Gomes, M. (2004) Velhos Mapas, Novas Leituras

13
GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, pp. 67 - 79, 2004 VELHOS MAPAS, NOVAS LEITURAS: REVISITANDO A HISTÓRIA DA CARTOGRAFIA Maria do Carmo Andrade Gomes* *Pesquisadora da Fundação João Pinheiro e Doutoranda em História pela UFMG. E-mail: [email protected] RESUMO: O artigo trata do processo de renovação teórica e metodológica que atingiu o campo da história da cartografia nas duas ou três últimas décadas. A partir de um profundo questionamento do estatuto de objetividade e transparência dos mapas, os novos estudos e pesquisas tratam os documentos cartográficos como objetos técnicos, produtos de construções sociais e culturais e meios de comunicação dotados de linguagem visual própria. O artigo aponta os principais autores, eventos e idéias que promoveram essa nova história da cartografia, um movimento rico e multifacetado ainda pouco conhecido no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: História da Cartografia; Teoria da Cartografia; Cartografia Histórica; Metodologia ABSTRACT: The article deals with the theoretical and methodological innovation that has taken place in the field of the history of cartography in the last two or three decades. By questioning the statute of objectivity and transparency of maps, new studies and researches consider cartographic documents as technical objects, products of social and cultural constructions, and means of communication based on a visual language of their own. The article points out to the main authors, events, and ideas that promoted this new history of cartography, a multifaceted and rich movement still little known in Brazil. KEY WORDS: History of Cartography; Cartographic Theory; Old Maps; Methodology. “... o mapa tornou-se um objeto opaco, que retém o olhar sobre ele mesmo. O mapa entrou na era da suspeita. Ele perdeu sua inocência. Não se pode mais, atualmente, considerar a história da cartografia sem uma dimensão antropológica, atenta à especificidade dos contextos culturais, e teórica, que reflita sobre a sua natureza de objeto e os seus poderes intelectuais e imaginários.” Christian Jacob O presente artigo busca traçar um painel sobre as recentes contribuições metodológicas e epistemológicas de um campo de conhecimento ainda muito pouco explorado no Brasil: a história da cartografia. Domínio interdisciplinar por excelência, a história da cartografia tem passado por um profundo processo de renovação nas duas ou três últimas décadas e qualquer reflexão sobre o mesmo deve empreender um corte transversal por diferentes campos temáticos, países e tradições

description

*****

Transcript of Gomes, M. (2004) Velhos Mapas, Novas Leituras

  • GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 16, pp. 67 - 79, 2004

    VELHOS MAPAS, NOVAS LEITURAS: REVISITANDO A HISTRIADA CARTOGRAFIA

    Maria do Carmo Andrade Gomes*

    *Pesquisadora da Fundao Joo Pinheiro e Doutoranda em Histria pela UFMG. E-mail: [email protected]

    RESUMO:O artigo trata do processo de renovao terica e metodolgica que atingiu o campo da histria dacartografia nas duas ou trs ltimas dcadas. A partir de um profundo questionamento do estatutode objetividade e transparncia dos mapas, os novos estudos e pesquisas tratam os documentoscartogrficos como objetos tcnicos, produtos de construes sociais e culturais e meios decomunicao dotados de linguagem visual prpria. O artigo aponta os principais autores, eventose idias que promoveram essa nova histria da cartografia, um movimento rico e multifacetadoainda pouco conhecido no Brasil.

    PALAVRAS-CHAVE:Histria da Cartografia; Teoria da Cartografia; Cartografia Histrica; Metodologia

    ABSTRACT:The article deals with the theoretical and methodological innovation that has taken place in thefield of the history of cartography in the last two or three decades. By questioning the statute ofobjectivity and transparency of maps, new studies and researches consider cartographic documentsas technical objects, products of social and cultural constructions, and means of communicationbased on a visual language of their own. The article points out to the main authors, events, andideas that promoted this new history of cartography, a multifaceted and rich movement still littleknown in Brazil.KEY WORDS:

    History of Cartography; Cartographic Theory; Old Maps; Methodology.

    ... o mapa tornou-se um objetoopaco, que retm o olhar sobre elemesmo. O mapa entrou na era dasuspeita. Ele perdeu sua inocncia. Nose pode mais, atualmente, considerar ahistria da cartografia sem uma dimensoantropolgica, atenta especificidade doscontextos culturais, e terica, que reflitasobre a sua natureza de objeto e os seuspoderes intelectuais e imaginrios.

    Christian Jacob

    O presente artigo busca traar um painelsobre as recentes contribuies metodolgicase epistemolgicas de um campo deconhecimento ainda muito pouco explorado noBrasil: a histria da cartografia. Domniointerdisciplinar por excelncia, a histria dacartografia tem passado por um profundoprocesso de renovao nas duas ou trs ltimasdcadas e qualquer reflexo sobre o mesmodeve empreender um corte transversal pordiferentes campos temticos, pases e tradies

  • 68 - GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 16, 2004 GOMES, M. C. A.

    cientficas. Busca-se dar conta desse movimentorico e multifacetado, mas sem ambio decompletude ou de balano global das produes,dada sua diversidade e contemporaneidade1 .

    I - A constituio da histria da cartografiacomo disciplina

    O gegrafo ingls J. Brian HARLEY (1987),um dos tericos que mais influenciaram oprocesso renovador da histria da cartografia(HC), em um dos seus ensaios seminais, mostroucomo esse campo disciplinar consolidou-se aolongo do sculo XIX, quando se intensificou ointeresse pela pesquisa dos mapas antigos,enquanto uma arena distinta da cartografiacontempornea. Segundo esse autor, o impulsoprincipal desse movimento crescente,especialmente aps 1850, decorreu daemergncia e institucionalizao da Geografiaenquanto cincia, aliado ao crescimento dosacervos cartogrficos das naes em formaoe ao desenvolvimento, na Europa e nos EstadosUnidos, de um mercado antiqurio de mapas. Odesenvolvimento da Geografia e o surgimentodas bibliotecas especializadas em mapasantigos, favoreceram a infra-estruturainstitucional para o estudo histrico dacartografia, enquanto que os colecionadoresprivados e o comrcio de antiqurioscontriburam na pesquisa e na escrita da HC,ainda que marcada pela nfase excessiva naapreciao artstica dos mapas, especialmenteda Renascena.

    Esses fatores condicionaram os objetivose mtodos da histria da cartografia e moldaramparte essencial da tradio acadmica dadisciplina, at meados do sculo XX.Considerada como um campo auxiliar da histriada Geografia, a qual, por sua vez, compreendiabasicamente a histria dos descobrimentos edas exploraes, a histria da cartografiatradicional permaneceu marcada por essaorigem, e epistemologicamente condicionadapela idia de que deveria servir primeiramentepara tornar os documentos cartogrficosacessveis a outros domnios do conhecimento.Como exemplo, publicaes de atlas com fac-smiles permaneceram importante objetivo ao

    longo de todo o perodo. Quanto aosbibliotecrios especialistas, sua maiorcontribuio para a HC, alm, claro, dadisponibil izao dos documentos, foi aconstruo de um campo especfico, obibliogrfico (publicao de catlogos,introduo de listas de mapas como elementoscentrais nos atlas fac-similares). Os estudosclssicos em HC sempre tiveram uma fortedimenso bibliogrfica, que se mantm aindahoje. As bibliotecas especializadas tambmcontriburam atravs da promoo deexposies, quase sempre acompanhadas pelapublicao de catlogos. A terceira fora nodesenvolvimento da HC desde o sculo XIX, ocomrcio antiqurio, tambm teve seu impactohistoriogrfico, pela publicao dos atlas fac-similares e de bibliografias especializadas, almde ter exercido forte influncia no aparecimentode uma face popular da histria da cartografia.

    No mesmo estudo, Harley mostrou como,a partir dos anos 1930, a HC afirmou-se comoum campo de estudos com sua prpriaidentidade acadmica, afastando-segradativamente da fase anterior. Essa mudanadecorreu de trs fatores: a publicao dehistrias gerais da cartografia, com intenesde sntese; a influncia da Imago Mundi, entoa nica revista internacional devotada ao tema;e, mais importante, a emergncia da cartografiacomo uma disciplina acadmica e uma atividadeprtica independente da Geografia, providas deestruturas tericas que reforaram a razo deser da histria da cartografia.

    Como as principais obras de sntese sobrea histria da cartografia2 permaneceram muitorestritivas em suas anlises, com excessivanfase na produo da Renascena, e a revistaImago Mundi, apesar de sua qualidade, noconseguiu superar sua tendnciaeuropocntrica, pouco mudou na histria dacartografia no tocante ao seu alcancegeogrfico e nacional.3 Os maiores avanos naconstruo da HC, como um campo acadmicoprprio, estariam relacionados ao crescimentoda cartografia como objeto de pesquisa e comoatividade prtica independentes. A promoo dacartografia gerava oportunidades de encontros

  • Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a histria da Cartografia, pp. 67 - 79 69

    e publicaes sobre a HC. A cartografiaacadmica funcionou como um fermentointelectual, oferecendo novas bases filosficase tericas, alm de um gama de tcnicasprprias para o estudo dos mapas antigos. Aidia de se conceber os mapas como meios decomunicao, um dos princpios maisimportantes dessa interao.

    Harley identificou trs sinais de umamudana em curso na HC no perodo,decorrentes do moderno pensamentocartogrfico: o interesse no significado daspalavras mapa e cartografia, ou seja, nadiscusso conceitual que seria o futuro motorda renovao da HC; a abordagem dos mapascomo artefatos, e a nfase nos processostcnicos de sua produo e; a abordagem dosmapas antigos como meios de comunicao. Asnovas teorias consideravam o mapeamentocomo uma cincia cognitiva que envolviacomunicao entre o cartgrafo e o usurio. Nosanos setenta, esse caminho j estavasedimentado, com maior nfase na cartografiacomo um processo, do que nos mapas comoprodutos acabados. Os cartgrafos tericospassaram a refinar seus conceitos atravs dasemiologia, construindo paralelos entrecartografia e linguagem, e explorando asdimenses cognitivas da comunicaocartogrfica.

    As duas maiores preocupaes doscartgrafos - os aspectos tcnicos e acomunicao refletiram-se nos textos da HC.Historiadores da cartografia, eram desafiadosa focar mais na natureza de artefato do mapae menos no seu contedo geogrfico. Umahistria tcnica dos mapas passou a serdefendida, assim como uma histria datecnologia se destacou da histria da cincia.O interesse nos mapas antigos, como meios decomunicao levou a processo semelhante. Nose tratava de uma idia nova, mas no haviauma base terica nem interlocuo com outrasdisciplinas como a histria da arte, a literaturaou a antropologia social. Em meados dos anos70, o tema dos mapas como meios decomunicao e como linguagem grfica j tinhacrescente espao na HC.

    Se as bases conceituais para umaprofunda rediscusso da HC estavam assimdelineadas, os suportes institucionaispermaneceram frgeis, com poucos espaosformalizados nas universidades. At o incio dosanos 1980, o crescimento da disciplina pode seravaliado pelas atividades dos indivduos, quedesenvolveram uma autoconscincia comohistoriadores da cartografia, como um invisiblecollege. Outros passos na institucionalizao daHC incluram: o desenvolvimento de sociedadesnacionais e internacionais, a promoo deencontros, o estabelecimento da InternationalCartographic Association Commission for theHistory of Cartography, e a produo crescentede artigos que discutiam questesmetodolgicas e promoviam uma avaliaocrtica dos objetivos da HC. A tendncia maisimportante de todo esse processo era, aindasegundo Harley, a autocrtica em curso sobre aausncia de bases tericas e metodolgicas dahistria da cartografia tradicional. Um novoesprito crtico surgia, no apenas na Inglaterrae nos EUA, mas em muitos pases com tradiona HC, como, Holanda, Itlia e Alemanha4 .

    II - Balizas do processo de renovao: idias,livros, eventos e personagens

    Com um profundo questionamento doconceito e do estatuto de objetividade dosmapas, o processo de renovao, ou maispropriamente, o alargamento dos horizontestericos e metodolgicos da histria dacartografia, pode ser claramente observadoentre as dcadas de 1980 e 1990, com ricosdesdobramentos no momento atual. Comotodo movimento ligado ao trnsito das idias,muitos fatores contriburam para seu impulso edesenvolvimento.

    II.1 - Projetos institucionais abrem oscaminhos

    Como marcos cronolgicos iniciais,podemos identificar duas obras monumentaisque, mesmo em suas diferenas, foramigualmente frteis na proposio de caminhos:de um lado, a exposio cartogrfica promovida

  • 70 - GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 16, 2004 GOMES, M. C. A.

    pelo Centro Georges Pompidou e seu respectivocatlogo, denominado Cartes et figures de laTerre, publicado na Frana em 1980; de outro,o projeto enciclopdico iniciado em 1982 naUniversidade de Chicago5 , sob o ttulo TheHistory of Cartography Project.

    A iniciativa francesa - exposio epublicao - reuniu uma constelao depesquisadores para analisar os mapas nos seusmais diversos ngulos. Como explicou Jean-Loup Rivire no prembulo do catlogo, naquelemomento, apesar de ser uma imagem quepovoava nosso cotidiano, o mapa permanecia,ele mesmo, uma terra incognita. Riviresublinhou a ambio sinptica da obra,entendida como um ponto de partida, como umconvite observao dos mapas. Tanto aexposio, como o catlogo, buscaram exprimira diversidade das abordagens no domnio dacartografia, e no seguiram uma ordemcronolgica ou temtica. Propuseram uma visitae uma leitura em diagonal do conjunto demapas, as quais contrabalanavam trs pontosde vista: viajar, que concebia o mapa como umsistema de imagens a servio da relao dohomem com o territrio; levantar, voltado paraas operaes de leitura do territrio, suatraduo, sua transcrio; decidir, que mostravao mapa como instrumento de controle poltico,de gesto e transmisso de conhecimento. Fiela esse programa a um s tempo enciclopdicoe especulativo, o catlogo apresenta uma sriede ensaios muito diferenciados em suaslinguagens, tamanho e estrutura narrativa.Podemos dizer que quase nenhum tema ouabordagem, que nos anos futuros seriam amarca da renovao da histria da cartografiaesteve ausente dessa obra inaugural.

    J o projeto angl-americano, ainda hojeem pleno desenvolvimento, lanou um ambiciosoprograma de renovao epistemolgica dahistria da cartografia a partir da publicao degrandes volumes seriados, cujos recortes foramdefinidos em termos dos diferentes perodos etradies culturais no campo da cartografia. Ahistria praticada na coleo, segundo seusautores e organizadores iniciais - Brian Harleye David Woodward -, tinha como fundamentos,

    um conceito renovado de mapa, e umcompromisso com a discusso sobre osmltiplos processos que geraram diferentesformas e contedos nos mapas. Opunha-se perspectiva tradicional da disciplina, voltadaquase exclusivamente para a cartografiaocidental, europocntrica, e fundada na crenade uma evoluo linear das representaescartogrficas. Como colocam os seuspromotores atuais, esse desafio coletivo,apesar das modificaes que ocorreram noprojeto, manteve sua pretenso inicial: ser umaobra de referncia abrangente e uma narrativasintetizadora e inovadora, fundada numa visoplural das tradies cartogrficas (THE HISTORYOF CARTOGRAPHY, 2003/2004).

    II.2 - Brian Harley: a histria dacartografia nunca mais seria a mesma

    Com o seu trabalho editorial frente doprojeto The History of Cartography, Brian Harleyconsolidou o seu papel como o mais influenteintelectual no campo da histria da cartografiade sua poca. J consagrado historiador daGeografia e da cartografia, Harley passou apublicar trabalhos dedicados discusso tericae epistemolgica sobre o estatuto dodocumento cartogrfico e sobre os objetivos emtodos da HC6 . Criticou as abordagenstradicionais, as quais considerava fundadas emtrs paradigmas: o darwiniano, o old-is-beautifule o nacionalista. Harley no estava sozinhonessa empreitada e suas idias inovadorasprovocaram intenso debate no meio acadmico,produziram muitos adversrios e um maiornmero de seguidores, com granderepercusso at os dias de hoje. A partir deleituras de autores como Erwin Panofsky, RolandBarthes, Michel Foucault e Jacques Derrida,Harley formulou um novo programa para a HC.Convidou os pesquisadores a adotarem osconceitos e as posturas analticas dos filsofosfranceses na anlise dos mapas (como odesconstrucionismo), a ver os mapas comoimagens carregadas de juzo de valor, como ummodo de imaginar, articular e estruturar omundo dos homens. Harley foi um incansveldivulgador de uma concepo alargada de

  • Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a histria da Cartografia, pp. 67 - 79 71

    mapa, que no menosprezava a sua dimensotcnica, da qual era profundo conhecedor.Recusava-se, porm, a ver toda a cartografiae, conseqentemente, a sua histria, reduzidaa uma questo tcnica, como era at entotradio nesse campo disciplinar.

    Brian Harley apontou para as diferentesformas de traduzir as imagens cartogrficascomo representaes culturais carregadas demensagens polticas, seja nos seus contedosexplcitos, nas distores e ausncias, nossignos convencionais ou no claro simbolismo dasdecoraes de suas margens, cartuchos evinhetas. Sublinhou tambm a necessidade deestudos mais aprofundados sobre cadacontexto histrico especfico, para compreendercomo o poder opera atravs do discursocartogrfico, e os efeitos desse poder nasociedade.

    II.3 - Comemorao e reflexo

    Dois importantes programascomemorativos de eventos histricos foramtambm determinantes no estmulo s novasprodues e reflexes ligadas ao tema: obicentenrio da revoluo francesa em 1989 eos 500 anos da descoberta da Amrica, em1992.

    Dentro das comemoraes francesas,destacamos a publicao da srie Atlas de laRvolution Franaise, e especialmente o volumeintitulado Le territoire; ralits et rpresentations(NORDMAM e OZOUF-MARIGNIER, 1989). Essevolume discutiu o contedo do chamado espaofrancs ou, mais acertadamente, do territriofrancs, um territrio reestruturado nos anosrevolucionrios e sobre o qual se distriburamrealidades polticas, econmicas e culturais. Suarelevncia encontra-se na proposiometodolgica, que inovou ao reunir duastradies cartogrficas: de um lado, areconstituio cartogrfica a posteriori, segundofontes documentais, ou seja, a tradio dacartografia histrica; de outro, a reproduo eanlise dos documentos figurativos produzidosno momento histrico em estudo, a prpriahistria da cartografia.

    Das inmeras iniciativas de compilaodocumental e reflexo crtica, promovidas comas comemoraes dos 500 anos da chegada deColombo Amrica, parte significativa foidedicada intensa produo cartogrficadaquele momento, revelada em exposies epublicaes7 . Outros trabalhos responderam auma reflexo acadmica sobre as relaes entremapeamento, colonialismo e imperialismo8 . Umavez mais, Brian Harley esteve frente dessemovimento crtico, como exemplifica suaparticipao na exposio itinerantedenominada Maps and the Columbian Encounter(HARLEY, 1990), cuja concepo e textoexploraram o significado dos mapas entoproduzidos para ambos os lados do Atlntico.Em artigo publicado poca, Harley eWoodward propuseram mais reflexo e menoscomemorao, conduzindo sua anlise dacartografia das descobertas e da colonizaoem direo a um explcito manifesto poltico:

    (...) ao mesmo tempo em queinventariava os lugares descobertos peloseuropeus e identificava as terras para aevangelizao, o espao coordenado dosnovos mapas era instrumental naapropriao simblica do territrio dosnativos americanos. Reconhecendo ospovos indgenas como vtimas da cartografiaeuropia ns tambm reinstauramos suacontribuio nos registros cartogrficos dahistria americana (HARLEY & WOODWARD,1991:6).

    Toda a histria da cartografiadesenvolvida nos EUA nos anos noventa seriaprofundamente marcada por essa tica ps-colonialista.

    II.4 - Dois autores, um desafio comum

    Alm do marco comemorativo dos 500anos, o ano de 1992, distingue-se pelapublicao de duas obras individuais de enormerelevncia nessa vaga de reflexesepistemolgicas sobre a histria da cartografia:os livros Lempire des cartes, (JACOB, 1992) eThe power of maps (WOOD, 1992).

  • 72 - GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 16, 2004 GOMES, M. C. A.

    Em seu erudito e desafiador ensaio, opesquisador francs Christian Jacob considerouque o novo programa da histria da cartografiasomava aos seus objetos tradicionais -descobertas progressivas das partes do globo,fontes de informao e dos modelos, datao eatribuio de documentos um especialinteresse pela dimenso tcnica da carta e pelocontexto social meio dos cartgrafos, dosgravadores, dos impressores, das livrarias, dosencomendantes e dos usurios. Jacobdesenvolveu largo esforo terico naconceituao do mapa, percebido como umartefato resultante de um conjunto deoperaes e escolhas grficas (geometria,traos, imagens figurativas, ornamentos,escrita), que acionam cdigos de representaoorganizados em uma verdadeira linguagem.Esse artefato um meio de comunicao quepermite a transmisso visual de informaes quese prestam tambm a manipulaes retricas(persuaso, engano, seduo, deciso). Tantopor sua complexidade semitica como pelasinstncias sociais que o produzem, utilizam oucontrolam, o mapa um instrumento de duplopoder, no qual a eficcia no se reduz representao objetiva de um fragmento dasuperfcie. Como acontece com a linguagemescrita e falada, no se presta ateno cartano seu uso cotidiano ou tcnico. A condio desua eficcia intelectual est precisamente nessasuposta transparncia.

    Jacob discutiu tambm as possibilidadesde um novo programa epistemolgico para ahistria da cartografia. Ser sempre precisoconduzir as pesquisas na dimenso diacrnica,mas repensando o estatuto da evoluo, dasmudanas e do chamado progresso. Jacobprops uma histria que privilegiasse o objetopor ele mesmo, e no pelos seus contedosgeogrficos. Uma histria do mapa e no umahistria da descoberta da Terra.

    O livro The Power of Maps, do americanoDenis Wood, no propriamente um trabalhode ou sobre a histria da cartografia, e sim umcontundente ensaio sobre as basesepistemolgicas da prpria cartografia em finsdo sculo XX. Mas a perspectiva crtica de Wood,

    que apontou diretamente para a relao entremapa e poder, pode ser largamente aplicada sprodues e prticas cartogrficas mais antigas.Questionando a pretensa neutralidade doscartgrafos, o autor mostrou como anaturalizao dos mapas na cultura ocidental,ou seja, a aceitao de sua autoridade comoperfeita representao do territrio e fonte deinformao objetiva, foi uma construo sociale histrica. Para Wood, o mapa no registrasilenciosa e inocentemente uma paisagem, masresponde a atos deliberados de identificao,seleo e nomeao do que observado,mostrando ou escondendo elementos de acordocom os interesses em jogo no projetocartogrfico.

    II.5 - Desdobramentos: uma novaconstelao de interesses

    Deflagrado no incio dos anos oitenta, oprocesso de renovao da HC desdobrou-se emcongressos, exposies e iniciativas editoriaisdiversas, que buscaram dar vazo e impulso auma produo crescente sobre as cartografiasdos diferentes perodos histricos e regies doglobo9 .

    Os congressos e as revistasespecializadas, so os fruns de discusso erepercusso mais sensveis aos processos demudana nos seus domnios disciplinares. Nocaso da HC, destacam-se os peridicos ImagoMundi e Cartographica que, nos anos 90,reproduziram ou promoveram o debate tericoe metodolgico em curso. Nmero especial darevista Cartographica, intitulado IntroducingCultural and Social Cartography (1993), reuniuartigos sobre o tema e apontou para essa novatendncia dos estudos, voltados para asinteraes entre mapas, mapeamentos e ocontexto scio-cultural.

    A 16 Conferncia Internacional deHistria da Cartografia, ocorrida em Viena em1995, inaugurou uma sesso dedicada aosaspectos tericos da disciplina, resultado deuma carncia observada em confernciasanteriores e pontuada em artigos diversos. Emseus papers exploratrios, publicados pela

  • Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a histria da Cartografia, pp. 67 - 79 73

    Imago Mundi, Christian JACOB (1996), MatthewEDNEY (1996) e Catherine DELANO-SMITH(1996) sublinharam a necessidade de maioresaportes tericos para a superao do modelode desenvolvimento linear e progressivo dacartografia e sugeriram conceitos operatriospara tal. M. Edney afirmou que a HC eradominada por um empiricismo quedesconsiderava a necessidade de aportestericos. Baseando-se na sua prpria pesquisaem curso10 , Edney negou qualquer evidnciahistrica de um progresso linear da cartografiae incitou a comunidade dos especialistas aenfrentar esse debate terico. Christian Jacobbuscou demonstrar como a teoria determina apesquisa, as escolhas metodolgicas, suaorientao e limites. Jacob recorreu s imagensem contraste do mapa transparente aqueleque o olhar atravessa em busca de um saberexterior - e do mapa opaco aquele que retmo olhar sobre sua prpria estrutura e seusnveis de representao grfica.

    O pesquisador ingls Denis COSGROVE(1999) chegou a identificar uma exploso deinteresse e fascinao pelos mapas para almdo circuito dos especialistas, espalhando-sepelos domnios dos estudos culturais e daproduo artstica. Para Cosgrove, as novasprticas de espao decorrentes das novastecnologias, o redesenho geopoltico do globoe a superao definitiva das tcnicas tradicionaisde mapeamento conduziram a umquestionamento do estatuto de autoridade domapa no mundo contemporneo. A onda deinteresse carregou consigo um desafioepistemolgico que a histria da cartografiatradicional no poderia resolver: dar conta dacomplexidade das relaes culturais quesustentam a autoridade do mapa significavatratar o mapa como um produto cultural e inseri-lo nos circuitos de uso, troca e significao decada sociedade.

    II.6 - Trocas e emprstimos com outroscampos disciplinares

    O alargamento do objeto da nova HC nose produziu isolada ou internamente

    disciplina, mas constitui uma resposta a umprocesso de trocas e emprstimos com outroscampos disciplinares correlatos. o caso darenovao da histria da cincia, que tem sevoltado para a dimenso material, tcnica,econmica e discursiva das produescientficas. Em artigo sobre a nova histria sociale cultural da cincia, Dominique PESTRE (1995)inventariou novos objetos e abordagens comos quais podemos relacionar trabalhosespecficos de HC, como a histria dosinstrumentos, das prticas cientficas, dosprotocolos de prova, e das instituies 11 .

    A nova HC expandiu suas fronteiras paraalm da sua clssica relao com a Geografia,atingindo campos como a estatstica, como naobra de Gilles PALSKY (1996) sobre a cartografiatemtica, ou quantitativa, que se imps a partirdo sculo XIX. Informado pelos avanos tericosda semiologia grfica, o trabalho de Palskyconcebeu as cartas quantitativas como meiosde comunicao, traduzidos numa linguagemgrfica. Palsky criticou a historiografia tradicionalpor no valorizar as produes cartogrficas dosculo XIX em diante, concentrando-se nosmapas anteriores a 1800. A cartografiaquantitativa rompeu com o esquema comum deexpresso cartogrfica desenvolvida desde aRenascena, distinguindo-se da topografia etornando-se a expresso grfica da estatstica.

    Parte significativa da nova HC tambmum desdobramento das novas abordagens dahistria do imperialismo e do nacionalismo,inscritas nos chamados estudos ps-coloniais.Nessa produo revisionista, osempreendimentos cartogrficos so analisadoscomo processos estratgicos do estado-naomoderno que visavam a construo deterritrios e o controle dos seus recursos, fossempopulacionais ou naturais. O livro de JeremyBLACK, Maps and history (2000), insere-se nessagama de estudos que tomam a cartografia comoinstrumento poltico, estratgico no processo deexpanso do nacionalismo e seudesdobramento, o imperialismo. O livro trata dosatlas histricos, ou seja, do mapeamento e damapeabilidade do passado. Usualmenteconsiderados como obras de referncia (como

  • 74 - GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 16, 2004 GOMES, M. C. A.

    dicionrios, cronologias e enciclopdias), naobra de Black os atlas histricos ganhamestatuto de fonte documental. So analisadoscomo imagens visuais que concorreram nacriao e sustentao de determinadassituaes histricas, como na emergncia dasnaes modernas como comunidades polticasimaginadas.

    O interesse renovado pelos mapastambm guarda sintonia com o que apesquisadora francesa Ozouf-Marignier chamoude vaga de estudos sobre o territrio12 ,movimento que, a partir dos anos oitenta,marcou a produo francesa e se caracterizoupela reintroduo do sujeito/ator social e dadimenso temporal nos estudos geogrficos. nesse sentido que Catherine BOUSQUET-BRESSOLIER (1999) afirmou ter conduzido aTerceira Jornada de Estudos do Muse des Plans-Reliefs: a reconstituio dos contextos deproduo dos mapas foi considerada umanecessidade inescapvel da produocontempornea em histria da cartografia. Osautores convidados debruaram-se sobre temascomo formao dos cartgrafos, instrumentos,prticas de campo e atores sociais envolvidos13 .

    A forte tendncia dos novos estudos, queinserem os mapas nos seus contextossocioeconmicos, atinge tambm disciplinascomo a histria da arte, por muito tempo umcampo refratrio s mudanas. No maissuficiente, tambm para os historiadores da arte,estudar os mapas nos quadros das chamadasnational schools; agora necessrio consideraro desenvolvimento econmico, social e culturalque permitiu o aparecimento das formascartogrficas.

    II.7 - A HC atual: uma histria dosmapeamentos

    Abordar a cartografia sob o ngulo dasprticas cientificas e culturais uma tendnciaque se verifica, com especial vigor, na produoanglo-saxnica14 . No final dos anos 90, DenisCOSGROVE (1999) organizou o livro Mappings,com ensaios que privilegiavam os processos demapeamentos, explorando contextos e

    contingncias que determinaram os atos devisualizao, conceitualizao, pesquisa,representao e criao grfica de espaos. ParaCosgrove, uma histria dos mapeamentos seadequa melhor concepo do mapa como umproduto cultural, um elemento da culturamaterial.

    O livro de M. Edney, Mapping an empire(1998), pode ser citado como exemplar dessasnovas abordagens da HC. Em resenha na revistaImago Mundi, Christian Jacob (1998) considerouo trabalho de Edney como um modelometodolgico para a histria da cartografia, pelaamplido das fontes util izadas e dasinterpretaes que a pesquisa suscita. Trs fioscondutores estruturam o trabalho: uma reflexosobre o poder e a natureza dos mapas nomomento em que se d a lenta transio dastcnicas da cartografia de gabinete para umacartografia baseada na triangulao sistemticado territrio (fins do sculo XVIII e primeirasdcadas do sculo XIX); uma interrogao maisampliada sobre os atores, individuais oucoletivos, que, em graus e modalidadesmltiplas, intervem em um dado processocartogrfico; e, por fim, uma reflexo sobre olugar da cartografia na poltica colonial e noprojeto de construo de um espao imperial.

    Outra obra interessante Masters of allthey surveyed, um livro que trata, segundo oautor David BURNETT (2000), da construogeogrfica de um territrio colonial no sculoXIX, a Guiana Inglesa. Burnett, que se consideraum historiador da cincia interessado emGeografia, explorao e encontros culturais,insere os mapas num conjunto de textos-chaves, ao lado das narrativas, desenhos epinturas, que construram uma determinadaimagem da colnia inglesa.

    Tambm o trabalho de John SHORT (2001),Representing the Republic; mapping the UnitedStates, busca inserir os documentoscartogrficos num conjunto maior de fontes. Seuobjetivo estudar as prticas e as polticas derepresentao nacional e imperial atravs detextos geogrficos associados aos mapas e aosmapeamentos. Esse conjunto articulado dediscursos no s refletem o espao fsico mas

  • Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a histria da Cartografia, pp. 67 - 79 75

    constroem uma ordem social. Short mais umpesquisador a abordar as mudanas recentesda history of mapmaking, enfatizando asconexes com outros processos mais largos derepresentao na sociologia do poder ou naeconomia poltica do conhecimento.

    Estudos recentes aprofundam essa linhade argumentos, com uma crtica aos estudoscoloniais que teriam enfatizado excessivamenteo modelo centro-periferia, ocorrendo emreducionismos. A tese de Neil SAFIER (2003)insere os processos de mapeamento numa redede interaes que conectam indivduos, objetos,instituies e foras polticas num processo maislargo, complexo e multifacetado de produo deconhecimento.

    II.8 - Um trabalho inaugural no Brasil

    Pouco se tem produzido nesse campo noBrasil, quase intocado pelos debates emovimentos de renovao terica aquicomentados. A maioria dos trabalhos relativos histria da cartografia brasileira tem sidorealizada por historiadores portugueses etratam do perodo colonial, com especial nfasena cartografia dos descobrimentos15 . Podemosafirmar que, de forma ainda esparsa, algunstrabalhos acadmicos pioneiros tm surgido emresposta ao movimento de renovao ealargamento do campo da HC.

    Uma exceo a tese da gegrafabrasileira Enali DE BIAGGI (2000), intitulada LaCartographie et les reprsentations du territoireau Brsil. Ao conceber os mapas comoconstrues sociais e enfatizar sua dimensodiscursiva, De Biaggi, como tantos autores aquianalisados, se mostra devedora dasproposies tericas e epistemolgicas de B.Harley e C. Jacob. A tese apresenta um painelhistrico da produo cartogrfica no e sobre oBrasil, a partir de uma preocupaoessencialmente geogrfica, qual seja a derevelar a contribuio da cartografia naconstruo desse grande territrio. Mas a autoraempreende tambm uma investigao histricasobre os contextos cientficos e polticos queconduziram realizao das cartas geogrficas,

    colocando em evidncia os atores sociaisenvolvidos e as relaes entre a produocartogrfica internacional e a produo local. Aenvergadura temporal da pesquisa, quepercorre os quinhentos anos da histriabrasileira, necessariamente conduz a umaabordagem geral, a uma perspectiva ampla queno poderia admitir maiores aprofundamentos.Por outro lado, tal dimenso permite autoraconstruir uma primeira periodizao do tema eequilibrar sua anlise entre os diferentesperodos, escapando forte tradio dosestudos da cartografia brasileira de privilegiaro perodo colonial. A importncia do trabalho deDe Biaggi reside essencialmente no ponto devisada - para usar uma metfora cartogrfica -de sua anlise: a trajetria da cartografiabrasileira nos seus processos especficos,processos que engendram as representaesprprias do territrio brasileiro. Taisrepresentaes tm, evidentemente, origem nacartografia europia, mas so construdas emum contexto especfico, no qual a tradioocidental confrontada com uma novapaisagem, um outro contexto social, diferentesrelaes de poder e padres culturais.

    III - Consideraes finais: o mapa e suaherana distorcida

    Consideremos as reflexes do historiadorda cartografia David BUISSERET (2003), em seumais recente livro, The mapmakers quest.Buisseret comenta o incremento do nmero depesquisadores interessados em HC nas duasou trs ltimas dcadas, ao qual correspondeuum crescente entendimento da relevnciahistrica dos mapas. Entre os avanos tericosoriginados dessa vaga de interesse, Buisseretdestaca a redefinio de mapa - cujo conceitotornou-se igualmente mais extenso e maispreciso -, a preocupao com a insero dosmapas nas redes sociais e econmicas de suaproduo e, finalmente, o entendimento de queo impulso de mapear parece ser um traouniversal das sociedades humanas.

    De fato, o debate sobre o conceito demapa o fator decisivo nessa renovao da HC.

  • 76 - GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 16, 2004 GOMES, M. C. A.

    Se a Histria, enquanto disciplina, construda sobre vestgios dispersos, essaherana documental esgarada no tempo podeser ainda mais frgil, como parece ser o casodo patrimnio cartogrfico, no s quanto aosmapas propriamente ditos, mas a todo registrodocumental relativo aos mesmos, sejam pblicosou privados16 . Entendidos como objetostcnicos, utilitrios, os mapas sempre estiveramsujeitos ao crivo impiedoso da obsolescncia e,em desuso, tinham prazo de validade vencido eeram sistematicamente descartados.Especialmente aqueles que, a partir do sculoXIX, foram despojados de seus atributosornamentais e, sem o antigo apelo artstico paracolecionadores e antiqurios, no sustentavammais o interesse dos seus produtores e usuriosimediatos, como administradores, planejadoresurbanos e gegrafos, sempre vidos porinformaes atualizadas.

    Outra dificuldade est associada aosprocessos histricos de guarda e acumulaodos mapas, processos que sempre secaracterizaram pela separao dos documentosvisuais e textuais. Em termos da constituiodos acervos, essa clivagem significou aseparao dos mapas dos contextos de suaproduo documental correspondncias,processos jurdicos, relatrios tcnicos sejapelo seu alto valor no mercado antiqurio, sejapela estratgia de sigilo de estado ou mesmopelas polticas de preservao de arquivos,museus e bibliotecas, pela tradicional prtica(ainda hoje em uso) da museologizao daimagem cartogrfica em detrimento do seu valordocumental.

    Seja pela clivagem entre imagem e texto,seja pela acelerada obsolescncia ou pelaseletividade monumentalizante, os acervoscartogrficos hoje constitudos nos mais diversospases no do conta das exignciasdocumentais da nova historiografia. Esse deverser o desafio metodolgico maior a serenfrentado pelos pesquisadores empenhadosem reescrever a histria da cartografia.

    Muitas obras comeam por essa discusso(Cosgrove, Wilford, Buisseret, Harley,Woodward) que tratada em profundidade nolivro de Jacob. Para Buisseret, temos que nosconvencer que um mapa no precisa nem sergrfico nem representar a superfcie da Terra(BUISSERET, 2003: XI) e que o conceito maisaceito hoje parece se assentar simplesmentena sua qualidade de representao locativa,uma imagem locativa, ou seja, cuja primeirafuno seria fornecer uma informao delocalizao. A chave para o entendimento doaspecto mais profundo dessa renovao reside,a nosso ver, no alargamento do foco dosestudos. Ao interesse pelos mapas antigosenquanto fontes objetivas para uma outrahistria (da Geografia, da Arte ou da cincia)somaram-se os estudos do artefato cartogrficoe dos processos de mapeamento como objetosde uma histria em si mesma reveladora esignificativa. Nesses termos, o produto mapa -a imagem codificada - parte substantiva, masno exclusiva, da histria da cartografia, e oestudo do processo cartogrficonecessariamente conduz interrogaohistrica mais complexa e abrangente.

    Uma ltima questo merece ser aquicomentada. Em funo das novas basesmetodolgicas, tem crescido a preocupao comas fontes disponveis para a histria dacartografia, que no pode mais se contentar comacervos monumentais seletivos, compostospelas obras de grande apelo geogrfico ouartstico, desconectados de seus contextosdocumentais de origem. uma heranadistorcida, na expresso de COSGROVE (1999:14), distoro histrica que sempre privilegiouos mapas trabalhados artisticamente ou deimportncia estratgica, enquanto os mapas deuso cotidiano, a everyday cartography, foramsistematicamente descartados. A preservaofortemente seletiva foi um fator determinantena composio de um acervo fragmentado, quetendeu a subestimar as qualidades abertas,parciais e contingenciais do mapa enquantoobjeto em favor daquelas fechadas, totalizantese estetizantes (COSGROVE, 1999: 14).

  • Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a histria da Cartografia, pp. 67 - 79 77

    1 Este ensaio produto do estgio realizado naFrana, como parte do doutoramento em Histriapela UFMG. Nossas leituras concentraram -se naliteratura de lngua francesa e inglesa. Apesardas inmeras contribuies de outros paises comforte tradio na histria da cartografia,acreditamos que as produes aqui estudadas soextremamente significativas e do conta doprocesso de renovao terica e metodolgicaque pretendemos abordar.

    2 A partir do estudo de HARLEY (1987) podemosidentificar trs autores principais dessas obrasde sntese: BAGROW (1964), BROWN (1949) eCRONE (1953).

    3 At os anos 1980, a Imago Mundi era uma revistade especialistas no tema, concentrando seusartigos na cartografia pr-1800 e na Europa eEUA.

    4 Nesse ponto permitimo-nos discordar de B. Harley,quando este afirma que na Frana havia poucointeresse nos temas tericos da HC, entre ospoucos praticantes da disciplina. Se na Franaa constituio da disciplina enquanto campoautnomo no foi favorecida, isto se deveu muitomais a uma postura crtica em relao s histriasinternalistas do que a uma submissoempobrecedora ao campo da histria daGeografia, como sugeriu Harley. Exemplomarcante do vigor e pioneirismo terico daproduo francesa foi a exposio e a publicaodo respectivo catlogo Cartes et Figures de laTerre, que comentaremos no prximo item.

    5 A srie financiada pelas agncias The NationalEndowment for the Humanities e The NationalScience Foundation, por fundaes privadas ecolaboradores individuais.

    6 Autor prolfico, Harley publicou, at a sua morteprematura em 1991, mais de 140 artigos eensaios, alm de dezenas de resenhas econtribuies em obras coletivas. Para conhecerum pouco dessa imensa obra, ver as coletneas:GOULD (1995) e HARLEY (2001).

    7 Portugal promoveu diversos eventos nesse campopor intermdio da Comisso Nacional paraComemorao dos Descobrimentos Portugueses,como a exposio A nova Lusitnia; a cartografiado Brasil nas Colees da Biblioteca Nacional,

    subproduto do projeto Histria da Cartografia, daBiblioteca Nacional de Lisboa.

    8 Ainda que no trate do continente americano, umaprimeira e fundamental referncia nesse campo o livro de Benedict Anderson, ImaginedCommunities. O estudo de Anderson situa-seentre as novas pesquisas que empreenderam umareviso dos estudos sobre o nacionalismo noconjunto dos estudos ps-coloniais. O captulointitulado Census, Map, Museum aportousugestiva reflexo sobre as estratgiascartogrficas dos estados coloniais e o surgimentodos nacionalismos no Sudeste Asitico.(ANDERSON, 1991).

    9 importante ressaltar que a HC ainda estmarcadamente concentrada na Europa e nos EUA,como campo de elaborao e como objeto depesquisa. A abordagem histrica da cartografiados demais paises essencialmente conduzidano conjunto dos estudos sobre as atividades deexplorao das antigas colnias e da histria doimperialismo, exceo do projeto monumentale declaradamente plural The History ofCartography, acima comentado.

    10 Sua tese de doutoramento, posteriormentepublicada (EDNEY, 1997).

    11 Citamos como exemplos de trabalhos queexploram essas dimenses: BOURGUET, M. N. etal (2002) e LICOPPE (1996).

    12 Em seminrio ministrado na cole des Hautestudes en Sciences Sociales, Paris, 13/11/2003.

    13 O evento deu seqncia a dois outros encontrosimportantes promovidos sob sua coordenao: aexposio Les couleurs de la Terre e o seminriointernacional Loeil du cartographe.

    14 Cumpre salientar, ainda que de forma breve,outras reflexes que transitam por tradiesnacionais igualmente importantes, como a Itlia.Ali, desde os anos noventa, estudos ligados ecologia histrica e formao territorial do pasvem promovendo uma retomada da abordagemrealista das fontes cartogrficas, emcontraponto tica cultural e simblica quedominaria a HC na Itlia j no perodo. No setrata de uma volta ao uso das dos mapas como

    Notas

  • 78 - GEOUSP - Espao e Tempo, So Paulo, N 16, 2004 GOMES, M. C. A.

    Bibliografia

    ANDERSON, B. Census, Map, Museum. In:_____. Imagined Communities: reflections on theorigins and spread of nationalism. London:Verso, 1991.

    BAGROW, L. The history of cartography.Cambridge: Harvard University Press; London:C. A. Watts, 1964.

    BLACK, J. Maps and history; constructing imagesof the past. New Haven, London: Yale UniversityPress, 2000.

    BOURGUET, M. N., LICOPPE, C., SIBUM, O.Instruments, travel and science: itineraries ofprecision from the seventeenth to the twentiethcenturies. London: Routledge, 2002.

    BOUSQUET-BRESSOLIER, C. Le paysage descartes; gense dune codification. Actes de la3me Journe d tude du Muse des Plans-Reliefs. Paris: Muse des Plans-Reliefs, 1999.

    BROWN, L. A. The story of maps. Boston: Little,Brown, 1949.

    BUISSERET, D. The mapmakerss quest; depictingnew worlds in Renaissance Europe. Oxford:Oxford University Press, 2003.

    BURNETT, D. G. Masters of all they surveyed;exploration, geography and a british eldorado.Chicago, London: The University of ChicagoPress, 2000.

    CARTES et figures de la Terre. Paris: CentreGeorges Pompidou, Centre de crationindustrielle, 1980. [Catalogue de lexpositionprsente au Centre Georges Pompidou du 24mai au 17 novembre 1980].

    COSGROVE, D. (org). Mappings. London:Reaktion Books, 1999.

    CRONE, G. R. Maps and their makers: anintroduction to the history of cartography.London: Hutchinson University Library, 1953.

    DE BIAGGI, E. M. La cartographie et lesreprsentations du territoire au Brsil. Paris, 2000.2v. Tese (Doutorado) - Universit de Paris III -

    Sorbonne Nouvelle/ Institut des Hautes tudesde lAmerique Latine.

    DELANO-SMITH, C. Why Theory in the Historyof Cartography? Imago Mundi, v.48, 1996,p.198-205.

    EDNEY, M. H. Theory and history ofcartography. Imago Mundi, v.48, 1996, p.185-191.

    EDNEY, M. H. Mapping an empire: thegeographical construction of British India, 1765-1843. Chicago: University of Chicago Press,1997.

    EDNEY, M. H. A guide to recent trends in the historyof cartography. International Seminar on theHistory of the Atlantic World. Disponvel emwww.fas.harvard.edu/~atlantic/bibliographies/cartography/edney.html Acesso em 10/05/2004.

    GOULD, P. & BAILLY, A. Le pouvoir des cartes;Brian Harley et la cartographie. Paris:Anthropos, 1995.

    HARLEY, J. B. The new nature of maps; essays onthe history of cartography. Baltimore/ London:Johns Hopkins University Press, 2001.

    HARLEY, J. B. The map and the development ofthe history of cartography. In: HARLEY, J. B. &WOODWARD, David (eds). The history ofcartography; cartography in prehistoric, ancientand medieval Europe and the Mediterranean.Chicago, London: The University of ChicagoPress, 1987.

    HARLEY, J. B. Maps and the Columbian Encounter.Milwaukee: Golda Meir Library, 1990.

    JACOB, C. Book review of Mapping an empire.Imago Mundi, v.50, 1998, p.213-214.

    JACOB, C. Lempire des cartes; approchethorique de la cartographie travers lhistoire.Paris: Albin Michel, 1992.

    JACOB, C. Toward a cultural history ofcartography. Imago Mundi, v.48, 1996, p.191-197.

  • Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a histria da Cartografia, pp. 67 - 79 79

    LICOPPE, C. La formation de la pratiquescientifique: le discours de lexprience enFrance et en Anglaterre, 1630-1820. Paris: LaDcouverte, 1996.

    MORENO, D. Une source pour lhistoire etlarchologie des resources vgtales; lescartes topographiques de la montagne ligure(Italie). In: BOUSQUET-BRESSOLIER, C. Loeil ducartographe et la rpresentation gographique dumoyen ge nos jours. Actes du colloqueeuropen sur la cartographie topographiquetenu a Paris les 29 et 30 octobre 1992. Paris:Comit des Travaux Historiques et ScientifiquesCTHS, 1995.

    NORDMAN, D. & OZOUF-MARIGNIER, M. Atlas dela Rvolution Franaise. Le territoire. Paris:ditions de lcole des Hautes tudes enSciences Sociales, 1989.

    PALSKY, G. Des chiffres et des cartes, naissanceet developpement de la cartographie quantitativefrancaise au XIXe sicle. Paris: Comit destravaux historiques et scientifiques, 1996.

    PESTRE, D. Pour une histoire sociale etculturelle des sciences; nouvelles dfinitions,nouveaux objets, nouvelles pratiques. Annales;histoire, sciences sociales, n.3, 1995, p.487-522.

    Trabalho enviado em abril de 2004.

    Trabalho aceito em agosto de 2004.

    RAGGIO, O. Immagini e verit. Pratiche sociali,fatti giuridici e tecniche cartografiche. Quadernistorici, v.108, ano 36, n.3, 2001, p.843-876.

    RUNDSTROM, R. A. Introducing cultural andsocial cartography. Cartographica, v.30, n.1,1993.

    SAFIER, N. F. Writing the Andes, reading theAmazon: voyages of exploration and the itinerariesof scientific knowledge in the eighteenth century.Baltimore, 2003. Dissertation submitted to theJohns Hopkins University for the degree ofDoctor of Philosophy.

    SHORT, J. R. Representing the Republic; mappingthe United States, 1600-1900. London: ReaktinBooks, 2001.

    THE HISTORY of cartography. Newsletter 2003/2004: winter.

    THEORETICAL aspects of the history ofcartography: a discussion of concepts,approaches and new directions. Imago Mundi,v.48, 1996, p.185-205.

    WOOD, D. The power of maps. New York: TheGuilford Press, 1992.