Gilberto Velho - Individualismo e Cultura

148

description

Livro raríssimo - Fica a disposição de todos esta obra fantástica!Esse livro procura demarcar uma área de pesquisa e reflexão dentro da antropologia. São onze textos, separados em duas partes, em que a primeira destaca a questão da construção da realidade e o problema da cultura propriamente dito, e a segunda repensa a noções de indivíduo, sociedade e cultura, com a preocupação sociológica de distinguir grupos sociais e vê-los atuando politicamente.

Transcript of Gilberto Velho - Individualismo e Cultura

  • A-PDF PageMaster Demo. Purchase from www.A-PDF.com to remove the watermark

  • Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporanea INDIVIDUALISMO E CULTURA

  • Hist6ria Social da Crianca e da Fam Ilia Philippe Aries

    Uma Teoria da Ac;ao Coletiva Howard S. Becker

    Carnavais, Malandros e Her6is (2Cultura e Razao Pratica Marshall Sahlins

    Bruxaria, Oraculos e Magia entre os Azande E.E. Evans-Pritchard

    Elementos de Orqanizacao Social Raymond Firth

    A I nterpretacao das Culturas Clifford Geertz

    Estigma: Notas sabre a Manipulacao da ldentidade Deteriorada (3Erving Goffman 0 Palacio do Samba

    Maria Julia Goldwasser A Sociologia do Brasil Urbano

    Anthony e Elizabeth Leeds Arte e Sociedade

    Gilberto Ve/ho Desvio e Divergencia (4Gilberto Ve/ho I ndividualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da Sociedade Conternporanea

    Gilberto Ve/ho Guerra de Orixa (2~ ed.)

    Yvonne M.A. Ve/ho

    ANTROPOLOGIA SOCIAL Diretor: Gilberto Velho

  • -)~ ~ 36~ 'JG 11/}' ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO

    INDIVIDUALISMO E CULTURA: Notas para uma

    Antropologia da Sociedade Contemporanea

    GILBERTO VELHO

  • 1981 Direitos para esta edic;:ao contratados com ZAHAR EDITORES Caixa Postal 207 (ZC-00) Rio I mpresso no Brasil

    cornposicao: Zahar Editores S.A.

    proqrarnacao visual de capa e diagramac;:ao:

    Ana Cristina Zahar

    ilustracao de capa: reproducao de La belle jsrdiniere, Paul Klee

    Direitos reservados. A reproducso nao autorizada desta publ lcacso, no todo ou em parte, constitui violacao do copyright. (Lein? 5.988)

    Copyright 1981 by Gilberto Velho.

  • PARTE II 6 Relacdes entre a Antropologia ea Psiquiatria 93 I I 7 Cultura de Classe Media -

    Reflexfies sobre a Nocao de Projeto 103 8 Visao de Mundo e Estilo de Vida

    em Camadas Medias Urbanas - Algumas Ouestoes sabre o Estudo de Famllia 111

    9 Observando o Familiar 121 10 Cotidiano e Politica num Predio de Conjugados 133 11 Violencia e Cidadania 143

    3 Duas Categorias de Acusacao na Cultura Brasileira Contemporanea 55

    4 Parentesco, lndividualismo e Acusacoss 65 J 1 5 Os Conceitos de Relevancia ~ Motivacao

    ea Nocso de Subcultura 79

    PARTE I 1 Projeto, Emocao e Orientacao

    em Sociedades Complexas 13 2 Prestigio e Ascensao Social: Dos Limites

    do lndividualismo na Sociedade Brasileira

    lntroducao 7

    Ind ice

  • 7

    Neste livro pretendo demarcar uma area de pesquisa e reflexao dentro da antropologia conternporanea. Esta tern hoje tantas pos- sibilidades, tornando-se um campo de conhecimento de tal forma rico e complexo, que nao e mais passive! a figura do generalista capaz de domina-la em seus varies ramos e tendencies. A pr6pria antropologia social, aparentemente uma sub-area, ja abriu tantos espacos e produziu uma bibliografia tao vasta que e incomum en- contrar profissionais que, por exemplo, se movarn com familiari- dade do estudo de sociedades indrqenas sul-americanas para a problernatica do meio urbano com toda a sua diversidade ou mes- mo para as discussoes sobre campesinato, trabalhadores rurais etc. Creio, no entanto, que permanece como ponto aglutinador econ- densador uma problematica te6rica, as vezes deixada de !ado ou marginalizada. rOs nomes podem variar, assim como as enfases, mas a questao da unidade e continuidade dos sisternas sociais perrnanece sendo referenda central da disciplina. Ouer se privile- gie o consenso ou o conflito, quer se parta do indivfduo ou da sociedade e/ou cultura, estamos sempre lidando com o dilema da estabilidade e da descontinuidade. Como se estabelecem pactos? Como se efetiva a dorninacao? De que forma sao socializadose in- corporados OS individuos? Como e possfvelexercer 0 poder e que padroes de reciprocidade sustentam redes de relacoes sociais?

    Assim, este livro traz uma preocupacao te6rica de lidar com a questao da construcao da realidade, da constituicao de universos simb61icos, do problema da cultura propriamente dito. Mas isso se faz a partir de uma experiencia etnoqrafica particular e de uma bibliografia que nao corresponde a uma ortodoxia da disciplina,

    I.

    Introducao

  • Velho, Gilberto (coordenador}, 0 desafio da cidade - Novas perspecti- vas da antropologia brasileira. Rio, Campus. 1980.

    se e que seria poss(vel ser ortodoxo em relac;:'o as questdes ein pauta. Preocupo-me com rnotivacdes, relevancias, projetos, dentro de urna linha fenomenol6gica a la Schutz. Tento vincular essas questoes a construcao de uma teoria da cultura enquanto rede de significados (web of meanings), seguindo, de certa forma, Geertz.

    ,P..o mesmo tempo, tenho a ix.e_ocupac;:ao sociol6gica de distinguir grupos socials, de ve-los operando e atuando polificamente. For- c;:osamente sou erivolvido e atraldo por antigas discussdes inas que estso longe de estar esgotadas. De alguma forma, seja atraves da literatura da Escola de Personalidade e Cultura, seja atraves de trabalhos da Escola Sociol6gica Francesa, procuro repensar as nocoes de indivlduo, sociedade, cultura e suas complexas e mul- tiplas relacoes. Sem duvida a obra de Louis Dumont funciona contemporaneamente come (re)detonadora desse debate e a ela muitas vezes me refiro sem que a veja necessariamente come mais fundamental ou reveladora do que a de outros autores que traba- lham em di'rec;:oes diferentes. Mas para as minhas preocupacdes e idiossincrasias te6ricas e referencla basica, Finalmente, continua come um dos focos centrais de meu trabalho a relac;:ao entre teoria do desvio e acusacoes, A lnfluencia interacionlsta, especial mente de Howard S. Becker, e 6bvia, embora as minhas outras oreocupacoes me levem a procurar inserir essa problernatica den- tro da perspectiva de uma teoria da cultura. Como se ve, mencio- nei antrop61ogos, soci61ogos e fil6sofos. Resta aos leitores decidir se a minha leitura e a tentativa de criar algo de novo a partir des- sas diferentes tendencias faz algum sentido.

    Quero chamar atencao de que sou um pesquisador que tern quase sempre trabalhado em sua pr6pria sociedade. Por isso mes mo tenho algumas preocupacfies metodol6gicas espec(ficas que aqui se apresentam, especialmente, no capltulo 9. No meu artigo no livro 0 desafio da cidade1 elaboro mais certos aspectos da con- dic;:ao de antrop61ogo estudando seu mundo propriarnerrte dito. Ali explore os movimentos de interpretecdo e estranhamento co mo caracterlsticas de todo trabalho antropol6gico. Creio que ea partir desta reflexso que insisto em marcar minha identidade de antrop61ogo, pois, se teoricamente e em termos de carreira sou influenciado e lido com trabalhos e profissionais de diferentes areas, procure manter uma atitude e postura que me parecem ex-

    8 individualismo e cultura

  • 0 livro esta dividido em 11 textos organizados em duas'partes, A primeira corresponde a um esforc;:o te6rico mais sisternatico e a segunda explora algumas questoes ou problemas especfficos. Boa parte dos textos foi apresentada e discutida em reunioes e congressos, como a Reuniao Anual da SBPC, os Encontros da As- sociacao Brasileira de Antropologia e da Associacao Nacional dos Programas de Pos-Graduacao em Ciencias Sociais. Varies topicos foram explorados em conferencias minhas no Brasil e no exterior. Agradec;:o a todas as pessoas com quern tive a oportunidade de conversar e trocar ideias. Meus agradecimentos especiais as edito- ras Campus e Paz e Terra e as revistas Dados e Ensaios de Opinieo por autorizarem amigavelmente a insercao neste livro de textos por elas publicados.

    Meus debitos intelectuais e afetivos sao enormes e diversifies- dos. Gostaria de citar especialmente Ruth Cardoso, Roberto Da Matta, Howard S. Becker e Roberto Cardoso de Oliveira como pessoas que nos ultimos anos, com maior ou menor frequencia, tern sido referencias importantes. 0 grau de acordo ou de diver- gencia varia mas a preocupacao de manter um debate acadernico e constante.

    Eduardo Batalha Viveiros de Castro, ex-aluno e assistente, atual colega e amigo, tern sido sempre estirnulante e imaginativo nas suas observacfies e indaqacfies,

    Ovldio de Abreu Filho, como aluno, assistente e companhei- ro de trabalho, nos ultimas tres anos, muito me ajudou com sua cornpetencia e sensibilidade.

    Agradec;:o ainda a Luiz Fernando Dias Duarte, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Myriam Moraes Lins de Barros

    II.

    pressar o que de melhor tern a antropologia a dar para o desenvol- vimento das ciencias humanas.

    A partir desta intencao de criar um dialoqo com outros espe- cialistas, um dos objetivos deste livro e estabelecer pontes com as areas de conhecimento e trabalho que lidarn com a ternatica Indiv/duo e Cu/tura, seja em termos te6ricos, seja em terrnos tera- peuticos ou mais praqmaticos, Tenho me beneficiado nos ultimos anos de conversas, discussdes e participacao em congressos com psic61ogos, psiquiatras e psicanalistas. Portanto, necessariamente, muitas das questoes que discuto estao relacionadas com essa experiencia.

    introducso 9

  • Janeiro de 1981 Gilberto Velho

    por sua generosa cooperacao em seminaries. aulas e trabalho de pesquisa propriamente dito.

    0 Museu Nacional, o seu Departamento de Antropologia e particularmente o Programa de Pos-Graduacao em Antropo- logia Social, com sua vocacao para pesquisa e alto nlvel acaderni- co, deram-me condicfies de trabalhar com um mini mo de tran- quilidade num per Iodo nem sempre placido. Aos professores Leda Dau, Anthony Seeger e Francisca Keller, respectivamente, direto- ra, chefe de Departamento e coordenadora do Programa, meus agradeci mentos.

    Aqradeco ainda a FINEP ea Fundacao Ford o apoio que rece- bi para desenvolver minhas pesquisas e ter oportunidade de de- bater com colegas de outros centros os seus impasses e resultados.

    Semo apoio constante e paciente de Beatriz de Azambuja Ro- drigues, em termos de datilografia, providencias praticas e orqani- zacao, a elaboracao deste livro teria sido muito mais desgastante.

    A todas essas pessoas mencionadas e a meus amigos em geral dedico este livro.

    10 individualismo e cu/tura

    II"' .

  • 11

    PARTE I

  • 13

    Uma primeira versiio deste capltulo foi apresentada num Seminario no Setor de Antropoloqia da UNICAMP. As observacoes e suqestdes ajudaram-me a esclarecer pontos mais confusos e nebulosos. Aqradeco a todos os presentes, especialmente aos professores Peter Fry, Mariza Correia e Mario Bick. Ovldio de Abreu Filho, Myriam Moraes Lins e Barros e Eduardo Batalha Viveiros de Castro tarnbern contribulram com cornentarios e cr rticas. Finalmente meus agradecimentos ao professor Howard S. Becker por seu estlmulo e observacoes.

    Projeto, Emocao e Or ientacao em Sociedades Complexas:

    CAPITULO 1

  • 15

    que depois p.e decades de pesquisa etnol6gica varios autores ja demonstra- ram como~sa "naturalidade" do isolamento pode ser ilus6ria e coma gru- pos aparentemente isolados podem fazer parte, de varias maneiras, de um sistema mais amplo em termos econornicos, pol (ticos e culturais)(ver, por exemplo: Malinowski, 1961; Leach, 1967; Evans-Pritchard, 1968; Adams, 1970 etc.). Por outro lado, a pr6pria unidade e/ou homogeneidade de socie- dades tribais ou "nao-comptexas" so pode ser aceita com fortes restricoes, fazendo todas as ressalvas quanta ao nlvel ou dimensso da vida socio- cultural a que estamos nos referindo e com que outro tipo de sociedade comparamos quando falamos de menor complexidade. Esta, seja em ter- mos sociais ou culturais, no tocante as sociedades tribais de pequena esca- la, ja foi tarnbern amplamente revelada e demonstrada par diversos estudio- sos (par exemplo: Boas, 1966; Levi-Strauss, 1958'e 1962;Bateson, 1958). Evidentemente as fronteiras entre uma sociedade "nao-complexa" e uma complexa sao sempre arbitrarias e problematicas, Gue crlterios e variaveis serao determinantes? A divisao social do trabalho atingindo um grau X de especializacao? 0 aparecimento de classes sociais nos termos de Engels? 0 desenvolvimento da vida urbana? 0 aparecimento da escrita? 0 advento

    I. A Natu reza das Sociedades Complexas 0 estudo de sociedades cornplexas traz problemas bastante perturbadores para uma tradicao antropoloqica criada a partir de uma exper iencia com sociedades de pequena escala e de cultura relativamente hornoqenea. 0 primeiro e rave risco metodol6gico e, ao isolar, por motivos de estrateqia

    errcara"'"h:Yscomo

  • do Estado? Alguni tipo de desenvolvimento tecnol6gicoa la Leslie White? As pref'erencias e enfases variam na avaliacao de qual desses fatos ou varia- veis pode ter um papel mais crucial na caracterlzacao de uma sociedade cornplexa, Sem querer inventar nada de nova ou original gostaria que ficasse

    yJ- claro, quando me referir neste artigo a sociedade complexa que tenho em if._, mente, a nocao de uma sociedade na qual a divisao social do trabalho ea

    ':;;;(} IJJ--/51' distribuicao de riquezas delineiam ca1!JP.r1.as sociais distingufveis com con- ,['-< tTiii;,dade hist6rica, sejam classes socials, estratos, castas. Por outro lado, a

    If' no.i;:iioai:r-cu-rrrplexr~ ideia de uma heterogeneidade cul- tural quec:teve ser en-tendta~fl'tO(l-eot!*istencia.,-bam1_oniosa au nao, de uma pluralidade de tradi.i;:oes cujas bases podem ser ocupacionais, etnlcas, religiosas etc. 06\iiamente existe uma relacao entre estas duas dirnensoes .:___ a divisiio social do trabalho e a heterogeneidade cultural. E questao importante a verificar quando e como as diferentes tradicoes culturais de uma sociedade complexa podem ou devem ter coma explicacao a divisao social do trabalho. As categorias sociais daf surqidas, quer em termos de sua posicao em relacao aos meios de producao (por exemplo, proletariado e burguesia), quer em termos estritamente ocupacionais (medicos, carpin- teiros, advogados, empregadas dornesticas etc.) e que tenham um minima de continuidade temporal, tendem a articular suas experienclas comuns em torno de certas tradlcoes e valores. 0 problema, mais uma vez, e verificar o peso relativo dessa experiencia em confronto com outras como a identi- dade etnica, a origem regional, a crenca religiosa e a ideologia pol ftica~ lUma questao interessante em antropologia e, justamente, a procura d .~ localizar experiencias suficientemente significativas para criar fronteira 'l simb61icas. Nos estudos de grupos desviantes sempre e um problema crucial perceber se e quando indivfduos que partilham preferencias por comporta- mentos condenados ou discriminados desenvolvem uma identidade comum e solidariedade. Em minhas pesquisas sabre uso de t6xicos em camadas medias altas ficou claro, ao contrario do que se imagina comumente, que muitas vezes a iden:tidade de grupo de status baseada em um estilo de vida e prestfgio social ligado as famflias de origem era muito mais forte que uma poss Ivel solidariedade surgida do uso de t6xicos. Em outros termos o fato de partilhar uma situacao de relativa clandestinidade e perigo nao fazia com que o jovem oriundo de camada media alta fosse sempre se iden- tificar mais com outro usuario de t6xico, de origem mais modesta, do que com um nao-usuario careta, mais pr6ximo quanta a sua origem e back- 1 ground familiares (Velho, 1975). A gramatica e 16gica do desempenho de papeis pode ser discrepante dentro de uma subcultura e perfeitamente razoavel em outra. Lembro-me de como um antrop61ogo americano se espantou ao saber que um dos grupos de usuarios que eu estudara apresen- tava uma vartacao etaria entre 12, 13 e ate mesmo quase 30 anos, coisa que ele jamais tinha reqistrado nos EUA. Certamente no caso em pauta havia

    16 individualismo e cultura

  • l

    II .. A Sociedade Complexa Moderno-Conternporanea t preciso, entao. uma vez colocado de forma muito geral o que estou entendendo por sociedade cornplexa, admitir que de qualquer forma conti- nua-se lidando com sltuacdes e tipos de sociedade muito heteroqeneos, Mais uma distlncao torna-se importante - entre as sociedades complexas tradicionais e as modernas, i ndustriais. A Revoluc;:ao Industrial, propriamen- te dita, criou um tipo de sociedade cuja complexidade esta fundamental- mente ligada a uma acentuada divisao social do trabalho, a um espantoso aumento da producao e do consumo, a articulacao de um mercado mun- dial ea um rapido e violento processo de crescimento urbane (Hobsbawn, 1975). Qua o estive fal ndo e oci co lexa ustrial moderna estou me' referrn 0 ao ti de so e~ ida desse processo (ver tam- -------- - bern Sahlins, 1979). As sociedades complexas industrials modernas abran- gem, em princfpio, um maior nurnero de indivfduos devido ao desenvolvi- mento das torcas produtivas. 0 aperfeic;:oamento da tecnica e da ciencia aplicadas a agricultura proporciona maior disponibilidade de alimentos. 0 desenvolvimento da medicina, o aparecimento da vacina e de outras tecni- cas baixaram o nfvel de mortalidade. Com isso a populacao cresceu emf func;:ao da rnodernizacao e da dlsseminacao desses recursos. Esse aumento/ do numero de pessoas, embora por si s6 nao seja suficiente para distinguir a sociedade cornplexa moderna industrial de outros tipos de sociedade complexa, e, no entanto, uma caracterfstica marcante. A existencia de cidades com 10 e 15 milh5es de habitantes, por exemplo, s6 pode ser com- preendida dentro do quadro surgido da Hevolucao Industrial com suas ino- vacoes tecnol6gicas, melhoria do sistema de transportes, volume de recursos e orqanizacao da producso, A grande metr6pole contemporiinea ~. portan- to, a expressso aguda e n ltida desse rnodo de vida, o locus, por excelencia, das realizacoes e tracos mais caracterfsticos desse nova tipo de sociedade.

    ~

    Os trabalhos de Simmel e Wirth, entre outros, charnaram atencao para essa especificidade da vida rnetropolitana, com sua heterogeneidade e '!_ariedade de experiencias e costumes, contribuindo para a extrema fraq.

    J. JTiepiacao e diferenciacao de papeis e domfnios, dando umcorrtwno par- r ticulg[ aVfd; [!ico/6gicaTndiiTlciUal. - ---- . ---- T'

    toda uma outra gama de variavels que permitia uma aproximacao indepsn- dentemente do mero USO .de t6xiCOS. Q fato importante e que estamos lidando com conjuntos de sfrnbolos que vao ser utilizados pelas pessoas nas suas interacoes e opcoes cotidianas, num processo criativo ininterrupto havendo alguns mais eficazes e duradouros do que outros. A relacao entre o desempenho de papeis e esses conjuntos de sfrnbolos cohstitui uma ques- tao estrateqica para a antropologia social.

    projeto, emocso e orienta~ao 17

  • Em qualquer sociedade e/ou cultura e poss(vel distinguir areas ou dorm- nios com um certo grau de especificidade. ~ importante, no entanto, para o antrop61ogo verificar como os pr6prios nativos, indivlduos do universo investigado, percebem e definem tais domfnios para nao cairmos na arma- dilha muito comum de impormos nossas classificacoes a culturas cujos criter ios e crencas possam ser inteiramente diferentes dos nossos au que possam parecer semelhantes em certos contextos para diferirem radical- mente em outros. lsso nao significa, obviamente, que o pesquisador s6 possa analisar uma sociedade a partir do pr6prio sistema classificatorio nativo. As ciencias sociais desenvolveram conceitos e instrumentos de tra- balho que sao usados para comparar diferentes culturas e sociedades. Mas, como estamos preocupados com as categorias nativas, torna-se crucial saber, par exemplo, quando se esta falando de economia, po/ftica ou reli- giiio, se estamos nos referindo a percepcfies do grupo que estudamos au a conceitos particulares de nossa cultura, produtos de uma experiencia s6cio-hist6rica espec ffica.

    Por outro lado, e questao fundamental esclarecer o que entende- mos por outra cultura. Quando e coma podemos fixar os limites entre as fcliferentes experiencias e trnrlii;:aes de grupos determinados? Mais umavez, f essa separacao pode ser feita com maior facilidade se em termos flsicos e geograficos pudermos, as vezes visualmente, distinguir um grupo de outro. Nern semrre isso e poss Ivel ea distancia ffsica, espacial, pode ser engana- dora, especialmente no mundo corrternporaneo (Velho, G., 1978). Outros aspectos, dirnensoes, tracos, podem ser as fronteiras mais significativas - a

    . ~igiao, a identidade etnica, a ideologia polftica etc. Fundamental para o ~ antrop61ogo e perceber quais sao as distincfies irnportantes para 0 nativo

    e podem ser surpreendentemente diferentes,das de sua cultura de origem. Esse problema tarnbern se coloca e, sob certos aspectos, de forma

    muito dramatics quando se examina internamente uma sociedade comple- xa. Onde estao a unidadee a descontinuidade? A existencia de tredicties diferentes coloca o problema da cornunicacao entre os grupos e segmentos delas portadores. Pode-se distinguir a existencia de certos temas, de deter- minados paradigmas culturais mais significativos e que tern um potencial

    . de difusao e contarninacao maior do que outros. Tomando-se como refe- r; \ rencia qualquer sociedade, poder-se-ia dizer que ela vive permanentemente fv ~ a contradicao entre as perticulsrizecties de experiencias restritas a certos ,.! segmentos, categorias, gru pos e ate ind iv Iduos e a universalizar;/Jo de outras /1 experi~cias que se expressam culturalmente atrav~conjunto~ de s(m-

    Y bolos homogeneizadores - paradigmas, temas etc. Na realiaade, esse e , par excelencia, o problema basico da pr6pria existencia do que chamamos de cu/tura: o que pode ser comunicado? Como as experiencias podem ser

    m. Fronteiras Culturais 18 individua/ismo e cultura

  • 0 pr6ximo fato a considerar e a maneira. pela qual a ordem da comunica- c;ao, a modalidade de axpressao da I (ngua, modifica a percepcao. t necessa- rio distinguir em qualquer comunicacao entre expressdes nao-verbais de significado e expressdes verbais de significado. 0 papel dos gestos, da expressao facial, do movimento de corpo e, em especial, do volume e do tom da voz do falante, serao denominados expressao "Imediata" ou direta, enquanto as palavras utilizadas serao denominadas expressao "rnediata" ou indireta. 0 importante e a enfase colocada numa ou noutra modalidade de expressiio e a natureza da forma da comunicac;iio verbal. Entao, seas pala- vras utilizadas fazem parte de uma linguagem que contern grande proper- c;ao de comandos sucintos, afirrnacdes simples e questoes onde o simbolis- mo e descrit ivel, tangfvel, concrete, visual e de baixo grau de qeneralizacao, onde a enfase esta mais nas irnplicacdes emotivas do que nas implicac;5es 16gicas, entao esta sera denominada uma linguagem publica.

    0 USO da linguagem pela classe media e rico em qualificac;5es pessoais e individuais, e sua forma envolve conjuntos de operacdes 16gicas avancadas: volume, tom e outros meios nao-verbais de expressao, apesar de importan- tes, ficam em segundo piano. t importante compreender que inicialmente, na vida de uma crianca de classe media, o fundamental rnro e o numero de palavras ou a extensao do vocabulario, mas o fato de que a crianca se tome sens Ivel a uma forma particular de expressao indireta ou mediata, na qual o arranjo sutil de palavras e conexoes entre sentences expresse senti mentos. t essa forma de expressao que a crianca originalmente se esforc;a para alcancar a fim de desfrutar uma relacao complete com a mile, e assim pro-

    I Entramos entao em um problema crucial. Os indjvlduos participam dife- -renc1alrrffrite de c6digos mais restritos ou ma15Uifivenati'z"~Segundo BaS'fi"t3ernstein, essa diferenca (no caso de sua pesquisa, obviamente - lnglaterra, capitalista etc.) e resultado de relacoes espec(ficas entre o modo de expressao cognitiva e exper iencias diferenciadas em func;:ao da classe social especlfica a que pertenc;:am os indivlduos (Bernstein, 1971 ). 0 autor distingue a classe media da classe trabalhadora, em termos de contextos socializadores, mostrando que a expressao cognitiva vai ser diferente em tuncao do predomfnio nas famflias de uma linguagem formal no primeiro caso e de uma linguagem publica no segundo. Cito, na lntegra, as suas defi- nicdes que me parecem muito importantes e algo polernicas:

    IV. Classes Sociais e Universo Simb61ico

    partilhadas? Como a realidade pods ser negociada e quais so os llmite para a manipulacao de sfrnbolos? \lual o grau de impermeabilid cl- u mensagens e como se mantern subcultures? 0 que significa o desvl , o comportamento desviante enquanto [nanipulacao ou rejeicao de norma regras dominantes? Oual a eficacia pbtencial da universalizacao de c6digos particulares? I

    projeto, emocso e ortents tfg 19

  • Ha muitos problemas na colocacso do autor. Nao pretendo re- solve-las mas convern mencionar o risco envolvido de cair em uma especie de "fatalismo sociol6gico" que faria que, uma vez um indivlduo nascesse na classe media ou na classe trabalhadora, seu desenvolvimento emocional e intelectual estaria definido e marcado. As pr6prias nocoes de classe media e trabalhadora sao excessivamente vagas e podem escamotear dife- rencas internas consideraveis corno, por exemplo, o tipo de trajet6ria social (Bourdieu, 1974) ou a natureza da rede de relacoes sociais (network) em que se movem os indivlduos, mais ou menos aberta (Bott, 1971 )./Ora, a

    ~nci-aclemo6TITaaaes6ciat;--a-a5ce-nsao ou descenso intro-duz ariaveis 1significativas na experiencia existencial seja de pessoas oriundas da classe trabalhadora OU da classe media que sao forcosarnente diferentes de urna

    'sltuacao de estabilidade e perrnanencia. Por outro lado, o contato com outros grupos e cfrculos pode afetar vigorosamente a visao de mundo e estilo de vida de indiv fduos situados ern uma classe socio-econornica par-. ticular, estabelecendo diferenc;:as internas. A interacao com redes de re- lacoes mais amplas e diversificadas afeta o desempenho dos papeis sociais. Ouestao importante tarnbem a ser considerada e a pr6pria nocso de socia- lizacao. Se esta for encarada como um processo contfnuo que atravessa a i vida adulta, ligado a varies tipos de experiencia existencial coma casamen-\ to, carreira etc., pode-se duvidar ainda mais de um determinismo de classe \ de origem (Becker, 1970). Ha que lembrar ainda toda a problernatica da cornunicacao de massa que, sem cair em exageros, tern algur:n efeito de. difusao de lnformacoes e habitosr.-oe qualc:juer-forrr.ia nao ha duvida de que

    -ser-nstef~ coloca um problema central para o estudo das sociedades com- plexas - a descontinuidades sociol6gicas correspondem diferenc;:as no uso da linguagem e na expressao cognitiva.

    Admitindo-se que Bernstein possa cair num certo "fixisrno" clas- sista e que, portanto, possa ser discutlvel 0 peso que da as diferenc;:as de

    cedendo aprende a responder a uma forma especifica de suqesrdes presen- tes na linguagem. Devido a irnportancia desse tipo de relacao mediata entre a rnae e a crianca cria-se uma tensao entre esta e o meio que a circunda, sur- gindo entao a necessidade de verbalizar suas relacoes de forma pessoal e individual. Portanto, bastante cedo a crianc;:a se torna sensivel a uma forma de uso da linguagem que e relativamente complexa, a qual, por sua vez, age como uma estrutura dinarnica sobre sua percepcao dos objetos. Essa modalidade de uso da linguagem sera denominada formal. Foi afirmado an- teriormente que a pressao interior a uma estrutura social de classe media para intensificar e verbalizar uma consciencia de separacao e diferanca es- timula a importiincia dos objetos no meio circundante. A receptividade a uma forma particular de estrutura da lfngua determina a maneira como sao construidas as relacdes com os objetos ea orientacao para uma manipula-

  • _/ classe na constitulcao de um universo simb61ico e da expressso cognltlvo. 6 ~ (\ importante para a nossa discussao perceber a relacso entre emooio _ : . pressiio da emocso atraves de uma linguagem mais ou menos universslimn- ~/ te. 0 peso especifico da origem da classe neste processo precisa ser verifl I ;/'' do e pesquisado em confronto com outras dirnensdes da vida social. Em

    termos mais gerais, trata-se de colocar o problema de como os indivtduos expressam suas ernocdes e sentimentos atraves da linguagem verbal. Ha varias questdes associadas. Uma e sobre a capacidade desenvolvida e/ou valorizada de 'dizer, comunicar, atraves de palavras e frases, o que esta sendo sentido. lndissoluvelmente ligado a isso e saber a quern que e trans- mitida a inforrnacao. Em termos de uma analise de cultura ha que delimi- tar campos de cornunicacao que serao maiores ou menores em funcao do grau de universalizacao da linguagem utilizada. Por exemplo, o que signifi- ca a frase "Estou deprimido" para diferentes segmentos da sociedade brasi- leiraLA nocao de depressiio, embora nao seja exclus.i1a._e.s:t. instavel, louca, com mania de persequicao, pirada, em crise, angustiada etc. lsso nao exclui que o mesmo universo que possa ter um vocabular io relati- vamente pobre quanto a descricao de estados emocionais possa, por outro lado, expressar-se verbalmente com rnuita riqueza em relacso a outros temas como trabalho, sexualidade, esporte, samba etc. Assim, ao lado da

    Jquestao de Bernstein referente a usos de linguagem mais ou menos univer- salizantes, ha que perceber quais sao, dentro dos d,iferentes segmentos de -f' ~edade cOITiPlexa, os temas valorizados, as escalas de valores parti- culares, as vivenc1as e preocupac;:oes cruciais. lsso nao ehmina a con~ao d~m de que os desempenhos na aprefitttzayerrnnrrt:rrrrenrfUhc;:ao de um previo adestrarnento na utilizacdo de uma linguagem verbal e de que as classes trabalhadoras revelam rnaiores dificuldades. Em outro nivel ea mesma coisa que Bourdieu diz ao rnostrar a reproducao das elites atraves

    projeto, emociio e orient 9uo 1

  • Os alunos de camadas de renda mais baixa tern nao so, em princf- pio, maiores dificuldades para obter um desempenho satisfat6rio, como nao dispoern dos recursos e apoios que os de camada mais altas tern fora da escola. Nao se trata apenas da dirnensao material propriamente dita mas da pr6pria importancia relativa do desempenho individual em famllias pobres. Nao s6 pode ser diferente mas o seu contexto de avaliacao, em princfpio, vai diferir. Para uma famllia que vive em situacao de penur ia pode ser relativamente pouco importante a reprovacao do filho na escola comparada com sua necessidade de dispor de mao-de-obra para atender as necessidades mais elementares de sobrevivencia. Ja num contexto de carna- da media com projeto de ascensao social o fraco rendimento escolar de um filho e vivido como uma real arneaca a sua pr6pria identidade (ver Velho, 1976). Nesse ponto coloca-se a questao de saber ate que ponto projetos individuais sao reconhecidos como legftimos e "naturais ", Sob uma pers- pectiva de camada media intelectualizada nada mais "natural" do que a ideia de que cada indivlduo tern um conjunto de potencialidades peculiar que constitui sua marca pr6pria e que a sua hist6ria (biografia) ea atualiza-
  • V. lndivrduo. lndividualismo e Projeto Afinal de contas essa tern sido a problematics central da obra de Louis Dumont. Ao estudar a l'ndia e cornpara-la com o Ocidente moderno, mostrou como na cultura hindu a ideia de indivlduo e subordinada a de todo e a de hierarquia. Ao estudar diretamente o Ocidente, examinou a genese da nocso de indivlduo enquanto categoria dominante, acompanhan- do o desenvolvimento desse conjunto de ideias especialmente a partir dos seculos XVII e XVIII (Dumont, 1977). Um problems central na obra de Dumont e o alto nlvel de generalidade e abstracao com que trabalha. Por isso mesmo e capaz de recuperar umaantropo/ogia comparada, ao nlvel de culturas e civilizacdes. Mas, quando a pesquisa e a lnvestlqacso se apro- ximam de conjunturas hist6ricas especfficas e do n/vel etnoqretico propria- mente dito , ha que tomar cuidado para nao utilizarmos canhoes para en- frentar passarinhos. Dumont, por exemplo, situa a ldade Media ocidental como uma cultura em que a .religiao era o elemento ordenador e totali- zador de uma visao de mundo hierarquizada em que os agentes emplricos (indivlduos biol6gicos) estavam enquadrados em categorias sociais mais amplas, as ordines , por exemplo. A nocao de indivlduo como a conhece- mos contemporaneamente seria inteiramente subordinada. A voo de passa- ro, nurn nlvel de qeneralizacao bastante elevado, creio que Dumont aponta com precisao importantes diferencas culturais na hist6ria do Ocidente. Mas, quando a investiqacao se aproxima de conjunturas ou sltuacoes mais limitadas, ha que primeiramente relativizar essas afirrnacdes. A religiao como totalidade pode ser problematizada a partir dos movimentos hereti- cos, constantes e numerosos durante quasetoda a ldade Media. Ainda assim, poder-se-ia alegar que, com a heresia, permanece-se ao n(vel de uma lingua- gem religiosa e que os campos pol (tlco, econornico, permaneceriam inseri- dos no religioso ea individualidade subordinada a uma hierarquia e cosrno- logia rel igiosas (Heresies et societes, 1968). Mas, no seculo XI I ja surgem

    recentes.

    que nao exista a problernatica da individualidade nas camadas proletarias, por exemplo. Mais uma vez trata-se de uma questso de dominancia econ- texto. Enquanto em certas culturas ou subculturas o indivlduo e o foco ideol6gico central, isso nao acontece em outras em tuncao de peculiarida- des econornicas, pol lticas e simb61icas. Ora, tenho plena consciencia dos riscos desse tipo de colocacao. Uma das 1wandes conquistas das ciencias sociais foi o humanismo antropol6gico anti-racista, que retomava de certa forma o discurso ilurninista ao enfatizar o )talor das especificidades de cada cultura, procurando descobrir por detras Ide las um ser humano universal. Trata-se de buscar a igualdade na diversidade, No entanto, pode-se ir mais Jonge na busca de consequsncias dos dados e analises antropol6gicas mais

    I

    projeto, emociio e orientecdo 23

  • situacoes que, pelo menos, complexificam essa diseussdo, Nesse perfodo aparece com nitidez um conflito entre o campo religioso e o politico pro- priamente dito. A luta entre Frederico II e o lrnperio contra o Papado, as lutas entre guelfos e gibelinos expressam com nitidez o choque nao apenas entre diferentes concepcdes religiosas mas entre campos ou dom i- nios distintos. Nao se esgotam ao nivel de conflito entre lnstituicdes mas tarnbern entre visoes de mundo e linguagens altamente diferenciadas (Davis, 1968). Outro exemplo do seculo XII, estudado por Victor Turner, e o cho- que entre Henrique Plantageneta e Thomas Becket, em que as razdes de Estado e uma visao de mundo religiosa se configuram conflitantes, provo- cando violenta cisao ao nivel das elites dirigentes (Turner, 1974). Ouanto a relacao entre individuo e hierarquia pode-se mencionar o movimento intelectual dos Goliardos, que, na falta de melhor classiflcacso, poder-se-ia denornlnar "anarquista", denunciando as normas e convencdes da epoca, exaltando a came e a sensualidade em detrimento de uma espiritualidade cavalheiresca, recusando a hierarquia e valorizando a experiencia individual (Le Goff, 1973). 0 epis6dio de Abelardoe Heloisa tarnbern e do seculo XII, constituindo-se num dos pilares de sustentacso do paradigma do amor entre homem e mulher, desafiando costumes, convencdes e interesses, anunciando o Romeu e Julieta de Shakespeare do seeulo XVI. Como mos- tram Viveiros de Castro e Araujo, a nocao de amor esta indissoluvelmente ligada a nocso de individuo, onde a escolha, OPCaO fora dos OU contra OS grupos e categorias sociais e fundamental (Viveiros de Castro e Araujo, 1977). Essa tendencia vai encontrar plena expressao nos ideais romantlcos do seculo XIX, na literatura, rnuslca etc. A noeao de que OS individuos escolhem ou podem escolher e a base, o ponto de partida para se pensar em projeto. Portanto, sempre tendo como referencias as obras de Dumont e Mauss (Mauss, 1968), ha que reconhecer que, mesmo nas culturas mais "totallzadas" ou organizadas em termos de hierarquia, ha a possibilidade de indlvlduallzacao como no caso dos renunciantes na fndia (Dumont, 1970, especialmente cap. IX). Ha varios exemplos hist6ricos tarnbern de como sociedades tradicionais em que as coisas e pessoas pareciam estar no lugar certo e adequado podem modificar-se com verdadeiras comocoes, sob o estlmulo de incidentes aparentemente banais. Esses que muitas vezes parecem ser de origem externa podem servir para explicitar e botar a nu graves tensdes existentes na ordem e hierarquias tradicionais. Os movimen- tos messianicos podem ser os veiculos desse tipo de fenorneno, Os profetas e I ideres rnessianlcos aparecern como tendo experiencies individualizadoras radicais, como mostra Philip Kuhn no caso da rebetiao Taiping (Kuhn, 1977). Exemplos semelhantes podem ser encontrados no Brasil nos casos de Canudos e Contestado (ver, entre outros, Vinhas de Oueir6s, 1966). Por outro lado, tarnbem nas modernas sociedades industriais individualistas encontram-se dimensfies e instilncias desindividualizadoras. Sem contar a

    24 individualismo e cu/tura

  • religiao que permanece como possibilidade para amplas camadas sociais, embora tenha perdido sua dominancia em relacao a ldade Media, ha outras alternativas de desindlviduetieecio atraves da carreira, da participacao em certas instituicdes, da pr6pria famllia. Ou seja, a multiplicidade de institui- c;:oes da sociedade complexa conternporanea conduz esquematicamente a duas alternativas basicas. A indivldualizacao radical pode surgir exatamente da necessidade de o agente e (rico ser obrigado a mover-se e manipular instituicoes, dirnensfies e undos' iferentes e possivelmente contradit6- rios (Simmel, 1967 e Becker, 1977). Outra possibilidade, diante da anqus- tia da opcao e do desmapeamento e o mergulho em um desses mundos cujos estere6tipos podem ser o "cientista louco ", o "burocrata ritualista", a "beata", a "mae de farmlia", embora, coma se vera adiante, possa ser uma alternativa particularmente fraqi l em certos momentos. E claro que mesmo nesses casos a desindividualizacao nao deixa de ser, em algum nlvel, uma sotuciio individual, embora existam subculturas em que, sendo a de- sindividualizacao a regra, pouca margem possa haver para escolhas diferen- tes. Em toda sociedade existe, em principio, a possibilidade da individuali- zacao. Em algumas sera mais valorizada e incentivada do que em outras. De qualquer forma o processo de individualizacao nao se da fora de normas e padroes por mais que a liberdade individual possa ser valorizada. Ouando vai de encontro as fronteiras simbolicas de determinado universo cultural - ou as ultrapassa -, ter-se-a entao, provavelmente, uma situacao de desvio com acusacoes e, em certos casos, estiqrnatizacao (Becker, 1966 e Velho, 1971 ). Ou seja, ha regras para a individualizacao, mais ou menos explicitas. Em grande parte das sociedades tribais, das tradicionais e das complexas tradicionais 0 agente empfrico e basicamente valorizado enquanto parte de

    , um todo - linhagem, famllia, cla etc. -, nao se constituindo na unidade significativa. A sociedade de castas hindu, estudada por Dumont, seria o caso classico, Mas, como foi exemplificado com a Europa do seculo XI I, isso s6 pode ser entendido como tendencia, em certas situacdes - domi- nancia, mas nunca como uma anulacao ou exclusao da individualidade em qualquer contexto. Os rituais sao.. de certa maneira, um .roec.anism}

    G~ tentar lidar com a- permanente ambiguidade de fragm~ntac;:ao in- divi0ual e~ta1zacao social (ver, entre outros, Van Gen~ep, f969, Turner, 'T>g e Dallllatta, 1973 e 1977). Nada talvez expresse rsso melhor do que o processo de nominacao em nossa sociedade ocidental, individualista. Joao da Silva ou Mary Smith indicam um prenome individualizante e um sobrenome que inclui o indivi'duo em uma categoria mais ampla, no caso, a tam ma. E claro que mesmo a prenome nao e inteiramente individualizan- te, pois pode ser homenagem a um pai, a um avo, a um padrinho etc. De qualquer forma, trata-se de um compromisso entre a individualizacao e a insercao em categorias mais amplas. A rnanipulacao do name, o nome "artfstlco". a supressao de sobrenomes, os apelidos etc., sao formas de

    projeto, emociio e orienteceo 25

  • Logo, a possibilidade da existencia de projetos individuais esta vinculada a corno, em contextos s6cio-culturais especlficos, se Iida com a ambiquidade

    (fragmentacao-totalizacai'\) Ouando, como e ate onde sao legitiroados proie- tos espec(ficos individuais sao perguntas fundamentais para possibilitar um dialoqo entre cientistas sociais e psic61ogos, psicanalistas etc. Ou seja, se o 1nd1v1auo e tomaao como dado da natureza, unidade real, nada mais 16gico do que pressupor a possibilidade de projetos individuais. Jase o in- divlduo e percebido como tendo uma dirnensao fabricada culturalmente, que e acrescentada ao agente emplrico (unidade biol6gica), ha que relativi- zar a nocao de projeto individual. E evidente que, nos termos de Schutz, havendo agentes emplricos ha conduta desde que esta nao pressupfie um projeto. Ouando ha ac;:ao com algum objetivo predeterminado ter-se-a o projeto (Schutz, 1971).

    Procurando juntar a problernatica de Dumont com a de Schutz, pode-se perguntar quern e o sujeito do projeto. E claro que, ate nas socieda- des em que o indivlduo enquanto construcao cultural e desenfatizado, o agente empfrico em algum nlvel toma decisiies e age com objetivos prede- terminedos. Mas, como se pode ver em Bernstein (op. cit.t, rnesrno dentro de uma sociedade especlfica - no caso, em funcao da classe social =, pode haver forte variac;:l:io quanto a enfase e preocupacao que e dedicada as pe- culiaridades, gostos, preferencias, trac;:os particulares dos agentes ernpfri- cos. Issa se associa nao s6 a uma visiio de mundo (ou um eidos) em que a nocao de biografia e central, com uma concepcao de tempo bastante defi- nida mas tarnbern a um ethos, um estilo de vida, uma organizat;ao das emociies (ver Bateson, 1958 e Geertz, 1978) em que a experiencia do agente emplrico sacralizada como individual e foco e referencia basica. Coloca-se como problema a relacao entre projetos individuais e os cfrculos sociais em que o agente se inclui ou participa. A ideia central e que, primei-

    --f- ramente, reconhece-se nao existir um projeto individual "puro", sem refe- rencia ao outro ou ao social. Os projetos sao elaborados e constru (dos em funceo de experiencias socio-culturais, de um c6digo, de vivencias e i.l}te- rac;:6es interpretadas. Mas como s~ iden"t'ifica-crmfjl'U'feto(Eclaroque se poaem deduzir as razoes da conduta dos indiv(duo5;interpretar suas acfies e especular sobre suas rnotivacdes. 0 problema e saber se o resultado obti-

    VI. Projeto e Campo de Possibilidades

    enfatizar ou marcar a individualidade, de sublinhar a particularidade. Por outro lado, a pergunta ainda muito comum em certos segmentos da socie- dade brasileira - "Oual ea sua famllia?", "De que famllia voce e?", "E de boa famllia?" - sao formas de mapear, situando o agente emp(rico dentro de uma categoria mais ampla e _significativa.

    26 individua/ismo e cultura

  • At any rate, there is such a selection of things and aspects of things relevant to me at any given moment, whereas other things and other aspects are for the time being of no concern to me or even out of view. All this is biographi- cally determined, that is, the actor's actual situation has its history; it is

    do corresponde ao que os indivlduos, em pauta, realmente projeterem

  • Essa experiencia da originalidade da experiencia individual consti- tui um dos pontos centrais da relacao entre ciencias sociais e ciencias do comportamento individual. Por mais que seja possfvel explicar sociologica- mente as variaveis que se articulam e atuam sobre biografias especlficas, h~ sem re al o irredutlvel, nao devido necessariamente a uma, essencia iD 1v1 al mas sim a uma com 1 ao urnca de fatores psicol6 ic s, socials, hist6ricos, imposslvel de ser repetida ipsis Itteris. Mas, mesmo que o ator viy_9_a gj_a xgeri.en_c_@ como (mica, ele de alguma fbrm recoobece.:Se nos qutros atravis de sem~c;:as e COlncidencias. Em certas culturas e/ou subculturas toda a ate~ sera dada as diferencas, enquanto em outras 0 foco privilegiado sera a semelhanc;:a. Umas serfio mais individualistas do que outras, na medida em que a unidade significativa de experiencia for o indi- vlduo particular e idiossincratico. com suas pecLiliaridades sublinhadas.

    Por outro lado, a racionalidade de um projeto e relativa desde que se alimenta de determinadas experiencias culturais. Sua maior ou menor eficacia esta, basicamente, circunscrita a determinado quadro socio-histori- co. 0 projeto, enquanto conjunto de ideias, e a conduta estao sempre referidos a outros projetos e condutas localizaveis no tempo e no espaco, Por isso e fundamental entender a natureza e o grau maior ou menor de abertura ou fechamento das redes sociais em que se movem os atores. Posso me inspirar em algum varao de Plutarco, mas tenho de levar ba- sicamente em conta os meus conternporaneos com quern terei de I idar para procurar atingir meus objetivos. Serao aliados, inimigos ou indife- rentes, mas serao seus projetos e condutas que darao os limites dos meus. Uns serao mais importantes do que outros, mais relevantes e significativos. Por mais esoterica e particular que seja, um projeto tern de se basear em um nlvel de racionalidade cotidiana em que expectativas mlnimas sejam cumpridas .

    . As minhas ernocfies estao ligadas, sao rnateria-prirna e, de certa forma, constituem o meu projeto. Ha sentimentos e ernocdes valorizados, tolerados ou condenados dentro de um grupo, de uma sociedade. Ha, portanto, maiores ou menores possibilidades de viabiliza-Ios. efetiva-Ios. Desejos "pecarninosos", emocoes "inconvenientes", sentimentos "im- pr6prios" sao limitados e balizados pelas sancoes e normas vigentes OU do- minantes. Os padrdes de normalidade leqitirnarao ou nao dentro de uma situacao particular as condutas e acoes individuais. Um c6digo etico-rnoral . definira o errado, inadequado, incestuoso, impr6prio, sujo, polu (do, pe- rigoso que possa haver nos coracoes e mentes dos homens e nas suas con- dutas e interacoes. Assim, uma sociologia dos projetos tern de ser, em algu-

    the sedimentation of all his previous subjective experiences. They are not experienced by the actor as being anonymous but as unique and subjectively given to him and him alone (Schutz, op. cit., p, 77).

    28 individualismo e cultura

  • VII. Papeis Sociais, Redes de Helacoes e Experiencia Cultural

    0 projeto, sendo coriscierrte, envo1ve algum tipo de calculo e planejame~- to, nao do tipo homo oeconomicus, mas alguma nocao, culturalmente situada, de riscos e perdas quer em termos estritamente individuals, quer em termos grupais. Nao ha pararnetros universais para medir isso. 0 relati- vismo cultural permite, potencialmente, contextualizar os valores envolvi- dos em funcao de experiencias s6cio-hist6ricas particulares. A racionalidade

    ma medida, sociologia das emocoes, Os antrop61ogos lidam constantemen- te com essa problernatica. A area dos estudos de reliqiao e rituais e um born exemplo. Victor Turner coloca claramente em seus trabalhos a questao das crises individuais na analise de rituais (Turner, 1969). Estudando, entre j nos, a umbanda e o pentescostalismo, Fry e Howe dizem: "Sofrimento e ";-. aflii;ao sao qenericos a todas as sociedades e cada sociedade desenvolve form as institucionais para seu controle e resolucao" (Fry e Howe, 1973). f.. Sem querer entrar fundo em questfies filos6ficas sabre as motivacces do comportamento humano, ha um razoavel consenso em torno do fato de que em toda sociedade as ind iv (duos procuram controlar o sofrimento Hsico e psicol6gico, au reduzindo-o a um minima suportavel (que obvia- mente variara) au enquadrando-o dentro de modelos e paradigmas que o justifiquem ou mesmo expliquem. Sem duvida, as dais movimentos sao, em princfpio, complementares au ate duas facetas do mesmo fenorneno. I sso nao impede que ind iv (duos. em certos contextos, procurem o sofri- mento, coma se pode ver, par exemplo, na hagiologia crista, nas hist6rias dos santos martires ou nas privacoes do ascetismo oriental. Nesses casos, a procura de determinado tipo de dor, ffsica au psicoloqica, au ate a morte, estara dentro de paradigmas legitimizadores (ver, par exemplo, Turner, 1974). Ou seja, a sobrevivencia individual nao e necessariamente um objeti- vo dentro de qualquer projeto. Desde que todos os indivfduos, em alguma rnedlda, se emocionam, resta a pergunta: em torno de que e despertada a ernocao? Af volta-se a toda problematics da enfase maior ou menor na biografia, colocando-se a questao de os acidentes e incidentes da vida de um ator constitufrem ou nao o locus privilegiado da vida emocional. Pode- se argumentar que sao tipos de ernocao diferentes e que a pessoa que chora pela mulher amada pode tarnbern desesperar-se com a ascensao do fascis- mo, ou com a derrota de uma greve em outro pafs. Mas sabemos coma idearios pol (ticos, sistemas filos6ficos ou crencas religiosas se diferenciam em turicao do valor que dao a experiencia individual, podendo sacraliza-la coma (mica, insubstitu Ivel e verdadeira, au encara-la coma fugaz, insiqni- ficante e irrelevante.

    projeto, emocdo e orientscso 29

  • da conduta dos beatos de Canudos ou do Contestado nao podia ser avalia- da a partir do ponto de vista dos bachareis da Hepublica Velha. Fanatismo e iqnorancia sao os rotulos normalmente usados pelas elites dominantes para designar as condutas e valores dos grupos que elas oprimem, nao compreendem e, em poucos casos, querem compreender, por motivos 6bvios. Dal tarnbern a grande dificuldade corrtemporanea de psicanalistas e psiquiatras Jidarem com indiv(duos de classes e subculturas diferentes da sua, portadora de um saber oficial. Por mais que pretenda ser ciencia uni- versal com padrdes objetivos de ldentificacao de doenc;:as, perturbacoes, psicoses, neuroses etc., esse carnpo do conhecimento esta inevitavelmente marcado e balizado culturalmente. Suas referencias, seus padrdes de nor- malidade, sua avaliacao de trajet6rias e bem-estar pessoal estao inseridos em uma vlsao de mundo comprometida com certas ideias de eflciencia, produtividade, associadas ao que se denomina individualismo burgues, por mais problernatico que possa ser este r6tulo. Esta ligado a um triunfalismo cientificista com forte sabor evolucionista. ~ claro que ha rnuitas escolas e um sern-nurnero de diverqencias entre psic61ogos, psicanalistas etc. e que colocar tudo no mesmo saco envolve o risco de excessive sirnplificacao, Mas, em geral, a definic;:ifo de realidade com que trabalham os terapeutas e bastante arbitraria, restrita e pouco sens(vel a diversidade das experiencias s6cio-culturais. Mesmo quando pretendem estar fazendo uma psicologia social ou revelam preocupacfies com fatores culturais, lidam quase sempre com essas dirnensdes como fatores residuais ou, no maximo, complementa- res. No caso brasileiro isso vai manifestar-se com toda a agudez no relaciona- mento com outras classes socials, especialmente com as camadas de baixa renda onde as reliqifies de possessao e outros sistemas de crenc;:as "exoti- cos", ligados a diferentes visoes de mundo e ethos constituern barreiras muitas vezes intranspon (veis. Encontramos varios tipos de atitude frente a essas outras experiencias culturais, desde um autoritarismo sem mascaras ate formas mais sutis de paternalismo e manipulacao. Em raras ocasifies o respeito vai alern de uma certa simpatia folclorizante em que se admite que certas praticas medico-reliqiosas "podem ate ter certa eficacia". Na realidade nao sei See poss(vel Ser medico, psic61ogo OU psicanalista e, ao mesmo tempo, tentar ter uma visao de dentro de outros c6digos ou subcul- turas. Talvei sejam coisas incompatlveis. De qualquer maneira, fica claro para o antrop61ogo como certas premissas e categorias com que trabalham OS terapeutas sao assimiladas de forma profunda e lnultrapassavel. A in- compatibilidade se revela ao nlvel da pratica profissional propriamente dita, 0 que nao exclui que muitos medicos e outros profissioriais liberals, em diferentes contextos, acreditem em praticas maqicas, rnau-olhado, azar, fantasmas etc. Podem, mesmo, freqilentar terreiros e centros na procura de resolucdo de seus problemas pessoais. Seria interessante pesquisar corno, ao n(vel de orojeto, indivlduos que exerc;:am ocupacoes e profiss5es "raciona-

    30 individua/ismo e cu/tura

  • Nesse tipo de sociedade as nocdes de maturidade, integridade, oquil (brio, coerencia etc., precisam levar em conta essa fr aqrnentacao da xperiencia de que ja falava Simmel (Simmel, 1967). Ao ter uma visao

    linear da personalidade e uma nocao de indivfduo nao-relativizada, os terapeutas tendem a simplificar uma problernatica muito complexa em que " cornpreensao do contexto e fundamental e nao residual ou complemen- tar. Entendendo a personalidade social como um cluster of roles (Gluck- man, op. cit.), ha que entender os diferentes contextos em que sao desem- penhados os papeis para perceber a qrarnatica e 16gica do comportamento individual, inclusive as possfveis incompatibilidades e contradicdes.

    O projeto, creio, deve s tentativa co e de dar um sentido ~a coerencia a essa experiencia f mentado . Como ja fo1 dito antes, o in ividualisrrio e uma ss1vel solucao diante da diversidade de dom (nios e areas. Outra seria o mergulho radical em um tipo de expe- riencia que, a partir de certo momento, pelo fato de ser "totalizadora", prescindiria de maiores explicacfies - ela se justifica por si mesma. Voce e OU nao e Um "cientista louco ", uma "beata ", Um "burocrata ritualista" ou uma "rnae de famllia". Gluckman admite que mesrno nas sociedades 1,.Jr- banas modernas podem ser encontrados pockets of social relations em que ~ap~ .. possam ser encontrados. Menciona convento, mosteiro ou um college universitario como tipos de instituicao em que essa expe- riencia mais tlpica de sociedade de pequena escala seria encontrada. Poder-

    I am going to suggest that we may seek to explain this high ritualization of tribal society from the fact that each social relation in a subsistence econo- my tends to serve manifold purposes. It is what I have called multiplex and Ta/cot Parsons diffuse (Gluckman, 1962, p. 26). ( ... ) Modern society has conflicts similar in kind to those of tribal society, but they are dispersed through different ranges of social relationships: disputes over political and economic issues, as over the distribution of wages and profits, do not normally enter family relations) Fragmentation of social relations isolates ranges of social conflicts from one another, as well as segregating roles. In a small scale society, every issue may be at once a domestic, an economic, and a political crisis (Gluckman, op. cit., p. 43).

    listas" vivem esse outro lado "irracional", "mrstico", Talvez fosse poss Ivel chegar a uma tipologia de profissionais liberais mais ou menos bem-sucsdi- dos, bem "iritegrados", e procurar relaciona-Ios em termos de commitment, adesao, comprometimento com sistemas de crenc;:as populares. Na realida- de, esse e um ponto essencial no estudo das sociedades cornplexas, espe- cialmonte no caso das modernas industriais. A ~eA.ta- c;:ao de pap.!fu.,_em contr te-eem-aS-SQGiedades simQ.l.es de Qgguena escala, introduzem uma var iavel fundamental para se entender a nocao de projeto. Diz Gluckman:

    projeto, emocso e orientectio 31

  • _/Se-ia ainda pensar em certos tipos de vizinhanc;:a, clubes, associacoes em /

    que isso possa tambern ocorrer. Alguns autores como Goffman mostraram a irnportancia da ritualizacdo nao s6 em instituicfies totais como em outras situacfies da sociedade moderna industrial (Goffman, 1974 e 1967). 0 pr6prio Gluckman admite ter polarizado os dois tipos de sociedade, para procurar obter uma visao mais clara e precisa das diferenc;:as (Gluckman, op. cit., p. 43). A literatura sobre rituais com os trabalhos de Leach, Tur- ner etc., e Da Matta, entre n6s, ja demonstrou de diversas maneiras como a ritualizacao existe e atua mesmo em situacoes de divisao social do trabalho acentuadas e diferenciacao de papeis,

    Juntando Gluckman com Simmel e Wirth, creio que, de qualquer forma. especialmente na grande metr:cip_ple,_c_ontrastando_corn sociedades de pequena escala - tribais, camponesas ou mesmo aldeias e cidades meno- res -, fica claro que a fragmentac;:ao de papeis e a hetero eneida expe- riencias cria uma-s1 uac;:au--pa:rticular em termos existenciajs Ha tipos de ato- res que, mesmo nesses ambientes, movem-se em cfrculos bastaote fechados ~ em redes de relac;:oes restritas. Estao rnais sujeitos do que em sociedades de pequena escala a invasoes de seus mundos, a irrupcoes e crises ocasio- nadas pela proximidade ffsica e socio16gica com outros estilos de vida e definicoes de realidade. Contrastam, no entanto, com outro tipo de habi- tante da grande metr6pole ~~ :~-gg)anentemente em contato com "rnundos" e reqifies morals Park diferentes. Essas pessoas estao permanentemente recebendo estfrnulos e se deslocando entre ambientes e experiencias variadas. Simmel sugeriu a personalidade blese (Simmel, op. cit.) como adaptacao a esse estilo de vida, com toda a marca do individualis- mo. A minha hip6tese e muito simples e retoma colocacoes anteriores. Ouanto mais exposto estiver o ator a experiencias diversificadas, quanta mais tiver de dar conta de ethos e visfies de. mundo contrastantes, quan- to menos fechada for sua rede de relac;:ao ao n Ivel do seu cotidiano, mais

    ' marcada sera a sua autopercepcao de individualidade singular. Por sua vez, a essa consciencia da individualidade - fabricada dentro de uma experiencia cultural especffica - correspondera uma maier elaboracao de um projeto. Este sera estimulado e encontrara uma linguagem pr6pria para expressa-lo - a psicanalise, especificamente, e o discurso psicol6gico em geral, e em parte consequencia e em parte criador desse tipo de individualismo. Cada vez mais fica diflcil pensar um sem o outro. Ver-se como unidade signifi-

    ~cativa basica, procurando a sua "verdade", desenvolvendo suas potenciali- 'ldades particulares, rompendo "simbioses", faz parte do credo anal (tico (Figueira, 1978). Oaf as dificuldades de lidar com um discurso em que o sujeito nao apareca com a mesma nitidez como no de um profissional liberal de classe media ou em que a verballzaceo possa ser secundaria em relacao a outros comportamentos expressivos coma as tscnlcas de corpo, o uso de musica, como e o caso de jovens das camadas medias e altas ligados

    32 individualismo e cu/tura

  • vm. Projeto Individual e Projeto Social

    ao que se chama as vezes de "contracultura". Portanto, 11ao e s6 em relacdo ii camadas de baixa renda que surgem problemas de impasses em termos de premissas mas com qualquer visao de rnundo em que o indivfduo nao pareca com a mesma nitidez que a de um curso humarnsta-burgue]::>

    terapJticcy

    projeto, emocso e orienta(:fio 33

    m uma sociedade complexa moderna os mapas de orientacao para a vida ocial sao particularmente ambfguos, tortuosos e contradltcrlos, A cons

    \.ruaO da identidade ea elabora

  • Becker, Howard S.

    Adams, Richard Newbold Aries, Philippe Bateson, Gregory

    1970. Crucifixion by power. Austin, University of Texas Press. 1978. Hist6ria social da crience e da familia. Rio, Zahar. 1958. Naven; A survey of the problems suggested by a composite picture of the culture of a New Guinea tribe drawn from three points of view. Stanford, Stanford Uni- versity Press, 2~ ed. 1970. "Careers, personality and adult socialization", in Sociological work; Method and substance. Chicago, Aldine, pp. 245-260.

    fl:i1977. "Mundos artlsticos e tipos socials", in Velho, Gil- 'Ytberto (comp.), Arte esociedade. Rio, Zahar, pp. 9-26.

    1970. "Notes on the concept of commitment", in Socio- logical work; Method and substance. Chicago, Aldine, pp. 261-73.

    1. 1966. Outsiders; Studies in the sociology of deviance. Nova York, The Free Press. 1970. "Personal change in adult life",in Sociological work; Method and substance. Chicago, Aldine, pp. 275-77. 1970. "The self and adult socialization", in Sociological work; Method and substance. Chicago, Aldine, pp. 289- 303. 1977. Uma teoria da a9iio coletiva. Rio, Zahar.

    REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

    (dimensao da culture, na medida em que sempre sao expressao simb61ica. Sendo "conscientes e potencielmente pub/icos, estao diretamente ligados

    \ a organiza9ao social e aos processos de rnudanca social. Assim, implicando relacfies de poder, sao sempre polfticos. Sua eficacia dependera do instru- mental simb61ico que puderem manipular, dos paradigmas a que estiverem associados, da capacidade de contarninacdo e difusao da linguagem que for utilizada, mais ou menos restrita, mais ou menos universalizante. Nern tudo nos projetos e pol Itico, mas, quando sao capazes de aglutinar grupos de interesses, ha que procurar entender sua riqueza simb61ica e seu poten- cial de transforrnacao. Em toda sociedade cornplexa podem ser identifica- dos grupos que, atraves de suas trajet6rias e posicao em retacao ao resto da sociedade, tern mais possibilidades de divulgar seus projetos. Sem duvida ha todo um conjunto de variaveis - como poder economico, militar etc, - que.afetam o espaco cultural possfvel, mas e importante verificar o poten- cial intrlnseco de um projeto social que s6 pode ser .compreendido atraves do conjunto de sfmbolos a que esta associado e que veicula.

    34 individualismo e cultura

  • 1975. The age of revolution; Europe 1789-1848. Londres, Weidenfeld and Nicolson. 1977. "Origins of the Tai ping vision: cross-cultural dimen- sions of a Chinese rebellion", in Comparative Studies in Society and History. Londres, 19 (3): pp. 350-66,julhode.

    1971 . "Theoretical studies towards a sociology of lan- guage", in Class, codes and control. Londres, Routledge & Kegan Paul, v. 1. 1966. Race, language and culture. Nova York, The Free Press. 1971. Family and social network. Londres, Tavistock. 1974. "Condicao de classe e poslcso de classe ", in A eco- nomia das trocas simb61icas. Sao Paulo, Perspectiva, pp. 3-25. 1964. Les heritiers. Paris, Minuit. 1977: "Romeu e Julieta ea origem do Estado", in Velho, Gilberto (cornp.l, Arteesociedade. Rio, Zahar, pp. 130-69. 1968. A history of Medieval Europe. Nova York, David Meckay. 1977. Homo aequalis. Paris, Gallimard. 1970. Homo hierarchicus; an essay on the caste system. Chicago, The University of Chicago Press. 1968. The Nuer. Oxford, Clarendon Press. 1978. lndividualismo e psicenetise, Rio, PUC. (Disserta- cao apresentada ao Departamento de Psicologia da Ponti- ff cia Universidade Cat61ica.) 1975. "Duas respostas a aflicao: umbanda e pentecosta- lismo", in Debate e crttice, Sao Paulo, 6, pp. 75-94. 1978. A interpretecso das cuttures, Rio, Zahar. 1969. Les rites de passage. Paris, Mouton. 1966. "Les rites de passage", in Essays on the ritual of social relations. Manchester, Manchester University Press, pp. 1-52. 1974. Manicomios, prisiies e conventos . Sao Paulo, Perspecti va. 1967. Interaction ritual. Essays on face-to-face behavior. Nova York, Anchor Books. 1959. The presentation of self in everyday life. Nova York. Doubleday Anchor Books. 1978. "Sintomas mentais e ordem publica", in Figueira, Servulo A. (cornp.l, Sociedade e doence mental. Rio, Campus, pp. 9-18. 1968. Communications et d~bats du Colloque de Royau- mont presentes par Le Goff. Paris, Mouton.

    projeto, emociio e orientscso 35

    Kuhn, Philip A.

    Heresies et societes dans l'Europe pre-industrielle 11e-1 ae siectes Hobsbawm, E.J.

    Goffman, Erving

    Fry, Peter Henry e I lowe, Gary Nigel (.;oertz, Clifford

    ennep, Arnold van Gluckman, Max

    vans-Pritchard,' E .E. Figueira, S6rvulo Augusto

    Dumont, Louis,

    Castro, E.B. Viveiros de A Araujo, Ricardo B. de Davis, R.H.C.

    Ilo tt, Elizabeth Bourdieu, Pierre

    IJ11as, Franz

    Ell!rnatein, Basil

  • 1973. "O Carnaval como um. rito de passagem", in Ensaios de antropologia estrutural. Petr6polis, Vozes, pp. 121-68. 1977. "Carnavais, paradas e prociss5es: reflex5es sobre o mundo dos ritos ", in Refigiao e Sociedade. sao Paulo, 1 (1 ), pp. 3-30, maio de. 1974. Constraint and licence: a preliminary study of two brazilian national rituals. Nova York, Wenner-Gren Foun- dation for Anthropological Research. (Paper prepared in advance for participants in Burg Wartenstein Symposium n
  • e 1971. "Estigma e comportamento desviante em Copaca- bana", in America Latina. Rio, 14 (1, 2), pp. 3-9, janeiro- [uriho de. 1975. Nobres e anjos; um estudo de t6xicos e hierarquia. Sao Paulo. (Tese de Doutor
  • 39

    * Na etaboracao deste capltulo foi particularmente importante o dialoqo com Ovrdio de Abreu Fil hoe Luiz Fernando Dias Duarte, a quern devo meus agradecimentos.

    Prestigio e Ascensao Social: Dos Limites do Individualismo na Sociedade Brasileira*

    CAPITULO 2

  • ' I

  • 41

    Ver, entre outros, "Cultura de classe media" (cap rtuto 8 deste livro) e tninha tese de doutorado Nobres e snjos: um estudo de toxicos e niererquie, apresentada a Facul- dade de Filosofia, Letras e Cienclas Humanas, USP, 1975. 2 Ver A utopia urbana: um estudo de entropotoaie social. 3~ ed., Rio, Zahar, 1978.

    Ja na minha dissertacdo de rnestrado, ao investigar o terna da irnportancla de morar em Copacabana para um segmento predorninantemente white collar, encontrei algumas varlacdes interessantes. 2.

    II.

    Trabalhando com o universe de camadas medias tenho retletldo sobre urna disttncao que creio poder ser util para estabelecer limites entre grupos e segmentos dentro do que se costuma charnar, com alqurna irnprecisao, de clssse media. Trata-se de dlferencas de rnotlvacao vinculadas a trajet6rias e leituras especificas do sisterna simb61ico que constitui a cultura de que partlclpam. Essas diferencas estao associadas a variacdes da escala de valo- res rnais ampla e da propria construcso social da realidade, 0 objetivo seria dernonstrar que, dentro de um universo gue segundo criterios s6Cioecon6- micos como enda e ocu~ao_ oderia s~ visto ~ homo_gilneo, encon tra~-~s ~sco.ntinuidades em termos de ethos e visao de mundo, Esse e um tema que ja tenho explorado em outras oporturtldades;' mas que procurarei discutir examinando urna questao especffica ~[a da mobili) 'dade- soCia e os va ores a elaassodcidos!Examinarei tarrrbern as ordens slmb6Ticas em questao, voltado para a construcao social da realidade desse universe da sociedade brasileira.

    I.

  • 3 Ver op. cit., especialmente cap(tulo IV. 4 Ver op. cit., especialmente caprtutosII e III.

    Essa sociedade e, para essas pessoas, constitut'da por estratos que tern como uma de suas deflnicoes essenciais a sua distr ibuicao espacial que vai ser fun- ,,

    Estou consciente dos riscos de uma leitura psicologizante do ter- mo motiveciio e quero frisar que o entendo como expressao de um sistema simb61ico-cultural. Nesse sentido a motivacao e uma expressao, ao nlvel individual, de representacfies coletivas. 0 problema, no caso, e relacionar essas representacfies com experiencias sociol6gicas espec lficas.

    No caso de Copacabana a grande maioria dos entrevistados moran- do ou nao no bairro encarava-o como sfrnbolo de sucesso, indlciodesubida na vida. 3 Sao essas nocoes que perm item iniciar uma reflexao sabre pres- tlgio e ascensao social. Alguns dos entrevistados, embora em pequena proporcao, nao manifestavam 0 desejo de mudar-se para 0 bairro, preferin- do permanecer onde estavam. Em geral eram habitantes da Zona Norte e suburbias do Rio de Janeiro. Alguns moravam no Centro au em outros bairros da Zona Sul como Flamengo, Botafogo etc. A renda ea ocupacao dos dais grupos - OS que valorizavam e OS que nao valorizavam Copaca- bana - nao apresentavam maiores diferenc;:as. Eram funcionarios publicos, pequenos comerciantes, bancarios, cornerciarios de certo n Ivel, professores etc. Provinham dos mais variados Estados e reqifies do pals. Em termos de Rio de Janeiro as areas de origem, no caso dos copacabanenses, eram tam- bern os suburbias, a Zona Norte, o Centro e outros bairros da Zona Sul. 4 Pergunta-se se existe equal seria a diferenc;:a de experiencia socio16gica que poderia explicar as variacoes de prioridade. E a questao que outros fazem preocupados com a opcao, por exemplo, entre umbanda e pentecostalis- mo (Frye Howe, 1975).

    Acredito, certatnente, que existe uma relacao entre crencas, valo- res e exper iencias de classe, trajet6rias, natureza da rede de relacfies etc. Sem duvida, em uma sociedade complexa moderna, com classes sociais diferentes e projetos sociais alternativos, esse e um fenorneno ate mais evi- dente (ver capftulo I). No entanto, creio que corremos o risco de eventual- mente fazermos um verdadeiro tour de force para explicar opcoes que, na falta de terrno mais adequado, chamarei de existenciais, atraves da identi-

    . ficacdo de diferenc;:as sociol6gicas cuja relevancia pode ser discutlvel. No caso de Copacabana nao havia duvida de que o white collar

    constitula, na epoca da pesquisa, o segmento mais mobilizado pela imagem do bairro. Mas como explicar as variacfies dentro desse universo? Continuei, de alguma forma, nos ultimas dez anos a pesquisar e entrevistar pessoas sobre Copacabana e, em geral, sabre aspiracoes residenciais, mapas da cidade, preferencias de bairro. ldentifiquei na Utopia urbana um mapa social basico comum ao universo pesquisado:

    42 individualismo e cu/tura

  • III. I A no
  • IV. A construcao da identidade e problema universal da sociedade. Em todo e qualquer grupo tribal, tradicional ou moderno, definem-se e classificam-se categorias sociais sejam tam Illas, clas, linhagens, classes, grupos de status etc. A lmportancia e a enfase no indivfduo agente empfrico podem variar bastante coma demonstraram Mauss e Dumont, entre outros (Mauss, 1968 e Dumont, op. citata). Ser parte de um todo pode significar ser membro de uma casra na lndia;creu-mar~ - uer, de um cla Zunietc. Nas SO'ci~s complexas modernas as ~rcas de diferen~~ entre grupos sociais em geral, etnicos, religiosos e a construcao e rnanipulacao de fron- teiras e papeis ja foram objeto de analises bastante conhecidas (ver, entre outros, Barth, 1970 e Cardoso de Oliveira, 1976). 0 fato de um indivfduo ser judeu, cat61ico, cigano, Indio, negro, umbandista, [apones etc. coloca-o Coilio parte de uma categoria social que, dependendo do contexto, podera ser valorizada ou ser objeto de dlscrimlnacao ou estiqmatizacao. No caso de grupos desviantes isso tarnbern ja ficou particularmente claro nos tra- balhos de Howard S. Becker e Erving Goffman (ver bibliografia no final do capftulo). Podem-se, como sabemos, estabelecer n diferenciacfies e subdivi- soes dependendo do palco e dos atores envolvidos. As categorias podem ser

    afirmar que uma constante nesses momentos ea angustia da individualiza- c;:ao. 0 pr6prio "nao saber o que se quer" e urna constatacao da ~ouca clareza do projeto. E na sociedade moderna cada vez mais cobra-;e isso, seja dami.Jlherque se deve tornar independente, do jovem que precisa se autonomizar ou do trabalhador que tern de lutar pelos seus interesses. Ou seja, e preciso definir e descobrir o que se quer. Em outras palavras, o que o indivfduo sujeito moral quer e pretende. Este, de alguma forma, deve ser distinguido e destacado de unidades mais amplas que poderiam ser defi- nidas par lay_os de parentesco, de patronagem, hierarquizantes e tradicionais.

    IAJ.!19ividualizac;:ao comoldeolo@omo caminho, aparece, por exernplo, no feminismo, coma demonstram as autoras de "Antropologia e Feminis- mo" (1981 ).

    Creio sar fundamental procurar distingui~ a ideologia individualis- ta que, segundo Dumont, seria a pr6pria produtora e expressao da moder-

    "nldade em suas 'diferentes rnanifestacdes e contextos. Mais ainda cumpre perceber "diferentes tipos de ethos individualistas que podem ter pouco o~ nada a ver com essa vertente ideol6gica do pensamento ocidental (Dumont, 1970 e 1977).

    1 As nocoes de prestfgio e ascensio social parecem-me vinculadas, exatamente, a diferentes formas de viver e lidar com a questao da indivi- dualidade na sociedade conternporanea. Fazem parte, por sua vez, de um

    l.Q!_Qcesso rnais amplo de construcdo social da identidsde.>

    44 individualismo e cultura

    " I

  • reconhecidas pelos seus membros como autenticas ou poderao ser tomadas como acusacoes ou r6tulos estigmatizantes. Por outro lado, e problema crucial perceber a natureza e qualidade de englobamento do agente emp(- rico por uma unidade mais ampla. Ha sociedades e ha categorias sociais com ideologias holistas de fato dominantes em que o espaco para a erner- gencia de um ethos individualista e mfnimo. 0 seu florescimento e identi- ficado por Louis Dumont com o pr6prio advento da sociedade moderna (Dumont.op. citata, especialmente 1971e1977).

    No entanto, parece-me importante estudar situacoes especlficas com grupos particulares para delimitar e distinguir os diferentes n(veis em que a ideologia individualista pode atuar. ~abe distinqulr o lugpr do indi;.. vlduo na construcao social da identidade de qualquer grupo ou sociedade e odesenvolvimer:i:tQJie uma ide.alogia individua/ista ue~QrinCIQ.l_Q, estaria vinculada a tipos particulares de experiencia e hist6ria.

    Assim, sempre encontramos o agente emplrico inserindo-se em uma cultura, sendo socializado e constru (do de acordo com os modelos- e representacoes vigentes. Nesse sentido a literatura sobre sociedades medi- terraneas coma os trabalhos de Pitt-Rivers e Peristiany sao particularmente relevantes na enfase que dao a questao da honra. A tensao entre a indivi- dualizacao propriamente dita e a insercao em uma categoria mais ampla parece ser problema universal. Sem duvida a consciencia dessa tensao emer- ge com mais nitidez com a pr6pria ideologia individualista. As discussoes sobre livre arb (trio e responsabilidade individual acompanham praticamen- te toda a hist6ria do cristianismo (ver, por exemplo, Bardy, 1948), mas assurnern.sua plenitude no perlodo da Reforma Protestante, onde, associa- do a uma conjuntura hist6ri.ca e social especff'ica, desenvolve-se um ethos _ ~alista particularmente vigoroso, como foi mostrado entre outros ~Web.e.r_(Weber 1967 . _ -

    Logo uma questao estrateqica, em se tratando de pesquisas espe- cfficas, e tentar mapear o espaco do individualismo. A par de difer encas psicol6gicas que interessaa"i!;cutii' enquanto a1mensao de um processo cul- tural mais amplo, e importante tentar determinar papeis sociais e sua arti- culacao coma processos mais ou menos individualizantes. Rosen, por exem- plo, mostra coma em Sefrou, no Marrocos, a existencia de social fields distintos permite ao agente empfrico manipular nocdes e categorias de parente, vizinho, tribo cuja capacidade de englobamento se torna relativa. A complexidade institucional e das redes de relacdes e acompanhada por uma modalidade de individualismo que esta ligada a uma tradicao cultural muito distinta da protestante mencionada anteriormente (Rosen, 1979).

    No caso da pesquisa de Copacabana, o que chamei de ter ralzes equivale, de certa forma, a identificar uma situacao de auto-estima baseada no prestlgio que e conferido ao ator pelo grupo ou grupos a que pertence. Ou seja, .a partir do espaco social queJhe ~conferjdo O..!!_obtido, o indivl-_

    prest/gio e ascensiio social 45

  • duo agente empfrico desernpenha papeis que perrnitirso a elabQrn.ci.o. de uma identidade mais au menos s61ida, respeitada, gratificante. A irnportan- c1a da famllia, do universe de parentes e do name sao fundamentais nesse

    "processo, embora nao seja homoqeneo nem uniforrne (ver Abreu Filho, 1980). Esta fica mais patente em cidades menores, mas.tarnbern em metr6- poles constitui elemento significativo e deterr:ninante (ver VelHo, 1975, especialmente caprtulo III). Sem duvida ha uma tensao entre o processo de individualizacao ea insercao em um universe de parentes, consangufneos, colaterais, afins etc. A ideologia individualista, de alguma forma, aparece em nossa sociedade 'sotidarla com a nuclearizacso da tam Ilia, mas esse pro-

    , cesso nao e linear e as lac;:os entre as diferentes famllias nucleares podem "criar formas de sociabilidade matizadas. Mas, sem duvida, o domfnio do parentesco e crucial para a constituicao da identidade do agente ernptrico com todas as ambiqiridades sugeridas. De qualquer forma, pertencer a uma boa famflia, ter boa race ou sangue assim coma ser born pai, filho, avo, mae etc. siio valores que podem ser essenciais na constituicdo da aura social de um agente emplrico (ver Abreu Filho e Velho, op. citata). Nesses mo- mentos ele estara desempenhando um papel ja dado tendo coma referencias paradigmas culturais preexistentes. Mas a sua individualidade se expressa - atraves de uma performance mais ou menos bem-sucedida. Essa relacao entre ser parte de um todo predefinido com um mapa delineado e a possi- bilidade de manobra no desempenho de papeis, explorando au criando novas alternativas, indica a tensao existente no processo de individualiza- c;:ao. Logicamente nem todos as a_gentes empfricos tern as mesmas possib[;..- lidades de alcancar sucesso au obter satisfacao dentro de um campo de possibilidades hist6rica e socialmente delimitado. Dal a alternativa d0--- afastamento, do rompimento ou da renuncia a um mundo que se torna opressivo e indesejavel. A opc;:ao pode ser permanecer no seu grupo original - com pouca gratificac;:ao, frustracao e escasso prestlgio au sair em busca de novas espacos ffsicos e sociais. Essa experiencia pode ser traduzida na apa- rentemente banal mudanc;:a de um suburbio para Copacabana, na opcso de um cavaleiro medieval que parte para as Cruzadas, num amante frustra- do que muda de name e vai para a Legiao Estrangeira au ate no suicfdio propriarnente dito. Sair, fugir, afastar-se, renunciar, apagar-se e apagar seu mundo podem ser a expressao de uma-impossibilidade de encontrar um status, uma posic;:ao que confira honra e prestlgio social condizentes com expectativas culturalrrienfe" elaboradas. A mofiilldade social, seja em ter- mosdedesfOcamento no espaco, seja atraves da estratificacdo social, pode, entflroutros motives, ser causada'por essa insatisfacao. Numa linguagem economicista poder-se-ia dizer que o prestfgio e um bem escasso e desigual- mente distribu (do.

    Por urn breve momento deter-me-ei em certos aspectos de uma sociedade tradicional "classica", No feudalismo europeu, especialmente

    46 individualismo e cultura

  • Voltemos ao Brasil e, particularmente, as nossas camadas medias. Encon- trei, constantemente, em hist6rias de vida e relatos familiares o padrao do

    v.

    entre os seculos VII I e XI 11, as agentes emplricos encontram-se, predomi- nanternente, distribuldos em categorias bem demarcadas hierarquicamente , Ha tipos especfficos de prestlgio coma o do sacerdote e o do guerreiro e ha graus diferentes de prestlgio coma entre um novice e um bispo au entre um pajem e um duque. Ha cornbinacfies interessantes coma aquela expres- sa pelas ordens militares coma as Templarios, a Ordem de Sao Joao, as Cavaleiros Teutonicos, Calatrava etc. Se a fonte principal do prestlgio e uma ordem moral constru Ida em. torno de princlpios religiosos, ela nao e exclusiva e outros dom(nios da vida social mesmo que subordinados podem ser elementos fundamentais para a constituicao de uma aura social. A crescente irnportancia e autonomizacao do domlnio do econornico ja e evidente desde pelo menos o secu lo XI I, onde em cidades ital ianas e alemas, par exemplo, mercadores ocupam uma posicao dominante e sao objeto de respeito e portadores de prestlgio. Mas mesmo em relacso a perlodos ante- riores e importante observar que essa distincao de domfnios e sua genese e percebida par nos, hoje, obviamente com outra perspectiva da do grupo de indivlduos que a viveram diretamente. Ouando se afirma, par exemplo, a existencia de uma ordem holista baseada em princlpios religiosos, e im- portante petguntar que atores tinham, se tinham au quandotinham clareza sabre esse ponto. Lendo santo Agostinho percebe-se nitidamente que a queda de Roma diante de Alarico coloca a tensao entre uma ordem terre- na, rnutavel ea Cidade de Deus propriamente dita. A enfase nesta represen- ta, inclusive, um esforc;:o te6rico de englobamento de outras esferas e do- m (nios que obviamente eram significativos para o cidadao romano dos seculos IV e V. 0 desvinculamento da lgreja do destino do l mperio Roma- no e sua colaboracao com reis barbaros coma Teodorico e amblgua, pois, ao mesmo tempo que marcaria a transcendencia do religioso, implica reco- nhecer de teto o poder concreto e emergente dos invasores do lrnperio. Mais adiante a conversso de Cl6vis e identificada como um triunfo do eris- tianismo sabre o paganismo e os hereges arianos. No entanto, a tensao entre Estado e lgreja sera permanente seja atraves das complexas relacoes com o I rnperio Bizantino seja com as diferentes monarquias que vao se estabilizando, culminando com a confrontacao com o Santo I rnperio e, es- pecificamente Frederico 11 nos seculos XII-XII I. Portanto, holismo, dis- tinc;:ao de domlnios e o desenvolvimento de ideologias individualistas cons- tituern relacdes e processos complexos e na"o'-lineares. lsso fica muito claro na hist6ria europeia mas pode ser confirrnado em outras sociedades e culturas.

    prestfgio e escensso .sociot 47

  • indivlduo que sai de seu grupo de origem, cidade, bairro, para explorar novas possibilidades. lsso pode ser feito pacificamente ou em situacao de conflito familiar. No primeiro caso, o estudo e o trabalho podem ser as motivacoes expl lcitas e conscientes que justificam tal passo, havendo certo consenso sobre a sabedoria da decisao, mesmo que as partidas possam ser marcadas por tristeza e larnentacfies. No segundo caso, sao situacdes de confronto com p.arentes pr6ximos como pai, irrnaos, tios. Sai-se brigado, rompido, embora a possibilidade de reconciliacao num futuro nao necessa- riamente remoto nao esteja afastada~ Como veremos, e significativo que essa se torna mais provavel com o sucesso daquele que saiu. Os malsucedi- dos tendem a isolar-se e afastar-se do grupo de onde sa (ram."

    0 sucesso traduzido em dinheiro e/ou diplomas e a ascensao social que pode conferir um novo tipo de prestigio. Este existe em func;:ao da saids e foi construfdo em espacos e domlnios externos. De certa forma nao e possrvel encontrar-se uma correspondencia unlvoca com o prestlgio de quern ficou, constru (do dentro do grupo e de sua rede de relacoes. A combinacao entre o prest(gio associado a uma ordem tradicional e o prest I- gio decorrente de ascensao social no mundo exterior pode constituir fonte de poder politico na sociedade brasileira para fami'lias e redes de parentes- co que assim acionam diferentes tipos de estrateqia, Mas isso nao e um processo simples e indolor.

    0 fato de sair principalmente quando decorrente de uma decisdo ' votunterie marca e enfatiza a existencia do indivlduo enquanto sujeito

    moral, unidade minima significativa que se destaca para fazer a sua vida, lutar (ver Abreu Fil ho, op. cit.), tornar-se um stranger em algum outro lugar ou meio (ver Schutz, 1970). Ao sair da cidade, do bairro, da vizi- nhanca e ao afastar-se dos parentes.._? agente empfrico sublinha a sua parti- cularidade. ~ claro que, em muitos casos, tarnbern estara seguindo um padrao. Outros ja salram antes dele e outros sairao depois.~o s6 nef!l sempre existe um padra9_expl Icito e claw as mesmo existindo, constitui a alternativa indiVidualizadora dentro do campo de possibilidades daquele grupoeufiiversomoral. Nao defendo uma teoria voluntarista da vida social:'""

    amo atenc;ro para 0 espac;o que possibilita a ernerqencia de situacoes em que o indiv (duo enquanto sujeito moral se destaque e onde um ethos indi- vidualista possa existir mesmo subordinado a uma ordem holista dominan- te. Essa coexistencia esta longe de ser necessariamente paclfica e e, de certa forma, uma contradicao. 0 pr6prio sucesso individua/izado do que sai nao precisa ser vista como complementar aos que ficam nem percebido como reforc;:o da posicao dos grupos de parentes e farrulia. Assirn e que as acusacoes de ingrato, avarento, egolsta sao constantemente acionadas em situacoes coma essa, em que se definem atores com diferentes experiencias e percepcdes da realidade. 0 que se individualiza mais e potencialmente um desviante na medida em que, por sua pr6pria trajet6ria, tendera a nao

    48 individualismo e cultura

    I. I

  • ser ortodoxo aos costumes e normas de onde saiu. Mas ha tarnbern outro lado da moeda: o desviante sai para individualizar-se, movimento que lhe e dificultado pelo controle social de sua famllia, bairro, cidade, Como ja foi mencionado, isso e vivido como repressao, abafamento. Como esta em discussao um sistema social em que as localidades e grupos nao estao com- partimentados, e 6bvio que estes nao podem ser tratados como unidades autonornas e isoladas. Assim, as pessoas estudadas por Carmem Dora Gui- maraes sabiam que, indo para o Rio de Janeiro, sua vida poderia ser di- ferente encontrando maior margem de manobra para exercer, entre outras coisas, suas preferencias sexuais (Guimaraes, 1977). A pr6pria ernerqencia do desvio dentro do grupo original demonstra que em termos culturais mais arnplos ha possibilidades de leituras mais diversificadas e diferenciadas do que se costuma supor. Mesmo nos ambientes supostamente mais tradi- cionalistas e conservadores encontram-se indivlduos e grupos cuja visao de mundo e ethos sao discrepantes e contradit6rios com a ordem moral dorni- nante. Issa nao nega o fato de que, em geral, nas grandes metr6poles e particularmente em certas reqifies morals. nos termos de Park (ver Park, 1925), concentrarn-se os mais variados tipos de minorias e desviantes. A modernidade da vida metropolitana consiste nessa variedade de estfrnulose experiencias que permite 0 pluralismo de 120 e "n.divjdualidades como

    -mos rou 1mme ver Simmel, 1967). Portanto, toda sociedade desenvolve mecanismos para definir umi

    ~

    ugar para o indivlduo-agente empfrico. Este tern de assumir ~ res- ponsabilidades e deveres de acordo com seu sexo idade,_gosic;~hie- arquia. ao existe sociedade que encaminhe esse processo sem nenhum 1po de tensao. No entanto, a ernerqencia e o desenvolvimento da ideologia

    individualista moderna mudam a direcao e o sentido da problernatica, Nern sempre o seu perfil aparece com nitidez. Nern todo comportamento ou ati- tude individualista, no sentido de servir aos interesses do indivlduo, expres- sa uma visao de mundo em que o agente empirico e o sujeito moral e uni- dade minima significativa. A sociedade brasileira, sob esse aspecto, oferece situacoes particularmente complexas. Nos grupos de camadas medias que estudei encontrei diversas pessoas freqiientadoras de terreiros de umbanda e centros esplritas. Em geral, em termos de freqiiencia regular, nao perten- ciam aos setores mais altos das carnadas medias em termos de educacao, recursos, situacao financeira. De alguma foma, sua opcao tern um carater individualista na medida em que, devido a sua. posicao na estratificacao social, sao capazes de manipular diferentes recursos sirnbolicos ligados a dom(nios distintos, permitindo-lhes mover-se entre varies pianos. Funcio- narios publicos, professores, militares etc. com posicoes bem definidas e que atraves de sua relacao com o sagrado e, especificamente, com a crenc;a na cornunicacao com esp ir itos, entidades sobrenaturais, divindades, mar- cam de forma vigorosa sua identidede social (remeto novarnente aos tra-

    prestlgio e sscensio social 49

    I I

  • s Ha interessantes suqestdes sobre isso no trabalho de Luiz Fernando Dias Duarte, "O culto -do Eu no templo da razao ". PPGAS/Museu Nacional (datilografado). A pesquisa, ora em conclusso, de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (PPGAS/ Museu Nacionall trara tambern consideravel contribuicao para essa area de lnvestlqacdo,

    Nao ha um unico individualismo. E perigoso confundir a ideologia indivi- dualista, analisada por Dumont, com toda e qualquer possibilidade de o ii1aivlduo-a'gente empfrico encontrar esp~s e manipular situai;oes. Rosen, i1ci obra citada, chega a falar em -um indiv/iiua/ismo agon(sfico em Sefrou, no Marrocos, onde parentesco, tribo, vizinhanca, embora demarcadores de fronteiras, longe de canter e englobar, constituem campo de manobra para os interesses e manipulacfies individuais.

    Nesse sentido, ascensao e prestfgio sociais devem ser contextuali- zados e s6 assirn poderao ter seu siqnificado apreendi