valorização da

presença do próprio historiador como testemunha que toma parte nos acontecimentos que

narra, ou seja, o historiador passou a ser visto como um ator-autor, não sendo observadas

objeções quanto à integração entre memória e história no texto produzido; 2) a defesa do

uso de uma grande variedade de documentos, dos escritos oficiais aos documentos

“pessoais” (não-oficiais) e visuais; 3) a abertura para uma história social, ainda que a

história política ocupe o centro da produção historiográfica; 4) a visão do historiador como

um escritor erudito, que deve dominar a língua e ter estilo próprio, de modo a construir

narrativas que não sejam simples cronologias ou listas de nomes, datas e acontecimentos;

5) a qualificação dos historiadores como “modernos” (por oposição aos “tradicionais”), em

função do interesse pelos fatos e pelo sentido processual dos mesmos.68

66

Sobre o problema da escrita da história, ver: ARARIPE, Tristão de Alencar. “Indicações sobre a história

nacional”. Revista do IHGB, vol. 57, 1895, p. 259-290. 67

Ver ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de

Abreu”. Estudos Históricos – Dossiê Caminhos da Historiografia, vol.1, n.1, 1988, p. 28-54. Sobre as

concepções antiga e moderna de história, ver por exemplo: ARENDT, Hannah. “O conceito de história –

antigo e moderno”. 1a edição 1954. In: _____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000,

p. 69-126. 68

Nas palavras de Ângela de Castro Gomes, “o historiador „moderno‟ era, assim, um escritor erudito que

examinava com rigor metodológico uma vasta gama de fontes e a ela „dava sentido‟”. Ver GOMES, História

e historiadores, op. cit., p. 122-123.

85

Essas mutações vinculam-se, em maior ou menor medida, ao abandono da idéia de

“transparência” da fonte e, também, da crença na possibilidade de neutralidade. Admitindo

a existência de uma multiplicidade de tempos (algo que está expresso, inclusive, na própria

organização das homenagens pelo periódico), os articulistas de Autores & Livros

demonstram a existência de uma ruptura com a noção de um passado fixo, imutável,

passível de ser apreendido de modo definitivo. Assim, abre-se a possibilidade de pensar a

história dos homens e das nações como tendo sido construídas conforme circunstâncias

diversas, não estando submetidas a uma história geral da civilização, dotada de um único

sentido e finalidade. A imparcialidade e o caráter científico da história poderiam ser

garantidos através de procedimentos metodológicos. Esses deveriam assegurar tanto a

confiabilidade das fontes quanto o cumprimento de regras capazes de tornar o olhar do

historiador livre de verdades dogmáticas e apriorísticas. Ou seja, a verdade histórica seria a

verdade dos fatos comprovados pelo historiador mediante o uso de um instrumental

apropriado.69

É possível concluir que durante o Estado Novo um modelo de historiador foi

delineado, a partir da recomposição de diversas trajetórias intelectuais. Consciente de seu

papel social e político, esse historiador de Autores & Livros deveria contribuir para o

melhor conhecimento da formação da nacionalidade, utilizando procedimentos capazes de

conter preconceitos e simpatias. Assumindo uma espécie de obrigação para com o Brasil,

dedicar-se-ia à pesquisa documental com rigor metodológico, respeitando uma “filosofia

sobre a história” pautada no compromisso com o presente. Em meio a trajetórias até certo

ponto semelhantes, a de Capistrano chama a atenção como divisora de águas no campo de

estudos históricos em formação, uma vez que esse historiador reunia as características que

então definiam uma “moderna” historiografia.

Em outubro de 1947, ou seja, pouco depois do fim do Estado Novo, o nome de

Capistrano de Abreu ainda repercutia, sobretudo em sua terra natal. Uma solenidade em

Maranguape, Ceará, inaugurou um monumento feito de pedra e bronze, construído pelo

escultor italiano Agostinho Balmes Odísio, com o apoio da Associação Brasileira de

Imprensa. O evento contou com a presença do Governador do Estado, Faustino de

Albuquerque e Sousa, e do Prefeito da localidade, José Fernandes Vieira, acompanhados

69

GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 124.

86

por outras personalidades, incluindo um representante do Instituto Histórico do Ceará,

Joaquim Alves.70

Com quase quatro metros de altura, a estátua foi assim descrita:

Capistrano apóia a mão esquerda numa estante em que figuram, em lombadas de luxo, com

inscrição, os livros do escritor, e a pujança da modelação, ampla e segura, traduz na pose

do vulto e nos traços fisionômicos, o sentimento interno – se o podemos dizer – do

pesquisador inteligente e culto do nosso passado. Sente-se como que, através da matéria, o

seu todo anímico, a saliência psicológica daquele caráter viril, enriquecido no superior

desprezo das coisas fungíveis... Do conjunto fazem parte dois admiráveis alto-relevos,

representando dois bandeirantes em atitude de observação e espreita – “epopéia dos

sertões” – e “catequese”, o jesuíta heróico a mostrar a Cruz civilizadora a um índio que

retorna da caçada e se prosterna ante o símbolo redentor. São quadros de alta emotividade,

caracterizando, magistralmente, os contrastes etnológicos dos tipos, numa concepção que

reproduz à maravilha instantes nucleares da formação nacional, em cujos meandros

Capistrano penetrou, desvendando mistérios e esclarecendo dúvidas com argúcia e aprumo

incomparável, qualidades que lhe foram peculiares. Obra de arte, onde “a forma se faz

emoção”, o pedestal corresponde, em tudo, à arrojada concepção do discípulo de Rodin.71

Ao lado de dois símbolos heróicos da brasilidade, os bandeirantes e os jesuítas,

Capistrano é consagrado como o “príncipe dos historiadores brasileiros”, conforme pode

ser lido na inscrição colocada aos pés da estátua.72

Poucos anos depois, um evento de

maiores proporções teria lugar com a comemoração do I Centenário de Nascimento do

historiador, que mobilizou diversas instituições e muitos nomes importantes da

intelectualidade.

70

A memória sobre Capistrano produzida no Ceará, sua terra natal, mereceria um capítulo à parte, tendo em

vista a profusão de investimentos nesse sentido, que incluem, além da construção de monumentos: a

nomeação de ruas, praças e escolas; a eleição de Capistrano para patrono de diversas instituições literárias; a

publicação de livros, artigos e cordel; a confecção de retratos; o acúmulo e exibição de objetos relacionados

ao historiador etc. Como exemplo dessa extensa produção memorialística cearense, sito um trabalho recente:

BEDÊ, Francisco. Capistrano de Abreu: o homem na Província, na Corte e no mundo. Fortaleza, Tipogresso,

2005. Esse livro trás na capa a indicação de que se trata da “história de vida do „Príncipe dos Historiadores

Brasileiros‟, uma incrível saga romanceada e desenvolvida de forma iconográfica”. O autor elabora uma

narrativa sobre a trajetória de Capistrano, conjugando imagem e texto a fim de destacar: 1) fragmentos e/ou

objetos biográficos de seu cotidiano ao longo da vida; 2) “atitudes destemidas de mês a mês”; 3) exemplos de

sua conduta irreverente. Ibidem, p. 3. Apesar da riqueza da produção cearense, a opção aqui foi deixá-la de

lado, registrando que se trata de um importante manancial para pesquisas. 71

HUGO VITOR apud MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 368-369. 72

O título de “príncipe dos historiadores brasileiros” parece ser uma atribuição feita por contraste com a

figura de Francisco Adolfo de Varnhagen, que, supostamente, seria o rei, por ter sido o primeiro brasileiro a

escrever uma história do Brasil. Tal título é mencionado sem maiores explicações por NASCIMENTO,

Capistrano de Abreu, op. cit., 1931; e, mais recentemente, por BEDÊ, op. cit., 2005.

87

2.3. O Curso Capistrano de Abreu, no IHGB (1953)

Em 2003, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva, foram comemorados os

150 anos de nascimento de Capistrano de Abreu. A Empresa de Correios e Telégrafos

lançou um selo em sua homenagem; dois livros foram publicados pelo Museu do Ceará,

sua terra natal;73

o Departamento de História da Universidade Federal do Ceará organizou

um evento sobre o historiador, reunindo especialistas de todo o Brasil;74

a Fundação Casa

de Rui Barbosa e a Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, no Rio de

Janeiro, organizaram mesas-redondas, em que alguns aspectos da obra e da trajetória do

homenageado foram recuperados.75

Unindo essas diferentes comemorações está o fato de

pertencerem, na maior parte, ao mundo acadêmico. E, dentro do ambiente universitário,

trata-se de eventos de alcance restrito à esfera de especialistas dedicados ao estudo de

Capistrano, da história intelectual, das idéias ou da história da História como disciplina.

Capistrano aparece, nessas homenagens, como um indivíduo cuja memória é

familiarmente compartilhada. Ou seja, cuja memória se encontra “enquadrada”, para usar o

termo difundido por Michael Pollak.76

Em função disso, analisar a comemoração do

primeiro centenário de nascimento de Capistrano, em 1953, pode ajudar a compreender o

papel atribuído ao homenageado, ou, mais exatamente, a destrinchar uma parte da trama da

memória que, à primeira vista, o tornou tão próximo de nós.

Os anos de nascimento e morte são considerados bons momentos para comemorar.

Por vezes, o aniversário da publicação de um texto ou de um momento da trajetória

intelectual, como, por exemplo, a conversão a um novo ideário ou a entrada em uma

73

Ver BUARQUE, Virgínia Albuquerque. Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José de

Jesus. Fortaleza, Museu do Ceará, 2003; AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. Correspondência cordial.

Fortaleza, Museu do Ceará, 2003. 74

Esse evento resultou na publicação de um dossiê sobre Capistrano na revista da instituição. Ver Revista

Trajetos – Dossiê Capistrano de Abreu. Fortaleza, Dep. de História da UFC, vol. 3, n. 5, 2004. 75

A Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, organizou uma mesa-redonda intitulada A atualidade

de Capistrano de Abreu (04/11/2003), que contou com a presença de Arno Wehling (UNIRIO e UGF),

Marco Antônio Mesquita (Museu Nacional), Manoel Luis Salgado Guimarães (UFRJ e UERJ) e Ricardo

Benzaquen de Araújo (PUC-RJ e IUPERJ). A Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense

sediou o I Seminário Professores/Autores do Brasil (15/12/2003), organizado pelo Grupo de Pesquisa

História e Educação: Saberes e Práticas, coordenado por Arlette Gasparello e dedicado ao tema Uma vida

entre livros, o ensino e a pesquisa: Capistrano de Abreu (1853-1927). Esse evento contou com minha

presença, ao lado de Vera Cabana (Colégio Pedro II) e Virgínia Albuquerque Buarque (Colégio Pedro II). As

comemorações se estenderam pelos anos seguintes. Em 09/03/2005, o IHGB sediou a conferência de

Francisco Bedê, intitulada Capistrano de Abreu: o homem na Província, na Corte e no Mundo, também

proferida no Colégio Pedro II, em 10/03/2005. 76

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos – Dossiê Memória, vol. 2, n.

3, 1989, p. 3-15; Idem, “Memória e identidade social”. Estudos Históricos – Dossiê Teoria e História, vol. 5,

n. 10, 1992, p. 200-212.

88

instituição, também podem receber uma especial atenção. A necessidade de consagração

em tempo útil favorece a escolha da data de nascimento como momento ideal para

homenagens.77

Assim aconteceu com Capistrano, cujo centenário de nascimento foi

comemorado em 1953. Diversas instituições participaram do empreendimento, como a

Sociedade Capistrano de Abreu, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, o

Ministério da Educação e Cultura, a Biblioteca Nacional, a Câmara dos Deputados, o

Senado, a Sociedade de Estudos Históricos, a Universidade de São Paulo, o Instituto

Histórico do Ceará e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.78

Instituição nascida no Império (1838), o IHGB – tradicionalmente dedicado a

consagrar figuras ilustres – é um importante referencial na história das comemorações em

torno de escritores, assim como a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1896, cujos

membros são chamados de imortais. São exemplos de locais onde é possível localizar

exaltações às atividades de escrita e pensamento através do culto – nem sempre crítico,

nem sempre apologético – a determinados autores e obras.

Por ocasião do centenário, o Instituto confeccionou uma moeda comemorativa, na

qual se vê, no anverso, o busto em perfil de Capistrano; e, no verso, uma representação de

Clio, a musa da história, situada ao lado de um mapa da América do Sul, onde se destaca o

Brasil e, dentro desse, os estados do Ceará e do Rio de Janeiro. O primeiro, terra natal de

Capistrano e, o segundo, sede do Instituto e importante centro cultural do país, onde o

homenageado desenvolveu sua carreira intelectual. Em vida, Capistrano freqüentara a

biblioteca e os arquivos do IHGB, tendo sido recebido – até certo ponto, à revelia – como

77

CATROGA, “Ritualizações da história”, op. cit., p. 339-348. 78

A Sociedade Capistrano de Abreu fez planos para comemorar o centenário de nascimento de seu patrono, o

que acabou não se concretizando inteiramente. Restou um discurso de Jayme Coelho, pronunciado na SCA

em 23/10/1953 e incluído na Revista do IHGB. Ver COELHO, Jayme. “Capistrano de Abreu”. Revista do

IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 214-216. Há breve menção dos planos da Sociedade em MONTEIRO,

Honorina de Abreu. “O avô que eu conheci”. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 193. A

Biblioteca Nacional organizou uma exposição sobre o historiador, inaugurada no dia 22 de outubro de 1953 e

a Sociedade de Estudos Históricos patrocinou uma conferência na Universidade de São Paulo, em 24 de

novembro de 1953. Ver ZEMELLA, Mafalda P. “Capistrano de Abreu, o historiador e o homem”. Revista de

História. São Paulo, ano V, vol. VIII, n. 17, jan.-mar., 1954. Outros textos produzidos em função do I

Centenário são: MENEZES, Raimundo de. “Há cem anos nascia Capistrano de Abreu”. Separata da Revista

Investigações, ano V, vol. 51, out.-nov.-dez., 1953; TAUNAY, Afonso de E. “Capistrano de Abreu”. Revista

do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 194-203, oração proferida no Instituto Histórico e Geográfico de São

Paulo; REBELLO, Edgar de Castro. “Capistrano de Abreu”. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p.

204-213. Conferência lida em 22/10/1953, no auditório do Ministério da Educação e Saúde; GOMES,

Onofre. Discurso pronunciado no Senado Federal. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 217-233.

Também publicado no Jornal do Brasil, de 25/10/1953; LOBO, Otávio. Discurso na Câmara dos Deputados,

sessão de 23/10/1953. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 234-239; BARRETO, Adahil. Discurso

na Câmara dos Deputados. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 239-245.

89

sócio correspondente em outubro de 1887 e sucessivamente eleito sócio efetivo, honorário

(1913) e benemérito (1917).

Além da moeda comemorativa, o IHGB organizou, entre os meses de setembro e

outubro, o Curso Capistrano de Abreu. Até então, apenas outros dois intelectuais haviam

merecido esse tipo de homenagem: Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, ambos homenageados

em 1949.79

O evento foi divulgado pelos jornais da época através de pequenas notas, que

anunciavam as conferências na véspera, além de informar sobre as homenagens prestadas

por outras instituições.80

Na aula inaugural do Curso, Rodrigo Otávio Filho lembra o papel do IHGB na

construção da memória sobre a escrita da História no Brasil:

Bem haja este Instituto no cumprimento do dever que se impôs. Aqui, vive-se à hora

presente, registram-se os acontecimentos do dia, glorificam-se os homens que pela ação, e

pela inteligência, escrevem a história que vamos vivendo. Eis porque lhe é possível

revolver as cinzas do passado e ouvir o eco dos suspiros de esperanças daqueles que, em

tempos idos, viveram e escreveram a nossa história.81

Assumindo a missão de glorificar aqueles que viveram e escreveram a história do

Brasil, o IHGB – através de um de seus sócios – apresenta-se como uma instância de

consagração, capaz de conferir autoridade à produção de seus membros e, ao mesmo

tempo, atuar na composição de sua própria memória.82

O Curso organizado pelo embaixador José Carlos de Macedo Soares, presidente do

Instituto, contou com a participação dos seguintes conferencistas: Rodrigo Otávio Filho,

79

Ver “Curso Joaquim Nabuco”. Revista do IHGB, vol. 260, jul.-set., 1949, p. 107-334; “Curso Rui

Barbosa”. Revista do IHGB, vol. 205, out.-dez., 1949, p. 3-159. 80

Ver seção “Arte, Ciência & Cultura” do jornal O Globo, dos 2, 8 e 19 de setembro e 6, 12, 19, 21, 22 e 23

de outubro de 1953. 81

OTÁVIO FIHO, Rodrigo. “A vida de Capistrano de Abreu”. Aula inaugural do Curso Capistrano de

Abreu, realizada no IHGB, no dia 02/09/1953. Revista do IHGB, vol. 221, outubro-dezembro, 1953, p. 46.

Entre freqüentadores do Curso Capistrano de Abreu estavam o General Cândido Rondon, Tasso Fragoso,

Tobias Monteiro e Assis Chateaubriand. 82

Exemplos de textos sobre a história do IHGB e de seus sócios produzidos no século XIX e na primeira

metade do século XX: “Breve notícia sobre a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Revista

do IHGB, vol. 1, 1839, p. 3-7; AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira de. “Os precursores”. Revista do IHGB,

Suplemento em homenagem ao quinqüagenário do IHGB, vol. 51, n. 78, 1888, p. 49-53; “Memórias do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Revista do IHGB, vol. 65, n. 105, 1902, p. 337-526; FAZENDA,

José Vieira. “Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: subsídios para sua história”. Revista do IHGB, vol.

74, n. 124, 1911, p. 277-439; CASTRO, Olegário Herculano de Aquino e. “O Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro desde a sua fundação até hoje”. Revista do IHGB, vol. 60, n. 96, 1897, p. 171-201;

NORTON, Luís. “O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Revista do IHGB, vol. 192, jul.-set., 1946,

p. 243-245; IHGB. “Centenário de Ramiz Galvão”. Revista do IHGB, vol. 191, abr.-jun., 1946, p. 294-302;

IHGB. “Homenagem a Max Fleiuss”. Revista do IHGB, vol. 182, jan.-mar., 1944, p. 12-30.

90

Barbosa Lima Sobrinho, Gustavo Barroso, Múcio Leão, Arthur Cezar Ferreira Reis, José

Honório Rodrigues, Mozart Monteiro e Honorina de Abreu Monteiro. Além disso, foi

assistido por alguns nomes importantes do mundo intelectual e político, tais como o

general Cândido Mariano Rondon, Aníbal Freire, Maurício de Castro, Carlos de Aguiar

Moreira, entre outros.

Alguns dos participantes foram amigos e discípulos de Capistrano, que ao longo da

vida se dedicou a criticar a instituição, indo do simples desdém pelas reuniões regidas pela

formalidade às afrontas mais mordazes a determinados sócios. Em 1880, chegou a publicar

um artigo onde apontava as qualidades e, principalmente, as deficiências dos sócios do

Instituto enquanto pesquisadores.83

E, em 1917, recusou um prêmio concedido pelo IHGB

a seu livro sobre a língua dos índios caxinauás, Rã-txa-Hu-ni-ku-i (1914).84

Reconhecido por sua aversão a elogios públicos e agremiações, Capistrano era um

crítico das instituições de sua época, como o IHGB e a Academia Brasileira de Letras,

ainda que tenha feito parte da primeira. Quando convidado a participar da segunda – onde

se reuniam vários de seus amigos mais diletos – recusou dizendo em carta a um amigo,

escrita na terceira pessoa, que:

Não quis fazer parte da Academia Brasileira e é avesso a qualquer sociedade, por já achar

demais a humana. Por exceção única pertence ao Instituto, do qual pretende demitir-se em

tempo, se não morrer repentinamente.85

Capistrano não morreu repentinamente, nem deixou o IHGB. Essa relação ambígua

com a principal instância de consagração dos estudos históricos de sua época adquiriu

contornos mais definitivos e apaziguadores após sua morte, quando deu lugar ao culto a

seu nome, reforçado por nove conferências, cujos textos foram publicados na revista do

Instituto, que também incluiu alguns trabalhos apresentados em outras instituições.86

Na abertura do Curso, José Carlos de Macedo Soares apresenta Capistrano como

“um dos mais ilustres historiadores brasileiros”, lembrando sua aversão à vida social e sua

83

ABREU, Capistrano. “Uma grande idéia”. In: _____. Ensaios e estudos. 4a série. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976, p. 90. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, em

17/04/1880. 84

Ver carta de Capistrano de Abreu ao conde Afonso Celso, 08/10/1917. Revista do IHGB, t. 8, vol. 132,

1917, p. 790-791. 85

Nota biobibliográfica anexada à carta de Capistrano de Abreu a Guilherme Studart, de 18/08/1901, vol. 1,

p. 152. É interessante notar que, ao longo de quarenta anos, Capistrano publicou apenas dois artigos na

revista do IHGB. 86

Ver nota 78, p. 88.

91

recusa em participar de associações, reafirmando o vínculo de exceção que o uniu por

quarenta anos à casa que agora o homenageava. Apesar de um incidente em que perdera

manuscritos pertencentes ao arquivo do Instituto, das já citadas críticas públicas feitas ao

mesmo e a alguns de seus membros e da mencionada recusa de um prêmio (esses dois

últimos fatos não sendo mencionados), a passagem de Capistrano pelo IHGB é lembrada

pela assiduidade com que o historiador freqüentava sua biblioteca e seu arquivo, assim

como, pela amizade que manteve com dois bibliotecários, Vieira Fazenda e Rodolfo

Garcia. Naquele espaço, ele teria encontrado um ambiente propício para trabalhar, onde

tinha acesso à “farta documentação para os notáveis estudos que publicou”.87

Analisando as conferências pronunciadas durante o Curso, é possível distinguir dois

movimentos básicos. Em primeiro lugar, observa-se a elaboração de um discurso

biográfico, que inclui: a apresentação de um retrato físico e psicológico de Capistrano; um

arranjo de sua trajetória, através de recortes temporais e da escolha de determinados

acontecimentos considerados como os mais ilustrativos de sua vida; e a elaboração de

interpretações a respeito de sua vocação intelectual. Em segundo, nota-se a construção de

relações entre a obra do homenageado e certos aspectos da produção cultural brasileira, de

modo a valorizar distintas contribuições, definindo um legado. A percepção desses

aspectos orientou a divisão do texto que segue.

2.3.1. Vida: um perfil físico-psicológico, uma trajetória, uma vocação

Ao longo do Curso diversas interpretações sobre o homenageado foram

apresentadas. No entanto, é possível perceber certa convergência de opiniões entre os

intérpretes, que realizam exercícios semelhantes ao focalizar a vida e a obra de Capistrano.

Predomina um perfil composto por elementos físicos, psicológicos e morais, que adquirem

certo movimento mediante o arranjo da trajetória na qual o retratado é inserido. Dando

sentido a essa trajetória, estão as interpretações sobre a vocação do historiador.

Abrindo o evento, Rodrigo Otávio Filho propõe uma visão da personalidade e da

trajetória de Capistrano, que podem ser resumidas em uma frase: “um homem que

estudou”. O autor desenha o perfil de um “homem simples, modestíssimo, alheio e hostil a

quaisquer manifestações de vaidade”, o que é afirmado e reafirmado por várias vozes e em

diferentes momentos. Ao lado da modéstia, a paciência, a erudição, as esquisitices e as

87

SOARES, José Carlos Macedo. “Abertura do Curso Capistrano de Abreu”. Revista do IHGB, vol. 221,

outubro-dezembro, 1953, p. 44-45.

92

contradições ajudam a compor um tipo original e excêntrico. Trata-se de um “homem que

tudo sabia, tudo esclarecia e que irradiava daquele invólucro quase de maltrapilho, um

mundo de sabedoria, de ternura e de afetividade”.88

Esse perfil psicológico e moral é

associado a um “retrato” físico, que recupera imagens de um homem:

Mais gordo do que magro, nem alto, nem baixo, mal vestido, dando a impressão de que o

paletó e as calças lhe despencavam pelo corpo; uma gravata preta de laço feito, esfiapada a

ultrapassar o colarinho; barba crescida, esgrouviada, e a cabeça com evidente saudade de

um pente e da tesoura de um fígaro amigo: sério e sorridente ao mesmo tempo, falava

baixo e sonora era a sua voz; dois olhos pequenos, semicerrados, também olhavam com

enternecimento e candura.89

Um retrato físico de Capistrano também está presente na conferência de Gustavo

Barroso, que o apresenta com:

Roupa escura e usada, roupa branca serzida, mas ambas muito limpas. Gravata preta ao

deus dará. As mangas do casaco meio curtas. Bolsos enchumaçados de papéis. Andar

ligeiro e um tanto pendido para diante. Estatura regular. Tronco robusto. Cabeça chata de

cearense. Rosto largo, de maças salientes e olhos miúdos, quase fechados à luz. Os cabelos

grisalhos e esgrouviados. Bigode e barba sem trato. Boca larga e franca. Gestos rápidos,

ligeiramente trêmulos.90

Buscando as razões do temperamento original do homenageado, que, supostamente,

interferiram na elaboração de sua obra e pensamento, Barroso destaca o aspecto da

ascendência. Capistrano é apresentado como um descendente da “gente do Reino com

alguma remota mistura indígena”. Sua “alma” é vista como “um reflexo dos choques e

contrachoques que através do tempo e do espaço formaram a do próprio Brasil”.91

Para o

intérprete,

Dentro de sua alma, pois, se defrontavam forças européias e forças telúricas, as que vieram

de além mar e as que subiam do próprio meio, travava-se mais uma vez o choque inicial

entre o luso e o índio, com ausência absoluta do elemento africano posterior. E é isso o que

88

OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 48. 89

Ibidem, p. 48. 90

BARROSO, Gustavo. “Capistrano de Abreu e a interpretação do Brasil”. Revista do IHGB, vol. 221, out.-

dez., 1953, p. 95. 91

Ibidem, p. 95 e 100.

93

vemos refletir-se em toda a sua exteriorização como cultor da história e da antropologia

pátria: a paixão pelo documento que elucida a ação portuguesa na descoberta, conquista,

catequese e manutenção da terra, e a inclinação para a etnologia indígena, o estudo de suas

manifestações na língua e nas lendas, quer dizer no pensamento de seus indivíduos.92

Outro intérprete, Múcio Leão, observa que a estranheza que Capistrano transmitia

através de sua aparência contribuiu para multiplicar os comentários e anedotas em torno de

sua personalidade, de modo a construir um “ser fabuloso e quase mítico, um misto de sábio

e enfeitiçador, um Diógenes em seu tonel, um Fausto em seu laboratório”.93

Para Leão, a

primeira imagem de Capistrano que surge é a de um:

(...) homem estranhíssimo que não se preocupava com a posição da gravata no pescoço

nem com a perfeição do vinco da calça, aquela criatura inverossímil que perambulava neste

mundo como se estivesse em algum satélite de Algol. Tal era a aparência física daquele

original velho, cujo reino não seria, de forma nenhuma, um reino terreno.94

Um retrato fisionômico semelhante já circulava durante a vida de Capistrano, tendo

sido recuperado após sua morte. Ignorando as mudanças físicas vividas pelo indivíduo ao

longo de sua existência, um “retrato” a-temporal foi consolidado, sendo que o corpo e a

vestimenta se conjugam de modo a compor a figura de um homem pouco afeito às

vaidades mundanas e às convenções sociais. Um ser único em suas excentricidades.

Alguém cuja recusa das convenções sociais estaria de acordo com o papel de um

intelectual renovador dos estudos sobre o Brasil.95

Além da aparência e da personalidade de Capistrano, outro aspecto que chama a

atenção nas conferências é a ordenação cronológica de sua vida. As cronologias

consolidam verdades sobre as trajetórias biográficas. Uma vez estabelecidas, elas passam a

servir como referência, fornecendo a base para outros tipos de discursos, dedicados a

analisar um período da vida de um indivíduo ou a atividade por ele exercida. Assim,

recupera-se o ano e o local de nascimento, as viagens consideradas mais importantes, os

encontros tidos como os mais significativos (amorosos ou não), os filhos, os lançamentos

92

BARROSO, “Capistrano de Abreu e a interpretação do Brasil”, op. cit., p. 95-96. 93

LEÃO, Múcio. “Capistrano de Abreu e a cultura nacional”. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953,

p.102. Conferência pronunciada no IHGB em 30/09/1953. 94

Ibidem, p. 102. 95

Regina Abreu observa como o material iconográfico pode ser utilizado na construção da memória sobre

um dado indivíduo, de modo a cristalizar uma imagem visual a ser aceita coletivamente. Ver ABREU, “Entre

a nação e a alma”, op. cit., p. 6 (versão digital).

94

das principais obras, os momentos de mudança no âmbito profissional, de ruptura ou

conversão no campo das idéias e das crenças.96

No caso de Capistrano, os marcos da trajetória recuperados são: a data (1853) e o

local de nascimento (Columinjuba, Maranguape, Ceará), seguidos pela filiação e,

sobretudo, pelos acontecimentos que pontuam sua vida profissional: as primeiras letras; os

primeiros escritos; a vinda para o Rio, em 1875; o primeiro emprego na Livraria Garnier; o

concurso para a Biblioteca Nacional, em 1879; a participação na organização da Exposição

de História e Geografia do Brasil, em 1881; os textos publicados na década de 1880; e o

concurso para o Colégio Pedro II, em 1883. Alguns acontecimentos da vida privada

também merecem destaque, como é o caso do casamento, em 1891, com Maria José de

Castro Fonseca, falecida dez anos depois; a entrada da filha Honorina para o convento, em

1911 e a morte do filho Abril, em 1918.

A morte de Capistrano também costuma ser lembrada. Trata-se de um momento-

chave na construção biográfica, quando é possível completar a narrativa sobre sua

trajetória de modo pleno. Citando a opinião de alguns contemporâneos do homenageado,

Rodrigo Otávio Filho conclui que sua glória foi construída ainda em vida e não após a

morte. Como pode ser lido na epígrafe que abre esse capítulo, “não precisou Capistrano

que os anos passassem para que fosse louvado e glorificado. Grande em vida continuou

grande depois de morto”.97

Cabe ressaltar a importância dos relatos de personalidades que conviveram com

Capistrano, recuperados pelos participantes do Curso. De acordo com Regina Abreu, tais

relatos têm um duplo papel na construção póstuma: servem para demonstrar a perenidade

do morto e de sua obra, assim como, para atualizar o valor simbólico de vivos e mortos.98

No caso dos relatos daqueles que conviveram com o morto, um argumento de autoridade

parece ser acionado, pois os contemporâneos – sobretudo aqueles que fizeram parte do

grupo de convívio direto e, entre esses, os mais conhecidos publicamente – são vistos

como os mais capazes de identificar as qualidades e os defeitos do morto, de modo a

atribuir-lhe a devida importância.

Por vezes, a construção da trajetória através da recordação dos acontecimentos

vistos como os mais importantes, dá lugar a uma narrativa capaz de conferir sentido à

96

ABREU, “Entre a nação e a alma”, op. cit., p. 5-6 (versão digital). 97

OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 66. 98

ABREU, “Entre a nação e a alma”, op. cit., p. 6 (versão digital).

95

existência do indivíduo. Isso pode ser observado no discurso de Mozart Monteiro,99

que

resume a vida de Capistrano em tom heróico, como pode ser visto no trecho a seguir:

De uma pobre casa rural do Ceará, a um porão pobríssimo do Rio, transcorreu a vida de um

dos homens mais modestos e, ao mesmo tempo, mais ilustres que ainda floresceram no

Brasil – Capistrano de Abreu. Diante das riquezas e vaidades do mundo, viveu como

filósofo da Grécia antiga, e morreu como um frade mendicante da Idade Média.100

Já Múcio Leão apresenta uma versão da adolescência de Capistrano, quando,

supostamente, já era possível observar “suas maravilhosas aptidões de espírito”. De aluno

medíocre, amigo da natureza e apaixonado por livros a jovem letrado, que viveu em meio à

atmosfera cultural da cidade do Recife, na década de 1870, e foi membro da “Academia

Francesa” do Ceará, no mesmo período. Os primeiros escritos e a vinda para o Rio também

são destacados, assim como a passagem pela Biblioteca Nacional e pelo Colégio Pedro II.

Honorina de Abreu Monteiro, neta de Capistrano, expõe o ponto de vista da família

sobre o homeangeado, o que contribui, até certo ponto, para humanizá-lo e, ao mesmo

tempo, para corroborar as opiniões circulantes sobre sua vida pública, elaboradas por

estudiosos de diferentes gerações e por amigos, que com ele conviveram.101

A intérprete

desenha a imagem ambígua de “um homem rude, esquisitão, de psicologia difícil de ser

equacionada”, que, ao mesmo tempo, era:

(...) fonte inesgotável de ternura a serviço dos seus íntimos: unir os desafetos constituía

uma glória para ele (...) A franqueza rude é, a meu ver, deselegância de espírito e, se meu

avô usava este tipo de franqueza, sabia temperá-la com essas armas que fizeram dele

aquele príncipe de boas maneiras, atenuando-lhe as arestas.102

99

Nos anos 1950, Mozart Monteiro redigia a seção Letras Históricas, do periódico O Jornal, tratando de

problemas relativos à história universal e do Brasil. 100

MONTEIRO, Mozart. [“Considerações sobre Capistrano de Abreu”]. Conferência de encerramento do

Curso Capistrano de Abreu, pronunciada a 23/10/1953. Revista do IHGB, vol. 221, outubro-dezembro, 1953,

p. 154. 101

MONTEIRO, Honorina de Abreu. “O avô que eu conheci”. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p.

182-193. Capistrano teve cinco filhos com Maria José de Castro Fonseca: Honorina (depois irmã Maria José

de Jesus); Adriano; Henrique (falecido quando criança); Matilde e Fernando (morto em 1918). E apenas três

netas, filhas de Adriano de Abreu: Jônia, Honorina e Isa (depois Madre Maria Teresa do Espírito Santo). 102

Honorina menciona que, certa vez, Capistrano deu a sua filha, também chamada Honorina, um manual de

etiqueta e boa conduta chamado Don’t, contendo regras de bem viver em sociedade. O caso chama atenção

devido à imagem de Capistrano como homem pouco afeito às convenções sociais. Segundo Honorina,

Capistrano se preocupava muito com as boas maneiras, não permitindo que os filhos colocassem os cotovelos

sobre a mesa ou falassem com o tom de voz alto. Os filhos de Capistrano freqüentaram algumas das melhores

escolas de sua época, famosas pela rigidez de comportamento exigida de seus alunos: o Colégio Imaculada

96

A morte da esposa (1891), o caso da entrada da tia Honorina para o convento de

Santa Teresa (1911), a morte do tio Fernando (1918) e a do próprio Capistrano são

lembradas como fatos marcantes na memória familiar. Parece haver certo empenho no

sentido de reconstruir a trajetória de Capistrano a partir dos marcos familiares, afastando os

referenciais de sua vida pública, para, de certa forma, “devolvê-lo” ao mundo privado.103

Além do estabelecimento de uma cronologia da vida de Capistrano, também se

observa a proposição de questões, consideradas capazes de orientar a biografia do

homenageado. Na opinião de Mozart Monteiro, por exemplo, a biografia deveria investigar

a saída de Capistrano do Colégio Pedro II – onde atuou entre os anos de 1883 e 1899 – e

enfrentar a questão que desde então perturba a maioria dos seus analistas: por que ele,

considerado em vida como o maior historiador do país, efetivamente não escreveu uma

história do Brasil? Após apresentar um “retrato” da desambição e da modéstia que teriam

marcado a vida do homenageado, o autor argumenta que, entre os motivos arrolados para

essa espécie de dívida do historiador para com seu país estão: a ausência de estudos

monográficos capazes de servir como base para uma grande síntese; e seu pouco interesse

pela história contemporânea (“uma lacuna em sua vasta e profunda erudição”), item

considerado relevante para uma história completa da nação.104

Para Mozart Monteiro, a investigação da saída de Capistrano do Colégio Pedro II

remete às exigências do ofício de historiador, uma vez que a disponibilidade remunerada

que obteve teria sido útil para garantir as condições que precisava para pesquisar. Segundo

o autor,

(...) para fazer, como historiador ou como erudito, investigações históricas, é mister (...) ter

paciência e dispor de tempo; ser diplomata, como Varnhagen e como Oliveira Lima; ou ser

rico, como Tobias Monteiro e como Paulo Prado; ter emprego em bibliotecas ou arquivos,

ou estar em inatividade remunerada, de cargo público (...) Fora das hipóteses acima

Conceição, o Alfredo Gomes, o Anchieta (em Friburgo) e a Escola Alemã. Ver ABREU, Honorina de Abreu,

ibidem, p. 184-85. 103

Honorina conta que seu pai, Adriano de Abreu – filho de Capistrano falecido pouco antes do centenário –,

chegara a planejar a elaboração da biografia de Capistrano, empenhando-se na preservação de documentos,

na recolha de depoimentos e na construção de uma cronologia, cujos marcos seriam guiados por

acontecimentos familiares: 1853-1875, destacando-se o período da infância e da juventude de Capistrano;

1875-1894, fase em que seria lembrada a morte da esposa de Capistrano, em 31/12/1891; 1894-1911, etapa

marcada pela entrada da filha Honorina para o convento, em 10/01/1911; 1911-1918, fixando o momento da

morte do filho Fernando (Abril), em 24/10/1918; 1918-1927, os anos finais da vida. A documentação reunida

por Adriano de Abreu foi deixada aos cuidados de Mathilde de Abreu Monteiro, filha de Capistrano, que

faleceu recentemente, deixando o referido material sob a guarda do Convento das Carmelitas Descalças, em

Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde viveu sua irmã, Honorina (Madre Maria José de Jesus). 104

MONTEIRO, [“Considerações sobre Capistrano de Abreu”], op. cit., p. 153.

97

aventadas, é difícil consagrar-se alguém, durante muitos anos consecutivos, a pesquisas

históricas, feitas por conta própria.105

Acreditando que “um dos pontos capitais da História dos homens ilustres é

conhecer o momento exato em que a sua vocação se revela”, Monteiro se detém no tema

da “revelação” de Capistrano como historiador. Essa aptidão para o estudo da história teria

se manifestado em momento e local específicos: os anos de 1879 a 1883, na Biblioteca

Nacional do Rio de Janeiro. Essa é a época da publicação dos primeiros estudos históricos

de Capistrano, período em que ele também realizou descobertas relevantes para o campo

da crítica documental.

Desde sua fundação no início do século XIX, a Biblioteca Nacional era vista como

um monumento ao saber e ao mundo civilizado.106

Além de sua importância como local de

guarda de livros, periódicos, manuscritos etc., era nítido o valor simbólico de uma

instituição capaz de materializar a idéia de nação culta. A possibilidade de relacionar a

trajetória de um indivíduo à Biblioteca dava margem a construções simbólicas capazes de

sustentar a memória de uma vida dedicada à cultura. O caso de Rui Barbosa é exemplar

nesse sentido. Valorizado por sua vasta cultura, Rui foi homenageado na Biblioteca por

ocasião de seu jubileu cívico-literário, em 1918. Além disso, seu velório, em 1923, foi

realizado na Biblioteca.

Como já foi dito, no dia 22 de outubro de 1953, a Biblioteca inaugurou uma

exposição sobre Capistrano de Abreu, em homenagem ao seu centenário de nascimento. O

evento, organizado por José Honório Rodrigues, diretor da Divisão de Obras Raras e

Publicações e membro da Sociedade Capistrano de Abreu, exibiu livros considerados

representativos da vida do historiador e não apenas aqueles escritos por ele. A inauguração

contou com a presença do ministro da Educação e Saúde, Antônio Balbino, e do chefe da

Casa Civil, Lourival Fontes, entre outras personalidades.107

Além de recuperar acontecimentos como a passagem de Capistrano por instituições

culturais, a reflexão sobre a vocação do historiador também é composta por observações

acerca de sua capacidade de leitura. Trata-se de alguém que:

105

MONTEIRO, [“Considerações sobre Capistrano de Abreu”], op. cit., p. 163. 106

Ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis. São Paulo, Companhia das Letras,

2002. 107

Restaram poucos registros sobre essa exposição. Ver anúncio da inauguração em O Globo, 23/10/1953,

capa e p. 9. Entre as personalidades que compareceram ao evento, estavam: José Linhares, Jaguaribe Matos e

Gilson Amado.

98

Lia em toda a parte: em casa, no bonde, nas bibliotecas e arquivos públicos, onde quer que

se demorasse tendo à mão um jornal, uma revista ou um livro. E não lia só História: lia

tudo. Tudo, não: tudo o que merecesse a leitura de um homem culto.108

A trajetória adquire maior sentido através dessas reflexões acerca da vocação

intelectual de Capistrano, vista como obra do destino, algo nato ou, ainda, como fruto da

vontade individual. Rodrigo Otávio Filho, por exemplo, se empenha em desvendar as

influências que atuaram no destino do biografado. Destino que se manifesta na infância

vivida por uma “criança estranha” quando, acredita-se, já se observavam duas das

características continuamente recuperadas por seus biógrafos e intérpretes: a falta de asseio

e o gosto pela leitura. Segundo o autor, a mola propulsora desse destino individual foi a

vontade. Capistrano é apresentado como tendo sido “o maior exemplo do autodidata”. Um

homem que:

(...) por seu esforço pessoal tornou-se, no Brasil, mestre etnógrafo, antropólogo e

conhecedor da lingüística brasileira; geógrafo e naturalista, filólogo e humanista; e, mais do

que tudo isso, como laurel de uma vida sem brilhos estéreis, um grande homem de bem (...)

este homem (sábio, que parecia bruxo e santo), que foi o maior dos historiadores

brasileiros.109

Barbosa Lima Sobrinho analisa o surgimento da vocação de historiador em

Capistrano identificando elementos que considera importantes para sua formação

intelectual. Não se surpreende tanto com seu auto-didatismo (algo que admite ser comum

no Brasil de sua época), mas com a extensão de sua cultura. Sua “curiosidade de leitor

maníaco” teria sido um fator relevante na construção de si como intelectual.110

A vida de Capistrano em Fortaleza, entre os anos de 1871 e 1875, também teria tido

sua importância. Segundo o autor, foi então que ele iniciou sua atividade intelectual,

escrevendo para jornais locais e participando da “Academia Francesa” do Ceará. Tais

fatores – a leitura constante e a participação em um grupo de jovens intelectuais da

província – teriam contribuído de modo decisivo, ainda que indireto, para sua vocação de

historiador, ao estimular o contato com as idéias científicas de sua época.111

108

MONTEIRO, [“Considerações sobre Capistrano de Abreu”], op. cit., p. 164. 109

OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 63. 110

LIMA SOBRINHO, Barbosa. “Capistrano de Abreu, historiador”. Revista do IHGB, vol. 221, outubro-

dezembro, 1953, p. 68. 111

Ibidem, p. 68-69.

99

Um dos modos de explicar a vocação e o destino de Capistrano é proposto através

dessa construção de relações entre o homenageado e uma determinada geração de “homens

de letras” dotados de espírito científico e interesse pelo país. Concordando com as

observações de Barbosa Lima Sobrinho, Gustavo Barroso também situa Capistrano entre

os membros da geração cearense que freqüentara a “Academia Francesa” do Ceará na

década de 1870. Para o autor, sem a compreensão dessa “geração da análise e da dúvida,

mesmo algumas vezes da negação”, é difícil medir a alma e a obra de Capistrano, que foi

um de seus representantes. As características dessa geração seriam: o racionalismo, o culto

da honra e o desdém pelas honrarias. Daí o descaso observado quanto ao trajar e ao

convívio social. Um conjunto de pensadores cujo talento teria sido inutilizado pela boemia

– ou, em outras palavras, pela “preguiça contemplativa e romântica” –, de modo que as

análises que desenvolveram produziram dúvidas e estas os incapacitaram para a síntese.112

Além da relação com a “geração de 1870”, a identificação dos autores lidos por

Capistrano em fins do século XIX – Buckle, Taine, Agassiz, Wappoeus, Peschel e Ratzel –

a vinda para o Rio e a entrada, por concurso, para a Biblioteca Nacional são considerados

marcos na vida de alguém que, segundo Lima Sobrinho, já possuía a vocação para o estudo

árduo. Concordando com Mozart Monteiro, afirma que os anos de pesquisa na Biblioteca

teriam influído poderosamente sobre sua orientação vocacional, desenvolvida através de

estudos sobre a historiografia do século XIX, do aperfeiçoamento dos métodos de

investigação e da revisão crítica da obra de Varnhagen. Se não chegou a elaborar uma

história geral (sintética) do Brasil, dedicou-se à revisão das fontes, em um momento visto

como de transição da historiografia. Sua contribuição como historiador estaria relacionada,

principalmente, à crítica de restituição e de procedência, à heurística e à hermenêutica,

assim como, à publicação de manuscritos (tarefa iniciada por Varnhagen).113

Por fim, completa-se o “retrato” de Capistrano como historiador com a afirmação

de sua plena identificação com a História, exemplificada no trato dos personagens do

passado, com os quais parecia conviver como se fossem “velhos conhecidos”,

contemporâneos seus. Para Lima Sobrinho,

(...) a História foi tudo para ele, trabalho e divertimento, cadeia e evasão, tormento e

consolo, preocupação e alegria. Ela é que lhe encheu os dias de isolamento e viuvez; que

lhe escolheu os amigos, que lhe ditou as cartas mais íntimas. Ela ainda, a benfeitora

112

BARROSO, “Capistrano de Abreu e a interpretação do Brasil”, op. cit., p. 93-94. 113

Ibidem, p. 80-81.

100

tranqüila, que guardou o seu nome para a posteridade e nos foi buscar, a todos nós, em

nossas casas, para esta homenagem à sua memória.114

Tratando-se de um evento celebrativo, as conferências proferidas durante o Curso

Capistrano de Abreu cumprem o objetivo principal que é homenagear um intelectual

morto, através de uma operação que, de certo modo, o trás de volta à vida: a comemoração

de seu centenário de nascimento. Entre elogios, lembranças e demonstrações de saudade,

alguns parâmetros para a leitura de Capistrano são definidos. Os marcos de sua trajetória

são estabelecidos, assim como, é delineado o perfil de um homem modesto e íntegro, sem

vaidades e de aparência excêntrica, extremamente dedicado ao estudo da história do Brasil.

Alguém cuja trajetória intelectual remete à constituição do próprio campo de estudos

históricos no país, atuando como uma espécie de farol a guiar as novas gerações de

pesquisadores. Tais parâmetros se completam com as análises da obra de Capistrano, que

conferem valor as suas contribuições.

2.3.2. A obra capistraneana: contribuições para a cultura brasileira

Ao lado das conferências que tratam, principalmente, da vida, da personalidade e da

vocação de Capistrano, foram expostas algumas interpretações sobre sua obra e

pensamento, com o objetivo de situar sua produção em relação à cultura nacional, à

historiografia e à geografia brasileiras. São análises que estabelecem alguns parâmetros

para a leitura da produção publicada ou apenas planejada por aquele que era considerado

por muitos e há muito tempo como o maior historiador do país. Em função disso, busca-se

identificar as contribuições do homenageado, segundo os participantes do Curso, de modo

que seja possível compreender aquilo que foi então definido como o legado de Capistrano.

É Múcio Leão quem analisa a contribuição de Capistrano para a cultura nacional.

Contribuição observada em variados terrenos, pois,

Esse homem espantoso agitou e revolveu toda a cultura nacional. Sua contribuição é

magnífica no terreno da geografia, da etnografia, da antropologia, da lingüística, do

folclore; é sem igual no terreno da história.115

114

BARROSO, “Capistrano de Abreu e a interpretação do Brasil”, op. cit., p. 90. 115

LEÃO, “Capistrano de Abreu e a cultura nacional”, op. cit., p. 110.

101

São as palavras de um dos mais importantes articulistas do Estado Novo, que

desempenhou papel relevante na direção do suplemento literário Autores & Livros, do

jornal A Manhã, veículo oficial do ideário estadonivista. Nessa função, ele organizou uma

homenagem a Capistrano em 1944, dedicando-lhe um número especial do suplemento,

como já foi visto. A atuação desse jornalista, tanto em Autores & Livros como no Curso do

IHGB, permite afirmar sua importância como um dos principais agentes que contribuíram

para a perpetuação do nome de Capistrano de Abreu, ao lado dos fundadores da sociedade

erigida em seu nome e de José Honório Rodrigues, cujo empenho na construção da

memória sobre o historiador é notável a partir do centenário de 1953.

Indo além, Múcio Leão afirma que a contribuição de Capistrano ultrapassa os

campos específicos do conhecimento. Seu maior mérito teria sido colocar fatos e

indivíduos pouco valorizados sob o foco. Além disso, seus julgamentos sobre a política, a

literatura, a historiografia e, também, sobre seus contemporâneos, são considerados úteis

para a compreensão do Brasil. Trata-se de um “retratista moral” do país, “o maior erudito

que o Brasil teve em todos os tempos” e “o maior historiador”.116

Capistrano é alçado ao

patamar de símbolo nacional. Ele é:

(...) um dos motivos de orgulho de nossa nacionalidade. E o seu exemplo – que é o da

honestidade, o da pureza, o da autenticidade, o da dedicação ao estudo, o do devotamento

ao trabalho obscuro e constante – é um daqueles que mais nos enobrecem, um daqueles que

em nossos momentos de desalento mais nos servem de consolo, fazendo-nos acreditar de

novo nas redenções da alma brasileira.117

Considerando que se trata de um discurso comemorativo, é possível supor que as

qualidades destacadas no indivíduo homenageado correspondem a valores que podem e

devem ser compartilhados. Ao mesmo tempo, esse discurso permite perceber o tipo de

produção cultural e de intelectual valorizado. No caso em questão, destaca-se a

“honestidade, a pureza e a autenticidade”, assim como a “dedicação ao estudo” e o

“devotamento ao trabalho” de Capistrano, que servem como exemplo, consolo e motivo de

redenção coletiva.118

Diante de “momentos de desalento” é possível encontrar ânimo ao

116

LEÃO, “Capistrano de Abreu e a cultura nacional”, p. 110-118. 117

Ibidem, p. 119. 118

Sobre as noções de sinceridade (compreendida como sinônimo de honestidade) e autenticidade, ver

GONÇALVES, José Reginaldo. “Autenticidade, Memória e Ideologias Nacionais: o problema dos

patrimônios culturais”. Estudos Históricos – Dossiê Identidade Nacional, vol. 1, n. 2, 1988, p. 264-275; e

ABREU, “Entre a nação e a alma”, op. cit., p. 7 (versão digital).

102

lembrar o nome e a trajetória daqueles que são tidos como capazes de suscitar o orgulho de

ser brasileiro. Tratando-se de um intelectual, cabe destacar os aspectos de sua obra e

pensamento, supostamente úteis no processo de redenção nacional.

Da contribuição de Capistrano para a cultura brasileira à contribuição para os

estudos históricos. Gustavo Barroso afirma que a historiografia brasileira se dividia em

antes e depois de Capistrano, que construíra análises vivas e documentadas sobre o

descobrimento e a colonização do país. Antes dele a escrita da história era “seca, árida,

sem humanidade”, restringindo-se a crônicas, anais e relatórios. Uma matéria “flutuante e

amorfa”, carente de periodização. No entanto, o autor indaga porque Capistrano,

“estudioso consciente”, “analista crítico” e “narrador arguto”, não escreveu a monumental

História do Brasil que dele era esperada. A resposta é localizada no âmbito da

personalidade, marcada pela “absoluta incapacidade de seu espírito, não intelectual, mas

funcional”. Capistrano não teria investido no estudo da história para obter ensinamentos,

promover a vulgarização ou conquistar a glória através da elaboração de uma obra

completa, mas “pela avidez de saber, de fartar sua curiosidade peculiar, própria, de se

sentir senhor, para gláudio seu, dos segredos do passado”. Individualista, não se

preocupava com o grande público. Dotado de “alma boemia, analista e paradoxal, rebelde a

qualquer disciplina corporal ou mental”, Capistrano construiu sua obra dispersa, com

formação filosófica superficial e sem método. Uma obra que, apesar disso, era

“genuinamente brasileira”, verdadeira expressão da cultura nacional.119

Já Arthur Cezar Ferreira Reis recupera a contribuição de Capistrano para o

desenvolvimento da Geografia no Brasil. A referência a essa dupla inserção do trabalho de

Capistrano, na geografia e na história, está de acordo com a identidade do Instituto que o

homenageia, que é histórico e também geográfico. Trata-se do reconhecimento de que o

homenageado contribui para a consolidação de dois tipos de conhecimento pouco distintos

no início do século, mas que nos anos 1950 já constituíam campos diferenciados.

Apresentado como modesto e sábio, Capistrano também é identificado como um

“professor de civismo”, empenhado no estudo e no ensino da formação da nacionalidade.

Após fazer um pequeno histórico dos estudos geográficos no Brasil, Ferreira Reis chama a

atenção para o fato de que Capistrano começou suas atividades intelectuais em uma fase de

renovação dos estudos sobre a geografia nacional, quando expedições científicas

119

BARROSO, “Capistrano de Abreu e a interpretação do Brasil”, op. cit., p. 97 e 100.

103

percorriam o território brasileiro coletando informações sobre a vida econômica e social e,

também, sobre o meio físico.120

Uma tênue discordância entre a memória que associa Capistrano ao terreno da

História e a que o relaciona ao terreno da Geografia pode ser localizada na interpretação

sobre a tese O Descobrimento do Brasil no século XVI, defendida pelo homenageado no

concurso para o Colégio Pedro II, em 1883. Segundo Reis, essa tese teria sido

revolucionária, não tanto pela exegese documental proposta – aspecto caro para os

estudiosos da história –, mas pela valorização dos aspectos geográficos, até então

desprezados pelos pesquisadores do período colonial.121

Sem possuir as qualidades de um autor “organizado, disciplinado ou constante”,

Capistrano é visto por Ferreira Reis como um erudito que se dedicou a estudos variados,

sendo possível admitir que seu trabalho mais sistemático versava sobre a história. No

entanto, ele teria sido um estudioso

(...) íntimo dos grandes mestres da ciência geográfica de seu tempo, a par das concepções

revolucionárias que modificavam o processo do trabalho geográfico e da importância da

geografia e suas divisões, admirador de Humboldt, de Ritter, de Preschel, de Albert Penckt,

de Alexandre Supan, de toda, portanto, a geografia alemã que comandava a renovação dos

estudos e das concepções geográficas (...).122

Trata-se de alguém que não foi um “geógrafo profissional”, realizador de operações

de campo, nem um “geógrafo de gabinete”, dedicado a teorizações. Fez traduções e

adaptações de trabalhos estrangeiros dedicados ao estudo do Brasil, pelo viés de uma

geografia econômica, social e cultural. Assim como no âmbito dos estudos históricos,

120

REIS, Arthur Cezar Ferreira dos. “Capistrano de Abreu, geógrafo”. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez.,

1953, p. 139-140. 121

Ferreira Reis afirma que: “O sentido revolucionário da tese não o devemos buscar nas inovações por que

dispôs o assunto, manejando a documentação disponível e fazendo uma exegese exaustiva da matéria. Esse

sentido revolucionário consiste justamente na proposição dos aspectos geográficos, desprezados até então

pelos que tentavam esclarecer e compreender nossos cem anos de vida inicial. A caracterização da costa,

explicando a ocupação, a marcha da expansão, as condições do hinterland, o papel dos rios motivando

melhor a penetração e conhecimento do interior, são, naquelas páginas de excepcional valia, em nosso

entender, o revolucionário, sem esquecer que há, ali igualmente páginas de geografia social, de geografia

econômica verdadeiramente modelares servindo à exegese do Brasil que despontava e se propunha ao mundo

com todas aquelas particularidades”. Ibidem, p. 144-45 122

Ibidem, p. 146.

104

Capistrano teria dado uma contribuição importante à renovação da atividade geográfica

brasileira, através de trabalhos dispersos em prefácios e periódicos.123

Para Reis,

Capistrano afigura-se-nos um animador das operações de campo, um filiado às correntes

européias de renovação, tendo utilizado, com evidente êxito, como pioneiro, o exame dos

fatores geográficos para interpretar a vida brasileira. 124

O Curso também inclui as palavras de José Honório Rodrigues, que tem por

objetivo avaliar as contribuições de Capistrano para a historiografia brasileira. Segundo

Rodrigues,

A verdadeira compreensão das tarefas da historiografia brasileira cumpridas ou a cumprir,

de seus feitos e achados, do estado atual das questões, ninguém revelou tão cedo, num

descortínio claro, lógico e exato, como este jovem em seus ensaios de 1878 a 1882, os

melhores que até hoje se escreveram.125

O autor destaca as mudanças do pensamento de Capistrano, estimuladas por leituras

diversas. Ainda que considere difícil marcar com precisão um ponto de inflexão nas suas

idéias, afirma o distanciamento do historiador em relação ao positivismo – que o teria

influenciado, sobretudo, no início da carreira – e a afinidade com o pensamento alemão.

Além de mencionar influências teóricas e destacar o interesse de Capistrano pela

antropogeografia, pela economia política e pela psicologia, argumenta que sua atividade de

pesquisa na Biblioteca Nacional contribuiu para aproximá-lo da perspectiva do realismo

histórico. A reviravolta de seu pensamento teria sido possível tanto pelo conhecimento

teórico quanto pela pesquisa empírica.126

Supostamente, esse empenho na distinção das

fases do pensamento de Capistrano – que transita do positivismo para o realismo histórico

123

São citados como contribuições de Capistrano para a geografia: os prefácios a Gandavo, Cardim, Gabriel

Soares de Souza e Notas sobre a Paraíba, de Irineu Joffily; Descobrimento do Brasil e sua evolução no

século XVI; Capítulos de história colonial (1907); Caminhos antigos e povoamento do Brasil, obra que

“revelou o melhor sentido do geográfico que possuía”; e as traduções das obras Geografia do Brasil, de

Wappeus; O homem e a terra, de Alfred Kirchoff; e Geografia do Brasil, de Selin, além de vários artigos de

Herbert Smith, reunidos sob o título Do Rio de Janeiro a Cuiabá, e do trabalho de Emílio Goeldi, Clima do

Pará. Também contribui com artigos próprios, como A Geografia do Brasil, onde fez um sumário dos

estudos geográficos produzidos por “pré-geógrafos, “geógrafos de gabinete” e “geógrafos de campo”. 124

REIS, “Capistrano de Abreu, geógrafo”, op. cit., p. 150. 125

RODRIGUES, José Honório. “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”. Conferência proferida

no IHGB em 07/10/1953. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 121. 126

Ibidem, p. 124, 126-127.

105

– permite pensar a ruptura entre uma tradição de estudos históricos vigente ao longo do

século XIX e uma “nova” tradição historiográfica.

Capistrano surge, ao mesmo tempo, como “o homem da síntese” e um pesquisador

incansável, um “nadador num mar sem limites”: o mar da documentação. Ele é

interpretado como um historiador que atuou no sentido de suprir as deficiências da

historiografia de sua época, realizando bem a tarefa de criticar a história já escrita, ao

mesmo tempo em que propunha novas perspectivas, temas e conceitos.127

Nesse sentido,

Rodrigues reforça a imagem de um Capistrano pesquisador, cuja atividade teria sido

marcada pelo conhecimento de um grande volume de documentos, em contraponto ao

Capistrano autor, cujos escritos, embora poucos, seriam caracterizados pela qualidade,

pelas possibilidades de interpretação da história que inaugurou. Suas principais

contribuições seriam: a pesquisa documental, com base na crítica externa e interna; a

edição crítica de documentos e a reedição de obras, com anotações; as traduções; a

periodização; a aquisição de fatos; a construção de novos conceitos; a inclusão do povo

como personagem da história; a exploração de novos temas, tais como os festejos, a família

e o sertão; o enfoque da relação entre a história interna e externa do Brasil; a renovação

metodológica; o incentivo a pesquisas.

Após avaliar o legado de Capistrano, chamando a atenção para o seu caráter

inovador, José Honório o insere em uma tradição de estudos históricos ao afirmar que:

A formação teórica, a pesquisa incansável, a imaginação criadora, as qualidades especiais,

as faculdades novas e o estilo deram a este homem um destaque incomparável na sua época

e entre os de sua geração. Seu papel na historiografia brasileira entre 1878 e 1927 não se

exprime só com os Capítulos. Seguindo a linha de Varnhagen, Cândido Mendes de

Almeida, João Francisco Lisboa e Joaquim Caetano da Silva, Capistrano de Abreu foi um

erudito e um incansável pesquisador dos fatos novos ou por esclarecer. Fez pesquisa

documental, aquisição de fatos, edição crítica de textos históricos. Era a primeira

orientação a seguir para quem quisesse trazer uma contribuição nova.128

127

RODRIGUES, “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”, op. cit., p. 130 e 132. 128

Ibidem, p. 132. Um movimento semelhante é feito quando Rodrigues aproxima Capistrano da geração de

1930, mais especificamente, situa-o como antecipador da obra de Gilberto Freyre, embora essa não seja

citada de modo explícito. Rodrigues afirma que, “(...) em Capistrano, o conceito de cultura substitui o de

raça; seus estudos indígenas renovaram nossa etnografia; a importância da história social e dos costumes

aparece pela primeira vez nos Capítulos; e o próprio sistema da casa e da senzala e sua importância no Norte

viu-o pela primeira vez em 1910”. Ibidem, p. 134.

106

José Honório quer responder à pergunta que já prevalecia: o quanto modesto seria o

espólio literário de Capistrano? Qual seria o seu legado, a sua “herança científica”?

Conclui afirmando que o legado do historiador cearense era definitivo e original devido à

seriedade de seu método e às novas perspectivas que ele abrira. Como qualidades de

Capistrano, aponta: “claridade e crítica, sobriedade e competência, probidade e erudição”.

Assim,

Não importam os grossos volumes; devemos fixar-nos não só no que Capistrano realizou

como historiador, mas no que aspirava realizar, no que queria, no que postulava. É na

novidade desse princípio e na estranha energia com que soube mantê-lo que reside seu

mérito essencial e incomparável.129

A análise de Rodrigues constrói a imagem de Capistrano de Abreu como um jovem

dotado de “formação teórica atual, um conhecimento incomum dos fatos, um novo ideal de

história do Brasil e uma gana incurável de saber”. Alguém que, desde muito cedo, marcou

posição no mundo intelectual através de sua capacidade crítica e que, embora não tenha

produzido muito – considerando o que dele era esperado – foi capaz de construir, com

brilhantismo, uma obra síntese. Fortalece a idéia de que, mesmo sendo jovem, sem a

autoridade conferida pelos anos, Capistrano conseguiu conquistar espaço como conhecedor

da historiografia. Fato que Rodrigues considera decisivo para a “radical transformação”

que ele operou no saber histórico. Porém, mais que valorizar aquilo que foi feito, destaca

aquilo que Capistrano deixou por fazer, no sentido de caminhos historiográficos não

percorridos, mas abertos. Consolida-se, assim, a imagem de um Capistrano precursor,

alguém capaz de preparar o terreno para novas explorações, autor de um verdadeiro

programa historiográfico a ser seguido pelas gerações futuras.130

Na maior parte dos discursos produzidos em função do Curso Capistrano de Abreu,

observa-se o investimento no sentido de demarcar uma singularidade, definida a partir de

um conjunto de qualidades, que fazem dele alguém sem precedentes e sem par. De modo

geral, o Curso definiu as linhas mestras para a leitura do homem Capistrano, através da

construção de um perfil físico-psicológico. Esse perfil corresponde a um conjunto que

engloba tanto o corpo e a personalidade, situados fora do tempo – uma vez que prevalece

uma única imagem corpórea e psíquica do indivíduo nos vários discursos, ignorando as

129

RODRIGUES, “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”, op. cit., p. 137. 130

Ibidem, p. 120 e 124.

107

mudanças vividas ao longo da vida –, como os projetos, as idéias, as realizações e os

acontecimentos, geralmente atrelados à linha cronológica. Ao fim e ao cabo, o evento

definiu o legado de Capistrano, que pode ser relacionado a duas dimensões: a da

construção da história enquanto campo de conhecimento e a da construção da própria

nacionalidade, com seus elementos representativos, entre os quais alguns intelectuais

podem estar situados, em função de sua suposta e desejada capacidade de interpretar a

nação. Assim, o Curso Capistrano de Abreu pode ser visto como um acontecimento

comemorativo que foi capaz de transformar o homenageado em uma espécie de patrimônio

da cultura brasileira.131

*

* *

Este capítulo apresentou alguns empreendimentos sucessivos, que, de diferentes

modos, contribuíram para situar Capistrano de Abreu entre os grandes conhecedores do

Brasil das primeiras décadas do século XX. Em vida, Capistrano desenvolveu estudos

considerados complementares, como a lingüística e a etnologia indígena, a história e a

corografia, cujos limites eram difíceis de estabelecer. Após sua morte, operou-se uma

partilha dos campos de conhecimento ainda em formação. Coube à História e não à

Antropologia ou à Geografia, incluí-lo como marco referencial na história da disciplina,

confirmando a tendência já apontada por seus contemporâneos, que o reconheciam como o

“maior historiador do Brasil”.132

Para Oscar Calavia Saez, o “ruído póstumo” em torno de Capistrano desperta

suspeitas. Afinal de contas, por que comemorá-lo? A morte e as sucessivas comemorações

em torno de seu nome fizeram de Capistrano um “sábio inimitável”, um erudito ímpar, que

desenvolveu pesquisas de um tipo que não mais teria lugar. Nas palavras de Saez, “suas

honras fúnebres foram artes para domesticar um morto; para lembrá-lo, mas também, e não

131

Para pensar sobre a transformação de pessoas em patrimônio cultural, ver ABREU, Regina. “„Tesouros

humanos vivos‟ ou quando as pessoas transformam-se em patrimônio cultural – notas sobre a experiência

francesa de distinção do „Mestres da Arte‟”. In: ABREU, Regina e CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e

patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro, DP&A, 2003, p. 81-94. 132

Para o antropólogo Oscar Calavia Saez, Capistrano ocupava um espaço intelectual que permitia a

conjunção entre história e etnologia. Após sua morte, com as demarcações dos campos disciplinares, a

História e não a Antropologia, o incluiu entre seus nomes referenciais. Segundo o autor, “há depois dele

[Capistrano] um esforço paralelo por escrever a história sem índios e por descrever os índios sem história”.

Ver SAEZ, Oscar Calavia. A morte e o sumiço de Capistrano de Abreu: Antropologia, Etnologia e/ou

História do Brasil, in www.cfh.ufsc.br/~oscar/CAPISTRANO.DOC.

108

em menor medida, para esquecê-lo”. Algo semelhante pode ser dito da comemoração de

seu centenário. Um modo de saldar uma dívida ou “fazer justiça” a alguém que contribuiu

para o conhecimento do Brasil, cujas interpretações deveriam, para alguns, ser imitadas, e,

para outros, como Gustavo Barroso, superadas.

109

3

Memória e biografia:

a trajetória de um “cruzado da inteligência”

(...) é desses cujos íntimos dizem que não

podemos conhecer sem tê-los conhecido...

Desses de quem se fala sempre invocando uma

anedota, um dito de espírito, um epigrama

vingador. E cuja obra escrita não completa a

figura, não explica tudo o que foram, nem a

metade do que foram (Tristão de Athayde,

Capistrano, 1928).1

A construção da memória sobre Capistrano de Abreu se deu através de uma série de

empreendimentos, entre os quais está a elaboração de biografias e a divulgação de

pequenas histórias capazes de estabelecer uma imagem do indivíduo, destacando suas

particularidades.2 Tais empreendimentos podem suscitar disputas pela memória ou, pelo

contrário, sustentar-se mutuamente, estabelecendo consensos mais ou menos rígidos. Isso

parece ter ocorrido no caso em questão. Compreender o consenso construído em torno de

Capistrano, analisando as biografias e pequenas histórias contadas sobre ele, equivale a

destrinchar a trama da memória que o consagrou como alguém digno de ser lembrado no

presente e no futuro. Alguém que se tornou familiar entre os intelectuais dedicados ao

estudo da história, sendo reconhecido unanimemente como o maior historiador do Brasil

em sua época.

1 ATHAYDE, Tristão de. “Capistrano” [1928]. In: _____. Estudos, 3

a série. Rio de Janeiro, tomo 1, 1930, p.

299. 2 Sobre a relação entre produção biográfica, instituição de memória, processo de individuação e mitificação,

ver, por exemplo: SOUZA, Adriana Barreto de. “Entre o mito e o homem: Caxias e a construção de uma

heroicidade moderna”. Locus – Revista de História, vol. 7, n. 1, 2001, p. 93-106; MOURA, Cristina Patriota

de. “Herança e metamorfose: a construção social de dois Rio Branco”. Estudos Históricos – Dossiê Heróis

Nacionais. Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 81-101.

110

O capítulo a seguir está dividido em três partes. A primeira expõe alguns problemas

referentes à biografia e lembra alguns de seus diferentes usos no Brasil. A segunda analisa

as biografias sobre Capistrano, relacionando-as de modo a observar convergências e

divergências, além de identificar seus eixos narrativos principais. A terceira apresenta os

pequenos casos contados sobre ele, que consolidaram uma espécie de tradição oral em

torno de seu nome e serviram para ilustrar as biografias, reforçando as imagens e

interpretações construídas pelos biógrafos. O objetivo geral é compreender a memória

biográfica erigida sobre Capistrano, que pode ser vista como um dos vetores fundamentais

da “transformação” do historiador em autêntico símbolo da história pátria.

3.1. Sobre a biografia

Várias das discussões importantes da historiografia contemporânea relacionam-se à

biografia. O problema que norteia essas discussões é aquele dos limites da liberdade e da

racionalidade humanas, subjacente ao da relação entre indivíduo e sociedade que, por sua

vez, remete a um dos paradoxos da história: aquele que opõe o particular ao geral.3 Uma

abordagem do tema biografia coloca, portanto – quase que inevitavelmente – o problema

nada simples das relações entre o indivíduo e a história. Afinal, como lembra Jacques Le

Goff, o indivíduo é um dos “inevitáveis objetos da história” (ao lado do acontecimento e da

política),4 ainda que algumas vezes tenha sido possível supor o contrário.

A biografia é uma prática moderna, diretamente relacionada ao individualismo5 e à

idéia de que a vida corresponde a uma trajetória dotada de sentido, passível de ser contada

por meio de uma linha que liga começo, meio e fim. Trata-se de um tipo de escrito

caracteristicamente híbrido, pois articula elementos distintos, oriundos de diferentes

épocas, tradições e gêneros de escrita: das histórias de vida da antiguidade, passando pelas

3 LEVI, Giovanni. “Usos da biografia” (1989). In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína

(Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro, FGV, 2001 [1996], p. 167-182; ver, também, LEVI,

“Sobre a micro-história”. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo, Unesp,

1992, p. 133-161; e LE GOFF, Jacques. “História”. In: _____. História e memória. Campinas, Unicamp,

1990, p. 17-202.

4 LE GOFF, Jacques. Como escrever uma biografia histórica hoje?. Tradução de Henrique Espada Lima

Filho do original “Comment écrire une biographie historique aujourd‟hui?”. Le Débat, n. 54, mars-avril,

1989, p. 48-53. 5 Sobre o individualismo, ver: DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da

ideologia moderna. Rio de Janeiro, Rocco, 1985; DUARTE, Luís Fernando Dias. “O culto do eu no templo

da razão”. Boletim do Museu Nacional, n. 41, 1983, p. 2-27; Idem, “A construção social da memória

moderna”. Boletim do Museu Nacional, n. 41, 1983, p. 28-54; CORBIN, Alan. “O segredo do indivíduo”. In:

PERROT, Michelle (Org.). História da vida privada 4 – Da Revolução francesa à Primeira Guerra Mundial.

São Paulo, Companhia das Letras, 1991 [1a ed. 1987], p. 428-430 e 458-463.

111

hagiografias medievais, pelas biografias renascentistas, até o elogio dos “grandes homens”

e as modernas biografias dos séculos XVIII, XIX e XX.6

Ainda que a prática de escrever histórias de vida existisse desde a antiguidade e que

diversas formas de escrita de si possam ser localizadas ao longo do tempo, a idéia de que a

vida é uma história começou a se esboçar somente no século XVIII. A biografia surgiu

como gênero literário quando a experiência individual passou a ser relacionada a uma

dimensão global, geralmente orientada. Ou seja, quando a experiência de cada um pôde ser

pensada como algo dotado de sentido. A idéia de progresso autorizou a visão de que o

indivíduo passa por um processo de desenvolvimento. Assim, a narrativa biográfica pôde

se afirmar como um escrito retrospectivo, capaz de construir ou inventar uma imagem

coerente do indivíduo biografado.7

A história da biografia é marcada por um movimento de laicização que promove a

ruptura progressiva com modelos morais e religiosos, e a busca de informações cada vez

mais objetivas sobre uma dada personalidade. Os modelos universais são substituídos pelo

ideal da individualização, que estimula o interesse pela interioridade. Tais mudanças

podem ser observadas a partir dos séculos XVI e XVII, destacando-se uma crescente

“literalização” da biografia, que procura instrumentos do romance, do poema, do teatro

etc., que ajudem a assegurar a expressão de uma “verdade mais íntima”.8

Em texto de 1986, Pierre Bourdieu chamou a atenção para uma noção de senso

comum pouco questionada pelas ciências sociais: a noção de história de vida, fundada na

idéia de que a vida é uma história, ou “um conjunto de acontecimentos de uma existência

individual, concebida como uma história e o relato dessa história”. O autor desconstrói

essa idéia reavaliando seu pressuposto principal: o de que a vida constitui um todo coerente

e orientado, que deve ser compreendido como expressão de um projeto subjetivo e

objetivo, simultaneamente.9

A narrativa autobiográfica (assim como a biográfica) se baseia na preocupação de

dar sentido à existência, conferindo-lhe um suporte retrospectivo e prospectivo. O relato

6 LEVILLAIN, Philipe. “Os protagonistas: da biografia”. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história

política. Rio de Janeiro, FGV / UFRJ, 1996, p. 149. 7 CALLIGARIS, Contardo. “Verdades de autobiografias e diários íntimos”. Estudos Históricos – Dossiê

Arquivos Pessoais. Rio de Janeiro, n. 21, 1998, p. 48. 8 Sobre a história do gênero biográfico, ver WERNECK, Maria Helena. “As poéticas de elogio ao homem de

letras”. In: _____. O homem encadernado: Machado de Assis na escrita das biografias. Rio de Janeiro,

UERJ, 1996, p. 31-45. 9 BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA e AMADO, op. cit., p. 183-84. Originalmente

publicado com o título de “L‟illusion biographique”. Actes de la Recherche em Sciences Sociales, (62/63):69-

72, juin 1986.

112

procura estabelecer relações inteligíveis baseadas na lógica da causa e efeito. Estas são

arranjadas em estados sucessivos, constituindo as etapas de um desenvolvimento em

determinada direção. Para Bourdieu, tratar a vida como uma história corresponde a

elaborar um “relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e

direção”. Tal procedimento equivaleria a uma “ilusão retórica”, uma representação comum

da existência estimulada por uma tradição literária e por certos mecanismos sociais, que

favorecem a percepção da vida como uma totalidade.10

Um dos mecanismos sociais que favorecem a compreensão de uma vida como uma

unidade coerente é o nome próprio. Por designar um mesmo objeto em diferentes

universos, o nome próprio institui uma identidade social aceita como algo constante e

uniforme. No entanto, aquilo que o nome próprio designa, a custa de grande abstração,

nada mais é que “uma rapsódia heterogênea e disparatada de propriedades biológicas e

sociais em constante mutação”.11

Como ultrapassar a armadilha da “ilusão biográfica” e do nome próprio? Bourdieu

considera que os acontecimentos biográficos constituem “colocações” e “deslocamentos”

dentro de um determinado espaço social, a partir do qual diferentes tipos de recursos de

ação ou valoração estão em jogo. Para compreender uma trajetória, propõe um “desvio

pela construção do espaço” em que essa trajetória se desenvolve. Ou seja, pela “paisagem”

(o contexto) na qual se insere um agente biológica e sociologicamente instituído. Trata-se,

portanto, de reconstruir a estrutura da rede de relações sociais do agente (indivíduo), que

atua como matriz de suas relações objetivas. A investigação inclui, em primeiro lugar, a

construção dos estados sucessivos do campo no qual a trajetória se desenrolou; em

segundo, a construção do conjunto das relações objetivas (pelo menos em certo número de

estados pertinentes) que uniram o agente considerado a outros agentes envolvidos no

mesmo campo e confrontados com o mesmo “espaço dos possíveis”. O objetivo final é

elaborar uma avaliação rigorosa da “superfície social” onde se encontra o sujeito, e que

determina suas relações objetivas.12

Um ponto que não pode ser esquecido. Diante de uma velha indagação sobre a

existência ou não de “um eu irredutível à rapsódia das sensações singulares”, Bourdieu

propõe a utilização do conceito de habitus. Trata-se de uma “identidade prática”,

construída e situada historicamente, que só pode ser apreendida através de suas

10

BOURDIEU, “A ilusão biográfica”, op. cit., p. 184-185. 11

Ibidem, p. 186-7. 12

Ibidem, p. 189-190.

113

manifestações sucessivas, recuperadas através de um relato totalizante. Diante das

condições objetivas da existência, o habitus permitiria ao indivíduo existir como agente em

diferentes campos.13

De modo geral, as considerações de Bourdieu sobre a “ilusão biográfica” são

consideradas pertinentes e seu texto tornou-se referência obrigatória para o estudo da

biografia. A busca de unidade de sentido para a existência não faz mais sentido, o que foi

constatado pelas ciências sociais e pela história tardiamente, uma vez que a literatura já

afirmava isso há muito tempo. Além disso, hoje, a reconstrução do contexto do indivíduo,

levando em conta a multiplicidade de campos e temporalidades em que ele vive, é vista

como indispensável.14

Contudo, a proposta de Bourdieu apresenta algumas armadilhas. Em primeiro lugar,

o gênero biográfico não está preso à narrativa cronológica, ao relato de acontecimentos ou

a uma história pouco problemática. Se a concepção de história como um “relato coerente

de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção” é datada do fim do século

XVIII, é preciso considerar que nem sempre, mesmo no Setecentos, a história foi

compreendida e escrita dessa forma. O mesmo pode ser observado sobre a biografia. Como

ressaltou Sabina Loriga, “o enunciado biográfico não tende sempre, automaticamente, para

a forma tradicional da biografia”, compreendendo-se por tradicional a biografia dos

“grandes homens”, exemplar e anedótica, construída a partir de um fio linear que liga os

acontecimentos da vida de um indivíduo do nascimento à morte, de modo plenamente

coerente. Alternativas a este modelo já eram buscadas no século XIX, por exemplo.15

Em segundo lugar, a noção de habitus tende a reforçar a idéia de que o indivíduo é

determinado, em última instância, pelo coletivo ou por suas relações sociais objetivas. A

ênfase de Bourdieu parece recair sobre aspectos normativos, deixando pouco espaço para a

atividade subjetiva. Como observou Yves Clot, “o sujeito não é mais que um agente, um

efeito de interseção, uma persistência por inércia, um rastro que não se revela, senão

através de condições idênticas àquelas que o produziram”.16

13

BOURDIEU, “A ilusão biográfica”, op. cit., p. 186. 14

Giovanni Levi destaca o livro Tristram Shandy, de Sterne (séc. XVIII) como o primeiro romance moderno,

justamente por chamar atenção para a extrema fragmentação de uma biografia individual. Ver LEVI, “Usos

da biografia”, op. cit., p. 170. Sabina Loriga lembra André Gide, Robert Musil e Virgínia Woolf, como

referências para pensar como a literatura tem lidado com o indivíduo. Ver LORIGA, Sabina. “A biografia

como problema”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro,

FGV, 1998, p. 244-5. Sobre a noção de contexto, ver REVEL, “Microanálise e construção do social”. In:

REVEL (Org.), op. cit., p. 27. 15

LORIGA, ibidem, p. 246. 16

CLOT, Yves. “La outra ilusion biografica”. História y Fuente Oral, n. 2 – Memória y Biografia.

Barcelona, 1989, p. 36.

114

Assim, ao lado da “ilusão biográfica”, haveria uma outra ilusão: a objetivista, que

supõe ser possível ajustar as disposições individuais às posições sociais, considerando que

o sujeito somente se revela na ação. Clot chama a atenção para o fato de que a

subjetividade não é simplesmente um “acontecimento interior”, oposto às atividades

objetivas. A subjetividade constitui “uma atividade singular de apropriação”, que precisa

ser levada em conta. A biografia pode ser vista como um exercício capaz de conjugar a

história social – que constantemente coloca o sujeito diante de novos problemas – e a

história individual, no curso da qual o sujeito se depara com uma pluralidade de caminhos

a considerar.17

Explorando o tema um pouco mais, Giovanni Levi complexifica a reflexão sobre a

possibilidade de escrever sobre a vida de alguém. Mais especificamente, destaca três

aspectos relativos à biografia, que considera pouco analisados: as incoerências entre as

normas no interior de um sistema social, o tipo de racionalidade que é atribuído aos atores

sociais e a relação entre indivíduos e grupos.

Propõe que a biografia vá além de apontar as contradições entre a norma e seu

funcionamento, verificando o caráter intersticial da liberdade individual e descrevendo o

modo como os sistemas normativos efetivamente funcionam. Esse funcionamento não

pode ser visto apenas como o resultado exclusivo de um desacordo entre regras e práticas,

mas, também, como fruto de incoerências estruturais, de fissuras existentes no interior das

próprias normas, que favorecem práticas diversificadas. Dessa forma, o exercício

biográfico pode contribuir para demonstrar que a liberdade de escolha dos indivíduos é

consciente, mesmo sendo cultural e socialmente determinada, o que só é possível graças à

margem de manobra, de interpretação das regras, de negociação, que as contradições

inerentes ao sistema de normas permitem aos atores.18

Quanto ao problema do tipo de racionalidade atribuído aos atores, observa que a

biografia freqüentemente constrói agentes totalmente informados, cujas atuações são

consideradas socialmente “normais” e “uniformes”. São atores inteiramente racionais,

imunes a dúvidas e sem incertezas. Sua proposta é tentar configurar formas de

racionalidade mais seletivas e abertas a possibilidades, dúvidas e incertezas. Por fim, Levi

considera importante que a biografia investigue a relação entre indivíduo e grupo,

buscando enfrentar o problema da constituição e durabilidade desse último – de modo a

17

CLOT, “La outra ilusion biografica”, p. 36-7. 18

LEVI, “Usos da biografia”, op. cit., p. 179-180.

115

percebê-lo como algo dinâmico –, ao mesmo tempo, em que considera a margem de

liberdade do indivíduo.19

As biografias sobre Capistrano de Abreu tocam nesse universo de questões. Mas,

antes de examiná-las, é preciso considerar os diferentes “usos” do biográfico. Isso porque,

pode-se observar, no Brasil, a existência de uma tradição biográfica, que serve como meio

de humanizar a história e, dessa forma, difundir uma pedagogia cívica através do exemplo

de uma vida.20

Na virada do século XIX, duas obras de Joaquim Nabuco se destacam – Um

estadista no Império (1898) e Minha formação (1900) –, ambas divulgadas na imprensa

antes da publicação em livro. O primeiro, uma espécie de história do Império, elaborada a

partir da trajetória do Conselheiro Nabuco de Araújo e, o segundo, um misto de

autobiografia e literatura de formação do próprio autor.21

Já era grande, nesse momento, o

investimento feito pelos institutos históricos, particularmente, pelo Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, no sentido de compor galerias de “homens ilustres”, através de

elogios, saudações22

e necrológios. Foi nas páginas da revista do IHGB que, em 1840,

surgiu uma seção inteiramente dedicada a homenagear os mortos ilustres.23

Entre meados do século XIX e a década de 1930, muitas obras chamam a atenção

por utilizar recursos biográficos, observando-se variações entre os usos da biografia: 1) na

produção historiográfica, como, por exemplo, em D. João VI no Brasil (1908), de Oliveira

19

LEVI, “Usos da biografia”, op. cit., p. 179. Nesse ponto, a crítica se dirige a Roger Chartier, para quem as

representações individuais e coletivas possuem gênese semelhante. Ver CHARTIER, Roger. A história

cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990. 20

ENDERS, Armelle. “O „Plutarco brasileiro‟: a produção de vultos nacionais no Segundo Reinado”.

Estudos Históricos – Dossiê Heróis Nacionais. Rio de Janeiro, vol. 14, n. 25, 2000, p. 41-62; GONÇALVES,

Márcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. São

Paulo, FFLCH-Dep. de História, tese de doutorado do PPGHS, 2003. Ver, também: BITTENCOURT, Feijó.

“A biografia no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Revista do IHGB, vol. 240, jul.-set., 1958, p.

127-151. 21

Outros exemplos de (auto)biografias do século XIX: Plutarco brasileiro (1847), Felinto Elísio e sua época

(1891) e Memórias do meu tempo (1897), todos de Pereira da Silva; O Marquês de Caxias (1867), de José de

Alencar; Biografia de frei Camilo de Monserrate (1887), de Ramiz Galvão; Épocas e individualidades

(1889), de Clóvis Beviláqua; Esboços biográficos (1858 e 1862), Biografia de Hipólito José da Costa

Pereira (1871), O general José Joaquim de Andrade Neves (1869) e Memórias do Visconde de São Leopoldo

(1873), todos do Barão Homem de Mello etc. 22

A entrada de novos sócios no IHGB era acompanhada por uma saudação, escrita por um dos membros.

Essa saudação era publicada na revista do Instituto. No caso de instituições como a Academia Brasileira de

Letras, além da saudação do novo sócio, era comum que esse fizesse o elogio de seus antecessores e,

especialmente, do patrono de sua cadeira. 23

Trata-se da seção “Brasileiros ilustres pelas ciências, letras, armas e virtudes etc...” da Revista do IHGB.

Ver ENDERS, op. cit.. Quanto aos dicionários bio-bibliográficos da primeira metade do século XX,

destacam-se os de Guilherme Studart, Dicionário Bio-bibliográfico Cearense (1910-1915); Liberato

Bittencourt, Homens do Brasil (1914-1917); Sacramento Blake, Dicionário Bibliográfico Brasileiro (1883-

1902); Argeu Guimarães, Dicionário Bio-Bibliográfico Brasileiro de Diplomacia, Política Externa e Direito

Internacional (1938); e Velho Sobrinho, Dicionário Bio-Bibliográfico Brasileiro (1940), entre outros.

116

Lima; 2) no romance histórico, como O príncipe de Nassau (1926), de Paulo Setúbal; 3) na

literatura, como Memórias do sobrinho de meu tio (1868), de Joaquim Manuel de Macedo;

Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis; No hospício (1905), de

Rocha Pombo; e O Ateneu (1888) – espécie de autobiografia romanceada –, de Raul

Pompéia; 4) na literatura escolar, distinguindo-se os livros didáticos e os chamados “livros

de leitura”;24

5) nas autobiografias e memórias, exemplificadas por Como e porque sou

romancista (1893), de José de Alencar; Reminiscências (1908) e Trechos de minha vida

(1911), do Visconde de Taunay; e O meu próprio romance (1931), de Graça Aranha; e 6)

nas próprias biografias, como José Bonifácio, o velho e o moço (1920), de Afrânio Peixoto;

João Caetano dos Santos (1927), de Adamastor Vergueiro da Cruz etc. É possível

localizar, também, uma série de artigos com teor biográfico publicados em jornais,

revistas, separatas e/ou reunidos em coletâneas, tais como: O Marquês de Caxias (1867),

de José de Alencar; Simon Bolívar (1911), de Rocha Pombo;25

O Duque de Caxias (1903)

e Francisco Ramos Paz (1920), ambos de Capistrano de Abreu etc.

Não se trata de classificar todos os trabalhos citados como biografias, mas de

considerá-los como obras que mobilizam recursos da biografia na construção de diferentes

tipos de texto. Entre esses recursos está o uso de uma narrativa centrada na trajetória de um

indivíduo, relacionando-a a acontecimentos históricos ou ficcionais, por vezes, tecendo um

paralelo entre a trajetória individual e a da nação. Ao identificar o uso desses recursos em

diferentes gêneros de textos é preciso lembrar duas discussões. Uma, que analisa a relação

entre biografia e história.26

Outra, que trata da questão do sujeito na narrativa literária.27

Trata-se de pensar, portanto, nos usos possíveis da biografia ou do biográfico na

elaboração de trabalhos historiográficos, romances, livros didáticos, “livros de leitura”

escolar e, como é mais óbvio, nas memórias pessoais.

24

A chamada “literatura escolar nacional”, que incluía livros didáticos e “livros de leitura”, também

contribuiu para divulgar uma história calcada na biografia de “grandes homens”. Ver, por exemplo: Lições de

história do Brasil (1861), de Joaquim Manuel de Macedo; e História do Brasil ensinada pela biografia de

seus heróis (1890), de Silvio Romero. 25

O artigo de Rocha Pombo foi publicado no livro Contos e Pontos, de 1911. Nesse texto é possível localizar

certo empenho no sentido de conjugar história e biografia. Ver observações a respeito em VECCHI, Roberto.

“Estilhaços de ausências: vidas como texto em Olga, de Fernando Morais, e No Hospício, de Rocha Pombo”.

In: DECCA, Edgar Salvadori de e LEMARE, Ria (Orgs.). Pelas margens: outros caminhos da história e da

literatura. Campinas, Unicamp; Porto Alegre, UFRGS, 2000, p. 191-209. 26

Ver, por exemplo, MOMIGLIANO, Arnaldo. “History and biography”. In: FINLEY, Moses (Org.). The

legacy of Greece. Oxford, University of Oxford Press, 1984, p. 155-184. 27

Ver ALBERTI, Verena. “Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa”. Estudos Históricos.

– Dossiê Viagem e Narrativa. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, 1991, p. 66-81; e LIMA, Luiz Costa. Sociedade e

discurso ficcional. Rio de Janeiro, Guanabara, [1986]; Idem. Aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa.

Rio de Janeiro, Rocco, 1989.

117

Houve certa renovação do gênero nos anos 1920, sendo que, no Brasil, o verdadeiro

boom veio a ocorrer entre as décadas de 1930 e 1950, quando se destaca a produção de

Octávio Tarquínio de Souza – reunida nos 10 volumes da História dos Fundadores do

Império, publicados em 1958 – e livros como Memórias: essas minhas reminiscências

(1937), de Oliveira Lima; Minhas memórias dos outros (1934), de Rodrigo Otávio; Minha

vida (1934), de Medeiros e Albuquerque; Memórias de um senhor de engenho (1948), de

Júlio Bello; O velho Félix e suas “Memórias de um Cavalcanti” (1959), de Félix

Cavalcanti de Albuquerque; Um senhor de engenho pernambucano (1959), de Aníbal

Fernandes etc.

Segundo Márcia de Almeida Gonçalves, essa renovação foi inspirada por um

movimento internacional de publicação de biografias, que suscitou discussões acerca da

potencialidade histórica e literária do exercício biográfico.28

Paralelamente, esses

diferentes usos da biografia conviveram com as transformações historiográficas das

primeiras décadas do século XX, que, progressivamente, criticaram a escrita biográfica,

minimizando o papel dos indivíduos na história. Apesar da tradição no uso da biografia nas

histórias política e literária brasileiras e, também, como forma de educação cívica,

prevaleceu, na área mais acadêmica, um “olhar desqualificador” sobre o empreendimento

biográfico.29

Pesquisas recentes têm procurado romper com essa perspectiva. Alguns trabalhos

apontam a existência, por exemplo, de narrativas (auto)biográficas inaugurais, que servem

de parâmetro para outras biografias. Um exemplo é a biografia do Duque de Caxias, Vida

do grande cidadão brasileiro (1878), de Joaquim Pinto de Campos, que, segundo Adriana

Barreto de Sousa, funda uma matriz discursiva sobre Caxias que permanece inalterada até

a década de 1980.30

O caso de Capistrano é diferente, pois não se observa a existência de uma única

narrativa biográfica capaz de influir sobre outras. A “matriz discursiva” sobre esse

28

Márcia de Almeida Gonçalves analisa as discussões internacionais sobre a biografia ocorridas após a I

Guerra Mundial, recuperando as leituras de alguns críticos literários brasileiros, como Humberto de Campos

e Alceu Amoroso Lima, sobre aqueles que eram então considerados como os mestres da moderna biografia:

Lytton Strachey, André Maurois, Emil Ludwig e Stephan Zweig. Ver GONÇALVES, Em terreno movediço,

op. cit., especialmente p. 91-146 e p. 147-199. 29

É importante observar que, tanto a historiografia quanto as teorias literárias se empenharam na

desqualificação da biografia, produzindo o que Maria Helena Werneck chamou de “antibiografismo”. Ver,

por exemplo: WERNECK, “As poéticas de elogio ao homem de letras”, op. cit., p. 22; e, também,

LEVILLAIN, “Os protagonistas: da biografia”, op. cit., p. 158; CHAUSSINAND-NOGARET, Guy.

“Biográfica (História)”. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário de Ciências Históricas. Rio de Janeiro,

Imago, 1993, p. 95-97. 30

Ver SOUZA, “Entre o mito e o homem”, op. cit., p. 95.

118

historiador deve ser buscada, inicialmente, nas muitas pequenas histórias que foram

contadas sobre ele oralmente e que circularam por meio de textos memorialísticos. Em

seguida, deve ser buscada não apenas nas biografias, mas em uma variedade de textos, que,

de diferentes modos, consolidaram determinadas interpretações e imagens do biografado,

reproduzidas ao longo de décadas, tanto por biógrafos quanto por historiadores e cientistas

sociais. Lembro que três dos textos que servem como referência para conhecer a trajetória

e o pensamento de Capistrano, fundando “matrizes discursivas” sobre ele, foram

produzidos em função do primeiro centenário de nascimento do historiador, em 1953. São

eles: Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira, de José Honório Rodrigues;

Capistrano de Abreu: vida e obra do grande historiador, de Pedro Gomes de Matos; e

Capistrano de Abreu: tentativa biobibliográfica, de Hélio Vianna. Apenas os dois últimos

possuem um teor biográfico.

Após rastrear, ainda que minimamente, esses diferentes usos da biografia no Brasil,

passemos à apresentação de um conjunto de biografias sobre Capistrano de Abreu, listadas

no quadro a seguir:

OBRA ANO AUTOR FORMATO

Capistrano de Abreu:

o Homem e a Obra (Primeiro ensaio crítico-

biográfico)

1931 Alba Canizares

Nascimento

Separata de discurso

Há cem anos nascia Capistrano de Abreu 1952 Raimundo de

Menezes

Separata de artigo

publicado em periódico

Capistrano de Abreu: ensaio biobibliográfico 1953 Hélio Vianna Livro

Capistrano de Abreu: Vida e Obra do Grande

Historiador (Edição do Centenário)

1953 Pedro Gomes de

Matos

Livro

A vida de Capistrano de Abreu

(Curso Capistrano de Abreu)

1953 Rodrigo Otávio

Filho

Conferência publicada em

periódico

Considerações sobre Capistrano de Abreu

(Curso Capistrano de Abreu)

1953 Mozart Monteiro Conferência publicada em

periódico

Capistrano de Abreu – historiador

(Curso Capistrano de Abreu)

1953 Barbosa Lima

Sobrinho

Conferência publicada em

periódico

Capistrano de Abreu e a cultura nacional

(Curso Capistrano de Abreu)

1953 Múcio Leão Conferência publicada em

periódico

O avô que eu conheci

(Curso Capistrano de Abreu)

1953 Honorina de Abreu

Monteiro

Conferência publicada em

periódico

Capistrano de Abreu

(Conferência no Ministério da Educação e

Cultura)

1953 Edgar de Castro

Rebello

Conferência publicada em

periódico

Capistrano de Abreu: um homem que estudou 1956 Raimundo de

Menezes

Livro

Capistrano de Abreu: tentativa biobibliográfica 1969 José Aurélio

Saraiva Câmara

Livro

119

Sob o nome de biografias estão aí incluídos, não apenas os livros publicados com

esse fim mas, também, os artigos cujo teor é caracteristicamente biográfico, devido à

ênfase na trajetória de vida e nos aspectos relativos à individualidade. Os necrológios

também poderiam ser incluídos aqui, no entanto, optou-se por tratá-los separadamente,

pois constituem um tipo muito específico de texto biográfico, produzido imediatamente

após a morte do indivíduo biografado.31

O trabalho de Alba Canizares Nascimento – apresentado como “primeiro ensaio

crítico-biográfico” – é um extrato do discurso pronunciado pela autora na ocasião de sua

entrada na Academia Carioca de Letras. Trata-se de um elogio a Capistrano, patrono de sua

cadeira, publicado em separata com apoio da Sociedade Capistrano de Abreu.32

O livro de Pedro Gomes de Matos33

foi publicado por ocasião do I Centenário de

Nascimento do historiador. É uma fonte notável para autores como Rodrigo Otávio Filho,

Mozart Monteiro e Hélio Viana, por exemplo. Contudo, a utilização desse trabalho por tais

autores não se dá em função das interpretações sobre o biografado que Matos propõe, mas

dos documentos e textos sobre Capistrano que ele reproduz.

Outros trabalhos elaborados por ocasião do Centenário são o de Hélio Vianna34

premiado pelo Ministério da Educação e Cultura – e os dois textos de Raimundo de

Menezes.35

Sobre o livro de José Aurélio Saraiva Câmara, cabe lembrar que recebeu o

Prêmio Otávio Tarquínio de Souza de melhor ensaio biográfico.36

31

Ver capítulo 1. 32

NASCIMENTO, Alba Canizares. Capistrano de Abreu: o homem e a obra. Primeiro ensaio crítico-

biográfico. Rio de Janeiro, Briguiet, 1931. 33

MATOS, Pedro Gomes de. Capistrano de Abreu, Vida e Obra do Grande Historiador. Edição do

Centenário. Fortaleza, A. Batista Fontennele Editora, 1953. 34

VIANNA, Hélio. Capistrano de Abreu: ensaio biobibliográfico. S/l, Ministério da Educação e Cultura,

1953. O concurso foi instituído pela Lei n. 1896, de 02/07/1953, especificamente destinada a comemorar o

centenário de nascimento de Capistrano de Abreu. 35

MENEZES, Raimundo de. Capistrano de Abreu: Um homem que estudou. São Paulo, Melhoramentos,

1956. Esse livro faz parte da série Grandes Vultos das Letras, lançada pela Editora Melhoramentos, com o

objetivo de valorizar personalidades do mundo das letras jurídicas, da área de história, da crítica literária etc.

O subtítulo parece ter sido extraído de OTÁVIO FILHO, Rodrigo. “A vida de Capistrano de Abreu”,

publicado na Revista do IHGB, n. 221, out.-dez. 1953, p. 47. Antes desse livro, Menezes havia publicado o

texto “Há cem anos nascia Capistrano de Abreu”, como separata da Revista Investigações, ano V, outubro-

novembro-dezembro, n. 51, 1952. 36

CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Capistrano de Abreu: tentativa biobibliográfica. Prefácio de Djacir

Menezes. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1969. A comissão que concedeu o Prêmio Otávio Tarquínio

de Sousa de melhor ensaio ao livro de Saraiva Câmara foi composta por Pedro Calmon, Hélio Vianna e

Leonardo Arroyo. A “bio-bibliografia” foi publicada em 1969, como parte da coleção Documentos

Brasileiros (n. 136), então dirigida por Afonso Arinos de Melo Franco. O cearense Saraiva Câmara,

engenheiro por formação, serviu o Exército a partir dos anos 1940, dedicando-se ao magistério militar como

professor de matemática. Desenvolveu estudos sobre a história do Brasil, sendo autor dos seguintes títulos:

Aspectos do domínio holandês no Ceará (1956); Um aspecto da tradição militar cearense (1959); O tempo e

os homens (1967); e Fontes cearenses de Euclides da Cunha (1967). Também desempenhou funções na área

de segurança pública e na Universidade Federal do Ceará. Foi membro do Instituto do Ceará.

120

No caso dos textos de Barbosa Lima Sobrinho, Múcio Leão e Honorina de Abreu

Monteiro (todos analisados no capítulo anterior),37

é preciso dizer que seus objetivos não

são exatamente biográficos, pois tratam de diferentes questões, como a revelação de

Capistrano como historiador, sua contribuição para a cultura nacional e seu lugar na

memória familiar, respectivamente. No entanto, são trabalhos que fazem referências à

trajetória de vida de Capistrano a fim de alcançar seus objetivos. Foram incluídos no

quadro em função desse teor biográfico, sendo necessário distingui-los dos demais.

Os textos de Mozart Monteiro, Edgar de Castro Rebello e Rodrigo Otávio Filho

(também analisados no capítulo 2)38

se ocupam, de diferentes formas, da vida de

Capistrano. Ao lado dos trabalhos de Lima Sobrinho, Múcio Leão e Honorina de Abreu

Monteiro, constituem discursos lidos nas conferências organizadas pelo Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro, durante as comemorações do I Centenário de Nascimento do

historiador, em 1953. Reproduzem algumas histórias sobre o homenageado e estabelecem

uma cronologia para sua trajetória, revelando um conteúdo biográfico.

Esse conjunto de trabalhos de teor biográfico, que procura conjugar a trajetória de

vida, a personalidade e a obra de Capistrano de Abreu, pode ser visto como parte de um

processo de valorização dos “homens de letras” no âmbito nacional. Um tipo de cultura

comemorativa que se desenvolveu em torno de escritores, artistas, cientistas e intelectuais,

entre os séculos XVIII e XIX, com repercussão no século XX. Em meio a essa cultura

comemorativa – constituída por cerimônias, exposições, publicações, panegíricos,

visitações a locais identificados com a vida do homenageado etc., as biografias têm um

lugar especial. Entre outras coisas, elas contribuem para o desenvolvimento do interesse

por aquilo que é identificado como a face humana do biografado, e não apenas por seus

feitos literários, intelectuais, científicos ou artísticos. Em função disso, os biógrafos

costumam utilizar instrumentos capazes de auxiliar na compreensão da interioridade do

indivíduo, recorrendo aos depoimentos daqueles que com ele conviveram; aos estudos

sobre o caráter e sua relação com o meio e a origem (racial ou social); à psicologia; à

análise da obra e do contexto, vistos como capazes de fornecer elementos para a

compreensão da vida, entre outros recursos. Também buscam inspiração nos diversos tipos

37

LIMA SOBRINHO, Barbosa. “Capistrano de Abreu, historiador”. Revista do IHGB, vol. 221, outubro-

dezembro, 1953, p. 67-91; LEÃO, Múcio. “Capistrano de Abreu e a cultura nacional”. Revista do IHGB, vol.

221, out.-dez., 1953, p. 102-119; MONTEIRO, Honorina de Abreu. “O avô que eu conheci”. Revista do

IHGB, vol. 221, out.-dez., 1953, p. 182-193. 38

MONTEIRO, Mozart. [“Considerações sobre Capistrano de Abreu”]. Revista do IHGB, vol. 221, out.-dez.,

1953, p. 151-181; REBELLO, Edgard de Castro. “Capistrano de Abreu”. Revista do IHGB, vol.221, out.-

dez., 1953, p. 204-213; OTÁVIO FILHO,”A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 46-66.

121

de narrativa, do elogio ao romance, passando pela poesia e pelo teatro, a fim de

desenvolver formas eficazes para transmitir aquilo que se tem como a “verdade íntima”.39

Essa cultura comemorativa parece ter sido fundada sobre a crença na existência de

uma espécie de dívida para com determinados indivíduos. Cabe investigar o modo como

essa dívida se instaura, considerando os diferentes modos como ela é paga. Entre esses

modos está a reconstituição biográfica, que pode ser pensada como um tipo de produção de

memória, que contribui para a mitificação de autores e obras e a criação de tradições

literárias, artísticas, intelectuais e científicas. Em meio às disputas pelo legado, que

envolvem lembranças e esquecimentos, ocorre a escolha de precursores e seguidores, em

um movimento que articula passado, presente e futuro.

Entre as biografias sobre Capistrano relacionadas no quadro anterior, foram

escolhidas para análise: as de Alba Canizares Nascimento, Pedro Gomes de Matos, Hélio

Vianna, Raimundo de Menezes e José Aurélio Saraiva Câmara, todos membros da

Sociedade Capistrano de Abreu (1927-1969).40

O objetivo é compreender seus eixos

narrativos principais, para além da identificação de concordâncias e divergências.

3.2. Capistrano biografado

A primeira biografia sobre Capistrano foi escrita poucos anos após sua morte.

Trata-se do já citado Capistrano de Abreu, o homem e a obra, de Alba Canizares

Nascimento (1931). Esse primeiro exercício biográfico propõe um roteiro que vai do

retrato físico, passando pela infância e juventude, assim como, por breves observações

acerca das variadas experiências do biografado como polígrafo (jornalista, naturalista,

etnógrafo, geógrafo, poliglota, homem de letras, estilista, causeur, artista e historiador).

Também recupera aspectos de sua vida familiar, das amizades e de sua personalidade

excêntrica. Para completar, algumas “amostras” de seu pensamento são revistas,

culminando com observações sobre seu enterro seguidas pela lembrança da morte. Essa

última permite evocar o homenageado como alguém que ainda vive através da memória.

A autora destaca elementos que considera capazes de singularizar o biografado ou,

em outras palavras, de caracterizá-lo como um ser único, excepcional, dotado de talentos

exemplares. Esses “talentos” são de dois tipos: os morais, relacionados à origem sertaneja

de Capistrano; e os criadores, associados a sua capacidade intelectual, sustentada por vasta

39

Ver, por exemplo, WERNECK, “As poéticas de elogio ao homem de letras”, op. cit., p. 31-45. 40

Sobre a Sociedade Capistrano de Abreu, ver capítulo anterior.

122

erudição. Assim, afirma-se a imagem de alguém que representa a “personificação máxima

de intelectualidade genuinamente brasileira”, um autodidata e polígrafo exemplar.

A caracterização do personagem se apóia sobre três pilares interligados: a aparência

física, a personalidade e o pensamento, esse último traduzido por uma obra considerada

vasta e original. Em outras palavras, ao lado do retrato do homem Capistrano (enquanto

presença física, ser moral e intelectual), uma interpretação da obra é construída. Homem e

obra sustentando-se mutuamente. A visão do autor como um pensador genuinamente

brasileiro é transposta à obra, caracterizada como marcadamente nacionalista, bem

conforme aos ventos que abrem a década de 1930.

O retrato físico é o de alguém que apresenta as características de um cruzamento

ancestral entre índios e portugueses. Nas palavras da autora, “seu corpo dizia do passado

heróico dos potiguaras e dos tabajaras”. A imagem física é conjugada à personalidade.

Capistrano, homem do interior, é caracterizado como “(...) autônomo, forte, caráter

incorruptível, pronto a reações, apto a lutas e a vencer. Tinha a fereza e a doçura dos

sertões”.41

No “ensaio crítico-biográfico” elaborado por Canizares encontram-se alguns

elementos que irão compor a imagem de Capistrano por décadas: a sabedoria (erudição,

inteligência, cultura), o desprendimento das coisas materiais ou mundanas (que fazem crer

na modéstia),42

a grandeza da alma e o patriotismo de quem dedicou a vida ao estudo do

Brasil. São elementos presentes em discursos anteriores – como ensaios, necrológios e

resenhas críticas sobre Capistrano e sua obra –, mas que adquirem novo status através do

discurso biográfico. Nele prevalece a interpretação do biografado como alguém dotado de

41

NASCIMENTO, Capistrano de Abreu, op. cit., p. [10]. Desde o fim do século XVIII, uma série de

estudiosos procuravam conjugar a análise da fisionomia ou aparência física (a exterioridade) com a análise

do caráter (ou interioridade). No fim do século XIX, os estudos fisiognômicos influenciaram diversas áreas

como a criminalística, a antropologia e a psicologia, afetando, também, a produção artística e literária. Esse

conjunto de trabalhos veio a compor a chamada “literatura fisiognômica”, com grande influência sobre a

produção de biografias até, pelo menos, os anos 1930. Em função disso, alguns consideraram que a biografia

deveria ser um retrato em letras do comportamento, das características físicas e das ações do biografado.

Johann Caspar Lavater (1741-1801), considerado o fundador da fisiognomia moderna, a definia como sendo

“a ciência de conhecer o caráter de um ser humano a partir de seus traços exteriores”. Ver GONÇALVES,

Em terreno movediço, op. cit., p. 17-19. 42

Capistrano é comparado a Diógenes (c. 404-323 a. C.), filósofo grego conhecido por seu comportamento

excêntrico e língua mordaz. Foi discípulo de Antístenes, fundador da filosofia cínica. Desprezava os

confortos da vida, vestindo-se com trapos e morando dentro de uma tina de barro (um barril), por considerar-

se um cidadão do mundo, desvinculado de lugares particulares. Seu ascetismo ostensivo e a indiferença pela

crítica alheia ficaram associados à filosofia cínica e passaram a representar um ideal de vida contra as

convenções sociais. Diógenes é comumente representado em seu barril com a lanterna na mão acesa em

plena luz do dia, à procura de “um homem honesto”, um ser verdadeiro, vivendo conforme a natureza.

Baseava sua vida no exercício e na fadiga, instrumentos que considerava necessários para dominar os

prazeres e alcançar a liberdade e a felicidade. Por sua simplicidade ostensiva, era visto por alguns como um

grande orgulhoso.

123

superioridade mental e, também, de descaso pelas coisas materiais, avesso ao orgulho e às

vaidades mundanas. Da infância e da juventude, a autora recupera elementos que ajudam a

compor um tipo rebelde, insubordinado às convenções, ao mesmo tempo inteligente e

apaixonado por livros.

O eixo principal da narrativa segue a lógica do elogio ao “grande homem”,

considerado um exemplo. Nas palavras da autora,

A glória dos pensadores, filósofos e artistas da palavra escrita é lenta, porém durável.

Gênios, santos e heróis desdenham a submissão às vantagens interesseiras do presente,

olhos fitos em ideal remontado, determinados num propósito benemérito. Admiremos os

grandes homens. Admirar eleva, engrandece, enobrece. Admirando excedemo-nos a nós

próprios, ultrapassamo-nos.43

Pedagogicamente, Alba Canizares seleciona aspectos da vida do biografado,

capazes de contribuir para sua admiração. Não importa tanto a trajetória linear regida pela

temporalidade, mas a demonstração das qualidades, do mérito do biografado, de modo a

favorecer o culto à sua memória. No entanto, o retrato de Capistrano como homem e como

intelectual é delineado em meio a elogios capazes de aproximar, mas, ao mesmo tempo, de

afastar o leitor do biografado. O mesmo apelo à memória que contribui para a construção

de um sentimento de admiração e intimidade, situa o biografado em uma espécie de

pedestal, caracterizando-o como alguém distinto (“um homem raro”) e, por isso, digno de

ser cultuado.

O livro de Pedro Gomes de Matos – Capistrano de Abreu: Vida e Obra do Grande

Historiador (1953) é dedicado ao Ceará – terra natal do biógrafo e do biografado – e,

também, ao irmão mais novo de Capistrano, Sebastião de Abreu, guardião da memória

familiar, que contribuiu para a pesquisa fornecendo documentos como cartas e fotografias.

De acordo com o próprio autor, trata-se menos de uma biografia acabada do que de um

roteiro para futura biografia. A organização do livro em duas partes – “Preliminares” e

“Juízos Críticos” – reflete a opção pelo esboço biográfico, sendo que grande parte do texto

corresponde à reprodução de depoimentos sobre o biografado, nem sempre acompanhados

por referências.

Matos propõe conjugar três elementos: o meio, o homem e o povo cearense. Uma

perspectiva teleológica guia a construção do personagem, cuja inserção na história

43

NASCIMENTO, Capistrano de Abreu, op. cit., p. [66].

124

brasileira e no cenário intelectual parece ter sido determinada por sua origem interiorana

(sertaneja). O autor caracteriza o ambiente onde nasceu Capistrano como tendo sido

marcado por “lutas e dificuldades”. Sua “alma” teria sido “plasmada” em meio a

infortúnios vencidos pela força da vontade, sustentada por uma personalidade dotada de

recursos como a tenacidade. Capistrano é inserido no rol dos escritores cearenses que

contribuíram, através de seus estudos e escritos, para a formação da nacionalidade.

Reunindo retratos, opiniões e um rico conjunto de casos contados sobre Capistrano,

Matos organiza uma espécie de mosaico biográfico, cujos marcos principais são

recorrentes: a origem familiar; os primeiros estudos; a viagem da província à Corte; o

casamento, os filhos e a morte da esposa; as amizades; a doença, a morte e as homenagens

póstumas. Desenha-se a imagem de um autodidata e polígrafo (“historiador-artista”, crítico

literário, etnógrafo, antropologista, estudioso da lingüística brasileira, geógrafo, naturalista

e filólogo), grande humanista e “homem de bem”.

O livro de Matos é contemporâneo de outros discursos, apoiados em roteiro

similar.44

São textos que recuperam opiniões sobre Capistrano, em geral depoimentos

daqueles que com ele conviveram. Visando penetrar na intimidade da vida e colocar o

leitor em contato com a personalidade do biografado, o autor apresenta um personagem

composto não apenas por elementos oriundos da natureza (do meio) e da ancestralidade,

mas por suas próprias iniciativas enquanto intelectual-polígrafo. Afirma-se a imagem de

um leitor apaixonado, pesquisador tenaz, erudito e homem modesto. Buscando caracterizá-

lo como um ser único, o autor afirma que Capistrano aprendeu tudo por si mesmo,

“projetando-se nos meios culturais do país pela força espontânea e exclusiva do seu

talento”.45

O terceiro trabalho de cunho biográfico foi escrito por Hélio Vianna, membro da

Sociedade Capistrano de Abreu. Intitula-se Capistrano de Abreu: ensaio biobibliográfico

(1953). Como foi dito anteriormente, trata-se de um livro premiado em concurso instituído

pelo Ministério da Educação e Cultura para comemorar o centenário de nascimento de

Capistrano. O itinerário recupera acontecimentos da infância e da mocidade no Ceará e em

Pernambuco, mas se concentra no período da vida de Capistrano no Rio de Janeiro.46

44

Ver textos produzidos durante a comemoração do I Centenário de Nascimento de Capistrano, em 1953,

especialmente os trabalhos apresentados durante o Curso Capistrano de Abreu, organizado pelo Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, publicado na Revista do IHGB, n. 221, outubro-dezembro 1953. 45

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 79. 46

A trajetória de Capistrano é dividida em seis fases: 1) o período que vai de 1875 a 1883, marcado pelas

atividades como jornalista e bibliotecário, culminando com o concurso para o Imperial Colégio de Pedro II;

2) os anos entre 1883 e 1889; 3) de 1890 a 1898; 4) de 1899 a 1907, com destaque para a publicação do livro

125

Partindo do nascimento, as diversas fases da trajetória de Capistrano são

reconstituídas através de acontecimentos, que vão desde os primeiros estudos na terra

natal; a breve passagem por Recife no final da década de 1860; a participação na

“Academia Francesa” do Ceará; os primeiros textos publicados; até à vinda para o Rio de

Janeiro, nos anos de 1870. Esse período da vida na Corte, depois capital federal, é marcado

pela atuação na imprensa e na Biblioteca Imperial (com destaque para a colaboração na

Exposição de História do Brasil, de 1881), assim como, pelo concurso para o Colégio de

Pedro II, em 1883, entre outros eventos.

Mas essa biografia de Capistrano é pontuada, sobretudo, pelas publicações

(apontando-se a ausência dessas em certos períodos), assim como, pela correspondência,

de onde se destacam as constantes referências à pesquisa histórica e à informação

bibliográfica. Além de fornecer uma listagem da produção capistraneana, situando-a

cronologicamente, Vianna também pontua a narrativa com breves referências ao

temperamento afetivo e à personalidade do biografado, considerada modesta e, às vezes,

pessimista. Segundo o autor, trata-se de “um homem irremediavelmente ferido pelo

destino, um descrente e um pessimista que apenas no calor das amizades procurava

compensar o malogro das perdas familiares”.47

Assim, propõe-se identificar os reflexos de

crises pessoais na produção de Capistrano. Uma lista das amizades do historiador,

composta por mais de 130 nomes, ajuda a compor o quadro.

O objetivo de Vianna é acompanhar a trajetória de Capistrano, situando-a “mais à

margem de suas obras que das abundantes anedotas que marcam as singularidades de seu

caráter”.48

Sem par entre seus contemporâneos, o biografado é apresentado como “o maior

de nossos historiadores”, mesmo não tendo escrito uma monumental história do Brasil,

como dele era esperado. Sua importância se deve à “profundidade técnica” e ao “sentido

sociológico” de seus ensaios, distintos da simples crônica e da narrativa de fatos. Trata-se

de um “precursor de nossos estudos antropogeográficos”, “pioneiro da nossa geopolítica”,

biógrafo, bibliógrafo, paleógrafo e epistológrafo, tradutor, naturalista, filósofo da história e

sociólogo. O eixo principal da narrativa é a trajetória de um homem, cuja vida foi marcada

por “lutas e dificuldades” vencidas por força da vontade, sustentada por uma forte

personalidade. Há certa ênfase nos aspectos da formação de um jovem rebelde, avesso à

Capítulos de história colonial (1907); 5) de 1908 a 1918, período de baixa produção; 6) de 1919 a 1927,

etapa final da vida. 47

VIANNA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 69. 48

Ibidem, p. 5.

126

disciplina, cuja tenacidade e imensa capacidade de leitura contribuíram para que ele viesse

a ser um “grande historiador”.

A quarta biografia foi escrita por Raimundo de Menezes e recebeu o título de

Capistrano de Abreu: Um homem que estudou (1956). O roteiro parte da “infância

tumultuosa” de um menino que “sempre se mostrou rebelde para os estudos”, mas que veio

a se tornar um dos mais metódicos pesquisadores da história nacional. Esse menino

“rebelde” e “desasseado” era também um apaixonado leitor, cuja primeira fase da

existência foi marcada pela dor e pelas dificuldades da vida interiorana. Nas palavras do

autor:

De sol a sol, regava a terra com o suor do rosto. À noite, velava, lendo e relendo as obras

dos primeiros jesuítas que aportaram ao Brasil, acompanhando-os na sua tarefa de chamar

os aborígenes à humanidade. Sofria mas não se queixava. Nascera com o caráter indomável

e não era orgulhoso por que quisesse. A natureza é que o talhara com esse feitio

antipático.49

O encontro com José de Alencar é tido como um marco de mudança na vida do

jovem Capistrano, que posteriormente decidiu ampliar seus horizontes. Seria uma espécie

de detonador da ruptura com a infância e a dura vida sertaneja, vivida por alguém

“naturalmente” talhado para atividades intelectuais. A passagem pela “Academia

Francesa” do Ceará, os primeiros escritos publicados e a viagem rumo à Corte dão

continuidade à trajetória, marcada pelo acaso, que levou Capistrano ao mundo do

jornalismo carioca, na década de 1870. A conquista do cargo de oficial da Biblioteca

Imperial, para a qual foi nomeado “a pedido do Visconde de Jaguaribe” (cuja família era

ligada à sua por antiga amizade) é lembrada sem maiores especulações. É digno de nota

que esse acontecimento – a entrada de Capistrano para o quadro de funcionários da

Biblioteca, em 1879 – é sempre lembrado como tendo ocorrido por meio de concurso

público, omitindo-se o pedido feito pelo Visconde de Jaguaribe. O concurso prestado para

o Colégio de Pedro II também é lembrado, destacando-se o episódio da defesa da tese, que

contribuiu para aumentar a fama, já notória, do biografado.

Menezes recupera o perfil fisionômico de Capistrano traçado por Valentim

Magalhães no final do século XIX e por Américo Facó, no início do XX.50

Um

49

MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 6. 50

Ver p. 42 do primeiro capítulo desta tese.

127

personagem singular é apresentado vestido de modo não convencional, indiferente às

vaidades mundanas, com um “ar meio selvagem” e um “olhar daqueles que vivem para

além do bem e do mal”.51

Uma dúvida é proposta: saber quando Capistrano havia sido “mordido pelo micuim

da História”. Trata-se de enfrentar o tema da formação do historiador, sendo que esse não

possuía diploma de curso superior, não tendo freqüentado os cursos superiores de sua

época, restritos às faculdades de Direito, Medicina e Engenharia. Para Menezes, a

formação intelectual de Capistrano de Abreu se deu através da leitura continuada, o que

permite apresentá-lo como um autodidata exemplar, portador de um dom natural para as

atividades letradas. Alguém que “morava mais nas bibliotecas que em outra parte

qualquer”.52

Mas, a paixão pela minúcia e pela leitura teria criado obstáculos para a

concretização dos trabalhos, especialmente, a escrita da história do Brasil. A curiosidade

do erudito teria prejudicado as iniciativas do escritor.

Pequenos casos são contados, mencionando-se apenas o nome da fonte (oral ou

escrita). Através desses casos, desenha-se um tipo original, caracterizado por

excentricidades, em boa parte relacionadas a sua peculiar erudição e imensa capacidade de

leitura. O biografado é visto, também, como um “eterno distraído”, sempre entretido com

algum livro. Outras características consideradas excêntricas são associadas ao desprezo

pelas convenções sociais, demonstrado no modo de vestir, no comportamento recluso e nas

opiniões. Um item importante na composição do tipo é a modéstia, identificada como “a

maior excentricidade de Capistrano”. Para o biógrafo, o biografado era alguém que

“gostava de viver na penumbra, esquecido de todos e de si mesmo”.53

A narrativa confere um tom de luta contra as adversidades ao reconstituir a

trajetória de um homem de letras dedicado ao estudo do Brasil. Predomina a imagem de

um homem humilde, um “beneditino” das letras, um “rebelde livre-pensador”, que buscava

a especialidade em um mundo de diletantes.54

O eixo principal da narrativa é a trajetória de

“um homem que estudou”, alguém que pela vontade e talento nato para o estudo

conquistou posição de destaque no cenário intelectual do país, vencendo obstáculos.

51

MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 38 e 40. 52

Ibidem, p. 32. 53

É interessante observar que Capistrano também é comparado a Diógenes, filósofo da antiguidade, a

exemplo do que fez Alba Canizares Nascimento anteriormente. Ibidem, p. 60 e p. 122, nota 42, deste

capítulo. 54

Ibidem, p. 56, 64-65 e 76.

128

A última biografia analisada – Capistrano de Abreu: tentativa biobibliográfica –

foi escrita por José Aurélio de Saraiva Câmara e publicada em 1969,55

portanto, em um

contexto bem distinto dos trabalhos anteriores. Entre as imagens do jovem e do velho

Capistrano, a narrativa começa com a antecipação de uma trajetória marcada pela luta

contra adversidades e segue com a apresentação da paisagem social onde nasceu

Capistrano, o “berço cearense”, visto como uma espécie de fonte dos seus atributos e

singularidades. Ou seja, nada de novo. Reitera-se a construção dos anos 1950.

O biógrafo valoriza a autonomia do biografado, cuja trajetória é vista como isenta

de ajuda alheia, atenuando-se ou, até mesmo, negando a importância das relações sociais.

O valor e a capacidade do indivíduo são enfaticamente frisados, de modo a sustentar o mito

do “homem de letras” que se fez sozinho, por força e capacidade próprias. Uma grande

desproporção é apontada entre “as agruras da caminhada e a grandeza dos sucessos” do

biografado, alguém que lutou e venceu em meio a sofrimentos. O autor observa um

contraste entre uma vida frágil, porque sofrida, e uma obra robusta, reforçando a marca da

humanidade no perfil de um homem ilustre, situado sobre um pedestal que ele mesmo

construiu. O objetivo parece ser despertar a empatia pelo biografado, heroicizando, mas,

também, humanizando sua trajetória. Capistrano é o “provinciano” que venceu na Capital,

algo bastante comum na história de outros “homens de letras” do final do século XIX, mas

que na biografia elaborada por Câmara aparece amplificado a ponto de apresentá-lo como

um caso excepcional.

A narrativa recua até o período colonial, a fim de caracterizar o lugar de origem do

biografado como um cenário de lutas nacionalistas. Mais especificamente, Capistrano é um

homem nascido “na fronteira entre a praia e a caatinga” (entre o litoral e o sertão) e, em

decorrência disso, sua “complexa personalidade estava fadada a traduzir o drama daquela

antinomia geossocial”. A explicação para esse destino vem logo a seguir: “ligado ao litoral

pela cultura e pelo estudo, ele, que veio a ser um dos brasileiros mais cultos do seu tempo,

era psíquica e fisicamente um sertanejo autêntico”.56

Era, a um só tempo, “civilização” e

“barbárie”, ou o melhor de sua síntese.

Em uma paisagem social marcada pela presença do complexo agrário, considerado

capaz de moldar o caráter de seus habitantes, situa-se a família do biografado, os Honório

de Abreu, que viviam no sítio de Columinjuba, em Maranguape, desde o final do século

XVIII. A religiosidade ajuda a compor o retrato de uma família tradicional do interior do

55

CÂMARA, Capistrano de Abreu, op. cit. 56

Ibidem, p. 7.

129

Ceará, proprietária de terras e de homens. A infância é apresentada como um período de

“convivência e cordialidade” e, ao mesmo tempo, de “austeridade e fervor religioso”. O

marco inicial de sua vida intelectual é localizado no momento do aprendizado das

primeiras letras, com um mestre-escola do interior. Munido com pena de pato e tintura

vegetal, Capistrano aprendeu a escrever. Para o biógrafo, esse foi o ato inaugural de uma

vida dedicada ao estudo do país: “foi o ponto de partida, o início do desmatamento da

floresta onde se encerravam incomparáveis tesouros. A pena de pato haveria de se

transformar numa das penas mais autorizadas do Brasil”.57

Como em outras biografias, a lembrança das breves passagens de Capistrano pelo

Ateneu Cearense (1863-1864) – importante instituição de ensino da época – e pelo

Seminário Episcopal de Fortaleza (1865-1866) permite relacionar o nome do biografado a

outros nomes importantes do mundo das letras, que também passaram por tais instituições.

Além disso, também ajuda a caracterizar o jovem Capistrano como um “rebelde nato”,

avesso às convenções sociais e ao ensino mais tradicional. Rejeitando a vida rotineira do

sertão, Capistrano:

Desde a infância orientou-se para os livros a sua sede de saber, a qual, só através da leitura

satisfaria todas as valências daquele espírito ávido de conhecimento. Antes de tudo

autodidata, foi, desde menino, um devorador de livros, um apaixonado ledor que, só muito

a contragosto, superporia a esta outra qualquer atividade (...) Amava ele os livros a seu

modo, como autodidata que seria até a morte, orientando a formação da sua cultura pelo

que lhe aprazia ler e estudar. Escolhera uma direção e nela ia penetrando a fundo,

indiferente às seduções que surgissem a sua volta, coerente e obstinado neste modo de agir

e de pensar.58

Um ato de vontade, impulsionado por um dom natural, fez com que o biografado

recusasse o ensino ordenado tradicional e desprezasse os diplomas. Segundo Câmara, ao

contrário de grandes nomes de seu tempo, “pouco lhe importava o título de bacharel, pois o

simples cascabulho valia muito mais do que a maioria dos doutores”. Constrói-se a

memória de um leitor obsessivo, que se opôs à dominante tradição bacharelesca do letrado

brasileiro.59

Transformando Capistrano em uma espécie intelectual-síntese, o biógrafo

expurga aspectos desviantes, de modo a compor uma trajetória exemplar.

57

CÂMARA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 5-10, 16 e 22. 58

Ibidem, p. 34. 59

Ibidem, p. 37.

130

Muitas páginas são dedicadas à passagem de Capistrano pelo Recife, entre os anos

de 1869 e 1871. Momento considerado decisivo para sua formação intelectual, ainda que o

biografado não tenha, efetivamente, freqüentado a importante Faculdade de Direito da

cidade. Esse período é interpretado como um momento de revelação mental, quando uma

mudança foi desencadeada em função do contato com as novas correntes do pensamento

científico européias então circulantes. No entanto, o processamento pleno das idéias

apreendidas no Recife se daria, somente, no Ceará, para onde Capistrano retornou em

1871. Foi lá, “no isolamento do seu recanto cearense”, que, segundo o biógrafo, ele

prosseguiu sua “luta silenciosa” em busca da liberdade através do conhecimento. Foi em

Fortaleza, entre os anos de 1871 e 1875 – caracterizada como uma cidade onde

fervilhavam movimentos intelectuais e literários –, que Capistrano encontrou condições

propícias para o seu desenvolvimento. Mas, eis que, “cumprindo a predestinação da raça”

(cearense), Capistrano “fez-se ao mar”, deixou a terra natal (onde retornaria apenas uma

vez, após nove anos), levando consigo um poderoso instrumento, supostamente capaz de

abrir-lhe portas: uma “cultura admirável”.60

A vida no Rio de Janeiro, a partir de 1875, é pontuada por acontecimentos relativos

às atividades profissionais, à família e aos amigos. Parte significativa do texto é dedicada à

análise da relação entre o homem Capistrano e sua obra. Para Câmara:

Descrever uma vida como a de Capistrano de Abreu é enfrentar um seríssimo tropeço: o

paradoxo que representa a humildade do homem ante a majestade da obra; a timidez e a

indiferença do operário face à audácia e à afirmação granítica do trabalho realizado. Na sua

história, o homem diz pouco e a obra diz tudo.61

Capistrano é apresentado como alguém que não buscava tesouros, mas respostas

para suas indagações. A biografia constrói a imagem de um homem “pessimista, modesto e

sem vaidades” por natureza, atormentado pela busca da perfeição, tida como uma “marca

iniludível do homem superior”.62

Em um momento já distante daquele marcado pela comemoração do primeiro

centenário de nascimento do historiador (em 1953), Câmara reafirma algumas

60

CÂMARA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 44-45 e 48-90. O encontro com José de Alencar, em 1874 –

fato lembrado por todos os biógrafos de Capistrano – é utilizado por Câmara não para apontar o possível

apoio dado pelo escritor cearense a seu conterrâneo desconhecido, mas para demonstrar a admiração de um

homem ilustre pela erudição e inteligência de um jovem intelectual sertanejo. 61

Ibidem, p. 121. 62

Ibidem, p. 91 e 124.

131

interpretações e reproduz aspectos comuns às diferentes biografias sobre Capistrano, tais

como: a valorização da origem sertaneja do biografado; a ênfase no autodidatismo, na

capacidade nata para a leitura e as atividades intelectuais; a caracterização de um homem

modesto, humilde e alheio às vaidades; as excentricidades expressas no comportamento

avesso às convenções sociais e no modo de vestir; a “paciência beneditina”; a

personalidade indecifrável, os obstáculos surgidos ao longo da vida etc. São características

e fatores que contribuem para tornar o indivíduo único, configurando um caso excepcional.

O eixo principal da narrativa é a trajetória de um homem que viveu “penosas e

adversas condições” e cuja erudição foi posta a serviço do país, vindo a produzir uma

inflexão na historiografia brasileira. Narra-se a vida de alguém que nasceu em um meio

marcado pelo “sistema patriarcal e agrário, rotineiro e pobre”, desfavorável ao exercício da

inteligência, sem estímulos para o saber, mas que, apesar disso, tornou-se “um cruzado da

inteligência”, um homem que “lutou, com obstinação e destemor, pela conquista de

vitórias que seriam menos dele do que nossas”.63

Para compreender o processo de “enquadramento da memória” sobre Capistrano é

útil identificar todos esses aspectos comumente lembrados. A repetição é um indício da

eficácia do exercício memorialístico, sendo que, nesse exercício, os não-ditos ocupam

lugar especial. Lembranças e esquecimentos se complementam, de modo a favorecer (ou

não) a aceitação da memória.64

As biografias ocupam um lugar especial nesse processo.

Entre outros discursos, é através dessas narrativas que o indivíduo é dado a ver. Na

construção de Capistrano de Abreu como uma “singularidade” – para usar o termo

proposto por Nathalie Heinich65

– nota-se a ênfase atribuída a determinadas características

de sua individualidade, algumas das quais se refletindo na aparência física, na imagem

corpórea do biografado. Destacam-se os aspectos relativos à origem sertaneja, à rebeldia, à

erudição e à modéstia.

Observa-se, explicitamente, o empenho de alguns intérpretes no sentido de reforçar

os laços que uniam Capistrano à terra natal. Como muitos intelectuais de sua época,

Capistrano deixara a província rumo ao Rio de Janeiro (Corte e, depois, capital federal),

onde consolidou sua vida profissional. É notável o investimento na demarcação das origens

sertanejas de Capistrano, que são também as do Brasil, segundo a interpretação

63

CÂMARA, Capistrano de Abreu, p. 27. 64

POLLAK, Michel. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos – Dossiê Memória. Rio de

Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15; Idem. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos – Dossiê Teoria

e História. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. 65

HEINICH, Nathalie. La gloire de Van Gogh: essai sur l‟anthropologie de l‟admiration. Paris, Seuil, 1991.

132

predominante a partir da primeira metade do século XX.66

Origens nas quais alguns

biógrafos vislumbraram as tendências de sua obra posterior. Afirmaram eles que a força de

Capistrano, expressa em seus pensamentos, atitudes e escritos, emanava de sua origem

interiorana. A vida no sertão teria favorecido sua introspecção, seu amor pela leitura e sua

capacidade reflexiva, não distraída pelo cosmopolitismo que, acreditavam alguns,

influenciava as mentes do litoral. A associação entre a origem sertaneja / indígena de

Capistrano e sua capacidade para o estudo é algo comum nas biografias. Essa capacidade

“nata” ou natural corresponderia à tenacidade, à persistência, à paciência para longas e

extenuantes pesquisas. A origem sertaneja ajuda a conformar a imagem de um herói

intelectual com cores nacionais, pois, diante das agruras da vida no sertão, “o homem ali

nasce herói”,67

sendo capaz de vencer obstáculos à sobrevivência e à obtenção de

conhecimento.

Além do empenho em caracterizar o biografado como um autêntico sertanejo,

observa-se a construção de sua imagem como um rebelde. A rebeldia é identificada já na

infância, quando o menino Capistrano resistia ao ensino tradicional, apegando-se aos

livros. Longe de ser um exemplo de bom aluno, de aprendiz exemplar, trata-se de alguém

que construiu a si mesmo através de uma solitária atividade de leitura. Mas, a grande

rebeldia de Capistrano teria sido a rejeição das convenções sociais, sobretudo aquelas

relacionadas ao meio intelectual. Esse traço rebelde o teria acompanhado por toda a vida,

sendo localizado pelos biógrafos no modo de vestir; na recusa em participar efetivamente

das principais instâncias de consagração do meio literário-intelectual de sua época; nas

opiniões mordazes sobre alguns de seus contemporâneos; no enfrentamento da

historiografia considerada “oficial”. Enfim, no que alguns de seus poucos críticos

identificaram como antipatia e ironia ferina.

É possível considerar que a valorização da “rebeldia” como uma característica de

determinados “homens de letras” esteja relacionada a um conjunto de elementos oriundos

de locais e épocas distintas, que ajudaram a construir um determinado modelo de

intelectual, visto como alguém que se opõe a convenções sociais e conservadorismos e/ou

se manifesta em prol de causas públicas. Diferentes exemplos de rebeldia estão presentes,

por exemplo, nos subliteratos franceses do Antigo Regime; nos escritores românticos

alemães, do final do século XVIII; no intelectual do fim do século XIX, que empunha

66

Ver o primeiro capítulo da tese. 67

CANIZARES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. [11].

133

bandeiras reivindicatórias, lutando pela justiça e pelo bem comum; nos intelectuais ligados

a movimentos revolucionários, tais como o ocorrido na Rússia, em 1917.

Mas, além de “rebelde”, Capistrano é definido nas biografias como um erudito,

“um homem que estudou”,68

alguém cujo saber foi posto a serviço do conhecimento do

país através de estudos diversos sobre a geografia, a lingüística indígena e, principalmente,

a história colonial. A imagem de polígrafo prevalece em muitas falas, sendo possível notar

os investimentos que o conduziram ao domínio da história, ao longo do tempo. Sua

trajetória passando a ser confundida com a própria história da história no Brasil. A imagem

do erudito estudioso se confunde com a do grande leitor. A capacidade de leitura de

Capistrano é um item que acompanha toda a narrativa de sua trajetória, sendo identificada

já na infância e naturalizada. Há sempre algum caso, contado em toques de humor e

nostalgia, que ajuda a lembrar a paixão do biografado pelos livros e a distração que isso

provocava. Trata-se de um homem distraído, imerso no mundo dos textos, pouco atento à

vida cotidiana, a ponto de não dar atenção à própria aparência.

Uma das características utilizadas na qualificação de um “homem de letras” é a

erudição. Ela se destaca, sobretudo, no caso daqueles que se dedicam ao estudo histórico,

uma vez que a própria história da história como disciplina identifica sua origem em uma

dupla tradição: a filosófica e a erudita. Essa última remonta ao Renascimento e é

comumente associada à figura do antiquário: um erudito dedicado ao estudo da

Antigüidade ou de tudo o que diz respeito ao antigo, que domina línguas mortas,

conhecimentos esotéricos, detalhes minuciosos sobre costumes, instituições, artefatos etc.

Por meio de uma série de procedimentos, os antiquários desenvolveram métodos críticos

de pesquisa, sempre em busca de provas capazes de estabelecer fatos e não tanto relacioná-

los entre si. O erudito procura a completude e dá grande valor a bibliografias extensas,

transcrições exatas e notas de rodapé. Diferenciando-se dos historiadores “modernos”,

acreditam que, diante de um conhecimento que se revela sempre insuficiente, a história só

pode produzir a síntese efêmera e provisória.69

A imagem do erudito como um grande leitor, que domina detalhes desapercebidos,

foi associada, no Brasil, a nomes como Francisco Adolfo de Varnhagen, Capistrano de

68

OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 47; MENEZES, Capistrano de Abreu, op.

cit.. 69

Sobre erudição e antiquariado, ver, por exemplo: FURET, François. “O nascimento da história”. In: _____.

A oficina da história. Lisboa, Gradiva, s/d, p. 109-135. Originalmente publicado em H – Histoire, n.1, março

de 1979; MOMIGLIANO, Arnaldo. “O surgimento da pesquisa antiquária”. In: _____. As raízes clássicas da

historiografia moderna. Bauru, EDUSC, 2004, p. 85-117; GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da

erudição. Pequeno tratado sobre a nota de rodapé. Campinas, Papirus, 1998.

134

Abreu, José Maria da Silva Paranhos (Barão do Rio Branco), Benjamin Franklin de Ramiz

Galvão, Vieira Fazenda e Rui Barbosa, só para citar alguns exemplos. São figuras

importantes do mundo diplomático e político, assim como, das bibliotecas, arquivos,

instituições de ensino e academias de letrados. O erudito aparece associado a um tipo de

conhecimento – obtido através da leitura extensa e intensa de livros e documentos – que

pode e deve ser mobilizado em meio a discussões sobre a escrita da história nacional, os

limites do território, as especificidades da língua etc. Isso indica que, longe de ser algo

restrito a gabinetes de antiquários, a erudição também é um item importante dos debates

políticos mais amplos, sendo utilizada para produzir argumentos de autoridade.

Capistrano de Abreu é visto por seus biógrafos como um grande erudito, em termos

de conhecimento da história colonial brasileira, que incluía estudos sobre corografia e

língua indígena. Esse reconhecimento supõe a existência de uma especialidade capaz de

distingui-lo de outros historiadores e “pensadores da história”, cujos interesses se

dispersavam entre a história do Brasil, a história universal e a análise de temas

contemporâneos. Capistrano chegou a recusar a oferta de lecionar história universal no

Colégio de Pedro II, alegando que prestara concurso para a cadeira de Corografia e

História do Brasil. Em função dessa recusa foi posto em disponibilidade.70

Além de sertanejo, rebelde, leitor exemplar e erudito, Capistrano também é

caracterizado como um “homem modesto”. A modéstia aparece relacionada tanto à origem

interiorana quanto ao que aqui é identificado como um modelo moral do “homem de

letras”. Os biógrafos parecem querer afirmar que, por oposição ao homem do litoral,

cosmopolita, orgulhoso de sua cultura e empenhado na divulgação do próprio nome, estaria

o homem do interior, modesto e íntegro, pouco atraído pelas futilidades da vida

contemporânea, pouco afeito às convenções sociais e sem interesses materiais. A

valorização da origem interiorana pode ser associada à defesa de um determinado modo de

conduta e de posicionamento do “homem de letras” frente à sociedade. O letrado deve ser

um abnegado, atuando sempre em defesa do bem comum e não do próprio interesse.

Persiste a idéia de que o “homem de letras” deve ser introspectivo e modesto, evitando

alardear sua capacidade superior de compreender e julgar o mundo.71

70

Ver detalhes do concurso no primeiro capítulo, p. 37. Sobre a erudição de Capistrano, ver também

PEREIRA, Lúcia Miguel. “Um crítico”. O Estado de São Paulo, 05/12/1949. 71

Euclides da Cunha também foi lembrado como um exemplo de “homem de letras” humilde e modesto,

alguém que não se “apavonava”, pois “suas vestes eram simples” e, “seu tipo, desprentencioso”. Mônica

Pimenta Velloso observa que Euclides encarnava o “bom caipira”, cuja trajetória permitia associar a origem

interiorana do escritor à valorizada origem interiorana da própria nacionalidade. Esse vínculo do escritor com

o sertão, expresso em sua origem e em sua obra, foi um aspecto capitalizado pelo Estado Novo na

135

3.3. Um modelo de intelectual

O valor da introspecção e da modéstia no mundo das letras é bastante relativo, não

favorecendo consensos. Atores do espaço público por excelência, os intelectuais almejam

exibir-se, tornando-se conhecidos por suas interpretações, sustentadas pelo estudo e por

argumentos de autoridade. Contudo, a introspecção e a modéstia correspondem a

qualidades muito valorizadas e ostentadas no meio, ainda que sejam identificadas como

parte de um jogo retórico e memorialístico, que visa estabelecer uma imagem do

intelectual a ser difundida e guardada.

É possível construir uma relação entre esse modelo de “homem de letras” modesto

e introspectivo – do qual Capistrano parece ser um exemplo, no século XX – e os modelos

europeus existentes desde, pelo menos, o século XVII. Cabe, inicialmente, lembrar que a

condição de “homem de letras” no século XVIII era definida pelo fato de pertencer a

instituições e vivenciar formas de socialização, sendo, portanto, incompatível com o retiro,

a solidão, o afastamento dos espaços de sociabilidade. No entanto, desde o Seiscentos,

identifica-se a existência de discursos sobre a condição de “homem de letras”, que

rejeitavam as práticas socializadoras, revelando intenções morais e pedagógicas. Seguindo

a lógica do ascetismo, tais discursos defendiam a idéia de que os letrados precisavam

cultivar as atividades do espírito, tornando-se introspectivos através do estudo e buscando

ser úteis à sociedade. Afastando-se do mundo das paixões e divertimentos, deveriam ter

vida modesta, sem, contudo, recusar lisonjas. Deixando de lado os interesses materiais, o

“homem de letras” poderia buscar a própria glorificação através de emulações.

Segundo Roger Chartier, a primeira obra dedicada ao “homem de letras” foi o livro

do jesuíta Daniello Bartoli, Dell’Huomo di lettere difeso e emendato parti due, de 1645,

reeditado na Itália oito vezes no mesmo ano, tendo alcançando dezoito edições até 1689.

Foi traduzido em francês (1654), inglês (1660), alemão (1677), castelhano (1678) e latim

(1693). Em 1769, foi traduzido novamente para o francês pelo jesuíta Delivoy, com o título

de L’Homme de lettres. Esse livro exemplar propõe aos letrados que produzam de acordo

com o modelo do ensaio antigo, defende o mecenato dos poderosos e associa a atividade

intelectual ao desinteresse absoluto. Cinco anos antes da tradução de Delivoy, o francês

Jean-Jacques Garnier, da Academia de Inscrições e Belas Artes, publicou uma obra

consagração do nome de Euclides como “o número um” do Brasil, uma espécie de escritor-modelo do Estado

Novo. Ver VELLOSO, Mônica Pimenta. “A literatura como espelho da nação”. Estudos Históricos – Dossiê

Os anos vinte. Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p. 239-263; e, também, ABREU, Regina. O enigma de Os

sertões. Rio de Janeiro, Rocco/Funarte, 1988, p. 323.

136

intitulada L’Homme de lettres (1764), onde define o “homem de letras” como: “aquele que

tem por principal interesse cultivar o seu espírito através do estudo para se engrandecer e

tornar mais útil à sociedade”. Elaborando um modelo de letrado diferente daquele que

freqüentava os salões parisienses, Garnier defende que a atividade do “homem de letras”

deve pressupor o afastamento do mundo. Afirma que a escrita é superior a conversa e que

o letrado deve guiar sua vida pela aceitação de uma “pobreza honesta”, não mendigando

gratificações, pensões, patrocínios e proteções. As únicas “recompensas literárias”

consideradas legítimas são aquelas que contribuem para “lisonjear o amor-próprio”, como

as condecorações e, também, os cargos, empregos e postos, vistos como uma espécie de

prêmio ou privilégio concedido pelo Estado. A glória seria a recompensa maior para um

homem de ciência e intelecto.72

Considerando tais referências, é possível supor a existência de, pelo menos, três

modelos de “homem de letras”, entre os séculos XVII e XVIII, observando que todos

contribuíram para a valorização da carreira das letras, contra a opinião daqueles que a

menosprezavam. O primeiro modelo se baseia no argumento de que a conduta dos letrados

deve ser regida pelo desinteresse absoluto. Desinteresse que não é considerado

incompatível com o mecenato dos poderosos. O segundo é identificado no século XVIII,

quando o mundo das letras é regido pelas regras de sociabilidade dos salões e academias,

que favorecem o exibicionismo e as vaidades. Diante disso, o “homem de letras” deve ser

sociável, disposto a conversações e aberto às convenções sociais. Contrapondo-se a essas

regras do salão, o terceiro modelo de conduta defende o afastamento do mundo, das

paixões e dos entretenimentos. De acordo com essa lógica, o “homem de letras” não

deveria mendigar gratificações, pensões, patrocínios e proteções. As únicas recompensas

consideradas dignas são aquelas que de alguma forma pudessem contribuir para “lisonjear

o amor próprio”. Nos três casos, a glória seria a recompensa maior para um homem de

ciência e intelecto, sendo que, ao lado das condecorações, os empregos públicos também

podiam ser aceitos como uma espécie de prêmio ou privilégio concedido pelo Estado a

uma atividade considerada útil e sem interesses pecuniários. Em suma, o engrandecimento

próprio e a utilidade social deveriam ser os principais objetivos dos “homens de letras”.

72

Ver CHARTIER, Roger. “O homem de letras”. In: VOVELLE, Michel (Dir.). O homem do iluminismo.

Lisboa, Presença, 1997, p. 143-144. Essa perspectiva de que a glória é o bem maior a ser alcançado pelos

homens de letras é compartilhada por outros intérpretes, como, por exemplo, Lord Camden, para quem “a

glória é a recompensa da ciência, e aqueles que são dignos desprezam toda e qualquer consideração mais

mesquinha” (1774). CAMDEN apud CHARTIER, A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na

Europa entre os séculos XIV e XVIIIe. Brasília, UnB, 1994, p. 42, nota 22.

137

Tais modelos podiam ser questionados mediante o estabelecimento de uma relação

entre a atividade de estudo, de pensamento e inspiração e a produção de mercadorias.

Relação que, provavelmente, se tornou possível com a publicação dos textos por meio da

impressão (século XV), e que ganhou força na segunda metade do século XVIII. A idéia de

que a glória é a maior recompensa da ciência e do intelecto se diferencia da idéia de que o

trabalho de escrever e pensar pode ocasionar lucro financeiro. Em outras palavras, o

mundo intelectual e o mercado não deveriam estabelecer vínculos “diretos”, pois que o

produto da atividade intelectual não é uma mercadoria, ao menos, não como outra

qualquer.73

Tradicionalmente, a independência do “homem de letras” se opunha à invenção

criadora, havendo uma estreita ligação entre a submissão dos escritores a uma clientela ou

ao mecenas e a visão da obra como um bem útil e desinteressado, sem valor monetário,

mas dotado de valores como a raridade e a originalidade. No século XVIII, a situação se

modificou. A atividade dos “homens de letras” passou a ser remunerada como um trabalho

e submetida às leis do mercado, sendo que a “ideologia do gênio criador e desinteressado”

pôde servir como uma espécie de garantia da originalidade, algo necessário para a

determinação do valor da obra a ser vendida. Em outras palavras, de acordo com a lógica

tradicional, o “homem de letras” freqüentador do grand monde não precisava nem devia

viver da pena, mas dos seus bens, dos seus encargos ou da proteção de um mecenas. Ele

tendia a desprezar os impressos, porque eles poderiam perverter os antigos valores da

intimidade e da raridade associados à literatura da Corte. Seu público preferencial era

aquele escolhido entre seus pares. Também preferia a circulação em manuscrito e a

dissimulação do nome próprio sob o anonimato da obra. Com o estabelecimento da ligação

entre as atividades de escrita/pensamento e a produção mercadológica, surgiu uma nova

“economia da escrita”, exigindo a visibilidade do autor, visto como o criador de uma obra

original, da qual ele poderia legitimamente esperar lucro não apenas simbólico.74

A análise dessas transformações do mundo das letras ajuda a compreender o valor

que a obra e seu autor vieram a adquirir ao longo dos séculos XVIII, XIX e da primeira

metade do século XX. Contudo, não se deve considerar apenas o valor monetário da obra.

Sua importância relaciona-se, também, à sua capacidade – que tem grande valor, sobretudo

73

CHARTIER, A ordem dos livros, op. cit., p. 43. 74

Ibidem, p. 42-44. Esse modelo de “homem de letras” freqüentador do grand monde, que vive do mecenato,

se opõe ao caso dos chamados subliteratos, estudados por Robert Darnton. Ver, por exemplo, DARNTON,

Robert. Boêmia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo Regime. São Paulo, Companhia das

Letras, 1987.

138

político – de produzir interpretações, gerar consensos, representar ideais, sustentar mitos e

símbolos. Essa capacidade se ampliou enormemente com a expansão dos nacionalismos ao

longo do século XIX. Tornou-se, mesmo, uma necessidade em função da qual alguns

autores foram alçados ao panteão de heróis da nação, suas obras passando a ser valorizadas

como verdadeiros patrimônios nacionais.75

Nesse processo, os antigos modelos de

“homens de letras” parecem ter sido atualizados, sendo que aquele que prega a idéia de um

“gênio criador desinteressado” talvez seja um dos mais persistentes. Mesmo quando

associado à ação de engajamento, por exemplo, a noção de desinteresse parece resistir, pois

que o engajamento em causas coletivas pode ser visto como um abandono de interesses

particulares.

Para entender como esses modelos são apropriados em outros contextos, podem ser

úteis as observações de José Veríssimo – importante crítico literário e analista da

conjuntura nacional e internacional do fim do século XIX –, feitas em meio às discussões

sobre o caso Dreyfus, que, de acordo com vários autores, marcou o surgimento da moderna

categoria de intelectual.76

Para Veríssimo, que foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras,

criada em 1896, compreender o que é um intelectual é mais difícil do que defini-lo. A

princípio, a palavra intelectual, nas suas diversas acepções e empregos, indicaria “um

sujeito que, na vida, não tivesse outras preocupações que as da inteligência, e que todas as

coisas submetesse ao critério dela”. Sendo assim, o sentimentalismo estaria eliminado,

75

CATROGA, Fernando. “Ritualização da história”. In: TORGAL, Luís Reis, MENDES José Amado e

CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. S.l., Temas & Debates, s.d., p. 340. Ver,

especialmente, o item 6, A sacralização cívica da literatura, p. 339-348; GOULEMOT, Jean-Marie e

WALTER, Éric. “Les Centenaires de Voltaire et de Rousseau: les deux lampions des Lumières”. In: NORA,

Pierre (Dir.). Les Lieux des mémoire. I – La Republique. Paris, Gallimard, 1984, p. 381-420. 76

Em 1894, o capitão Dreyfus, oficial judeu do Exército francês, foi condenado por espionagem. O caso

tomou grandes proporções, envolvendo a opinião pública em suas diversas correntes políticas. Em 1896, foi

descoberto que ele era inocente. Contudo, o Exército tentou encobrir o resultado das investigações, o que

suscitou a organização de grupos contra e a favor do inocente condenado. Em 13 de janeiro de 1898, o

escritor Émile Zola publicou um panfleto intitulado J’accuse, defendendo Dreyfus e denunciando a trama da

qual ele havia sido vítima. Conquistou o apoio de escritores, jornalistas, professores universitários etc., que

assinaram um protesto contra a violação da justiça. Essa petição em favor do condenado foi publicada no dia

seguinte, sob o título de Manifeste des intellectuels, texto que simboliza o nascimento do intelectual

moderno, marcando a entrada do termo (até então utilizado de modo pejorativo) no vocabulário da história

das idéias, da cultura e da política. Ver VERÍSSIMO, José. “A França intelectual”. In: _____. Homens e

coisas estrangeiras (1899-1908). Rio de Janeiro, Topbooks / ABL, 2003, p. 79-91. Compõe a série de artigos

de Veríssimo publicados entre 1899 e 1900. Sobre o caso Dreyfus, ver, por exemplo: FACINA, Adriana.

Literatura e sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004, p. 34-37; e LAMONDE, Yvan. “L‟affaire Dreyfus

et les conditions d‟émergence de l‟intellectuel vues des Amériques”. In: TREBITSCH, Michel e GRANJON,

Maris-Christine (Dir.). Pour une histoire comparée des intellectuels. S.l., Editions Complexe / IHTP-CNRS,

1998, p. 111-123.

139

transformando o intelectual na “mais antipática e acaso desprezível coisa do mundo”.77

A

crença no poder da inteligência, vista como algo que exclui o sentimento e pode superar a

moral teria estimulado a criação de uma “aristocracia intelectual”, favorecendo a vaidade e

o esnobismo. Opondo-se a isso, Veríssimo valoriza a capacidade dos intelectuais para

contemplar “os aspectos estéticos e desinteressados da vida”, para idealizar e ambicionar

uma influência espiritual sobre a sociedade, com o amparo do renome, da glória, da fama e

da imortalidade. Defende a postura daqueles dispostos a deixar “seus calmos gabinetes de

estudo” e “laboratórios tranqüilos” para ir à rua defender suas convicções.78

Lembrando o

caso francês, mostra que os intelectuais se posicionaram contra a opinião da maior parte da

nação, servindo como exemplo da possibilidade de conjugar inteligência e emoção, pondo

ambos a serviço de uma causa justa (porque humanitária), superior a qualquer causa cívica.

O ponto principal parece ser o de que o intelectual tem o “dever”, que é também um

“direito” – por vezes transformado em missão – de colocar certos interesses acima dos

interesses políticos. Em uma conjuntura de discussões sobre a “questão nacional” e de

crítica à razão, à ciência e à erudição, Veríssimo afirma a que a vocação humanista do

intelectual deve prevalecer sobre todas as outras, dizendo que “o retraimento da ação

deletéria da política não é incompatível com um nobre ardor humano, infinitamente mais

estimável que o ardor cívico”.79

Os biógrafos de Capistrano não tocam em tais questões. Possuindo outras

preocupações, passam ao largo da análise efetiva das condições de produção intelectual-

literária, das experiências vividas pelo biografado. Tendo por objetivo constituir um

exemplo de intelectual capaz de sintetizar valores nacionais, almejam defini-lo como um

indivíduo modesto, erudito, rebelde etc. Desse modo, fazem uso de categorias que podem

ser relacionadas a modelos de “homens de letras” ou de intelectuais, que, ao longo de

séculos, serviram para orientar a conduta dos letrados, assim como, contribuíram na

elaboração de interpretações sobre os mesmos. Tais modelos podem ser vistos como um

77

Essa crítica à racionalidade, à ciência e a seus representantes ocorre simultaneamente em diversas partes do

mundo. No centro dessa crítica estão as reflexões de autores como Friedrich Nietzsche, Charles Baudelaire,

Walter Benjamin etc. 78

Ver, por exemplo, as críticas de Manoel Bomfim aos historiadores brasileiros em BOMFIM, Manoel. O

Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1930; ou

ainda, as críticas feitas pelos boêmios e humoristas aos intelectuais de gabinete em VELLOSO, Mônica

Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro, FGV, 1996. 79

VERÍSSIMO, “A França intelectual”, op. cit.

140

referencial importante para a construção de mitos e mitologias referentes ao mundo

intelectual.80

Alba Canizares, por exemplo, demonstra mais interesse em apresentar Capistrano

enquanto uma individualidade do que em inseri-lo num mundo de relações. Pedro Gomes

de Matos se apóia nas opiniões emitidas sobre o biografado em momentos distintos, a fim

de dar conta de sua apresentação. Também faz uso do meio físico, visto como capaz de

explicar as potencialidades individuais. Hélio Vianna se ocupa mais do estabelecimento de

uma cronologia, a partir da qual a obra possa ser vista em relação às diferentes conjunturas

da vida do biografado. Mas, essa cronologia não consegue nem visa dar conta da

multiplicidade de experiências vividas pelo indivíduo, incluindo aquelas relativas a sua

produção intelectual. Já Raimundo de Menezes compõe uma trajetória repleta de pequenos

casos. Parece querer (e conseguir) despertar a empatia do leitor pelo biografado, a partir da

reconstituição de falas e diálogos de alguns personagens. Supostamente, são as histórias

contadas sobre Capistrano por seus contemporâneos que o perceberiam de modo mais

autorizado. Na mesma linha, José Aurélio Saraiva Câmara busca um efeito de realidade ao

apresentar as condições gerais nas quais o biografado encontra seu lugar. Contudo não vai

além da exposição de um contexto, relacionado à vida de Capistrano no nordeste, à

infância e à juventude. Dessa exposição, extrai as razões que, segundo ele, explicam o

indivíduo Capistrano e sua trajetória particular.

De modo geral, todas essas biografias apresentam um contexto uniforme, dentro do

qual e em função do qual Capistrano teria determinado suas escolhas. Esse tipo de uso do

contexto não lida com a pluralidade de experiências e de representações sociais, através

das quais um indivíduo constrói o mundo e nele atua.81

Em outras palavras, essas

biografias, de modo geral, não visam situar o indivíduo enquanto um ser social. A

experiência do homem em sociedade, com seus conflitos e contradições é minimizada (ou,

até mesmo, excluída), de modo a favorecer o papel do destino, do acaso e da natureza, essa

última uma grande responsável pelos talentos “natos” do biografado. Essa perspectiva pode

ser relacionada a uma determinada compreensão e proposição da heroicidade, de acordo

com a qual, as realizações de um grande personagem praticamente independem da sua

inserção social, de seu desenvolvimento e experiência na rede de relações em que está

80

Dois trabalhos inspiram essa proposição: GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo,

Companhia das Letras, 1987; e TREBITSCH, Michel. “Avant-propos: la chapelle, le clan et le microcosme”.

Les Cahiers de l’Institut d’Histoire du Temps Present – Sociabilites intellectuelles. [Paris], Centre National

de la Recherche Scientifique, n.20, mars 1992, p. 20. 81

Sobre os usos do contexto, ver REVEL, “Microanálise e construção do social”, op. cit., p. 27.

141

inscrito. Trata-se aqui de um herói moderno, um homem de valores naturalizados,

impressos numa certa interioridade individual e, também, materializados no próprio

corpo.82

Nesse sentido, mesmo sem fazer uma reflexão explícita acerca do que era um

“homem de letras” na época de Capistrano, os biógrafos utilizam determinados elementos

na interpretação do biografado e na composição de sua trajetória, que se relacionam aos

modelos vigentes de conduta intelectual. Como foi visto, esses modelos acentuam a

modéstia, o desinteresse pelas coisas materiais, a introspecção, a erudição etc., estando as

biografias em clara conformidade com todos esses valores.

É possível identificar, então, os eixos sobre os quais o personagem é elaborado,

lembrando que o modo como a trajetória é contada está ligado à forma como o personagem

é construído. No caso de Capistrano de Abreu, foram identificados dois eixos básicos. O

primeiro está relacionado ao homem enquanto ser moral. Assim, as narrativas biográficas

procuram caracterizar a modéstia de Capistrano, exemplificando-a através de pequenos

casos contados por seus contemporâneos. O biografado é caracterizado por alguns, como

um “beneditino das letras”, abnegado, avesso a vaidades e convenções sociais.

Completando essa compreensão do homem, está a idéia de alguém que “fez” a si próprio,

um autodidata, que pelo exercício da vontade conduziu seu aprendizado, com o auxílio de

características natas. Trata-se de um legítimo sertanejo, descendente de tribos indígenas.

Essa interpretação sustenta uma narrativa, que, por vezes, adquire tom épico, quando se

afirma que o biografado teria superado grandes dificuldades ao longo da vida até

conquistar o reconhecimento que lhe era devido. Por vezes, observa-se a conjunção entre

dois fatores: a vontade individual e o destino manifesto já na infância.

O segundo eixo diz respeito ao Capistrano intelectual, apresentado como um leitor

apaixonado desde criança, um pesquisador insaciável, que falava várias línguas, do alemão

ao caxinauá, e que dominava as principais teorias sociais de seu tempo, assim como,

conhecia a historiografia e boa parte das fontes documentais sobre o Brasil. Esse eixo

apresenta duas variações freqüentemente associadas. Uma delas mostra o Capistrano

estudioso do Brasil, que devido a suas origens sertanejas e suposta ascendência indígena,

estaria mais próximo da realidade nacional, do “verdadeiro” conhecimento do país.

Capistrano surge, assim, como um intelectual que é um autêntico símbolo da brasilidade. A

outra, diz respeito ao Capistrano enquanto estudioso da história. Ao longo do tempo, a

imagem de polígrafo foi dando lugar à de um historiador formado pela prática da pesquisa

82

Sobre a heroicidade moderna, ver, por exemplo, CARLYLE, Thomas. Os heróis. Lisboa, Guimarães

Editores, 2002.

142

em arquivos, habilitado pelo trato com as fontes documentais, culminando com a

caracterização de um historiador atento aos métodos de pesquisa e estilos de narrativa da

moderna historiografia.

Cabe observar que, além do investimento na caracterização de um personagem,

também se observam investimentos na apropriação de sua obra. Em outras palavras, assim

como os biógrafos se empenham na caracterização da personalidade e do corpo de

Capistrano, consolidando uma espécie de modelo de “homem de letras”, também

interpretam sua produção, procurando situá-la como um exemplo de contribuição para o

conhecimento da nacionalidade e para os estudos históricos, em particular: como um

modelo de obra de historiador.

Assim como o personagem Capistrano, a obra é apresentada como algo uniforme e

grandioso, apesar do reconhecimento do aspecto fragmentado e disperso de sua produção,

e da identificação de fases distintas na sua formação e em seu pensamento. Tratando-se de

um “homem de letras”, é compreensível e esperado que sua produção intelectual ocupe

parte significativa das biografias. Por isso, o lugar ocupado pela obra de Capistrano – que

inclui livros, artigos, prefácios, traduções etc., além de sua correspondência – nas

narrativas varia conforme a imagem do biografado, que cada biógrafo pretende estabelecer:

como polígrafo, erudito, historiador e símbolo da nacionalidade. Ou seja, os biógrafos não

realizam uma análise efetiva da produção de Capistrano, optando por relacioná-la a fases

distintas de sua trajetória ou a, simplesmente, apresentá-la como algo que confirma as

qualidades intelectuais e nacionais “natas” do biografado. A obra de Capistrano é um

adendo importante para o objetivo principal das biografias, que é caracterizar o

personagem como alguém relevante no cenário nacional, por seus estudos e escritos

dedicados ao Brasil. No entanto, trata-se de um adendo e não de um objeto de análise

efetiva. Apesar disso, é possível identificar formas de apropriação da obra – com opiniões

distintas e semelhantes, sempre com a finalidade de monumentalizar seus escritos,

transformando-os em uma unidade original e homogênea. As biografias constroem uma

relação indissociável entre um autor e sua obra.83

No texto de Alba Canizares Nascimento, essa obra aparece como algo original e

criativo, que abriu “estradas e orientações”. É apresentada como “definitiva”, por possuir

83

Estamos aqui longe da visão que afirma a “morte do autor”, em defesa da autonomia do texto. Para o new

criticism e para a analitycal bibliography, por exemplo, a produção do sentido está relacionada a um sistema

de signos cujo funcionamento é automático e impessoal. De acordo com essas duas perspectivas da crítica

literária, o modo como uma obra é interpretada não tem importância para o estabelecimento de seu

significado. Além disso, a intenção do autor não é considerada relevante. Daí a afirmativa da “morte do

autor”. A esse respeito, ver, por exemplo: CHARTIER, A ordem dos livros, op. cit., p. 33-34.

143

“o selo da duração – a verdade”. Compreendendo a história como “mestra da vida”, a

biógrafa afirma categoricamente que “não havia história do Brasil antes de Capistrano”. A

visão sociológica e o uso de métodos historiográficos modernos situariam o biografado

como um marco inaugural da historiografia nacional. Segundo a autora, mesmo não tendo

escrito uma história do Brasil, Capistrano deixou toda uma orientação para a mesma,

traçada em sua obra e em suas pesquisas. Valorizando sua capacidade de síntese e de

reconstrução do conjunto, ela afirma que: “a unidade da sua obra é completa, mostrando a

integridade perfeita da sua grande mentalidade, e a revelação patente do seu valor está na

eficácia da sua atuação”.84

Interpretação distinta é feita pelo biógrafo Pedro Gomes de Matos, que caracteriza

Capistrano, antes de tudo, como um polígrafo, destacando sua contribuição em diferentes

áreas. Utilizando pequenas resenhas sobre os principais trabalhos do biografado, o autor

procura demonstrar a importância de uma produção fragmentada, porém dotada de

profundidade.85

Valoriza seu estilo simples e conciso, considerando que a paixão pela

minúcia teria prejudicado sua capacidade de elaborar sínteses gerais. Nas palavras de

Matos: “Capistrano de Abreu, realmente, não fez obra uniforme, homogênea, integral,

cujas partes, ligadas, coordenadas e travejadas entre si, se harmonizassem no grande todo,

a História do Brasil...”.86

Apesar disso, considera-o como o iniciador de uma nova fase dos

estudos históricos no Brasil, afirmando que ele foi o primeiro a traçar uma orientação

sociológica e científica para o estudo da formação da nacionalidade. No campo da pesquisa

histórica, as principais contribuições do biografado seriam a crítica de atribuição, a

periodização, as traduções e as anotações.

Hélio Vianna se ocupa, sobretudo, da localização cronológica da produção,

associada a sucessivas conjunturas (fases) da vida do biografado. Capistrano é considerado

como “o maior de nossos historiadores”, mesmo não tendo escrito uma monumental

história do Brasil, como dele era esperado. Sua importância se deve à “profundidade

técnica” e ao “sentido sociológico” de seus ensaios, distintos da simples crônica e da

narrativa de fatos. Trata-se de um “precursor” ou um “pioneiro”, que desenvolveu

pesquisas em diversas áreas, propondo novos temas e métodos. De acordo com Vianna, o

autor da melhor síntese sobre a formação do Brasil, Capítulos de história colonial (1907),

além de ter contribuído com a introdução de temas na historiografia, tais como, a caça ao

84

NASCIMENTO, Capistrano de Abreu, op. cit., p. [46]. 85

É difícil saber se as resenhas foram elaboradas pelo biógrafo ou se ele utilizou o material produzido por

outro intérprete de Capistrano. 86

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 217.

144

índio, o ciclo do gado, a conquista da Amazônia, as missões religiosas, as estradas

coloniais etc., também aperfeiçoou a crítica histórica.87

Já Raimundo de Menezes explora a imagem de Capistrano como homem de estudos

e leituras. Contudo, não há investimentos no sentido de analisar a obra ou parte dela,

apenas um esforço no sentido de compor a trajetória de “um homem que estudou”,

ressaltando a importância de suas pesquisas, apesar da não realização daquilo que dele era

esperado: a síntese da história nacional. A “incompletude” de sua produção é justificada

pelo autor através de outros intérpretes, para os quais Capistrano não cumpriu a tarefa

devido às lacunas documentais e à paixão pela minúcia, que, mais uma vez, impedia a

elaboração de sínteses.

Por fim, José Aurélio Saraiva Câmara, mesmo reconhecendo que o volume da obra

produzida por Capistrano não é grande – se comparado ao volume de seu saber –,

considera que aquilo que ele nos deixou é “definitivo” e “fundamental”. Ele ressalta que

Capistrano faz parte do rol de escritores cuja leitura provoca igual admiração pela obra e

por quem a escreveu. Quanto à persistente questão de saber porque Capistrano não havia

escrito uma história do Brasil, o autor apresenta um conjunto de razões: a deficiência

documental; o interesse do historiador por certos trechos da história, mas não pelo

conjunto; o grande conhecimento da história brasileira, capaz de produzir mais lacunas do

que certezas; a falta de entusiasmo pela tarefa, devido a um constante pessimismo e a uma

tenaz melancolia etc. Apesar disso, o livro Capítulos de história colonial (1907) é visto

como a melhor síntese da formação brasileira nos primeiros três séculos de sua

existência.88

Tristão de Athayde certa vez observou que há escritores cuja obra os ultrapassa.

Citou Machado de Assis como exemplo de um criador que desaparece diante de sua

criação, ficando em segundo plano, “atrás da cortina”. Nesses casos, buscam-se na obra os

elementos que, supostamente, podem ajudar a explicar a vida. Outros autores, ao contrário,

se tornam mais interessantes do que sua obra, “não conseguem nunca realizar-se, ficando

sempre superiores ao que dão de si”. Para Athayde, apenas os íntimos podem conhecer tais

escritores, “só quem os conheceu pode apreciá-los bem, de modo que morrem para a

87

A interpretação de Hélio Vianna difere daquela elaborada por Nélson Werneck Sodré, na História da

Literatura Brasileira: seus fundamentos econômicos (1940), onde Capistrano é avaliado como um autor

deficiente no método histórico. Para Sodré: “Faltou a Capistrano, para ser o maior de nossos historiadores, o

lastro filosófico que daria unidade à sua pesquisa e ultimaria o seu esforço imenso”. Ver SODRÉ apud

VIANNA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 101. Segundo Vianna, o ponto alto da crítica histórica

desenvolvida por Capistrano estaria expresso nos Prolegômenos à História do Brasil, de Frei Vicente do

Salvador. VIANNA, op. cit., p. 68. 88

CÂMARA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 99 e 167-168.

145

história, e mal chegam a nascer para o público”. Seria o caso, por exemplo, de Paula Ney,

Artur de Oliveira e Afonso Arinos. Haveria, ainda, um terceiro tipo de escritores: aqueles

cuja obra é tão interessante quanto a vida. Ambas, vida e obra, se complementando. Esse

seria o caso de Capistrano de Abreu.89

As biografias aqui analisadas parecem estar de

acordo com essa idéia. No caso de Capistrano, os biógrafos consolidaram formas de

individualização, considerando a figura do autor biografado como uma unidade sólida e

fundamental, capaz de servir como uma espécie de âncora para a produção escrita, de

modo que a vida explica a obra e, essa, ajuda a compreender a vida.

É importante considerar que o fato de se poder dizer “isto foi escrito por fulano”,

indica que aquilo que foi escrito não é um discurso qualquer, imediatamente consumível,

mas um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve receber um certo

estatuto. Em outras palavras, a categoria (ou função) autor não é algo que se aplica (ou se

exerce) de forma universal e constante sobre todos os discursos. Também não é algo que se

forma espontaneamente como decorrência da atribuição de um discurso a um indivíduo,

pois resulta de uma operação intelectual capaz de construir um certo ser racional a ser

chamado de autor, que permite agrupar um certo número de textos, delimitá-los, selecioná-

los, opô-los a outros textos, fazendo com que se relacionem. Cabe observar que alguns

autores se encontram em uma posição “transdiscursiva”, pois seus nomes não são

associados apenas a livros, mas a uma teoria, tradição ou disciplina. Esses autores são

chamados por Michel Foucault de “fundadores de discursividade”, pois não produziram

apenas textos, mas a possibilidade e a regra de formação de outros textos. Abriram

caminho para um certo número de semelhanças e analogias que têm por modelo ou

princípio a sua própria obra e permitiram enunciados muito diferentes dos que eles

mesmos haviam produzido.90

Os biógrafos de Capistrano, de modo geral, se empenharam no arranjo de sua

trajetória e na definição das características de sua personalidade, de modo a atribuir

significado e importância a sua existência como indivíduo e como autor. Mais que isso, o

caracterizaram como um autor nacional, cuja obra deveria ser considerada relevante não

apenas por especialistas de diversas áreas (as quais o biografado se ligava como polígrafo

que era), mas por leitores que procurassem conhecer o Brasil. Ressaltando sua origem

89

ATHAYDE, “Capistrano”, op. cit., p. 297-312. 90

FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?”. In: _____. O que é um autor? 4a edição. Lisboa, Vega /

Passagens, 2000, p. 33-34, 45-47, 50-60. Originalmente publicado com o título de “Qu‟est-ce qu‟un auteur?”,

in Bulletin de la Société Française de Philosophie, 63e année, n. 3, juillet-septembre 1969. Ver, também,

CHARTIER, A ordem dos livros, op. cit., p. 36.

146

interiorana, reforçaram os laços que o uniam a um item que, em determinado momento, foi

visto como fundamental na construção da nacionalidade: o sertão. Apresentando-o como

um homem sertanejo, transpuseram as características “natas” do autor para a obra. Tal

investimento remete a duas dimensões: a humana (universal) e a nacional. Para os

biógrafos, a trajetória de Capistrano é útil para consolidar valores humanos como a

perseverança, a tenacidade, a dedicação, a modéstia etc. Também é útil para a afirmação de

valores nacionais, identificados no interesse do biografado pelo estudo do país e, também,

na sua cultuada origem interiorana, que seria, também, a do Brasil. Supostamente, essa

dupla dimensão, humana e nacional, do personagem Capistrano sofreu alterações, em

função da especialização e institucionalização das disciplinas acadêmicas. De indivíduo

portador de valores humanos e símbolo da nacionalidade, Capistrano teria sua importância

restrita ao mundo intelectual, tornando-se “apenas” um símbolo da moderna historiografia.

Um dos pioneiros dos estudos históricos no Brasil.

Da construção do personagem e da apropriação de sua obra à narrativa de sua

trajetória, também é possível identificar os eixos principais dos discursos biográficos.

Através deles, os biógrafos estabeleceram consensos sobre a vida de Capistrano,

aparentemente imunes a críticas ou dúvidas, com exceção daquela presente na indagação

sobre porque esse historiador, considerado como o maior dos historiadores brasileiros, não

escreveu uma história do Brasil.91

As biografias estabelecem os mesmos marcos ou acontecimentos biográficos,

partindo de uma perspectiva teleológica, que recupera aspectos da vida do biografado, de

modo a justificar suas escolhas e condutas previamente conhecidas. Contudo, a elaboração

de um arranjo coerente para a trajetória enfrenta alguns obstáculos: as fissuras introduzidas

pelo indivíduo, as idiossincrasias, as contradições, enfim, tudo aquilo que configura uma

perturbadora incoerência, que os biógrafos comumente se empenham em atenuar ou,

mesmo, eliminar através do silêncio. Por vezes, essas fissuras teimam em aparecer, a

exemplo da “memória subterrânea”, à espera de uma brecha por onde possa emergir.92

No

caso de Capistrano, essas fissuras parecem estar localizadas no fato de não ter,

efetivamente, escrito uma síntese da história do Brasil, como dele era esperado; na falta de

91

Como observou Francisco José Calazans Falcon, os poucos críticos de Capistrano se detiveram muito mais

sobre o que ele não fez do que sobre o que efetivamente produziu. FALCON, Francisco José Calazans. “As

idéias e noções de „Moderno‟ e „Nação‟ nos textos de Capistrano de Abreu. Os Ensaios e estudos, 4a série –

comentários”. Acervo – Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, vol.12, n. 1 / 2, jan. / dez., 1999, p. 5-

26. 92

Ver POLLAK, “Memória, esquecimento, silêncio”, op. cit.; e, também, PORTELLI, Alessandro. “O

massacre de Civittela Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”.

In: FERREIRA e AMADO (Orgs.), op. cit., p. 103-130.

147

dedicação integral ao estudo da história; na rejeição das convenções; na crítica das

principais instâncias de consagração de sua época, assim como, na mordacidade de seus

comentários sobre os contemporâneos mais celebrados.

Através das biografias, tais arestas foram aparadas, conformando uma

individualidade exemplar. Acreditando na capacidade da biografia para descrever aquilo

que foi mais significativo na vida de Capistrano, os biógrafos acabaram por consolidar a

imagem de um homem monumento, acentuando o caráter ímpar de sua trajetória, por meio

do cruzamento entre sua vida como homem de estudos e como figura singular da sociedade

letrada. Assim, as narrativas apresentaram a trajetória de alguém que venceu grandes

obstáculos e sofrimentos, graças à força de uma personalidade tenaz, talhada pela natureza.

De modo similar, as biografias contam a trajetória de um homem nascido no interior, em

um ambiente desfavorável às atividades intelectuais, que enfrentou grandes dificuldades e

viveu muitas tristezas ao longo da vida, conseguindo conquistar um lugar entre os grandes

do pensamento de seu tempo, triunfando como um dos principais conhecedores do Brasil.

A expressão “cruzado da inteligência”, utilizada por Saraiva Câmara para definir

Capistrano, parece sintetizar bem a imagem do indivíduo que a narrativa biográfica deseja

destacar.

É possível concordar com Tristão de Athayde, quando afirma que a obra escrita por

Capistrano não completa totalmente a figura, não explica tudo o que ele foi, nem a metade

do que foi.93

De modo semelhante, o estudo da vida também não esgota o significado de

sua obra. Pode-se dizer que os significados da obra e do autor ultrapassaram a própria vida

de Capistrano. Novas leituras de ambos foram possíveis ao longo do tempo. E, se os

biógrafos contribuíram, à sua maneira, para promover uma aproximação entre o leitor e o

biografado, ao mesmo tempo, produziram elementos que permitem situá-los como agentes

históricos produtores de discursos, inseridos no tempo e no espaço social.

Por fim, cabe observar que a análise das narrativas biográficas sobre Capistrano de

Abreu deve considerar não apenas as biografias aqui expostas, mas, também, um conjunto

fragmentado de pequenos casos contados sobre o biografado. Tais casos compõem um rico

manancial onde muitos dos biógrafos não hesitaram em beber.

93

ATHAYDE, “Capistrano”, op. cit., p. 299.

148

3.4. Com quantas pequenas histórias se faz um “grande homem”?

Em vida, Capistrano de Abreu parece ter sido um tipo muito especial de

“celebridade” do mundo das letras. Freqüentador assíduo de bibliotecas, arquivos, redações

e livrarias, também podia ser visto em alguns salões, bares, restaurantes e farmácias do Rio

de Janeiro ou andando pelas ruas da cidade, em fins do século XIX e ao longo das

primeiras décadas do XX. Chamava a atenção de modo a inspirar caricaturas, lendas e

anedotas. Ao longo do tempo, uma espécie de folclore foi construído a seu respeito, com

base em observações sobre seu modo de agir e vestir, que muitos consideravam excêntrico.

Suas palavras também tiveram ressonância, sendo reproduzidas e apropriadas através de

frases de efeito, ditos espirituosos e ditados populares supostamente saídos de sua boca ou

de sua pena.

Na epígrafe que abre esse capítulo, Capistrano é lembrado como alguém de quem

se fala através de anedotas, ditos espirituosos e epigramas, prevalecendo a autoridade

daqueles que o conheceram pessoalmente. O contato com um homem célebre, seja através

de entrevistas, visitas à sua casa, peregrinações a lugares relacionados a acontecimentos

marcantes de sua vida ou, até mesmo, encontros casuais, cria a possibilidade de surgimento

daquilo que J. C. Bonnet identificou como “um rumor propagador de anedotas sobre seus

menores gestos e feitos, ampliado pela correspondência privada ou pública e pela

imprensa”.94

Esse rumor estimula a “curiosidade biográfica” ou o interesse pelos aspectos

mais banais da vida privada. Por vezes, essa “curiosidade” pode ser protegida por uma

“rede de proximidade”, uma espécie de “círculo de pactários”, responsável pela produção e

pelo controle dos rumores a serem divulgados.95

O próprio Capistrano pode ser considerado como alguém que atuou, passiva ou

ativamente, na produção de discursos sobre si mesmo e que, simultaneamente, foi objeto

do discurso dos outros. Supostamente, foi a partir dessa delicada relação entre o “eu”

individual e os outros, que surgiu o perfil moral de um homem modesto, avesso às

futilidades e a toda forma de vaidade, abnegado, dedicado aos amigos e familiares. Surgiu,

também, o perfil complementar de um intelectual erudito, apaixonado pela pesquisa e pela

leitura e não tanto pela escrita ou pela divulgação do próprio conhecimento. Foi com tais

perfis que os biógrafos lidaram de modo mais ou menos crítico.

94

BONNET apud WERNECK, “As poéticas de elogio ao homem de letras”, op. cit., p. 40. 95

WERNECK, ibidem, p. 41.

149

Alguns trabalhos de teor biográfico foram produzidos após sua morte, em 1927,

sendo possível averiguar que o conjunto de pequenas histórias contadas sobre Capistrano

foi utilizado nas biografias, fornecendo-lhes exemplos de algo que os biógrafos desejavam

afirmar. Se esse conjunto fragmentado de pequenos casos – recolhidos entre aqueles que

foram contemporâneos do historiador e contados repetidas vezes – não serviu como fonte

principal, ao menos inspirou as biografias, ilustrando as interpretações sobre o biografado.

Tais casos narram, com toques de nostalgia e humor, acontecimentos relativos ao

personagem principal (ocorridos ou não), que sintetizam e evidenciam aspectos de sua

personalidade ou do seu modo de ser, considerados significativos e, portanto, capazes de

auxiliar na composição de uma imagem singular do indivíduo focalizado. A marca da

oralidade está presente nessas histórias, comumente contadas como algo que foi dito por

alguém, nem sempre identificado. Outro ponto relevante diz respeito à ausência de registro

temporal. As breves histórias geralmente não são datadas, ainda que o local dos

acontecimentos e os nomes daqueles que os presenciaram possam ser lembrados.96

Essas pequenas histórias às quais se recorre a fim de compor uma imagem do

biografado podem ser compreendidas como um tipo de “gesto verbal”: um resultado do

trabalho da linguagem, que seleciona acontecimentos, dotando-os de um sentido que se

deseja ressaltar. Em outras palavras, o “gesto verbal” é capaz de condensar aspectos que se

quer afirmar sobre algo ou alguém, remetendo a ambos por força de sua capacidade para

sintetizá-los.97

É com tal perspectiva que tais histórias serão recuperadas, de modo a

recompor uma espécie de colcha de retalhos que envolve a figura de Capistrano de Abreu,

pois elas se repetem ao longo do tempo, ajudando a sustentar as narrativas biográficas.

Diante de pequenas variações observadas no modo como cada biógrafo as reproduz, a

opção é recontá-las mantendo seu núcleo principal, tentando evitar a utilização de aspas e

96

Dois trabalhos que ajudam a compreender essas pequenas histórias contadas sobre Capistrano são:

ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro, FGV, 2004, especialmente o

capítulo “Além das versões: possibilidades da narrativa em entrevistas de história oral”, p. 77-90; e GOMES,

Ângela de Castro. “Memória, política e tradição familiar: os Pinheiro das Minas Gerais”. In: _____ (Org.).

Minas e os fundamentos do Brasil moderno. Belo Horizonte, UFMG, 2005, p. 79-166. 97

ALBERTI, op. cit., p. 80. Verena Alberti extrai a noção de “gesto verbal” da obra do historiador da arte e

teórico da literatura André Jolles (1874-1946), intitulada Formas simples (1a edição alemã 1930; 1

a edição

brasileira 1976). A autora observa que Jolles não analisa a narrativa do ponto de vista da ciência ou da

filosofia da história, mas como fato de língua. Os “gestos verbais” são compreendidos como o resultado do

trabalho da linguagem ao selecionar, no plano dos acontecimentos, aqueles que detém o sentido que o

exercício intelectual lhes quer imprimir. Jolles analisa as “formas simples” identificando nove tipos: a

legenda, a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso, o memorável, o conto de fadas e o chiste. Por oposição

às “formas simples” estão as “formas artísticas” ou “literárias”, condicionadas pelas escolhas e intervenções

pessoais do artista/escritor. De modo distinto, as “formas simples” seriam um produto da linguagem e não do

artista/escritor. Em função disso, as “formas simples” podem ser reproduzidas ou citadas com relativa

concisão, enquanto as “formas artísticas” e “literárias” produzem algo não repetível. Ibidem, p. 80.

150

eliminando adendos considerados desnecessários para a compreensão da mensagem

principal que cada caso visa transmitir.

Uma das primeiras histórias sobre Capistrano, encontra-o ainda menino, no interior

do Ceará e lembra sua avidez pelos livros, mais interessantes que as brincadeiras infantis.

Essa história foi contada por Rodolfo Teófilo em seu texto sobre o Ateneu cearense,98

instituição de ensino onde conheceu Capistrano ainda criança. Segundo o autor, a turma

do Ateneu costumava freqüentar o morro do Coroatá (hoje morro do Moinho), onde todos

procuravam exercitar os músculos, agitando-se, dando cambalhotas e saltos mortais, exceto

Capistrano. Este, isolado do bando, deitava-se na areia, envolvido pela leitura e ali ficava

até à hora de retornar ao colégio, sendo que, “não raro acontecia, já nós em forma, o

companheiro de fila acordar o ledor, que sem ver o que se passava, continuava a ler”.99

Outra história, do mesmo teor, lembra que, certo dia, uma escrava da família Abreu

desapareceu. Um grupo foi mobilizado para procurá-la. Capistrano seguiu junto, mas, a

certa altura, também sumiu. Jerônimo Honório, seu pai, o encontrou em cima de uma

árvore, lendo, esquecido da missão que lhe havia sido atribuída.100

As histórias da infância de

um menino ledor se combinam com

as histórias do jovem Capistrano,

aluno rebelde e indisciplinado. O

boletim escolar de Capistrano

(quadro ao lado), quando aluno do

Seminário Episcopal do Ceará, foi

reproduzido por alguns de seus

biógrafos. Com esse documento foi

construída a imagem de um aluno

indisciplinado, pouco adaptado ao

ensino formal, ainda que fosse

inteligente e ávido leitor.

Características que permitem vê-lo

98

TEÓFILO, Rodolfo. “O Ateneu Cearense”. Almanaque do Estado do Ceará, 1922. 99

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 43 e 50; MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 4-5;

CÂMARA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 26-27; REBELLO, “Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 205. 100

CÂMARA, ibidem, p. 35.

Boletim Escolar de Capistrano de Abreu

no Seminário Episcopal do Ceará

1865 Outubro Novembro Dezembro

Comportamento Sofrível Sofrível Sofrível

Latim Medíocre Sofrível Medíocre

Português Medíocre Medíocre Medíocre

Aritmética Bom Bom Bom

Francês Medíocre Bom Bom

Música Mau Medíocre Medíocre

Saúde Boa Boa Boa

Catecismo Bom Bom Bom

1866 Janeiro Fevereiro Março

Comportamento Medíocre Sofrível Mau

Latim Bom Sofrível Medíocre

Português Bom Sofrível Medíocre

Aritmética Bom Sofrível Sofrível

Francês Mau Sofrível Sofrível

Música Bom Sofrível Medíocre

Saúde Boa Boa Boa

Catecismo Bom Bom Bom

Fonte: MATOS, Pedro Gomes de.

Capistrano de Abreu: vida e obra do grande historiador.

Fortaleza, A. Batista Fontenele, 1953, p. 41.

151

como alguém dotado de autonomia e aptidão para atividades intelectuais, a despeito da

avaliação negativa de sua atuação, na maior parte das disciplinas.101

Do livro de matrícula

do seminário, é comum extrair-se a observação de que “em julho de 1866 foi aconselhado

ao pai do referido aluno que o retirasse por algum tempo a fim de o emendar de sua

preguiça e vadiação”.102

Essa idéia de aluno indisciplinado e medíocre se completa com a

história da expulsão do seminário, contada por Fausto Barreto a Vicente Werneck, amigos

de Capistrano.103

No Seminário Episcopal do Ceará, Capistrano tivera um professor de Matemática

cujo queixo era “imensamente desenvolvido”, o que o transformava em motivo de chacotas

entre os alunos. Certa vez, esse professor deu a Capistrano a tarefa de formular um

problema e resolvê-lo durante a aula. O jovem aluno “concentrou-se, franziu a testa, pôs os

olhos em alvo e, por fim, escreveu: „– Se Sansão com uma queixada de burro matou mil

filisteus, quantos de nós não mataria o padre x com a sua respeitável queixada?‟”. Após

expor o problema ao professor, Capistrano teria sido expulso do colégio. Ou seja, tem-se aí

um momento fundador da construção de alguém, cuja ironia, maledicência e humor

mordaz seriam freqüentemente afirmadas.104

Essa imagem de Capistrano se completa com a história de que ele, ainda criança,

costumava se aproximar dos escravos da casa, tendo se afeiçoado a alguns. Com eles

conversava, mostrando um “vivo interesse em aprender algumas cantigas africanas, cuja

excentricidade lhe despertava a atenção”.105

Ou seja, ainda que pouco “talhado” para a

educação formal, era curioso e aberto ao aprendizado informal. A rebeldia, a aversão às

convenções e a mediocridade do estudante são, assim, apreendidas em uma chave positiva,

devido à oposição construída entre o aprendizado formal e o informal, valorizando-se o

último, que é diretamente associado à genialidade do biografado.

Após a expulsão do seminário, Capistrano voltou para casa e teria sido punido por

seu pai. Punição compatível com o grau da rebeldia que se deseja afirmar. Surge a história

de que, certa tarde, Antônio Carlos Barreto, pai do narrador Fausto Barreto, passava pela

casa de Capistrano, quando se deparou com a cena do jovem amarrado no tronco onde os

escravos eram castigados. Com o torço nu e ensangüentado ele recebia chicotadas de dois

101

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 41; CÂMARA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 31. 102

MATOS, op. cit., p. 40; MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 4; CÂMARA, op. cit., p. 31. 103

Ver MOTA, Leonardo. “Capistrano de Abreu anedótico”. Revista do Instituto do Ceará, tomo LVI, 1942,

p. 55-78. 104

MATOS, op. cit., p. 46-47. 105

Ibidem, p. 22.

152

negros, sob o olhar de seu severo pai.106

De modo teleológico, é a partir da constatação de

que Capistrano é um estudioso reconhecido e admirado por sua erudição e capacidade

intelectual, que se constrói a imagem positiva da infância e da juventude de um estudante

medíocre. A chave que sustenta essa construção memorialística parece ser a capacidade de

leitura, que permite associar qualidades naturais do biografado, a um elemento considerado

capaz de romper qualquer determinismo do meio: a vontade individual. Dessa forma, o que

se afirma é que a história de Capistrano de Abreu é a história de um grande leitor, capaz de

romper/superar o limite do convencional, do estabelecido socialmente.

A trajetória do jovem leitor rebelde e inteligente sofre uma guinada a partir de um

encontro considerado memorável pelos biógrafos. Em 1874, Capistrano conheceu o

escritor José de Alencar, que então se hospedava na casa do Coronel Joaquim José de

Sousa Sombra, líder político na localidade de Maranguape.107

O encontro com o escritor

famoso é apontado como algo decisivo na vida do jovem cearense.108

Teria propiciado o

estímulo necessário para abandonar a terra natal rumo ao Rio de Janeiro, representando um

autêntico “acontecimento biográfico”, a partir do qual sua trajetória teria tomado “um

rumo de normalidade até então desconhecido”.109

Considera-se mesmo que Alencar “foi

quem o salvou da vida injusta”,110

datando dessa época seus primeiros escritos publicados.

Essas histórias sobre um menino leitor e um jovem rebelde estão sempre integradas

aos casos que falam de um grande intelectual. Alguns deles dizem respeito a

acontecimentos que reafirmam a capacidade de leitura de Capistrano. Outros servem para

ilustrar sua personalidade excêntrica, pouco afeita às convenções sociais. Por isso, uma das

imagens mais persistentes sobre esse “homem de letras” é aquela que o apresenta como um

indivíduo dado à introspecção, qualidade considerada favorável ao estudo. Tais histórias

falam de alguém distraído, sem interesses materiais ou pecuniários, pouco atento à

aparência, ao vestuário e às convenções sociais, e sempre entretido com um livro.

Conta-se que, em certa ocasião, Capistrano hospedou-se na fazenda de Virgílio

Brígido (que contou a história a Antônio Sales), localizada próximo ao Porto Novo do

106

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 47; CÂMARA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 32-33; LEÃO,

“Capistrano de Abreu e a cultura nacional”, op. cit., p. 103. 107

Capistrano disse certa vez que devia sua vocação de historiador ao coronel. Chegou a dedicar-lhe sua tese,

Descobrimento do Brasil (1883), com os seguintes dizeres: “Ao Coronel Sombra, que me fez historiador”.

De modo semelhante, José de Alencar afirmou em seu livro Como e porque sou romancista (1893), que

devia ao coronel Sombra a produção de seu primeiro romance. 108

MATOS, op. cit., p. 55-56; MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 6-7; VIANNA, Capistrano de

Abreu, op. cit., p. 11; CÂMARA, op. cit., p. 83 e 87-90; OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”,

op. cit., p. 56; LIMA SOBRINHO, “Capistrano de Abreu, historiador”, op. cit., p. 70. 109

CÂMARA, op. cit., p. 83. 110

OTÁVIO FILHO, op. cit., p. 56.

153

Cunha, no Rio de Janeiro. Na estação de trem, entregou sua maleta a um moleque, montou

a cavalo, largou as rédeas e abriu um livro. O cavalo seguiu seu passo, enquanto o

cavaleiro, impassível, indiferente a tudo, apenas lia. Por fim, o animal aproximou-se de um

galho que derrubou o cavaleiro leitor. Quando o moleque da maleta se aproximou,

encontrou-o deitado de bruços, lendo, e indagou: “– E o cavalo, seu Capistrano?”. Ao que

esse respondeu: “– Vai ali adiante”, continuando a ler.111

O caso da distração se repete na

história dos chapéus. Capistrano costumava comparecer a um jantar semanal na casa do

ministro Francisco Sá. Sempre que o convidado se retirava, a esposa do ministro advertia

em voz alta: “– O Capistrano vai sair!”. Era um aviso para os donos de chapéus, porque o

historiador, freqüentemente, apanhava o primeiro chapéu que estivesse ao seu alcance.112

Essa imagem de homem distraído contrasta com a do leitor atento e totalmente

absorto. É isso o que fixa um outro caso, que fala de uma visita a São Paulo. Aí Capistrano

tomou o bonde de Santa Cecília, para ir visitar um amigo. Ia acompanhado por José Valdez

Corrêa, seu conterrâneo, que, a certa altura, notou que o bonde passava por lugares já

vistos. O bonde era circular e Capistrano, alheio ao que ocorria ao redor, estava lendo um

jornal.113

Outra história encontra Capistrano em uma viagem a Minas Gerais, em

companhia do recém eleito Presidente do Ceará, Moreira Rocha. Capistrano integrava a

comitiva viajando apenas “com a roupa do corpo”. Sua única bagagem seria um pacote de

livros. No trem desatou a ler no carro-dormitório. Chegando a Belo Horizonte, trancou-se

no quarto do hotel e não houve quem notasse sua presença. Ao reencontrá-lo no regresso

ao Rio, Moreira Rocha quis saber suas impressões sobre a cidade e ele, “com entusiasmo”,

respondeu: “– Excelente cidade! Muito tranqüila, muito sossegada, muito silenciosa!

Esplêndida cidade para se ler!”.114

Mas, esse homem distraído, embora fosse um leitor atento, era reconhecido como

um escritor displicente, pouco apegado aos próprios textos. Antônio Sales conta que ele

chegou a munir-se de vários cadernos, numerando-os conforme os capítulos de um livro a

ser redigido. Era visto pela rua carregando os tais cadernos, dos quais não se separava, até

que um dia os esqueceu na Biblioteca Nacional, não os procurando mais.115

Do mesmo tipo

111

CÂMARA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 147; MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 34;

MONTEIRO, [“Considerações sobre Capistrano de Abreu”], op. cit., p. 164. História extraída do livro de

Antônio Sales, Retratos e lembranças (1922). 112

MENEZES, op. cit., p. 39. 113

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 179. Essa história também foi contada por Valdez Corrêa em

seu artigo publicado na revista Carioca, já citado. 114

Ibidem, p. 35. 115

VIANNA, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 101. Antônio Sales menciona o fato em seu livro Retratos e

Lembranças (1922).

154

é a história que mostra Capistrano como uma espécie de estudioso que muito lia, quase que

exclusivamente pelo desejo de saber. Embrenhava-se em uma montanha de livros e

esquecia o mundo. Levava cinco ou seis horas tomando notas e apontamentos e, após uma

intensa pesquisa, reaparecia feliz dizendo: “– Apurei uma data de que tinha dúvida; ganhei

o dia”. Porém, segundo os narradores, quase sempre perdia as notas tomadas, deixando-as

dentro dos livros consultados.116

Conta-se, também, que teria inutilizado vários escritos,

apenas por não poder conferir pequenos detalhes. Dizia-se que tinha “escrúpulos severos”

quanto à documentação, tanto que, certa vez, adquiriu um livro antigo e caro (custou cento

e cinqüenta mil réis) para eliminar uma dúvida. Isso foi feito de imediato – folheando o

volume na rua – e, uma vez satisfeito, deu a obra de presente ao amigo que a conseguira.117

Além do propalado desinteresse pelos próprios textos, cujas cópias não costumava

guardar, foi lembrado como alguém que não se interessava por dinheiro e que era um

despojado doador de livros. Assis Chateaubriand fala do prazer que Capistrano sentia ao

doar livros, inclusive os de sua propriedade. A indiferença pelo livro lido era notória, assim

como o empenho em obter livros para presentear os amigos. Afirma Chateaubriand que

nunca viu homem de poucos recursos doar tantos livros.118

O sentido primordial dessas histórias é o de afirmar Capistrano como um grande

leitor (em termos quantitativos e qualitativos), dedicado à pesquisa em arquivos. As

atividades de leitura e pesquisa empírica surgem nelas como essenciais, em um momento

considerado – inclusive por Capistrano – como sendo de transição da historiografia. A

escrita de uma História do Brasil era planejada e esperada com ansiedade, mas, ao mesmo

tempo, sustentava-se a necessidade de estudos monográficos, capazes de sustentar uma

nova síntese, distinta da História Geral do Brasil, escrita por Varnhagen e publicada na

década de 1850.

As histórias que falam sobre a dedicação de Capistrano à leitura e à pesquisa se

completam com aquelas que falam sobre seus escrúpulos gramaticais e mau humor. Mais

exatamente, tais histórias se referem a uma intransigente defesa da escrita do nome Brasil

com s, o que indica uma veemente escolha de posição no campo dos nacionalismos da

Primeira República. Quando o Jornal do Brasil foi criado, em 1890, trazia no título o nome

do país escrito com z. Capistrano foi convidado a colaborar com o periódico, mas teria se

116

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 181; MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 35-36. Essa

história foi extraída do folhetim “A Semana”, assinado por C. e publicado no Jornal do Comércio, em

11/10/1953. 117

MENEZES, ibidem, p. 35. 118

CHATEAUBRIAND apud MATOS, op. cit., p. 253-54.

155

recusado, argumentando que considerava o título uma heresia. Consta ter afirmado que

jamais escreveria em um jornal que demonstrava tamanha ignorância pela história e pela

política. Algum tempo depois, o nome do jornal foi modificado, surgindo o Brasil com s.

Contudo, um de seus colaboradores, Afonso Celso, insistia no uso da grafia com z.

Capistrano teria ido procurá-lo, perguntando: “– Por que você escreve Brasil com z?”.

Celso respondeu apresentando razões de ordem literária e política. Argumentou que, no

Império a grafia com z era corrente. Além disso, estava com z nos documentos relativos à

Independência e nos escritos de historiadores eminentes. Diante disso, Capistrano se

irritou: “– Sabe quais são os que escrevem Brasil com z?”, indagou, para responder em

seguida: “– As zebras! As zebras!”.119

Esses pequenos casos, que ilustram as interpretações de Capistrano como um

dedicado e escrupuloso pesquisador, dotado de um senso de humor ferino e até agressivo,

completam-se com os que falam sobre sua relação peculiar com o passado e seus

personagens, assim como, com aqueles que foram seu objeto de estudo constante: os

índios.

O escritor Manuel Bomfim teria dito ao romancista Humberto de Campos que,

certa vez, encontrou Capistrano na rua e notou que alguma coisa o incomodava

intimamente, “ferindo-lhe a alma”. Diante disso, Bomfim indagou: “– Que tem você, com

essa cara?”. O historiador respondeu secamente: “– Aborrecimentos”. Ao que o outro

retorquiu: “– Aconteceu a você alguma cousa desagradável? Doença em casa?”. E

Capistrano respondeu, como se não pudesse mais se conter: “– Sabe o que é? Imagine você

que eu descobri, hoje, que a mãe de Frei Vicente foi uma cortesã, mulher de vida irregular,

de vida suspeita...”. Após fazer algumas perguntas e mudar de assunto, Bomfim despediu-

se, pensando que o “problema” com a mãe de Frei Vicente já havia sido esquecido. No

entanto, ainda ouviu de Capistrano, que coçava a cabeça intrigado: “– Que diabo! Para que

aquela senhora foi fazer isso!”.120

De outra feita, Capistrano solicitou ao coronel Luís Sombra, que se encontrava em

expedição no alto Juruá, que lhe enviasse dois índios da tribo dos caxinauás, cujo dialeto

estava estudando. Meses depois foi atendido. Indo um amigo visitá-lo, perguntou-lhe como

passavam os silvícolas. Capistrano mandou chamá-los a sua presença e, diante dos índios,

119

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 269, em reprodução de texto de Humberto de Campos;

MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 67-68. Capistrano abordou o problema da grafia da palavra

Brasil em sua tese Descobrimento do Brasil (1883). O biógrafo Raimundo de Menezes menciona que o

historiador enviou uma carta a Rodolfo Dantas protestando contra o nome do referido jornal. 120

MATOS, op. cit., p. 268, em reprodução de texto de Humberto de Campos; CÂMARA, Capistrano de

Abreu, op. cit., p. 126-27; OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 62.

156

o visitante perguntou: “– Capistrano já fala?”. E o mais moço respondeu: “– Capistrana é

burra” (sic).121

Mas, a relação com os índios não parece ter sido sempre “cordial”. Múcio

Leão conta que Capistrano submetia os indígenas que o ajudavam em suas pesquisas a um

“interrogatório implacável”. Certa vez, após um desses interrogatórios, ele chegou a ser

agredido fisicamente por um dos índios, que lhe agarrou pelo pescoço. Um amigo, Manuel

Mota, foi quem impediu que o investigador se transformasse em uma “vítima da

ciência”.122

Outro conjunto de histórias fala da modéstia de Capistrano, ressaltando sua aversão

a títulos e seu incômodo com aqueles que o procuravam em busca de conhecimento ou

informações. Deve-se atentar para o fato de que o outro lado dessa destacada modéstia é a

arrogância, às vezes interpretada de modo positivo (e, por isso, atenuada) como parte de

um comportamento excêntrico em relação à vida, a si mesmo e ao próprio trabalho. Uma

das histórias freqüentemente lembradas, que ajudam a reforçar a visão de Capistrano como

um homem modesto é aquela que fala de sua recusa em participar da Academia Brasileira

de Letras, importante instância de consagração de sua época. Em 1901, escreveu uma carta

na terceira pessoa ao amigo Guilherme Studart, dizendo: “não quis fazer parte da

Academia Brasileira e é avesso a qualquer sociedade, por já achar demais a humana”.123

Em 1923, seus amigos e admiradores planejaram comemorar seus 70 anos de idade

com a publicação de uma obra coletiva e a realização de uma festa nacional. Ao saber do

plano, Capistrano enviou um recado aos amigos, dizendo:

Segundo sou informado trama-se para meu próximo aniversário uma patuléia, poliantéia ou

cousa pior e mais ridícula, se for possível. Aos meus amigos previno que considero a

tramóia como profundamente inamistosa. Não poderei manter relações com quem assim

tenta desmoralizar-me. Custe o que custar.124

121

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 184. 122

LEÃO, “Capistrano de Abreu e a cultura nacional”, op. cit., p. 111. Capistrano chegou a viver na mesma

casa com seis índios, em momentos diferentes. Alguns foram enviados pelo Coronel Luís Sombra, outros

pelo Marechal Cândido Rondon. 123

Carta a Guilherme Studart, de 21/09/1901, vol. 1, p. 152. O caso da recusa é lembrado por CÂMARA, op.

cit., p. 176; OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 60; LIMA SOBRINHO,

“Capistrano de Abreu, historiador”, op. cit., p. 86. 124

O bilhete está datado com os seguintes dizeres: “Rio, dia do Corpo de deus, 1923”. É citado por MATOS,

op. cit., p. 67-68; LEÃO, op. cit., p. 118; e MONTEIRO, {“Considerações sobre Capistrano de Abreu”], op.

cit., p. 170-71.

157

O projeto, evidentemente, acabou não vingando. Esse homem tido por modesto

porque recusava prêmios,125

homenagens, títulos e lisonjas e, além disso, alegava dispensar

discípulos, era amigo de figuras importantes do mundo intelectual, político e diplomático

do final do Império e início da República. Não era incomum que pedissem sua intervenção

a fim de arranjar colocações para amigos ou conhecidos. Isso gerou histórias que lembram

o quanto uma indicação sua podia ser valiosa.

Leonardo Mota lembra o que aconteceu com um jovem cearense, que foi tentar a

vida no Rio de Janeiro munido com uma carta de apresentação do irmão de Capistrano. O

rapaz foi procurar o velho erudito em sua casa e ele o recebeu deitado na rede. Após ler a

carta, pegou um pedaço de papel no chão e escreveu uma pequena mensagem a lápis.

Dobrou o escrito e entregou-o ao moço, dizendo: “– Procure o Bulhões e dê-lhe isto!”. O

rapaz espantado retorquiu: “– Mas... eu nem sei quem é Bulhões, nem onde ele mora...”.

Ao que Capistrano respondeu: “– Pergunte! Quem tem boca, vai a Roma”. O rapaz saiu e

na rua pôs-se a ler o bilhete, escrito aos garranchos: “Bulhões. Este rapaz é cearense. C.”.

Ficou decepcionado e achou que Capistrano fosse louco. Posteriormente ficou sabendo que

o tal Bulhões era o ministro da Fazenda, amigo do “esquisitão”. A princípio o ministro não

quis recebê-lo, mas quando soube que ele trazia um recado de Capistrano, mandou-o

entrar. Alguns dias depois o jovem obteve uma colocação.126

Complementando a idéia de homem modesto, mas influente e poderoso, estão as

muitas histórias que falam da falta de asseio de Capistrano. São casos que reforçam a

imagem de um homem humilde, excêntrico, sem vaidades e avesso às coisas mundanas.

Conta-se que para fazer a prova do concurso para professor do Imperial Colégio de Pedro

II, Capistrano teve que pular uma janela, porque os bedéis, não acreditando que ele fosse

um dos candidatos, visto que os outros se apresentavam de casaca, o tomaram por um

louco, impedindo sua entrada na sala do concurso.127

Paulo José Pires Brandão recorda em seu livro Vultos do meu caminho, que

Capistrano era comensal do conselheiro Antônio Ferreira Viana, cuja chácara freqüentava

assiduamente. Ali ficava descalço, sem paletó, colarinho ou gravata, em mangas de camisa.

Acordava cedo e tomava banho na cachoeira. Uma tarde chegou ali o Visconde de Guaí, a

procura do conselheiro. Capistrano foi abrir o portão e recebeu o visitante, levando-o até a

125

Ver carta de Capistrano a Afonso Celso, 08/10/1917. Revista do IHGB, t. 8, vol. 132, 1917, p. 790-791. 126

MENEZES, [“Considerações sobre Capistrano de Abreu”], op. cit., p. 70. 127

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 191-92; MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 15-16.

Essa história parece ter sido contada pela primeira vez por Joaquim Pimenta, no livro Retalhos do Passado

(1949).

158

sala. Sentou-se diante dele com os pés descalços. O Visconde, que não conhecia

Capistrano, ficou a conjecturar intrigado: “Quem será esse homem? Fazer-me sala em

mangas de camisa, de pés no chão!... Quem será? Deve ser algum jardineiro bêbado... Ou

algum louco...”. Nesse instante, Viana entrou na sala e apresentou-lhe o estranho: “Aqui o

nosso grande historiador Capistrano de Abreu”. Diz o narrador que o Visconde abriu a

boca com enorme espanto.128

Há, também, a piada contada por Emílio de Menezes. O humorista diz que, em

certa ocasião, Capistrano enviou um terno à tinturaria, para ser lavado. Era um terno que

ele vestia há doze anos. Uma semana depois, aparece-lhe à porta um empregado da

tinturaria, que lhe entregou um pequeno embrulho, que cabia na mão. E como lhe

perguntassem o que seria, Emílio de Menezes concluía: “– Eram os botões, menino!”.129

História parecida diz que Capistrano foi a um alfaiate levando três botões. De modo sério

teria perguntado: “– Poderia o senhor fazer-me o grande favor de pregar um paletó nestes

botões?”.130

A princípio, é possível pensar que a fama de desleixado pode ter contribuído para

humanizar a figura de Capistrano, tornando-a bem próxima de um homem comum.131

No

entanto, parece tratar-se menos de uma humanização no sentido de identificar um “homem

de letras” aos homens comuns, do que no sentido de destacar capacidades humanas (natas

ou não) consideradas dignas de admiração. Entre as características que permitem

compreender Capistrano como um ser humano excepcional, estão a capacidade de leitura, a

modéstia e o comportamento excêntrico, identificado tanto no hábito de dormir em rede,

comer pimentas e vestir-se sem esmero, quanto na recusa a homenagens e na crítica de

instituições e homens célebres.132

Supostamente, tais características ajudaram a compor um

tipo de intelectual distinto daqueles que eram valorizados até então, em determinados

meios. Como referenciais, havia o intelectual romântico e o dandy bem vestido, com

cartola e pince-nez, freqüentador das altas rodas e, também, o intelectual boêmio,

freqüentador de bares e botequins e crítico das principais instâncias de consagração.

128

MENEZES, [“Considerações sobre Capistrano de Abreu”], op. cit., p. 39. 129

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 184-85 e 192. 130

OTÁVIO FILHO, “A vida de Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 61. 131

Isso parece ocorrer, por exemplo, no caso do político Jânio Quadros, que às vezes se apresentava com os

cabelos despenteados, caspa e roupa amarrotada, conforme observou Jefferson José Queler em trabalho

intitulado Jânio Quadros e sua imagem pública (1959-1961), apresentado no Simpósio Memórias e

narrativas (auto)biográficas, realizado durante o XXIII Simpósio Nacional da ANPUH, de 17 a 22 de

setembro de 2005. 132

Ver MOTA, “Capistrano de Abreu anedótico”, op. cit.; Idem, “Capistrano de Abreu e as pimentas”,

reproduzido por MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 239-241. Originalmente publicado no Correio do

Ceará, 04/07/1938.

159

O caso de Capistrano permite observar o estabelecimento de uma junção singular

entre saber excepcional e comportamento excêntrico. O excepcional e o excêntrico

contribuindo para compor uma espécie de mito intelectual, sem antecessores e sem par em

seu meio. Comparando Capistrano com o grande ícone da historiografia do século XIX,

Francisco Adolfo de Varnhagen (1916-1878), Barbosa Lima Sobrinho observou aspectos

que tornavam o primeiro mais humano.133

O próprio Capistrano havia dito que a figura de

Varnhagen se destacava em meio a seus contemporâneos, devido a sua “estatura elevada”,

a sua “fisionomia dura, com os olhos em que cintila o sentimento de superioridade,

empunhando a férula do decurião”.134

Para Lima Sobrinho,

De Capistrano se poderá dizer que não é menor a autoridade, nem menos apreciável a

contribuição deixada para o esclarecimento de nossa história. É preciso reconhecer que ele,

e Varnhagen, continuam a ser os mestres por excelência, pela segurança do trabalho

realizado, como pela documentação descoberta, revista, criticada. Somente que não

imaginamos Capistrano na atitude em que ele viu o Visconde de Porto Seguro, de férula em

punho, a exigir Mãos a bolos! Mãos a bolos!. Capistrano de Abreu é infinitamente mais

humano.135

Mas essa humanidade que aproxima Capistrano dos outros mortais convive com os

aspectos que permitem vê-lo como um caso excepcional, supostamente distinto dos

demais. Continuando com as palavras de Lima Sobrinho,

Todavia não esperemos dele nenhuma indulgência com o erro, com a leviandade, com a

superficialidade dos estudos. Sua indignação seria a mesma de Varnhagen, embora pudesse

preferir, em lugar da férula do centurião, a vivacidade de um comentário contundente, ou o

sarcasmo pitoresco e viril, o sarcasmo que será sempre, em nossa historiografia, o sinal

característico de seu gênio, o sulco profundo desse homem que parecia ter trazido, do

fundo do sítio de Columinjuba as revoltas e os protestos desse Nordeste curtido pelos

sofrimentos.136

133

LIMA SOBRINHO, “Capistrano de Abreu, historiador”, op. cit., p. 90-1. 134

ABREU, Capistrano de. “Sobre o Visconde de Porto Seguro” (1882). In: _____. Ensaios e estudos: crítica

e história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975, p. 146. 135

LIMA SOBRINHO, op. cit., p. 91. 136

Ibidem, p. 91.

160

É interessante notar que apenas duas das biografias utiliza a palavra gênio para

qualificar Capistrano.137

Diferentemente do indivíduo talentoso, que realiza atividades

praticadas por outros de forma mais apurada, adquirindo excelência através do exercício, o

gênio seria, sobretudo, um criador nato de algo nunca pensado ou empreendido. Nessa

acepção, o gênio é alguém que abre caminhos e descobre aquilo que escapou a seus

antecessores, revelando relações ainda não percebidas entre as coisas, demonstrando

capacidade para suplantar obstáculos com facilidade e para antecipar aquilo que ainda não

pode ser nitidamente percebido.138

Segundo Agnes Heller, a noção de gênio remete a um “conjunto único, irrepetível,

de capacidades de um ser humano individual que o distingue de outros”. Indica poderes

intensos e aumentados, capazes de enaltecer um indivíduo em detrimento dos demais.

Contudo, por paradoxal que pareça, essa noção surgiu como resultado do desenvolvimento

de uma epistemologia e de uma antropologia democráticas, pois os poderes do gênio dizem

respeito a algo humano, imanente, produzido no terreno das atividades humanas, por

oposição aos poderes transcendentais, que são da ordem do divino. No Ocidente, a noção

de gênio se afirmou na medida em que prevaleceu a concepção de que o homem possuía a

capacidade subjetiva e objetiva de criar ou descobrir algo que nunca existiu e estabelecer

um livre acesso para que os demais pudessem se apropriar dessas criações e descobertas.

Por conseguinte, o investimento no sentido de caracterizar um indivíduo como gênio não é,

necessariamente, incompatível com as interpretações que humanizam esse mesmo

indivíduo.139

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a noção de gênio sofreu sensíveis mutações,

sendo possível observar a importância, cada vez maior, atribuída ao papel da subjetividade

na caracterização do gênio. Surgiram gênios da música e das artes (plásticas e literárias),

gênios da ciência e do intelecto.140

Mesmo que o termo gênio não seja explicitamente

utilizado na maioria dos escritos sobre Capistrano, é possível deduzir a presença da noção

de genialidade nas várias caracterizações desse “homem de letras”. Sobretudo, naquelas

que dizem respeito a suas qualidades únicas e criadoras, capazes de distingui-lo de seus

137

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. [12]; e CANIZARES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. [18].

Alba Canizares Nascimento utiliza as reflexões do médico e filósofo austríaco Max Nordau (1849-1923), que

no livro Degenerescência (1893) estabelece a distinção entre gênio e talento, além de procurar demonstrar os

pontos comuns entre o gênio e o degenerado. 138

Sobre a noção de gênio, ver, também: ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro,

Jorge Zahar, 1995; e HELLER, Agnes. O homem do Renascimento. Lisboa, Editorial Presença, [1982], p.

316-330. 139

HELLER, ibidem, p. 324. 140

Ibidem, p. 324. Ver, também: ELIAS, op. cit.

161

antecessores e contemporâneos.141

Tais qualidades parecem ser de dois tipos: as natas e as

adquiridas. As primeiras remetem à origem sertaneja, que fez de Capistrano um “forte” no

plano intelectual. Nesse caso, a origem determina as qualidades. Já as qualidades

adquiridas seriam aquelas resultantes do exercício intelectual pleno e constante. Ou seja,

são fruto de um empenho próprio. Assim, torna-se possível conjugar os determinismos (da

origem e do meio), com a vontade individual capaz de vencer obstáculos. A genialidade de

Capistrano estaria relacionada a essa potencial conjunção.

Enfim, foram muitas as histórias que circularam sobre Capistrano, sendo possível

agrupá-las em torno de temas gerais, de modo a compreender a imagem pública do

indivíduo que se deseja lembrar. São histórias que falam de um menino leitor, um

estudante rebelde, um homem distraído, um leitor atento, um pesquisador escrupuloso, um

homem modesto, mas influente, um sujeito desleixado, um crítico mordaz etc. Alguns

casos são mais difíceis de relacionar a outros, porém, mesmo isoladamente, podem ajudar a

compreender a consolidação de uma imagem, representada pelo nome Capistrano de

Abreu.

Para que essas pequenas histórias possam ser compreendidas é preciso levar em

conta que sua proliferação ocorreu em um momento de grandes discussões acerca da

formação da nacionalidade, quando imperava a dúvida sobre como e quem poderia falar do

e pelo Brasil. Almejando o papel de porta-vozes da nacionalidade, os “homens de letras”

das primeiras décadas do século XX investiram no sentido de forjar uma linguagem

própria e difundir modelos de interpretação e de narrativa da nação. Além disso, se

empenharam na construção de tipos representativos do mundo do conhecimento e, mais

especificamente, na escolha de nomes da intelectualidade capazes de servir como símbolos

da brasilidade. Isso ocorreu com Euclides da Cunha, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco,

Machado de Assis e Capistrano de Abreu, por exemplo. Supostamente, esse movimento

favoreceu a desmistificação da figura do “homem de letras”, predominante até então, mas

criou novos mitos. Ao lado da representação romântica do intelectual de gabinete, distante

das ruas, sem interesse pelo interior do país, com o olhar voltado para as grandes

metrópoles européias, vestido com casaca, cartola e pince-nez, havia espaço para

141

Entre as características atribuídas a Capistrano está a capacidade de adivinhação, destacada por Humberto

de Campos, seu contemporâneo. Segundo esse intérprete, além de possuir o “faro da verdade” – sendo que “a

verdade acudia-lhe por intuição, por instinto” – Capistrano alcançou “o máximo da cultura partindo da

adivinhação. Quando abria um livro sabia, já, o que estava lá dentro”, ao contrário de outros historiadores,

que chegaram a conhecimento através da cultura. Ver CAMPOS apud MATOS, Capistrano de Abreu, op.

cit., p. 260. Originalmente publicado no jornal A Manhã, Suplemento Literário Autores & Livros, ano 10,

vol. VI, n. 5, 06/02/1944, p. 71.

162

representações menos “nobres”, como atestam os intelectuais boêmios, por exemplo.

Capistrano de Abreu talvez seja um dos melhores exemplos de um processo que permite

ver o “homem de letras” em mangas de camisa, com os pés descalços, cabelos revoltos e

língua solta. Esse mesmo processo corrobora a imagem de um intelectual genial (criador),

dotado de qualidades excepcionais, relacionadas à erudição, cujo comportamento é

excêntrico, simples e inimitável.

Enquanto Euclides da Cunha – representante máximo da ascensão profissional pelo

mérito – foi considerado gênio e santo142

e Rui Barbosa foi visto como gênio e

semideus,143

Capistrano era o exemplo do gênio criador autodidata, do homem que fez a si

mesmo através de um duplo movimento: a conquista de um saber e a construção de uma

individualidade extravagante. Seu conhecimento era fruto de qualidades natas e de um

constante exercício intelectual, capaz de ajudá-lo a vencer “obstáculos” como a origem

interiorana, a falta de recursos financeiros e de um diploma. Além disso, a atividade de

pesquisa em arquivo – a pesquisa empírica – favorecia a idéia de estudo como trabalho

árduo, por oposição à idéia de estudo como atividade abstrata relativa ao pensamento e à

inspiração. Capistrano tornara-se admirável por mostrar-se “à vontade”, sem os “adereços”

materiais que se esperava encontrar em um “homem de letras”. Sem dúvida, esses

diferentes modelos de intelectuais conviveram nos primeiros tempos republicanos,

atestando uma mudança de perspectiva no que diz respeito ao papel do “homem de letras”

e as suas formas de representação.

Segundo José Valdez Corrêa, o “anedotário” sobre Capistrano era “quase um

privativo de seus íntimos, dos que lograram a rara felicidade de conviver com o grande

esquisitão”.144

Esses casos exemplares e engraçados sobre um “velho erudito, vivo

dicionário da história pátria, mal encadernado”,145

contribuíram para que ele se tornasse

um objeto de afeição, polido com doses de humor e nostalgia. Contudo, esse espaço

privativo foi rompido, uma vez que a figura de Capistrano podia representar interesses

maiores do que aqueles defendidos por seu grupo de convívio mais direto. Em função

disso, as pequenas histórias contadas e recontadas por seus contemporâneos adquiriram

142

Sobre a meritocracia e o caso de Euclides da Cunha, ver: ABREU, O enigma de Os sertões, op. cit. 143

GONÇALVES, João Felipe. “Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis

nacionais na Primeira República”. Estudos Históricos – Dossiê Heróis Nacionais. Rio de Janeiro, vol. 14, n.

25, 2000, p. 135-161. 144

MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 177. A observação de Valdez foi extraída de um artigo já

citado, publicado na revista Carioca, cuja referência não está completa. Nesse artigo, Valdez compara o

anedotário sobre Capistrano ao que circulava sobre o humorista Emílio de Menezes, embora afirme que esse

último era mais popular, ainda que as muitas histórias contadas sobre ele não fossem verídicas. 145

FACÓ apud MATOS, op. cit., p. 33.

163

novos sentidos e atravessaram décadas, reforçando os laços entre o erudito e as novas

gerações. Tornaram-no familiar e querido, ao menos entre os intelectuais, especialmente

entre aqueles ligados ao campo dos estudos históricos.

A partir das pequenas histórias aqui revistas é possível tecer a interpretação de

Capistrano de Abreu como um intelectual carismático, que inspirava afeto e autoridade, em

função de qualidades que o distinguiam dos demais. Isso segundo seus biógrafos e todos

aqueles que registraram tais histórias, considerando-as dignas de serem lembradas, e

qualificaram Capistrano como um gênio intelectual. Segundo Max Weber, a dominação

carismática ocorre em virtude da devoção afetiva a uma pessoa, devido aos seus dotes

sobrenaturais, faculdades mágicas, revelações, atos de heroísmo, poder intelectual ou de

oratória. A fonte da devoção pessoal é o extraquotidiano (aquilo que está fora da rotina) e a

validade efetiva da dominação carismática depende do reconhecimento da pessoa

portadora do carisma – por parte dos súditos ou seguidores –, como alguém que possui

qualidades distintivas, que lhe conferem autoridade sobre os demais.146

Weber se detém no estudo do herói guerreiro, do profeta e do demagogo, que

considera como tipos puros da dominação carismática. No entanto, sua teoria é útil para

pensar o caso do intelectual carismático, que aqui está sendo delineado. Um intelectual

dotado de carisma seria aquele capaz de despertar uma devoção afetiva devido a sua

reconhecida capacidade intelectual. Sua erudição estaria acima da média, a ponto de

provocar admiração. Suas opiniões, palavras e interpretações seriam cultuadas como

dogmas ou verdades absolutas, não exigindo comprovação, pois a autoridade de quem as

emite seria considerada suficiente. Uma espécie de rede de domínio seria organizada em

torno do intelectual carismático. Seus seguidores se ocupariam da guarda de sua memória e

da propagação de suas palavras e idéias, eventualmente construindo relações com

antecessores e apontando dignos sucessores. Acontecimentos vividos, aspectos de sua

personalidade e, por vezes, da aparência (como é o caso de Capistrano) ajudariam a

compor a imagem a ser cultuada. Por vezes essa composição faria uso daquilo que foi

definido por André Jolles como memorável: detalhes que poderiam até ser suprimidos da

história, mas que são freqüentemente repetidos quando ela é narrada, devido a sua

capacidade de condensar determinados aspectos a serem lembrados.147

146

WEBER, Max. “Os três tipos puros de dominação legítima”. In: WEBER, Max. Sociologia. Organizado

por Gabriel Cohn. São Paulo, Ática, 1991, p. 128-141. Especialmente a parte sobre “Dominação

carismática”, p. 134-141. 147

Ver ALBERTI, Ouvir contar, op. cit., p. 80-81.

164

Como disse Câmara Cascudo, “muitas vezes, numa simples anedota, um homem

vive na eternidade de um povo”.148

Algo parecido pode ser dito a respeito dessas breves

histórias contadas sobre Capistrano, que, se não serviram para popularizar e eternizar seu

nome em meio a um público amplo de leitores, ao menos serviram para referendá-lo entre

seus próprios pares, contribuindo para a constituição de um imaginário acerca do “homem

de letras” dos primeiros tempos republicanos e dos estudiosos da história, em particular.

148

CASCUDO apud MENEZES, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 67.

165

II

AS CARTAS DE CAPISTRANO

166

4

As cartas de Capistrano

Pouco depois da morte de Capistrano de Abreu, em agosto de 1927, sua

correspondência começou a circular para além do circuito inicial estabelecido entre

remetente(s) e destinatário(s). Algumas de suas cartas foram divulgadas publicamente no

Brasil e em Portugal.1 Provavelmente, isso causou algum incômodo, uma vez que se

referiam a várias personalidades do mundo político e literário ainda vivas. Nessa época, o

historiador João Ribeiro observou que:

As suas cartas, inconvenientes e medíocres, formam completo inventário de seus ódios,

paixões e malquerenças (...) É triste verificar pelas suas cartas que o bom historiador é um

péssimo epistológrafo, ainda que essa última qualidade excite a curiosidade malsã das

bisbilhotices. Não sei se é realmente serviço às letras apresentar essa face noturna ou

crepuscular do grande investigador que ele foi e que mereceu respeito da sua geração e,

provavelmente, de todas as gerações (...) Para a biografia de Capistrano bastam-lhe as

cartas em suplemento ao que se sabe de sua vida.2

Algumas cartas foram doadas à Biblioteca Nacional e à Sociedade Capistrano de

Abreu, dedicada a “preservar” sua memória. Em 1928, por exemplo, um de seus

correspondentes mais assíduos, o historiador luso-brasileiro João Lúcio de Azevedo,

enviou uma carta ao então diretor da Biblioteca Nacional, Mário Behring, comunicando

sua decisão de doar o conjunto de missivas que lhe foram enviadas por Capistrano.

Escreveu ele:

1 Exemplos de cartas de Capistrano de Abreu que foram publicadas antes da primeira edição em livro de

1954/1956: Cartas de Capistrano de Abreu a José Veríssimo, Revista da Academia Brasileira de Letras, n.

118-120, 1931; Fontes para a história do Brasil: Cartas de Capistrano de Abreu a Lino de Assunção.

Publicadas e prefaciadas por Luís Silveira. Lisboa, Livraria Teixeira, 1946. 2 RIBEIRO, João. “As cartas de Capistrano” (2 partes). In: _____. Obras – Crítica, vol. VI: Historiadores.

Organização de Múcio Leão. Rio de Janeiro, ABL, 1961, p. 94-98. A primeira parte foi originalmente

publicada no Jornal do Brasil, 18/12/1927 e, a segunda, no O Estado de São Paulo, 13/10/1931.

167

Por espaço de mais de onze anos tive a fortuna de entreter ativa correspondência com

Capistrano de Abreu, e tão interessantes achei suas cartas que as guardei todas ou quase

todas. Elas encerram curiosas particularidades sobre o viver e o pensar do escritor e

poderão servir utilmente a quem um dia pretender traçar o perfil de uma figura de tanto

prestígio entre os estudiosos. Pareceu-me por isso que agora, por morte dele, o lugar

adequado para estas cartas seria a Biblioteca Nacional do Rio, para onde as dirijo (...) Aí

ficarão sob boa guarda e acessíveis aos amigos e admiradores do finado que, se a família

não fizer objeção, as poderão ver, copiar ou publicar, se assim quiserem, porque da minha

parte não me oponho a isso.3

Acontece que a família de Capistrano se opôs à liberação das cartas para consulta

ou publicação, dando início a uma disputa que envolveu a imprensa,4 a Biblioteca, a

Sociedade Capistrano de Abreu e até o Ministério da Justiça, uma vez que a

correspondência expunha a intimidade de várias personalidades ainda vivas. A divulgação

de uma parte da correspondência em periódicos, bem como, a doação para a Biblioteca

parecem ter incentivado um duplo movimento: o de recolha das missivas, principalmente

através de doações e, o de proibição do acesso às mesmas. Entre o ano da morte de

Capistrano e 1953 – quando foi comemorado o centenário de seu nascimento – a

correspondência guardada pela Biblioteca foi mantida “a sete chaves”.

O art. 106, do Decreto 8.835, de 11 de julho de 1911, responsável pela

regulamentação da instituição, dizia que a cópia de manuscritos ou impressos reservados

dependia de autorização ministerial. Em 1928, após a doação de João Lúcio – que

estimulou o interesse em divulgar as cartas – o Ministro Viana do Castelo determinou,

através de uma portaria, que a correspondência ficasse sob sigilo. Em 1931, Eugênio de

Castro, um dos fundadores da Sociedade Capistrano de Abreu, tentou consultar a

correspondência, almejando publicá-la. Não conseguiu nem uma coisa nem outra. O então

Ministro da Educação, Belisário Pena confirmou a reserva dos documentos que, de 1928

até 1953, ficaram inacessíveis.

Em outubro de 53, o professor Mozart Monteiro concedeu entrevista ao jornal O

Globo, lembrando o “tesouro capistraneano” escondido, sem o qual não seria possível

escrever a biografia do mestre. Disse ele:

3 Carta de João Lúcio de Azevedo a Mário Behring, 07/03/1928. Sessão de Manuscritos da Biblioteca

Nacional. 4 Ver “Surpresas da história: as cartas de Capistrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo consideradas

documentos secretos!”. O Globo, 15/05/1928.

168

É por isso, é porque esse tesouro documental continua ainda oculto, durante um quarto de

século, que nenhum historiador, nacional ou estrangeiro, escreveu até hoje sobre ele, nem

dele se utilizou para estudar a fundo a obra, a vida e a história de Capistrano (...) Assim

passa, lamentavelmente, o centenário do grande Capistrano de Abreu, sem que sua história

pudesse antes ter sido escrita.5

O que Monteiro não sabia é que a promulgação da Lei do Congresso Nacional no

1.896, de 2 de julho de 1953 havia resolvido o impasse. Assim, a correspondência pôde,

enfim, ser liberada para consulta e publicada, o que só ocorreu no ano seguinte.

Um conjunto de 1257 cartas, que inclui a correspondência ativa e passiva, foi

reunido graças ao empenho de José Honório Rodrigues, membro da Sociedade Capistrano

de Abreu e diretor da seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional, para quem:

A correspondência de Capistrano de Abreu é um acervo precioso, não só para a sua

biografia, pois nela se vêem seu método de trabalho e suas pesquisas, como também para a

Historiografia brasileira. (...) são depoimentos curiosos, astutos, às vezes mordazes, que

revelam Capistrano como um analista inflexível da história contemporânea e um crítico

implacável de sua quadra.6

Essa boa acolhida das cartas, tão distinta daquela demonstrada antes por João

Ribeiro, constitui um investimento efetivo no sentido de situar a correspondência como

parte significativa da obra de Capistrano e meio de acesso ao homem por traz dos textos.

Assim, em meio às comemorações do I Centenário de Nascimento do historiador (1953),

foram publicados o primeiro e o segundo volumes ilustrados da Correspondência de

Capistrano, em 1954. Um terceiro seria lançado em 1956.

Rodrigues dedicou-se a ampliar a coleção, que foi, aos poucos, incorporando

exemplares doados pelos familiares do historiador e de seus correspondentes e, ainda, por

aqueles localizados em acervos como, por exemplo, o do Barão do Rio Branco –

pertencente ao Arquivo Histórico do Ministério de Relações Exteriores – e o de Guilherme

5 MONTEIRO, Mozart. “Um tesouro histórico... Porque, antes do seu centenário, não pôde ser escrita, por

nacionais e estrangeiros, a vida de Capistrano de Abreu”. O Globo, 23/10/1953, p. 9. 6 RODRIGUES, José Honório. “Introdução”. In: ABREU, Capistrano de. Correspondência. Organização de

José Honório Rodrigues. 1a edição 1954. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira / MEC, 1977, vol. 1, p. XXII.

169

Studart – sob a guarda do Instituto Histórico do Ceará. A maior parte da publicação foi

composta por correspondência inédita.7

Na introdução do primeiro volume, Rodrigues afirma que a edição procurou “seguir

fielmente o original”, atualizando a grafia. Não foram feitas notas de pé de página, nem

desdobramento das abreviaturas utilizadas. Algumas censuras foram permitidas – “duas ou

três vezes” – e justificadas pelo organizador como necessárias devido à “inconveniência”

de algumas frases. Outras cartas foram consideradas inoportunas para publicação e

deixadas de lado. A organização dos três volumes guiou-se pelo objetivo de “simples

divulgação”, defendido pelo organizador, para quem as cartas seriam lidas por um “leitor

preparado”, supostamente apto a fazer sozinho as notas necessárias. Disse Rodrigues:

Parece-nos ser mais importante a simples divulgação destas cartas, em forma acurada,

segundo requisitos da crítica de textos, embora sem anotações eruditas ou não,

esclarecedoras de passagens mais obscuras ou ligadas a fatos e personagens hoje

esquecidos, que retardar indefinidamente a sua publicação.8

A edição foi promovida pela Biblioteca Nacional, com o apoio do Instituto

Nacional do Livro. Criado no início do Estado Novo, em 1937, sob a direção de Augusto

Meyer (1937-1954), o INL tinha os seguintes objetivos: produzir uma enciclopédia

brasileira, de acordo com o modelo da enciclopédia italiana Treccani; elaborar um

dicionário; e publicar “todo tipo de obras raras ou importantes”, consideradas de interesse

para a cultura luso-brasileira e que não encontrassem possibilidades de publicação por

editora privada.9

Em 1977, por ocasião do 40o aniversário do INL e do 50

o aniversário da morte de

Capistrano, foi lançada a segunda edição da Correspondência, acrescida de algumas cartas

e sem ilustrações, produzida pela Editora Civilização Brasileira, em convênio com o INL e

o Ministério da Educação e Cultura (MEC). Esta publicação faz parte de um projeto maior:

a Coleção Octalles Marcondes Ferreira – Série Estudos Brasileiros composta ao todo por

dez volumes, que constituem a Obra de Capistrano de Abreu. São livros que trazem na

7 Entre as dificuldades para reunir a documentação, José Honório Rodrigues menciona que as cartas de

Capistrano a Oliveira Lima existentes na Lima Library, da Universidade Católica de Washington, não

puderam ser copiadas, por proibição do diretor, Manuel Cardoso de Oliveira. RODRIGUES, “Introdução [à

Correspondência de Capistrano de Abreu]”, op.cit., vol.3, p. 11. 8 Ibidem, p. 7.

9 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil (sua história). São Paulo, EDUSP, 1985, p. 313.

170

capa um retrato de seu autor.10

A série foi organizada da seguinte forma, com as

respectivas datas de lançamento:

COLEÇÃO OCTALLES MARCONDES FERREIRA

SÉRIE ESTUDOS BRASILEIROS

VOL.

TÍTULO EDIÇÃO ANO 1a

EDIÇÃO

1 Capítulos de História Colonial 6a 1976 1907

2 Caminhos antigos e povoamento do Brasil 2a 1976 1930

3 O descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no

século XVI

3a 1976 1883

4 Ensaios e estudos 1a série 2

a 1975 1931

5 Ensaios e estudos 2a série 2

a 1976 1932

6 Ensaios e estudos 3a série 2

a 1976 1938

7 Ensaios e estudos 4a série 1

a 1976

8 Correspondência 1 (aumentada) 2a 1977 1954

9 Correspondência 2 (aumentada) 2a 1977 1954

10 Correspondência 3 (aumentada) 2a 1977 1956

Assim, a correspondência privada de Capistrano de Abreu passou a integrar sua

obra, constituída, em sua maior parte, por textos dispersos (artigos, resenhas, necrológios e

prefácios), que foram reunidos em livro após sua morte. Seus únicos livros publicados em

vida foram: O descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI (1883)

Capítulos de história colonial (1907) e Râ-txa hu-ni-ku-î (1913).

A correspondência privada desperta o interesse público há muito tempo. Contudo,

certa resistência contra as cartas pode ser observada ao longo dos séculos. Às vezes são

vistas como um gênero “menor” ou “maldito”. Outras vezes, nem mesmo são consideradas

como um gênero literário. Apesar disso, periodicamente, elas ressurgem como objeto de

fetiche ou de reflexão. Produtos culturais híbridos, é possível tratá-las como documentos,

textos, discursos e práticas, simultaneamente. Tidas como testemunhos de uma época, de

um acontecimento, de um tipo de relação social, podem ser lidas como uma obra plena de

significado, suscitando comentários e análises críticas. Mas, também podem ter seu

estatuto reduzido à fonte de informações, que ajudam a compor uma biografia ou, ainda, a

um meio de acesso aos bastidores de uma obra.11

Para alguns autores, o interesse principal

10

Trata-se da mesma imagem utilizada na confecção da medalha comemorativa do I Centenário de

Nascimento de Capistrano de Abreu, em 1953, pelo IHGB. 11

DIAZ, Brigitte. “Pour une bréve histoire de la lettre”. In: _____. L’épistolaire ou la pensée nomade. Paris,

PUF, 2002, p. 5, 9, 51-58.

171

da correspondência é mostrar “por trás das teorias, os homens e, sob o encadeamento

inflexível das idéias, a imensa ondulação e o redemoinho confuso da vida”.12

É considerando a possibilidade que as cartas oferecem para conjugar conversação e

escrita, subjetividade e objetividade, razão e emoção, excepcionalidade e banalidade, que o

texto a seguir recupera alguns aspectos da correspondência de intelectuais no mundo

contemporâneo. O objetivo principal é qualificar as cartas de modo que seja possível

compreendê-las como uma prática social que, de modo particular, favorece o pensamento e

a ação.

4.1. Sobre a correspondência de intelectuais13

Existe, atualmente, um renovado interesse por documentos pessoais entre os

historiadores. Tal interesse está relacionado às transformações da historiografia ao longo

das últimas décadas, quando se observa uma reavaliação do papel dos indivíduos na

história.14

No caso específico das pesquisas sobre intelectuais, a historiografia atual propõe

alternativas aos estudos que tradicionalmente utilizam material privado como uma espécie

de tempero para a narrativa ou uma ilustração, por vezes anedótica, para a biografia

daqueles que se dedicam ao mundo das idéias e letras.15

Um dos materiais privados que tem merecido grande atenção, tanto por parte dos

pesquisadores quanto dos editores – pois alimentam uma expressiva lista de publicações –

são as correspondências pessoais.16

Porém, no Brasil, são recentes os estudos que a

colocam no centro da investigação, como objeto de análise, dotado de especificidades. Um

novo olhar sobre a correspondência nasceu do cruzamento das reflexões da história da

12

LANSON apud DIAZ, “Pour une bréve histoire de la lettre”, op. cit., p. 5. 13

Uma versão menor dessa parte do capítulo integra o artigo: GONTIJO, Rebeca. “História, cultura, política

e sociabilidade intelectual”. In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVÊA, Maria

de Fátima Silva (Orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história.

Rio de Janeiro, Mauad, 2005, p. 259-284. 14

PROCHASSON, Christophe. “„Atenção verdade!‟: Arquivos privados e renovação das práticas

historiográficas”. Estudos Históricos – Dossiê Arquivos Pessoais, Rio de Janeiro, n.21, 1998, p. 105-119;

GOMES, Ângela de Castro. “Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados”.

Estudos Históricos – Dossiê Arquivos Pessoais, Rio de Janeiro, FGV, n.21, 1998, p. 121-127; LEVI,

Giovanni. “Usos da biografia”. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos &

abusos da história oral. Rio de Janeiro, FGV, 2001, p. 167-182. 15

PROCHASSON, op. cit., p. 105. 16

A título de exemplo, cito algumas publicações recentes: CUNHA, Euclides da. Correspondência.

GALVÃO, Walnice Nogueira e GALOTTI, Oswaldo (Orgs.). São Paulo, Editora da USP, 1997; Machado de

Assis & Joaquim Nabuco: Correspondência. Organização, introdução e notas de Graça Aranha. Prefácio de

José Murilo de Carvalho. 1a edição 1923. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras / Topbooks, 2003, 3

a

edição; Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Organização, introdução e notas

de Ângela de Castro Gomes. Campinas, Mercado das Letras, 2005.

172

leitura, da história cultural, da micro-história e da história intelectual, destacando-se a

produção de estudos sobre a correspondência nas áreas de literatura e educação.17

Esse tipo de material induz à busca de segredos, de confidências, enfim, de todo

tipo de expressão da individualidade, capaz de fornecer um mapa da vida ou um retrato da

personalidade do missivista. Pode ser prazeroso desvendar aspectos da intimidade de

pessoas públicas, algo habitual num mundo repleto de revistas de fofocas e noticiários

escandalosos, sempre ávidos por novidades. Os pesquisadores não ficam incólumes diante

disso. Mesmo que o indivíduo que é objeto de sua atenção seja pouco conhecido, é sempre

possível estimular o interesse sobre ele, descobrindo algum fato “escabroso” ou atitude

surpreendente. Contudo, como bem observa Christophe Prochasson, além de atender à

demanda pelo inédito – cuja satisfação ajuda a consolidar sua posição como um

“verdadeiro explorador”, capaz de descobrir “tesouros ocultos” – os pesquisadores

precisam enfrentar certos problemas do ofício ou correr o risco de serem acusados, no

mínimo, de ingênuos. Segundo o autor,

As armadilhas que as correspondências estendem aos historiadores são no entanto

numerosas. A impressão de pegar desprevenido o autor de uma carta que se destinava

unicamente ao seu correspondente, o sentimento de violar uma intimidade, garantia de

autenticidade, quando não de verdade, são às vezes, bastante enganadores. Existem

correspondências que traem uma autoconsciência que não engana ninguém. Existem cartas

ou documentos privados cujo autor mal disfarça o desejo, talvez inconsciente, de torná-los,

o quanto antes, documentos públicos (...) Nada corre o risco de ser mais falso do que a

“bela carta” ou o arquivo privado “que se basta a si mesmo”, que é “tão revelador”. Há ai

algumas armadilhas preparadas.18

17

Exemplos de estudos produzidos no Brasil, na área de literatura, educação, história e antropologia:

AGUIAR, Flávio (Org.). Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo, Xamã,

1997; GALVÃO, Walnice Nogueira e GOTLIB, Nádia Battella (Orgs.). Prezado senhor, prezada senhora:

estudos sobre cartas. São Paulo, Companhia das Letras, 2000; BASTOS, Maria Helena Câmara, CUNHA,

Maria Teresa Santos e MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio (Org.). Refúgios do eu: educação, história e

escrita autobiográfica. Florianópolis, Mulheres, 2000; BASTOS, Maria Helena Câmara, CUNHA, Maria

Teresa Santos e MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio (Org.). Destinos das letras: história, educação e escrita

epistolar. Passo Fundo, UPF, 2002; GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio

de Janeiro, FGV, 2004; CARVALHO, José Murilo de. “Rui Barbosa e a razão clientelística”. Dados,

IUPERJ, v. 43, n. 1, 2000; PINTO, Surama Conde Sá. A correspondência de Nilo Peçanha e a dinâmica

política da Primeira República. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1999;

HEYMANN, Luciana Quillet. “„Quem não tem padrinho morre pagão‟: fragmentos de um discurso sobre o

poder”. Estudos Históricos – Dossiê Cultura Política. Rio de Janeiro, n. 24, 1999, p. 323-349. 18

PROCHASSON, “„Atenção verdade!‟...”, op. cit., p. 111-112.

173

Em outras palavras, as correspondências, como outros documentos pessoais,

sugerem uma mensagem de verdade, pois constituem um meio de expressão do indivíduo

na sua intimidade, espaço do espontâneo, de certa liberdade, onde, supostamente, deve

reinar a sinceridade. Ler escritos pessoais assemelha-se a invadir locais escondidos,

revelados a poucos, entre os quais o leitor invasor acaba se incluindo, podendo sentir-se,

por vezes, como um cúmplice, que compartilha os sentimentos e as idéias do invadido; um

esperto detetive, pronto a capturar o missivista em flagrante; um juiz parcial, apto a julgar

as condutas privadas; ou ainda, como uma espécie de deus que tudo vê, capaz de avaliar

pensamentos, atos e palavras. Esse leitor pode ter a impressão de estar surpreendendo o

autor da carta, pegando-o desprevenido nas suas liberdades, violando seus segredos,

tirando sua máscara para, finalmente, revelar ao público suas idiossincrasias.

Contra essa “ilusão de verdade” que o material privado provoca e a fim de controlar

o afeto que o historiador pode nutrir pelos papéis pessoais que escolheu – afeição

estimulada pela proximidade do indivíduo que se dá a ver através desses materiais19

– é

preciso, antes de tudo, desconfiar daquilo que aparece como espontâneo, autêntico e

verdadeiro, não para descartá-lo, mas para problematizá-lo. Trata-se de introduzir a dúvida

no espaço da leitura e considerar que a correspondência (como outros documentos) tanto é

um ato individual quanto é uma prática social, sujeita a regras e códigos que precisam ser

decifrados. Se as cartas contribuem para o exercício da subjetividade e a prática da

sociabilidade, por vezes, também podem servir como instrumento disciplinar ou de

autocontrole.20

Diante de armadilhas tão sedutoras quanto os arquivos pessoais, é preciso lembrar

que, mesmo possuindo especificidades, os materiais privados não diferem de outros

materiais, pois exigem escolhas capazes de ajudar a objetivar sua leitura e interpretação,

transformando-os em fontes. Assim, torna-se importante, por exemplo, associá-los a outros

tipos de documentação e, nunca é demais lembrar – diante da persistência de abordagens

externalistas e internalistas que não se cruzam – proceder à crítica externa e interna.

Além disso, é importante considerar alguns aspectos da história das cartas, que

ajudam a compreender seus diferentes usos. É possível dizer que a carta, como outros tipos

19

PROCHASSON, “„Atenção verdade!‟...”, op. cit., p. 112. Angela de Castro Gomes chama a atenção para o

fato de que o autor de documentos pessoais constrói, consciente ou inconscientemente, uma imagem de si,

para si e para os outros, em muitos tempos e na história. Esta imagem pode ser múltipla, estando presente não

apenas nos documentos pessoais, mas no processo de acumulação dos mesmos. Ver GOMES, “Nas malhas

do feitiço”, op.cit., p. 126. 20

Sobre a função socializante e disciplinar da correspondência, ver DIAZ, “Pour une bréve histoire de la

lettre”, op. cit., p. 26.

174

de texto, não possui uma essência imutável ao longo dos séculos. Para Philippe Lejeune,

por exemplo, trata-se de um escrito “flutuante e contingente”, que “combina outros

indícios a fim de exercer funções diferentes em sistemas diferentes”.21

Investigar as

práticas de escrita ajuda a entender os modos como uma comunidade constrói suas

representações sobre o mundo, investindo-o de significados plurais. Permitindo associar

experiência social e subjetividade, a correspondência é um espaço privilegiado para a

observação da relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros.22

Na época moderna, o exercício da correspondência pode ser visto como uma forma

de construção de si, que inclui vários tipos de ações: desde a escrita de si através de

autobiografias e diários, até a constituição de uma memória, realizada através da recolha

dos mais diversos objetos, representativos de algo que precisa ser lembrado. Trata-se de

um investimento que visa materializar e dar sentido à história de um indivíduo e dos

grupos aos quais ele pertence. Através dessa prática, o indivíduo atribui significado ao

mundo que o rodeia, relacionando-o com sua própria vida, de modo a constituir

identidades.23

Na produção de si a escrita tem uma importância capital. Como diz Michel de

Certeau, escrever é uma “atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a

página, em construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual foi previamente

isolado”. Ou seja, o “jogo escriturístico” tem como função influir sobre a realidade, da qual

se distingue, com o objetivo de transformá-la.24

O valor da escrita para a construção de si

reside no modo como essa atividade permite “ordenar, rearranjar e significar o trajeto de

uma vida no suporte do texto, criando-se, através dele, um autor e uma narrativa”.25

Sendo

assim, escrever sobre si mesmo é construir-se e transformar-se. Um exercício que busca o

efeito de verdade, com o objetivo de convencer aquele que escreve e aquele que lê, de que

aquilo que está escrito não possui a intenção de enganar ou dissimular.26

Trata-se de um

21

LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. 1a ed. 1975. Paris, Seuil, 1996, p. 315-316.

22 CHARTIER, Roger (Dir.). La correspondance: les usages de la lettre au XIXe siècle. S.l., Fayard, 1991, p.

9-10. 23

GOMES, Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 11; FOUCAULT, Michel. “A escrita de si”. In:

_____. O que é um autor? S.l., Vega, 2000, p. 129-160; CALLIGARIS, Contardo. “Verdades de

autobiografias e diários íntimos”. Estudos Históricos – Dossiê Arquivos Pessoais. Rio de Janeiro, n.21, 1998,

p. 43-60. 24

CERTEAU, Michel de. “A economia escriturística”. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de fazer.

Petrópolis, Vozes, 1994, p. 221-246. 25

GOMES, op. cit., p. 16. 26

A escrita de si utiliza o argumento da sinceridade, que é individual e subjetiva, atribuindo-lhe o valor de

verdade. A noção de sinceridade está diretamente vinculada à emergência do indivíduo moderno. Ela surgiu a

partir de uma preocupação com a não sinceridade nas relações sociais, em um contexto em que tradição e os

costumes perderam o poder de constranger e regular as relações, agora geridas pelo indivíduo. Portanto, a

175

esforço para alcançar um equilíbrio possível e necessário, mas sempre instável, entre

expressão individual e contenção de si, que resulta em um distanciamento entre aquele que

escreve e o personagem do texto.27

A carta serve de suporte para o registro ou descrição de acontecimentos cotidianos

– relativos ao trabalho, ao corpo e aos sentimentos, por exemplo. Também favorece o

exercício de um pensamento reflexivo sobre si mesmo ou a respeito de algum assunto,

guardando algumas especificidades. Angela de Castro Gomes observa que

(...) a correspondência privada é, com freqüência, um espaço que acumula temas e

informações, sem ordenação, sem finalização, sem hierarquização. Um espaço que

estabelece uma narrativa plena de imagens e movimentos – exteriores e interiores –,

dinâmica e inconclusa como cenas de um filme ou de uma peça de teatro. Um tipo de

discurso multifacetado, com temas desordenados, que podem ou não ser retomados e

desenvolvidos, deixando às vezes bem claro até onde se diz alguma coisa.28

Desse modo particular – fragmentado, freqüentemente desordenado e inconcluso –

a escrita de cartas contribui tanto para a objetivação quanto para a introspecção, sendo que

esta não ocorre no sentido da decifração de si pelo indivíduo que escreve, mas na abertura

de si para o outro.29

A correspondência pode ser vista, portanto, como um lugar de

subjetividade e de sociabilidade, pois ela permite a construção e transmissão de uma

espécie de clima emocional, que possibilita aproximações e afastamentos entre os

missivistas. Através dela, eles podem estabelecer relações sociais, revelando a

multiplicidade de interesses e de negociações postas em prática em momentos e situações

específicas.

Na relação epistolar os missivistas se afetam mutuamente. E a carta começa a afetá-

los mesmo antes de ser lida, uma vez que, sendo um objeto materializado pela forma e cor

do papel, pela tinta, pela letra reconhecível do remetente etc., ela acaba valendo, aos olhos

daquele que a recebe, como um representante daquele que a escreve. Sendo assim, a

sinceridade diz respeito ao modo como o indivíduo se apresenta nas relações com o outro. Segundo José

Reginaldo Gonçalves, no contexto da modernidade, a sinceridade expressa “a luta entre uma concepção de

self socialmente determinada, onde a relação com o outro ainda é prezada, e as modernas e emergentes

concepções individualistas do self”. Ver GONÇALVES, José Reginaldo. “Autenticidade, memória e

ideologias nacionais: o problema dos patrimônios culturais”. Estudos Históricos – Dossiê Identidade

Nacional. Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1988, p. 265. 27

GOMES, Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 17 e 22. 28

Ibidem, p. 21. 29

FOUCAULT, “A escrita de si”, op. cit., p. 152 e 154.

176

correspondência equivale a um “ato de presença”, pois promove uma espécie de encontro

entre remetente e destinatário.30

Esse encontro é um momento valioso para a construção de

vínculos que ajudam os missivistas a conquistar e manter posições sociais, profissionais e

afetivas. Por isso, trata-se de um tipo de discurso muito marcado pelo cuidado no

estabelecimento das relações, ainda que haja lugar para expressões espontâneas de

sentimentos, para a linguagem despojada, bastante próxima da comunicação oral.31

Para Ângela de Castro Gomes:

(...) tal como outras práticas de escrita de si, a correspondência constitui, simultaneamente,

o sujeito e seu texto. Mas, diferentemente das demais, a correspondência tem um

destinatário específico com quem se vai estabelecer relações. Ela implica uma interlocução,

uma troca, sendo um jogo interativo entre quem escreve e quem lê – sujeitos que se

revezam, ocupando os mesmos papéis através do tempo.32

Esse “jogo interativo” é definido através de um “pacto epistolar”: uma espécie de

contrato estabelecido entre os missivistas – às vezes de modo subjacente – que impõe a

exigência recíproca de “receber, ler, responder e guardar cartas”, de modo a manter a

correspondência e a relação.33

Cabe ressaltar que, entre os séculos XVII e XIX, observa-se um crescente

investimento na escrita e publicação de cartas, sendo notável uma mutação retórica e

sociológica. Ao longo do período, a epistolografia abriu mão da eloqüência por um estilo

menos formal, mais apto a transcrever o discurso do indivíduo que o exprime e a favorecer

uma sociabilidade à distância, marcada pelo hábito da conversação. Cada vez mais, a

30

Para Michel Foucault, essa presentificação que a correspondência propicia não ocorre apenas devido às

informações que os missivistas trocam sobre suas vidas. Trata-se de “uma espécie de presença imediata e

quase física”, que se assemelha ao exercício de dar-se a ver, semelhante a um “face-a-face”. FOUCAULT,

“A escrita de si”, op. cit., p. 150. Ver, também: LANDOWSKI, Eric. “A carta como ato de presença”. In:

_____. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. 1a edição francesa 1997. São Paulo, Perspectiva,

2002, p. 165-181. Cabe observar que a visão da correspondência como um “diálogo entre ausentes” não é

plenamente compartilhada. Alguns autores, como Jacques Derrida, colocam a dúvida a respeito da

compreensão da carta como um escrito endereçado a alguém. Nesse sentido, a carta é vista como um

bumerangue, cuja verdadeira destinação seria o próprio remetente e não o destinatário. Ver DIAZ, ibidem, p.

57-59. Com perspectiva semelhante, Vincent Kauffman argumenta que a escrita epistolar é “uma atividade de

resistência ao outro”, sendo que, o que está em jogo na correspondência é a conquista de um território sobre o

qual o outro (o destinatário) não tem direito de entrar. Assim, o exercício da correspondência favoreceria

muito mais o afastamento do que a aproximação entre os missivistas. Seria um modo de estabelecer certa

distância em relação ao outro, a fim de que a individualidade possa surgir. Ver KAUFFMAN, Vincent.

L’équivoque epistolaire. Paris, Les Éditions de Minuit, 1990, p. 8. 31

GOMES, Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 19 e 21. 32

Ibidem, p. 19. 33

Ibidem, p. 19.

177

composição retórica impecável foi desprezada, enquanto “as falhas, os sopros e os

suspenses de uma palavra simplesmente humana” adquiriram grande valor. Foi por meio

dessa transformação que a carta passou a reivindicar o papel de “espelho da alma”,

enquanto se afirmou o mito do epistológrafo como um escritor espontâneo (sem afetação).

Mas, essa mesma mudança, que marcou a passagem de uma escrita formal para informal,

de um tipo de sociabilidade tradicional para uma sociabilidade mais mundana, acabou por

estabelecer uma nova ortodoxia, guiada pelas regras de um “discurso ordinário” e ligeiro,

marcado por aquilo que Cécile Dauphin chamou de “pedagogia do lugar comum”.34

Considerando as transformações da prática epistolar ao longo do tempo, cabe

indagar sobre o modo como escritores e intelectuais utilizam a correspondência, visto que

tais atores sociais se dedicam às atividades de escrita e pensamento, comumente

caracterizadas pela lenta reflexão, pelas teorizações, pela erudição, pelos recursos retóricos

mobilizados e pela inspiração. Assim, concordando com Brigitte Diaz, coloca-se a

pergunta: como é possível “pensar por carta”?35

Indo um pouco além, tendo em conta que

as variáveis históricas e culturais modificam significativamente a prática epistolar, como é

possível pensar por carta no mundo contemporâneo de fins do século XIX e início do XX?

Esse ponto interessa particularmente a esse estudo que analisa a correspondência de um

historiador do período em questão, na qual é possível localizar, além de referências às

práticas de pesquisa e escrita da história, certa reflexão sobre o fazer historiográfico e seu

produto: o texto histórico.

Antes de tudo, observa-se que a correspondência de intelectuais utiliza um nível de

linguagem e uma retórica específica, de modo a constituir um texto permeado por outros

textos. É um espaço para a troca de idéias, projetos e expectativas das mais diversas, que

permite acessar o mundo das relações sociais de indivíduos que, geralmente, são “vistos”

através de publicações ou da atuação em espaços onde domina a oralidade. Através da

correspondência, os atores sociais constroem um “lugar” de sociabilidade “privado”, por

oposição aos lugares públicos, como, por exemplo, as redações de jornais e revistas, os

departamentos universitários, os colóquios e os manifestos.36

34

DIAZ, “Pour une bréve histoire de la lettre”, op. cit., p. 9-18 e 36; DAUPHIN apud DIAZ, ibidem, p. 16,

nota 2. 35

A história das cartas mostra que, nem sempre a correspondência serviu como um meio de expor a

intimidade e os sentimentos ou favorecer um tipo de conversa improvisada, por vezes, fútil, repleta de

referências ao cotidiano. O exercício de escrever e trocar cartas já deu lugar a reflexões filosóficas e serviu

como instrumento de confrontação e propagação de idéias. Além disso, como já foi dito, também serviu

como meio de construção de si. Ver DIAZ, ibidem, p. 8-10, 21 e 139-194. 36

TREBITSCH, Michel. “Correspondances d‟intellectuells. Le cas des lettres d‟Henri Lefebvre à Norbert

Guterman (1935-1947)”. Le Cahiers de l’IHTP, n.20, 1992, p. 82-3. Sobre a correspondência de intelectuais,

178

Michel Trebitsch chama a atenção para a correspondência de intelectuais enquanto

“instrumento de aproximação” das sociabilidades devido a três razões: 1) ela é uma das

raras fontes escritas sobre um mundo de relações sociais dominado pela palavra e pela

oralidade; 2) ela possui o estatuto de narrativa pessoal, próximo da autobiografia ou do

diário íntimo, diferindo dos textos destinados à publicação; 3) ela constitui um lugar de

sociabilidade “privado”, oposto aos lugares “públicos”, como as revistas, os colóquios ou

os manifestos. De acordo com o autor, as cartas seriam uma espécie de “„zona enigmática‟

entre a vida e o texto”, por autorizar um “vai-e-vem” entre escrito privado e escrito

público. Isso seria um resquício de duas heranças: a da tradição epistolar dos séculos XVII

e XVIII – marcada pela escrita de si e pelo gênero romanesco – e a dos textos públicos ou

políticos, exemplificados pelas cartas abertas, pelos manifestos e petições, muito utilizados

ao longo do século XIX.37

O autor identifica dois tipos básicos de correspondência no mundo intelectual.

Existem cartas cuja função desperta mais interesse do que o conteúdo em si. Essa função

seria a de estabelecer redes de sociabilidade em torno de algo ou alguém (uma figura ou

um motivo central). Sua leitura permite rastrear a construção de objetivos comuns – de

caráter estético, científico, literário e/ou político – pelos membros de um grupo, deixando

entrever seu funcionamento efetivo. Há, também, um tipo de correspondência que não é

guiada pelos interesses de um grupo dotado de objetivos comuns e figura central. Esse

segundo tipo de correspondência existe em decorrência da relação de amizade entre pares,

unidos por afinidades, interesses e preocupações comuns, de ordem pessoal. Sua leitura

permite acessar os meandros da relação entre os indivíduos, bastante marcada pelo afeto.38

O estudo da correspondência de escritores e intelectuais ajuda a compreender os meandros

da construção de uma obra e/ou da elaboração de projetos, revelando ações e intenções e

deixando entrever a especificidade dos procedimentos cognitivos e argumentativos.

Também permite observar as relações entre os indivíduos, fornecendo indícios de suas

experiências como atores sociais.

Um dos aspectos mais importantes da correspondência parece residir no fato de que

esse tipo de escrito é uma forma de conversação. Como observou Roger Chartier, não é

ver, também: GOMES, op. cit., p. 51-75; e, na mesma obra, VENANCIO, Giselle Martins. “Cartas de Lobato

a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história”, p. 111-137; LUCA, Tânia Regina de. “Monteiro

Lobato: estratégias de poder e auto-representação n‟A barca de Gleyre”, p. 139-161; e GONTIJO, Rebeca.

“„Paulo amigo‟: amizade, mecenato e ofício do historiador nas cartas de Capistrano de Abreu”, p. 163-193. 37

TREBITSCH, “Correspondances d‟intellectuells...”, op. cit., p. 82-3. 38

A correspondência cuja função é mais importante que seu conteúdo, é chamada por Trebitsch de

“correspondência-rede” e, aquela cujo conteúdo chama mais atenção, é chamada de “correspondência

laboratório”. TREBITSCH, ibidem, p. 83.

179

apenas a condição de leitor e escritor que fundamenta a identidade do intelectual. Essa se

define, de acordo com certo ponto de vista e a partir de determinado momento, através da

participação na sociedade dos “homens de letras”. A condição de intelectual está vinculada

a essa participação, que implica o diálogo, o intercâmbio de idéias e o respeito a

determinadas regras de convívio e normas de comunicação. No século XVIII, por exemplo,

conversar era visto como uma arte, sendo que, “o verdadeiro homem de letras”, de acordo

com os cânones do establishment literário, era, sobretudo “um padrão de conversa em

sociedade”.39

O padrão de conversa e de epistolografia mudou muito de lá pra cá, rompendo as

amarras de uma fala e de uma escrita formais, marcadas pelas regras dos salões, de modo a

favorecer um diálogo mais coloquial, mas, nem por isso, menos regrado. No início do

século XX, já é possível pensar como Monteiro Lobato, para quem “língua de carta é

língua em mangas de camisa e pé-no-chão – como a falada”,40

o que não significa que se

possa dizer tudo o que se queira, do modo que se queira. A “arte de escrever” associa-se à

“arte de dizer”, sendo que a carta não é um simples paliativo da conversação. Ela é seu

complemento e auxiliar.41

Segundo Brigitte Diaz, a “arte epistolar” e a “arte da conversação” conjugam os

mesmos valores estéticos e propõem uma mesma ética de sociabilidade, fundada na

espontaneidade. Falar e escrever bem, é falar e escrever com naturalidade, sendo que, essa

naturalização das práticas de conversação e escrita é acompanhada por um exercício de

ocultação: o ato de conversar e de escrever não deve deixar transparecer o trabalho

necessário para tornar a fala e a escrita natural, simples e fácil. A naturalidade tão

valorizada resulta de educação e autocontrole, como demonstram os numerosos manuais

(as Secretárias) dedicados ao ensino da epistolografia, não por acaso produzidos por

muitos autores de manuais de conversação.42

Outro aspecto importante para a análise da correspondência de intelectuais tem

relação com o fato de que essa correspondência permite a construção de um tipo de

conhecimento fundado no diálogo. Geralmente vista como um meio de difusão de

39

CHARTIER, Roger. “O homem de letras”. In: VOVELLE, Michel (Dir.). O homem do iluminismo. Lisboa,

Presença, 1997, p. 128 e 133. 40

Ver carta de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel, de 07/11/1904. In: LOBATO, Monteiro. A barca de

Gleyre: quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. 2 volumes.

São Paulo, Brasiliense, 1961. 10a edição, publicada na 1

a série das Obras Completas de Monteiro Lobato, vol.

1, p. 79. 41

DIAZ, “Pour une bréve histoire de la lettre”, op. cit., p. 24. 42

Ibidem, p. 25.

180

futilidades e sentimentos – principalmente quando escritas por mulheres43

– a

correspondência passa a ser aceita como um instrumento útil para o desenvolvimento de

um pensamento dialógico. Esse instrumento incita os missivistas a

(...) inventar novos protocolos de reflexão, sem a rigidez da teoria, sem a aridez do

dogmatismo, mas, com todas as graças da expressão epistolar: mobilidade, desenvoltura.

Rapisódico e plural, é um pensamento forçosamente impuro aquele que se elabora na

chassé-croisé dessa palavra nômade (...) o epistológrafo se permite todas as digressões,

todos os registros, todas as posturas enunciativas (...) Da reflexão moral à crítica literária,

passando pela introspecção autobiográfica, não há domínio que a sonda epistolar não se

empenhe em explorar. O status genérico de leveza da carta se abre a todos os horizontes

epistemológicos. Porque ela [a carta] visa os discursos constituídos, ela se torna o

instrumento ideal de um saber vivo.44

Sendo assim, uma possível resposta para a questão anteriormente colocada, sobre

como é possível pensar por carta, é que a correspondência de intelectuais é uma forma

rápida de construção, confrontação e difusão das idéias. Uma espécie de work in progress

tem início, às vezes sem planejamento, como resultado de uma improvisação. Conjugando

convenções e invenções, as discussões desenvolvidas através das cartas tomam um rumo

provisório, efêmero, aberto a futuras modificações. Pensar por carta é abrir-se à

experimentação, daí ser possível considerar a correspondência como uma espécie de

laboratório, onde o pensamento se abre a diversas influências, permitindo explorar certas

liberdades de pensar, principalmente, mas não somente, sobre si mesmo.45

A transitoriedade observada em muitas cartas cria muitas lacunas, que somente

remetente e destinatário conseguem preencher, ainda que nem sempre de modo pleno.

Apesar disso, o leitor/investigador pode tecer sua interpretação preenchendo tais lacunas

através do cruzamento das informações e indícios contidos em várias cartas. Portanto, a

43

No século XVIII observa-se um movimento de femininização da escrita privada de cartas, que, cada vez

mais, passa a ser vista como uma atividade de mulheres, através da qual elas podem expressar suas emoções,

bem como, o pensamento sobre si mesmas e sobre o mundo. Ver DIAZ, “Pour une bréve histoire de la

lettre”, op. cit., p. 18-20. 44

Ibidem, p. 40-41. Desde a Antiguidade, a escrita de cartas constitui uma forma de exercitar o pensamento.

Através do diálogo epistolar os gregos desenvolveram um debate filosófico, por exemplo. Contudo, o século

XVIII reinventou o emprego da correspondência, vista como um meio necessário para as grandes discussões

da época e um instrumento indispensável para uma ampla reflexão epistemológica. Os usos da carta então se

diversificaram: diálogo filosófico, carta aberta, panfleto, autobiografia, debate crítico etc. Até mesmo no

campo da ficção, proliferaram os romances epistolares. É o momento do auge da sociabilidade à distância, na

qual a correspondência tem papel principal. Ibidem, p. 42-43. 45

Ibidem, p. 41-42; ver, também, TREBITSCH, “Correspondances d‟intellectuells...”, op. cit.,

181

ordenação de um conjunto de cartas no tempo e em relação a outros conjuntos de missivas

contribui para sua compreensão.

Mais que um instrumento de expressão de idéias sobre algo ou alguém, a

correspondência também é um instrumento de ação. Como já foi dito, o “jogo

escriturístico” tem como função influir sobre a realidade, da qual se distingue, com o

objetivo de transformá-la.46

A carta aberta, militante, política demonstra o quanto a

correspondência está vinculada a um dizer que é, também, um fazer. Até mesmo a carta

pessoal serve como meio de agir sobre si mesmo, construindo-se e transformando-se,

através do diálogo com o outro. Também serve como meio de agir sobre o mundo ou sobre

o outro, uma vez que o ato de escrever mobiliza múltiplos recursos a fim de convencer,

influir, exortar, demandar, impor, resistir, reagir etc. à distância.47

Por fim, um último aspecto a ser considerado no estudo da correspondência, já

observado por Giselle Martins Venâncio, diz respeito ao fato de que “uma carta expressa

mais do que o texto que ela contém”. Para além do conteúdo, a condição de redação da

carta, sua trajetória, seu destinatário e os gestos que favoreceram sua conservação

permitem acessar os investimentos que definiram sua importância.48

Em vista disso, é

interessante rastrear as ações no sentido de guardar, organizar e editar uma dada

correspondência, procurando observar o lugar que essa ocupa na vida e na obra do

missivista, segundo as narrativas construídas sobre ele.49

O gesto de guardar cartas relaciona-se, em parte, ao desenvolvimento da crença de

que as cartas contêm um pouco do indivíduo que as escreveu. Como foi observado, são

fontes de informação sobre sua biografia e meio de acesso a seu pensamento. No caso das

cartas de escritores e intelectuais, cabe lembrar a importância que tais atores sociais

adquiriram ao longo dos séculos XVIII e XIX, quando conquistaram um lugar expressivo

no espaço público como aqueles mais capazes de compreender, explicar e representar a

sociedade e a nação.50

Em vista dessa celebração dos “homens de letras”, seus escritos

46

CERTEAU, “A economia escriturística”, op. cit., p. 221-246. 47

DIAZ, “Pour une bréve histoire de la lettre”, op. cit., p. 61-62. 48

VENÂNCIO, Giselle Martins. “„Sopros inspiradores‟: troca de livros, intercâmbios intelectuais e práticas

de correspondências no arquivo privado de Oliveira Vianna”. In: BASTOS, Maria Helena et alii (orgs.).

Destinos das letras: história, educação e escrita epistolar. Passo Fundo: UPF, 2002, p. 222-3; e, também,

PROCHASSON, “„Atenção verdade!‟...”, op. cit., p. 114. 49

A esse respeito, ver: GOMES, Ângela de Castro: “O ministro e sua correspondência: projeto político e

sociabilidade intelectual”. In: _____ (Org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro, FGV,

2000, p. 13-47. 50

CATROGA, Fernando. “Ritualização da história”. In: TORGAL, MENDES e CATROGA, Fernando.

História da História em Portugal. S.l.: Temas & Debates, s.d., p. 340. Ver, especialmente, o item 6, A

sacralização cívica da literatura, p. 339-348.

182

tornaram-se objeto de fetiche, passando a ser colecionados, cultuados, divulgados e

estudados. Desse modo, a correspondência passou a constituir uma espécie de “lugar de

memória”, através do qual os missivistas são dados a ver na intimidade.

Cumpre notar que, nem sempre a correspondência de intelectuais dá lugar a

discussões elevadas ou pessoais. Por vezes, o toque pessoal fica restrito a algumas

informações sobre a saúde, o tempo ou, ainda, sobre a vida alheia. Aqueles com algum

interesse em publicar as próprias cartas são, com freqüência, mais eloqüentes, colocando-

se em cena com maior empenho.51

Por vezes, a correspondência pessoal pode até sofrer

censuras e modificações feitas pelo próprio remetente (ou não) antes da publicação, como

ocorreu no caso da Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato, para quem,

Essas cartas tinham que vir a público um dia, e sairiam cheias de coisas que lá no meu

estado gasoso eu havia de arrenegar; achei, pois, que o melhor era infringir as regras e

desse modo preparar para a paz a minha vida no além.52

Resumidamente, a construção da correspondência como fonte histórica e objeto de

análise esbarra em um conjunto fragmentado de textos, de complexo tratamento, que exige

a aproximação com outras áreas, como a Literatura, por exemplo. São textos que formam

espaços legíveis, construídos e dados a ler, podendo constituir aquilo que Dauphin e

Poublan identificam como um “momento de longa duração (...) um elo de uma cadeia sem

começo nem fim”. Quando isso ocorre, a leitura da carta assemelha-se a “entrar em uma

história sem conhecer a primeira palavra, sem saber o que aconteceu antes nem o que

chegará depois, o que disse antes, nem o que se dirá depois”.53

Por isso, a carta é uma

escrita “em trânsito”, pois sua existência é “flutuante e contingente”.54

Mas, como qualquer

outra fonte, ela “é um objeto construído, inscrito no tempo e no espaço social”.55

Destrinchando o “jogo escriturístico” da correspondência é possível entrever a dinâmica

das relações, reservando espaço para o contingente, através da reconstituição de

experiências cujo destino os indivíduos e grupos não dominam.

51

Ver as observações de Prochasson sobre a correspondência de professores universitários franceses,

analisada por Christophe Charle. PROCHASSON, “„Atenção verdade!...”, op. cit., p. 112. 52

LUCA, “Monteiro Lobato...”, op. cit., p. 157. 53

DAUPHIN, Cécile & POUBLAN, Daniele. “Maneiras de escrever, maneiras de ler: cartas familiares no

século XIX”. In: BASTOS, Maria Helena Câmara et alii (Orgs.). Destinos das letras: história, educação e

escrita epistolar. Passo Fundo, UPF, 2002, p. 76 e 83. 54

LEJEUNE, Le pacte autobiographique, op. cit., p. 315-316. 55

DAUPHIN & POUBLAN, op. cit., p. 80.

183

4.2. Um mapa das cartas de Capistrano

O conteúdo da correspondência de Capistrano de Abreu é rico em comentários

sobre temas variados, tais como: a vida em família; as relações de amizade e os desafetos;

os problemas de saúde; as viagens; as opiniões sobre acontecimentos de sua época

(sobretudo referentes à política); os pedidos; as críticas a autores e livros etc. Entre os

assuntos que predominam estão aqueles relacionados a sua atividade como historiador:

pesquisas em andamento, leituras, escrita e publicação de trabalhos.56

Os correspondentes são médicos, engenheiros, literatos, filólogos, etnógrafos,

geógrafos, geólogos, jornalistas, autores de teatro, diplomatas, políticos, militares,

livreiros, editores, bibliotecários, eclesiásticos etc. Lembro que, em sua época, mais de um

desses termos freqüentemente serviam para indicar um único endereçado. São cartas

escritas a parentes próximos, amigos íntimos, alunos e ex-alunos, colaboradores de

pesquisa e amantes da história. Também há cartas para personalidades importantes de sua

época, principalmente, do mundo diplomático, como o poderoso Barão do Rio Branco.

Entre fins do século XIX e 1927, ano de sua morte, Capistrano correspondeu-se

com 123 missivistas, identificados por José Honório Rodrigues, que organizou sua

publicação em três volumes, entre os anos de 1954 e 1956. Ao todo são 1257 cartas

publicadas, das quais 1056 (84%) constituem a correspondência ativa do historiador,

enquanto 201 (16%) formam a correspondência passiva. Duas das cartas enviadas por

Capistrano não indicam o nome do destinatário e, três daquelas que ele recebeu, não

fornecem o nome do remetente. Diante disso e da importância atribuída à identificação dos

missivistas, a opção foi excluir tais cartas. Assim, tem-se o volume total de 1252 cartas,

das quais, 1054 constituem a correspondência ativa, enquanto 198, compõem a

correspondência passiva do historiador. Essa diferença entre a quantidade de cartas

enviadas e recebidas indica que Capistrano não costumava guardar as cartas que recebia. A

maior parte de sua correspondência passiva parece perdida, o que não impede o trato do

56

Sobre a correspondência de Capistrano, ver: AMED, Fernando José. História ao portador: interlocução

privada e deslocamento no exercício de escrita de cartas de João Capistrano de Abreu (1853-1927). São

Paulo: USP, dissertação de mestrado, 2001; AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. Correspondência cordial:

Capistrano de Abreu e Guilherme Studart. Fortaleza, Museu do Ceará / Secretaria da Cultura do Estado do

Ceará, 2003. Coleção Outras Histórias, 19; BUARQUE, Virgínia Albuquerque. Escrita singular: Capistrano

de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza, Museu do Ceará, 2003. Coleção Outras Histórias, 20. GONTIJO,

“Paulo amigo”, op. cit., p. 163-193; Idem. “A reta e o círculo: amizade, projeto intelectual e construção

identitária nas cartas de Capistrano de Abreu e João Lúcio de Azevedo (1916-1927)”. Trajetos – Revista de

História. Fortaleza da UFC. Fortaleza, Dep. de História da Universidade Federal do Ceará, vol. 3, n. 5, 2004,

p. 101-128.

184

material localizado. A correspondência ativa foi preservada por 53 destinatários, enquanto

a correspondência passiva foi enviada por 90 remetentes.57

O quadro a seguir resume essas

informações:

QUADRO 1

CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Total de cartas publicadas

(com remetente e destinatário identificados)

1252

Volume da correspondência ativa 1056

Total de destinatários identificados 53

Volume da correspondência passiva 201

Total de remetentes identificados 90

Número de correspondentes identificados 123

Número de correspondentes não identificados 5 Fonte: ABREU, Capistrano de. Correspondência. Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues.

Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, MEC, 1977. 3 volumes.

É comum que, nos arquivos privados, o pesquisador só encontre a correspondência

remetida ao titular (correspondência passiva). Isso ocorre, por exemplo, no caso da

correspondência de Oliveira Vianna.58

Em certos casos, o remetente se preocupa em copiar

as cartas que envia, tal como acontece no caso das cartas de Gustavo Capanema.59

Esse

não é o caso de Capistrano, cuja correspondência ativa constitui o volume mais expressivo

do conjunto total de missivas. Ao contrário do arquivo pessoal de Capanema,60

por

exemplo, este não é um arquivo organizado por seu titular, mas construído a posteriori, por

aqueles que podem ser considerados “guardiões da memória” de Capistrano. Além de José

Honório Rodrigues, que reuniu e organizou a publicação da correspondência, os principais

guardiões (os missivistas que guardaram mais de 50 cartas) foram: João Lúcio de Azevedo

(265), Paulo Prado (116), Afonso Taunay (98), João Pandiá Calógeras (82), Mário de

Alencar (61) e Luís Sombra (60).

Do total de correspondentes localizados é possível distinguir – através da

observação da quantidade e da periodicidade – aqueles que são assíduos daqueles que não

57

Dos 90 remetentes, 18 eram, também, destinatários: Barão do Rio Branco, Cardoso Barata, Domício da

Gama, Domingos Jaguaribe, Francisco de Assis Brasil, Guilherme Studart, Herman Von Ihering, Honorina

de Abreu, João Brígido, João Lúcio de Azevedo, João Pandiá Calógeras, Leopoldo Bulhões, Lino de

Assunção, Mário de Alencar, Martim Francisco, Raul Pompéia, Rodolfo Garcia e Tobias do Rego Monteiro. 58

VENÂNCIO, Giselle Martins. “Presentes de papel: cultura escrita e sociabilidade na correspondência de

Oliveira Vianna”. Estudos Históricos – Dossiê Sociabilidades. Rio de Janeiro, n. 28, 2001, p. 23-47. 59

GOMES, “O ministro e sua correspondência”, op. cit., p. 23. 60

Sobre o arquivo de Capanema, ver: FRAIZ, Priscila. “Arquivos pessoais e projetos autobiográficos”: o

arquivo de Gustavo Capanema. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Capanema: o ministro e seu

ministério. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 73-102.

185

o são, sem esquecer que essa informação não indica, necessariamente, os correspondentes

mais próximos, isto é, os mais íntimos de Capistrano. Os destinatários estão organizados

em grupos no quadro a seguir. Após cada nome está a quantidade de cartas recebidas.

QUADRO 2

CORRESPONDÊNCIA ATIVA DE CAPISTRANO DE ABREU

GRUPOS DESTINATÁRIOS TOTAL DE

CARTAS

I

Mais de

100 cartas

(2)

João Lúcio de Azevedo (265)

381

Paulo Prado (116)

II

Entre 50

e 100

cartas

(4)

Afonso Taunay (103) 306

João Pandiá Calógeras (82)

Mário de Alencar (61)

Luís Sombra (60)

III

Entre 11

e 49 cartas

(10)

Miguel Arrojado Lisboa (40) 272

Guilherme Studart (39)

Francisco Ramos Paz (35)

Lino d‟Assunção (33)

Rodolfo Garcia (28)

Domingos Jaguaribe (26)

Barão do Rio Branco (23)

Assis Brasil (17), José Veríssimo (17)

Lídia de Assis Brasil (14)

IV

Entre 1

e 10 cartas

(37)

Martim Francisco (10) 95

Adriano de Abreu (9), Oliveira Lima (9)

Domício da Gama (8), Paulo Brandão (8)

Padre Teschauer (6)

Joaquina “Kiki” de Assis Brasil (4), Machado de Assis (4), Rui

Barbosa (4)

Mendes da Rocha (3)

Alfredo Pujol (2), Macedo Soares (2), Tobias do Rego Monteiro (2)

Antônio Bezerra (1), Antônio Jansen do Paço (1), Antônio Pereira

Leitão (1), Bruno Chaves (1), Carlos Werneck (1), Cecília de Assis

Brasil (1), Gastão Cruls (1), Graça Aranha (1), Herman von Ihering

(1), Honorina de Abreu (1), João Brígido (1), José Paes de Carvalho

(1), Leopoldo Bulhões (1), Manuel Cícero (1), Manuel de Melo

Cardoso Barata (1), Ramiz Galvão (1), Raul Pompéia (1), Sra. João

Lúcio de Azevedo (1), Sra. Pandiá Calógeras (1), Tasso Fragoso (1),

Tomás Pompeu (1), Urbano Duarte de Oliveira (1), Urbino Viana (1),

Vale Cabral (1)

TOTAL 53 destinatários 1054 cartas

186

O QUADRO 2 indica que, dos 53 destinatários, 37 (GRUPO IV) tiveram de uma a

dez cartas preservadas; 10 (GRUPO III) tiveram de 11 a 49 cartas; 4 (GRUPO II), de 50 a

100; e apenas 2 (GRUPO I) tiveram mais de 100 cartas guardadas. A partir desses dados é

possível propor uma classificação dos missivistas, baseada no volume de cartas enviadas

por Capistrano, que foram localizadas. Essa classificação procura identificar os

correspondentes eventuais, regulares e assíduos, mesmo considerando que a

correspondência ativa publicada não seja composta pelo total de cartas enviadas pelo

titular.61

Assim, temos a seguinte tabela:

TABELA 1

Classificação dos destinatários

por volume de cartas enviadas por Capistrano

Classificação Número absoluto

De destinatários

% Número absoluto

de cartas enviadas

%

Assíduos Excepcionais (+ de 100) 2 4 381 36

Assíduos (50 a 100) 4 8 306 29

Regulares (11 a 49) 10 19 272 26

Eventuais (1 a 10) 37 70 95 9

Total 53 100 1054 100

A leitura da correspondência seguiu a classificação proposta, analisando, em

primeiro lugar, os destinatários com o maior volume de cartas publicadas, até alcançar os

destinatários com apenas uma carta. Contudo, a escolha da documentação não foi

determinada pela quantidade de cartas, mas pelo conteúdo das mesmas. Em última

instância, foi a qualidade da documentação que orientou a proposição de temáticas e a

elaboração de questões, havendo coincidência entre os dados quantitativos e qualitativos.

Os mesmos critérios foram seguidos na leitura da correspondência passiva, sendo

que, o volume de cartas guardadas por Capistrano é bem menor do que aquele que alguns

de seus destinatários preservou. Os dados gerais da correspondência passiva estão no

quadro a seguir:

61

Há cartas inéditas de Capistrano no Instituto do Ceará. Agradeço essa informação a Ítala Byanca Moraes

da Silva e a Paula Virgínia Pinheiro Baptista, que trabalharam na organização da correspondência de

Capistrano de Abreu e da sociedade que leva seu nome, sob a guarda do Instituto.

187

QUADRO 3

CORRESPONDÊNCIA PASSIVA DE CAPISTRANO DE ABREU

GRUPO REMETENTES

CARTA

I

Mais de

20

cartas

(1)

João Lúcio de Azevedo (29) 29

II

de 10 a

20

cartas

(2)

Orville Derby (11)

21

Manuel Said Ali Ida (10)

III

de 2 a 9

cartas

(29)

Karl von den Steinen (7) 90

Francisco Ramos Paz (6)

Domício da Gama (5), Guilherme Studart (5), João Netkens de Matos (5)

Carlos Werneck (4), Coelho Neto (4), Rodolfo Garcia (4)

Alberto Rangel (3), Batista Caetano (3), Honorina de Abreu (3), Manuel de M. C.

Barata (3), Mário de Alencar (3), Martim Francisco (3), Teodoro Sampaio (3),

Tobias Monteiro (3)

A. Portela (2), Carlos de Carvalho (2), Eduardo Prado (2), Fernando de Abreu (2),

João Brígido (2), Leopoldo Bulhões (2), Machado de Assis (2), Padre Meis (2),

Pedro Sanchez (2), Raul Pompéia (2), Teixeira de Mello (2), Valentim Magalhães

(2), Vieira Fazenda (2)

IV

1 carta

(58)

Afrísio Brasil, Alfredo de Carvalho, Amarante, Andréa Albuquerque, Aníbal

Falcão, Antônio Leal, Augusto Fausto de Sousa, Augusto Salgado, Barão do Rio

Branco, Beethoven Club, Bezerra Pais, Caldas Brito, Campos Lima, Cândido Jucá,

Carlos Bonanni, Carlos von Koseritz, Centro Abolicionista 25 de Dezembro, Cunha

Mendes, Domingos Jaguaribe, Emílio Goeldi, Émille Allain, F. A. Martiny, F.

Henderson, F. Mendes da Rocha, Fortunato N. Rodrigues, Francisco de Assis

Brasil, Francisco Oiticica, Gabinete Português de Leitura, Herman von Ihering,

Homem de Melo, Irineu Joffily, J. B. de Sá Oliveira, João B. Perdigão de Oliveira,

João Carlos de Carvalho, J. D. Condeceira, João Lopes, João Pandiá Calógeras,

Joaquim Macedo de Castro Rebello, Joaquim de Melo, Júlio Pinto d‟Almeida, Júlio

Ribeiro, Lino d‟Assunção, Manuel Clarck, Max Fleiuss, The Nation, Padre

Clavelin, Padre Galanti, Padre Hafkemeyer, Patrocínio de Freitas, Paulo Ehrenreich,

Raoul de la Grasserie, Rocha Lima, Rodrigo Otávio, Silvio Romero, Société des

Americanistes, Urbano Coelho Gouveia, Victor da Cunha, Virgílio Cardoso de

Oliveira

58

TOTAL 90 remetentes 198

cartas

188

A partir do QUADRO 3, também é possível construir uma classificação semelhante

a que foi elaborada para os grupos de destinatários. Contudo, como já foi dito, o volume de

cartas que compõe a correspondência passiva é bem menor do que a correspondência ativa.

Além disso, a diferença entre a quantidade de cartas recebidas por cada missivista é menor.

Considerando que Capistrano não costumava guardar as cartas que recebia, a opção foi

valorizar o conjunto preservado, destacando as pequenas quantidades. Assim, temos a

seguinte tabela:

TABELA 2

Classificação dos correspondentes por volume de cartas recebidas por Capistrano

Classificação

dos correspondentes

Número absoluto

de remetentes

% Número absoluto

de cartas recebidas

%

Assíduos (mais de 20) 1 1 29 15

Regulares (10 a 20) 2 2 21 11

Eventuais (2 a 9) 29 32 90 45

Outro (1) 58 64 58 29

Total 90 100 198 100

A leitura da correspondência passiva também seguiu as indicações quantitativas,

sendo que tais indicações não foram determinantes para a escolha das cartas a serem

analisadas. Assim como no primeiro caso, a escolha foi orientada pelo conteúdo das cartas,

que forneceu os elementos necessários para a proposição de temáticas e questões.

Os dados quantitativos, mais do que indicar o volume de trocas entre

correspondentes – pois não se pode negar a possibilidade de que tenham existido outros

tantos missivistas não localizados ou cartas que foram perdidas – indicam o empenho por

parte de alguns destinatários em guardar, cumulativamente, as cartas enviadas por

Capistrano de Abreu. Esse aspecto, associado à posição desses destinatários no campo

intelectual e político de sua época confirma o lugar de Capistrano como uma figura

referencial em seu meio; alguém cujos escritos podiam ser considerados valiosos para

aquele momento e para a posteridade e que, por isso, deveriam ser preservados.

A investigação das trocas é possível dentro de certos limites impostos pelas lacunas

na documentação, pois apenas 18 missivistas receberam e enviaram cartas, ou seja, eram,

simultaneamente, destinatários e remetentes. De modo geral, prevalece o ponto de vista de

Capistrano, objeto privilegiado pela investigação. Contudo, tratando-se de um tipo de

escrito fundado na relação com o outro, o estudo dos correspondentes também é de suma

189

importância para a melhor compreensão das cartas do missivista principal. Assim, foram

abertas duas frentes de investigação: uma sobre os conteúdos (as temáticas) das cartas e,

outra, sobre os correspondentes.

Em função dos dados obtidos, seria possível construir conjuntos de cartas

representativas do modo como Capistrano lidava com determinado assunto. Assim,

teríamos, por exemplo, cartas sobre história e historiografia, cartas sobre política etc. O

problema é que, freqüentemente, tais temas se cruzam em uma mesma carta, o que

dificulta a ordenação das mesmas em “grupos e famílias de semelhança”, como fez

Luciana Heymann, em seu estudo sobre a correspondência enviada a Filinto Muller.62

Os conteúdos são desenvolvidos pelo remetente em função de cada correspondente.

Ainda que os assuntos se repitam nas cartas, o tom varia de acordo com o teor da relação

entre os missivistas, como era de se esperar. Assim como nos citados estudos de Ângela de

Castro Gomes e Luciana Heymann,63

é extremamente importante observar as estratégias de

aproximação e afastamento utilizadas por Capistrano com seus correspondentes. Isso

aparece na forma de tratamento e nas despedidas, assim como, supõe-se, nas assinaturas

(vários tipos são utilizados nas cartas, inclusive cognomes), bem como no conteúdo

expresso por exortações, conselhos etc.

Um procedimento interessante é a ordenação das cartas por data (dia, mês e ano).

Isso ajuda a definir a periodicidade com que o autor escrevia e enviava suas cartas,

contribuindo para a reconstituição do ritmo da troca de cartas num determinado período. É

um meio de localizar os assuntos e preocupações mais prementes em uma dada conjuntura,

revelando a intensidade das trocas. A maior parte das missivas está datada, havendo

algumas com o dia do mês sem referência ao ano; outras, contendo o ano, sem referência

ao dia do mês, e umas poucas sem nenhuma indicação. Uma peculiaridade: Capistrano

costumava datar suas cartas utilizando referências a dias de santos, festas móveis, oitavas

de comemorações religiosas ou cívicas, além de indicações curiosas como “dia das petas”,

“oitava de Apulcro de Castro, mártir, 1923”, “dia em que todos os diabos andam soltos”,

“28 do capenga, 1919” etc. Boa parte pode ser traduzida, sendo que algumas só podem ter

62

Ver HEYMANN, “„Quem não tem padrinho morre pagão‟”, op. cit., p. 323-49; Idem. “Indivíduo, memória

e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Muller”. Estudos Históricos –

Dossiê Indivíduo, Biografia e História. Rio de Janeiro, n.19, 1997, p. 41-81. 63

GOMES, “O ministro e sua correspondência”, op. cit.; HEYMANN, op. cit.

190

suas datas aproximadas, a partir das informações que contém – como fizeram os

organizadores ao situá-las na publicação em ordem cronológica.64

Esse procedimento orienta a leitura das missivas de acordo com seu processo de

produção, permitindo o acesso ao discurso do missivista em uma conjuntura específica.

Assim, se não é possível recompor os diálogos entre remetente e destinatário, devido à

ausência de cartas enviadas e/ou recebidas, é possível ter uma idéia das temáticas

abordadas ou das discussões entre Capistrano e um determinado grupo de correspondentes,

desde que se obtenha a relação das cartas enviadas e/ou recebidas num determinado

momento. Trata-se, em suma, de relacionar conteúdos, correspondentes e conjunturas.

Formando conjuntos de cartas produzidas num período “x” – que pode ser de um dia ou

um mês, por exemplo – supõe-se que seja possível a recomposição do ritmo das trocas e o

clima das discussões, sendo que, uma carta pode ajudar a entender outra, mesmo quando os

destinatários ou remetentes são diferentes.

A investigação dos correspondentes foi guiada pela busca de informações

biográficas básicas, como nome, datas de nascimento e morte, atuação profissional e

produção intelectual. Essa última foi ordenada conforme uma tipologia pertinente ao

período analisado. As informações coletadas permitiram uma ordenação da

correspondência de acordo com a identificação de grupos de missivistas que,

supostamente, compunham redes de pesquisas em torno de Capistrano. Ou seja, os grupos

só podem ser pensados em relação a essa figura-chave, com a qual mantinham

correspondência. Assim, têm-se, como hipótese, o seguinte esquema, que identifica dois

grupos principais: o dos colaboradores e o dos discípulos.

64

Chamo a atenção para o fato de que algumas cartas publicadas foram colocadas fora da ordem cronológica

proposta pelo organizador. Além disso, há cartas repetidas em páginas diferentes.

CAPISTRANO DE ABREU

COLABORADORES

DISCÍPULOS

DIPLOMATAS &

POLÍTICOS

ECLESIÁSTICOS BRASILIANISTAS HISTORIADORES

“DE OFÍCIO” E

“AMADORES”

191

A montagem dos grupos baseia-se na leitura das cartas, cujo teor indica o tipo de

relação mantida entre os missivistas. Também se baseia na investigação sobre a posição e

as relações que cada missivista matinha no cenário intelectual do período coberto pela

correspondência de Capistrano: de 1875 a 1927. É preciso chamar a atenção para o fato de

que não foi possível localizar informações sobre a trajetória de todos os correspondentes.

Boa parte deles não figura nos dicionários bio-bibliográficos referentes ao século XIX e ao

início do século XX. Além disso, a correspondência tem muitas lacunas, nem sempre

fornecendo as informações necessárias.

A organização do esquema não ignora que as fronteiras de cada grupo são difíceis

de definir e que, por isso mesmo, precisam ser pensadas como algo flexível. É evidente que

o membro de um grupo podia transitar por outros grupos. A hipótese é de que talvez seja

possível relacionar os correspondentes a grupos-chave com os quais Capistrano manteve

relações e dos quais dependia para a construção de seu capital intelectual ou simbólico.

Supostamente, foi em meio a esses grupos, regidos por afinidades e interesses, que seu

nome e sua produção tiveram maior influência e repercussão.

Compondo o grupo de Colaboradores, estão os subgrupos: Diplomatas e Políticos;

Eclesiásticos; Brasilianistas e Historiadores “de ofício” e amadores. Assim, o subgrupo

Diplomatas e Políticos reúne, como o próprio nome diz, alguns dos profissionais da

diplomacia e da política brasileira, que ao longo de suas trajetórias desenvolveram estudos

sobre o Brasil, particularmente, sobre o tema da formação territorial da nação. São

estudiosos da questão dos limites territoriais, da geografia e da geologia, muito

interessados no problema dos recursos naturais. Desde o século XIX, os diplomatas

brasileiros se dedicavam ao estudo da história pátria, sendo incumbidos pelo governo ou

pelos institutos históricos da tarefa de obter documentos relevantes para a história do país

no Brasil e no estrangeiro. Participando de expedições pelo exterior, conheceram arquivos

e coleções. De modo geral, eram homens práticos, empenhados na obtenção de cópias, no

estabelecimento de periodizações e na descoberta de “provas” históricas úteis para o debate

político em torno da formação territorial do Brasil.65

Entre os correspondentes de

Capistrano ligados ao mundo político e diplomático estão: o Barão do Rio Branco, Oliveira

Lima, Domício da Gama, Francisco de Assis Brasil e Leopoldo Bulhões, por exemplo.

65

RODRIGUES, José Honório. “A evolução da pesquisa pública histórica brasileira”. In: _____. A pesquisa

histórica no Brasil. 1a edição 1952. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969, p. 35-118. 2

a edição

revista e aumentada. Ver, também, GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro,

FGV, 1996, p. 76-77.

192

O subgrupo Eclesiásticos é composto por membros da Igreja Católica que se

dedicavam ao estudo do Brasil colonial e, também, das línguas e costumes indígenas. A

correspondência com esse grupo é marcada pela troca de informações sobre as pesquisas

em andamento. O conjunto é composto pelos padres Carlos Teschauer, Hafkenmeyer,

Domenico de Meis e Galanti.

O sugrupo Brasilianistas reúne os estrangeiros que estudavam a história, a

geografia e a geologia brasileiras, bem como as línguas e costumes indígenas. Entre os

correspondentes localizados por José Honório Rodrigues há dois norte-americanos, Orville

Derby e John Casper Branner, e um alemão, Herman Von den Steinen. Interessante notar

que, Capistrano também mantinha correspondência com instituições estrangeiras como o

Société des Americanistes, na França, da qual era sócio.

O subgrupo Historiadores “de ofício” e amadores é composto por nomes como

Ramiz Galvão, Rodolfo Garcia, Alfredo do Vale Cabral, Vieira Fazenda, Gastão Cruls,

Guilherme Studart etc. São pesquisadores notórios, que ocupam postos-chave no mundo

intelectual da época, atuando em instituições de ensino e, principalmente, em arquivos e

bibliotecas, o que lhes permitia um status de pesquisador semelhante ao de Capistrano.

Podem ser vistos como seus pares mais próximos, pois com ele colaboraram na realização

de pesquisas, traduções, notas e publicações. São eruditos, poliglotas e grandes

bibliógrafos, que atuam na fronteira do antiquarismo.66

A maioria deles não se tornou

conhecida por publicações, pois se dedicavam, em grande parte, às ciências auxiliares da

história e à organização de instrumentos de trabalho, tais como catálogos e obras de

referência.67

Compondo tal conjunto, estão os pesquisadores portugueses João Lúcio de

Azevedo e Tomás Lino de Assunção, além daqueles que atuavam no Arquivo da Torre do

Tombo, em Portugal. Entre esses, a correspondência de Capistrano menciona cartas

trocadas com Antônio Baião, que não foram incluídas na publicação.68

Parece ser

66

Sobre antiquariado, ver por exemplo: GUIMARÃES, Manuel Salgado. “Reinventando a tradição: sobre

antiquariado e escrita da história”. Humanas: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRS.

Historiografia e Tradição Clássica. Porto Alegre, IFCH, vol. 23, n.1/2, 2000, p. 111-143; MOMIGLIANO,

Arnaldo. “O surgimento da pesquisa antiquária”. In: _____. As raízes clássicas da historiografia moderna.

Bauru, EDUSC, 2004, p. 85-117; GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Pequeno tratado

sobre a nota de rodapé. Campinas, Papirus, 1998. 67

Ver RODRIGUES, “A evolução da pesquisa pública histórica brasileira”, op. cit. 68

Há referência a esse grupo, em: FALCON, Francisco José Calazans. “Historiografia portuguesa

contemporânea”. Estudos Históricos – Dossiê Caminhos da Historiografia. Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, 1988,

p. 79-99. O autor menciona a relação dos pesquisadores da Torre com a Revista do Arquivo Histórico

Português e a Revista de História (assinada por Capistrano), dirigida por Fidelino de Figueiredo, apontando a

influência de Alexandre Herculano sobre esse grupo. Ver também RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins.

193

significativo o vai-e-vem de escritores entre o Brasil e Portugal na virada do século XIX.

Além disso, observa-se que, nesse período, havia uma efetiva colaboração – cuja

intensidade é difícil de ser medida sem maiores estudos – entre historiadores dos dois

países, no sentido de redigir obras conjuntas e desenvolver pesquisas à distância.69

São

muitas idéias e textos (manuscritos e impressos) circulando através do correio, o que

sugere a existência de uma “rede de sociabilidades” maior, onde Capistrano evidenciava-se

como erudito, ora dedicado ao estudo do período colonial, ora voltado para o estudo das

línguas e costumes indígenas. Além disso, nas cartas enviadas a Lino de Assunção e João

Lúcio de Azevedo, há indicações de um amplo conhecimento, por parte de Capistrano, da

produção e do meio historiográfico português, assim como, da documentação arquivística

sobre o Brasil existente em Portugal.

Mas, ao lado desses historiadores de ofício, estão muitos amadores, que aqui serão

identificados como aqueles que não atuavam efetivamente em instituições como escolas,

arquivos e bibliotecas. Tampouco atuavam na política ou na diplomacia. Ou seja, não se

enquadram em nenhum dos subgrupos de colaboradores indicados. São, em geral, homens

cujas atividades profissionais possibilitavam tempo e dinheiro para a pesquisa histórica,

geográfica, geológica, etnográfica, lingüística etc. Muitos eram funcionários públicos ou

comissionados, havendo, também, comerciantes, militares, profissionais liberais

(engenheiros, advogados, médicos). Parece ser o caso de Teodoro Sampaio, Luís Sombra,

Domingos Jaguaribe, Urbino de Sousa Viana, Tasso Fragoso etc.

Já o grupo Discípulos reúne aqueles que foram alunos de Capistrano ou que, a

partir de algum momento, passaram a seguir sua orientação nos estudos. A

correspondência entre eles é bastante marcada pela relação entre mestre e discípulo, sendo

Capistrano um ativo leitor crítico de seus trabalhos. Mesmo reconhecendo que muitos dos

nomes que compõe esse grupo poderiam ser incluídos entre os colaboradores, devido à

atuação profissional, a opção foi privilegiar o teor da relação com Capistrano. São cartas

pontuadas por recomendações de leitura, reprimendas quanto a interpretações e incentivos

à pesquisa em arquivos. Entre os discípulos correspondentes de Capistrano estão: Afonso

“O achamento do Brasil e de Portugal: perfil intelectual do historiador luso-brasileiro João Lúcio de

Azevedo”. Acervo – Revista do Arquivo Nacional, vol. 12, n. 1/2, jan/dez 1999, p. 37-66. Entre os

pesquisadores que atuavam na Torre do Tombo estavam, por exemplo: Antônio Baião, Pedro de Azevedo e

Costa Lobo. 69

Luís Reis Torgal lembra que alguns estudiosos portugueses vinham para o Brasil como exilados políticos.

Além disso é significativo o número de brasileiros que receberam o título de doutor honoris causa nas

universidades portuguesas, especialmente em Coimbra. Ver TORGAL, Luís Reis. “A história de Portugal

vista de fora”. In: TORGAL, Luís Reis, MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da

história em Portugal, séculos XIX e XX. S.l.: Temas & Debates, [1998], vol.1, p. 403.

194

d‟Escragnolle Taunay, Paulo Prado, João Pandiá Calógeras, Mário de Alencar, Eugênio de

Castro, Alberto Rangel, Tobias Monteiro, Edgar Roquette-Pinto70

etc. Nem todos se

dedicavam à escrita da história. Aqueles que o faziam, geralmente se interessavam por

temas relativos ao Brasil colonial, mas não somente. Outros preferiam se dedicar à

elaboração de romances históricos, estudos etnográficos e lingüística indígena.

Tais grupos ajudam a delimitar a rede de correspondentes de Capistrano de Abreu,

sendo possível concluir que, aqueles que se dedicavam ao estudo da história no final do

século XIX e nas décadas iniciais do século XX eram formados pela prática de pesquisa

em arquivos, familiarizados, portanto, com a leitura de manuscritos. Eram intelectuais com

formação e atuação em áreas diversas como a engenharia, o direito, a medicina, as forças

armadas, o mundo diplomático e eclesiástico, que desenvolviam estudos históricos em

função de suas trajetórias profissionais e políticas. Alguns possuíam espírito cosmopolita,

recursos financeiros e tempo para viajar, sempre em busca de novos documentos sobre o

Brasil. Outros passaram a vida nos arquivos e bibliotecas locais, empenhando-se em

atividades por vezes pouco reconhecidas, tais como a organização de catálogos, anais,

índices etc., ou ainda, no exercício das ciências auxiliares da história, tais como a

diplomática, a numismática, a epigrafia, a genealogia, a cronologia, a cartografia etc.

Como observou Ângela de Castro Gomes, esses “historiadores” são homens com

um desenvolvido gosto pelo passado, pela pesquisa em arquivos e bibliotecas. Muitos

foram impelidos ao métier de historiador por imperativos políticos e se tornaram

conhecidos pelo combate de idéias e pelo enfrentamento dos problemas nacionais. Acima

de tudo, eram eruditos e essa qualidade os distinguia dos demais, ajudando a confirmar a

idéia de que o estudo da história não era então um “hobby de aristocratas decadentes e

políticos frustrados”, uma vez que exigia árduo investimento de tempo e dinheiro.71

A correspondência de Capistrano de Abreu pode ser vista como uma rede

construída em torno de si e motivada pelo interesse por um tema comum: a história do

Brasil ou, mais especificamente, pelo tema da formação da nacionalidade, relacionado à

época colonial e à constituição do território, do povo e da cultura brasileira (muitas vezes

focalizada através de discussões sobre a língua). Suas cartas apresentam aspectos do

convívio à distância entre intelectuais, deixando entrever momentos da experiência de

realizar pesquisas e leituras sozinho ou em grupo, de trocar idéias, de lembrar o passado e

70

Roquette-Pinto dizia que Capistrano havia sido o mestre de seus estudos etnográficos. Manteve com ele

correspondência, mas essa não foi incluída na edição organizada por José Honório Rodrigues. 71

GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 76-77.

195

de elaborar projetos para o futuro. Portanto, tais cartas são um espaço privilegiado para a

construção de sua identidade como historiador, sobretudo por permitir diálogos consigo

mesmo e com um grupo de pares e discípulos de suma importância para o seu

reconhecimento como intelectual e para a valorização de seus trabalhos como estudos

históricos. Diante dessa documentação e das muitas possibilidades que ela oferece ao

investigador, a opção foi concentrar o foco em dois problemas interligados: o da

construção da identidade do historiador e o da prática do ofício. A primeira percebida

através dos modos de ser e, a segunda, dos modos de fazer.

196

5

Modos de ser 72

Assim como muitos nomes de seu tempo, Capistrano de Abreu teve na escrita de

cartas uma ocupação constante e, por meio dela, desenvolveu certa disciplina de trabalho e

de interiorização, expôs expectativas, definiu planos, estabeleceu relações e refletiu sobre a

própria vida. Sua correspondência conjuga uma memória sobre si e sobre diversos tipos de

acontecimentos (pessoalmente vividos ou não) com a elaboração de projetos, geralmente

relacionados às atividades de pesquisa e escrita da história. Memória e projetos ajudam a

sustentar a construção identitária, por meio da qual o missivista pode ser visto.73

Como observou Michel de Certeau, a escrita tem uma importância capital na

construção de si, pois essa atividade permite ordenar, rearranjar e dar significado à

existência, possibilitando a construção simultânea de um texto e de seu autor.74

No caso, a

escrita de cartas promove o intercâmbio com o outro, através do qual os significados

atribuídos às experiências vividas são constantemente submetidos à avaliação. Assim,

escrever e trocar cartas permite um exercício pessoal muito particular, sujeito a inúmeras

aproximações e afastamentos entre os missivistas, cuja relação é marcada pela ausência e

72

Este capítulo foi desenvolvido a partir de dois artigos: GONTIJO, Rebeca. “„Paulo amigo‟: amizade,

mecenato e ofício do historiador nas cartas de Capistrano de Abreu”. In: GOMES, Angela de Castro (Org.).

Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro, FGV, 2004, p. 163-193; e, Idem. “A reta e o círculo:

amizade, projeto intelectual e construção identitária nas cartas de Capistrano de Abreu e João Lúcio de

Azevedo (1916-1927)”. Trajetos – Revista de História. Fortaleza da UFC. Fortaleza, Dep. de História da

Universidade Federal do Ceará, vol. 3, n. 5, 2004, p. 101-128. 73

As principais referências para a reflexão sobre a memória, aqui utilizadas, são: VELHO, Gilberto.

“Memória, identidade e projeto”. In: _____. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas.

Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p. 97-105. Originalmente publicado na Revista Tempo Brasileiro, n. 95,

out./dez. 1988, p. 119-126; POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos –

Dossiê Memória. Rio de Janeiro, n. 3, 1989, p. 3-15; Idem. “Memória e identidade social”. Estudos

Histórico. Rio de Janeiro, FGV, n. 10, 1992, p. 200-212; BARROS, Myrian Moraes Lins de. “Memória e

família”. Estudos Históricos – Dossiê Memória. Rio de Janeiro, n. 3, 1989, p. 29-42; BOSI, Ecléa. Memória

e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das Letras, 1994; e ALBERTI, Verena. Ouvir

contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 2004. 74

CERTEAU, Michel de. “A economia escriturística”. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de fazer.

Petrópolis, Vozes, 1994, p. 221-246; GOMES, op. cit., p. 16.

197

pela espera (de respostas ou de um encontro).75

Quem estuda correspondências acaba se

deparando com aspectos subjetivos, expressos através do clima emocional e íntimo

desenvolvido entre remetente e destinatário. É possível localizar momentos estratégicos do

relacionamento entre os missivistas, quando se observa o investimento efetuado por cada

um na elaboração de interpretações sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo.

Considerando a carta como um exercício de escrita que favorece a objetividade e a

subjetividade, a proposta é explorar o território epistolar, procurando, em primeiro lugar,

compreender o processo de construção da identidade social e intelectual de Capistrano de

Abreu. Trata-se de um espaço “acidentado”, onde nem sempre é possível perceber até onde

os caminhos abertos pelos missivistas podem levar. Diante disso, a opção foi eleger dois

eixos norteadores. O primeiro direciona o olhar para a escrita de si, que articula falas sobre

o corpo, a saúde, os prazeres, as dores, os interesses, as relações com os outros, os motivos

de alegria etc. Busca-se o indivíduo na sua “intimidade”, no contato consigo mesmo e com

aqueles que lhe são próximos, na reflexão sobre a existência e na relação com a

temporalidade – expressa através de lembranças do passado, percepções do presente e

expectativas de futuro.76

Dando seqüência a esse exercício interpretativo, o segundo item

focaliza duas atividades fundamentais na construção identitária do intelectual em questão:

a leitura e a escrita. Em outras palavras, procura-se captar um auto-retrato de Capistrano

enquanto leitor e escritor.

5.1. “Entre quatre yeux”

De repente vieram-me saudades suas e comecei a

escrever-lhe intimamente, como se estivéssemos entre

quatre yeux, e não houvesse gente à escuta (carta de

Capistrano de Abreu a Guilherme Studart,

21/09/1901).77

Escrever “entre quatre yeux”, como se “não houvesse gente à escuta”. A prática

epistolar permite conjugar, de modo singular, três ações simultâneas: escrever, ver e ouvir.

75

VINCENT-BUFFAULT, Anne. Da amizade: uma história do exercício da amizade nos séculos XVIII e

XIX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996, p. 18. 76

Sobre a escrita de si através das cartas, ver: DIAZ, Brigitte. “Correspondance et écriture de soi”. In: _____.

L’épistolaire ou la pensée nomade. Paris, PUF, 2002, p. 139-194. 77

Carta a Guilherme Studart, 21/09/1901. In: ABREU, Capistrano de. Correspondência. Organizada e

prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, MEC, 1977, vol. 1, p. 152.

Todas as cartas citadas ao longo do capítulo foram extraídas dessa edição. Diante disso e a fim de reduzir o

tamanho das notas, a opção foi citar apenas o nome do destinatário, seguido pela data da carta, o volume da

publicação e a página.

198

A audição está relacionada ao diálogo entre os missivistas e à dimensão de oralidade

presente nas cartas, sobretudo quando regidas por um tom coloquial, bem próximo da

comunicação oral. Assim, pode-se dizer que há certa analogia entre escrever cartas e

conversar pessoalmente.78

Como justificou Capistrano, ao redigir uma carta: “preferi, a ler,

conversar um pouco”.79

Já a possibilidade de ver que a correspondência abre está relacionada à presença do

outro. Conforme está dito no trecho de carta que serve de epígrafe, o exercício de escrever

cartas se dá “entre quatro olhos”, pois é em função do outro que a carta é escrita e é diante

dele que, apesar da distância física, o remetente se expõe e alimenta a expectativa de

resposta. Desse modo, a correspondência propicia um tipo de presentificação. Para Michel

Foucault, trata-se de “uma espécie de presença imediata e quase física”, que se assemelha

ao exercício de dar-se a ver. Assim:

(...) a carta é simultaneamente um olhar que se volve para o destinatário (por meio da

missiva que recebe, ele se sente olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu

olhar pelo que de si mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face-a-face.80

Na relação epistolar os missivistas se afetam mutuamente. E a carta começa a afetá-

los mesmo antes de ser lida, uma vez que, sendo um objeto materializado pela forma e cor

do papel, pela tinta, pela letra reconhecível do remetente etc., ela acaba valendo, aos olhos

daquele que a recebe, como um representante daquele que a escreve. Sendo assim, a

correspondência equivale a um “ato de presença”, pois promove uma espécie de encontro

entre remetente e destinatário.81

A percepção da presença do outro passa, por exemplo, pela imaginação dos espaços

por onde ele circula: sua cidade, sua rua, sua casa. Em carta, Capistrano manifesta o quanto

sentia seu amigo luso-brasileiro João Lúcio de Azevedo próximo, apenas por saber que ele

retornara a sua casa, em Portugal, após uma viagem à Inglaterra:

78

GOMES, Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 19 e 21; DIAZ, “Correspondance et écriture de soi”,

op. cit., p. 24-25. 79

Carta a Mário de Andrade, 13/01/1910, vol. 1, p. 219. 80

FOUCAULT, Michel. “A escrita de si”. In: _____. O que é um autor? Tradução de Antônio Fernando

Cascais e Eduardo Cordeiro. 4a edição. S.l., Vega/Passagens, 2000, p. 150.

81 Ibidem, p. 150; e, também, LANDOWSKI, Eric. “A carta como ato de presença”. In: _____. Presenças do

outro: ensaios de sociossemiótica. 1a edição francesa 1997. São Paulo, Perspectiva, 2002, p. 165-181.

199

Sua carta alvoroçou-me. A partida de Londres é uma aproximação e bem grande. Sabê-lo

em sua casa da Rua de Alexandre Herculano é como se o Atlântico se estreitasse e

pudéssemos dialogar de uma costa para outra.82

Da mesma forma, ao olhar um mapa do Rio e localizar a rua onde Capistrano vivia,

João Lúcio comentou: “Em uma planta do Rio, que trouxe meu filho, vi o morro da Glória,

e a Rua D. Luísa. Pareceu-me ficarmos mais perto agora. Como não posso ir em pessoa,

subo com a vista as alturas”.83

Dois momentos que podem ser considerados estratégicos para a construção da

relação com o outro através da correspondência são aqueles que abrem e encerram as

cartas. Através das formas de tratamento do destinatário é possível observar o teor da

relação, ainda que se admita a existência de códigos sociais que regulam a escrita epistolar.

Além dos tratamentos formais, que revelam polidez, e pessoais, que indicam afeto, os

missivistas também podem fazer uso do tratamento por nome, em geral combinado com

expressões que indicam o lugar do destinatário na relação e no coração.

Nas cartas de Capistrano a João Lúcio de Azevedo, por exemplo, observa-se a

crescente construção da intimidade e da identificação, através das formas de tratamento.

Entre as primeiras cartas trocadas, em 1916, estão aquelas em que o remetente se dirige ao

destinatário como “Exmo. Amigo Sr. Lúcio de Azevedo” ou “Ilmo. Sr. João Lúcio de

Azevedo, historiador, esquire”. Posteriormente, Capistrano passa pelo formal “Prezado

amigo”; abre espaço para uma maior aproximação com o “Prezado amigo e xará”, até

chegar ao simples e qualificador “Amigo” e ao tratamento adjetivado expresso pelo “Bom

e caro amigo”.

Já as formas de encerramento exibem a disposição do remetente que se despede,

podendo fornecer indícios sobre seu estado de espírito, humor, ou qualquer outro

sentimento. Supostamente, elas visam causar algum tipo de efeito sobre o destinatário,

estimulando-o a manter o vínculo, respondendo a carta; afirmando, após tudo o que foi dito

ou que deixou de sê-lo, que ele, o remetente, permanece ali, disposto a continuar a troca,

sentindo-se capaz de cumprir uma espécie de obrigação.

Ainda tomando as cartas a João Lúcio como exemplo, é comum o uso de

despedidas à francesa (“bien à vous” = ao seu dispor) ou à alemã (“ergebenst” = ao seu

dispor; às suas ordens). Capistrano costuma se colocar ao inteiro dispor de seu

82

Carta a João Lúcio de Azevedo, 11/09/1919, vol. 2, p. 133. 83

Carta de João Lúcio de Azevedo, 03/03/1922, vol. 3, p. 241.

200

correspondente, posicionando-se como “admirador” e “amigo obrigado”. Por vezes,

coloca-se em posição inferior: “ao seu dispor, a inutilidade do admirador e amigo

obrigado”, “sempre e com o maior prazer espera-lhe as ordens”, chegando a pedir

desculpas por abusar da paciência do amigo. Este uso retórico da despedida parece indicar

a disponibilidade para a relação e a consciência de que esta pode lhe impor obrigações, que

são aceitas antecipadamente.

Há despedidas que dão lugar a demonstrações de afeto, tais como: “subscrevo-me

com toda a estima”; “com um abraço não afrouxado pelo oceano”; “saudades”; “abraços”.

E há aquelas marcadas pelo humor: “e adeus, débil infante!”; “Vivat! Crescat! Floreat!”;

“Evoé! Zé-Pereira!”; “Aleluia, aleluia! Carne no prato e farinha na cuia!”. Outras

expressam desejos de melhoras de saúde, de boas entradas no ano novo, de encontro etc.

Mas, há também o corte abrupto, do tipo: “adeus...”; “por hoje basta”; “e não há mais

espaço nem tempo”; “paro por aqui para não perder o correio”; “por hora não me lembra

mais cousa a acrescentar”; “não há tempo para mais”; “não posso mais”; “até...”; “basta,

basta...”. Por fim, a despedida pode ser um momento de saudação: “Saudações!

Saudações!”; ou ainda, um convite a continuar a relação: “e até outra”; “até outra vez”;

“para aperitivo basta”.

Importa ressaltar que, nas despedidas, Capistrano se vê, antes de tudo, como um

admirador de João Lúcio, considerando-se apto e compelido a cumprir obrigações para

com ele. Capistrano agradecido coloca-se quase sempre ao dispor de seu correspondente,

sendo possível supor que ele esperasse o mesmo do amigo de além mar. Lembro que o

termo obrigado, tanto pode significar agradecido ou compelido, quanto indicar algo

necessário e indispensável. Um remetente que se coloca como “obrigado” diante de seu

destinatário, parece querer dizer: disponha de mim, pois posso lhe ser útil e necessário. Ao

mesmo tempo, Capistrano se mostra como um amigo que é um igual, que é um par.

Acompanhando a seqüência de despedidas ao longo dos onze anos da

correspondência (de 1916 a 1927), observa-se o desenvolvimento de certa intimidade, o

que permite abrir mão de grandes demonstrações de afeto, pois estas parecem deixar de ser

imprescindíveis para manter o vínculo entre os missivistas, uma vez que eles possuem

afinidades que o garantem.

Além de permitir o estabelecimento de relações de amizade e afeto, as cartas de

Capistrano constroem uma verdadeira rede de estudos à distância. Segundo Anne Vincent-

Buffault, “a amizade é, por sua força dialógica, laboratório da obra”. Através da relação

epistolar é possível exortar, planejar atividades conjuntas e expor trabalhos individuais

201

ainda em curso, submetendo-os a constantes modificações. Na correspondência em

questão, observa-se a existência de relações de amizade intelectual entre pares e discípulos,

unidos por preocupações comuns e que experimentam uma relação profunda e durável,

sendo que Capistrano parece atuar como uma espécie de figura central.84

Esse espaço, longe de ser regido pela impessoalidade e pela formalidade –

freqüentemente associadas às cartas relativas a negócios ou ao mundo do trabalho – é

marcado pela afetividade. Assim, é possível observar uma rede de estudos tecida por meio

de pequenos gestos de amizade. Entre pedidos de cópia de documentos e remessas de

livros feitos pelos missivistas, desenvolve-se a atividade crítica e o afeto. A

correspondência traz comentários dos textos de um, feitos pelo outro. Também transmite

observações a respeito da atividade de leitura e pesquisa. As cartas deixam ver a

disponibilidade dos missivistas para uma relação entre iguais ou entre o mestre Capistrano

e seus discípulos, havendo exibições de respeito mútuo pelos trabalhos realizados, bem

como, espaço para críticas e autocríticas.

As demonstrações de afeto surgem, por exemplo, através dos muitos elogios,

estímulos e sugestões enviados pelo correio. Mais uma vez tomando a correspondência

com João Lúcio de Azevedo como exemplo, observa-se que Capistrano o considerava um

“espírito vigoroso e maduro”. Congratulava-o pelo término de seus trabalhos: “eis pois

ultimada a primeira e mais difícil parte da obra de sua culminância intelectual. Minha

alegria e minha satisfação são grandes e dou-lhe com entusiasmo um abraço afetuoso”. E

elogiava seus resultados, dizendo: “Li imediatamente, devorei-o até o fim e deixou-me

prazer e contentamento: a entrada anuncia bem o monumento planejado; sinto-me

perfeitamente tranqüilo”. Ou ainda: “Li quase metade dos Cristãos-novos, sempre com o

maior prazer. Revela grande progresso: às vezes sucedia-me não saber exatamente sua

opinião em seus livros anteriores: agora clareza ou franqueza, a impressão é outra”.85

João Lúcio considerava Capistrano “um Mestre” e também não poupava elogios.

Após ter lido a introdução, escrita por Capistrano, para um dos livros de Frei Vicente do

Salvador, comentou: “trabalho de alta erudição, cheio de novidade e que decididamente

esgota o assunto (...) felicito-o por este trabalho, verdadeiramente digno do nome que o

84

VINCENT-BUFFAULT, Da amizade, op. cit., p. 36 e 40; ver, também, TREBITSCH, Michel.

“Correspondance d‟intelectuels: le cas des lettres d‟Henri Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947)”. Les

Cahiers de L’IHTP – Sociabilites Intelectuelles: lieux, milieux, réseaux, n.20, p. 83-4, mars, 1992. 85

Cartas a João Lúcio de Azevedo, 05/05/1924, 16/04/1919, 24/01/1917, 27/09/1917, 31/12/1921, vol. 2, p.

299, 123, 25-26, 73 e 231, respectivamente.

202

autor tem entre os que estudam e sabem de sua terra”. Também agradecia a atenção que lhe

dedicava o brasileiro. Após receber um texto enviado por este último, disse:

Sua idéia de me mandar a parte que evidentemente mais poderia interessar-me, por me ser

mais familiar, denota a delicadeza de quem, fazendo um presente, busca o que mais pode

agradar ao presenteado.86

E, após receber elogios do historiador brasileiro, agradecia: “tive grande alegria em

ver na sua carta que leu com prazer o capítulo da História de Vieira sobre as missões. De

fato sinto-me com suas palavras orgulhoso e feliz”. E segue, revelando o quanto sua escrita

desenvolvia-se supondo a presença do outro: “creio que, quando escrevi aquilo, o fiz com o

sentido de lhe agradar”.87

Para Capistrano, “do mesmo modo que médico só cura quem não está doente,

também só há vantagem em discussão, quando as opiniões são idênticas”.88

A troca

epistolar com João Lúcio parece ter sido marcada pela harmonia, indicando um tipo de

relação onde os missivistas se percebem como iguais. Relação distinta foi construída, por

exemplo, com Afonso Taunay e Mário de Alencar, seus ex-alunos.

Com Mário, filho do escritor José de Alencar e uma espécie de protegido de

Machado de Assis, as exortações eram comuns, dado o constante desânimo do destinatário

diante da vida e uma tenaz dúvida sobre o valor do próprio trabalho. Dizia:

Você precisa deixar seu pai de lado; o que ele podia dar-lhe de bom já deu; maior

convivência do que V. tem tido com o espírito dele, agora só pode lhe fazer mal; paralisaria

seu desenvolvimento, condenaria V. ao triste papel de epígono.89

Capistrano parece achar que Mário tanto cultuava seu falecido pai, que lhe faltavam

energias para a própria evolução como escritor. Aconselhava-o a deixar o passado e

dedicar-se inteiramente ao presente. Ordenava: “fora com o ramerrão!”, concluindo que:

É difícil; mas é possível dar uma direção nova à vida, como gato que se vira no ar e cai

sobre os pés: em nosso tempo, Goethe fez isto, depois da viagem da Itália; Comte fez isto

86

Carta a Capistrano de Abreu, 08/08/1918, vol. 3, p. 227. 87

Carta a Capistrano de Abreu, 25/05/1919, vol. 3, p. 229. 88

Carta a João Lúcio de Azevedo, 31/12/1921, vol. 2, p. 232. 89

Carta a Mário de Alencar, 14/09/1901, vol. 1, p. 209.

203

depois de conhecer Clotilde; anteriormente Dante tivera a idéia da Vita Nuova; precedentes

não faltam; falta é quem se inspire neles e aumente o número.90

Contudo, o próprio Capistrano terminava por admitir: “Eu infelizmente não o

consegui, e já dei de mão a tais ambições”.91

Já a correspondência com Afonso Taunay, a quem Capistrano dera aulas

particulares quando jovem, parece ter sido marcada tanto pelas discussões acerca das

pesquisas em andamento – às vezes revelando visões e interesses dissonantes –, quanto

por freqüentes conselhos, sugestões e reprimendas, configurando uma relação entre mestre

e discípulo. Pra começar, Capistrano se irritava com o tratamento que Taunay lhe

dispensava: “É você teimoso! Já lhe disse várias vezes: nem mestre nem dr.! Mestre!?

Mestre de meninos? Sabe você perfeitamente que me doutorei na „academia de xenxém‟.

Não reincida que o caso é de non placet”. Alertava o destinatário sobre o perigo do

anacronismo: “Se você escreve um romance histórico, tome tento sobretudo com os

diálogos. Não vá fazer um sujeito de 1630 falar como um carioca de agora. Aí está o maior

escolho, a meu ver. E leia, leia e leia!”.92

E criticava suas escolhas:

A sua idéia de escrever uma história dos capitães-generais de S. Paulo é simplesmente

infeliz. Que lembrança desastrada a de preferir um período desinteressante, quando a época

dos paulistas é o século XVII! (...) Reserve você para si o melhor naco, e deixe os miúdos

para quem deles gostar.93

Mas, também se alegrava com as escolhas que julgava úteis: “Alegrou-me a

resolução de acrescentar índice à Nobiliarquia de Taques; o livro ficará valendo muito

mais; sua Formação Intelectual não menos”. Motivo de repreensão era dado quando

Taunay escrevia Brasil com z: “Vi ontem o modo por que V. escreve Brasil e fiquei

horrorizado. Continue, se quiser, com a cangalha quebrada, mas nunca diga que lhe dei

uma só lição. Hei de negá-lo uma e muitas vezes a pés juntos, antes e depois do galo”.94

As cartas a Taunay são verdadeiras lições de história e historiografia, que incluíam

a orientação de leituras, a discussão de planos e interpretações, além das observações

acerca do melhor modo de apresentar o trabalho, em termos de narrativa. Capistrano

90

Carta a Mário de Alencar, op. cit., p. 210. 91

Ibidem. 92

Carta a Afonso Taunay, s/d, vol. 1, p. 274. 93

Carta a Afonso Taunay, “Dia de S. Bertoldo e S. Columbano, [1904]” (21/11/[1904]), vol. 1, p. 276. 94

Cartas a Afonso Taunay, 09/01/1914, 02/06/1917, vol. 1, p. 277 e 282.

204

julgava que “em história o ideal é não deixar trabalhos para os outros, enquanto não

aparecem novos documentos”. As notas deveriam acompanhar os textos sem chamadas.

Uma simples diferença de tipos deveria evitar a confusão. Também aconselhava deixar a

retórica de lado – “deite fora a retórica, reduza o volume ao rigorosamente significativo” –

e a evitar referências vagas ou indiretas: “Ouça-me: nada de alusões literárias! Nem

mesmo as corriqueiras: o que uma geração conhece é muitas vezes totalmente ignorado

pela seguinte”.95

Nesse item, Taunay reincidia, pois o remetente reclamava:

Mais uma vez chamo sua atenção para as paráfrases e alusões. Não estará V. em idade de

poder ou vir ainda libertar-se deste cacoete? Não tenha medo de fazer artigos curtos e siga

o conselho augusto: pão, pão; queijo, queijo.96

É possível afirmar que a correspondência de Capistrano foi marcada por dois tipos

de relação: aquela entre mestre e discípulos, caracterizada pela atividade de orientação dos

estudos; e aquela entre pares que colaboravam ativamente na pesquisa uns dos outros. No

primeiro caso, o nome de Afonso Taunay se destaca como um dos discípulos principais.

Ao lado dele estavam, por exemplo, Mário de Alencar, que se dedicava à literatura e à

produção de artigos sobre temas contemporâneos; Paulo Prado, João Pandiá Calógeras,

Eugênio de Castro e Tobias Monteiro, empenhados no estudo da história do Brasil,

sobretudo a do período colonial; e Alberto Rangel, autor de romances históricos. No

segundo, observa-se a existência de diferentes grupos de interlocutores: os diplomatas e

políticos, tais como o Barão do Rio Branco, Domício da Gama, Oliveira Lima, Francisco

de Assis Brasil, Graça Aranha e Leopoldo Bulhões; os eclesiásticos, como os padres

Carlos Teschauer, Galanti e Domenico de Meis; os brasilianistas Orville Derby e John

Casper Branner; e os portugueses Lino de Assunção e João Lúcio de Azevedo. São, na

maior parte, estudiosos da história e da geografia nacional, bem como das línguas

indígenas.

Mas, além de ser um espaço propício para discussões intelectuais, a

correspondência também dá lugar a uma escrita de si, identificada nas lembranças do

passado, nas observações sobre os próprios gostos, prazeres, alegrias e tristezas, na relação

do indivíduo com a temporalidade. Como foi dito no início, a escrita de cartas, que faz

95

Cartas a Afonso Taunay, 09/01/1914, 26/08/1919, s/d [meados de 1917], vol. 1, p. 277, 302, 284. 96

Carta a Afonso Taunay, 17/12/1919, vol. 1, p. 304.

205

parte da rotina diária dos missivistas, propicia um tipo de olhar sobre si e sobre a própria

trajetória, que é constantemente submetido ao olhar do outro.

Em carta ao Barão Studart, Capistrano inclui uma nota biobibliográfica, escrita na

terceira pessoa. Atendia a um pedido do destinatário, que então compunha seu Dicionário

Biobibliográfico Cearense, publicado entre 1910 e 1915. A escrita autobiográfica segue a

trajetória intelectual, das primeiras letras no Ceará, aos primeiros escritos publicados na

década de 1870; a partida para o Rio de Janeiro, em 1875; a nomeação para oficial da

Biblioteca Nacional, em 1879; a colaboração na Exposição de História do Brasil e na

Gazeta de Notícias; a nomeação por concurso para o Colégio Pedro II, em 1883; as

traduções e os principais trabalhos publicados; a História do Brasil em andamento.

Abstraindo-se da trajetória, emite breve opinião acerca da existência, ao dizer que “não

quis fazer parte da Academia Brasileira [de Letras], e é avesso a qualquer sociedade, por já

achar demais a humana”.97

Por anos a fio, Capistrano recordaria a vinda para o Rio de Janeiro, em abril de

1875, data que parece ser uma espécie de divisor de águas em sua vida. Um exemplo é a

carta – escrita no ano de sua morte – para a filha Honorina, na qual recorda:

Há 52 anos desembarcava aqui, um domingo, dia de cerração. Quão pouco sabia da vida.

Não distava muito de um cego, solto nesta cidade de automóveis. Ainda hoje, quando

penso no passado, não compreendo como não soçobrei desde as primeiras passadas.

Felizmente o pior está passando.98

Os aniversários são bons momentos para reavaliar a vida e ocasião oportuna e

socialmente indicada para demonstrações de afeto, por mera formalidade ou não.

Capistrano afirmava não gostar de comemorar o próprio aniversário. Certa vez, comentou:

“parabéns de aniversário justificam-se pela certeza de que sobre o passado não podem

influir forças humanas ou sobre-humanas, ou porque já não são muitos os dias a amargar.

Em uma ou outra hipótese, agradeço-lhe cordialmente”. Quando completou 72 anos,

97

Carta a Guilherme Studart, 18/08/1901, vol. 1, p. 150-154. Em carta posterior, refere-se a essas “copiosas

informações” de sua “pouco interessante vida”, observando que seu objetivo principal era esclarecer que

alguns trabalhos lhe haviam sido indevidamente atribuídos por Sacramento Blake, autor do Dicionário

Bibliográfico Brasileiro (1883-1902). É interessante notar que os biógrafos de Capistrano parecem ter

seguido de perto a trajetória delineada pelo biografado, pois utilizam os mesmos marcos referenciais. Ver

carta a Guilherme Studart, 05/06/1902, vol. 1, p. 173. 98

Carta a Honorina, 25 de abril [1927], vol. 1, p. 69. A mesma lembrança da vinda para o Rio está presente

nas cartas a: João Lúcio de Azevedo, 25/04/1921, vol. 2, p. 208; Idem. Abril de 1923, vol. 2, p. 274; Afonso

Taunay, 26/04/[1922], vol. 1, p. 329.

206

mencionou: “setenta e dois nove fora nada. É simbólico e justo. Felizmente não tenho que

repeti-los”. Mas solidarizava-se com a passagem de anos dos amigos. Disse a João Lúcio:

“lembrei-me bastante de V. no dia de seus anos. Não festejo os meus porque o isolamento

corresponde melhor à realidade, mas associo-me cordialmente aos amigos”.99

Ao parabenizar os amigos por seus aniversários, Capistrano, supostamente, deixa

transparecer sua preocupação com a realização de seus próprios projetos e ambições ao

longo da vida. Pode-se dizer, que aquilo que desejava ao amigo fosse, também, uma

aspiração sua. Assim, deseja a João Lúcio “que a vida lhe chegue para a realização de

todos os planos restantes”; ou, ainda, “que lhe dure a vida enquanto durarem suas ambições

e que nenhuma deixe por satisfazer e que a saúde se enrije cada vez mais”. A vida bem

vivida é aquela em que é possível ter e realizar projetos, assim como, obter um justo

reconhecimento, como pode ser lido no seguinte trecho:

Ei-nos chegados a sua semana natalícia. Venho dar-lhe o abraço afetuoso, a que espero o

tempo e a distância não tirem todo o calor com que parte. Vejo com prazer que a sua

situação cresce em Portugal e começam a fazer justiça a sua obra. Que lhe seja permitido

realizar os trabalhos planejados!100

A correspondência expõe aspectos da intimidade das sensações físicas, da velhice e

seus corolários: a possibilidade da perda de amigos e parentes, da juventude e, também, da

memória. Capistrano se permite divagar sobre o ócio, a velhice, a solidão e a morte. Em

carta a Mário de Alencar, por exemplo, ele fala do sentimento de perda como algo

constitutivo de si mesmo e apresenta-se como um conformista, orgulhoso de não ser

obtuso:

Considero-me uma ave qualquer que desde quase vinte anos outra cousa não fez senão

perder penas; as novas não substituem as antigas, e o vôo faz-se cada vez mais rasteiro, e lá

um dia virá, sobre todos desejado, em que cesse a faculdade de voar. Eis o meu caso,

querido Mário. Não sou pessimista, não sou otimista, sou um conformista, quem sabe? Um

satisfeito, mas hoje gosto tanto de não ser obstrusivo (sic)!101

99

Cartas a João Lúcio de Azevedo, 11/11/1920, 23/10/1925 e 13/06/1922, vol. 2, respectivamente, p. 184,

341 e 375. 100

Carta a João Lúcio de Azevedo, 11/04/[1926], vol. 2, p. 349. 101

Carta a Mário de Alencar, 09/01/1910, vol. 1, p. 213. Ao invés de “obstrusivo”, talvez Capistrano tenha

querido dizer obtuso: rude, bronco, fechado, insensível.

207

Entre as grandes perdas, identificava a entrada da filha mais velha, Honorina, para o

convento. Sobre isso, comentou:

Não comparo a separação de Honorina à morte. Disse apenas que compreendo as causas de

seu ato, mas que isto me consola tanto como saber a doença a que a mãe sucumbiu. As

causas ocupam o segundo plano: o primeiro cabe aos efeitos. Acho, porém, o caso dela pior

que a morte: a morte é fatal; chega a hora inadiável; em resoluções como a de agora há

sempre a crença, certamente errônea, de que o desenlace podia ser outro, e é isto que dói.

Só agora vejo como a queria. Passo os dias sem sair, pensando nela, joguete dos

sentimentos mais contraditórios, desde a indignação até as lágrimas. Só com os filhos, à

hora do jantar, converso sobre ela. O receio de que qualquer estranho se possa referir ao

assunto dá-me arrepios. O isolamento não me pesa, alivia-me. A dor geral transformou-se;

sinto um frio íntimo que vai da espinha aos olhos mas os acessos vão-se espaçando e duram

menos. (...) Não irei vê-la; as cartas suas só responderei se precisarem de resposta;

correspondência não quero ter. (...) Mas basta de Honorina. Peço-lhe que nunca mais se

refira a este assunto, se eu em primeiro lugar não o abordar.102

Capistrano nunca pôs os pés no convento. Comunicava-se com a filha por carta,

atendendo a alguns pedidos – tais como a obtenção de livros – e recusando outros, como a

conversão ao catolicismo. Sobre essas cartas, chegou a comentar:

Escreve-me, às vezes, umas cartas estéreis que se limitam a dizer que nunca imaginou

pudesse ser tão feliz, e Deus uber alles. Mesmo estas cartas estéreis vão cessar, porque foi

unanimemente eleita priora e agora tem menos tempo. Não sentirei muito a falta: as delas

como as de não sei quem limitam-se a: peguei da pena porque não tinha que fazer, e faço

ponto porque não tenho que dizer.103

A perda dos amigos também é destacada, sendo que, a inimizade, a perda de

amigos por desavenças, não parecia incomodá-lo. Ou melhor, doía, mas era considerada

benéfica. Certa vez disse a João Lúcio: “uma amizade que se perde é como um vício que se

102

Carta a Mário de Alencar, 18/01/1911, vol. 1, p. 225. Outra grande perda foi a morte do filho mais novo,

Fernando, apelidado Abril, em 1918. Ver, por exemplo, carta a João Lúcio de Azevedo, 07/03/1919, vol. 2, p.

114, onde compara a morte do filho a uma amputação. 103

Carta a Luís Sombra, 01/05/1917, vol. 3, p. 39. Sobre a correspondência entre Capistrano e sua filha, ver:

BUARQUE, Virgínia Albuquerque Castro. Escrita singular: Capistrano de Abreu e Madre Maria José.

Fortaleza, Museu do Ceará, 2003. Coleção Outras Histórias, 20; Idem. “Cartas do claustro”. Trajetos –

Revista de História da UFC. Dossiê Capistrano de Abreu, vol. 3, n. 5, 2004, p. 137-154.

208

larga, ganha-se com a perda”.104

O que mais entristecia era a perda dos velhos amigos por

morte. Em certa ocasião, concluiu com desdém que era melhor não ter amigos íntimos,

revelando a grande importância que eles tinham em sua vida:

Sinto muito a perda do amigo de tantos anos. Quando, depois de perdido, o amigo continua

vivo, o golpe é doloroso, mas em suma salutar, como a suspensão de um vício. A perda por

morte é uma mutilação. Quanta cousa já está morta para mim, porque sobre cada uma só

conversava com uma pessoa, e esta já não me pode responder. Os jesuítas tinham razão:

nada de amigos íntimos.105

Dizia preferir as “relações banais”, consideradas mais seguras, por ser possível

substituí-las.106

Avaliação semelhante surge em outra carta, quando filosofa sobre o sentido

da vida:

Que lhe direi de nossos amigos? Um a um vão desaparecendo, e quando me lembro de

nossas sessões da Rua Nova do Ouvidor, e de sua aparição fulminante nas festas do

centenário, hesito se é melhor morrer ou ver morrer, que é afinal em que se resume a

vida.107

Conta Capistrano, em 1923, que “os amigos velhos têm desaparecido. Os novos não

os compensam”. Contudo, após uma mudança de endereço, afirma animado: “a nova casa

põe-me perto de quase todos os amigos”.108

Ele havia se mudado para a travessa Honorina,

em Botafogo. Era vizinho de João Pandiá Calógeras e Rodolfo Garcia. Durante a vida na

casa anterior, toda a sua família se dispersara: a esposa, Maria José, morreu em 1891; o

filho Henrique morreu ainda criança; a filha mais velha, Honorina, como foi visto, entrou

para o convento em 1911 e nunca mais viu o pai; a filha mais nova, Matilde, casou-se e foi

morar no sul de Minas Gerais; o filho mais moço, Fernando, morreu em 1918. Restava

apenas o filho mais velho, Adriano, casado, pai de três meninas: Honorina, Jônia e Isa,

únicas netas de Capistrano.

104

Carta a João Lúcio de Azevedo, 02/07/1917, vol. 2, p. 58-59. 105

Carta a João Lúcio de Azevedo, 09/03/1918, vol. 2, p. 83-84. 106

Carta a Mário de Alencar, 09/01/1910, vol. 1, p. 213. 107

Carta a Domício da Gama, 03/09/1917, vol. 1, p. 263. 108

Carta a João Lúcio de Azevedo, 16/04/1923 e “dia de Reis, 1924” [06/01/1924], vol. 2, p. 273 e 284,

respectivamente.

209

Além de permitir a narrativa das perdas, as cartas também servem como suporte

para a rotulação de si mesmo, exercício que permite uma contínua autoconstrução, bastante

marcada pelo laconismo. Mais do que apresentar detalhados auto-retratos, a escrita de si

através de cartas favorece os clichês, os retratos instantâneos ou sintéticos.109

Às vezes,

além de “conformista”,110

Capistrano se definia como um “vaqueano velho” (habilidoso,

prático, conhecedor dos caminhos), um “velho garrano” (velhaco, patife), um “diletante

retardativo” ou, simplesmente, um “João Ninguém”, que lhe serve como assinatura em

algumas cartas.111

Sobre sua notória deselegância, comumente interpretada como uma característica

pessoal, indicativa da modéstia e do desprezo por valores sociais, observou:

(...) sou como H. de Melo, de quem dizia Pedro Luís – o antigo ministro: veste-se todo

chibante no Raunier, desce aprumado a Rua do Ouvidor, e chega com a roupa machucada

na Rua Direita. Minhas finanças não me permitem mais que o Colombo, mesmo isso sem a

freqüência que fora para desejar.112

A desambição é uma das características freqüentemente ressaltada quando se fala

de Capistrano. Sua correspondência parece ser a fonte principal que ajuda a sustentar essa

caracterização. Nelas é possível encontrar observações como: “Estas cousas de primeiro

não me fazem mossa”.113

Ou ainda, um comentário que fala do desprezo por títulos:

Em tempo: quando estava em atividade no Pedro II ajudei a fazer alguns bacharéis, mas de

doutor ou bacharel nunca tive nada e cada vez ando mais apartado. A um comendador da

minha laia chamaram, em mofina do Jornal, comendador xenxém, conta Alencar num

romance. A culpa é da língua, que não admitiu Monsieur ou Sir, talvez porque os reis

reservavam o Senhor para si e não havia o equivalente de Sire. No Ceará fui chamado e

muitas vezes chamei: seu home. Bem mostram meus patrícios que têm mais inteligência do

que água.114

109

DIAZ, “Correspondance et écriture de soi”, op. cit., p. 177-178. 110

Carta a Mário de Alencar, 09/01/1910, vol. 1, p. 213, já citada. 111

Carta a Pandiá Calógeras, 17/04/1905, vol. 1, p. 353; carta a Paulo Brandão, 26/01/1907, vol. 1, p. 270;

cartas a João Lúcio de Azevedo, 28/01/1921 e “véspera da soltura dos diabos” (23/08/[1925]), vol. 2, p. 194 e

339. 112

Carta a Mário de Alencar, 06/09/1915, vol. 1, p. 236. 113

Carta a João Lúcio de Azevedo, 13/09/1926, vol. 2, p. 364. 114

Carta a João Lúcio de Azevedo, 14/09/1916, vol. 2, p. 17.

210

O historiador contava o tempo com intimidade, personalizando os dias como dias

de santos e de personagens históricos, e certa obsessão: “faltam dois dias para completar

dois meses de ausência do Rio”. Dizia que sua vida havia sido regida por certos provérbios

finlandeses relativos ao tempo: “li há dias uns provérbios finlandeses, que parece terem

dirigido minha existência: o tempo está sempre de frente para nós; pressa não é obra de

Deus; neste mundo, tempo é a única cousa de que há fartura”.115

A ausência de pressa pela qual pautara sua vida permitira-lhe tempo para os estudos

da história brasileira e da língua indígena. Para Capistrano, “quem corre cansa, quem anda

alcança”.116

Contudo, há momentos em que o autor demonstra certa ansiedade diante do

tempo: “O tempo vai tão depressa que lembra, não a foice de Cronos, mas as asas de

Hermes. Sem que o sinta, acaba-se o dia, acaba-se a semana, acaba-se o mês e, dado o

balanço, só encontro um zero elevado não sei a que potência”. Ou ainda, quando afirma

que: “é sempre assim: não curamos do tempo, o tempo tudo escritura e surpreende-nos

com suas contas monstruosas”.117

Essas observações sobre o tempo parecem derivar da

compreensão de si mesmo como alguém que acreditou muito na extensão da vida e na

brevidade da arte. A impossibilidade de concluir os próprios projetos equivalia a uma

espécie de punição, como é expresso em carta a Guilherme Studart, quando comenta a

conclusão dos Capítulos de história colonial (1907):

Imaginava outra cousa e não pude realizá-la, parte por culpa minha, parte culpa das

circunstâncias. Acreditei muito na extensão da vida e na brevidade da arte, e fui punido.

Quando, ainda no Ceará, concebi-a [a escrita da história do Brasil], a obra tinha outras

dimensões. Cada ano levou consigo um lance ou um andar. A continuar mais tempo, ficaria

reduzida a uma cabana de pescador. Mesmo agora acho-lhe uns ares de tapera.118

A sensação da passagem rápida do tempo parece estar relacionada, entre outras

coisas, à percepção da perda de parentes e amigos e, também, à constatação de que seus

ideais o conduziram a um estado de imobilidade, a partir do qual via a vida passar. Em

carta a Mário de Alencar, afirma: “(...) variam muito os nossos ideais. O meu seria um cul

de sac, beco sem saída”. É difícil compreender se é mesmo um ideal ou uma tentativa de

dar sentido à existência, transformando um presente sem grandes expectativas em algo

115

Cartas a João Lúcio de Azevedo, 21/12/1925 e 09/03/1921, vol. 2, p. 343 e 197, respectivamente. 116

Carta a Afonso Taunay, 03/04/1918, vol. 1, p. 293. 117

Cartas a João Lúcio de Azevedo, 03/06/1921 e 20/10/1923, vol. 2, p. 214 e 281. 118

Carta a Guilherme Studart, 07/01/1907, vol. 1, p. 178.

211

objetivamente buscado. O beco sem saída é associado à ausência de descendência e de

nome. Com certo desgosto, escreve: “sem netos, já que tive a infelicidade de ter filhos, sem

nome, um perfeito zero na cadeia dos seres”.119

Admite que, às vezes, seus atos foram

contra esse “ideal”, com o qual, em dado momento, parece conformar-se, como se esse

caminho sem saída tivesse sido algo planejado. Acima de tudo, parece acreditar que “há

muitos meios de ser feliz, mas todos reduzem-se a um único: obedecer aos ditames da

consciência, principalmente com sacrifícios”.120

Um pouco de si mesmo também transparece no comentário bem humorado acerca

do epitáfio que gostaria de ter. Epitáfio digno de um bom erudito. Escreve Capistrano que,

De toda a história pátria só me envaidece uma descoberta: o mameluco de Ilhéus ou

Espírito Santo que repeliu os franceses chamava-se Cotucadas, não Catuçadas como

escreveram Santa Maria, Jaboatão e Varnhagen. Quando eu tornar ao pó do que saí e V.

quiser elevar um monumento à altura de meus méritos, inscreva como epitáfio Cotucadas e

será um pouco néctar nos campos Elíseos...121

Cotucadas: o nome de um personagem histórico, cuja identificação correta fez com

que Capistrano pudesse se sentir como um investigador que foi mais longe do que outros.

A escolha bem humorada desse epitáfio revela o gosto pela minúcia, pela crítica de

atribuição, algo comum entre eruditos e especialistas em antiguidades.122

Capistrano viveu

uma época em que a descoberta de um nome ou uma data bastava para “coroar o dia de

rosas”. Eram descobertas “de causar inveja”, segundo dizia.123

Contudo, ele também viveu

o tempo em que tais descobertas não eram mais suficientes, pois era preciso algo mais para

garantir o reconhecimento da autoridade de um estudioso do passado. Embora atuando na

fronteira do antiquariado, Capistrano não se reconhecia como um antiquário. Sua

decantada erudição era posta a serviço de um tipo de conhecimento do passado guiado por

119

Carta a Mário de Alencar, 20/01/1910, vol. 1, p. 220. 120

Carta a Luís Sombra, 31/12/1910, vol. 1, p. 22. 121

Carta a Afonso Taunay, 18/11/1920, vol. 1, p. 318. 122

Sobre a proximidade de Capistrano com o antiquarismo, há breve observação em FALCON, Francisco

José Calazans. “O Brasil de Capistrano de Abreu: características de sua produção historiográfica”. Trajetos –

Revista de História da UFC. Dossiê: Capistrano de Abreu, vol. 3, n. 5, 2004, p. 73. Sobre os antiquários, ver,

por exemplo: GUIMARÃES, Manuel Salgado. “Reinventando a tradição: sobre antiquariado e escrita da

história”. Humanas: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRS. Historiografia e

Tradição Clássica. Porto Alegre, IFCH, vol. 23, n.1/2, 2000, p. 111-143; MOMIGLIANO, Arnaldo. “O

surgimento da pesquisa antiquária”. In: _____. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru,

EDUSC, 2004, p. 85-117; GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Pequeno tratado sobre a

nota de rodapé. Campinas, Papirus, 1998. 123

Carta a João Lúcio de Azevedo, 18/11/1916, vol. 2, p. 22; carta a Guilherme Studart, 18/06/1893, vol. 1,

p. 144-145.

212

uma concepção científica da história, que utiliza e submete os métodos da pesquisa erudita

a novas exigências de racionalidade.124

Para além da escrita de si guiada pelos problemas pertinentes ao mundo do trabalho

intelectual, também é possível localizar tal escrita através das referências à saúde e às

doenças. Os incômodos quotidianos, mais que preencher os vazios do diálogo com

comentários banais, podem revelar formas de cuidado de si e do outro, algo importante

para a construção de vínculos afetivos entre os missivistas.125

Capistrano, que sofria de reumatismo e tinha problemas com seu fígado, apelidado

de “grão traidor”, costumava trocar informações sobre remédios e tratamentos: de injeções

subcutâneas, passando por banhos em águas medicinais e remédios supostamente

milagrosos, até o isolamento.126

Suas cartas dão lugar à expressão de solidariedade na

doença. São referências pontuais a desconfortos causados pela angústia do trabalho

atrasado e pelas dores do corpo ou da “alma”. As doenças eram algo a mais a ser

compartilhado, fornecendo motivos para expor a preocupação com amigos enfermos como,

por exemplo: Paulo Prado e Pandiá Calógeras, que sofriam dos rins; e Domício da Gama,

que padecia de “moléstia imaginária”. Questionando sobre “quem se pode dizer de todo

são”, concluía que o melhor mesmo era trabalhar sem pensar no futuro.127

Um aspecto relativo à saúde de Capistrano diz respeito à constante insônia que o

perseguia. Insônia atribuída à incapacidade para concluir seus afazeres intelectuais. Em

carta a Paulo Prado de 5 de fevereiro de 1923, ele conta que:

Uma baiana, empregada de minha sogra, não podia dormir sem primeiro rezar para as

almas do purgatório. Se descuidava e pegava no sono, as almas acordavam-na e acordada

ficava até cumprir a obrigação.128

Achava que com ele acontecia algo semelhante. Era impossível dormir sem

terminar suas tarefas, o que freqüentemente acontecia. A ânsia de terminar os trabalhos

produzia desânimo. Certa vez achou que o esforço para realizar seus planos não valera a

pena. Escreveu ao amigo Pandiá Calógeras: “Tanto esforço, tanto trabalho e tão pouco

124

Sobre a apropriação da tradição e dos métodos da pesquisa erudita pela história acadêmica (científica),

como parte de um processo de transformação da cultura histórica, ver GUIMARÃES, op. cit. 125

DIAZ, “Correspondance et écriture de soi”, op.cit., p. 28; FOUCAULT, “A escrita de si”, op. cit., p. 153-

55. 126

Por exemplo, cartas a Paulo Prado, 29/12/1919, “domingo de Pascoela, 1920”, “oitava de Natal”,

15/12/1920, vol. 2, p. 388, 396, 410 e 406, respectivamente. 127

Carta a Antônio Bezerra, sem data, vol. 1, p. 71. 128

Carta a Paulo Prado, 05/02/1923, vol. 2, p. 437.

213

fruto, e às vezes o fruto dependendo apenas de uma circunstância mínima: é a lei do

mundo. Para andar bem no mundo é preciso possuir alma de Bourgeois gentilhomme”.129

Contudo, tempos depois, concluiu que: “o importante não é o triunfo, é o combate”. As

cartas dão lugar a acessos de desânimo e de esperança.130

Mas, além da ansiedade provocada pelos trabalhos não concluídos, Capistrano

também ansiava por encontros. Por exemplo, em cartas a Paulo Prado, que vivia em São

Paulo, é freqüente a expectativa: “esperei-o agosto inteiro, já desesperei de setembro, tê-lo-

emos afinal em outubro?”; “e até fevereiro, se V. não vier antes aqui, como tem prometido

e seria útil”; “alegra-me a proximidade de sua visita”.131

Mas, apesar do gosto de conviver

com os amigos e do prazer sentido ao compartilhar suas experiências de vida e,

principalmente, de leitura, ao refletir sobre a existência, sentenciou: “Amigos, conversas,

passeios, livros, tudo passa e tudo é vão: quem afinal fica reduzido a si próprio é que vê a

realidade e conhece como tudo é insuficiente. Is life worth living? [vale a pena viver?]”.132

Essa vida solitária de quem se percebe como estando “reduzido a si próprio” era

marcada pelas atividades de pesquisa, editoração de textos e escrita de cartas, havendo,

surpreendentemente, uma intensa vida social.133

Capistrano freqüentava almoços e jantares

semanais, ia a festas de aniversários, casamentos e bodas e era capaz de ir ao cais só para

abraçar um amigo de passagem. Contudo, às vezes queria fugir de tais compromissos,

concluindo que “boa romaria faz quem em sua casa está em paz”. Certa vez, após uma

longa estada no interior, pensou: “não sou homem para cidade”. Os ares do campo eram

sempre bons, pois eram por ele associados aos ares da infância.134

129

Carta a João Pandiá Calógeras, 04/11/1916, vol. 1, p. 401. 130

Carta a Miguel Arrojado Lisboa, 08/11/1922, vol. 1, p. 444; carta a Mário de Alencar, 02/03/1910, vol. 1,

p. 223. 131

Cartas a Paulo Prado dos dias: 22/09/1921, 08/01/1922 e 1927, vol. 2, p. 409, 412 e 480, respectivamente. 132

Carta a Joaquina “Kiki” de Assis Brasil, 03/06/1919, vol. 3, p. 71. 133

É curioso notar que Capistrano de Abreu foi comumente visto como um homem dado à reclusão, pouco

interessado em visa social. Sobre um desses lugares da moda em sua época, a Rua do Ouvidor, certa vez

observou: “Eu creio que o Brasil é o primeiro país do mundo, o brasileiro (principalmente o do Rio) o melhor

homem da América, a Rua do Ouvidor a melhor coisa do Rio, e nós que não freqüentamo-la, as melhores

criaturas da rua”. Carta a [Urbano Duarte de Oliveira], 07/09/1895, vol. 1, p. 63. Apesar de, às vezes,

demonstrar certa aversão à vida social, sua correspondência revela a existência de um tipo de sociabilidade

distinta daquela marcada pela boemia dos literatos e artistas, freqüentadores de cafés e salões da moda.

Capistrano parece ter participado de um circuito distinto, marcado, sobretudo, pela presença de intelectuais,

homens de ciência, políticos e diplomatas. 134

Cartas a Paulo Prado de dezembro de 1921, 08/01/1922, 18/01/1922, 19/03/1923, 16/10/1924,

28/02/1924, 08/06/1925, 24/08/1925, 05/02/1926, 24/01/1926, junho de 1927, vol. 2, págs. 410, 411, 412,

443, 458, 461, 468, 466, 477, 478 e 482, respectivamente; carta a Afonso Taunay, 04/03/1910, vol. 1, p. 361;

e carta a Pandiá Calógeras, [1911], vol. 1, p. 377.

214

Em carta de Carlos Werneck, é possível entrever um pouco do quotidiano do

historiador na então capital federal. O remetente dá sua opinião sobre a possibilidade de

Capistrano deixá-la definitivamente. Diz ele:

Achei má esta idéia, não só pela separação que sofreríamos, como pela mudança de meio, à

qual, estou certo, não se adaptará mais. Após certa idade, dificilmente muda-se de habitat

com gosto. Viveria triste, longe dos seus amigos e habitués, longe das suas livrarias. A

visitinha habitual ao Briguiet, ao Garnier, onde encontra sempre este ou aquele outro

perguntador; a consulta ao Instituto Histórico ou à Biblioteca Nacional; a palestra, de volta,

na Livraria Científica, com Edgar Mendonça ou Fernando; o jantar das 4as

fs. à Rua

Sorocaba ou o almoço dos domingos no Curvelo... tudo acabaria por fazer-lhe muita falta, e

conduzi-lo de novo à Guanabara. São pequenas coisas, ninharias, mas que formam a vida

quotidiana, e das quais um velho não se desapega facilmente.135

Em meio às ansiedades provocadas pelo trabalho atrasado, pelos desejos de sair da

cidade e de rever os amigos, Capistrano ansiava pertencer-se “total e exclusivamente”,

como menciona em carta a Ramos Paz.136

Pertencer a si mesmo significava ter tempo para

realizar planos pessoais, que, de modo geral, envolviam aquelas que parecem ter sido suas

atividades favoritas: a leitura e as viagens.

Capistrano era um viajante. É possível supor que os principais motivos que o

detinham em casa eram o trabalho – quase sempre atrasado – e a doença. Na primeira

oportunidade escapava do seu “tugúrio” para respirar outros ares e banhar-se em outros

mares. Por vezes, obtinha passes de viagem com amigos ou conseguia acompanhar alguma

comitiva. Era um “aquático”, “que precisava mudar de pele, ou deixar o veneno como

fazem as cobras quando vão beber”, como afirma em carta a Paulo Prado, de 1920.137

Viajava freqüentemente para as estâncias hidrominerais de Minas Gerais: Caxambu, São

Lourenço e Poços de Caldas, sendo às vezes acompanhado pelo ministro João Pandiá

Calógeras. Outro lugar habitual era a praia de São Vicente, em Santos, onde se hospedava

na casa do médico Domingos Jaguaribe, amigo desde a infância e companheiro dos

“inefáveis banhos de peru”: banhos “mais de areia que de água do mar”.138

Entre outros

locais, gostava de ir à Teresópolis e a São Paulo, onde, às vezes, era hospedado por

135

Carta de Carlos Werneck, 12/10/1923, vol. 3, p. 193. 136

Carta a Francisco Ramos Paz, 23/12/1880, vol. 1, p. 3. 137

Carta a Paulo Prado, 1920, vol. 2, p. 396. 138

Carta a Guilherme Studart, 08/01/1922, vol. 1, p. 188.

215

Eduardo Prado ou Jaguaribe, e ao Rio Grande do Sul, onde encontrava Francisco de Assis

Brasil.

Em determinado momento, concluiu: “os passeios só me têm trazido atrasos. Bem

razão tem o ditado português ouvido no Ceará: a raposa tanto passeia na semana que

domingo não vai à missa”.139

Assim, voltava para sua rede no Rio, para os livros gastos,

papéis empilhados, encomendas atrasadas, contas a pagar, copistas relapsos, tipógrafos

pouco sérios e uma vizinha, pianista de uma peça só. Às vezes, queria fugir “para qualquer

lugar aonde não chegassem cartas nem jornais”.140

Das viagens no espaço às viagens no tempo. Os livros eram sua companhia

constante, sendo possível aventar que sua identidade como intelectual e historiador pode

ser buscada nas figuras de escritor e de leitor presentes em sua correspondência.

5.2. Figuras de escritor, figuras de leitor

(...) o tempo passa, a vida corre, e cada vez gosto menos

de escrever e tenho tanta cousa ainda que ler, antes de

partir para as regiões donde ninguém volta... (carta a

Guilherme Studart, 1906).141

Michel de Certeau construiu uma bonita imagem do leitor como um viajante, um

caçador nômade que percorre terras alheias.142

Embora submetido a determinações

(sociais, institucionais e culturais), o leitor é dotado de competências específicas, que lhe

permitem combinar os fragmentos daquilo que é lido e elaborar interpretações.143

Para

Certeau, o leitor “inventa nos textos outra coisa que não aquilo que era a „intenção‟ deles.

Destaca-os de sua origem (...). Combina os seus fragmentos e cria algo não sabido no

espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de

significações”.144

139

Carta a Paulo Prado, 19/02/1925, vol. 2, p. 463. 140

Carta a Paulo Prado, 01/04/1923 (“dia das petas”), vol. 2, p. 445. 141

Carta a Guilherme Studart, 13/11/1906, vol. 1, p. 176. 142

CERTEAU, Michel de. “A economia escriturística”. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de fazer.

Petrópolis, Vozes, 1994, p. 259. 143

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990, p. 25-26 e

60-61. Sobre a leitura como produção de sentido, ver, também: CHARTIER, Roger (Org.). Práticas de

leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996; e DARNTON, Robert. “História da Leitura”. In: BURKE, Peter

(Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, p. 199-236; Idem. “Os leitores

respondem a Rousseau”: a fabricação da sensibilidade romântica”. In: _____. O grande massacre de gatos, e

outros episódios da história cultural francesa. 2a edição. Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. 277-328.

144 CERTEAU, op.cit., p. 264-65.

216

A visão do leitor como um viajante condiz com a imagem de Capistrano de Abreu

como um “vaqueano”, como certa vez ele mesmo se definiu. O vaqueano é um homem

prático e hábil, conhecedor de caminhos e regiões e capaz de conduzir outros homens por

esse território.145

É possível pensar Capistrano como um intelectual cuja identidade assenta-se,

sobretudo, na atividade de leitura, seja de documentos ou de bibliografia secundária. Trata-

se de um leitor voraz, que lia muito – algo absolutamente comum entre intelectuais – e

relia seguidas vezes um mesmo texto, o que talvez não fosse tão habitual entre seus pares.

Comentava suas leituras através dos trabalhos que publicava e das cartas que escrevia.

Pode-se supor que sua prática de leitura ampliou-se a partir do momento em que se

tornou redator responsável por colunas de lançamentos de livros divulgados em jornais e

funcionário da Biblioteca Nacional, em 1879. Capistrano também se tornou leitor no

Gabinete Português de Leitura, na biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

e da Câmara dos Deputados etc., bem como, em sua rede cearense, onde empreendeu

leituras solitárias, a serem compartilhadas de um modo especial através das cartas. Por

meio da correspondência, freqüentou arquivos estrangeiros, às vezes conhecendo diretores,

pesquisadores e copistas que atuavam por lá. Era comum a solicitação de cópias de

documentos a Lino de Assunção ou a João Lúcio de Azevedo – que viviam em Portugal –

ou a algum amigo que visitasse a Europa com regularidade, como Paulo Prado e o Barão

do Rio Branco, por exemplo.

Gostava de ler e reler um mesmo texto, como afirma em cartas a Paulo Prado, por

exemplo: “Todos os dias releio umas páginas da segunda parte de Gabriel Soares. Cada

leitura proporciona sempre novidades. O difícil será fazer de tudo algo coerente”. Para

escrever o prólogo do livro sobre a língua bacairi, observou: “(...) já li umas três vezes o

Diário. Vou lê-lo mais umas quatro ou cinco, até absorvê-lo e saturar-me. Será breve e non

placebit”. Também costumava ler e reler após intervalo: “Recebi seu artigo. Depois de

passados dias, relerei. Não gosto de devolver seus artigos sem os ler com intervalo”. Ler e

reler até saturar-se do texto parece ser o método do leitor Capistrano, que, além disso,

achava que era preciso ler em “estado de graça”. Alguns livros podiam ser lidos como o do

cronista Castanheda: “de rede, como romance, apenas traçando uma ou outra marca a lápis,

145

Interessante notar que, o sinônimo de vaqueano é tapejara, palavra tupi que significa “aquele que toma o

caminho”.

217

para facilitar o encontro de algum trecho se for preciso”. Outro, cujo autor não é

identificado, deveria ser lido “do fim para o princípio, da última seção para a primeira”.146

Mas, às vezes, procedia a uma leitura que denominava “profana” ou “dessultória”:

saltando de um lado para outro, sem persistência, detendo-se sobre partes, deixando o

conjunto escapar. Também reservava diferentes modos de ler para cada autor, como ocorre

ao dizer que: “Acton tenho lido salteadamente, o melhor modo para aquele formoso e

singular espírito. John Morley li de princípio a fim sem parar”. Algumas leituras eram

associadas ao ato de “tirar fogo de pedra”, enquanto outras se relacionavam ao trabalho de

“autópsia”. Textos que considerava desorganizados ou “encarapinhados” suscitavam um

tipo de leitura que se assemelhava a penetrar em um “catingal”. Diante do texto, achava

que o leitor não devia “se deixar levar por cantigas”, para poder compreender melhor a

realidade e a “sensação original do autor”.147

Esse trabalho de leitura, denso em suas variações, podia provocar insônia, ainda

mais considerando os problemas vividos pelo leitor em questão, suas douloureuses: a

mudança de casa – em determinado momento –, os atrasos da escrita e das publicações.

Após reler “cento e tantas páginas” de Gabriel Soares em uma noite, ficou com uma

“insônia renitente”, que não quis combater com remédios. Na madrugada, teve pesadelos

dos quais não se livrou pela manhã. Mas afirmou: “a leitura não se perderá: entrevejo

algumas luzes. Vou passando do homogêneo para o heterogêneo”. Inspirava-se nas idéias

de Herbert Spencer, para quem era preciso partir de um todo uniforme, homogêneo, até

chegar ao heterogêneo, onde as partes podiam ser melhor percebidas.148

Seu modelo de intelectual parece ter sido Spencer, de quem lera a biografia. Isso

devido à capacidade de trabalho do cientista inglês, que, em determinada época da vida, foi

obrigado a reduzir as horas de trabalho a menos de 10 por semana. Deixou de viver em

função do trabalho, transformando o trabalho em sua função. Sujeitando-se à contigência,

às vezes não podia escrever mais de cinco linhas por dia. Contudo, segundo o historiador,

fez tudo o que planejou, realizou uma grande obra e viveu mais de 80 anos.149

146

Cartas a Paulo Prado dos dias: 08/02/1920, 05/06/1923, 31/12/1924 (“dia de São Silvestre”) e 1927

(“terça-feira das trevas”), vol. 2, págs. 393, 448, 461 e 480; carta a João Lúcio de Azevedo, 25/09/1917, vol.

2, p. 69; carta a Pandiá Calógeras, 03/02/1927, vol. 1, p. 416. 147

Cartas a Paulo Prado dos dias: 18/11/1918, 05/02/1920, 13/02/1920, 1920 (“domingo de Pascoela”),

05/05/1920 e 11/12/1922, vol. 2, p. 388, 391, 394, 397, 398 e 429; carta a João Lúcio de Azevedo,

23/05/1919, vol. 2, p. 127; carta a Joaquina “Kiki” de Assis Brasil, 03/06/1919, p. 72; carta a Mário de

Alencar, 17/08/1901, vol. 1, p. 204. 148

Carta a Paulo Prado, 29/06/1923 (“dia de S. Pedro”), vol. 2, p. 449-50; carta a João Lúcio de Azevedo,

16/09/1918, vol. 2, p. 110. Grifos meus. 149

Cartas a Mário de Alencar, 14/09/1901, 24/03/1917 e “equinócio de 1919”, vol. 1, p. 208, 247 e 250;

218

Capistrano tinha amor pelos livros, sendo capaz de relacioná-los ao que certa vez

definiu como a “cronologia de seu espírito”. Diante da necessidade de ter que se desfazer

de alguns, lamentou:

Livros: cada um representa tanta cousa! Uma veleidade, um projeto, uma decepção. Neles

vejo como por passeio a cronologia de meu espírito, e a impressão não é fagueira: reduz-se

a lançar continuamente carga ao mar, para não [sic] evitar a submersão completa.150

Assim como na vida é preciso esquecer certas coisas para dar lugar a outras,

Capistrano também se desfazia de seus livros, como quem abre mão de uma parte de si

mesmo. Compartilhava os livros esperando não apenas trocar idéias, mas afirmar vínculos

de afinidade. Certa vez escreveu: “não me sinto bem quando não posso passar qualquer

livro a alguém (...) faço de barbeiro do rei Midas, sem ter a quem passar o segredo”. Às

vezes, indicava livros sem anunciar inteiramente o conteúdo ao interlocutor, observando

que preferia esperar para ver se as opiniões e gostos coincidiam.151

Sua vida foi marcada pelos livros, da infância à velhice. Nas cartas, há lembrança

da leitura de Camões, feita ainda na escola. Fizeram-no decorar o poema Os Lusíadas,

quando “não podia entender nem um décimo das perífrases e das alusões”. Menciona o Íris

Clássico, de J. F. de Castilho, onde pela primeira vez leu o nome de um autor que o

acompanharia ao longo dos anos: André Antonil, cujo nome verdadeiro, Andreoni, mais

tarde descobriria. Lembrança, também, de um livro que viu “apenas de lombo” e que

despertou seu interesse devido ao número de in-fólios e ao “nome esquisito do autor”:

Cornelius a Lapide (De La Pierre). Há, também, um livro que desejava possuir desde a

infância: O Peregrino da América, “o Casimiro de Abreu do século XVIII”, que adquiriu

quando adulto para constatar que era “ilegível” e dizer: “tive de lê-lo por dever de ofício:

não aconselho sacrifício igual”. Mais tarde, como “leituras de juventude”, recorda as obras

de Stuart Mill, Spencer e Buckle: leituras de um tempo em que “lia muito, sem entender”,

de modo que, posteriormente, concluiu: “hoje não os entendo nem leio”.152

Livro marcante parece ter sido Pensamentos, de Marco Aurélio, sobre o qual

comentou: “Taine lia algum trecho diariamente e compreendo agora esta devoção”. Dizia

150

Carta a Mário de Alencar, 15/09/1915, p. 242. 151

Carta a João Lúcio de Azevedo, 2-3/04/1921, vol. 2, p. 376; carta a João Pandiá Calógeras, 31/12/1913,

vol. 1, p. 386. 152

Cartas a João Lúcio de Azevedo, 30/11/1904, 24/06/1920, 03/09/1917, 26/03/1919, 06/07/1921, vol. 2, p.

16, 163, 325, 63, 119 e 219.

219

saboreá-lo em pequenas doses, pois “é um livro forte”. Livro descrito com semelhante

impressão é O Ateneu, de Raul Pompéia: “o mais forte livro de nossa literatura, escrito dos

24 aos 25 anos, no espaço de três meses. O autor, um dos mais íntimos de meus amigos,

brigou afinal comigo; meses depois suicidou-se. Não serve para moças”.153

Capistrano conseguia conjugar leituras das mais diversas, mas, às vezes, procurava

selecionar leituras afins, geralmente, para dar conta de algum trabalho. Além da difícil

leitura de fontes manuscritas, relacionadas, sobretudo, à história do Brasil colonial, há

muitas leituras sobre lingüística indígena e geografia. Além de constituir um gosto pessoal

e um dever de ofício, tais leituras podem ser vistas como parte de um projeto político

cultural maior, que visava a definição de um cânone ou, em outras palavras, de uma

biblioteca científico-literária, capaz de servir como referência para melhor conhecer o

Brasil. Esse suposto projeto envolvia a formação de um campo de estudos históricos, capaz

de tornar possível a distinção entre historiadores e “homens de letras”, garantindo aos

primeiros a autoridade para compreender e explicar a nação republicana. O conhecimento

da história, da geologia, da geografia, da lingüística etc. era algo necessário para lidar com

problemas cruciais para a República.

Esse historiador-leitor era um homem prático, bastante envolvido com os temas do

presente, que, em grande parte, diziam respeito à questão dos limites do território nacional,

ao problema do indígena e da constituição do povo brasileiro, visto por muitos como

decrépito e em vias de dissolução.154

Entre outras coisas, empenhava-se na descoberta de

“provas” históricas úteis para o debate político em torno da formação territorial do Brasil.

Era, provavelmente, um erudito capaz de mobilizar diferentes formas de saber, tais como a

cronologia, a epigrafia, a filologia etc. Também devia ser, preferencialmente, um poliglota,

capaz de ler textos no original, dada a dificuldade de obter traduções. Precisava ter tempo

para investigações exaustivas em arquivos, necessitando de dinheiro para estudar, obter

livros e cópias, sem precisar trabalhar para viver, a não ser em locais como arquivos e

bibliotecas.155

Quando vistas em relação a esse projeto, as leituras de Capistrano,

aparentemente desordenadas, adquirem sentido, pois se torna possível situá-las em meio a

uma cultura histórica bastante marcada pela questão nacional e republicana, assim como,

153

Carta a Mário de Alencar, 30/10/1916, vol. 1, p. 245; carta a Pandiá Calógeras, 04/11/1916, vol. 1, p. 401;

carta a João Lúcio de Azevedo, 12/05/1917, vol. 2, p. 49. 154

Em carta a Mário de Alencar, Capistrano expõe uma questão que considera “tenebrante”: “o povo

brasileiro é um povo novo ou um povo decrépito?” Complementa a pergunta indagando aacerca da

importância do passado: “os fatos idealizados pelo tempo valem mais que os passados atualmente?”. Ver

carta do dia 18/01/1911, vol. 1, p. 226. 155

Ver GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro, FGV, 1996, p. 76-77.

220

pela necessidade de lidar com a tradição historiográfica oitocentista, de modo a impor

novos temas, indagações e abordagens.

Como observou Jean Marie Goulemot, tão importante quanto analisar as

interpretações críticas sobre as obras lidas é refletir sobre a prática da leitura como

produção de sentido, de compreensão e de prazer. As relações estabelecidas com o livro –

que tornam a leitura possível – podem ser percebidas através das atitudes do leitor. Trata-

se, então, de tentar compreender o lugar atribuído ao livro e à leitura na história de vida e

na construção de si.156

Segundo o autor, na relação com o livro, o leitor define-se por uma

fisiologia, uma história e uma biblioteca. Sendo assim,

O sentido, aquele que se constitui por uma leitura historicamente datada, empregado por

um indivíduo que tem um destino singular, nasce, portanto, do trabalho que esse fora-do-

texto assim definido opera, para além do sentido das palavras, do agrupamento de frases,

sobre o texto.157

Além disso, cabe relacionar essas práticas individuais de leitura, movidas por

coerções e liberdades, com a cultura histórica e historiográfica de um determinado

momento, buscando compreender o lugar dos livros, das leituras, dos leitores e dos autores

na construção dessa mesma cultura. Da mesma forma que o leitor pode ser pensado a partir

de uma fisiologia, uma história e uma biblioteca, talvez seja possível pensar as

coletividades.

No caso de Capistrano, visto através de suas cartas, é possível supor que a leitura,

além de ser uma atividade cultural decorrente do exercício de uma profissão, um hábito

comum de intelectual, corresponde a uma prática constitutiva de si. Através da lembrança

dos livros ele conta sua própria história e é a partir deles que ele desenvolve seus projetos.

Capistrano se expõe como leitor e é assim que ele, supostamente, deseja ser reconhecido.

Desse modo, memória, identidade e projeto aparecem relacionados à experiência da leitura

e ao contato com os livros.

Esse contato, movido pelo prazer do leitor e pelos deveres de um ofício, não

implicava, no caso de Capistrano, em nenhuma espécie de sacralização do objeto livro.

156

Robert Darnton corrobora essa idéia ao sugerir que umas das formas de abordagem da leitura seria o

estudo das descrições do ato de ler, visando acessar aquilo que as pessoas imaginam ocorrer quando lêem, ou

ainda, os significados que os leitores atribuem a determinadas leituras em suas vidas. Ver DARNTON,

“História da Leitura”, op. cit., p. 218 e 224. 157

GOULEMOT, Jean Marie. “Da leitura como produção de sentido”. In: Práticas da leitura, op. cit., p. 107-

108. Grifo do autor.

221

Como alguns de seus contemporâneos observaram, seus livros eram “poeirentos e usados

pelo contínuo manuseio”, encontrando descanso sobre o chão, ao lado de pilhas de jornais

e revistas.158

Seus livros serviam, sobretudo, como instrumentos de um saber inquieto,

sempre em movimento, pois, uma vez tendo saciado a curiosidade do leitor, podiam

facilmente ser dispensados. Como foi visto antes, um de seus biógrafos conta que, certa

vez, ele adquiriu um livro caríssimo (cento e cinqüenta mil réis), apenas para tirar uma

dúvida, o que fez ao folhear o livro na rua, desfazendo-se dele em seguida.159

Era notória a

sua indiferença em relação a livros lidos, assim como era admirado o empenho em obter

livros para presentear os amigos. Diz Chateaubriand que nunca viu homem com poucos

recursos doar tantos livros.160

Porém, apesar de um certo descaso pelo objeto, às vezes

incomodava-se com o desaparecimento dos mesmos, ao constatar com algum espanto que

“de vez em quando desaparecem livros”.161

De acordo com Goulemot, não seria possível uma compreensão autônoma do que é

dado a ler, mas uma articulação em torno de uma biblioteca de textos lidos. A leitura seria

construída a partir dessa intertextualidade, de modo que,

O livro lido ganha seu sentido daquilo que foi lido antes dele, segundo um movimento

redutor ao conhecido, à anterioridade. O sentido nasce, em grande parte, tanto desse

exterior cultural quanto do próprio texto e é bastante certo que seja de sentidos já

adquiridos que nasça o sentido a ser adquirido. (...) Reencontramos ao ler. Todo o sistema

anterior – saber fixado, institucionalizado, saber móvel, vestígios, migalhas – trabalha o

texto oferecido ao deciframento. Não há jamais compreensão autônoma, sentido

constituído, imposto pelo livro em leitura.162

As cartas de Capistrano permitem delimitar uma biblioteca, a partir da qual o

missivista desenvolve a compreensão daquilo que lê. No caso, trata-se de um leitor que fez

as primeiras letras em sua terra natal e não freqüentou nenhum dos cursos de nível superior

existentes em sua época: os de Medicina, Engenharia e Direito. Em termos de estudo da

história, da literatura, da geografia e das línguas indígenas, ele é um autodidata, que falava

158

PRADO, “Capistrano de Abreu”, op. cit., p. 3. 159

MENEZES, Raimundo de. Capistrano de Abreu: Um homem que estudou. São Paulo, Melhoramentos,

1956, p. 35. 160

CHATEAUBRIAND apud MATOS, Capistrano de Abreu, op. cit., p. 253-54. 161

Carta a João Lúcio de Azevedo, “oitava da Páscoa” [1922], vol. 1, p. 244. 162

GOULEMOT, “Da leitura como produção de sentido”, op. cit., p. 115.

222

vários idiomas (inglês, francês, alemão...). Aprendeu por si, através de leituras

diversificadas e constantes.

Sobre a biblioteca de Capistrano, não necessariamente lida, mas, em parte, por ele

composta, José Honório Rodrigues nos conta:

Sua biblioteca encontra-se hoje muito despojada, pois Capistrano gostava de emprestar e

dar livros depois de lidos (...) Mas ainda assim, com grandes desfalques, sua biblioteca é a

revelação decisiva da nutrição germânica do seu pensamento. Afora os livros brasileiros,

que não entram na proporção, talvez mais de 80% de seus livros sejam alemães, seguido de

ingleses e de muito pouco franceses... Seus livros de leitura de geografia, história,

antropologia, economia e sociologia são predominantemente alemães.163

Em carta a Paulo Prado, na qual expôs os dissabores de uma mudança de endereço,

afirmou: “A remessa de livros está preparada, quase concluída. No último momento há

sempre hesitações. Só uma seita na Rússia impõe a mutilação voluntária”. Havia sido

necessário vender alguns livros para facilitar a mudança. Contudo, ao livrar-se de alguns

livros abriu espaço para outros tantos exemplares pois, um pouco antes de ir para a nova

casa, fez “uma comprazinha”, que encheu “uns três ou quatro caixões”.164

Entre os livros mencionados e comentados nas cartas, ainda que brevemente, alguns

se destacam. Um livro do alemão Wilhelm Wundt, sobre psicologia, era “necessário para

se entender sua grande obra relativa à psicologia dos povos”.165

Outro campo de interesse

era a economia. Refere-se à obra de Gustav Schmoller, Economia Política, “um livro

monumental”, lamentando: “Quando me lembro que por certas críticas fideindignas (sic),

como hoje reconheço, passei tantos anos sem fazer conhecimento com um espírito tão

superior e luminoso, com cuja privança podia ter adiantado anos, fico triste”. Do livro de

Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, disse certa vez: “Que livro admirável, que esplêndido

companheiro!”, um livro “cicerone”, para acompanhar as viagens pelo interior do país.

163

RODRIGUES apud RIBEIRO, Maria Luiza Gaffrée. Uma ruptura na historiografia brasileira: a

formação intelectual de João Capistrano de Abreu (1853-1927). Rio de Janeiro, UFRJ, dissertação de

mestrado, 1990, vol.2, p. 207. Há uma lista da biblioteca de Capistrano na dissertação de Ribeiro. Essa

biblioteca foi, em parte, (re)composta pela Sociedade Capistrano de Abreu e se encontra sob a guarda do

Instituto do Ceará. 164

Cartas a Paulo Prado dos dias: 21/04/1923, 05/06/1923 e 29/06/1923, vol. 2, págs. 447, 448 e 449,

respectivamente. Além de amante de livros, Capistrano assinava periódicos, como por exemplo, o The

Nation, norte-americano; o Manchester Guardian, inglês; e a Revista de História, portuguesa. Possuía

coleções de revistas, como as do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, dos institutos regionais; do

Arquivo Mineiro etc. 165

Carta a Mário de Alencar 11/08/1901, vol. 1, p. 203.

223

Outro grande companheiro era o Fausto, de Goethe, mencionado em mais de uma

carta, assim como, Wilhem Meister, do mesmo autor.166

Em carta a Paulo Prado, menciona

que Fausto:

Foi minha leitura no mar. Trouxe a tradução de François Sabatier, feita em versos livres,

bem esquisitos, acompanhados do texto alemão. Li o original, só recorrendo à versão em

caso de dúvida. É um grande, um máximo livro. Bem entendido: falo como profano, que só

atende às partes. O segredo do conjunto escapa-me: nunca li nem pretendo ler

comentários.167

De Wilhem Meister extraiu uma máxima que, aconselhava, não deveria ser

esquecida: “obrar é fácil, pensar é difícil, obrar segundo seu pensamento ainda é mais

difícil”.168

No caso de Capistrano, obrar significava dar andamento a um duplo projeto: o da

conclusão e publicação das pesquisas sobre as línguas indígenas (o bacairi e o caxinauá) e

o da escrita de uma história do Brasil. Projetos concomitantes, sendo que, durante muito

tempo, o primeiro parece ter superado o segundo em termos de investimento. Além disso, a

atenção do autor também se dividia com outras “n” tarefas, tais como a revisão da obra de

Varnhagen e dos próprios textos, a publicação anotada de documentos e a elaboração de

prefácios diversos. O acúmulo de tarefas, a má distribuição de tempo e os atrasos na

publicação causavam enorme desgosto e ansiedade. Reconhecendo o atraso na realização

de certa tarefa, observou: “a falta de método na vida, a má distribuição do tempo, o

desarranjo em que andam minhas cousas, sei que não são desculpas suficientes (...)”.169

A prática da leitura relacionava-se ao trabalho da escrita e ao problema da memória.

Contou a Paulo que, diante de uma “pedra” [o texto] e de sua “petrificada memória”, tivera

que “tirar fogo”. Disse: “Tirei algum; para tratar do povoamento de Minas precisaria de um

ano, de que não disponho, e de um livro, que não escreverei: procurarei reduzir tudo a um

artigo, que não será muito longo”.170

Leitura densa – no sentido de profundidade e de peso

– pressão do tempo, necessidade de um livro inexistente, impossibilidade de escrevê-lo...

resultado: escrita reduzida. Ler e escrever tornaram-se, ao longo do tempo, atividades

166

Carta a Mário de Alencar, 17/08/1901, vol. 1, p. 204-205; cartas a João Lúcio de Azevedo, 16/03/1917,

19/12/1917, vol. 2, 34 e 78; carta a Martim Francisco, 11/11/1918, vol. 3, p. 85. 167

Carta a Paulo Prado, 18/11/1918, vol. 2, p. 388. 168

Carta a Paulo Prado, 06/10/1922, vol. 2, p. 419. 169

Carta a Mário de Alencar, 09/09/1915, vol. 1, p. 240. 170

Carta a Paulo Prado, 1920 (“domingo de Pascoela”), vol. 2, p. 397.

224

contraditórias: uma impedia a realização da outra. Curioso é que, após a morte de

Capistrano, Paulo Prado emitiu sua opinião sobre o texto do amigo, interpretando aquilo

que havia sido produzido com grande dificuldade como o resultado de um

aperfeiçoamento: “Nos seus últimos escritos, a frase de Capistrano chegou à perfeição de

extrema brevidade e singeleza, contraída numa sintaxe sem artigos, sem verbos auxiliares,

despojada de adjetivos redundantes”.171

Por várias vezes, Capistrano menciona estar “com o carro no toco e os bois na

lama”,172

ou seja, atolado no trabalho, preso em armadilhas que, provavelmente, ele

mesmo construíra. Em carta a João Lúcio de Azevedo, afirmou: “Comecei meu encantado

estudo sobre as moedas, mas estou vendo que não sou mais capaz de escrever; ler posso

indefinidamente, embora pouco guarde na memória”.173

Capistrano achava que sua

memória havia virado “cordão de areia”174

e que estava “petrificada”.175

Se a escrita demanda a capacidade de construir relações, estas só são possíveis

através do trabalho da memória, que recupera pontos de conexão entre os textos lidos,

permite relacionar temas e ordenar as idéias no papel. A ausência da memória pode tornar

o texto repetitivo – impedindo a lembrança do que já foi dito – ou cheio de lacunas – ao

favorecer o esquecimento do que se deveria dizer. Ao mesmo tempo, o excesso de

memória pode provocar uma avalanche de referências, entre as quais é necessário escolher,

para que seja possível concluir os textos.

Pressionavam Capistrano até nos momentos de lazer para que ele atendesse às

encomendas. Fernando Nobre, escritor paulista, ia publicar um livro histórico e pediu-lhe

para escrever o prólogo. Em carta de Caxambu, ele conta a Paulo Prado, a respeito do

“homem de confiança” que Nobre lhe enviara: um “sentinela”, com um livro de 600

páginas e a ordem de “só voltar com meu prólogo no bolso”. Em resposta a Paulo, que

perguntara o que ele iria escrever, disse: “Estou lendo à razão de cento e tantas páginas por

dia. Felizmente não tenho aqui livros: hei de limitar-me ao mínimo possível”. Como

“escrever com sentinelas à vista não é das melhores cousas”, o texto de Capistrano acabou

não agradando. Chegou ao ponto de sentir fobia na hora de escrever e de atribuir a um

171

PRADO, Paulo. “Capistrano”. O Estado de São Paulo, 26/09/1928, p. 3. 172

Carta a Paulo Prado, [1927] (“oitava da Anunciação”), vol. 2, p. 479. 173

Carta a João Lúcio de Azevedo, 19/03/1917, vol. 2, p. 37. 174

Carta a João Lúcio de Azevedo, 24/01/1917, vol. 2, p. 26. 175

Carta a Paulo Prado, “domingo de Pascoela”, 1920, vol. 2, p. 397.

225

prefácio o título de Fragmento de Prólogo, dada a impossibilidade de concluí-lo a

contento.176

Além das dificuldades para escrever livros, notas e prefácios, também tinha

problemas com as separatas de seus próprios textos. Era comum a reprodução em volume

ou opúsculos de trabalhos anteriormente publicados em periódicos. Para que isso

acontecesse, Capistrano procedia ao que ele chamava de “camuflagem” do texto. Trabalho

do qual não gostava. Reclamava com Paulo: “Triste labuta é ter que preparar a separata dos

próprios artigos. Qualquer coisa modificada aqui reage sobre o que vai adiante, se evitar

contradições, não evitarei tombo”.177

Num determinado momento, a melhor opção pareceu ser dividir as tarefas com

amigos. Assim, poderia se encarregar de apenas derramar “a canela sobre o arroz doce”.178

Queixando-se da preguiça, lembrava: “em dois meses, fora de cartas, não escrevi uma linha

aproveitável”. Com dificuldade para escrever seus trabalhos de história, Capistrano

escrevia cartas para não deixar o dia sem linha. Era, como boa parte dos “homens de

letras” de sua época, um epistológrafo, sendo que escrevia cartas “às carreiras” ou “de pé

no estribo, só para não demorar a resposta”; à prestação – quando interrompia e depois

retomava a escrita, devido a algum contratempo; de memória ou do coração – quando não

tinha à mão a carta de alguém que demandava resposta; e seguindo o preceito do Conselho

Ultramarino – quando procurava tratar de um assunto por carta. Às vezes, escrevia carta

“pororoca” ou “minhocão”: grande demais. As maiores foram escritas para João Lúcio de

Azevedo. Eram textos que faziam Capistrano pedir desculpas por ocupar tanto o tempo do

leitor, além de prometer não fazê-lo de novo.179

Em certa época, admitiu: “eu não nasci

para escritor: para mim é sempre incômodo pegar na pena e quanto mais velho vou

ficando, tanto mais aumenta a indisposição”.180

Enquanto o leitor Capistrano se reinventa a cada nova leitura, pois é essa atividade

que parece ser a fonte principal de sua autoridade como intelectual, o escritor Capistrano

parece minguar. Lendo muito, perdendo a memória e escrevendo pouco, em algumas de

suas cartas publicadas – mais especificamente, nas cartas produzidas na década de 1920 e

176

Cartas a Paulo Prado dos dias: 28/10/1922, 23/12/1922, “véspera de S. Rui” [04/11], 1922, 17/11/1922 e

19/02/1925, vol. 2, p. 424, 432, 425, 427 e 463. 177

Cartas a Paulo Prado dos dias 22/12/1922 e 27/11/1924, vol. 2, p. 431 e 460. 178

Carta a Paulo Prado: 1923 (“oitava da Purificação”), vol. 2, p. 440. 179

Por exemplo, cartas a João Lúcio de Azevedo dos dias: 30/06/1916, 14/09/1916, 15/11/1916, 25/01/1917,

03/09/1917, vol. 2, p. 11, 15, 17, 21, 27, 63 e 65; e cartas a Paulo Prado dos dias 01/04/1923 e 13/01/1924,

vol. 2, p. 445 e 451. 180

Carta a Oliveira Lima, 27/10/1900, vol. 3, p. 7, já citada na epígrafe.

226

enviadas para apenas sete dos seus correspondentes181

– Capistrano assinou como “João

Ninguém”, às vezes utilizando variantes como: “Dr. João Ninguém”, “Hans Niemann”,

“Inútil João Ninguém”, “J. N.”, “J. Ninguém”, “João Ninguém da Ac. De A(dão) e E(va)”,

entre outros.182

Esse recurso não pode ser confundido com um mero disfarce do nome do

autor, que deseja permanecer no anonimato. O uso de pseudônimos era comum no mundo

das letras do século XIX e do início do século XX.183

Mas, Capistrano nunca assinava as

obras que publicava como “João Ninguém”, apenas nas cartas escritas no fim da vida e

enviadas para um número restrito de destinatários. Nestas, evidentemente, não visava à

ocultação. Ao proceder desta forma, apenas na intimidade, parece querer passar uma

mensagem, identificando-se perante determinados correspondentes – talvez aqueles que

considerasse, além de pares e/ou discípulos, os mais amigos – através de uma assinatura

que remetia a algo indeterminado.

Uma possível hipótese sobre o uso da assinatura “João Ninguém” por João

Capistrano de Abreu pode ser construída a partir da idéia de que Capistrano sentia-se como

um leitor errante.184

Suas leituras e pesquisas tendiam ao infinito. Qualquer tentativa de

realização através da escrita conduziria, necessariamente, ao erro, considerando que

“exprimir-se é sempre errar”.185

Esse impasse provocado pelo Capistrano leitor teria

conduzido o Capistrano escritor à imobilidade e à inconclusão, o que era alimentado pela

crença – expressa em algumas cartas – na inutilidade da existência e de toda ação.

Pensando a escrita como uma prática movida por liberdades e determinações, tal como a

leitura, resta tentar compreender como Capistrano desenvolveu aquele que parece ter sido

um de seus mais caros projetos: o da escrita da história do Brasil.

181

Eram eles: Mário de Alencar, Afonso de Taunay, João Pandiá Calógeras, João Lúcio de Azevedo, Paulo

Prado, Rodolfo Garcia e Luís Sombra. 182

Pode-se supor que ele também tenha enviado cartas com esta assinatura para outras pessoas, sendo que

tais cartas não foram publicadas. Indício disso é que, em carta a Capistrano, Alberto Rangel – que não possui

cartas enviadas pelo historiador cearense na Correspondência organizada por J. H. Rodrigues – chamou-o de

“João Tudo”, uma alusão a “João Ninguém”. 183

Ver NÓBREGA, Mello. Ocultação e disfarce de autoria. Fortaleza, UFC, 1981, p. 135-6. 184

A inspiração para tratar Capistrano como um leitor errante vem de ALBERTI, Verena. “Um drama em

gente: trajetórias e projetos de Pessoa e seus heteronômios”. In: SCHMIDT, Benito (org.). O Biográfico:

perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2000, p. 179-241. Alberti propõe pensar

Fernando Pessoa como um “escritor errante”. 185

PESSOA, Fernando apud ALBERTI, op. cit., p. 226.

227

6

Modos de fazer

Escrevendo cartas “para não deixar o dia sine línea”, Capistrano de Abreu deixou

muitos indícios que ajudam a compreender um pouco da cultura histórica1 de fins do

século XIX e início do XX. Compreendendo que o modo como uma dada sociedade lida

com seu passado tem relação direta com a produção historiográfica, procura-se identificar

um conjunto de temas, procedimentos, referências teóricas e organizacionais, obras e

figuras-chave, interpretações e significados compartilhados, que, de modo efetivo,

possibilitam a escrita da história em um dado momento.

A correspondência de Capistrano é uma entre outras formas de acesso a essa cultura

histórica, pois ela traz informações sobre o ofício do historiador, revelando os bastidores

das pesquisas sobre o Brasil, ao expor os obstáculos à obtenção de livros e documentos, as

dificuldades de editoração e publicação, as práticas de leitura, as referências teóricas e

literárias etc. Servindo como meio de comunicação privilegiado entre intelectuais, que

compartilham interesses, experiências e projetos, as cartas indicam a existência de redes de

estudo à distância, através das quais se constrói um espaço singular para reflexões sobre si

mesmo, sobre a história e sua escrita.

Essas reflexões, longe de constituir teorias da história rigidamente elaboradas e

acabadas, favorecem um tipo de conhecimento dialógico, construído de maneira coletiva e,

ao mesmo tempo, fragmentada. “Pensar por carta” estimula os missivistas a testar formas

de pesquisa e expressão bastante distintas daquelas encontradas em livros e artigos, por

exemplo. Às vezes, em meio a recordações do passado, referências à saúde e comentários

sobre os problemas do dia-a-dia, a vida alheia, a política e os trabalhos em andamento, é

1 De acordo com Bernard Guenée, a cultura histórica é “a bagagem profissional do historiador, a sua

biblioteca de obras históricas, o público e a audiência dos historiadores”. Jacques Le Goff amplia o

significado do termo, ao considerar que a cultura histórica corresponde à “relação que uma sociedade, na sua

psicologia coletiva, mantém com o passado”. Segundo o autor, o estudo da cultura histórica permite

compreender o modo através do qual essa sociedade percebe e expressa aquilo que pensa que é ou o que

gostaria que fosse. Ver ambas as referências em LE GOFF, Jacques. “História”. In: _____. História e

Memória. Campinas, Unicamp, 1990, p. 47-48.

228

possível localizar indícios de um saber em contínua transformação. De modo lacunar e

muitas vezes inconcluso, a correspondência permite uma rápida construção, confrontação e

difusão de idéias. Entre convenções e improvisos, a reflexão toma um rumo provisório,

efêmero, aberto a futuras modificações, o que permite explorar certas liberdades de dizer e

de pensar.2

Considerando que o exercício da escrita visa influir sobre a realidade,3 é possível

supor que a carta, além de ser o instrumento de um dizer, também pode ser vista como uma

forma de agir sobre o outro, sobre o mundo e sobre si mesmo. Esse agir possibilitado pela

escrita de cartas mobiliza múltiplos recursos a fim de convencer, influir, demandar, resistir

etc., à distância.4

Dito isso, o objetivo deste capítulo é compreender o modo como Capistrano

planejou escrever a história, considerando as práticas relativas ao ofício de historiador em

sua época. Supondo que o exercício da escrita (no caso, a escrita de cartas e a escrita da

história) possibilita o surgimento simultâneo do autor e do texto, a hipótese é a de que os

projetos formulados, realizados ou não, fomentam uma dupla construção: a da história e a

do historiador.5 Para dar conta desse objetivo, são propostos dois movimentos

complementares. Em primeiro lugar, tecer um panorama da cultura historiográfica entre as

décadas de 1870 e 1920, período coberto pela correspondência de Capistrano, que se

concentra, principalmente, no século XX. Em segundo, articular referências ao uso das

fontes, à metodologia e à escrita da história, presentes nas cartas, de modo a reconstituir a

trama de significados tecida pelo sujeito que faz a si mesmo enquanto faz a história.

2 DIAZ, Brigitte. L’épistolaire ou la pensée nomade. Paris, PUF, 2002, p. 39-45; e, também, GOMES,

Ângela de Castro. “Rascunhos de história imediata: de monarquistas e republicanos em um triângulo de

cartas”. Remate de Males – Revista do Departamento de Teoria Literária. Campinas, Unicamp, n. 24, 2004,

p. 9-32. 3 CERTEAU, Michel de. “A economia escriturística”. In: _____. A invenção do cotidiano: artes de fazer.

Petrópolis, Vozes, 1994, p. 221-246. 4 DIAZ, op. cit., p. 61-62 e 139-194.

5 Essa reflexão procura estabelecer um diálogo com a tese de Daniel Mesquita Pereira, para quem a obra de

Capistrano, implicitamente, apresenta duas formações: a da nacionalidade brasileira e a do próprio autor

como historiador moderno. Ver PEREIRA, Daniel Mesquita. Descobrimentos de Capistrano: a História do

Brasil “a grandes traços e largas malhas”. Rio de Janeiro, PUC – Dep. de História, tese de doutorado, 2002.

229

6.1. Um olhar sobre a historiografia das primeiras décadas republicanas

(...) lhe envio muito saudar para que continue com saúde

e com esse bom ideal patriótico com [que] serve ao

Brasil no estudo do seu passado e nos estimula a nós

outros, que nos esforçamos por navegar nas mesmas

águas (carta de Teodoro Sampaio a Capistrano de

Abreu, 13/09/1921).6

A carta do engenheiro Teodoro Sampaio, notório estudioso da língua tupi e da

geografia do Brasil, fala de um “bom ideal patriótico”: o estudo da história, que, no início

do século XX, tinha Capistrano de Abreu como um de seus principais nomes. O

conhecimento do passado tinha grande importância, sendo associado por muitos a uma

missão cívico-pedagógica: “ensinar aos cidadãos a cartilha do patriotismo”.7 Para o escritor

e crítico literário José Veríssimo, por exemplo, a finalidade do ensino da história era:

(...) dar-nos pelo conhecimento da origem comum, das dificuldades em comum sofridas e

em comum vencidas, da marcha e evolução dos mesmos costumes, das mesmas leis e da

mesma organização, dos processos custosa, lenta, mas seguramente adquiridos, a noção

exata da solidariedade nacional, e com ela o amor da pátria que nos legaram os nossos

antepassados e o desejo firme de continuá-los, para legá-la às gerações vindouras

sucessivamente melhorada.8

Em virtude das discussões sobre a inserção do Brasil na modernidade e de todo o

trabalho de pensar a nação e localizar suas particularidades, existia a demanda por um

esforço interpretativo da história do país. Tratava-se, então, de (re)construir a história

nacional num momento em que a escrita da história não era trabalho específico de

historiadores de ofício. À história, mas não apenas aos historiadores, caberia responder por

nossas origens e desenvolvimento. Empenhados em determinar “desde quando somos uma

nação”, os intelectuais das primeiras décadas do século XX buscaram formular respostas,

empreendendo um esforço no sentido de explorar o passado, explicar o presente e elaborar

6 Carta a Capistrano de Abreu, 13/09/1921, vol. 3, p. 182.

7 Ver, por exemplo, LUCA, Tânia Regina de. “História e Geografia: revalorizando a nação”. In: _____. A

Revista do Brasil: Um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo, Unesp, 1999, p. 86. 8 VERÍSSIMO, José. “A história pátria”. In: _____. A educação nacional. 1

a edição 1890. Rio de Janeiro,

Francisco Alves, 1906, p. 133-138.

230

projetos para o futuro. A identidade do Brasil estaria, pois, vinculada à (re)construção de

suas experiências no tempo.9

Aqueles que, como Capistrano, “navegavam” pelas águas da história, lidavam com

um leque de assuntos bastante amplo. Além de história, também podiam escrever sobre

fauna, flora, etnografia, folclore, filologia, lingüística, geografia, geologia etc. Dedicavam-

se, de modo diferenciado, aos debates políticos e aos problemas sociais. Alguns, por

exemplo, costumavam ocupar cargos públicos, exercendo serviços burocráticos, atuando

na política, na diplomacia, na administração e organização de arquivos e bibliotecas, bem

como, no ensino. A atividade jornalística se destacava como um dos principais meios de

sustento, de divulgação de idéias e de promoção do próprio nome.10

Muitos estudaram nos cursos de nível superior então existentes no Brasil: Medicina,

Engenharia e Direito. No início do século XX, o autodidatismo tendia a diminuir

rapidamente, mas não havia uma ligação estreita entre a formação profissional e a

produção intelectual. Diante desse quadro, pode-se considerar que é muito difícil delimitar

o que constituiria a produção historiográfica desenvolvida nas primeiras décadas do século

XX, sendo possível supor que não houvesse um único modelo de contribuição valorizado

como estudo histórico. Em decorrência disso, o perfil do historiador era muito diferenciado

em termos de contribuições. No entanto, apesar da dificuldade em circunscrever essa

produção, observa-se que a pesquisa e a escrita da história eram atividades desenvolvidas

ao longo do tempo, sem improvisos, pois exigiam o acúmulo de alguma erudição, a

disponibilidade de tempo e de recursos financeiros. Tais tarefas eram vistas como um

trabalho árduo, que demandava considerável investimento pessoal para a obtenção e leitura

de documentos manuscritos e publicações estrangeiras, assim como, para a redação e

divulgação de textos.11

Contudo, esses mesmos estudiosos – com sua formação, atuação e produção

intelectual diversificada – deram os primeiros passos no sentido da especialização dos

campos de conhecimento, de modo a permitir a associação de determinados trabalhos ao

9 Ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. “A construção da história da nação”. In: _____. A questão nacional na

Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1990, p.127-144; PESAVENTO, Sandra Jatahy.

“Contribuição da história e da literatura para a construção do cidadão: a abordagem da identidade

nacional”. In: _____ e LEENHARDT, Jacques (Orgs.). Discurso histórico & narrativa literária.

Campinas, Unicamp, 1998, p. 17-40. 10

GOMES, História e historiadores. Rio de Janeiro, FGV, 1996, p. 45-47, 75-77. 11

Ibidem, p. 12, 38 e 44-45.

231

domínio de certas práticas de pesquisa, leitura e escrita.12

De acordo com Ângela de Castro

Gomes, eram classificados como trabalho de historiador:

Tanto a narrativa que resulta da pesquisa documental, quanto o trabalho de tradução e

prefaciamento de livros estrangeiros, de localização e edição de documentos e ensaios

históricos, de redação de compêndios voltados para o público escolar, e até mesmo a

elaboração de romances históricos.13

Além disso, por mais difícil que fosse, a identificação do historiador poderia ser

feita através da localização de tradições historiográficas que, segundo a autora, eram

representadas por “temas, procedimentos, referências organizacionais e simbólicas e suas

figuras-chave”.14

Nas primeiras décadas republicanas a principal referência organizacional para os

estudos históricos era o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838. Ao

longo do século XIX, sua tarefa havia sido estabelecer uma história da nação brasileira

capaz de lhe garantir uma identidade própria em relação ao conjunto das Nações

civilizadas. Identidade capaz de se impor tanto externa quanto internamente.15

O início da República, marcado por um clima geral de instabilidade política,

suscitou muito ceticismo acerca do futuro do país.16

Nesse momento, muitos “homens de

letras” se engajaram na construção de um espaço próprio, capaz de favorecer a

profissionalização do intelectual e, ao mesmo tempo, promover certo distanciamento em

relação ao mundo do poder.17

12

O olhar sobre a historiografia brasileira do início do século XX, aqui desenvolvido, procura relativizar a

interpretação que a percebe como uma mera continuidade da historiografia produzida ao longo do século

XIX. Também busca romper com a idéia que considera a escrita da história anterior aos anos trinta como

marcadamente “positivista”. Cf. LAPA, José Roberto do Amaral. A história em questão: historiografia

brasileira contemporânea. Petrópolis, Vozes, 1976, p. 69-70; DIEHL, Astor Antônio. A cultura

historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo, Ediupf, 1998, p. 142-143. 13

GOMES, op. cit., p. 38 e 75-76. 14

Ibidem, p. 43. 15

Sobre o IHGB ao longo do século XIX, ver GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização

nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional”. Estudos

Históricos – Dossiê Caminhos da Historiografia. Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 5-27; GUIMARÃES, Lúcia

Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial. O Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (1838-1889). São Paulo, USP / FFLCH, tese de doutorado, 1994. 16

Ver, por exemplo: LESSA, Renato. “Os anos entrópicos (1889-1894)”. In: _____. A invenção republicana:

Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira. São Paulo, Vértice, Editora Revista

dos Tribunais; Rio de Janeiro, IUPERJ, 1988, p. 49-72. 17

Esse engajamento foi lido posteriormente como um projeto apolítico, promovido por intelectuais que

haviam atuado em defesa do novo regime, mas que, decepcionados com os rumos da República e sentindo-se

por ela excluídos, optaram pelo afastamento em relação à política (sobretudo, a partidária). Ver, por exemplo:

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São

Paulo, Brasiliense, 1983; NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

232

Supostamente, foi então que o campo dos estudos históricos ganhou certa

autonomia, definindo-se enquanto um tipo de prática dominada por um especialista: o

historiador.18

Esse seria definido pela capacidade de construir seu objeto, de desenvolver

procedimentos de análise crítica, de refletir sobre aquilo que produz – o

texto/conhecimento histórico – e, ao mesmo tempo, por situar-se em meio a uma tradição

intelectual de estudos. Tal historiador podia ser conduzido ao estudo da história por

imperativos ético-políticos, que exigiam respostas para os problemas nacionais que fossem,

ao mesmo tempo, pragmáticas e embasadas em metodologia científica. Também era

impelido por um gosto muito particular pela pesquisa em arquivos e pela árdua leitura de

manuscritos e trabalhos em língua estrangeira.19

Outro fator capaz de estimular o estudo da história era a participação em

determinadas redes de sociabilidade, tecidas em torno de figuras-chave do mundo

intelectual, que incentivavam pesquisas, indicavam leituras, propunham temas e roteiros de

trabalho, de modo a estabelecer a colaboração em projetos individuais e coletivos. Tais

redes também eram responsáveis pelo reconhecimento do historiador (como um par, um

mestre ou um discípulo), contribuindo para atestar sua competência no estudo da história.20

Especificando um pouco mais: embora lidasse com uma vasta gama de assuntos,

esse historiador afirmava sua identidade, entre outras coisas, a partir do exercício de um

método de crítica documental, capaz de distingui-lo dos demais “homens de letras”. Ao

lado do método, a erudição também contribuía para definir o historiador, do mesmo modo

que a relação de seu nome – mesmo que por oposição – a uma tradição de estudos

históricos, herdada do século XIX, podia ajudar a consolidar seu papel. Tradição essa

bastante marcada pelo esforço de localizar e armazenar documentos, submetendo-os à

Outra leitura considera esse projeto como marcadamente político, justamente, por defender um

distanciamento dos intelectuais do campo do poder. Ver: GOMES, op. cit., p. 49; e RODRIGUES, João

Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-

1913). Campinas, Unicamp, 2001. 18

Patrícia Santos Hansen chama a atenção para o fato de que, enquanto o campo da história ganhava

autonomia, definindo-se como uma prática disciplinar, exercida por um tipo de profissional (o historiador), o

magistério ainda enfrentava grandes problemas de definição quanto à profissionalização. Assim como o

historiador, o professor era um intelectual que lidava com vários tipos de conhecimento. Contudo, estava

longe de ser reconhecido por uma especialização, capaz de lhe conferir uma identidade própria. Enquanto o

primeiro distinguia-se pelo domínio de um método de crítica documental e por uma valorizada erudição,

ambos vistos como capazes de diferenciá-lo dos demais “homens de letras”, o segundo ainda carecia de um

campo ao qual pudesse ser vinculado. Ver HANSEN, Patrícia Santos. Feições & Fisionomia: a História do

Brasil de João Ribeiro. Rio de Janeiro, Access, 2000, p. 61. 19

Ver GOMES, op. cit., p. 76. 20

Ver o capítulo 4, que apresenta a correspondência de Capistrano de Abreu como um exemplo de rede de

pesquisas à distância, no início do século XX.

233

crítica especializada, assim como, pela tentativa de conciliar dois modelos de história: a

narrativa e a filosófica.21

A autonomia proferida pelo exercício de um método científico não excluía as

ligações com o campo do poder. Aquilo que o historiador produzia, legitimado pelo modo

como produzia, tinha um valor propedêutico que não podia ser dispensado. Tal como

ocorrera ao longo do século XIX, a escrita da história das primeiras décadas republicanas

também era vista como algo indissociável da ação política. Desse modo, a constituição de

um campo de estudos históricos e a identificação de um profissional atuante nesse campo

conciliava os projetos intelectuais com as demandas do campo político.22

Outro aspecto a considerar: o IHGB, criado durante o regime monárquico, sob a

proteção do imperador, teve seu prestígio e suas finanças afetados com o início da

República, ainda que muitos de seus membros participassem dos quadros do novo regime.

É possível supor que essa situação exigiu certo esforço a fim de adaptar o Instituto aos

novos tempos. Analisando o IHGB no período que vai de 1908 a 1938 – época em que a

instituição esteve sob a direção do Barão do Rio Branco (1908-1912) e do Conde Afonso

Celso (1912-1938) – Ângela de Castro Gomes observa investimentos políticos e

acadêmicos no sentido de redirecionar a produção da história e da memória nacionais. Tais

investimentos implicavam na consolidação da história como um saber estratégico, de

importância capital para a legitimação da República. Em função disso, o estudo e a escrita

da história deveriam adquirir novas características, além de reformular outras tantas,

reinventando a tradição historiográfica herdada do Oitocentos, a fim de construir uma

21

A história narrativa prevê o uso de estratégias miméticas, supostamente capazes de “ressuscitar” o passado.

Partindo da seleção de fontes, submetidas à crítica interna e externa, constrói-se uma narrativa com o objetivo

de explicar “o que realmente aconteceu”. Essa narrativa procura ocultar o narrador, de modo a fazer crer que

se trata de um relato neutro, objetivo. Já a história filosófica baseia-se no ideal iluminista de construir um

discurso sobre a história com base em um raciocínio apriorístico guiado pela razão. Através do discurso

histórico busca-se afirmar um sentido para o devir, não importando tanto a reconstituição daquilo que

“realmente aconteceu”. Ver: SCHAPOTCHNIK, Nelson. “Como se escreve a história?”. Revista Brasileira

de História. São Paulo, vol. 13, n. 25/26, set. 1992 / ago. 1993, p. 72-73; GUIMARÃES, Manoel Luís

Salgado. “Nação e civilização nos trópicos”, op. cit., 7-8; HARTOG, François. “A arte da narrativa

histórica”. In: BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique (Orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da

História. Rio de Janeiro, UFRJ, FGV, 1998, p. 193-202. 22

Sobre a importância política da história no Brasil do século XIX, ver, por exemplo: GUIMARÃES,

Manoel Luís Salgado, op. cit.; E, no início da República: GOMES, op. cit., p. 75-124; OLIVEIRA, op. cit., p.

127-143; PESAVENTO, op. cit., p. 17-40; LUCA, op. cit., p. 85-126; e JANOTTI, Maria de Lourdes

Mônaco. “O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da República”. In: FREITAS, Marcos

Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo, Contexto, 1998, p. 119-143.

234

tradição historiográfica republicana. Tal empreendimento deveria enfrentar um conjunto de

temas cruciais, relativos à questão da formação da nacionalidade.23

Desde o século XIX, o tema da gênese da nação era desenvolvido através de

estudos sobre dois episódios centrais: o Descobrimento e a Independência, com destaque

para o segundo, pois prevalecia o interesse pelo processo de implantação do Estado, visto

como o eixo que deveria nortear a leitura da história nacional. Também havia espaço para a

investigação das relações entre três raças – a branca ou caucasiana, a preta ou etiópica e a

americana ou cor de cobre –, consideradas como a base da nacionalidade, tal como foi

proposto pela memória elaborada por Karl Friedrich Von Martius, premiada pelo IHGB,

em 1844, como o melhor plano para a escrita da história do Brasil.24

A partir do final do século, ainda que os antigos temas permanecessem sob o foco

de muitos estudiosos, observa-se um crescente interesse a respeito do povoamento do

interior do país, com destaque para o surgimento dos caminhos e das cidades, que, ao lado

da análise sobre a constituição do povo brasileiro, deveriam contribuir para a construção de

uma nova narrativa sobre a história da nação.

Um bom exemplo de desenvolvimento do tema é o livro escolar História do Brasil,

de João Ribeiro, publicado em 1900. A história da formação do Brasil é a história do

“Brasil interno”, fundada no estudo da ocupação territorial do país e na incorporação de

agentes até então excluídos da história, supostamente responsáveis por atribuir à nação

“feições e fisionomia próprias”.25

Outro exemplo é o de Capistrano de Abreu, com seus estudos sobre os indígenas, os

primeiros colonizadores, os caminhos antigos e o movimento das populações pelo interior.

São trabalhos, na maior parte, dispersos, publicados originalmente em jornais e revistas,

alguns como prefácio de livros revistos e anotados pelo autor. Para esse historiador:

23

GOMES, Ângela de Castro. “Gilberto Freyre e Oliveira Lima: Casa Grande & Senzala e o contexto

historiográfico no início do século XX”. História – Revista da Universidade Estadual Paulista. São Paulo,

Unesp, v. 20, 2001, p. 37-38. 24

MARTIUS, Karl Friedrich Phillipe von. “Como se deve escrever a história do Brasil”. In: _____. O estado

do direito entre os autóctones do Brasil. 1a edição 1844. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1982, p.

85-107. Ver, também: GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Op. cit., p. 9; e WEHLING, Arno. Estado,

História, Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. 25

Ver HANSEN, op. cit., p. 85-94. Para Patrícia Santos Hansen, o conceito de “interno” em João Ribeiro não

se refere exatamente à parte do território oposta ao litoral (o sertão), ainda que essa dimensão espacial esteja

presente em sua obra. Segundo a autora, o “interno”, na História do Brasil de Ribeiro, está vinculado,

sobretudo, à identidade e à subjetividade, não de um indivíduo, mas da própria nação. Seria investigando as

características internas do “caráter nacional”, que Ribeiro teria buscado rastrear os aspectos típicos da

nacionalidade brasileira. Ver HANSEN, op. cit., p. 72-73.

235

O Brasil precisa de duas histórias. Uma – história íntima – deve mostrar como aos poucos

foi se formando a população, devassando o interior, ligando entre si as diferentes partes do

território, fundando indústrias, adquirindo hábitos, adaptando-se ao meio e constituindo por

fim a nação (...) A outra – a história externa – convém que trate o Brasil como colônia

portuguesa (...).26

Além de temas, alguns procedimentos eram valorizados como meio de obter um

conhecimento científico e, portanto, seguro, acerca da formação da nacionalidade. Ao lado

da erudição, que podia ser útil ou não,27

os métodos da crítica documental desenvolvidos

pela historiografia alemã eram considerados úteis e necessários para a realização de uma

boa pesquisa histórica em arquivos. Os estudos guiados pela prática da citação de fontes e

bibliografia, assim como pela crítica interna e externa dos documentos, ajudavam a

sustentar a posição de seus autores como autoridades.28

Mas, além de enfrentar problemas

heurísticos, era preciso lidar com outro problema essencial: o da narrativa.

O historiador dos primeiros tempos republicanos deveria ser capaz de captar o

sentimento da terra e da gente. Sentimento a ser expresso através de uma narrativa distinta

daquelas pontuadas por nomes e datas, apresentados através de formas variadas, como os

relatórios, os anais e as memórias, bastante utilizados ao longo do século XIX.29

Distinta,

também, do modelo proposto por Francisco Adolfo de Varnhagen na sua História Geral do

Brasil (1854-1857). Essa obra, mesmo criticada, era vista como referencial, não apenas por

apresentar o maior volume de documentos até então reunidos, mas, também, por ser a

primeira (e, durante muito tempo, única) história geral da nação escrita por um brasileiro.

Varnhagen era criticado por ter escrito “sem crítica e sem estilo, consumindo largas

páginas com fatos somenos, quando deixava nas sombras de ligeiros traços acontecimentos

notáveis, dignos de mais desenvolvida notícia”. Apesar da rejeição ao tipo de narrativa

26

ABREU, Capistrano de. “Livros e letras” [seção]. In: _____. Ensaios e estudos: crítica e história, 4a série.

Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1976, p. 157. Originalmente publicado na Gazeta de

Notícias, 19/10/1880. 27

Para João Ribeiro, por exemplo, “a erudição é a maior amiga e a maior inimiga da história. A

documentação deve ser elítica e separada; como na pintura deve-se sentir a cor e não deixar muito visível o

desenho das linhas”. RIBEIRO, “O culto da história”. In: _____. Obras – Crítica, vol. VI: Historiadores. Rio

de Janeiro, ABL, 1961, p. 430. Originalmente publicado no jornal Imparcial, 18/09/1918. 28

Ver, por exemplo: BOURDÉ, Guy e MARTIN, Hervé. “A escola metódica”. In: _____. As escolas

históricas. S.l., Publicações Europa América, s.d., p. 97-118; e GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da

erudição: pequeno tratado sobre a nota de rodapé. Campinas, Papirus, 1998, especialmente, p. 63-84. 29

Em determinado momento, chegou-se a acreditar que a sinopse histórica fosse o modelo ideal de escrita.

Tal “gênero” orientava-se pela lógica de que o antes explica o depois. O arranjo dos “dados” tidos como

únicos (não comparáveis) em uma série cronológica restrita, ajudaria a sustentar a estratégia explicativa,

desenvolvida entre uma origem e um fim. Assim, os acontecimentos funcionariam como elementos de um

enredo dotado de sentido. Além disso, a sinopse também previa a anulação do narrador, de modo a criar a

ilusão de que os fatos falam por si. Ver SCHAPOCHNIK, op. cit., p. 70-71.

236

desenvolvida por Varnhagen, seu valor como pesquisador de arquivos ainda era

reconhecido.30

De acordo com Nelson Schapochnik, ao longo do século XIX, a produção de

relatórios, anais e memórias era vista como uma alternativa provisória, uma vez constatada

a inexistência de um modelo de escrita da história nacional capaz de distinguir-se da

crônica e das belas-letras, através da construção de um tipo específico de narrativa, guiada

por um aparato crítico-científico de análise documental. Sendo assim, lamentava-se a

existência de uma lacuna historiográfica a ser preenchida. Lacuna surgida de uma dupla

carência: de documentos e de um modelo de escrita da história. Parte dessa carência foi

preenchida com a citada proposta de Martius (1844), acerca do melhor modo de escrever a

história do Brasil e, pela obra de Varnhagen (1854-1857).31

As primeiras décadas do

século XX viveram semelhante dilema, relativo ao melhor modo de escrever a história

nacional, agora, do ponto de vista republicano. A carência de documentos ainda era motivo

de muita preocupação, sendo notável o investimento realizado no sentido de obtê-los e

divulgá-los.

A reescrita da história nos anos 1910 e 1920, por exemplo, foi incentivada por

Washington Luis, quando prefeito de São Paulo (1914-1919) e presidente do estado (1920-

1924). Estudioso da história, ele apoiou a publicação de valiosos documentos, tais como:

as Actas da Câmara de Santo André (1914) e de São Paulo (iniciada em 1914); o Registro

Geral da Câmara de São Paulo (1917); os Inventários e testamentos (iniciada em 1920); e

as Sesmarias (iniciada em 1921). Essas publicações serviram de base para os trabalhos de

Alcântara Machado, Afonso d‟Escragnolle Taunay, Basílio de Magalhães, Paulo Prado,

Alfredo Ellis Júnior etc., que tratam, de diferentes formas, da ocupação do interior do

país.32

Tais iniciativas eram isoladas, decorrendo, em grande parte, do esforço de alguns

nomes no sentido de obter apoio para tais publicações entre políticos, empresários e

burocratas, demonstrando um estreito e útil vínculo entre os historiadores e o campo do

poder.

Supostamente, a busca de documentos e os esforços para ampliar o acesso aos

mesmos, ao lado das reflexões sobre a natureza e o uso das fontes no estudo histórico;

sobre os métodos de análise; os problemas da narrativa e da interpretação etc., constituem

30

ARARIPE, Tristão de Alencar. “Indicações sobre a História Nacional”. Revista do IHGB, vol. LVII, parte

2, 1894, p. 289. 31

SCHAPOCHNIK, op. cit., p. 71. 32

Ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. “O pensamento histórico no Brasil nos últimos cinqüenta anos (1900-

1950)”. Correio da Manhã, Caderno Cultura Brasileira, 15/05/1951, última página e página 3.

237

uma espécie de agenda de discussão sobre a pesquisa e a escrita da história. Tal agenda

pode ser identificada, ainda que seja fragmentada e dispersa devido aos meios efêmeros

utilizados para sua divulgação. Essa não era feita por meio de manifestos ou livros, mas

através de artigos e resenhas publicadas em jornais e revistas, assim como, por meio de

discursos, prefácios, traduções e notas. São apontamentos úteis não tanto para estabelecer

como a história deveria ser interpretada e escrita, mas para indicar aquilo que o historiador

não deveria esquecer ao longo do trabalho. Serviam, desse modo, para dar algum sentido

tanto à produção historiográfica, quanto às discussões sobre a chamada “questão nacional”,

impondo-se até pelo menos os anos 1930, ainda que adquirindo novos itens, reiterando e

rejeitando antigas proposições. Uma parte dessa agenda pode ser localizada nos artigos e

na correspondência de Capistrano de Abreu.

6.2. Um projeto e um lugar para si

Sabe que há hoje exatamente 50 anos tive a primeira

idéia de escrever uma história do Brasil? (Carta de

Capistrano de Abreu a Paulo Prado, 20/05/1924).33

Lembranças de um projeto: escrever a história do Brasil. Projeto antigo, construído

ainda na juventude e freqüentemente lembrado, como se aquele que lembra quisesse alertar

a si mesmo sobre a passagem do tempo e a não realização do planejado.

Em carta ao amigo João Lúcio de Azevedo, Capistrano recorda:

Tenho presente a primeira vez em que veio a idéia de escrever a história do Brasil. Estava

no Ceará, na freguesia de Maranguape, com poucos livros, arredado de todo comércio

intelectual. Acabava de ler Buckle no original, relia mais uma vez Taine, tinha acabado a

viagem de Agassiz. Vim depois para o Rio em 1875; cada ano que passa é uma parede que

cai.34

O plano de escrever a história do Brasil, idealizado pela primeira vez no Ceará,

provavelmente tomou forma no Rio de Janeiro, entre meados da década de 1870 – quando

Capistrano chegou à Corte – e o final dos anos 1880. Foi nesse período que ele conquistou

um lugar no “pequeno mundo dos historiadores”. É possível supor que, para que isso tenha

ocorrido, muito contribuiu a publicação de um texto em honra de Francisco Adolfo de

Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, considerado por muitos como o maior historiador

33

Carta a Paulo Prado, 20/05/1924, vol. 2, p.457. 34

Carta a João Lúcio de Azevedo, 19/03/1917, vol. 2, p. 37-38.

238

do século XIX. Como foi dito, sua principal obra, a História Geral do Brasil (1854-1857),

era tida como referencial para o estudo e a escrita da história brasileira. No entanto,

Varnhagen morreu em 1878, num momento em que sua produção era duramente

criticada.35

Capistrano orgulhava-se de ter sido o único (segundo ele) a louvar o morto.36

Ao

escrever o necrológio, destacou “a constância, o fervor e o desinteresse” como suas

características principais. Aos seus olhos, o visconde era o historiador da pátria,

apaixonado por “problemas não solvidos”. Alguém que “tudo viu, tudo examinou”:

códices corroídos, livros esquecidos, arquivos desarrumados... Um historiador que “pelo

terreno das dúvidas e das incertezas caminhava bravo e sereno, destemido bandeirante à

busca da mina de ouro da verdade”, um “grande exemplo a seguir e a venerar”. No trato da

ciência, seu maior mérito teria sido a dedicação às coisas nacionais.37

Mas, após ressaltar as qualidades do homenageado, confirmando seu lugar como

grande estudioso da história e reconhecendo a dívida da historiografia para com sua obra –

responsável por “um grande progresso na maneira de conceber a história pátria” –

Capistrano também destaca seus defeitos, dizendo:

Varnhagen não primava pelo espírito compreensivo e simpático, que, imbuindo o

historiador dos sentimentos e situações que atravessa – o torna contemporâneo e confidente

dos homens e acontecimentos. A falta de espírito plástico e simpático – eis o maior defeito

do Visconde de Porto Seguro. A história do Brasil não se lhe afigurava um todo solidário e

coerente.

O necrológio estabelece uma espécie de diálogo com o homenageado. Diálogo

crítico e tenso, conforme observou Daniel Mesquita Pereira. Ao mesmo tempo em que

reconhece a dívida da historiografia em relação a Varnhagen, Capistrano também aponta

aquilo que julga ser deficiente na produção de seu antecessor. Desse modo, ele abre espaço

para que a tradição historiográfica à qual essa produção se vinculava pudesse ser, ao menos

35

Sobre Varnhagen, ver WEHLING, Estado, História, Memória, op. cit. 36

Ver ABREU, Capistrano de. “Livros e Letras” [seção]. In: Ensaios e Estudos, 4a série, op. cit., p. 137.

Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, 17/04/1880. Pedro Lessa, ao menos em determinado

momento, também foi um expressivo defensor de Varnhagen. Ver LESSA, Pedro. Visconde de Porto

Seguro. Revista do Brasil, vol. 1, n. 3, mar. 1916, p. 343. 37

ABREU, Capistrano de. “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro”. In:

_____. Ensaios e Estudos: crítica e história, 1a série. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL,

1976, p. 81-91. Publicado no Jornal do Comércio, 16-20/12/1878 e reproduzido no Apenso à História Geral

do Brasil, de Varnhagen, tomo 1, p. 502-508, 4a edição.

239

até certo ponto, ultrapassada.38

Essa ultrapassagem só seria possível mediante uso de um

novo tipo de conhecimento: o sociológico. Segundo Capistrano, um “corpo de doutrinas

criadoras que nos últimos anos se constituíram em ciência sob o nome de sociologia”,

contribuía para uma melhor compreensão da vida social e das relações entre as diferentes

épocas. Por não compartilhar desse tipo de conhecimento, Varnhagen:

(...) poderia escavar documentos, demonstrar-lhes a autenticidade, solver enigmas,

desvendar mistérios, nada deixar que fazer a seus sucessores no terreno dos fatos:

compreender, porém, tais fatos em suas origens, em sua ligação com fatos mais amplos e

radicais de que dimanam; generalizar as ações e formular-lhes teoria; representá-las como

conseqüências e demonstração de duas ou três leis basilares, não conseguiu, nem consegui-

lo-ia. Fa-lo-á alguém?39

Reconhecendo e valorizando os caminhos abertos pelo “pensar contemporâneo”,

guiado por “métodos novos” e “instrumentos poderosos”, Capistrano vê sinais de

renovação no campo dos estudos históricos. Essa renovação é relacionada à existência de

publicações periódicas dedicadas à divulgação de documentos e memórias; ao

desenvolvimento da história nas províncias; e ao investimento no estudo de períodos

particulares. Atraído, na época, por teorias deterministas e evolucionistas, afirma:

Por toda a parte pululam materiais e operários; não tardará talvez o arquiteto. Que venha, e

escreva uma história da nossa Pátria digna do século de Comte e Herbert Spencer.

Inspirado pela teoria da evolução, mostre a unidade que ata os três séculos que vivemos.

Guiado pela lei do consensus, mostre-nos o rationale de nossa civilização, aponte-nos a

interdependência orgânica dos fenômenos, e esclareça uns pelos outros. Arranque das

entranhas do passado o segredo angustioso do presente, e liberte-nos do empirismo crasso

em que tripudiamos.40

38

Daniel Mesquita Pereira identifica, no necrológio de Varnhagen, um misto de admiração e reconhecimento,

aliado a um desejo de superação. Capistrano o teria admirado, a ponto de situá-lo sobre um pedestal, mas

procurando ir além, subindo sobre seus ombros, ou seja, apoiando-se em sua obra. Assim, é possível pensar

que o projeto intelectual do historiador cearense foi formulado a partir da obra do Visconde de Porto Seguro.

Mesquita também identifica, em Capistrano, alguns aspectos de continuidade e de ruptura com a tradição

historiográfica anterior, que considera marcadamente conservadora. Ver PEREIRA, Descobrimentos de

Capistrano, op. cit., p. 19 e 24. 39

ABREU, “Necrológio...”, op. cit., p. 90. 40

Ibidem, p. 91. Em outro artigo, Capistrano lembra a preocupação do inglês Robert Southey, autor de

História do Brasil, que, em carta ao amigo Townshend, afirmou: “Daqui a séculos meu livro se encontrará

entre aqueles que não estão destinados a morrer, e será para os brasileiros o que a obra de Heródoto é para a

Europa”. Ver SOUTHEY apud ABREU, Capistrano de. “Sobre o Visconde de Porto Seguro”. In: Ensaios e

240

Poucos anos depois, em 1882, Capistrano publicou novo texto sobre Varnhagen,

onde é possível identificar alguns aspectos da cultura historiográfica do final do século

XIX. Tomando o visconde como seu objeto de estudo, Capistrano começa investigando seu

testamento, do qual destaca duas ordens curiosas: uma, para que sua viúva não se casasse

novamente e, outra, para que fosse erigido um monumento em sua memória. O intérprete

considera legítimo esse último desejo, pois seu nome havia sido construído com trabalho

digno. A glória póstuma era preocupação constante dos escritores e artistas da época,

observando-se, em muitos casos, o desejo de construir uma obra perene, como revela

Capistrano ao indagar: “Como fazer de uma vez um trabalho que fique?”.41

Mais uma vez, elogia a capacidade de seu antecessor para descobrir fatos pouco ou

nada conhecidos, reunir documentação inédita e submetê-la a um tipo de crítica útil para

distinguir a verdade do erro. Exalta suas qualidades como erudito capaz de decifrar

misteriosos manuscritos, em uma época em que a simples descoberta de material inédito

servia para indicar o pendor para investigações históricas.42

Depois dos elogios, a constatação de uma dificuldade: escrever a história do Brasil

depois de Varnhagen. Como superar o “mestre”, se “o trabalho é muito grande, as

facilidades não (sic) são pequenas, e, além disso, os homens que poderiam tomá-lo a si,

vão desaparecendo”? A resposta vem da constatação de que a obra de Porto Seguro não era

imune a críticas. Essas se dirigem, sobretudo, ao problema da escrita e da interpretação

que, supostamente, são vistos como indissociáveis. A capacidade de localizar documentos

– submetendo-os à crítica interna e externa –, assim como para desvendar fatos obscuros,

de nada valeriam sem a aptidão para tecer relações e desenvolver um enredo distinto da

crônica.43

Segundo Capistrano,

A História geral é um dos livros mais ariscos e mais fugidios que conhecemos. Pode-se lê-

lo quantas vezes se quiser, confrontá-lo, meditá-lo: há sempre no livro um quê, que escapa,

que resiste, que não se acha quando se procura, mas que é preciso procurar para achar. Há

Estudos, 1

a série, op. cit., p. 145. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, 21-22-23/11/1882.

Reproduzido no Apenso à História Geral do Brasil, de Varnhagen, tomo 3, p. 435-444, 3a edição.

41 ABREU, “Sobre o Visconde...”, op. cit., p. 132-147.

42 Idem, “Necrológio...”, op. cit., p. 133. Sobre os procedimentos do historiador moderno para distinguir o

verdadeiro do falso, ver, por exemplo, as formulações de BLOCH, Marc. “Crítica histórica e crítica do

testemunho” [1914]. In: _____. História e historiadores. Lisboa, Teorema, 1998, p. 22-30. 43

Capistrano aponta alguns nomes que considerava capazes de escrever a história do Brasil. Na época de

Varnhagen, Joaquim Caetano da Silva, “com sua perspicácia maravilhosa, com sua lucidez de espírito, com

seu gosto de minúcias, com seu estilo-álgebra, com seu saber inverossímil”; e, também, João Francisco

Lisboa, “com seu modo abundante, com sua ironia ácida, com sua pungência doentia, com seu pessimismo

previdente, com a intuição que fervilhava de suas páginas”. Contudo, não haviam realizado o que poderiam.

Em sua própria época, aponta Cândido Mendes de Almeida. Idem, “Sobre o Visconde...”, op. cit., p. 136-137.

241

ali detalhes sobejos que ao mesmo tempo são deficientes, porque lhes faltam os

concomitantes, que, únicos, poderiam mostrá-los à verdadeira luz.44

Varnhagen não tinha “aptidões artísticas” necessárias ao historiador, quais sejam: a

“intuição do conjunto” e a capacidade para “mostrar a convergência das partes”. Assim,

Sob as mãos de Varnhagen, a história do Brasil uniformiza-se e esplandece; os relevos

arrasam-se, os característicos misturam-se e as cores desbotam. Vê-se uma extensão, mas

plana, sempre igual, que lembra as páginas de um livro que o brochador descuidoso repete.

E, todavia, mesmo as pessoas que conhecem a história pátria infinitamente menos que

Varnhagen, percebem que as épocas se sucedem, mas não se parecem, e muitas vezes não

se continuam.45

Capistrano analisa a obra de Varnhagen procurando associar a índole desse

historiador ao tipo de escrita que ele foi capaz de elaborar. E, segundo Capistrano, o

visconde “não nos deu coisa que, ao menos de longe, lembre a arte”. Com um olhar

previdente, ele menciona a preocupação do historiador inglês Robert Southey em ser

reconhecido pela posteridade como o Heródoto do Brasil e afirma que: “Daqui a séculos

também a obra de Varnhagen será lida, porém por profissionais, que a consultarão como a

um dicionário de arcaísmos, um como Glossário de Santa Rosa de Viterbo: o povo só o

conhecerá de tradição”.46

A forma de narrativa utilizada por Varnhagen pecaria tanto pela falta de estilo,

como pela ausência de um enredo sociologicamente orientado, capaz de articular diferentes

acontecimentos e épocas. Buscando distinguir-se da crônica, comumente utilizada ao longo

do século XIX, a narrativa histórica deveria desenvolver um fio condutor de modo a

conciliar as partes com o todo, ou, em outras palavras, o detalhe com a visão de conjunto.

Contudo, mesmo concluindo que a obra do visconde tinha muito de crônica, Capistrano

também admitia seu “caráter de história”, identificado em “páginas que revelam muita

perspicácia”.47

Sobretudo, defendia que era preciso lê-lo:

44

Ibidem, p. 139. 45

Ibidem, p. 140. 46

Ibidem, p. 145. 47

De acordo com Capistrano, é mais fácil dizer que “a história não é crônica” do que “determinar com

precisão onde começa uma e onde acaba outra, ou mostrar um livro que possua exclusivamente um destes

caracteres”. Ibidem, p. 138.

242

(...) não uma, porém repetidas vezes, – lê-lo só uma é o mesmo que lê-lo nenhuma –, é

preciso descobrir suas qualidades por baixo de seus defeitos, familiarizar-se com suas

idéias, para compreender-lhes o alcance, ter feito parcialmente o trabalho, de que ele

apresenta a suma, comparado com os que o precederam e com os que se lhe seguiram,

pesar a soma de fatos que incorporou definitivamente à nossa história, para tê-lo na devida

consideração, não chocar-se com seus modos rudes e afogar os desgostos passageiros numa

admiração profunda, franca e de raízes bem profundas.48

Outra crítica a Varnhagen decorre da observação de que o visconde tinha

dificuldade para reconhecer os próprios erros, assim como costumava ignorar o trabalho de

outros eminentes historiadores, revelando não apenas uma certa soberba, mas,

principalmente, um compromisso com um tipo de história que não dava importância a tais

referências. Assim, “Quando um assunto já havia sido bem tratado por alguém do nosso

século, Varnhagen às vezes omitia-o, às vezes apenas esflorava-o, e isto sem ao menos

mandar para o autor que o estudara mais largamente”.49

Essa opinião sobre o antecessor revela a existência (ou a necessidade?) de uma

espécie de ética das relações, que deveria reger a escrita da história, submetendo-a a um

tipo de reconhecimento entre pares. O historiador sujeito a essa ética não poderia mais

basear sua autoridade na própria palavra e fundar a verdade sobre a tradição, como faziam

os antigos.50

Era preciso construir todo um sistema de referências, capaz de atribuir a cada

historiador o seu quinhão e, ao mesmo tempo, permitir pensar a existência de ambições

comuns – conhecer a história, demarcar as especificidades de cada sociedade e de cada

contexto, explicar o devir etc. –, ainda que expressas por diferentes perspectivas, línguas,

nacionalidades etc.

Mas, a construção das referências, além de estar relacionada a essa suposta ética de

um ofício, que então se delimita, também diz respeito à necessidade de estabelecer critérios

de cientificidade, baseados na noção de prova. As referências feitas ao longo do texto ou

em notas de rodapé ajudariam a conferir autoridade ao historiador, indicando sua

capacidade crítica de demonstrar e relacionar fatos ou possibilidades.51

Na época de

48

Ibidem, p. 145-146. 49

Ibidem, p. 144. 50

Paul Veyne lembra que “um historiador antigo não „faz notas de rodapé‟. Quer faça investigações

originais, ou trabalhe em segunda mão, pretende que acreditem no que diz (...)”. Se esse historiador quisesse

citar suas fontes, geralmente, o faria de forma irregular e nunca pelas mesmas razões pelas quais o fazemos.

Ver VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Lisboa, Edições 70, s.d., p. 17. 51

No século XIX prevalecia a idéia de que o texto histórico deveria convencer, enquanto as notas de

referência (ou de rodapé) deveriam provar. Ver GRAFTON, op. cit., p. 25. No contexto em que predomina a

243

Capistrano, era bastante difundida a idéia de que a imparcialidade e o caráter científico da

história poderiam ser garantidos através de procedimentos metodológicos. Esses deveriam

assegurar tanto a confiabilidade das fontes quanto o cumprimento de regras capazes de

tornar o olhar do historiador livre de verdades dogmáticas e apriorísticas. Ou seja, a

verdade histórica seria a verdade dos fatos comprovados pelo historiador mediante o uso

de um instrumental apropriado.52

As reflexões de Capistrano sobre Varnhagen (assim como aquelas que se verá a

seguir) podem ser vistas como parte de um movimento que visa consolidar um “campo”53

de estudos históricos, produzido por um tipo específico de especialista capaz de definir um

objeto próprio e de articular um método a um tipo particular de escrita. A existência desse

“campo” de estudos ainda não permitia configurar uma disciplina ensinável nos moldes

que seriam propostos pelas faculdades de filosofia, criadas após a reforma de Francisco

Campos em 1931. No entanto, parece ter sido suficiente para estimular a formação de redes

de pesquisadores da história, de modo a consolidar uma tradição, até certo ponto, distinta

daquela que prevalecia desde o século XIX.54

Além dos textos sobre o visconde de Porto Seguro, outro fato que, provavelmente,

ajudou Capistrano a conseguir um lugar no campo dos estudos históricos, foi a atuação

naquelas que eram, então, as principais instituições dedicadas à pesquisa e ao ensino de

história do país: a Biblioteca Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o

Colégio Pedro II.

moderna concepção de história, deixar de fazer referência a uma obra, por vezes, pode equivaler ao desejo de

provocar polêmica ou marcar posição. Em carta a Afonso Taunay, Capistrano comenta a leitura de

Populações meridionais do Brasil (1918), do jovem Oliveira Vianna, constatando: “(...) livro erudito, bem

escrito, bem meditado, mas, ao menos para mim, nada convincente até a página 57, aonde cheguei. O autor

não gosta de mim, deduzo pela omissão proposital de meu nome; note bem que escrevi proposital e escrevi

muito propositalmente. Pouco importa; se os gostos fossem os mesmo em tudo, desde muito o mundo andaria

pelos ares; verdade é que a perda não seria grande”. Carta a Afonso Taunay, datada com os seguintes dizeres:

“em plena soberania popular, 1921”, vol. 1, p. 322. 52

GOMES, História e historiadores, op. cit., p. 124; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. “Ronda Noturna:

narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu”. Estudos Históricos – Dossiê Caminhos da

Historiografia. Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, 1988, p. 28-54. 53

Sobre a noção de campo, Pierre Bourdieu é a referência principal, guardando as especificidades da cena

intelectual e da produção historiográfica no Brasil, do início do século XX. Ver BOURDIEU, Pierre. “Campo

de Poder, Campo Intelectual e Habitus de Classe”. In: _____. A economia das trocas simbólicas. São Paulo,

Perspectiva, 2003, p. 183-202. 54

GOMES, ibidem, p. 90; idem, “Gilberto Freyre e Oliveira Lima”, op. cit., p. 39-44. Sobre a constituição da

história como um campo de estudos autônomo e uma disciplina ensinável, ver: FURET, François. “O

nascimento da história”. In: _____. A oficina da história. Lisboa, Gradiva, s/d, p. 139-135; BITTENCOURT,

Circe Maria Fernandes. “Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana”.

Revista Brasileira de História. São Paulo, vol.13, n. 25-26, set./1992 - ago./1993, p. 193-221; FONSECA,

Thaís Nívea de Lima. História & Ensino de História. Belo Horizonte, Autêntica, 2003.

244

Guardiã de um rico acervo documental, a Biblioteca reunia alguns nomes

importantes do mundo intelectual de fins do século XIX e início do século XX. Eram

notórios eruditos, como Ramiz Galvão, Alfredo do Vale Cabral e Teixeira de Melo,

empenhados no estudo da história nacional, bem como, das línguas e costumes indígenas,

com expressiva dedicação às chamadas ciências auxiliares da história: a epigrafia, a

numismática, a paleografia etc.

Em 1879, Capistrano participou da seleção para oficial da Biblioteca, conquistando

o primeiro lugar. Logo após sua morte, em 1927, Ramiz Galvão – diretor da Biblioteca na

época da seleção – mencionou, a respeito da entrada do novo funcionário:

Estava ganho o primeiro ciclo da jornada, e abriam-se para o estudioso Cearense as portas

da cidade dos livros. É fácil imaginar o seu imenso júbilo. As pepitas de ouro se

empilhavam sobre a mesa do mineiro, sedento de riqueza. O que é fato, senhores, é que ali

se despertou a sua ânsia de investigar e resolver os problemas ainda obscuros da nossa

História (...).55

Entrando na “cidade dos livros”, Capistrano tratou de construir os alicerces para

seus próprios edifícios. Outros fatos que podem ser considerados importantes para a

construção de um lugar para si no “pequeno mundo” dos historiadores foram: a publicação

do artigo Uma grande idéia, em 1880, e a participação na importante Exposição de

História e Geografia do Brasil, organizada pela Biblioteca no ano seguinte.

A “grande idéia” de Capistrano foi expressa através de um texto dirigido ao

Ministro da Agricultura, Buarque de Macedo, que então organizava uma comissão para

escrever a história do Brasil. Diante desse empreendimento, Capistrano afirmou que

Uma obra de tantos colaboradores dificilmente poderá satisfazer às exigências da filosofia

histórica e científica; mas, quando alvorecer uma inteligência que, inspirada no espírito

moderno, quiser insuflar na massa um sopro grande e novo, a operação será possível e até

fácil.56

O jovem historiador considerava que, uma das vantagens decorrentes do

empreendimento estar sob o controle do Ministério da Agricultura – e não do Ministério do

55

GALVÃO, Ramiz. Atas da 7a Sessão Magna comemorativa do 89

o. aniversário do IHGB, em 21/10/1921.

[Necrológio de Capistrano de Abreu]. Revista do IHGB, tomo 101, vol. 155, 1928, p. 461. 56

ABREU, Capistrano. “Uma grande idéia”. In: Ensaios e estudos, 4a série, op. cit., p. 90. Originalmente

publicado na Gazeta de Notícias, em 17/04/1880.

245

Império, como seria de se esperar, tendo em vista que as principais instituições de guarda

documental (a Biblioteca e o Arquivo Público) estavam a seu comando – decorria do fato

dessa instituição ser pouco afeita a aceitar aqueles que considerava como “um dos

elementos mais deletérios de nossa sociedade: os bacharéis em direito”. O objetivo

principal do texto era aconselhar o ministro a tomar precauções contra o IHGB –

reconhecido na época como a mais importante instância de produção e consagração dos

estudos históricos – alertando:

Uma das maiores dificuldades que o Sr. Conselheiro Buarque de Macedo terá de vencer, há

de naturalmente ser a escolha do pessoal. Com certeza no princípio se oferecerá muita

gente. Todas as vezes que aparece qualquer idéia útil, surgem como cogumelos sócios,

sócios, sócios e... quem vê o entusiasmo com que a idéia é abraçada, exalta-se, gesticula e

grita que uma nova era se vai abrir, que grandes acontecimentos se preparam, etc. Depois é

que são elas. Depois tudo desaparece, tudo fica pior do que estava. Sim, pior! Antes da

experiência, havia uma decepção de menos e uma ilusão, isto é, um incentivo de mais.57

Após reconhecer, com certa ironia, a importância daquela instituição e o valor de

pertencer a ela, resolve nomear os sócios que poderiam participar do empreendimento,

apontando-lhes, sem pudor, as qualidades e os defeitos. Capistrano chega à impressionante

conclusão de que, dos 187 membros do IHGB, apenas 26 poderiam servir para a escrita da

história do Brasil; 3 poderiam servir sob condições e 158 seriam “perfeitamente inúteis”.

Também afirma que havia muitos nomes de fora do Instituto e sugere que essa grande

equipe se divida em duas comissões. A primeira, a ser presidida pelo Conselheiro

Capanema, deveria se encarregar da história física. A segunda, presidida pelo Senador

Cândido Mendes de Almeida, deveria se encarregar da história política. Quanto ao plano,

sugere que sejam seguidas as instruções de Henrique de Beaurepaire Rohan, esboçadas no

folheto Organização da História Física e Política do Brasil, de 1877.58

Cheio de idéias sobre como escrever a história nacional, Capistrano participou da

Exposição de História e Geografia do Brasil, organizada pela Biblioteca Pública, em 1881.

Segundo José Honório Rodrigues, até então, nenhum país do continente americano

organizara uma bibliografia tão completa sobre sua própria história. A Exposição foi

inaugurada no dia 2 de dezembro e contou com a presença do imperador Pedro II. De

acordo com Capistrano, 7.620 visitantes passaram pelo casarão na Rua do Passeio. O

57

Ibidem, p. 90. 58

Ibidem, p. 90-92.

246

evento durou pouco tempo – até 2 de janeiro do ano seguinte – mas pôde ser perpetuado

através da elaboração de um catálogo em três volumes – verdadeiro objetivo do

empreendimento –, que tempos depois Rodrigues considerou como “o maior monumento

bibliográfico da história do Brasil até hoje erguido”.59

A Exposição de 1881 pode ser vista como uma espécie de vitrine na qual o projeto

político-historiográfico desenvolvido pelo IHGB foi apresentado a um público maior do

que aquele reunido nas dependências do Instituto.60

Participando desse empreendimento,

Capistrano conquistou um lugar no “mundo dos historiadores” não através da eleição para

o IHGB, não através de uma obra individual, mas de um grande empreendimento coletivo,

que expunha de modo monumental os materiais que serviriam para a escrita da história da

nação. A partir desse trabalho ele concluiu que: “pela primeira vez desenhou-se nítida a

imensidade da empresa de descrever a terra brasileira e conhecer os feitos de seus filhos”.61

A relação de seu nome com um evento como esse contribuiu para afirmar seu status como

erudito e homem de arquivo, conhecedor de documentos. Pela colaboração na Exposição,

Capistrano e seus colegas foram condecorados pelo imperador em 7 de janeiro de 1882,

recebendo o grau de cavaleiros da Ordem da Rosa. Mas, nem tudo eram flores...

Como funcionário da Biblioteca, ele se empenhou no estudo e na publicação de

documentos, suscitando desentendimentos com o diretor da instituição, Saldanha da Gama.

Capistrano almejava publicações sistemáticas e reuniu outros funcionários junto a si, com

o objetivo de levar adiante o projeto. Uniu-se a Alfredo do Vale Cabral e Teixeira de Melo

e conseguiu o apoio do subdiretor do Diário Oficial, Silveira Caldeira, para publicar

documentos neste periódico.

Em carta ao historiador português Lino de Assunção, Capistrano menciona que:

(...) Saldanha da Gama, está furioso com a nossa empresa e decidido a fazer-lhe a mais

decidida guerra. Felizmente na publicação das cartas dos jesuítas62

não precisamos dele, e

59

Ver ABREU, Capistrano de. “Prefácio à História do Brasil de Frei Vicente do Salvador” [edição de 1918].

In: _____. Ensaios e Estudos: crítica e história, 2a série. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL,

1976, p. 112-113; RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. São Paulo, Companhia

Editora Nacional, 1969, p. 231-232; e DUTRA, Eliana de Freitas. “A tela imortal: o catálogo da Exposição

de História do Brasil de 1881”. Anais do Museu Histórico Nacional, n. 37, 2005. 60

Sobre o projeto historiográfico do IHGB, ver GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Op. cit.; e, sobre a

Exposição de 1881, ver ABREU, op. cit.; RODRIGUES, op. cit.; BRAZ, Alessandra Gualda Pereira. Um

monumento à historiografia: a Exposição de História do Brasil de 1881. Niterói, UFF - Dep. de História,

monografia de bacharelado, 1993. 61

ABREU, op. cit., p.112. 62

Segundo Capistrano, a publicação das cartas dos jesuítas seria “uma revolução na história do Brasil, porque

até hoje nem um historiador leu todas as cartas e portanto há muita coisa que ainda não se sabe”. Carta a Lino

de Assunção, 19/04/1886, vol. 3, p. 329.

247

cônscio da sua impotência pois temos cópia do Instituto Histórico, o bicho quer vingar-se

em outras coisas. Ora queremos dar-lhe uma lição de mestre, publicando Frei Vicente do

Salvador. (...) É que em primeiro lugar a obra é importantíssima e quero ter o prazer de

editá-la e anotá-la; é que, em segundo lugar, o bibliotecário não quer que ninguém a edite

senão ele ou, para ser mais franco, não quer que seja editado absolutamente. Tomas estas

pequenas lutas de companarículos a sério e ajuda-nos a obter a vitória e sobretudo decide-te

de uma vez a ser nosso representante e correspondente e sócio na Europa.63

Enfrentando essas “pequenas lutas de companarículos”, Capistrano demonstra o

desejo de construir algo diferente do que era então produzido no campo da pesquisa

histórica. Chegou a idealizar aquilo que chamou de Clube Taques, em homenagem ao

investigador e genealogista Pedro Taques Paes Leme: “uma sociedade com umas vinte

pessoas”, escolhidas a dedo, que contribuiriam com trabalho e dinheiro para a cópia e

publicação de documentos. Em carta a Antônio Joaquim de Macedo Soares, comentou:

Estou tratando da fundação de uma sociedade histórica, menos pomposa e menos protegida

que o Instituto Histórico, porém quero ver se mais efetiva. Há de intitular-se Clube Taques,

em honra de Taques Paes Leme, e deve ocupar-se quase que exclusivamente das bandeiras

e bandeirantes, caminhos antigos, meios de transporte e história econômica do Brasil. O

meu plano é começar pelo século XVI, tomando os impressos e manuscritos conhecidos e

utilizáveis, e incumbindo cada sócio de examinar um ou mais.64

Ao compartilhar seus planos com Lino de Assunção, revela um pouco das

dificuldades encontradas na pesquisa histórica no final do século XIX:

Sabes a dificuldade que há de encontrar editor e quanto é cara a impressão entre nós; por

isso todos os nossos esforços vinham quebrar-se contra este rochedo. Julguei a princípio

vencê-lo com o clube que imaginei, e que não devia ter presidentes, nem sessões, nem

nada. Cada sócio publicaria um livro à sua custa, e seria isto a ata e a sessão. Tive muitas

adesões... em palavras: escrupulizavam todos passar à frente e ficavam todos parados. Tive

então a idéia de aproveitar-me do Diário Oficial e como dava-se a circunstância rara de ter

63

Carta a Lino de Assunção, 07/04/1886, vol. 3, p. 328-329. Em outra carta comentou: “O homem da

Biblioteca Nacional continua cada vez mais furioso, espiando, fazendo picardias &. Parece que o plano dele é

provocar qualquer choque que me incompatibilize com ele e me impossibilite de ir ao estabelecimento.

Felizmente tenho estado de tão bom humor que as iscas não tem pegado (...) Mas o nosso desejo de

desmoralizar o homem da Biblioteca é tanto que bem compreenderás e desculparás nossa impaciência”. Carta

a Lino de Assunção, s/d, vol. 3, p. 333. 64

Carta a Antônio Joaquim de Macedo Soares, [1883], vol. 3, p. 2.

248

boas relações com o Silveira Caldeira, subdiretor, e entretê-las ainda melhores com o

Belisário, primo do Ministro, consegui o que queria. Desde o dia 29 há ordem para

imprimirem-se em edições de 500 exemplares, os trabalhos sobre história pátria

apresentados por Vale Cabral, Silveira Caldeira e este seu criado. Como vês temos um

futuro brilhante diante de nós, e ainda mais risonhas serão as perspectivas se te associares

francamente a nós. Por ora vamos nos concentrar no século XVI, e dentro do século nos

Jesuítas: vês, portanto, que vamos te dar materiais. Dá-nos tu pela tua parte.65

Diante de um “rochedo”, Capistrano encontrou brechas por onde passar. Em certas

circunstâncias, pôde utilizar relações pessoais visando driblar situações que limitavam a

produção e restringiam a publicação de trabalhos. Sobretudo, ele desejava algo diferente

daquilo que era oferecido pelo IHGB. Dizia: “há, pois, muito que fazer, que remexer, que

descobrir, que completar e aprofundar. Em 10 anos podemos fazer tanto que a diferença se

torne sensível, mesmo aos mais míopes”.66

Com o tempo, sua vida na Biblioteca tornou-se difícil devido aos desentendimentos

com Saldanha da Gama. Para não depender dele, insistentemente pedia a Lino de Assunção

para copiar, em Portugal, documentos existentes na Biblioteca do Rio. Ainda sobre a

disputa pela publicação da obra de Frei Vicente do Salvador, comentou:

Já te escrevi a respeito de Frei Vicente do Salvador. Embora a Biblioteca possua uma

cópia, o Saldanha não nos quer facultá-la absolutamente e como queremos mostrar-lhe que

não precisamos dele para nada, fazemos questão de publicar o livro o mais depressa

possível, apenas acabarmos as cartas avulsas...67

E a disputa continuava...

Peço-te, pois, que quando o permitirem teus afazeres lembres-te do nosso pedido e que

tomes para ti o compromisso de ser nosso irmão de armas nesta empresa que com o teu

auxílio bem pode tornar-se gigantesca e iniciar uma verdadeira revolução em nossa

65

Fariam parte da empreitada, além de Capistrano, Alfredo do Vale Cabral e Teixeira de Mello: Afonso

Celso, Urbino do Amaral, Macedo Soares, e outros nomes, citados em carta como Oliveira, Demerval,

Araújo e Arthur. Reclamava a adesão do colega português, dizendo: “Teixeira de Mello e Valle Cabral são

tão bons companheiros, que, se te juntares a eles, não duvido de nada e somos capazes dos trabalhos de

Hércules”. Ver cartas a Lino de Assunção, de 02/04/1886, 05/05/1886 e s/d, vol. 3, p. 326-328, 332 e 356. 66

Carta a Lino de Assunção, 22/03/1887, vol. 3, p. 348-352. 67

Carta a Lino de Assunção, 19/04/1886, vol. 3, p. 330.

249

história. (...) Será um triunfo para todos nós e especialmente para ti, graças a quem

romperemos o bloqueio deste Paraguai em que se quer converter a Biblioteca Nacional.68

Uma oportunidade de ultrapassar as dificuldades e abrir um novo espaço de atuação

surgiu com um concurso para o Imperial Colégio de Pedro II, em 1883, transformado em

Ginásio Nacional no início da República.69

A cadeira disputada era a mais prestigiada:

Corografia e História do Brasil, antes ocupada por Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de

Macedo. Os concorrentes deviam apresentar tese sobre um mesmo ponto – o

descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI –, diante da banca

composta por Silvio Romero (presidente), Matoso Maia e Moreira de Azevedo. Além de

Capistrano, concorreram Feliciano Pinheiro Bittencourt, João Maria Berquó, Evaristo

Nunes Pires e João Franklin da Silveira Távora (membro do IHGB).

A tese de Capistrano, O descobrimento do Brasil,70

foi escrita em quarenta dias.

Analisa as pretensões francesa, espanhola e portuguesa; discute as teses sobre a

intencionalidade e sobre o acaso da descoberta; a autenticidade da carta de Pero Vaz de

Caminha; a grafia correta do nome Brasil etc.71

Em carta ao Barão do Rio Branco,

Capistrano fala da insatisfação com o trabalho realizado, que considerava incompleto:

Escrita e impressa no prazo improrrogável de 40 dias, deixei o assunto quase intacto: no

último capítulo, fui obrigado a reduzir a proposições o que no meu plano primitivo deveria

dar assunto a outros tantos capítulos. Enfim tenho esperança que ainda hei de poder

completar este e outros trabalhos (...).72

A importância atribuída à tese de Capistrano e o reconhecimento que lhe prestaram

não foram suficientes para garantir sua permanência no Colégio Pedro II. O notório

historiador chegou a ser reconhecido por alguns como “a maior glória do magistério oficial

brasileiro”, supostamente, por ser capaz de ir além da prática comum de ler em aula a

matéria a ensinar, apenas seguindo a orientação dos autores adotados. Segundo José

68

Carta a Lino de Assunção, 05/05/1886, vol. 3, p. 331. 69

No Almanaque da Gazeta de Notícias de 1885 está publicada uma nota sobre a saída de Capistrano da

Biblioteca para lecionar no Colégio Pedro II, segundo a qual ele teria dito aos amigos mais íntimos: “–

Sabem? Vou estudar... / – O que? / – História do Brasil”. 70

ABREU, Capistrano de. O descobrimento do Brasil. 1a edição 1883. São Paulo, Martins Fontes, 1999. Col.

Temas Brasileiros. A tese teve duas edições no mesmo ano em que foi publicada. 71

Sobre a tese de Capistrano, ver: ARAÚJO, op. cit., p. 28-54; e WEHLING. Arno. “Capistrano de Abreu e

o Descobrimento do Brasil”. Acervo –Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, vol. 12, n. 1/2, jan. / dez.

1999, p. 27-36. 72

Carta ao Barão do Rio Branco, vol. 1, p. 108-109.

250

Veríssimo, ele era “claramente um professor capaz de fazer ele mesmo a sua ciência e de

transmitir aos seus discípulos o gosto e a capacidade de a fazerem”.73 Apesar disso, com a

extinção da cadeira de Corografia e História do Brasil do Ginásio Nacional, em 1899, por

Epitácio Pessoa, Capistrano foi posto em disponibilidade, alegando incapacidade para

ministrar aulas de História Geral, por ser especialista em História do Brasil. Na época,

comentou em carta a Domingos Jaguaribe:

(...) encontrei uma situação muito complicada, e que ainda não se desatou, relativamente à

minha cadeira no Ginásio. Quiseram fazer de mim, professor vitalício de História e

Corografia do Brasil, professor de História Universal, lecionando não um ano como antes,

porém três. Protestei perante a congregação do Ginásio, reclamei ao Ministro, e este,

dando-me e negando razão, vai declarar-me extinto. Lembra-me de uma carta sua antiga,

em que V. estranhava que eu não tivesse alunos; pois agora há cousa melhor: não há mais

professor de História do Brasil no Ginásio Nacional. Não se pode acabar o centenário de

modo mais expressivo”.74

Anos depois, em carta a Domício da Gama, lembrou o fato agradecendo a Epitácio:

“Devo-lhe uma disponibilidade que há vinte anos me dispensa de alunos ignorantes e

desatentos”.75

Os anos em que esteve em disponibilidade no Ginásio permitiram-lhe

receber rendimentos sem precisar lecionar, o que garantiu tempo e recursos para a

atividade de pesquisa e o aperfeiçoamento de sua especialidade: a história do Brasil.

6.3. A reta e o círculo: metodologia, escrita da história e identidade do historiador

Ao analisar as pretensões francesa, espanhola e portuguesa ao Descobrimento do

Brasil, comparando-as, Capistrano desenvolveu uma abordagem em consonância com

aquilo que era então considerado como uma moderna concepção da história. Seu método

sustentava-se sobre um critério de verdade fundado na existência de provas documentais e

na possibilidade de confrontar documentos oriundos de uma mesma época, exibindo-os e

73

RIBEIRO, Júlio apud FREITAS JÚNIOR, Afonso. Discurso proferido na Sessão Magna de 1o de

novembro de 1927. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. XXV, 1927, p. 609; e

VERÍSSIMO, José. “O Sr. Capistrano de Abreu”. Jornal do Comércio, 16/09/1907, ambos já citados, no

capítulo 1. 74

Carta a Domingos Jaguaribe, [1899], vol. 1, p. 32. 75

Carta a Domício da Gama, s/d, vol. 1, p. 266. Em carta posterior, Capistrano menciona que seria jubilado

compulsoriamente naquele mesmo ano, “em setembro, se não antes”. Ver carta a Paulo Prado, “domingo da

Pascoela, 1923”, vol. 2, p. 447.

251

desconstruindo-os passo a passo.76

Na ocasião da entrada de Capistrano para o IHGB, em

1887, sua tese recebeu o seguinte parecer: “É este um trabalho bem elaborado, escrito

sobre bases históricas, manifestando o cabedal literário do autor, sua crítica conscienciosa

e seu estilo elegante e claro”.77

O autor publicou outros estudos sobre o tema, que, de modos distintos,

contribuíram para reforçar sua tese inicial, que defende o acaso do Descobrimento,

reconhecendo o pioneirismo espanhol, mas valorizando a presença portuguesa. Como

observou José Honório Rodrigues, o exame comparado das pretensões francesa, espanhola

e portuguesa era algo novo e tinha certa “validade teórico-prática”.78

Essa validade pode

ser mais bem compreendida se for considerado um duplo viés da escrita da história: o

historiográfico, propriamente dito, e o político, no momento em que a história procurava

demarcar sua especificidade, ora se aproximando, ora se distanciando da literatura e dos

ensaios político-sociais.79

Cabe destacar que a Proclamação da República, em 1889, reforçou a demanda pela

reescrita da história do país. De acordo com Tânia Regina de Luca, no início do período

republicano, o diagnóstico corrente era o de que a história brasileira apresentava-se “sem

cor ou brilho”, o que causava grande descontentamento, uma vez que, como já foi dito, a

76

Ver ARAÚJO, op. cit., p. 28-54. Sobre as concepções antiga e moderna de história, ver por exemplo:

ARENDT, Hannah. “O conceito de história – antigo e moderno”. 1a edição 1954. In: _____. Entre o passado

e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 2000, p. 69-126. 77

A proposta de admissão foi assinada por Tristão de Alencar Araripe, César Augusto Marques e Augusto

Fausto de Sousa. Os trabalhos foram avaliados por Manuel Duarte Moreira de Azevedo e José Alexandre

Teixeira de Melo, da comissão de história. Em 1913, Capistrano foi admitido como sócio honorário e, em

1917, como benemérito. No breve parecer de admissão, é possível observar que o valor atribuído a seu nome

na época dispensava justificativas: “Os trabalhos prestados pelo ilustre proposto ao Instituto, o seu justo

renome como notável sabedor de nossa História, dispensam argumento para justificar esta homenagem”. Em

1917, tornou-se sócio benemérito. Ver Revista do IHGB, t. 50, v. 75, 1887, p. 321-322; t. 51, v. 77, 1888, p.

388; t. 52, v. 80, 1889, p. 549; t. 53, v. 82, 1890, p. 552; t. 55, v. 86, 1892, p. 361-362, 407 e 408-409; t. 67,

v. 110, 1904, p. 514; t. 69, v. 114, 1906, p. 499; t. 76, v. 128, 1913, p. 561-562; t. 76, v. 128, parte II, 1913, p.

557-558 e 561. 78

RODRIGUES, José Honório. “Nota liminar”. In: ABREU, O Descobrimento do Brasil, op. cit., p. p.

LXXXII. Capistrano afirma que a tese do Descobrimento como obra do acaso, era bastante criticada em sua

época. Lamentava ele: “(...) hoje é artigo de fé que o descobrimento do Brasil foi proposital, e que fazer?

Quem pensar o contrário é filho de cachorro pelado (Ceará). (...) Quando me lembro que a história do Brasil

não tem quase um capítulo apurado, parecem de importância somenos estas questões”. In: Carta a João Lúcio

de Azevedo, 05/05/1924, vol. 2, p. 300. Ver comentários acerca dos estudos de Capistrano sobre o

Descobrimento do Brasil em: WEHLING, “Capistrano de Abreu e o Descobrimento do Brasil”, op. cit., para

quem as conclusões do historiador cearense sobre o tema permaneceram válidas, em parte, devido à pequena

quantidade de documentos sobre o assunto localizada posteriormente e, também, à capacidade hermenêutica

do autor, “que esquadrinhou de modo absolutamente competente as possibilidades da investigação”. Ibidem,

p. 33-34. 79

Sobre aproximações e afastamentos entre história, literatura e ensaios político-sociais, ver: GOMES,

História e historiadores, op. cit., p. 12 e 37; Idem. “Gilberto Freyre e Oliveira Lima: Casa Grande & Senzala

e o contexto historiográfico no início do século XX”. História – Revista da Universidade Estadual Paulista.

São Paulo, Unesp, v. 20, 2001, p. 29-44.

252

essa disciplina atribuía-se “a nobre função de ensinar aos cidadãos a cartilha do

patriotismo”. Acreditava-se que a história deveria fornecer um conjunto coerente de

tradições a serem partilhadas e, ao mesmo tempo, promover a ruptura com a tradição

colonial que, a partir daquele momento, deveria ser considerada como sinônimo de atraso.

Conduzidos pela metodologia científica, os historiadores deveriam se debruçar sobre o

passado, privilegiando certos indivíduos e episódios, num trabalho de consagração e de

exclusão, que correspondia à necessidade de (re)definir a nacionalidade. Tarefa vista como

imperativa diante de um quadro que, para alguns, era caracterizado pela falta de

patriotismo e, por outros, pela inexistência ou inviabilidade da própria nação.80

Em outras palavras, a construção de uma nação republicana pautava-se na

reconstrução da história do Brasil, uma vez que o passado deveria fornecer os elementos

necessários para garantir a legitimidade do novo regime. Como observou Marly Silva da

Motta:

Era preciso deixar claro que a República não fora obra do acaso ou do capricho dos

militares, mas sim fruto de memoráveis acontecimentos passados. O ideal republicano teria

sido uma presença constante ao longo da história brasileira, começando pelo Quilombo dos

Palmares e pela Guerra dos Mascates, passando pela Inconfidência Mineira, a revolução

Pernambucana, Farrapos e Balaiada, para finalmente concretizar-se em 1889, como a

culminância de uma longa luta.81

O tema do Descobrimento do Brasil tinha seu lugar nessa época de (re)descoberta

da nacionalidade, cujo marco foi a comemoração do IV Centenário do Descobrimento, em

1900, ainda que os festejos não tenham conseguido despertar grande interesse popular.82

O

tema remetia ao problema das origens do Brasil, de fundamental importância diante da

demanda pela reescrita da história nacional. Contudo, as pesquisas sobre o período colonial

desafiavam a erudição e a paciência do investigador. Muitos dos documentos relativos à

época estavam acessíveis a poucos estudiosos, havendo material desconhecido e disperso

por arquivos nacionais e estrangeiros. Havia, também, um mercado de livros raros e

documentos, onde atuavam alfarrabistas, bibliófilos e pesquisadores, que comumente

80

LUCA, op. cit., p. 86-87; OLIVEIRA, op. cit., p. 127-144. 81

MOTTA, Marly Silva da. A nação faz cem anos. A questão nacional no centenário da independência. Rio

de Janeiro, FGV/CPDOC, 1992, p.13. 82

Sobre o IV Centenário do Descobrimento do Brasil, ver, por exemplo: OLIVEIRA, Lúcia Lippi.

“Imaginário Histórico e Poder Cultural: as Comemorações do descobrimento”. Estudos Históricos – Dossiê

Comemorações. Rio de Janeiro, vol. 14, n. 26, 2000, p. 183-202.

253

conduziam tais materiais para as mãos de particulares, o que também limitava o acesso aos

mesmos.83

Além disso, boa parte das fontes não havia sido publicada, muito menos,

anotada, o que impunha grandes barreiras à leitura.

Além de enfrentar o tema do Descobrimento, Capistrano também se empenhou no

estudo dos caminhos antigos e povoamento do Brasil. Sua especialidade pôde ser utilizada

na produção de um dos capítulos do Livro do Centenário (1500-1900), organizado em

quatro volumes pela Associação do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em

1900. Empreendimento de grande vulto, o Livro contou com a colaboração de muitos

estudiosos de renome, como Silvio Romero, José Veríssimo, Coelho Neto e Oliveira Lima.

Também foi empregada na elaboração de um texto introdutório para o livro O Brasil, suas

riquezas naturais, suas indústrias, organizado pelo Centro Industrial do Brasil, em 1907.84

O trabalho havia sido encomendado dois anos antes pelo então Ministro da Indústria,

Viação e Obras Públicas, Lauro Müller. O objetivo era reunir informações sobre as

primeiras indústrias do país, divulgando-as através de uma obra de vulgarização e de

propaganda do Brasil para estrangeiros. O projeto reuniu estudiosos de reconhecida

competência, tais como o Barão Homem de Melo e Vieira Souto. Esse trabalho veio a ser

publicado em separata no mesmo ano com o título de Capítulos de história colonial,

escrito como “um esboço histórico e geográfico do Brasil”85

, que veio a ser seu único

trabalho de história não monográfico.86

Apaixonado por arquivos e pela busca de documentos, passou a se dedicar ao

estudo de línguas indígenas, às traduções, revisões e anotações de textos, assim como, à

investigação do período colonial, com destaque para os séculos XVI e XVII. Pesquisou e

incentivou estudos sobre temas até então pouco explorados, como a festa, a família, os

indígenas, as bandeiras e as minas. Fez parte de uma geração de pesquisadores formados

pela prática do ofício, interessados em “redescobrir o Brasil” através do estudo de suas

83

Entre os grandes livreiros e colecionadores do período, cabe citar: João Martins Ribeiro, Francisco Ramos

Paz, Alves de Carvalho, Melo Morais, Cândido Mendes, entre outros. Ver BESSONE, Tânia Maria. Palácios

de destinos cruzados: bibliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro, Arquivo

Nacional, 1999. 84

ABREU, Capistrano de. “Noções de História do Brasil até 1800”. In: CENTRO INDUSTRIAL DO

BRASIL. O Brasil. Suas riquezas naturais. Suas indústrias. Organizado por Luís Rafael Vieira Souto. Rio de

Janeiro, Impressores M. Orosco & C., 1907. No começo do livro, o texto de Capistrano aparece com o título

de Breves traços da História do Brasil, diferente daquele que aparece no índice. 85

Carta a Ramos Paz, 02/01/1906, vol. 1 p. 26-27. 86

Ver informações sobre a elaboração e publicação dos Capítulos em: RODRIGUES, José Honório.

Explicação. Normas da 4a edição (1954). ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial, 1500-

1800. 7a edição, revista, anotada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Belo Horizonte, Itatiaia; São

Paulo, USP, 1988, p.11-41. Sobre a edição das obras de Capistrano, ver: AMED, Fernando José. “As edições

das obras de Capistrano de Abreu”. História: Questões & Debates. Brasil: a conquista do olhar. Curitiba,

UFPR, ano 17, n. 32, jan./jun., 2000, p. 99-117.

254

particularidades, representadas, principalmente, pelos costumes e pela natureza do país.

Livros de sua autoria, publicados em vida foram: a mencionada tese, O Descobrimento do

Brasil e seu desenvolvimento no século XVI (1883); o citado Capítulos de história colonial

(1907); e Rã-txa Hu-ni-ku-i – A língua dos caxinauás do Rio Ibuaçu, afluente do Murú

(1914), premiado pelo IHGB e recusado, em 1917.87

Capistrano era membro do IHGB desde 1887, quando foi admitido como sócio

efetivo, após ter participado em algumas de suas comissões: revisão de manuscritos,

etnografia, história etc. Na época de sua admissão, dois trabalhos foram oferecidos à

apreciação: O Brasil no século XVI e a armada de D. Nuno Manoel e Descobrimento do

Brasil e seu desenvolvimento no século XVI, sua tese de concurso para o Colégio Pedro II.

O domínio de um conjunto de estudos, a capacidade crítica e o estilo de escrita foram

aspectos valorizados em seu trabalho, que autorizaram sua admissão no Instituto. Ao

mesmo tempo, o valor atribuído a tais aspectos deixa supor o quanto as transformações em

curso da historiografia colocavam antigas tradições em cheque.

A relação ambígua desse historiador com o IHGB, do qual dizia querer separar-se

“em tempo, se não morrer repentinamente”; sua recusa em participar de outra importante

instância de consagração intelectual, a Academia Brasileira de Letras;88

e seu plano de

juventude, a respeito do mencionado Clube Taques, sugerem a persistência do desejo de

construir algo diferente daquilo que então existia. Esse desejo de ir além implicava na

discussão de, pelo menos, três pontos: o uso das fontes, o método e a narrativa. Todos

dependentes da solução de um problema crucial: a coleta e a divulgação de documentos.

Também implicava em abrir mão de determinados projetos em favor de outros, de modo a

desenvolver o conhecimento sem a dispersão de interesses e trabalhos. Essa dispersão de

interesses por parte dos “homens de letras” da virada do século XIX, decorria, ao menos

87

Capistrano recusou a medalha de ouro D. Pedro II – que não era concedida desde 1847 – em carta ao

presidente do Instituto, Afonso Celso. Apoiando-se em precedente aberto por Varnhagen, disse ele: “Sei, pela

imprensa diária, que a sociedade que V. Excia. tão sabiamente dirige houve por bem premiar, com uma

medalha de ouro, o meu imperfeito ensaio sobre a língua dos Caxinauás. Esta distinção, tão superior aos

meus fracos méritos e até às minhas ambições, fundou-se, para maior realce, no parecer do meu antigo e

venerado mestre Dr. Ramiz Galvão, que, passa de quarenta anos, acolheu paternalmente o provinciano

bisonho e, com o exemplo, com a convivência dos admiráveis colaboradores, hoje todos mortos, que soube

reunir na Biblioteca Nacional, acompanhou-me os primeiros passos nos estudos a que o Instituto Histórico

tem dado impulso e direção, desde 1838. – Muito grato pela imerecida prova de apreço, socorro-me no

precedente aberto pelo benemérito Francisco Adolfo de Varnhagen, glória da pátria e lustre desta Casa, para

rogar ao Instituto, com os reiterados respeitos, a oferta que faço da medalha deste prêmio, que a sua

benignidade me confere, para propor como assunto novo, em outro concurso”. Ver carta de Capistrano de

Abreu ao conde Afonso Celso, 08/10/1917. Revista do IHGB, t. 8, vol. 132, 1917, p. 790-791. Outros

trabalhos premiados, na mesma ocasião, foram: Expansão geográfica do Brasil até fins do século XVII, de

Basílio de Magalhães; e Rondônia, de Edgar Roquette-Pinto. 88

Ver nota biobibliográfica anexada à carta de Capistrano de Abreu a Guilherme Studart, de 18/08/1901,

vol.1, p. 152, citada nos capítulos 2 e 3.

255

em parte, das intensas demandas por estudos sobre temas correlatos, referentes à história e

à geografia do Brasil, à lingüística e à etnografia indígena, por exemplo.

Os projetos de Capistrano freqüentemente o conduziam para trabalhos

complementares, mas que, diante de um movimento de especialização dos estudos,

tornavam-se concorrentes, tais como a geografia, a história e a etnografia. Em 1915,

dividido entre o estudo da história e o das línguas indígenas, afirmou: “Em todo caso, viro

as costas à História; não faltarão Tácitos e Suetônios: os pobres índios sumir-se-ão do

mundo; quero apenas que não vão sem acompanhamento ao túmulo”. O interesse pelas

línguas indígenas (o bacaeri e o caxinauá) era antigo e a frustração com os estudos

realizados, também. Em 1909, concluiu: “(...) procurei levianamente uma escravidão

pesada, e desperdicei meu tempo precioso, porque, com toda a franqueza o declaro, não

estava preparado para tanto e a cousa não sairá como desejo”.89

Em determinado momento, ficou dividido entre a elaboração de um trabalho sobre

a língua bacairi e a revisão de dois livros: seu Capítulos de história colonial (1907) e a

História Geral do Brasil (1854-1857), de Varnhagen. Diante disso, comentou:

(...) com os documentos mais ou menos conhecidos, não se pode fazer obra inteiramente

nova, e a de Varnhagen, revista com cuidado, pode atravessar este período de transição.

Além disso, o trabalho não estorva, antes fomenta a edição de meus Capítulos de História

Colonial, em que ultimamente tenho pensado (...) Não sei é como combinar isto com a

elaboração dos textos bacairis que colhi em começos de 90. Os documentos ficam, todo

tempo é tempo para escrever mais tarde, e quem mais tarde escrever ficará em posição

avantajada. Os índios estão por pouco e o cabelo único da ocasião pode quebrar-se pela

raiz.90

O estudo dos costumes e línguas indígenas era visto como necessário para a melhor

compreensão da formação da nacionalidade. Mas a tarefa impunha muitas dificuldades,

havendo poucos trabalhos referenciais, produzidos por estrangeiros, como o alemão Karl

Von den Steinen e, por brasileiros, como Teodoro Sampaio, Couto de Magalhães e Batista

Caetano. Capistrano convivera com cerca de seis índios ao longo da vida, habitando sob o

mesmo teto, com o objetivo de concluir seu trabalho de coleta e tradução de palavras e

informações sobre diferentes grupos indígenas. A certa altura, constatou que o método

escolhido não havia sido o ideal: “(...) há dois modos de estudar uma língua americana: o

89

Cartas a Mário de Alencar, 28/12/1909 e 06/09/1915, vol. 1, p. 212 e 239. 90

Carta a João Lúcio de Azevedo, 30/06/1916, vol. 2, p. 12.

256

confessionário e a missão. Tendo usado do confessionário, vejo o quanto é imperfeito: as

afirmações mais categóricas só adquirem valor, constatadas com o uso quotidiano”.91

O interesse pela pesquisa etnográfica, além de contribuir para trabalhos específicos

como esse sobre a língua indígena, também podia auxiliar no estudo da geografia e da

história. Capistrano interessava-se pela antropogeografia, desenvolvida por Ratzel, e

admirava a obra de Wappëus, autor de uma Geografia do Brasil (1871), cuja edição

brasileira traduziu. Para ele, a geografia era “tão bela ciência como difícil”, não estando

restrita à “simples estudo de memória, simples enfiada de nomes, sem ligação, podendo ser

citados em qualquer ordem, contanto que fossem numerosos”.92

O conhecimento dos

caminhos antigos (terrestres e fluviais) era um item fundamental dos estudos sobre a

formação do Brasil, compreendida a partir de um duplo movimento: o da expansão

européia no início da modernidade e o da expansão pelo interior da colônia portuguesa na

América. Além disso, a geografia fornecia uma visão grandiosa do país, fundada na

exuberância e na potencialidade da natureza. História e geografia eram saberes estratégicos

para a formação de uma consciência nacional.93

Segundo Capistrano, “a História do Brasil dá a idéia de uma casa edificada na areia.

É uma pessoa encostar-se numa parede, por mais reforçada que pareça, e lá vem abaixo

toda a grampiola”. A fragilidade dessa história devia-se à falta de documentos. Achava

que, no Brasil, os documentos eram mais necessários do que a escrita da história. Dizia:

“com os documentos aqui existentes, nada se pode tentar, e enquanto não estiver levantada

esta coluna, não vejo meio do edifício ficar de pé”. Julgava prematura a idéia de escrever a

história do Brasil apenas com documentos “triviais”.94

Essa aparente angústia diante da

lacuna documental associava-se ao entendimento de que não havia documentos perfeitos

ou completos. Pouco antes de receber um catálogo de fontes sobre o Brasil, existentes na

91

Carta a João Lúcio de Azevedo, 13/08/1921, vol. 2, p. 220. 92

Carta a João Lúcio de Azevedo, 19/03/1917, vol. 2, p. 37-38. E, também: ABREU, Capistrano de. “A

Geografia do Brasil”. In: Ensaios e Estudos, 2a série, op. cit., p. 19-24. Publicado no Almanaque Garnier de

1904. 93

Ver LUCA, op. cit., p. 85-126. 94

Capistrano comentou: “(...) no Brasil nós não precisamos de história, precisamos de documentos, uns

oitenta volumes como os da Rev. do Inst., porém feitos por gente que saiba aonde tem o nariz”. Cartas a João

Lúcio de Azevedo, 17/05/1920 e 09/07/1920, vol. 2, p. 160-161. Ver, também, carta ao Padre Teschauer,

20/04/1904, vol. 3, p. 360; e carta a Mário de Alencar, 15/09/1915, vol. 1, p. 243. Daniel Mesquita Pereira

chama a atenção para a recorrência, no século XIX, da idéia historista que associa a história a um edifício a

ser construído sobre uma base documental sólida. Ver PEREIRA, Descobrimentos de Capistrano, op. cit., p.

36. Tal idéia decorre da percepção de que o conhecimento do geral depende do acúmulo de aspectos parciais,

de modo a constituir aquilo que Reinhart Koselleck definiu como um “singular coletivo”. Ver KOSELLECK,

Reinhart. “Le concept d‟histoire”. In: _____. L’expérience de l’histoire. S.l., Hautes Études / Seuil /

Gallimard, 1997, p. 15-99.

257

Biblioteca Nacional de Lisboa, lamentou: “Espero aprender muito nele, embora nunca

tenha encontrado até hoje um documento que me satisfaça por completo”.95

Ao que parece, um grande nó era construído quando Capistrano constatava a falta

de “apenas mais um documento”. Ao perceber que um de seus discípulos, Paulo Prado,

talvez não desse tanta importância às fontes, alertou: “Lembre-se do apólogo do feixe de

varas: a união faz a força”.96

A noção de feixe como um conjunto de objetos reunidos e

presos parece exemplificar a representação que Capistrano fazia da escrita da história, ao

menos, em certo período de sua vida. A força do texto estaria tanto na exposição de idéias,

quanto na comprovação das mesmas através dos documentos. O trabalho do historiador

seria amarrar o feixe documental e sustentá-lo. Não bastava expor os pensamentos, era

preciso comprová-los com documentos, não importando tanto o ineditismo dos mesmos.

O “preconceito do inédito” era muito forte no século XIX. Baseava-se na

valorização das fontes arquivísticas, compreendidas como indício seguro da informação

correta, fundamento da verdade histórica.97

Mas, no início da década de 1920, ainda que

acreditando no poder dos documentos como prova, Capistrano já podia afirmar: “(...)

dispenso inéditos: jogo com as grandes massas. Inéditos há de bojar e rebojar Oliveira

Lima. Inéditos podia descobrir Domício...”.98

Como foi dito, o paradigma a ser ultrapassado era a obra de Varnhagen, então

considerada como a mais completa em termos documentais. Capistrano achava que tal

obra, desde que revista, poderia atravessar aquilo que julgava ser um “período de

transição” da historiografia. Ao longo do tempo é possível perceber as mudanças na

relação com o visconde Porto Seguro, a princípio visto como “o mestre, o guia, o senhor”.

Em carta de 1917, por exemplo, concluía já possuir muita coisa desconhecida pelo

antecessor. Certa vez constatou: “Como ficam jocosas as páginas de Varnhagen, depois do

que nós sabemos!”.99

Mas, além de conhecer mais documentos que o autor da História

Geral do Brasil (1854-1857), Capistrano também se orgulhava de interpretá-los melhor,

como pode ser deduzido ao dizer que: “Varnhagen era incapaz de inventar documentos,

mas lia-os tão mal! Muitas vezes concluo de modo diferente dele; outras noto que ele deixa

escapar o substancial para apegar-se ao acessório”.100

95

Carta a Guilherme Studart, 25/09/1908, vol. 1, p. 180. 96

Carta a Paulo Prado, 06/10/1922, vol. 2, p.419. 97

WEHLING, “Capistrano de Abreu: a fase cientificista”, op. cit., p. 153. 98

Carta a Paulo Prado: 03/06/1922, vol. 2, p.415; carta a João Lúcio de Azevedo, 18/03/1918, vol. 2, p. 87. 99

Cartas a João Lúcio de Azevedo, 26/01/1917 e 27/03/1917, vol. 2, p. 30 e 41. 100

Cartas a João Lúcio de Azevedo, 30/06/1916 e 09/03/1918, vol. 2, p. 12 e 84. Sobre a relação entre

Capistrano e Varnhagen, ver: PEREIRA, op. cit.; e, também, WEHLING, Arno. De Varnhagen a Capistrano:

258

Ao ler documentos, Capistrano intentava proceder ao que um amigo geólogo,

Orville Derby, certa vez definiu como a “geologia da lama”.101

Esse procedimento

hermenêutico pode ser compreendido como uma leitura minuciosa, semelhante à análise

geológica, que decompõe as diversas partes de um todo, visando conhecer sua natureza,

suas funções e relações. No caso, o todo a ser analisado correspondia à história: uma

substância amorfa, tal como a lama, uma matéria fluida e orgânica. Em certa ocasião,

Capistrano se referiu ao processo de leitura como a passagem do homogêneo para o

heterogêneo, ou seja, do uniforme ao pluriforme, do todo às partes.102

A “geologia da lama” é associada à metodologia de pesquisa proposta pela

historiografia alemã, em fins do século XIX. Capistrano concordava com as proposições de

Leopold Von Ranke, ainda que ele não fosse seu favorito. Em carta a João Lúcio de

Azevedo, comentou:

Para mim seu predileto Ranke é mero flatus vocis; mas sei que seria incapaz de beber no

cano quando há fonte. Depois de Ranke alguns historiadores, como Edw. [Edward] Meyer,

vão adiante e procuram do meio da geologia da lama reconstituir os minerais dissolvidos,

mas o princípio é sempre o mesmo.103

A meticulosidade da leitura das fontes deduzida a partir do uso da expressão

“geologia da lama”, também está presente na hora de citar, preocupação constante da

moderna historiografia. Foi por isso que escreveu a Guilherme Studart – que era, então, um

estudioso respeitado – reclamando:

Agora és um mestre reconhecido e acatado; podemos portanto conversar calmamente sobre

o assunto. Por que não dás a procedência dos documentos que publicas? Felix Ferreira,

sujeito aliás pouco fidedigno, contou-me que indo um dia visitar Melo Morais, encontrou-o

queimando uns papéis: Estou queimando estes documentos, explicou-lhe o alagoano

historiador (?), porque mais tarde, quando quiserem estudar História do Brasil hão de

recorrer às minhas obras. Tu não és Melo Morais. Varnhagen, pelo menos na Torre do

historicismo e cientificismo na construção do conhecimento histórico. Rio de Janeiro, UFRJ, Dep. de

História, tese de concurso para Professor Titular, 1992, 2 vols. 101

Carta a João Lúcio de Azevedo, 15/04/1917, vol. 2, p. 46. 102

Como foi visto no capítulo 4, que fala das práticas de leitura de Capistrano, observa-se que o historiador

se inspirava nas idéias do evolucionista Herbert Spencer, para quem era preciso partir de um todo

homogêneo, até chegar ao heterogêneo, onde as partes poderiam ser percebidas de modo mais nítido. Carta a

Paulo Prado, 29/06/1923 (“dia de S. Pedro”), vol. 2, p. 449-50; carta a João Lúcio de Azevedo, 16/09/1918,

vol. 2, p. 110. 103

Carta a João Lúcio de Azevedo, 06/06/1917, vol. 2, p. 50-51.

259

Tombo, levou para casa alguns documentos e se esqueceu de restituí-los: não podia depois

indicar a procedência. Tu não és Varnhagen. Por que motivo, portanto, te insurges contra

uma obrigação a que se sujeitam todos os historiadores, principalmente desde que, com os

estudos, com a criação da crítica histórica, com a crítica das fontes, criada por Leopold Von

Ranke, na Alemanha, foi renovada a fisionomia da História?104

O trabalho meticuloso de Capistrano aproxima-se, não apenas, das modernas

práticas historiográficas, mas das práticas desenvolvidas pelos chamados antiquários:

eruditos, especialistas no antigo. O historiador de fins do século XIX e início do XX deve

ser capaz, não apenas, de utilizar os resultados das pesquisas dos antiquários, dedicados às

chamadas ciências auxiliares da história, tais como a filologia, a epigrafia, a numismática

etc. – mas de atuar, ele mesmo, como um tipo de antiquário.105

Observa-se, ao longo da correspondência, uma espécie de “frustração da

completude jamais atingida”, semelhante à observada em historiadores e literatos ao longo

do século XIX.106

Supostamente, no caso de Capistrano, essa frustração decorre da

consciência da impossibilidade de reconstituir plenamente o passado. Ao mesmo tempo,

revela uma relação possível entre a tradição antiquária e a escrita da história, tal como

ambas eram propostas em fins do século XIX e nas primeiras décadas do XX. Nesse

sentido, Capistrano atuaria em uma espécie de fronteira, onde a erudição tem grande

importância, ainda que seja necessário submetê-la a novos imperativos.107

Essa “frustração da completude” por parte de Capistrano pode ser vista através do

olhar de um dos seus correspondentes mais íntimos e assíduos. Em 1925, após receber uma

carta de Capistrano, que criticava seu trabalho, João Lúcio de Azevedo respondeu:

Não fica mal a ninguém ser emendado pelo Mestre. Estou persuadido que, continuando a

leitura, V. fará muitos mais reparos, e certamente fundados. Mas, para ficar obra a seu

gosto, seria necessário tornar 25 anos atrás e escrevê-la novamente. Não me resta vida nem

104

Carta a Guilherme Studart, 20/04/1904, vol. 1, p. 165, já citada. 105

PEREIRA, Descobrimentos de Capistrano, op. cit., p. 30-31; e, também: GUYOTJEANNIN, Olivier. “A

erudição transfigurada”. In: BOUTIER e JULIA, op. cit., p. 163-172; GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado.

“Reinventando a tradição: sobre antiquariado e escrita da história”. Humanas – Revista do Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Porto Alegre, IFCH, vol. 23, n. 1/2, 2000, p. 111-143. 106

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Ibidem, p. 111. 107

Ver breve referência à atuação de Capistrano na fronteira do antiquariado, em: FALCON, Francisco José

Calazans. “O Brasil de Capistrano de Abreu: características de sua produção historiográfica”. Trajetos –

Revista de História da UFC. Dossiê: Capistrano de Abreu, vol. 3, n. 5, 2004, p. 73.

260

teria inclinação para isso. Não me apraz caminhar em circunferência e voltar sempre ao

ponto de partida; suporto a espiral, mas prefiro ainda a linha reta.108

Capistrano estava sempre voltando ao ponto de partida. A obra parecia nunca estar

“a seu gosto”. No sentido atribuído por João Lúcio, caminhar em linha reta equivaleria a

concluir o trabalho reconhecendo seus defeitos, admitindo a necessidade de reparos, a

incompletude de qualquer história e, conformando-se com isso, seguir em frente. Diante de

infinitas possibilidades, parecia haver duas atitudes a tomar: ir em frente – seguindo a reta

– ou retornar periodicamente ao ponto de partida, andando em círculo. João Lúcio optou

pela reta. Quanto a Capistrano, o reconhecimento da impossibilidade de completar

satisfatoriamente qualquer história não parece ter-lhe estimulado a ir em frente. Assim, ele

teria optado pelo círculo. Para ele, sempre faltava um documento, tornando-se necessário

retornar periodicamente ao mesmo ponto, a fim de tentar corrigi-lo. Daí a impossibilidade

de contentar-se com qualquer documento ou conclusão. Essa preocupação de retornar

sempre a um mesmo ponto pode ser lida como um exemplo da adesão do historiador a

procedimentos hermenêuticos, através dos quais Capistrano desenvolveu uma análise

lógica combinada à crítica de outras interpretações.

Em certa época, concluiu que “estes negócios de História lembram-me um rio ou

um braço de mar: à vista a distância é pequena, mas o braço...”. Enxergar além causava

essa espécie de frustração diante da imperfeição dos documentos e da incompletude de

qualquer trabalho. A constatação de que o antigo desejo de produzir uma “obra que fique”

não poderia ser realizado parece ter causado um profundo desconforto. Diante do próprio

trabalho, afirmou: “Quando faço qualquer cousa, sinto diante do produto impressão que

deve assemelhar-se à da parturiente diante das secundinas: alívio e nojo”.109

Além das

dificuldades advindas do trato com a documentação, o esforço para conciliar aquilo que se

faz com aquilo que se pensa, também provocava tensão. Em carta a Paulo Prado, observou:

“(...) não esquecer as palavras de Goethe no Wilhelm Meister: obrar é fácil, pensar é difícil,

obrar segundo seu pensamento ainda é mais difícil”.110

Apesar disso, fazia muitos planos e

ainda ajudava outros pesquisadores, orientando-os na elaboração de roteiros de trabalho,

que geralmente incluíam a indicação de lacunas, a apuração e o cruzamento de diferentes

108

Carta a Capistrano de Abreu, 17/05/1925, vol. 3, p. 251. 109

Cartas a João Lúcio de Azevedo, 09/03/1918 e 18/03/1918, vol. 2, p. 87. 110

Carta a Paulo Prado, 06/10/1922, vol. 2, p. 419, citada no capítulo anterior.

261

tipos de fontes, o apontamento dos documentos contemporâneos e das monografias

existentes etc.111

Uma carta de Francisco de Assis Brasil indica o tipo de contribuição que

Capistrano podia dar a outros estudiosos da história. Também deixa ver que tipo de história

podia despertar interesse no estudioso do final do século XIX. Após ter lido o livro The

United States – An Outline of Political History, do canadense Goldwin Smith, Assis Brasil

teve despertado o desejo de escrever uma história do Brasil. Disse ele:

Sem nunca ter-me sorrido a idéia de imitar escritor algum, veio-me com esta leitura o

pensamento de começar a trabalhar em cousa semelhante a respeito do Brasil. E pensar

nisso foi pensar em V.; primeiro, pelo fato todo pessoal de V. me haver dito, em 1882, que

eu teria jeito para escrever História; depois, porque V. é, que eu saiba, o único homem

capaz de me fornecer conselhos e material sobre o caso. Figure lá para si que eu não sei

coisa alguma sobre o assunto, que apenas sei manejar a pena: diga-me, então, a que fontes

devo ir beber e como hei de ordenar o meu trabalho para a reunião dos dados. Quanto à

orientação da obra, V. sabe, deve ser toda pessoal. Quer ser ainda bom para mim como

sempre foi? Eis aí um pretexto para me escrever. (...) durante esse tempo, trocaríamos

idéias, faríamos investigações, nos ocuparíamos enfim da vinha do senhor, que desde

tantos anos está abandonada. (...) História com poucos fatos, mas com um conhecimento

profundo deles; indicação dos pontos culminantes da evolução nacional, de modo a

habilitar o leitor a compreender o conjunto, com pouco trabalho; crítica dos

acontecimentos, retratos e perfis políticos das figuras salientes; defesa de uma tese ao longo

da obra. (...) Afinal o meu livro pode parecer-se com este como um ovo com um espeto,

mas no do canadense bebi a inspiração de o fazer. Ajude-me, e verá. O título provisório

que tenho adotado é – As Grandes Linhas da nossa História, mas é quase certo que isto

ainda há de mudar.112

Uma história com poucos fatos, mas um conhecimento profundo dos mesmos, com

a “indicação dos pontos culminantes da vida nacional”, “crítica dos acontecimentos,

retratos e perfis políticos” e, talvez o principal, a defesa de uma tese ao longo da obra.

Quanto ao projeto de escrever a história do Brasil do próprio Capistrano, sofreu

modificações ao longo do tempo. Em carta ao Barão do Rio Branco, de 1890, ele afirmou:

111

Ver, por exemplo: carta a Afonso Taunay, 29/11/1917, vol. 1, p. 288; e carta a João Lúcio de

Azevedo,15/11/1916, vol. 2, p. 20. 112

Carta a Capistrano de Abreu, 18/10/1896, vol. 3, p. 286.

262

Dou-lhe uma grande notícia (para mim): estou resolvido a escrever a História do Brasil,

não a que sonhei há muitos anos no Ceará, depois de ter lido Buckle, e no entusiasmo

daquela leitura que fez época em minha vida – uma História modesta, a grandes traços e

largas malhas, até 1807. Escrevo-a porque posso reunir muita cousa que está esparsa, e

espero encadear melhor certos fatos, e chamar a atenção para certos aspectos até agora

menosprezados. Parece-me que poderei dizer algumas coisas novas e pelo menos quebrar

os quadros de ferro de Varnhagen que, introduzidos por Macedo no Colégio Pedro II, ainda

hoje são a base de nosso ensino. As bandeiras, as minas, as estradas, a criação de gado

pode dizer-se que ainda são desconhecidas, como, aliás, quase todo o século XVII, tirando-

se as guerras espanholas e holandesas.113

Tempos depois, em 1907, logo após publicar seus Capítulos de história colonial,

trabalho a que reduzira suas ambições, comentou com o Barão Studart:

Imaginava outra cousa e não pude realizá-la, parte por culpa minha, parte por culpa das

circunstâncias. Acreditei muito na extensão da vida e da brevidade da arte, e fui punido.

Quando, ainda no Ceará, concebi-a, a obra tinha outras dimensões. Cada ano levou um

lance ou um andar. A continuar mais tempo, ficaria reduzida a uma cabana de pescador.

Mesmo agora acho-lhe uns ares de tapera.114

Capistrano achava que uma história melhor seria feita por um historiador do futuro:

“Sabes melhor que ninguém como a cousa é difícil, como sai imperfeita, como o segundo

que vier pode melhorá-la consideravelmente, [com] metade do trabalho. Pouco

importa”.115

Mas, além dos problemas relativos à pesquisa, tais como a ausência de

documentos, outro ponto que acabava dificultando a concretização dos trabalhos talvez

fosse a expectativa de construção de uma história geral da nação. Trabalho extensivo, que

exigia um tipo de historiador capaz de abrir mão do interesse por uma época ou por um

assunto em particular, a fim de dar conta da história nacional, com a amplitude necessária

para mostrar não tanto uma nação acabada, mas em processo de formação.

Uma vez que o Brasil era visto como um país jovem, é possível supor que a escrita

de sua história não deveria apenas evocar lembranças, até porque, alguns acreditavam que

113

Carta ao Barão do Rio Branco, 17/04/1890, vol. 1, p. 130. 114

Carta a Guilherme Studart, 07/01/1907, vol. 1, p. 178. 115

Carta a Guilherme Studart, 20/02/1920, vol. 1, p. 186.

263

havia muito o que esquecer antes que fosse possível lembrar.116

Era preciso escrever uma

história endereçada ao presente e ao futuro, reforçando os aspectos da juventude da nação e

destacando suas potencialidades. Reabilitar o passado e prever um futuro grandioso talvez

tenha sido a meta principal daqueles que se dedicavam à escrita da história. E a construção

dessa história, além de seguir uma metodologia, estabelecer temas principais e definir

marcos cronológicos, devia enfrentar os problemas da narrativa.

A discussão acerca do melhor modo de narrar a história da nação pode ser

localizada em vários escritos da época. Para o historiador João Ribeiro, por exemplo, para

“fazer história”, entre outras coisas, são indispensáveis as qualidades literárias, o senso

crítico e a arte de bem escrever.117

Em sua opinião:

Os nossos historiadores, e Varnhagen é um exemplo modelar, confundem a historiografia e

a história, e fazem da vida uma função de arquivos e cartórios. Este seco e árido

materialismo dos papéis velhos embota a imaginação e, armando aos papalvos, com seu

cemitério de almas penadas, impede a comunicação com os vivos. É verdade que os ossos

ficam e são por isso mais acessíveis; todavia, o passado não pode ser composto de

esqueletos. Há de ser vida ou coisa nenhuma.118

Ribeiro, certa vez, chegou a observar que “há quem não sabe escrever e escreve

história”. Este não seria o caso de Capistrano, que, segundo o autor, primava por seu

“inimitável talento de escrever, sem pose, num estilo de pleno ar, claro e singelíssimo”.119

Na correspondência há breves comentários de Capistrano sobre a narrativa

histórica, feitos não através de teorias ou reflexões detalhadas, mas de curtas observações

acerca do melhor modo de escrever, geralmente elaboradas em função da leitura de algum

texto. Assim, o enfrentamento dos problemas da narrativa se dava através das experiências

de leitura e escrita compartilhadas pelos missivistas.120

116

Em artigo de 1920, Alceu Amoroso Lima observou: “temos muito que nos esquecer antes de começarmos

a lembrar”. Ver LIMA apud LUCA, op. cit., p. 91. 117

RIBEIRO, João. “Historiadores” (1927). In: _____. Obras – Crítica, vol. VI: Historiadores. Rio de

Janeiro, ABL, 1961, p. 5. 118

RIBEIRO, “O culto da história” (1918), op. cit., p. 430. 119

Ibidem, p. 425; e, idem, “Frei Vicente do Salvador”. In: Obras, op. cit., p. 8, originalmente publicado na

Revista Sul-Americana, 31/05/1889. 120

Ver, por exemplo, a crítica ao livro D. Pedro I e a Marquesa de Santos (1917), de Alberto Rangel, onde

reclama das “carapinhas” do estilo, a pedir “pente ou tesoura”. Ver ABREU, Capistrano de. “Um livro sobre

a Marquesa de Santos”. In: _____. Ensaios e estudos, 2a série, op. cit., p. 97-110. Originalmente publicado no

Jornal do Comércio, 10/06/1917. E, também, a carta de Rangel a Capistrano agradecendo as críticas, mas

dizendo que “ficará para outra encarnação a boa História que escrever em bom estilo”. Carta a Capistrano,

08/08/1917, vol. 3, p. 199. O livro de Rangel também foi resenhado por João Ribeiro, que condenou seu

264

Comentando o trabalho de “X” (Alberto Rangel) com Afonso Taunay, Capistrano

fala da necessidade de distinguir o temperamento do autor, do procédé (procedimento)

utilizado na escrita. Seguindo as sugestões de Taine, achava que era preciso desvencilhar-

se de si mesmo, libertar-se dos próprios cacoetes, buscando a “cura” do estilo.121

Outros

comentários falam sobre “o perigo e a sedução das notas”.122

Em cartas a Afonso Taunay,

opinou sobre o melhor modo de utilizá-las: sem chamadas, distinguindo-se do texto pela

diferença de tipos. Também aconselhou-o a deixar a retórica de lado, evitando referências

vagas ou indiretas e elogiou sua opção por um método de expor capaz de tornar a leitura

mais atraente e popular.123

Tais historiadores eram submetidos a duras críticas, feitas não apenas por

especialistas e educadores, mas por todos aqueles que se dedicavam a refletir sobre a

nação. Como observou Tânia Regina de Luca, ao lado das críticas às interpretações

vigentes, proliferavam receitas sobre a melhor direção para os estudos e a escrita da

história. Os parâmetros dessa crítica historiográfica difusa eram a metodologia utilizada e o

grau de patriotismo dos resultados obtidos. De acordo com a autora,

Não se detectava nenhuma incongruência entre um método de trabalho escorado no

empirismo e uma posição ontológica, credora do evolucionismo naturalista, que vasculhava

o passado com um olhar teleológico, encarando-o enquanto prenúncio necessário do

presente.124

Ao analisar um livro de Assis Cintra sobre Tiradentes, o crítico Brenno Ferraz do

Amaral deixa ver um pouco das expectativas existentes em sua época, a respeito do

trabalho do historiador. Disse ele, após constatar que o autor criticado estava preso aos

arquivos:

O historiador deixou de historiar na certeza de que a História está feita nos arquivos. (...)

Ciência apenas conjectural, a História não pode restringir-se ao documento frio, seco,

estilo repleto de adjetivações, neologismos etc. Ver RIBEIRO, João. “D. Pedro I e a Marquesa de Santos”.

In: Obras, op. cit., p. 152. Originalmente publicado no Imparcial, 18/06/1917. 121

Capistrano indicava um estudo de Eugéne Fromentin e as Peregrinações, de Fernão Mendes Pinto como

referências para a cura do estilo. Carta a Afonso Taunay, 07/10/1917, vol. 1, p. 287; e, ainda, carta a João

Lúcio de Azevedo, 03/09/1917, vol. 2, p. 66. Sobre a questão do estilo na historiografia, ver: GAY, Peter. O

estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. 122

Carta a Paulo Prado, 26/03/1923, vol. 2, p. 443. 123

Cartas a Afonso Taunay, 09/01/1914, 26/08/1919, s/d [meados de 1917] e 12/04/1920, vol. 1, p. 277, 302,

284 e 309, respectivamente. 124

LUCA, op. cit., p. 95-96.

265

estéril... (...) Decididamente, o trabalho do historiador não é o do escriba. É função do

pensamento e do engenho. Supõe assimilação e criação. É obra de arte e ciência.125

Capistrano também foi alvo de críticas semelhantes. Mesmo sendo considerado por

muitos como o historiador mais capacitado para escrever a história nacional, ele é acusado

de perder-se em um “rigoroso objetivismo”. Sobre ele, escreveu Manoel Bomfim:

Não que lhe falte horizonte de idéias, nem capacidade de generalização e segurança de

conceitos, ou senso crítico, para estender o pensamento por toda a realidade do Brasil (...)

No entanto, quem tenha tratado com esse puro espécime de homem de ciência – a sua

ciência, guarda a convicção de que ele jamais se atirará a uma obra de conjunto, que tanta

vez exige – afirmar por simples dedução, ou compor em imaginação, a projetar conceitos

sem outro sustentáculo além da pura lógica. Pesquisador intransigente prendeu-se ao

regime mental do rigoroso objetivismo. Eis a significação da sua obra.126

O caso de Capistrano suscita a reflexão sobre a passagem da pesquisa à escrita da

história ou, “da prática ao texto”, como observou Michel de Certeau, para quem “a

fundação de um espaço textual provoca uma série de distorções com relação aos

procedimentos da análise”.127

Tais distorções derivam, por exemplo: da necessidade de

apontar como início aquilo que, na verdade, é um ponto de chegada;128

da construção de

uma unidade discursiva dotada de regras e conceitos, de modo a compor um sistema

estável, cuja coerência tem relação com uma unidade designada pelo nome próprio do

autor; da elaboração de uma representação “plena”, capaz de preencher as lacunas (que

125

AMARAL apud LUCA, ibidem, p. 96. 126

BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro,

Francisco Alves, 1930, p.137, nota 1. 127

Para Certeau, “enquanto a pesquisa é interminável, o texto deve ter um fim, e esta estrutura de parada

chega até a introdução, já organizada pelo dever de terminar”. Ver CERTEAU, Michel de. “A operação

historiográfica”. In: _____. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 94. Ver, também, as

observações de Verena Alberti sobre as idéias de Maurice Blanchot (L’espace littéraire, 1955), que identifica

a impossibilidade de conclusão como característica da produção literária. Blanchot estabelece uma distinção

entre o “espaço literário” e o “curso do mundo”. O primeiro é “incessante, interminável, infinito e

atemporal”. O segundo é “o lugar do trabalho, da ação, do tempo e de toda sorte de finitudes”. Ver

ALBERTI, Verena. “Um drama em gente: trajetórias e projetos de Pessoa e seus heterônimos”. In:

SCHMIDT, Benito (Org.). O Biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2000,

p. 207. É possível supor certa analogia entre o “espaço literário” e o “espaço da pesquisa”; entre o “curso do

mundo”, e o “curso da escrita”, sendo que, no caso de Blanchot, trata-se de pensar a literatura e, no caso de

Certeau, a escrita da história. 128

Certeau se refere ao fato de que toda escrita da história dá seus primeiros passos no presente ou, “na

atualidade do lugar social, e do aparelho institucional ou conceitual”. Contudo, a narrativa historiográfica

segue uma ordem cronológica, que toma “o mais anterior” como ponto de partida. Ver CERTEAU, op. cit., p.

94.

266

constituem o princípio da pesquisa, sempre alimentada pela falta) etc. Sendo assim, a

substituição de um trabalho lacunar (a pesquisa) por um trabalho repleto de sentido (a

escrita da história), indicaria a existência de uma espécie de “servidão” imposta pelo

discurso à pesquisa. Contudo, a escrita histórica permaneceria controlada devido às

práticas das quais resulta. Práticas que escondem as faltas, as lacunas, mas que,

inversamente, também às expõe. A historiografia possuiria um estatuto ambivalente, pois

“faz” a história e, não obstante, “conta histórias”. É representação e, também, narrativa,

que deixa entrever as relações que mantém com uma certa disciplina de trabalho, com

determinadas práticas e lugares sociais.129

A correspondência de Capistrano constitui um espaço escriturário importante não

apenas para que o historiador de hoje possa compreender o modo como um historiador de

ontem lidava com a passagem da pesquisa à escrita. Supostamente, a escrita de cartas

também era um meio do próprio Capistrano lidar com essa passagem, expondo suas

dificuldades. Através das cartas, é possível acompanhar as dúvidas e certezas que

cercavam a operação historiográfica em sua época. São escritos que falam sobre lacunas,

incompletudes e contradições observadas ao longo do trabalho de pesquisa documental,

impondo obstáculos à escrita. Apesar de ser reconhecido como um grande historiador por

sua capacidade narrativa, Capistrano também ficou conhecido como aquele que não

escreveu a história do Brasil, embora pudesse tê-la escrito com autoridade.

Certa vez, João Ribeiro perguntou a Capistrano porque ele não lia menos e escrevia

mais. Capistrano respondeu que já havia quem escrevesse demais, lendo muito menos.

Para Ribeiro era preciso encontrar o equilíbrio entre “tagarelas” e “silenciosos”.130

A

solução de Capistrano para esse impasse resultante da passagem “da prática ao texto”

parece ter sido restringir cada vez mais seu projeto historiográfico, a ponto de propor uma

escrita “a grandes traços e largas malhas”.131

*

* *

129

Essa operação escriturária, que não identifica a totalidade de procedimentos utilizados na elaboração da

própria escrita, impondo regras contrárias às regras da prática, foi denominada por Certeau de “inversão

escrituraria”. Ibidem, p. 94-95 e, também, p. 104-105. É importante observar que o texto que resulta da

operação historiográfica é um produto histórico-cultural, portanto, suscetível a mudanças. O estatuto

ambivalente da historiografia – que é representação e, também, narrativa – deve ser pensado considerando a

relação que a sociedade mantém com a temporalidade. 130

RIBEIRO, João. “Retrato de Capistrano de Abreu”. In: _____. Obras, op. cit., p. 94. 131

Ver carta ao Barão do Rio Branco, 17/04/1890, vol. 1, p. 130, já citada. E, também, PEREIRA,

Descobrimentos de Capistrano, op. cit.

267

No Brasil do início do século XX, prevalecia o ideal de uma “obra de conjunto”:

uma história geral da nação plena de sentido, uma síntese a ser escrita em um ou em muitos

volumes. Essa obra deveria ser sustentada por fontes fidedignas, cuidadosamente reunidas,

de modo a possibilitar o acesso à verdade. Sendo assim, qualquer observação acerca da

relatividade dos testemunhos históricos ou a respeito dos conceitos ou referenciais teóricos

que guiavam o historiador podia causar espanto.132

Capistrano compreendia que aquilo que

as fontes diziam dependia, fundamentalmente, da questão proposta pelo investigador. Isso

pode ser deduzido, por exemplo, da carta a Luís Sombra, onde ele observa que:

Quando se faz qualquer pesquisa, o interrogado mais ou menos imita o cortesão que

quando Luís XIV lhe perguntou a hora, respondeu: Il est l’heure qu’il plaira à Votre

Majesté [é a hora que mais agradar à Vossa Majestade].133

Ou seja, mesmo sendo guiado por um “rigoroso objetivismo”, Capistrano podia

admitir que os documentos não falam por si, pois a resposta que eles fornecem depende

muito daquilo que o investigador deseja saber e questionar. Achava que, “em História não

pode ser esquecida a perspectiva”,134

o que permite supor que essa perspectiva se refira

tanto ao ponto de vista do testemunho quanto ao do historiador.

Voltando ao ideal de história do Brasil, observa-se que Capistrano, mesmo tendo

planejado a escrita dessa história (talvez realizada em seus Capítulos de história colonial,

como quer Daniel Mesquita Pereira), várias vezes demonstrou interesse por algo mais

circunscrito a temas, tais como as entradas e bandeiras, os caminhos antigos, as festas, a

família etc.; a áreas de pesquisa, como a história econômica; ou a épocas particulares,

como a história colonial. Além disso, considerava a existência de cinco Brasis (o

amazônico, o litorâneo, o baiano, o paulista e o riograndense).135

Sendo assim, como

elaborar uma história geral?

Para João Ribeiro, Capistrano era um pesquisador “sem coragem e sem vontade

talvez de escrever a história geral que todos esperavam da sua enorme capacidade e

compreensão”. Isso se devia à predileção pelo período colonial, que permitia pensá-lo mais

como um “arqueólogo” da história brasileira do que como historiador.136

132

LUCA, op. cit., p. 100. 133

Carta a Luís Sombra, 15/11/1916, vol. 3, p. 33. 134

Carta a Pandiá Calógeras, 24/06/1910, vol. 1, p. 363. 135

Sobre os cinco Brasis, ver carta ao padre Teschauer, 14/05/1914, vol. 3, p. 367. 136

RIBEIRO, “O 3o tomo da História do Brasil [de Varnhagen]”. In: Obras, op. cit., p. 23. Originalmente

publicado no Jornal do Brasil, 20/01/1932.

268

Mais uma vez lembrando o projeto de juventude, Capistrano constatou:

Quando pensei em consagrar-me a História do Brasil, resultado de uma leitura febriciante

de Taine, Buckle e da viagem de Agassiz, feita ainda no Ceará, não me lembro se pretendia

abarcar toda a história. Mais tarde reconheci que era necessário incluir a época

contemporânea, mas a minha curiosidade dispersou-me a atenção por toda parte e agora,

posso dizer como Monte-Alverne: é tarde!137

Observação semelhante pode ser vista em outra carta, onde diz que: “infelizmente

eduquei meu espírito, desinteressei-me da história contemporânea. Agora é tarde: Inês é

morta”.138

A sensação de incompletude, observada anteriormente, também dizia respeito ao

campo de interesses, uma vez que a construção de uma história do Brasil exigia a inclusão

de todos os períodos, de modo a apresentar as diferentes etapas da vida nacional.

Parece haver certa tensão entre o planejado (a escrita da história da nação) visando

atender às expectativas da época, e o realizado, capaz de frustrar as próprias expectativas,

assim como, a de seus contemporâneos, mas que, ao mesmo tempo, permitia dar vazão a

seus próprios desejos e interesses. Diante de um trabalho que o atormentava, certa vez

indagou: “Perguntará V. quem me obriga a uma empresa de que não me sinto capaz? Tem

toda a razão: quem me obriga?”.139

Capistrano era alguém que acreditava na existência de

muitos meios para ser feliz, mas que tais meios reduziam-se a um único: “obedecer aos

ditames da consciência, principalmente com sacrifícios”.140

Provavelmente ele seguiu sua

própria consciência, dedicando-se a suas predileções, construindo seu modo de vida e seu

próprio olhar sobre a história. Talvez tenha tentado seguir o conselho inglês que certa vez

deu a Paulo Prado: to make the best of it (faça o melhor possível).141

137

Carta a José Veríssimo, 21/01/1914, vol. 1, p. 200. 138

Carta a Guilherme Studart, 19/07/1902, vol. 1, p. 158. O desinteresse de Capistrano pela história

contemporânea é relativo, pois, mesmo tendo se dedicado ao estudo do período colonial, produziu alguns

trabalhos sobre o Império e o início da República, ainda que com menor destaque. Além disso, suas cartas

são um importante manancial de informações e interpretações sobre a política de sua época, como demonstra

a carta do diplomata Domício da Gama, que diz: “O fim desta carta é pedir-lhe com instância informações

particulares sobre a nossa vida política, que V. tão bem conhece”. Carta a Capistrano de Abreu, 29/11/1891,

vol. 3, p. 134. 139

Carta a Afonso Taunay, 21/01/1921, vol. 1, p. 320. 140

Carta a Luís Sombra, 31/12/10, vol. 3, p. 22; carta a Pandiá Calógeras, 14/01/1910, vol. 1, p. 372. 141

Carta a Paulo Prado, 17/11/1922, vol. 2, p. 427.

269

7

Esboço final

Em artigo de 1951, Sérgio Buarque de Holanda traçou um panorama geral da

historiografia brasileira na primeira metade do século XX, apontando seus principais

nomes e contribuições.1 Capistrano de Abreu é apresentado como impulsionador de

mudanças no âmbito dos estudos históricos, criador de um tipo de “escola” – para usar o

termo proposto pelo próprio Holanda, ainda que entre aspas – fundada na pesquisa

empírica, no trato das fontes documentais existentes em arquivos. Outra característica

dessa “escola” seria a percepção por parte de seu “fundador” de que essas mesmas fontes

não falam por si, exigindo do historiador a formulação de perguntas “precisas e bem

pensadas”, a fim de dar direção à pesquisa. Além dessas diretrizes inovadoras, Capistrano

também teria contribuído para ampliar o campo de interesses dos historiadores ao trabalhar

pela divulgação de documentos capazes de abrir espaço para estudos de história social e

econômica e não somente política-administrativa, bélica e genealógica, além de propor

novos temas. Direcionando seu olhar para a formação da nacionalidade, ele se empenhara

na investigação do povoamento do interior, em detrimento do estudo sobre os

acontecimentos que até então ocupavam eminentes pesquisadores, tais como: as guerras

holandesas, a Inconfidência ou qualquer outro fato ligado ao Estado ou à ação individual.

Assim como Capistrano, Sérgio Buarque era um notório estudioso do Brasil

colonial, autor de Raízes do Brasil (1936) e Monções (1945), entre outros trabalhos.2 No

artigo citado, ele reconhece a existência de uma espécie de dívida da historiografia com

Capistrano, apontado como precursor de um tipo de pesquisa histórica com a qual era

possível dialogar nos anos cinqüenta. Esse exercício que aponta um lugar para Capistrano

1 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “O pensamento histórico no Brasil durante os últimos cinqüenta anos

(1900-1950)”. Correio da Manhã. Caderno especial Cultura Brasileira (comemorativo dos cinqüenta anos do

jornal), 15/06/1951. 2 Apenas os trabalhos de Buarque de Holanda publicados até o momento da divulgação de seu artigo sobre a

historiografia, em 1951, estão sendo lembrados. Outros de seus livros mais conhecidos são Caminhos e

Fronteiras e Visão do Paraíso, publicados em 1957 e 1958, respectivamente.

270

como o maior entre os maiores de seu tempo, também permite deslocá-lo desse mesmo

tempo, para situá-lo em um lugar bem próximo daquele ocupado pelo realizador do

exercício. Um tipo de elo parece ser estabelecido entre o historiador de 1951 e o

historiador do início do século. Capistrano é apresentado como propositor de um tipo de

historiografia distinta daquela produzida por seus antecessores e contemporâneos, e

bastante próxima daquela que era produzida e/ou idealizada na década de 1950: uma

história aberta para o social e o econômico, pouco afeita a indivíduos, datas e fatos, mais

preocupada com as coletividades e os processos históricos.

O artigo de Sérgio Buarque pode ser lido como uma versão consagrada da história

da história no Brasil, com foco na primeira metade do século XX.3 Faz parte de um

conjunto de interpretações elaboradas de modo mais sistemático a partir dos anos trinta,

que, de modo geral, estabeleceram os marcos dessa história, identificando seus principais

autores e contribuições. O objetivo desse esboço final é refletir sobre o modo como a

história da disciplina tem sido contada e buscar identificar o lugar atribuído a Capistrano.

Desse modo, talvez seja possível compreender porque um historiador em atividade entre as

décadas de 1870 e 1920, é considerado, se não como um par, certamente como uma

referência obrigatória para os historiadores da segunda metade do século XX e início do

XXI, sendo continuamente lembrado e atualizado.

A primeira vista é possível supor que, se Capistrano foi lembrado por décadas como

um referencial, é porque sua obra possui características que autorizam sua constante

atualização ao longo do tempo. O conceito de clássico poderia defini-la, se for entendido

que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.4

Sendo sempre atual e exemplar, a obra clássica serve para orientar a produção de obras

novas, estabelecendo a ligação entre passado, presente e futuro.5 Contudo, a atribuição do

título de clássico a uma obra é algo que ocorre em um momento distinto daquele em que

ela foi produzida. Ou seja, trata-se de uma operação intelectual baseada na distância

histórica em relação ao período em que a obra foi elaborada. Por princípio, essa distância

3 De acordo com a tipologia elaborada por Horst Walter Blanke, o artigo de Sérgio Buarque de Holanda pode

ser incluído entre os balanços gerais, um dos dez tipos de história da historiografia identificados pelo autor.

Tais balanços contêm “visões panorâmicas do estado das pesquisas com intenção de graduar historiadores ou

classificá-los em campos específicos, de tal forma que só em um sentido estrito podem ser considerados

história da historiografia”. Segundo Blanke, tais quadros gerais, mesmo não podendo ser considerados como

histórias da matéria, são obras preliminares para as mesmas. Ver BLANKE, Horst Walter. “Para uma nova

história da historiografia”. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da

historiografia. São Paulo, Contexto, 2006, p. 30. 4 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.11.

5 ARGAN apud SALLES, Ricardo. “Uma obra clássica”. In: SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: um

pensador do Império. Rio de Janeiro, Topbooks, 2002, p. 205, nota 260.

271

autoriza a afirmação de que tal obra atravessou o tempo, mantendo sua atualidade, por ser

portadora de uma norma definida como clássica. Sua avaliação baseia-se na identificação

dessa norma, que é criada e reafirmada continuamente.6 Isso indica que a apresentação de

algo como clássico pode dizer muito sobre aqueles que o apresentam, bem como sobre o

campo intelectual em que atuam.

Note-se aqui a semelhança entre as operações que rotulam uma obra como clássica

e aquelas que comemoram algo ou alguém. Assim como o ato comemorativo almeja extrair

um tipo de valor simbólico daquilo que é comemorado, a operação intelectual que atribui o

valor de clássico também pretende identificar e valorizar determinadas características, no

caso, de uma obra, perpetuando-a e celebrando-a. Ambas as operações, a de comemorar e a

de “classicizar”, contribuem para a consolidação dos elos entre os vivos e entre os vivos e

os mortos, mobilizando os indivíduos em torno de imperativos e valores coletivos. Nesse

sentido, são operações memorialísticas fundamentais para a construção de tradições.7

A sistemática apropriação de Capistrano pela historiografia pós-1950, em parte

pode ser explicada por meio dos sucessivos empreendimentos memorialísticos ou

comemorativos já assinalados, a começar pelos necrológios, que afirmam o lugar de

Capistrano como um símbolo da brasilidade, no período imediatamente posterior à sua

morte, em 1927; passando pela criação de um grêmio em sua homenagem (a Sociedade

Capistrano de Abreu), no mesmo ano; pela inclusão de seu nome no rol dos maiores

historiadores do Brasil, elaborado pelo jornal A Manhã, órgão oficial do governo durante o

Estado Novo (1937-1945); pela comemoração de seu I Centenário de Nascimento (1953),

através do Curso Capistrano de Abreu, no IHGB; completando-se com suas várias

biografias. Mas, tal processo de apropriação também pode ser compreendido como parte

dos investimentos no sentido de construir uma história da história no Brasil, que toma a

década de 1930 como um divisor de águas. A obra de Capistrano seria valorizada por

estabelecer uma espécie de ponte entre a historiografia das primeiras décadas do século

XX (caracterizada pela continuidade em relação à historiografia oitocentista) e a

historiografia identificada como “nova”, cujos marcos referenciais seriam os textos de

Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, produzidos nos anos

trinta e quarenta.

6 SALLES, “Uma obra clássica”, op. cit., p.181-246.

7 Para ajudar nessa reflexão, são úteis os trabalhos de: ABREU, Regina. O enigma de Os sertões. Rio de

Janeiro, Rocco-Funarte, 1996; CATROGA, Fernando. “Ritualização da história”. In: _____; TORGAL, Luís

Reis; MENDES, José Amado. História da História em Portugal. S.l., Temas & Debates, [1998], p. 339-348;

HEINICH, Nathalie. La gloire de Van Gogh – essai d‟anthropologie de l‟admiration. Paris, Minuit, 1991; e

HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro, UFRJ, 2003.

272

Se, ao longo da tese, nossa atenção esteve voltada para diferentes tipos de discursos

sobre Capistrano (os escritos post mortem, os trabalhos comemorativos e as biografias),

assim como para os discursos elaborados pelo próprio historiador sobre si mesmo e sobre a

escrita da história (através de suas cartas e artigos), para finalizar o foco recai sobre as

interpretações produzidas por historiadores a partir da década de 1940. Esse recorte

temporal se justifica se for levado em conta que desde essa época é possível identificar um

esforço mais sistemático no sentido de elaborar uma história da história no Brasil. Além

disso, foi nos anos quarenta que os primeiros frutos das faculdades de filosofia, ciências e

letras, criadas nos anos 1930, começaram a ser colhidos. Isso, provavelmente, fez surgir a

necessidade de estabelecer uma história da disciplina capaz de situar a produção

universitária de estudos históricos em relação a anterior.

A hipótese que orienta este esboço final é a de que a construção da história da

história no Brasil não se manteve imune ao trabalho da memória, que favorece o culto, a

mitificação, enfim, a construção de monumentos em honra de autores e obras. Essa

hipótese, longe de querer desmerecer as interpretações sobre Capistrano, deseja refletir

sobre a escrita da história enquanto uma operação desenvolvida em meio à análise crítica, à

memória, o esquecimento e às expectativas de diferentes tipos de intérpretes, entre os

quais, os historiadores, sendo sempre guiada pelas demandas e circunstâncias do presente.

7.1. Intelectuais, idéias e histórias

Uma reflexão sobre o lugar de Capistrano de Abreu na história da história pode

começar revendo as interpretações sobre sua época. É um modo de entrar na história da

disciplina, que costuma ser dividida em “antes e depois” dos anos trinta. Capistrano é um

erudito polígrafo, que produziu entre as décadas de 1870 e 1920, comumente vistas como

marcos da história intelectual e das idéias no Brasil. A década de 1870 é um momento

importante de reflexão sobre os problemas nacionais, que marca a conjuntura de crise do

Brasil-Império. Parte da geração que a viveu ficou conhecida através da expressão genérica

de “geração 1870”, a qual se atribui um papel decisivo na conjugação de dois

empreendimentos, que podem ser vistos como indissociáveis: a apropriação e divulgação

do pensamento científico europeu e o desenvolvimento de reflexões e práticas políticas

voltadas para a crítica das instituições imperiais.8 Quanto à década de 1920, é comumente

8 Ver, por exemplo: ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São

Paulo, Paz e Terra, 2002.

273

lembrada como um referencial para as discussões acerca do moderno e do modernismo

entre nós.9 Uma sólida memória sobre ambos os períodos foi construída por aqueles que os

viveram, influindo, inclusive, sobre as análises posteriores. Entre uma época e outra,

alguns intérpretes identificaram uma espécie de hiato, supostamente marcado pela

estagnação criativa. Assim, a produção intelectual-literária surgida entre as décadas de

1880 e 1910 foi freqüentemente considerada “menor” ou apenas uma precursora do que

viria depois. Apesar de algumas vozes dissonantes, essa interpretação prevaleceu até, pelo

menos, os anos 1980 e ainda é muito difundida.10

Ao lado das visões negativas acerca da produção intelectual anterior aos anos trinta,

existia uma desconfiança em relação à pertinência de uma história das idéias no Brasil, o

que se refletia na história intelectual e, provavelmente, na história da história.11

No início

dos anos 1970, por exemplo, Wanderley Guilherme dos Santos chamou a atenção para o

fato de que a história intelectual brasileira ainda não havia sido devidamente explorada. O

autor identificara apenas doze trabalhos dedicados ao assunto, produzidos entre os anos 40

e 60, observando que, de acordo com essa produção, nossa história intelectual seria

produto de apenas cem pessoas, considerando autores e obras mais citadas. Inexistiam

estudos sobre a herança cultural do país, prevalecendo o desinteresse e o desprezo pela

produção anterior aos anos 1930, vista como “pré-científica” e, por isso, irrelevante.

Segundo o autor, o preconceito havia impedido que a história intelectual brasileira fosse

9 Ver, por exemplo: FABRIS, Annateresa. “Modernidade e vanguarda: o caso brasileiro”. In: _____ (Org.).

Modernidade e modernismo no Brasil. Campinas, Mercado das letras, 1994, p. 9-25. 10

CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira, momentos decisivos. São Paulo, Martins Fontes,

1971; Idem. “Literatura e subdesenvolvimento”. Argumento, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, 1973, p. 20-21;

Idem. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”. In: _____. Literatura e sociedade. São Paulo, Companhia

Editora Nacional, 1965; BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1997;

Idem. “O pré-modernismo”. São Paulo, Cultrix, 1966; Idem. “As letras na Primeira República”. In:

FAUSTO, Boris (Org.). História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, tomo III,

vol. 9, 1997, p. 293-319; LIMA, Luiz Costa. “Da existência precária: o sistema intelectual brasileiro”. In:

_____. Dispersa demanda (ensaios sobre literatura e teoria). Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 3-29.

Originalmente publicado in Cadernos de Opinião, Rio de Janeiro, n. 2-5, 1978; GUIMARÃES, Lúcia Maria

Paschoal e ARAÚJO, Valdei Lopes de. “O sistema intelectual brasileiro na correspondência passiva de John

Casper Branner”. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro,

FGV, 2004, p. 93-109. 11

Cabe aqui lembrar a distinção existente entre a história das idéias e a história intelectual ou dos

intelectuais. A primeira é caracterizada por tomar as idéias como sistemas de pensamento, que, de acordo

com o ponto de vista, podem ou não ser relacionados a determinados contextos. A segunda, estaria mais

próxima de uma sociologia do meio intelectual. Essa distinção esbarra em problemas relativos ao

vocabulário, uma vez que há grandes especificidades nacionais na designação dos objetos de estudo, o que

torna difícil adaptar ou traduzir categorias e conceitos pertinentes. Ver CHARTIER, Roger. “História

intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliação”. In: _____. A História Cultural: entre práticas

e representações. Lisboa, Difel, 1990, p. 29-67; SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: RÉMOND,

René. Por uma história política. Rio de Janeiro, FGV-UFRJ, 1996, p.231-269; FALCON, Francisco José

Calazans. “História das Idéias”. In: CARDOSO, Ciro Flammarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da

História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, Campus, 1997, p. 91-125.

274

satisfatoriamente conhecida, pois a importância de uma produção intelectual era avaliada

em função da existência ou não de um determinado tipo de instituição: as universidades.12

Sete anos depois, Bolívar Lamounier fez observação semelhante ao afirmar que a

história das idéias ainda não havia produzido estudos sistemáticos, reconhecendo que ainda

havia dúvidas acerca da existência do objeto dessa história. Mais recentemente, Francisco

Falcon confirmou que, de fato, não existe no Brasil uma “verdadeira tradição

historiográfica de história das idéias”, sendo que a dispersão marca esse tipo de estudo,

uma vez que é possível encontrar reflexões sobre idéias em diferentes áreas temáticas,

como a história econômica, a história social, a história política e a história cultural.13

Outro estudioso do assunto, José Murilo de Carvalho, fez um retrospecto da história

intelectual brasileira, observando que o tipo de abordagem desenvolvida nessa área de

estudos aproximou-se, durante muito tempo, da prática filosófica de expor o pensamento

de cada escritor isoladamente. Os intérpretes com alguma preocupação histórica faziam

certo esforço para situar os pensadores em seus respectivos contextos. Os exemplos desse

tipo de produção seriam, justamente, as várias histórias do pensamento político, jurídico,

filosófico, sociológico etc. Alguns desses trabalhos iam além, procurando agrupar os

pensadores em famílias intelectuais ou correntes de pensamento, quase sempre definidas de

acordo com categorias como: o liberalismo, o positivismo e o socialismo. Assim, surgiram

as histórias do pensamento positivista, socialista etc. Outra característica seria a ausência

de reflexão metodológica sobre aquilo que se fazia, daí não haver referência a qualquer

discussão sobre autoria, recepção, texto, linguagem e escrita. Desse modo, “a autoria era

dada como o determinante principal, se não o único, do texto. A atenção à recepção

limitava-se a alguma vaga informação sobre a influência exercida pelos autores

estudados”.14

Tais trabalhos passaram ao largo dos debates internacionais sobre o estudo

das idéias, produzidos fora do país desde a década de 1930.

12

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “Raízes da imaginação política brasileira”. Dados, Rio de Janeiro,

IUPERJ, n. 7, 1970, p. 146-147. Este artigo é uma releitura do texto “A imaginação político-social

brasileira”, publicado na revista Dados, n. 2/3, 1967. 13

LAMOUNIER, Bolivar. “Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República: uma

interpretação”. In: FAUSTO, Boris (Dir.). História da Civilização Brasileira III: O Brasil Republicano 2 –

Sociedade e instituições (1889-1930). São Paulo, Difel, 1977, p. 343-374; FALCON, “História das Idéias”,

op. cit., p. 122. 14

CARVALHO, José Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”. Topói. Rio

de Janeiro, Sete Letras/UFRJ, 2000, n. 1, p. 123-24. São exemplos de grandes sínteses da história das idéias

no Brasil: Contribuição à história das idéias no Brasil (1956), de João Cruz Costa; História das idéias

socialistas no Brasil (1965), de Vamireh Chacon; História das idéias filosóficas no Brasil (1967), de Antônio

Paim; História do positivismo no Brasil (1967), de Ivan Lins; História das idéias jurídicas no Brasil (1969),

de A. L. Machado Neto; História da inteligência brasileira, em 6 volumes (1977-1978), de Wilson Martins.

275

Ao lado das grandes sínteses sobre história das idéias, poderiam ser incluídas as

muitas histórias da literatura – tais como a História da literatura brasileira (1938), de

Nélson Werneck Sodré, várias vezes reeditada desde então –, que ajudaram a conformar

interpretações sobre autores e obras, definindo fases de produção. Entre os anos 1950 e

1970, alguns poucos trabalhos investigaram o modo como escritores e intelectuais viviam e

produziam, aproximando-se de uma sociologia dos intelectuais ou do conhecimento, tais

como: A vida literária no Brasil (1956), de Brito Broca e Estrutura Social da República

das Letras (1973), de A. L. Machado Neto.

Capistrano é lembrado de modo pontual por alguns desses trabalhos,15

ocupando

espaço maior em um estudo sobre a história das idéias literárias no Brasil, desenvolvido

por Afrânio Coutinho, em 1959.16

Também aparece entre os autores referenciais para o

estudo do Brasil colonial, no livro O que se deve ler para conhecer o Brasil (1945), de

Nélson Werneck Sodré – que faz breves e elogiosos comentários sobre três de suas obras –

e no Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros (1949). Mais exatamente, na parte

intitulada Período Colonial, escrita por Sérgio Buarque de Holanda.17

Diante de estudos incipientes, Ângela de Castro Gomes conclui que, desde os anos

1950, “era muito grande o desamor pelos debates teóricos sobre a construção do

conhecimento histórico, assim como sobre qual era a nossa tradição de autores/obras neste

terreno”.18 Além disso, lembra que durante décadas pairou a dúvida a respeito da “real”

existência de um pensamento social e político brasileiro. Era freqüente o argumento de

que:

15

Exemplos de trabalhos que citam Capistrano: SODRÉ, Nélson Werneck. História da literatura brasileira:

seus fundamentos econômicos (1938); BROCA, Brito. A vida literária no Brasil (1956); COSTA, João Cruz.

Contribuição à história das idéias no Brasil (1956). 16

COUTINHO, Afrânio. “A formação de Capistrano crítico”. In: _____. Euclides, Capistrano e Araripe. Rio

de Janeiro, s.e., 1959, p.17-76. Originalmente publicado em dez artigos no Diário de Notícias. Suplemento

Literário, Rio de Janeiro, de 25/10/1953 a 03/01/1954. Trata-se de parte de um projeto de história literária,

desenvolvido posteriormente. 17

Ver: HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Período Colonial”. In: MORAES, Rubens Borba de e BERRIEN,

William (Dir.). Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro, Gráfica Editora Souza, 1949, p.

387-407; e SODRÉ, Nélson Werneck. O que se deve ler para conhecer o Brasil. Rio de Janeiro, Cia. Editora

Leitura, 1945. Em edição posterior, Werneck Sodré apresenta opinião divergente, dizendo que “é fácil

verificar que Capistrano não acrescenta ao tratamento da história brasileira nenhum elemento fundamental,

não a ilumina pela aplicação de um método, não a esclarece pela revisão dos fatos, quanto ao conteúdo

destes”. Ver: AGUIAR, Ronaldo Conde. Pequena bibliografia crítica do pensamento social brasileiro.

Brasília, Paralelo 15; São Paulo, Marco Zero, 2000, p. 111-112. Aguiar recupera as opiniões de Werneck

presentes na 6a edição (1988) do referido livro.

18 GOMES, Ângela de Castro. “Política: história, ciência, cultura, etc.”. Estudos Históricos – Dossiê

Historiografia. Rio de Janeiro, vol. 9, n. 17, 1996, p. 62.

276

as „idéias políticas‟ no Brasil eram „importadas‟ do exterior, razão pela qual ou elas

estavam „fora do lugar‟, não sendo operativas e produzindo equívocos; ou elas estavam „no

lugar‟, construindo uma justificativa um tanto quanto maquiavélica de estratégias de

dominação/opressão política (de classe, do Estado etc.).19

Considerando esse quadro, é possível concluir que a pesquisa sobre a história

intelectual não se desenvolveu muito no sentido de investigar obras e respectivos contextos

de produção; trajetórias de autores e instituições (escolas, revistas, academias etc.), além

das tradições de pensamento.20

Cabe lembrar que, parte significativa dos estudos sobre idéias e intelectuais no

Brasil foi feita sob o influxo de uma importante vertente interpretativa: o marxismo,

difundido através de diversas tendências. Tal vertente enfrentou o problema do

condicionamento histórico e social do pensamento. Porém, em muitos casos, o interesse

pelo mundo da produção e das relações entre as classes sociais se desenvolveu em

detrimento dos estudos sobre as chamadas superestruturas, terreno das idéias ou, mais

propriamente, das ideologias, principal objeto de atenção. Quando as superestruturas

tiveram lugar, foram geralmente submetidas a um rígido instrumental teórico-conceitual,

acompanhado por argumentos de ordem política. Assim, a produção intelectual foi

avaliada em termos de compromisso ou não com o capital, o liberalismo e/ou a ideologia

burguesa. Muitos dos autores submetidos ao crivo de tais análises foram rotulados como

“ideólogos da burguesia” etc., sendo suas obras lidas a partir de chaves interpretativas

prévias e generalizantes.21

Em 1973, por exemplo, surgiu uma das primeiras teses dedicadas ao exame da

historiografia brasileira, que se confunde com a história da história no Brasil: A

historiografia brasileira: 1900-1930, de Pedro de Alcântara Figueira. Fato significativo

que o trabalho se dedique a examinar justamente o período cuja produção era geralmente

19

GOMES, “Política: história, ciência, cultura etc.”, op. cit., p. 77. Sobre este assunto ver, também,

CARVALHO, op. cit., p. 123-152. 20

GOMES, op. cit., p. 62 e 78. 21

Mesmo sendo difícil mapear a ampla influência dessa tendência interpretativa, cabe registrar a contribuição

de alguns autores marxistas na discussão sobre história das idéias e história intelectual. Georg Lukács, Lucien

Goldmann, Walter Benjamin, Karl Mannheim e Antonio Gramsci, entre outros, conduziram reflexões sobre a

teoria do conhecimento e a sociologia dos intelectuais, que, de diferentes formas, situam a produção

intelectual e científica em relação aos campos político e social. Ver FALCON, “História das Idéias”, op. cit.,

p. 107-108 e 122; FICO, Carlos e POLITO, Ronald. “A historiografia brasileira nos últimos 20 anos –

tentativa de avaliação crítica”. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A velha história: teoria, método e

historiografia. Campinas, Papirus, 1996, p. 191-192; e, ainda, LÖWY, Michael. “O marxismo ou o desafio do

„princípio da carruagem‟”. In: _____. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen:

marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 4a edição. São Paulo, Busca Vida, 1987, p. 93-185.

277

vista como pouco criativa e relevante, e em relação a qual gerações de historiadores,

ligados às faculdades de filosofia, deveriam se afirmar. Alcântara Figueira desenvolveu um

tipo de crítica de orientação marxista, que impôs muitos rótulos negativos à produção

examinada. Sob esse olhar, Capistrano de Abreu aparece, simplesmente, como um

“escamoteador ideológico e ideólogo da burguesia” (da monarquia e da oligarquia

republicana).22

No cenário internacional, um influxo renovador dos estudos históricos em geral e

da história das idéias e dos intelectuais, em particular, pode ser observado, pelo menos,

desde os anos 1970. Essa renovação foi impulsionada por reflexões desenvolvidas pelas

ciências sociais, assim como, pela filosofia, pela lingüística e pela teoria literária.

Francisco Falcon observa duas grandes tendências historiográficas a partir de então. A

primeira considera a relação entre as idéias e o mundo social como real e necessária. A

segunda rejeita essa relação, optando pelo estudo das idéias a partir de seu suporte textual,

como discurso ou mensagem, fundando a análise em pressupostos lingüísticos,

hermenêuticos ou literários.23

No Brasil, tais mudanças podem ser percebidas,

principalmente, a partir de meados da década de 1970 e ao longo dos anos 80, havendo

relação com as proposições da sociologia dos intelectuais e da “nova história política”.24

Cabe destacar a contribuição da chamada “escola” dos Annales para a renovação

dos estudos sobre idéias e intelectuais. Desde a sua criação em 1929, essa “escola” se

empenhou na crítica ao estudo das idéias de viés “positivista”, mais preocupada com a

listagem de nomes e obras. Trata-se de uma perspectiva oposta a de uma história

“desencarnada”, que pensava as idéias ou sistemas de pensamento como algo independente

22

FIGUEIRA apud BOTTMANN, Denise Guimarães. Padrões explicativos da historiografia brasileira.

Campinas, Unicamp, dissertação de mestrado, 1985, p. 20-21. A referência completa do trabalho citado por

Bottmann é: FIGUEIRA, Pedro de Alcântara. Historiografia brasileira: 1900-1930. Assis, Unesp, tese de

doutorado, 1973. 23

Ver FALCON, “História das Idéias”, op. cit., p. 114. Falcon lembra que, durante a década de 70, surgiu,

nos EUA e na Inglaterra, a New Intellectual History, com várias tendências metodológicas. Simultaneamente,

na França e também nos EUA, desenvolveu-se a História Social das Idéias ou História Sociocultural. Ainda

na França, destacou-se a História das Mentalidades e a História Cultural. O autor chama a atenção para a

expansão, ainda a partir dos anos 70, do prestígio das concepções que consideravam o texto e/ou discurso

como uma realidade autônoma em relação às condições não textuais de produção. Desta forma, “a

interpretação do texto e a análise das práticas discursivas nele presentes passaram ao primeiro plano em

detrimento das indagações tradicionalmente endereçadas ao autor, meio social e época histórica”. A

hermenêutica adquiriu grande prestígio, ao lado da “nova retórica” e da semiótica. Apesar disso, também se

afirmaram, no cenário da história, estudos que viam em cada idéia ou em cada pensador um “microcosmo”

no qual se articulariam passado e presente. O objetivo comum daqueles que se dedicam a tais estudos tem

sido preservar o eixo temporal das relações históricas e reconstruir as conexões entre o mundo das idéias e o

mundo social. Ibidem, p. 113-122. 24

Sobre as contribuições para a história intelectual e das ideáis advindas da “nova história política”, ver:

GOMES, “Política: história, ciência, cultura etc.”, op. cit., p.67 e 78; e, também, SIRINELLI, “Os

intelectuais”, op. cit.

278

da vida social. Almejando uma “história total”, os Annales defenderam a construção de

uma história distinta daquela dedicada aos “grandes homens”, contribuindo para deslocar a

atenção dos “grandes livros, autores e idéias” para a história das mentalidades coletivas.25

Difundiram noções como as de “utensilagem mental”, “atitudes mentais”, “formas de

pensamento” e “mentalidades”. Sobretudo, contribuíram para estabelecer relações entre as

idéias (ou ideologias) e suas condições sociais de produção, procurando romper com o uso

de categorias como influência ou determinismo. Segundo Lucien Febvre, que foi um dos

fundadores dos Annales, a tarefa dos “historiadores do movimento intelectual” é, antes de

tudo, compreender a originalidade de cada sistema de pensamento na sua complexidade e

nas suas mutações.26

Pode-se dizer que, sob o influxo dos Annales foi possível repensar os objetos da

história das idéias e dos intelectuais.27

Mas, ao mesmo tempo, tal influxo estabeleceu uma

espécie de divisor de águas na história da disciplina. A história da história ficando dividida

em antes e depois dessa “escola”, criada em 1929. O antes geralmente sendo visto como

algo homogêneo, caracterizado por excessos e, também, por faltas. Ainda que isso tenha

ocorrido mais nitidamente na historiografia francesa, é possível aventar que seus efeitos

tenham sido sentidos também no Brasil, sendo que, a aceitação dessa divisão parece ter

sido facilitada graças à existência de um certo consenso acerca da história da história no

em nosso país, sobretudo, aquela anterior às faculdades de filosofia, fundadas na década de

1930. A historiografia anterior a esse período era (e por muito tempo seria) vista como

25

Ao longo das décadas de 1960 e 1970, desenvolveu a história das mentalidades dedicada ao estudo do

chamado “terceiro nível” ou “sótão”, com utilização de metodologia quantitativa ou serial, semelhante a que

vinha sendo utilizada em outros domínios como a história econômica, social e demográfica. O estudo das

mentalidades permitiu pensar as conexões entre mudanças intelectuais e sociais, ou ainda, entre “estruturas

mentais”, “hábitos de pensamento”, “aparatos intelectuais” e atitudes. Ampliou o leque de abordagem das

ideologias, assim como, incentivou o estudo do imaginário social. Ver CHARTIER, “História intelectual e

história das mentalidades...”, op. cit. 26

Sobre os Annales, ver, por exemplo: REVEL, Jacques. “História e ciências sociais: os paradigmas dos

Annales”. In: _____. A invenção da sociedade. Lisboa, Difel; Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, [1989], p.13-

41; BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989. São Paulo,

Unesp, 1991; REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em História. São Paulo, Paz e Terra, 2000.

Sobre os Annales e a história intelectual, ver CHARTIER, op. cit. Cabe lembrar que, entre 1956 e 1969,

período em que Fernand Braudel esteve à frente da “escola”, prevaleceu uma perspectiva mais estruturalista,

interessada nos macro-fenômenos ligados à longa duração. Idéias e indivíduos foram então relegados a um

“terceiro nível”. Contudo, em meados da década de 1970, é de se notar a presença da literatura, das

ideologias, da língua, do livro e das mentalidades entre os novos objetos, abordagens e problemas, como

demonstra a obra Faire l’histoire (1974), organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora. 27

Esse repensar está vinculado em boa parte, mas não somente, ao desenvolvimento da história cultural, que

tem Roger Chartier (que se vincula à chamada terceira geração dos Annales) como um dos principais

divulgadores. Suas reflexões sobre práticas, representações e apropriações, assim como, suas pesquisas sobre

a história do livro e da leitura ajudaram a ampliar o interesse pelas linguagens, discursos, edições, produção,

circulação e recepção de textos, contribuindo para o surgimento de novas questões pertinentes à história

intelectual, assim como, ao estudo das idéias.

279

marcadamente “positivista”, influenciada por idéias estrangeiras e caracterizada pelo

continuísmo em relação à historiografia oitocentista, marcada pela história político-

administrativa, bélica e genealógica.28

Supostamente, esse consenso foi construído entre os anos de 1940 e 1970. Quarenta

anos de estudos históricos, ao longo dos quais é possível detectar a elaboração de uma

história da disciplina. Cumpre investigar como esse consenso se estabeleceu, considerando,

como hipótese, que a maneira como a história da história foi contada nesse período se

diferencia do modo como isso ocorreu antes e se mantém até os dias atuais, ainda que

novas formas de abordagem tenham surgido a partir de meados dos anos 1970 e ao longo

dos anos 1980. Refletir sobre as mutações na maneira de contar essa história é importante

para o objetivo proposto, que é compreender a construção da identidade do historiador

Capistrano de Abreu, através do modo como ele foi lido e lembrado.

7.2. Tal história, qual memória?

Ao longo do século XIX e das primeiras décadas do XX, a história da história era

contada através de narrativas memorialísticas, como aquelas que o IHGB produziu sobre si

mesmo, lembrando suas origens, seus principais nomes e contribuições.29

Também podia

ser contada através de necrológios, como aquele que Capistrano de Abreu escreveu sobre

Francisco Adolfo de Varnhagen, considerado como o “pai fundador” da historiografia

brasileira;30

e por meio de uma crítica literária dedicada ao exame da produção

historiográfica e capaz de estabelecer marcos referenciais, como demonstram os artigos de

28

Um outro olhar sobre a historiografia oitocentista, pode ser encontrado, por exemplo, nos trabalhos de:

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro e o projeto de uma História Nacional”. Estudos Históricos – Dossiê Caminhos da Historiografia.

Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, 1988, p. 5-27; Idem. “Reinventando a tradição: sobre antiquariado e escrita da

história”. Humanas – Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Porto Alegre, IFCH,

vol. 23, n. 1/2, 2000, p. 111-143; SCHAPOTCHNIK, Nelson. “Como se escreve a história?”. Revista

Brasileira de História. São Paulo, vol. 13, n. 25/26, set. 1992 / ago. 1993, p. 72-73; SILVA, Taíse Tatiane

Quadros da. “A escrita científica da história no Brasil oitocentista: breve reflexão sobre o método em

Francisco Adolfo de Varnhagen”. Anais do XX Simpósio da ANPUH-RJ: História e Biografias. Rio de

Janeiro, ANPUH, 2002, www.uff.br/ichf/anpuhrio/anais.htm. 29

Ver, por exemplo: IHGB. “Breve notícia sobre a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”.

Revista do IHGB, vol. 1, 1839, p.3-7; AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira de. “Os precursores”. Revista do

IHGB, Suplemento em homenagem ao quinqüagenário do IHGB, vol. 51, n. 78, 1888, p. 49-53; IHGB.

“Memórias do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Revista do IHGB, vol. 65, n. 105, 1902, p. 337-

526, entre outros. 30

ABREU, Capistrano de. “Sobre o Visconde de Porto Seguro”. In: _____. Ensaios e estudos: crítica e

história, 4a série. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, MEC, 1976, p. 131-147. Originalmente

publicado na Gazeta de Notícias, dos dias 21-22-23/11/1882; Idem. “Necrológio de Francisco Adolfo de

Varnhagen, Visconde de Porto Seguro”. In: _____. Ensaios e Estudos, 1a série. Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira; Brasília, MEC, 1975, p. 81-91. Originalmente publicado no Jornal do Comércio, 16-20 /12/1878.

280

João Ribeiro, por exemplo.31

Tais textos, mesmo que indiretamente, produziram uma

história-memória sobre a disciplina, nem sempre crítica, nem sempre apologética,

selecionando e omitindo nomes e obras. Por vezes, estabeleceram relações verticais entre

os nomes relacionados ao estudo histórico, fazendo prevalecer certas influências e não

outras.

Ao longo dos anos trinta e quarenta, o investimento do Estado na organização da

cultura produziu o reconhecimento de um rol de historiadores nacionais, cujas trajetórias

serviram como uma espécie de modelo para a compreensão do trabalho historiográfico

realizado até então. As homenagens prestadas aos historiadores do Brasil pelo jornal A

Manhã – órgão oficial do governo Vargas – são bons exemplos desse empreendimento,

que garantiu um lugar na memória para certos nomes, como o de Varnhagen, João

Francisco Lisboa, Capistrano de Abreu, João Ribeiro etc., excluindo outros tantos.32

Trabalho de seleção e exclusão inevitável, mas que pode e deve ser permanentemente

repensado.

Nesse mesmo período despontou um tipo de produção, que são as já mencionadas

histórias do pensamento e da literatura, às vezes compostas como simples catálogos de

nomes e obras; outras vezes como um amplo contexto no qual esses mesmos nomes e

obras são inseridos. Em meio a essa bibliografia, que incluía histórias da literatura e das

idéias, sem distinção clara para a história intelectual, havia também uma história da

história no Brasil. Datam dos anos quarenta e cinqüenta os primeiros trabalhos de José

Honório Rodrigues sobre o assunto, tais como: Teoria da história do Brasil (1949) e A

pesquisa histórica no Brasil (1952). Por muito tempo, a obra de Rodrigues serviu como

referência obrigatória para o conhecimento da história da disciplina, caracterizado pelo

arrolamento de nomes e obras; pelo esforço de periodização, com o objetivo de estabelecer

as fases do pensamento e apontar as condições de produção; e pela apresentação das

ligações entre a historiografia e determinadas teorias da história.

A década de trinta também foi marcada pela criação das faculdades de filosofia,

ciências e letras, cujos primeiros frutos foram colhidos na década seguinte,33

momento em

que a produção de Honório Rodrigues começou a ser divulgada, estabelecendo os marcos

da história da disciplina, que persistem até hoje, ainda que seja possível observar certa

31

RIBEIRO, João. Obras – Crítica, volume VI: Historiadores. Organizado por Múcio Leão. Rio de Janeiro,

Academia Brasileira de Letras, 1961. 32

Ver GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro, FGV, 1996. 33

O marco inicial do ensino superior de história é a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da

Universidade de São Paulo, em 1934. Ver MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-

1974). 1a edição 1977. São Paulo, Ática, 1994, p. 24. 8

a edição.

281

mudança no modo de abordar a historiografia a partir de meados da década de 1970,

sobretudo, ao longo dos anos 1980. Supostamente, a mudança nos estudos sobre a

produção historiográfica ocorreu sem abandonar a história da história no Brasil já

consolidada, uma vez que os mesmos nomes e obras são comumente lembrados,

garantindo a persistência de certo consenso. Em outras palavras, os estudos históricos

produzidos entre os anos 1930 e 1970 foram revistos, com o apoio de novas chaves de

leitura, vertentes interpretativas e pesquisa empírica. Contudo, o mesmo talvez não possa

ser dito a respeito da história da história, cujos marcos, aparentemente, permaneceram.

É preciso lembrar com Amaral Lapa, que, durante muito tempo, a análise dos

estudos históricos esteve quase sempre entregue a historiadores da literatura. No entanto,

em meados dos anos setenta já era possível identificar um conjunto de pesquisadores

dedicados ao estudo da historiografia. Esse conjunto é identificado no quadro a seguir, que

recupera a divisão proposta por Lapa:

Classificação dos estudos sobre historiografia brasileira,

segundo José Roberto do Amaral Lapa (1976)

1) Análises gerais qualitativas da

produção e/ou das dificuldades dos

estudos históricos

Alice Canabrava, Francisco Iglesias

Nélson Werneck Sodré

2) Análises qualitativas setoriais,

por temas ou períodos

Caio Prado Júnior, Cecília M.

Westphalen, Charles M. Boxer, E.

Bradford Burns, Giselda Mota, J. R.

do Amaral Lapa, Luís Lisanti,

Odilon Nogueira de Matos, Otávio

Tarquínio de Souza, Pedro Moacyr

Campos, Sérgio Buarque de

Holanda, Stanley Stein, Thomas E.

Skidmore, Vitorino Magalhães

Godinho

3) Análise crítica da(s) ideologia(s)

da História do Brasil, com

proposição de classificação dos

historiadores e periodicidade da

evolução do pensamento histórico

(gerais e setoriais)

Carlos Guilherme Mota, Emília

Viotti da Costa, José Honório

Rodrigues, Pedro de Alcântara

Figueira

4) Levantamentos descritivos,

gerais ou setoriais, do quadro

referencial

Américo Jacobina Lacombe,

Eurípedes Simões de Paula, Hélio

Vianna Fonte: LAPA, J. R. do Amaral. A história em questão: historiografia brasileira

contemporânea. Petrópolis, Vozes, 1976, p. 22.

282

A partir da produção desses historiadores, Lapa identifica a existência de certo

consenso a respeito da história da História no Brasil, no que diz respeito à análise das

condições de trabalho, dos momentos decisivos para a escrita da história e dos grandes

nomes e obras. Além disso, o autor afirma, sempre com base em tais estudos, que, entre os

autores que mais influenciaram os estudos históricos, a partir dos anos 1940, estava

Capistrano de Abreu. Nascido em meados do século XIX, ele é visto como uma exceção,

uma vez que os trabalhos mais influentes na produção universitária desde então haviam

sido produzidos por intelectuais nascidos no início do século XX: Sérgio Buarque de

Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, José Honório Rodrigues e Nélson Werneck

Sodré.34

Outro ponto importante: analisando os estudos históricos desenvolvidos na

Universidade de São Paulo – que durante décadas foi o mais importante centro de ensino

superior de história do país – e aqueles financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa

do Estado de São Paulo (FAPESP), entre os anos de 1940 e 1970, Lapa conclui que a

pesquisa histórica universitária brasileira privilegiou o estudo do período colonial por

quase quarenta anos. Isso permite pensar que a obra de Capistrano encontrou grande

espaço de divulgação nas universidades. Corroborando essa idéia está o fato de que os dois

primeiros professores que se sucederam na cadeira de História do Brasil da USP foram

Afonso d‟Escragnolle Taunay e Alfredo Ellis Júnior, dois renomados estudiosos do

período colonial e membros da Sociedade Capistrano de Abreu (1927-1969),35

sendo que o

primeiro também foi seu discípulo e correspondente.

Em estudo mais recente, Lúcia Maria Paschoal Guimarães confirma a importância

de Capistrano como referencial para os estudos históricos nos anos quarenta, através da

análise do programa do IV Congresso de História do Brasil, organizado pelo IHGB, em

1949. Da valorização do período colonial à escolha das temáticas, prevalece a influência

do referido historiador.36

Considerando o que foi visto até aqui, é possível afirmar que as interpretações sobre

a história da história no Brasil e sobre Capistrano de Abreu, produzidas entre os anos 1940

e 1970 surgiram em meio a: 1) dúvidas a respeito da fertilidade de uma história das idéias

34

LAPA, José Roberto do Amaral. A história em questão: historiografia brasileira contemporânea.

Petrópolis, Vozes, 1976, p. 24, 60 e 80. O autor lembra que a obra desses influentes historiadores foi

construída fora dos cursos de história das faculdades de filosofia. 35

Sobre a Sociedade Capistrano de Abreu, ver o capítulo 2. 36

GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. “IV Congresso de História Nacional: tendências e perspectivas da

história do Brasil colonial (Rio de Janeiro, 1949)”. Revista Brasileira de História, vol. 24, n. 48, jul. / dez.,

2004, p. 145-170.

283

ou de uma história intelectual no país; 2) uma série de interpretações negativas sobre a

produção historiográfica anterior a 1930; 3) parcos estudos sobre a história da disciplina,

na maior parte dedicados à listagem de nomes e obras, assim como, à periodização; 4) um

conjunto de empreendimentos por parte do estado no sentido de organizar a cultura

nacional, estabelecendo seus marcos principais, assim como, apontando seus principais

agentes. Nesse mesmo período, o nome de Capistrano foi lembrado por uma série de

biografias37

e artigos, assim como, pela edição e reedição de seus escritos.

Na década de 1970 – época da construção das pós-graduações38

–, é possível

detectar um esforço no sentido de avaliar a historiografia até então produzida, como

demonstram, por exemplo, os balanços elaborados por Francisco Iglésias (1971), Carlos

Guilherme Mota (1977) e José Roberto do Amaral Lapa (1976).39

Ou ainda, os debates

promovidos pela Universidade de Brasília, em 1974 – visando discutir A Historiografia

Brasileira nos últimos quarenta anos –, e pela Sociedade Brasileira para o Progresso da

Ciência (SBPC), que em sua XXVII Reunião, em 1975, teve a produção historiográfica no

Brasil como um dos temas centrais. De modo geral, tais avaliações foram unânimes ao

constatar a pobreza da historiografia brasileira.40

Em 1976, José Roberto do Amaral Lapa publicou A história em questão, com o

objetivo de analisar os problemas relativos à produção historiográfica em sua época.

Capistrano de Abreu é citado na parte que trata das relações entre o modernismo e a

37

As cinco biografias sobre Capistrano de Abreu localizadas foram publicadas nos anos de 1931, 1953

(duas), 1956 e 1969. Sobre essa produção, ver o capítulo 3. 38

Como é sabido, os cursos universitários de pós-graduação foram criados na década de 70, tornando-se

responsáveis, a partir de então, pela maior parte da produção historiográfica do país. Isso ocorreu sob duas

notórias influências, já apontadas: a do marxismo e a da historiografia francesa, representada pela “escola”

dos Annales. Segundo Carlos Fico e Ronald Polito, no primeiro caso, não se tratou tanto de um investimento

em reflexões epistemológicas ou elaborações conceituais, mas, principalmente, da criação de um micro-clima

acadêmico. No segundo caso, parece ter havido certa defasagem entre aquilo que era produzido na França –

onde ocorriam discussões sobre a chamada “nova história” – e a difusão no Brasil de problemáticas

relacionadas, sobretudo, à primeira fase dos Annales. FICO, Carlos e POLITO, Ronald. “A historiografia

brasileira nos últimos 20 anos – tentativa de avaliação crítica”. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A velha

história: teoria, método e historiografia. 1996, p. 191. 39

Ver: IGLÉSIAS, Francisco. “A pesquisa histórica no Brasil”. Revista de História, vol. 43, n. 88, out./dez.

1971, p. 373-415; MOTA, Ideologia da cultura brasileira, op. cit.; LAPA, A história em questão, op. cit. 40

De acordo com Fico e Polito, a consolidação dos cursos de pós-graduação em história ocorreu durante a

década de 80, quando se observa: a ampliação da bibliografia utilizada por historiadores; a multiplicação de

enfoques teórico-metodológicos; a predominância da história social e econômica, com aumento de interesse

pelo período republicano; o desenvolvimento da história regional etc., além de novas relações com o mercado

editorial, o que favoreceu a divulgação de parte da produção historiográfica. Ao mesmo tempo, observa-se a

sofisticação das interpretações marxistas, bem como, a presença de enfoques guiados pela filosofia francesa

pós-estruturalista, marcada, principalmente, pelos trabalhos de Foucault. Ver FICO e POLITO, op. cit. Sobre

as mutações da historiografia brasileira nos anos 1980, ver, também: GOMES, Ângela de Castro. “História,

historiografia e cultura política no Brasil”. In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda Baptista e

GOUVÊA, Fátima Silva (Orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de

história. Rio de Janeiro, FAPERJ / MAUAD, 2005, p. 21-44.

284

historiografia, iniciada com a seguinte afirmativa: “até pelo menos a década de 20 a

Historiografia brasileira é basicamente a mesma do século XIX”. Nesse cenário marcado

pelo continuísmo, Capistrano é apontado como um “exemplo excepcional”, pois se trata de

“alguém que sempre procurou estar sincronizado com o pensamento histórico estrangeiro,

sem conseguir contudo aplicar na dimensão desejada as teorias e modelos que leu e

naturalmente assimilou”.41

Apesar dessa “falha”, trata-se de um nome referencial, pois:

Não haviam aparecido ainda obras que renovassem as técnicas de investigação, as fontes e

temas eram sempre os mesmos, o autodidatismo imperava, ficando o trabalho mais

sistemático a cargo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e dos diferentes Institutos

Históricos dos Estados. Assim, a Historiografia brasileira entra no século XX dominada por

um nome tutelar: Capistrano de Abreu. Nessas condições ela se projeta (...) pelo menos até

a década de 20 (...).42

A inclusão de Capistrano como um marco para se pensar a produção historiográfica

anterior aos anos 1930 se dá através da obra de José Honório Rodrigues e de balanços

como aqueles propostos por Sérgio Buarque de Holanda no início dos anos cinqüenta; por

Alcântara Figueira, no início dos setenta; e, esse, elaborado por Amaral Lapa, em 1976, só

para citar alguns exemplos. Deve-se distinguir, no entanto, que, enquanto Figueira atribui a

Capistrano um papel conservador, Lapa procura apresentá-lo como alguém que

efetivamente contribuiu para a transformação da historiografia no Brasil, rompendo com

conservadorismos. Em ambos os casos, não se trata de uma análise sistematizada da obra

de Capistrano ou de parte dela. O que parece ocorrer é a incorporação de uma memória

sobre a escrita da história e os historiadores do Brasil na esfera da reflexão historiográfica.

Memória que vinha sendo constituída desde o final do século XIX, quando Capistrano

despontou como uma figura relevante no cenário intelectual da então Capital da República.

Memória alimentada por sucessivos discursos elaborados após a morte do historiador, em

1927: dos necrológios às biografias. Memória submetida a diferentes olhares críticos, mas

sustentada pela mesma ausência de estudos densos sobre a produção de Capistrano e de

seus contemporâneos.

Mesmo reconhecendo a importância do levantamento realizado por José Honório

Rodrigues – que estabelece uma cronologia e identifica os principais nomes e obras do

41

LAPA, A história em questão, op. cit., p. 69-70. 42

Ibidem, p. 70.

285

período – e da tese de Alcântara Figueira – que se detém sobre uma produção

historiográfica pouco valorizada, desenvolvida entre 1900 e 1930 –, não se pode esquecer

que, até meados dos anos setenta, havia poucos estudos sobre a produção historiográfica do

século XIX e início do XX interessados em analisar uma obra ou parte dela ou em

relacionar autores e obras a um determinado contexto de produção. Supostamente, isso se

deve ao fato de que é muito difícil distinguir a produção propriamente historiográfica do

período em questão, uma vez que aqueles que se dedicavam à escrita da história também

escreviam sobre outros assuntos, como geografia, etnografia, zoologia, botânica,

mineralogia etc. Além disso, apesar do valor atribuído à pesquisa em arquivos e à

utilização de métodos científicos como aspectos capazes de identificar os historiadores e,

por conseguinte, delimitar o campo de estudos históricos, por vezes, tais estudos não

circulavam na forma de livros, o que dificulta o trabalho de levantamento da produção. Era

comum a divulgação de pesquisas históricas através de jornais, revistas e prefácios e,

também, das notas para novas edições de livros e documentos antigos, que podiam servir

como espaço de revisão da historiografia e de proposição de novas interpretações.

Mas, essa ausência de estudos também parece ter relação com o desprezo pela

produção do período anterior aos anos 1930, mais lembrada em função daquilo que não

produziu ou do que elaborou de modo “equivocado” ou “deficiente”. Tal desprezo, por sua

vez, estaria vinculado ao processo de invenção de uma tradição capaz de legitimar o ensino

e a pesquisa histórica produzida nas faculdades de filosofia, criadas na década de trinta.

Assim:

Cada geração reinventa o legado que deseja assumir como seu legado presente, e essa

tarefa cria a necessidade de repensar a história, especialmente para aqueles que a tomaram

como o exercício de um ofício, de uma profissão e de um magistério. Nesse mesmo

movimento, repensam as regras de seu ofício, redefinem as práticas que viabilizam o

conhecimento do passado, reinventando a própria operação histórica num cenário de

tensões e conflitos, a partir do qual a disputa pelo passado remete às disputas pela

significação do próprio presente.43

A lacuna nos estudos sobre a história da história no Brasil foi preenchida com uma

interpretação que a memória havia consolidado através das grandes sínteses sobre a

43

GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. “Um historiador à margem: Fustel de Coulanges e a escrita da

história francesa no século XIX”. In: HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de

Coulanges. Rio de Janeiro, UFRJ, 2003, p. 9.

286

história literária e das idéias, qual seja: a escrita da história anterior aos anos 1930 deu

continuidade à produção do século XIX, caracterizada, de modo geral, como “positivista”.

Explicação simplista, mas eficaz para o objetivo de construir uma versão da história da

história no Brasil que se divide em antes e depois dos anos trinta, diga-se, antes e depois

das faculdades de filosofia, ciências e letras, centros de um saber com o qual as novas

gerações de profissionais da história deveriam se identificar.

Mas, ao longo dos anos setenta, mesmo prevalecendo uma visão negativa da

produção intelectual (incluindo a historiográfica) e literária anterior à década de trinta, é

possível observar algumas mudanças no modo de lidar com a história das idéias e dos

intelectuais no Brasil. No campo da Sociologia surgiram importantes pesquisas sobre tais

temas, a partir da segunda metade da década e ao longo dos anos oitenta. Um exemplo são

os trabalhos de Sérgio Miceli, Poder, sexo e letras na República Velha (1977) e

Intelectuais e classe dirigente no Brasil, 1920-1945 (1979), que contribuíram para alargar

o horizonte das análises, em uma época marcada pela visão de um mundo intelectual como

incapaz de produzir interpretações próprias e adequadas à realidade nacional, por estar

submetido às idéias estrangeiras e/ou preso a ideologias reacionárias.44

No campo da história, Literatura como missão (1983), de Nicolau Sevcenko abriu

caminho para novas pesquisas e influencia ainda hoje os estudos sobre intelectuais e idéias.

Adotando uma perspectiva interdisciplinar, com ênfase na história da cultura, o autor

construiu uma tipologia dos “homens de letras” que viveram o final do século XIX e o

início do XX, em função de sua posição e atuação social. A atenção se dirige para a

atmosfera cultural da cidade do Rio de Janeiro, em relação à qual, a produção dos letrados,

com suas demandas e expectativas, é avaliada. A análise da literatura ressalta suas

implicações políticas e sociais, num momento em que esse tema não tinha lugar entre

historiadores.45

À primeira vista, essa mutação nos estudos sobre literatura, idéias e intelectuais não

parece ter repercutido sobre os estudos a respeito da historiografia e da história da história,

guiados por outros interesses e referenciais. Contudo, deve-se observar que, de acordo com

os balanços existentes sobre a historiografia brasileira contemporânea, não era grande o

44

LIMA, “Da existência precária”, op. cit.; MOTA, Ideologia da cultura brasileira, op. cit. 45

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.

1a edição 1983. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, edição revista e ampliada; ver, também, a entrevista

do autor em MORAES, José Geraldo Vinci de e REGO, José Marcio (Entrevistadores). Conversas com

historiadores brasileiros. São Paulo, Ed. 34, 2002, especialmente, p. 342-343.

287

volume de estudos sobre a historiografia brasileira ou sobre a história da história no país

produzidos até os anos 1970.46

No final dessa década, Nilo Odália observou que:

Pensar o fato historiográfico não tem sido uma preocupação muito corrente entre os

escritores brasileiros, que se dedicam ao campo da história. De maneira geral, nossos

historiadores ostentam uma visível negligência em relação ao que lhes antecede como

produção histórica. Esse estado de coisas é ainda mais grave quando nos situamos no plano

da reflexão histórico-filosófica. Pouca coisa existe no campo da reflexão epistemológica.

(...) Falta-nos, sem dúvida, uma história da historiografia, que poderia servir como uma

ponte de ligação entre o que se faz e o que se fez.47

A ausência de estudos não impediu o estabelecimento de uma versão da história da

história que tem Capistrano de Abreu como um marco referencial, ao lado de Varnhagen,

visto como seu antípoda. Também não impossibilitou algumas afirmativas categóricas, tais

como aquela que rotula a historiografia anterior aos anos 1930 como “positivista”, ou

ainda, aquelas que falam do “servilismo metodológico e problemático em que se realiza a

prática histórica de nossos historiadores” (a “tendência centrífuga da nossa historiografia”)

e da sua “congênita pobreza”.48

Mesmo compartilhando as interpretações negativas acerca da escrita da história no

Brasil, o próprio Amaral Lapa chama a atenção para a necessidade de quebrar o pacto

consensual a respeito da história da historiografia ou o “caráter repetitivo dos modelos

analíticos, em relação aos perfis e às obras mais significantes”. Também critica o que vê

como iconoclastia: o desprezo pela produção historiográfica anterior a 1930. Considerando

que, em sua época, a historiografia brasileira vivia um momento de autocrítica, Lapa

afirma:

46

Entre os trabalhos sobre historiografia brasileira, produzidos ao longo dos anos 1970 e 1980, estão: O

silêncio dos vencidos: memória, história e revolução (1981), de Edgar de Decca; O fazer e o saber na obra de

José Honório Rodrigues (1976), de Raquel Glezer; João Francisco Lisboa: jornalista e historiador (1977), de

Maria de Lourdes Mônaco Janotti; A história em questão: historiografia brasileira contemporânea (1976), de

José Roberto do Amaral Lapa; Nação e civilização nos trópicos (1988), de Manoel Luiz Salgado Guimarães,

entre outros. Sobre Capistrano de Abreu, destacam-se: Capistrano de Abreu: a fase cientificista (1976), de

Arno Wehling; Padrões explicativos da historiografia brasileira (1985), de Denise Bottmann; Ronda

noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu (1988), de Ricardo Benzaquen de Araújo. 47

ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira

Vianna. [1979]. São Paulo, Unesp, 1997, p. 11. 48

Ibidem, p. 12; LAPA, A história em questão, op. cit., p. 191.

288

Quando os historiadores e outros cientistas sociais verberam os que fizeram ou fazem a

História pretérita ou um certo tipo de História feito no passado, estão muitas vezes, mas

não sempre, inconscientemente cometendo além de uma incriminação ideológica, um

escorregão epistemológico. Dessa maneira, embora se possa aceitar, pelo avanço da própria

ciência, que agora conhecemos mais e melhor o objeto histórico do que antes, e isso pode

portanto significar que estamos mais próximos da certeza e da verdade, por outro lado

temos que admitir que não chegamos a esse conhecimento diretamente, num salto, mas

queimando custosamente as etapas anteriores.49

Após fazer um levantamento dos estudos sobre a historiografia brasileira

produzidos entre as décadas de 1950 e 1970,50

o autor conclui que não conseguiu ir além

de 53 títulos. Entre esses, dezesseis foram escritos por um único historiador: José Honório

Rodrigues, enquanto os outros trinta e cinco foram escritos por 29 autores.51

Isso ajuda a

confirmar a idéia de que a leitura da produção historiográfica brasileira e da história da

disciplina teve na obra de José Honório uma referência fundamental. Cumpre situar, ainda

que brevemente, o modelo de história da disciplina por ele proposto, procurando

compreender o lugar de Capistrano nessa história.

7.3. Capistrano de Abreu na história da história no Brasil

José Honório Rodrigues (1913-1987) se destaca como o pesquisador que mais se

dedicou ao exame da produção historiográfica brasileira. Bacharel em Direito, trabalhou no

Instituto Nacional do Livro (1939-1944), sob a direção de Sérgio Buarque de Holanda. Fez

cursos na Universidade de Columbia na década de quarenta e foi professor do Instituto Rio

Branco (1946-1956), da Faculdade de Ciências Econômicas do Estado da Guanabara, da

49

Em meados da década de setenta, a possibilidade de quebra desse consenso era fornecida, de acordo com

Lapa, pelas proposições de Pedro de Alcântara Figueira e Carlos Guilherme Mota, ambos empenhados na

crítica da ideologia. Mais exatamente, o autor se refere a dois trabalhos: a Historiografia Brasileira: 1900-

1930 (Análise crítica), de Pedro de Alcântara Figueira (1973) e A historiografia brasileira nos últimos

quarenta anos: tentativa de avaliação crítica (1975), de Carlos Guilherme Mota. O primeiro, uma tese de

doutorado defendida da Faculdade de Filosofia de Assis, que não chegou a ser publicada. O segundo, um

artigo publicado em revista acadêmica que, posteriormente, veio a compor a introdução do livro Ideologia da

cultura brasileira, lançado em 1977. Ver LAPA, A história em questão, op. cit., p. 190-191 e 194-195. 50

O levantamento feito por Lapa só incluiu os estudos sobre historiografia geral do Brasil, além de alguns

trabalhos sobre temas e períodos determinados. Deixou de fora as pesquisas sobre historiografia local e

regional, assim como, aquelas que tratam de um autor ou obra isolados. 51

Detalhando um pouco mais, observa-se que a maior parte dos trabalhos localizados (35) foi produzido a

partir da década de 1960, enquanto 18 foram escritos até 1958. Segundo o autor, o primeiro levantamento

sistemático sobre a produção historiográfica brasileira foi o Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros,

publicado em 1949.

289

Universidade Federal Fluminense, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da

Universidade de Brasília, por curtos períodos. Também foi bibliotecário do Instituto do

Açúcar e do Álcool (1945); pesquisador do arquivo do Ministério das Relações Exteriores

(1949-1950); diretor da Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional (1946-1958) e do

Arquivo Nacional (1958-1964). Sua produção vastíssima foi classificada por Francisco

Iglésias em cinco grupos: teoria, metodologia e historiografia; história de temas; ensaios

historiográficos; obras de referência; e edições de textos.52

Capistrano de Abreu teve lugar em muitos de seus escritos, como objeto

privilegiado ou, em alguns casos, apenas como um entre outros nomes que ajudaram a

compor a história da história no Brasil. É possível dizer que José Honório estabeleceu as

linhas mestras para a leitura da produção de Capistrano, ao definir suas contribuições para

a historiografia brasileira e, ao mesmo tempo, ao situá-lo em relação a uma tradição de

estudos históricos. Tal investimento pode ser observado, por exemplo, durante a

comemoração do I Centenário de Nascimento do historiador, em 1953. Como foi visto no

capítulo dois, sua conferência Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira (1953),

proferida ao longo do Curso Capistrano de Abreu, organizado pelo Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro durante o centenário, contribuiu para perpetuar o nome de

Capistrano como um precursor da moderna historiografia no Brasil.53

Durante a conferência, José Honório menciona um artigo de Eduard Spranger

dedicado ao 90o aniversário do historiador alemão Friedrich Meinecke, que considera

como “o maior historiador europeu”. Essa referência ajuda a compreender o papel que José

Honório deseja dar a Capistrano de Abreu, que se encontra explícito no trecho de Spranger

que escolheu para citar:

Não reconheceríamos sua força [a da consciência histórica] se a considerássemos apenas

como essencialmente reprodutiva. Muito mais do que isso, o grande historiador constrói o

mundo espiritual que começa nele de maneira indissolúvel. A vida, de cuja compreensão

ele se apropriou, torna-se imediatamente uma força presente e formadora do futuro. Pois só

52

Sobre José Honório Rodrigues e seu papel na construção de uma história da História no Brasil, ver:

IGLÉSIAS, Francisco. “José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira”. Estudos Históricos. Rio de

Janeiro, n. 1, 1988, p. 55-78. 53

RODRIGUES, José Honório. “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”. Revista do IHGB, vol.

221, out./dez. 1953, p. 120-138. Conferência pronunciada em 07/10/53 no IHGB, por ocasião do I Centenário

de Nascimento do historiador. Texto reproduzido em: ABREU, Capistrano de. Correspondência I.

Organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. 2a edição; 1

a edição 1953. Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira; MEC-INL, vol. 1, 1977, p. 37-56. Coleção Octalles Marcondes Ferreira (Estudos Brasileiros), vol.

8.

290

o que é explicado e compreendido torna livre o homem. Assim, o verdadeiro historiador

liberta seus contemporâneos da pressão de um passado que simplesmente pesa sobre eles.54

Após reproduzir tal opinião sobre o papel libertador do historiador, José Honório

associa a história a dois sentimentos ambivalentes: o promovido pela catarse, que livra os

homens do peso do passado, e o propiciado pela memória, que conserva o “legado” ou o

“tesouro espiritual” necessário à construção do futuro. A partir dessa colocação, é possível

supor que, para José Honório, o papel do historiador seria o de promover a consciência

histórica, atuando tanto na libertação quanto na conservação do passado. Ou seja, tal papel

pressupõe o exercício de duas funções, que o autor considera complementares: a crítica e a

memória, relacionadas a um contínuo processo de desconstrução e construção da história.

Capistrano de Abreu teria sido “a mais lúcida consciência da historiografia brasileira”, por

ter desempenhado bem ambas as funções.55

Em meio a diferentes vozes reunidas durante o Centenário de Capistrano, José

Honório Rodrigues procura conjugar o elogio – característico dos momentos de

comemoração – com a crítica historiográfica. Essa conjugação entre memória e

historiografia talvez sirva como exemplo de que a história da história não se limita a

mostrar que a disciplina foi construída unicamente a partir da produção de conhecimentos

objetivos, de acordo com estudos sistemáticos e critérios científicos.

Segundo Fernando Catroga, o crescimento da importância social e política da

história (como disciplina, forma de conhecimento e de escrita) foi acompanhado tanto pela

produção de conhecimentos científicos, quanto pelo uso da memória, sobretudo, na etapa

da difusão do conhecimento.56

Nas palavras do autor:

54

SPRANGER apud RODRIGUES, “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”, op. cit., p. 138. 55

RODRIGUES, ibidem, p. 138. 56

Catroga lembra as diferenças e semelhanças entre a memória e a história. A primeira é axiológica,

fundacional e tem por objetivo sacralizar ou reatualizar o passado, de modo a fundir, no presente, a

subjetividade e a objetividade. Já a segunda, constitui uma operação intelectual crítica, que visa desmistificar

e laicizar as interpretações, com o objetivo de explicar ou compreender, fazendo uso de argumentação

racional e supondo a diferença entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Contudo, também haveria muitos

aspectos semelhantes entre ambas, tais como: a seletividade, o presentismo, o finalismo, a construção de

representações, a ênfase no verossímil etc. Supondo a relação de analogia entre história e memória, o autor

propõe pensar a escrita da história como um “rito de recordação”, argumentando que, tal como os ritos de

memória, “a historiografia também nasceu como um meio de combate contra o esquecimento, ou melhor,

como uma nova ars memoriae exigida pela decadência da transmissão oral e imposta pela crescente

afirmação da racionalidade e da escrita”. Assim como a memória, “a escrita (e a leitura) da história se

constrói a partir de traços e de re-presentações que visam situar, na ordem do tempo, algo que se sabe ter

existido, mas que já não existe”. Catroga leva em conta que a historiografia contemporânea reconhece a

impossibilidade do vazio entre o sujeito-historiador e seu objeto, o que contribui para matizar as pretensões à

verdade total e definitiva. Ver CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra, Quarteto,

2001, p. 40-42 e 50-51.

291

(...) a historiografia também funciona como fonte produtora (e legitimadora) de memórias e

tradições, chegando mesmo a fornecer credibilidade cientificista a novos mitos de

(re)fundação de grupos e da própria nação (reinvenção e sacralização das origens e de

momentos de grandeza simbolizados em “heróis” individuais e coletivos).57

Isso pode ser pensado em relação à própria história da história, capaz de produzir

memórias e legitimar tradições, estabelecendo marcos de ruptura capazes de distinguir a

“velha” e a “nova” historiografia; sustentando a autoridade de determinados grupos,

instituições e indivíduos na produção do conhecimento e na escrita da história; garantindo

a pertinência e credibilidade de determinadas interpretações e, até mesmo, produzido seus

mitos e heróis. Sendo assim, é possível supor que “também a historiografia, apesar de falar

em nome da razão, se edifica, voluntária ou involuntariamente, sobre silêncios e

recalcamentos”.58

O projeto historiográfico de José Honório Rodrigues parece ser um bom exemplo

dessa conjunção entre memória e historiografia. De acordo com Francisco Iglésias, tal

projeto tinha por objetivo desenvolver uma obra tríptica, composta por teoria, pesquisa e

historiografia.59

Em outras palavras, o plano envolvia a publicação de livros sobre esses

três temas, com uma finalidade pedagógica: formar os historiadores nacionais, ensinando-

os a pesquisar e a escrever a história, através do exemplo dos “mestres”. No prefácio da

primeira edição do livro Teoria da História do Brasil (1949), o autor apresenta seu

objetivo:

(...) dar aos alunos uma idéia mais exata do que é a história, de seus métodos e de sua

crítica, da bibliografia e historiografia brasileiras, de modo a prepará-los para um

conhecimento crítico da história do Brasil. (...) Há, assim, um fim pedagógico como

objetivo primordial deste trabalho; procura-se oferecer aos estudantes de história geral e do

57

CATROGA, Memória, história e historiografia, op. cit., p. 50. 58

Ibidem, p. 45; ver, também, BLANKE, “Para uma nova história da historiografia”, op. cit., p. 32-35. 59

Além desse projeto dedicado à escrita e publicação, também é preciso lembrar o empenho de Rodrigues na

idealização e criação de instituições dedicadas ao estudo da história, tais como o Instituto Nacional de

Pesquisa Histórica, que tinha como principal objetivo “estimular a pesquisa histórica oficial e pública no

Brasil e no estrangeiro”, organizando instrumentos de trabalho, inventariando documentos e contribuindo

para a formação profissional de pesquisadores de história. Ver: RODRIGUES, José Honório. “Instituto

Nacional de Pesquisa Histórica”. In: _____. A pesquisa histórica no Brasil. 1a edição 1952. São Paulo,

Companhia Editora Nacional; Brasília, INL, 1969, p. 237-250. 2a edição revista e aumentada. Outro projeto

caro a Rodrigues era a escrita de uma história do Brasil, algo idealizado e não realizado por ele e por outros

historiadores, como Capistrano de Abreu, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Ver IGLÉSIAS,

Francisco. Historiadores do Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira; Belo Horizonte, UFMG, IPEA, 2000, p.

220.

292

Brasil, aos professores secundários, aos estudiosos ocupados com a história concreta, uma

visão de conjunto dos principais problemas de metodologia da história. Da história do

Brasil, tão somente, já que os exemplos ilustrativos são puramente brasileiros. (...) Uma

verdadeira compreensão do ensino superior da história exige o contato do estudante com os

grandes e pequenos mestres (...).60

Alguns anos depois, em 1952, o autor deu seqüência ao projeto com o lançamento

de um novo livro: A pesquisa histórica no Brasil. No prefácio da segunda edição, de 1969,

o autor recorda o plano inicial:

Este livro faz parte da série iniciada em 1949, que se comporia de três estudos

complementares sobre a Teoria (e o Método), a Pesquisa e a Historiografia, e que nunca foi

concluída, porque não pude finalizar a historiografia. Espero agora, numa mesma série,

oferecer os três volumes pela mesma editora em que estreei em 1940. A historiografia –

História da História do Brasil, será composta de três volumes: historiografia colonial,

historiografia nacional, e historiografia e ideologia. Finalmente espero ter forças para

completar minha História Moderna do Brasil, em forma sintética e documentada.61

A monumentalidade do projeto de José Honório pode ser medida não apenas pelas

intenções explícitas de conjugar o exame da teoria, da pesquisa e da historiografia

brasileira em um único projeto e atingir um público amplo – composto por estudantes

universitários de história e professores secundários –, mas pela forma de divulgação,

através da importante coleção Brasiliana, dedicada a publicar estudos nacionais e

estrangeiros sobre o Brasil, com destaque para pesquisas históricas. Tal empreendimento

teve participação efetiva no movimento de “redescobrimento do Brasil” ocorrido ao longo

dos anos 1930 e 1940.62

Conforme foi visto no capítulo 2, entre 1931 e 1969 (data das

últimas publicações), a coleção publicou 211 autores e 307 títulos, que tratavam de

assuntos diversos, tais como: história, geografia, biografia e memória, educação, folclore,

arqueologia etc. É interessante notar que, ao longo desse período, 89 dos trabalhos

60

RODRIGUES, José Honório. “Prefácio da 1a edição” [1949]. In: _____. Teoria da História do Brasil:

introdução metodológica. São Paulo, Companhia Editora Nacional; Brasília, INL, 1978, p. 11 e 13. 4a edição.

Coleção Brasiliana (Série Grande Formato). 61

RODRIGUES, A pesquisa histórica no Brasil, op. cit., p. 15. 62

Ver: PONTES, Heloísa. “Retratos do Brasil: editores, editoras e „Coleções Brasiliana‟ nas décadas de 30,

40 e 50”. In: MICELI, Sérgio (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo, Vértice, 1989, vol.

1, p. 359-409.

293

publicados foram escritos por 41 membros da Sociedade Capistrano de Abreu, entre os

quais, José Honório Rodrigues.63

Através de um amplo projeto, José Honório expôs as linhas gerais para a

interpretação da história da história do e no Brasil, listando nomes e obras, estabelecendo

uma cronologia da produção historiográfica, tecendo relações entre essa produção e

algumas teorias da história etc. Tal projeto possui uma clara função crítica. Seu alvo

principal é a historiografia que o autor considera distante dos interesses nacionais, incapaz

de dar conta do processo de emancipação do país. Em sua opinião, essa historiografia a ser

ultrapassada só tem olhos para a história colonial, não sendo capaz de desenvolver seu

oposto: a história nacional. A primeira não se referindo unicamente ao período colonial

(embora tal período seja privilegiado), mas a uma escrita da história inspirada por valores

estrangeiros e compromissada com a difusão de ideologias anti-nacionais. A segunda, que

ainda não estaria plenamente desenvolvida, representaria o pensamento genuinamente

brasileiro. Segundo o autor:

(...) a historiografia brasileira é um espelho de sua própria história. A historiografia, como

outros ramos do pensamento e da atividade humanos, está inegavelmente integrada na

sociedade de que é parte. Há, assim, uma estreita conexão entre a historiografia de um

período e as predileções e características de uma sociedade. O nexo é econômico e

ideológico.64

Os dois elementos básicos para a compreensão da história brasileira e de sua

historiografia seriam a “personalidade básica portuguesa e a sociedade rural”. Ou seja, a

historiografia seria a expressão do “Brasil arcaico”, como demonstra o interesse pela fase

colonial e o apego à Europa. Tal perspectiva teria marcado as primeiras décadas do século

XX, havendo um marco de ruptura: Capistrano de Abreu.65

Defensor de uma história combatente, dedicada a responder às demandas do

presente, José Honório dava especial atenção ao problema da emancipação brasileira, que

ainda julgava incompleta. Daí a importância política da história, vista como “um dos meios

mais populares e efetivos de reunir apoio ou oposição ao curso controvertido de uma ação

pública”. O saber histórico deveria atender às necessidades da vida (diga-se, do presente),

63

Ver referência ao assunto no capítulo 2. A Brasiliana integrava a Biblioteca Pedagógica Brasileira

dirigida por Fernando de Azevedo entre 1931 e 1958, quando passou a ser dirigida por Américo Jacobina

Lacombe, que também era membro da Sociedade Capistrano de Abreu. 64

RODRIGUES, Teoria da história do Brasil, op. cit., p. 32. 65

Ibidem, p. 32-34.

294

desenvolvendo seu potencial pragmático. Tal afirmação é uma constante em seus

trabalhos, o que ajuda a compreender o papel atribuído aos historiadores em geral e a

Capistrano de Abreu em particular.66

De acordo com José Honório:

É especialmente com Capistrano de Abreu que se inicia a historiografia nova, expressão do

Brasil novo, pois ao escrever os Caminhos antigos e o povoamento do Brasil (1899), tema

colonial ainda, ele rejeita a ênfase sobre as origens européias e as relações européias. Seu

tema é inteiramente nacional, pois convida os historiadores brasileiros a não centralizar o

seu interesse nas comunidades do litoral, mas no interior, no próprio Brasil arcaico, é

verdade, mas nas origens autônomas do Brasil novo: as minas, as bandeiras, os caminhos.

A rejeição colonial está implícita no próprio tema colonial.67

Capistrano teria sido “o mais caboclo dos nossos historiadores”, não tanto por suas

origens – como reforçam os necrológios, escritos comemorativos e as biografias do

historiador, analisados na primeira parte da tese – mas porque possuía uma “visão

nacional” da história, mesmo sendo informado pelas doutrinas alemã, francesa, inglesa

etc.68

Em outras palavras, é possível dizer que José Honório investiu na caracterização de

um historiador nacional exemplar, de um modo distinto daqueles vistos anteriormente. Se,

para os autores dos necrológios, textos celebrativos e biografias, a origem

indígena/sertaneja de Capistrano tinha grande valor, pois ajudava a sustentá-lo como um

símbolo da brasilidade ou como um modelo de intelectual genuinamente brasileiro, para

José Honório importa mais ressaltar os aspectos de sua consciência nacionalista. Essa

interpretação ajuda a sustentar a proposição de uma “nova” tradição de estudos históricos

nacionais iniciada por Capistrano.

Fundamentalmente, José Honório procurou desenvolver um exercício crítico que

considerava fundamental: o revisionismo. Esse deveria ser aplicado tanto aos fatos

históricos quanto às idéias, ou melhor, às ideologias.69

É interessante notar que, um dos

66

Ibidem, p. 37; Idem, “As tendências da historiografia brasileira e as necessidades da pesquisa” [1965]. In:

_____. Vida e História. São Paulo, Perspectiva, 1986, p. 65. 67

Idem, Teorias da História do Brasil, op. cit., p. 34. 68

Idem, “Duas obras básicas de Capistrano de Abreu: os Capítulos de história colonial e Caminhos antigos e

povoamento do Brasil”, in Vida e História, op. cit., p. 97. Originalmente publicado como introdução da

edição conjunta das duas obras de Capistrano, publicadas pela Universidade de Brasília. Ver, também: Idem.

“Um historiador caboclo e sua obra: Capistrano de Abreu”. In: _____. História combatente. Rio de Janeiro,

Nova Fronteira, 1982, p. 226-232. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, 17/12/1977. 69

RODRIGUES, “As tendências da historiografia brasileira...”, op. cit., p. 62-63. Ver, também, IGLÉSIAS,

“José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira”, op. cit., p. 65; e MARQUES, Ana Luiza. José

Honório Rodrigues: uma sistemática teórico-metodológica a serviço da História do Brasil. Rio de Janeiro,

PUC – Dep. de História, dissertação de mestrado, 2000, p. 5.

295

significados do termo revisar é “ver com atenção, examinar cuidadosamente”, fazendo

correções. Outro significado é “trazer à memória, relembrar, recordar”. Esse duplo viés,

crítico e memorialístico, ajuda a dimensionar o projeto de José Honório e a compreender o

que ele identifica como o legado de Capistrano para a historiografia brasileira. Um dos

itens mais caros desse legado seria, justamente, o revisionismo. De acordo com o autor,

Capistrano havia sido o impulsionador desse exercício crítico (e memorialístico), ao

examinar a obra de seus antecessores e contemporâneos. Supostamente, José Honório dá

continuidade ao processo iniciado por aquele que considerava como o grande mestre da

historiografia brasileira do início do século XX.70

Sendo assim, é possível dizer que, além da função crítica, o projeto de José Honório

também desenvolve uma função memorialística (ou exemplar). Tal função pode ser

reconhecida na listagem de autores e obras consideradas mais importantes, capaz de criar

modelos (de historiografia e de historiadores) ilustrativos, a partir dos quais se estabelece a

cronologia da disciplina. Também pode ser identificada na suposição do autor de que o

papel do historiador é tanto livrar os homens do presente do peso do passado – por meio da

consciência histórica e de uma historiografia crítica –, como conservar o “legado”

necessário para a construção do futuro.71

Além de investir na caracterização de Capistrano como um historiador modelar e

precursor de uma “nova historiografia”, José Honório também realizou um extenso

trabalho de organização da obra do historiador, uma produção fragmentada, em sua maior

parte dispersa por jornais, revistas e prefácios de diferentes publicações. Também se

empenhou na árdua tarefa de reunir sua correspondência ativa e passiva. Mesmo tendo

escrito sobre vários outros historiadores, como Afonso Taunay, Rodolfo Garcia, Otávio

Tarquínio de Sousa etc.,72

nada se compara ao trabalho realizado em torno de Capistrano.

José Honório foi o único prefaciador das dez (re)edições de seus trabalhos. Sobre um deles

escreveu:

70

RODRIGUES, “As tendências da historiografia brasileira...”, op. cit., p. 62. 71

Como foi dito na introdução da tese, Horst Walter Blanke identifica três funções da história da

historiografia: a função afirmativa, a função crítica e a função exemplar. A função afirmativa é observada na

defesa da historiografia estabelecida (ou oficial). A história da disciplina é contada de modo a valorizar o

ponto de vista detentor da posição político-científica considerada legítima. A função crítica estaria presente

na crítica das posições estabelecidas ou da historiografia vista como tradicional. Já a função exemplar teria

por objetivo a elaboração de ilustrações para a história da disciplina. Ver: BLANKE, “Para uma nova história

da historiografia”, op. cit., p. 34-35. Observando as interpretações de José Honório sobre a história da história

no Brasil, é possível notar que as três funções indicadas por Blanke estão simultaneamente presentes,

demonstrando que a construção da história da história envolve procedimentos complexos, que dizem respeito

à história e à memória, sendo difícil definir tal história a partir de uma única função. 72

Ver, por exemplo: RODRIGUES, José Honório. História e historiadores. São Paulo, Fulgor, 1965; idem.

História e historiografia. Petrópolis, Vozes, 1970.

296

A reedição dos Ensaios e Estudos de Capistrano de Abreu é um grande serviço histórico-

cultural que se presta às novas gerações de estudiosos da história do Brasil (...). Espero que

estes Ensaios caindo nas mãos da nova geração desperte-lhes o amor pelo Brasil, que o

velho caboclo, que se transformou num scholar e num gelehrte [sábio, erudito], soube

sempre cultivar, pois nosso País precisa cada vez mais de compreensão, e só a

conseguiremos numa visão a longo prazo, que a história é a única a nos dar.73

Para José Honório, Capítulos de história colonial (1907), Caminhos antigos e

povoamento do Brasil (1899) e as edições críticas da História do Brasil, de Frei Vicente do

Salvador (1918) e da História Geral do Brasil, de Varnhagen (1906), são os quatro

trabalhos que se distinguem na obra de Capistrano. Os Capítulos são vistos como “a mais

perfeita síntese jamais realizada na historiografia brasileira. É um livro para todos, que

todos podem e devem ler mais de uma vez”. Quanto aos Caminhos antigos e povoamento,

“definiram os roteiros da época colonial, explicaram a articulação de várias capitanias,

mostraram um campo novo na historiografia (...) são, para a historiografia brasileira, o que

The Frontier in American History [1893] de F. Turner é para a historiografia americana”.

Já as edições de Frei Vicente e Varnhagen “são uma conversa para eruditos, o mais sério e

o mais perfeito exemplo de crítica histórica, com todo o rigor da metodologia alemã”.74

Sobre a correspondência do historiador, publicada em três volumes, afirmou: “Para

a História e a Historiografia e para a biografia de Capistrano de Abreu, esta

correspondência é inestimável”.75

Como foi visto na segunda parte da tese, as cartas de

Capistrano são apresentadas como um acervo precioso tanto para a biografia quanto para a

historiografia brasileira, pois deixam ver os métodos de trabalho do historiador, assim

como, o desenvolvimento das pesquisas, a vida e a política no Brasil, entre o final do

século XIX e as primeiras décadas do XX. Graças a José Honório, a correspondência de

Capistrano (ativa e passiva) pôde ser reunida e publicada, passando a integrar sua obra, não

apenas como um escrito íntimo, mas como um tipo de estudo do Brasil. É assim que a

correspondência aparece ao lado de outros trabalhos na Coleção Octalles Marcondes

Ferreira, série Estudos Brasileiros.

73

Um dos textos publicados na 1a série dos Ensaios e Estudos, o necrológio de Francisco Adolfo de

Varnhagen, escrito em 1878, é considerado por José Honório como “o começo da historiografia brasileira”.

Ver RODRIGUES, José Honório. “Nota liminar”. In: ABREU, Capistrano de. Ensaios e Estudos: crítica e

história, 1a série. 1

a edição 1931. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975, p. 11. 2

a edição.

74 Idem, “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”, op. cit., p. 135-136.

75 Idem. “Introdução”. In: ABREU, Capistrano de. Correspondência. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira;

Brasília, MEC, 1977, vol. 1, p. 15. Coleção Octalles Marcondes Ferreira: Estudos Brasileiros, vol. 8.

297

Em suma, entre os fatores que influíram na perpetuação do nome de Capistrano,

destaca-se a atuação do próprio historiador na construção de si mesmo (como indivíduo,

intelectual e historiador) e os investimentos dos contemporâneos do homenageado,

conforme foi visto na segunda e na primeira parte da tese, respectivamente. A geração

posterior a Capistrano, que participou da organização dos primeiros cursos universitários

no Brasil, também contribuiu ao construir a história-memória da disciplina, elegendo

figuras-referenciais a serem lembradas e, também, esquecidas. O nome de Capistrano

manteve-se vivo para essa geração, apesar de uma progressiva rejeição da produção

literária, científica e intelectual anterior à década de 1930. Essa rejeição colocou a

produção dos “homens de letras” da virada do século, entre eles, Capistrano, sob suspeita

de deficiências ou incompletudes. José Honório revisou essa historiografia, apontando suas

principais contribuições. Diante de um exemplo de erudito, que em vida era considerado

como o maior historiador do país, mas cuja produção era bastante dispersa – a ponto do

historiador carregar a pecha de não ter escrito, efetivamente, uma história do Brasil – o

autor tomou para si a tarefa de organizar-lhe a obra a ser lida e lembrada como um marco

da história da história.

Mais do que analisar os referenciais teóricos presentes na historiografia brasileira,

apontar seus principais nomes e obras, destrinchar seus métodos e traçar um panorama da

pesquisa histórica em nosso país, apresentando seus principais arquivos e fontes

documentais, o que José Honório parece visar é a construção de uma tradição

historiográfica em meio a qual, talvez, ele mesmo pudesse se inserir, não apenas como um

entre outros historiadores, mas como aquele que organiza o legado e aponta caminhos para

futuras pesquisas.76

Supostamente, ao construir sua versão da história da história, ele

também reservou um lugar para si, pois “tinha consciência do valor de sua obra e esperava,

sem modéstia, figurar no futuro entre os grandes da História e da Historiografia

brasileiras”.77

Sendo assim, compreende-se que o problema da identidade do historiador – que

envolve autoconsciência e reconhecimento78

– tem relação com a construção da história da

disciplina, que define legados e alimenta tradições. Nesse trabalho construtivo, a produção

de José Honório se destaca, sendo possível percebê-lo como uma espécie de “guardião da

76

Sobre a relação dos intelectuais com a tradição, ver, por exemplo: SHILS, Edward. “Intellectuals,

Tradition, and the Traditions of Intellectuals: some preliminary considerations”. Daedalus – Journal of the

American Academy of Art and Sciences, vol. 101, n. 2, spring 1972, p. 21-34. 77

RODRIGUES, Leda Boechat apud MARQUES, José Honório Rodrigues, op. cit., p. 5, nota 17. 78

FALCON, Francisco José Calazans. “A identidade do historiador”. Estudos Históricos – Dossiê

Historiografia. Rio de Janeiro, vol. 9, n. 17, 1996, p. 7-30.

298

memória e da história”,79

que estabeleceu os marcos referenciais da historiografia no

Brasil, garantindo a Capistrano o papel de precursor de um tipo de história com a qual as

gerações pós-1930 poderiam se identificar. Sobretudo, é possível dizer que José Honório

construiu não apenas uma história da história, mas uma obra historiográfica80

e uma figura

exemplar de historiador, afirmando que tal historiador havia sido capaz de inspirar os

estudiosos de sua própria época e que poderia orientar os historiadores do presente e do

futuro.

79

Sobre a noção de “guardião da memória”, ver BARROS, Myriam Moraes Lins de. “Memória e Família”.

Estudos Históricos – Dossiê Memória. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 29-42; e POLLAK, Michel.

“Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos – Dossiê Memória. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,

p. 3-15. 80

As Obras de Capistrano de Abreu correspondem aos dez volumes organizados e prefaciados por José

Honório Rodrigues, publicados pela editora Civilização Brasileira em convênio com o Ministério da

Educação e Cultura. Como já foi dito, as Obras integram a Coleção Octalles Marcondes Ferreira, série

Estudos Brasileiros.

299

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