Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em · analogias, de similitude, de...
Transcript of Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em · analogias, de similitude, de...
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
260
MEMÓRIA e INTERTEXTUALIDADE em Reparação e Mãos de Cavalo
MEMORY and INTERTEXTUALITY in Atonement and Horse Hands
DÓRIS HELENA SOARES DA SILVA GIACOMOLLI 1
1 Aluna do Programa de Mestrado em Literatura Comparada na Universidade Federal de Pelotas – Brasil,
sob orientação do professor José Carlos Marques Volcato. (e-mail: [email protected])
Resumo
Segundo a crítica literária Tiphaine Samoyault, a
intertextualidade é um fenômeno comum a todos os textos e
consiste na relação que eles estabelecem entre si. O nosso
objetivo é analisar a intertextualidade entre as narrativas
Reparação de Ian McEwan e Mãos de Cavalo de Daniel
Galera. Analisaremos a memória e o sentimento de culpa que
a personagem-narradora Briony Tallis e Hermano, o Mãos de
cavalo, carregam, bem como a maneira que encontraram para
lidar com este problema.
Palavras-chave: memória, culpa, segunda oportunidade,
reparação, intertextualidade.
Abstract
According to the literary critic Tiphaine Samoyault,
intertextuality is a common phenomenon to all texts and it
consists in the relationship they establish among themselves.
Our goal is to analyse the intertextuality between the
narratives Atonement by Ian McEwan and Horse Hands by
Daniel Galera. The memory and the feeling of guilt that the
character-narrator Briony Tallis and Hermano, the Horse
hands, carry will be analysed, as well as the way they found to
deal with this problem.
Keywords: memory, guilt, second chance, atonement,
intertextuality.
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
261
Introdução
A intertextualidade é, com efeito, a memória que a literatura tem de si mesma,
uma poética de textos em movimento. Os textos nascem uns dos outros, influenciam uns
aos outros, ao mesmo tempo em que nunca são uma reprodução simples ou uma adoção
plena dos termos e ideias dos outros. A literatura se escreve com a lembrança daquilo
que é e daquilo que foi; constitui procedimentos de retomada, de lembrança, de
analogias, de similitude, de confrontação, de re-escrita que fazem aparecer o intertexto.
Todos estes processos fazem com que a literatura comparada seja a relação entre pelo
menos dois textos. Literatura comparada é o estudo dos laços de intertextualidade, o
cotejo, a comparação e a confrontação entre os textos.
Intertexto significa que há uma similaridade entre um texto literário que é
anterior a outro, em cuja elaboração influencia direta ou indiretamente. O intertexto se
manifesta como em uma tessitura em que os pontos de uma obra de tapeçaria podem ser
vislumbrados em outra. Enfim, através deste entrelaçamento pode se vislumbrar o
entendimento de como uma obra literária se interliga com outras obras, formando elos
de uma infindável corrente, que é evidente em todos os períodos da literatura.
Intertextualidade pode ser uma espécie de conversa entre textos. Em A
intertextualidade, (2008), Tiphaine Samoyault apresenta figuração inovadora para o
conceito ao afirmar que a intertextualidade pode ser compreendida como sendo a
“própria memória da literatura”. Ela comenta que o termo “intertextualidade” possui
vários sinónimos: “tessitura, biblioteca, entrelaçamento, incorporação ou simplesmente
diálogo” (Samoyault, 2008: 9). Samoyault propões práticas intertextuais, isto é, instalar
e instaurar relações de co-presença e também relações de derivações. Apesar dessa
pluralidade de nomenclaturas, esses termos referem-se ao fenómeno comum a todos os
textos: a presença de outros textos dentro deles. A intertextualidade é como uma árvore
genealógica de vários galhos, diz Samoyault e, às vezes, é impossível determinar a
origem dessa relação intertextual. Mikhail Bakhtin (2002) foi um dos pioneiros no
estudo da intertextualidade, embora não tenha utilizado o termo para definir a relação
dos textos com outras estruturas. Para Bakhtin, o discurso romanesco é um diálogo com
outros textos,
uma intersecção de superfícies ao invés de um ponto (um
significado fixo), um diálogo entre muitos escritos: aquele do
escritor, o do destinatário (ou do personagem), e o contexto
cultural contemporâneo ou anterior. (In Kristeva, 1984: 65).
O texto é considerado elemento constitutivo da sociedade e o autor ao escrever
seu texto é um indivíduo compartilhando ativamente da história ao ler e reescrever
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
262
textos que existiram anteriormente. Segundo Bakhtin, o autor não é aquele que somente
manipula o texto, mas sim alguém que avalia outros pontos de vista e os incorpora no
seu próprio, cunhando uma relação dialógica. A aproximação e o diálogo entre textos é,
então, como a consciência humana, formada por exterioridades, pontos de vistas de
outrem, que se encontram. A partir do conceito de dialogismo proposto por Bakhtin,
Julia Kristeva expande o estudo da intertextualidade e afirma que
todo texto é construído como um mosaico de citações; todo texto é
a absorção e transformação de um outro. A noção de
intertextualidade substitui aquela de intersubjetividade, e a
linguagem poética é lida pelo menos como dupla. (Kristeva, 1984:
66).
Partindo da teoria de Bakhtin, Kristeva afirma que a intertextualidade não se
resume somente ao diálogo entre textos, mas também à inserção da história no texto e
do texto na história, isto é, à sua ambivalência. Ler um texto não é apenas ler palavras; é
também ler a sociedade na qual este está inserindo. Assim sendo, a linguagem literária
transporta uma dualidade de significado e dialoga com outros textos e com o contexto
histórico:
Todas as palavras abrem-se assim às palavras do outro, o outro
podendo corresponder ao conjunto da literatura existente: os
textos literários abrem sem cessar o diálogo da literatura com sua
própria historicidade, e a noção tem todo o interesse em tornar a
crítica sensível à consideração da complexa relação que a
literatura estabelece entre si e o outro, entre o gênio individual
singular e o aporte intertextual e não puramente psicológico do
outro. (Samoyault, 2008: 21-22).
Intertextualidade entre Reparação e Mãos de Cavalo
Nesta perspetiva, analisaremos, pois, a intertextualidade entre Reparação de
Ian McEwan e Mãos de Cavalo de Daniel Galera. As narrativas dialogam? As palavras
de Mãos de Cavalo de Daniel Galera abrem-se às palavras de Reparação de Ian
McEwan? Quais os paralelos entre os dois romances? Até que ponto há elementos que
podem ser “a absorção e transformação de um outro”?
Reparação é narrada pela personagem-narradora Briony Tallis com a
finalidade de absolver a culpa que carrega durante a sua trajetória. Ou será o testemunho
terapêutico por si só?
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
263
Em Mãos de Cavalo o narrador, apesar de não ser personagem é omnisciente,
age como uma espécie de voz que permeia a narrativa, porém permanece fora da trama.
Sabe de tudo que se passa nas ações exteriores das personagens e também seus
pensamentos e intenções. Sabe que Hermano guardou para si uma culpa que o
acompanhou durante anos. Ele escondeu-a, mas não conseguiu absorvê-la nem aceitá-la.
Esse sentimento ficou com ele até que conseguisse resolvê-lo. A alternância entre
passado e presente leva o leitor a compreender o personagem de forma gradual, até que
o passado e o presente praticamente se transformam num só acontecimento. Para
entender o Hermano adulto, é essencial conhecer o que houve na sua adolescência,
apesar de começarmos a conhecê-lo ainda criança, andando de bicicleta e continuarmos
a conhecê-lo e a acompanhá-lo, em pequenos flashes, até aos quinze anos de idade,
metido nas suas aventuras de bairro, entre corridas de bicicleta e campinhos de futebol,
até que acontece o facto mais marcante de sua vida, que provoca ansiedade em relação à
sua própria identidade. Na segunda parte vamos reencontrá-lo já como um jovem
cirurgião plástico. Antes independentes, as duas tramas vão ganhando elementos que as
aproximam, mostrando como foi e como poderia ter sido determinado facto. Quando
chega aos trinta anos, depois de uma rápida, árdua e bem-sucedida trajetória de estudos
e experiências profissionais, começa então a colocar as suas escolhas em cheque, bem
no momento em que sai para uma longa viagem com um amigo. Para decidir-se quanto
a ir nesta viagem, passa por momentos de reconsiderações sobre as próprias escolhas
anteriores. Ao rememorar fatos passados, ele associa a visão da vista aérea da
cordilheira a uma árvore e relaciona-a com outra árvore; uma figueira pela qual se tinha
sentido atraído e por não parar o carro e chegar perto dela e dela ter retirado energia,
sente que perdeu uma oportunidade única. Ele não pretende perder novas oportunidades
de viver novas experiências, já que se encontra insatisfeito com a sua vida pacata e
monótona, sem grandes possibilidades de êxtases e grandes feitos. Era a segunda
oportunidade na sua vida e sentia que esta não podia ser perdida. Precisava de uma
segunda chance e foi o que teve no final do livro, ao salvar um menino que ia ser
surrado por outros meninos. Não ter parado para encostar-se à árvore foi a perda de uma
oportunidade de ganhar forças, foi uma chance perdida de sentir-se bem, de ser o
protagonista de uma cena quase única:
Outra ocasião, viajando de carro pela BR-101, entre Torres e
Osório, enxergou uma figueira magnífica em um sítio na margem
da estrada, e teve a mesma sensação de urgência. Teria sido a
coisa mais simples do mundo estacionar o carro e percorrer a pé os
500 metros que o separavam da árvore. Sentar encostado ao seu
tronco e atingir em poucos minutos alguma epifania, ou
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
264
simplesmente deixar a áurea daquela figueira, naquele sítio,
naquela estrada, evanescer vagarosamente, retornar para o seu
carro e seguir viagem até Porto Alegre. Perdeu aquela
oportunidade e dezena de outras. O que a imagem de satélite na
tela do computador oferecia era mais uma chance de eleger uma
chance no tempo e no espaço em detrimento de todos os outros.
(Galera, 2010: 30).
A narrativa é sobre identidade, memória, perda e culpa; a obsessão que se tem
por definir estes temas e a inutilidade geral desse esforço, pois quase nunca se chega à
definição completa. Até que ponto é possível decidir como as pessoas querem ser e que
imagem os outros terão delas? O protagonista agarra-se a factos do seu passado, suas
sensações e lembranças, que só vamos conhecer quase no final da narrativa quando ele
decide resolvê-los, indo até ao bairro Esplanada, em vez de ir à viagem ao Cerro
Bonete. Temos o primeiro prenúncio quando ele encontra um garoto sendo surrado no
terreno baldio do bairro da sua infância.
Cem metros adiante, vê o momento exato em que um dos
perseguidores alcança o garoto fugitivo, agarra sua camiseta e o
derruba no chão. (...) A desvantagem numérica é gritante, mas
dessa vez não vai se esconder. (Galera, 2010: 149).
Os capítulos vão-se intercalando com flashbacks da idade adulta e da
adolescência, a partir da reflexão e rememoração de Hermano acerca do seu passado.
Quando adulto, ele tem a oportunidade de se livrar desse sentimento de culpa e fazer o
que não teve oportunidade no passado:
Ele berra. Berra e chama todo o mundo pro pau. A dor que irradia da
testa por toda a cabeça é estonteante. Sente gosto de sangue. Não é a
primeira vez, mas desta vez é o sangue da bravura não da covardia.
O gosto é outro. É bem melhor. (Galera, 2010: 151).
Certos acontecimentos vão aos poucos se conectando no tempo e no espaço
dramáticos. Este passado só vamos conhecer mais tarde quando ele e Bonobo, o amigo,
estavam no acesso à clareira e se descobriram perseguidos pelo Uruguaio e seus
companheiros.
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
265
Corre. (...)
Hermano largou o garrafão no meio da rua e correu também.
Nisso ele era bom. Correr. Alcançou Bonobo com facilidade e
olhou para trás. Eram cinco ou seis, entre os quais dois, pelo
menos, brandiam objetos que podiam ser pedaços de pau ou barras
de ferro. (...) A hipótese de um enfrentamento vinha acompanhada
de clarões de terror que o impeliam a correr ainda mais rápido.
(Galera, 2010: 170).
A tensão gerada é entre o passado e o futuro; sobre o que o personagem
idealiza e o que ele esconde de todos, mas não de si mesmo. Tudo vem à tona quando,
com um choque, percebemos o que ele fez: machuca-se a si mesmo, após o Uruguaio ter
batido em Bonobo até à morte deste ─ a intenção era fingir uma luta em defesa do
amigo:
Antes de justificar porque estava com o rosto ensanguentado ao
entrar correndo esbaforido na pequena clareira [...] ficou alguns
instantes registrando a surpresa na expressão de cada um deles,
coletando para o seu deleite olhares, caras e bocas que
manifestavam a certeza instantânea que ele, Hermano, havia
recém-participado de algum episódio violento, um conflito do qual
somente ele havia escapado para retornar e avisar os demais,
trazendo no rosto as marcas de um combate inquestionavelmente
real. (Galera, 2010: 171).
Na verdade, não sei se neste trecho o leitor pode, sem sombra de dúvida,
identificar o facto de que ele se machuca a si mesmo, ou se pode chegar a pensar que o
narrador pulou uma parte do relato a ser contado, que será contado mais tarde, onde ele
realmente participou do conflito e defendeu o companheiro, ou se isso só fica
inquestionavelmente real quando ele confessa que se machucou para fingir uma valentia
que não tinha:
(...) saíram todos correndo pela trilha no meio do mato escuro em
direção à rua para conferir o estado de Bonobo dentro do buraco
na calçada, menos o próprio Hermano que ainda ficou um
momentinho agachado na frente do fogo, reavaliando todos os
detalhes da história que tinha acabado de contar e revisando tudo
aquilo que tinha modificado ou omitido, pois na verdade, ele não
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
266
tinha voltado para ajudar o Bonobo, tinha ficado covardemente
escondido dentro do mato enquanto um espancamento acontecia a
poucos metros de distância. (Galera, 2010: 173).
Reparação é a história de uma menina, Briony Tallis, 13 anos, a mais nova dos
três irmãos da família Tallis, que constrói uma ficção para se livrar da culpa que
carrega e reparar o mal que causou na vida real. A narradora-personagem tem uma
mente extremamente criativa. Briony é uma criança muito inteligente. Envolta nos seus
sonhos e desejos, inventa histórias e almeja um dia tornar-se uma famosa escritora. Os
problemas têm início dessa forma: inocente, a garota começa a vislumbrar detalhes do
mundo adulto que não compreende e cria enredos e situações para os cenários que se
apresentam à sua volta. Durante uma visita dos primos − Pierrot, Jackson e
Lola − Briony monta o roteiro de uma peça de teatro a ser protagonizada pelos quatro:
Arabela em Apuros. Tudo dá errado e, devastada, a jovem fica irritada com tudo e
todos. Briony é uma criança solitária que aproveita a ausência do pai, um servidor
público do alto escalão do governo britânico, e a negligência da mãe, que nunca está por
perto devido a crises de enxaqueca, para se fechar no seu mundo extremamente
organizado e idealizado.
A história é dividida em três partes (e um epílogo): a primeira narrada
principalmente sob a perspetiva de Briony, com treze anos; a segunda seguindo Robbie
e as consequências que lhe couberam após a injusta acusação de Briony; e uma terceira
com a voz de Cecilia, apresentando o seu afastamento da família e a espera por Robbie.
Num dos dias mais quentes de 1935, Briony vê uma cena incomum: a sua irmã
mais velha, Cecília, despe-se diante do ex-colega de Cambridge e filho da empregada,
Robbie Turner, e mergulha na fonte em frente à casa dos Tallis. Confusa com o que
presencia, Briony julga ter visto Robbie obrigar a sua irmã a humilhar-se em frente dele
e, após ler um bilhete escrito pelo rapaz e destinado a Cecília, a menina declara guerra
ao “vilão”, o filho da empregada que sempre enganara a todos. Mais tarde, durante o
jantar, os primos do Norte, os gémeos Jackson e Pierrot Quincey, fogem e, no meio da
busca, a irmã deles, Lola, é violentada por um homem misterioso, que Briony julga ser
Robbie. O rapaz é, então, condenado à prisão e, para reduzir a pena, decide entrar para o
exército britânico e combater na Segunda Guerra Mundial. Anos depois, Briony tenta
reparar o erro que cometeu ao acusar Robbie e escreve sobre a cena da fonte, mas
interroga-se sobre se a escrita pode trazer a reparação tão desejada por ela:
Briony era uma dessas crianças possuídas pelo desejo de que o
mundo seja exatamente como elas querem. Enquanto o quarto da
irmã mais velha era um caos de livros abertos, roupas jogadas,
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
267
cama desfeita e cinzeiros sujos, o de Briony era um santuário
erigido a seu demônio controlador: a fazenda em miniatura,
espalhada no largo parapeito da janela, continha os animais
tradicionais, porém todos virados para o mesmo lado — para a
dona —, como se estivessem prestes a começar a cantar, e até
mesmo as galinhas estavam muito bem dispostas em seu
galinheiro. Na verdade, o quarto de Briony era o único cômodo
arrumado do andar de cima. Suas bonecas, de costas bem eretas,
dentro de sua mansão de muitos quartos, pareciam obedecer à
injunção de jamais se encostar-se às paredes; os diversos
bonequinhos que habitavam sua penteadeira — caubóis,
mergulhadores de escafandro, ratos humanizados —, de forma tão
ordenados, mais pareciam um exército de cidadãos aguardando
ordens. (McEwan: 3).
Ao mesmo tempo que afirma que não tinha segredos, que tudo estava
às claras:
Porém não havia gaveta oculta, diário com cadeado nem sistema
de criptografia que pudesse esconder de Briony a verdade pura e
simples: ela não tinha segredos. (McEwan: 4).
Não havia nada em sua vida que fosse interessante ou vergonhoso
que chegasse para merecer ser escondido; ninguém sabia do crânio
de esquilo debaixo de sua cama, mas também ninguém queria
saber. (McEwan, p. 4).
ela deixa escapar que há algo escondido “sob a cama”.
Seis décadas depois, ela mostraria como, aos treze anos de idade,
havia atravessado, com seus escritos, toda uma história da literatura,
começando com as histórias baseadas na tradição folclórica
europeia, passando pelo drama com intenção moral simples, até
chegar a um realismo psicológico imparcial que descobrira sozinha,
numa manhã específica, durante uma onda de calor em 1935. Ela
teria perfeita consciência do quanto havia de automitificação nesse
relato, que apresentava num tom irônico ou herói-cômico. Suas
obras de ficção eram conhecidas por sua amoralidade, e, como todos
os escritores a quem é sempre feita a mesma pergunta, sentiu-se
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
268
obrigada a produzir uma história, um enredo de sua autoria, que
contivesse um momento em que ela se tornara a pessoa que
reconhecia como ela própria. Sabia que não era correto falar em
suas peças no plural, que seu tom zombeteiro a distanciava da
criança séria e pensativa, e que o que estava evocando agora não era
aquela manhã tão distante, e sim os relatos que havia feito dela
posteriormente. Era possível que a contemplação de um dedo
dobrado, a ideia insuportável da existência de outras mentes e a
superioridade das histórias sobre as peças fossem pensamentos que
lhe haviam ocorrido em dias diferentes. Sabia também que o que
quer que houvesse ocorrido de verdade ganhava importância a
partir de sua obra publicada, e não teria sido lembrado se não
fosse ela. (McEwan: 24).
Briony gostava de comandar, de ser o narrador onisciente, que sabia o que
cabia a cada um representar.
Já preparei os papéis de vocês todos, tudo pronto. (McEwan: 6).
Odiava não estar no controle a situação:
Briony ficou olhando fixamente para ela, incapaz de conter uma
expressão de horror, incapaz de falar. Estava perdendo o controle,
sabia disso, mas não conseguia pensar em nenhum comentário que
tivesse o efeito de reverter a situação. (McEwan: 9).
No trecho seguinte há um prenúncio de algum facto perdido no passado que
precisaria ser consertado, refeito:
Tinha vontade de ir embora, de se deitar de bruços e ficar sozinha,
na cama, saboreando o azedume atroz naquele momento e ir
retrocedendo na cadeia bifurcante de causalidade até chegar ao
ponto em que a destruição começou. (McEwan: 10).
Ao longo da narrativa surgem pistas reveladoras de um acontecimento que
mudou a sua vida; são mostrados frequentes fluxos de consciência:
Autocomiseração exigia atenção concentrada, e só na solidão ela
poderia evocar de modo vivido os detalhes torturantes, mas, no
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
269
instante em que concordou — como um movimento de cabeça
podia mudar toda a vida! (McEwan: 10).
Briony afirma, embora quase passe despercebido, que há outra verdade a ser
definida ao longo do tempo; após perceber o seu erro, busca reparação.
A definição haveria de se refinar com o passar dos anos. (McEwan: 23).
Briony traz Cecilia e Robbie de volta dos mortos.
A última parte, o epílogo “Londres, 1999”, revela o desejo da
reconciliação que Briony procura ao longo de sua vida e expõe o
seu dilema: “como pode uma romancista alcançar reparação
quando, com seu poder absoluto de decidir como uma história
termina, ela também é Deus?” (McEwan: 444).
Escrever é a única alternativa que resta aos nossos personagens para a expiação
das suas culpas. Após ter acusado falsamente Robbie, Briony convive com uma imensa
culpa e tenta redimir-se criando um novo fim para eles. Tenta consertar os seus erros
fazendo reparações para as trágicas consequências do seu falso testemunho. Briony
escreve para fazer uma confissão da sua culpa.
As ações, ela se julgava capaz de relatar direito, e diálogo era o seu
forte. Sabia descrever a floresta no inverno e a aspereza do muro de
um castelo. Mas o que fazer com os sentimentos? Era muito fácil
escrever Ela estava triste, ou descrever atos plausíveis de uma
pessoa triste, mas o que fazer com a tristeza em si, como exprimi-la
de modo que fosse possível senti-la com toda a sua terrível
realidade? Mais difícil ainda era a ameaça, ou a confusão de se
debater entre sentimentos contraditórios. (McEwan: 63).
Cecília não perdoa Briony.
Preferiram acreditar no depoimento de uma menina boba e
histérica. Aliás, até a estimularam, impedindo que ela voltasse
atrás. Ela só tinha treze anos, eu sei, mas não quero nunca mais
falar com ela. (McEwan: 113).
Com um narrador omnisciente, na 3ª pessoa, Ian McEwan mostra que Briony
se torna claramente consciente da sua culpa, quer conversar sobre ela com a irmã, ao
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
270
contrário de Hermano, que não a compartilhou com ninguém, exceto nós, os leitores.
Briony escreve-lhe, mas a carta não surte efeito:
A carta que ela me mandou é confusa e me confundiu. Quer se
encontrar comigo. Está começando a se dar conta do que fez e das
implicações de seu ato. (Mc Ewan: 115).
Briony não encontra o perdão da irmã. Nada pode fazer para que se sinta
melhor, a não ser escrever o livro:
Diz que quer ser efetivamente útil de algum modo. Mas tenho a
impressão de que ela resolveu fazer enfermagem como uma
espécie de penitência. Ela quer me procurar e falar comigo. Posso
estar enganada, e é por isso que eu ia esperar para lhe contar isso
pessoalmente, mas acho que ela quer retirar seu depoimento. Quer
retirar seu testemunho e fazer isso de modo oficial e legal. Nem
sei se isso é possível, já que o recurso que você impetrou foi
indeferido. Precisamos nos informar mais a respeito da lei. Talvez
fosse bom eu consultar um advogado. Não quero alimentar nossas
esperanças em vão. Talvez ela não esteja pretendendo o que eu
imagino, ou não esteja preparada para levar a coisa até o fim. Não
esqueça que ela é uma sonhadora (McEwan: 115).
Conclusão
O diálogo entre as duas obras é constante. A principal reflexão dos livros é
sobre a intensa culpa que os personagens carregam até a vida adulta e da qual não
conseguem livrar-se.
As confissões de Briony revelam autoacusação e mostram que as informações
repassadas por ela são compostas por imagens e impressões que traz na memória:
Agrada-me pensar que não é por fraqueza nem por evasão, e sim
como um gesto final de bondade, uma tomada de posição contra o
esquecimento e o desespero, que deixo os jovens apaixonados
viver e ficar juntos no final. Dei-lhes a felicidade, mas não fui
egoísta a ponto de fazê-los me perdoar. Não exatamente, não
ainda. (McEwan: 444).
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
271
O que realmente importa é que Briony testemunha e pratica um ato final de
bondade: na sua imaginação, na sua obra, escreve o fim da narrativa e cria um final feliz
para a irmã, tentando redimir-se e criar um final feliz para a história, quase como se
dissesse: “seria assim se eu não tivesse alterado as circunstâncias e eu, como escritora e
narradora omnisciente, portanto quase um deus, posso alterar as histórias e os destinos
das pessoas”.
Na sua tentativa de alcançar o perdão, escreve um último capítulo de um livro
com a história onde o casal separado por sua causa vive um final feliz, mesmo que seja
na sua imaginação.
Em Mãos de Cavalo, Hermano teve a sua oportunidade mais real de redenção:
na idade adulta, encontrou uma maneira de se livrar do sentimento de culpa que o tinha
acompanhado durante muitos anos. Só quando teve a chance de enfrentamento e de
fazer o que não teve oportunidade no passado, é que pôde livrar-se da culpa. O facto de
ter defendido o menino, pode ter significado que de alguma forma, ele se considere
redimido perante si mesmo.
Ao contrário de Briany, que enfrentou a culpa de maneira mais real e à vista de
todos, Hermano nunca contou a ninguém das suas relações de amizade ou a seus
familiares o que aconteceu na adolescência. Nem quando voltou ao bairro da infância,
mesmo indo a casa de Naiara, onde poderia ter-se confessado e dito pela primeira vez
que tinha sido covarde, ele não teve nenhum gesto. Virou as costas e foi embora, sem
ter dito nada de especial. Então não houve catarse, não houve expiação, não houve
esclarecimento, revelação, libertação, nem reparação. Embora tenha havido o ato de
escrever para libertar-se, o que ele realmente não suportaria era ostentar a covardia de
não tentar evitar a morte do amigo. Contar isso a alguém, assumir que fora medroso e
assumir a sua parte da culpa teria sido terapêutico, poderia fazer com que ele se
reconciliasse consigo mesmo, mas Hermano ficou adulto e nunca foi capaz de assumir
perante ninguém que foi um covarde.
(...) ele estava convencido a manter em segredo, pois não
suportaria continuar vivendo se precisasse ostentar essa covardia
dali para a frente como uma cicatriz na testa, ser o cagalhão,
aquele que entrou no mato e ficou quietinho enquanto batiam tanto
no seu amigo que acabaram matando; não, isso seria insuportável.
( Galera, 2010: 173).
Tiveram que recorrer à escrita para tentar obter a absolvição das suas culpas. O
dano cometido pelas personagens foi permanente. Quer pela omissão de Hermano, quer
pelo testemunho de Briony, as consequências foram terríveis e irreversíveis. Ainda que
Hermano tenha salvo o menino do grupo que o perseguia, isso não restituiu a vida a
Giacomolli, Dóris (2014). Memória e Intertextualidade em Mãos de Cavalo e Reparação. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura.
(novembro de 2014). Pp. 260-272.
272
Bonobo. O facto de ter permanecido escondido, sem sequer procurar por socorro,
enquanto o amigo era espancado e morto, é algo impossível de mudar e nada altera o
facto de que o testemunho de Briany tenha causado o afastamento permanente do casal
Cee e Robbie. Robbie e Cecília morreram em 1940. Não conseguiram nunca perdoar
Briony. Sendo assim, a única esperança de perdão para estes personagens são os
leitores. Nós, que escolhemos ler os livros e ser seus “confessionários”. Nós somos as
suas únicas hipóteses de perdão ─ daí que eles tenham escolhido a escrita para procurar
o perdão pelos erros cometidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bakhtin, Mikhail (2002). Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance. In Questões de literatura e
de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernadini et al. (4. ed.). São Paulo: Editora UNESP.
Galera, Daniel (2010). Mãos de Cavalo. São Paulo, Companhia das Letras. Intertextualidade. Disponível
em: <http://www.infoescola.com/redacao/intertexto/>.
Kristeva, Júlia (1984). O texto do romance. Lisboa: Livros Horizonte.
Mc Ewan, Ian. Reparação. Disponível em:
<http://www.epubbud.com/read.php?g=2ZVF5NK7&p=1&two=1>. Consultado em 21.11.2013.
Narrador. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/05.pdf>. Acesso em 21.11.2013.
Samoyault, Tiphaine (2008). A intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo e Rothschild.
Shoah. Memória. Disponível em: <http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2011/05/10-Mem%C3%B3rias-e-
testemunhos-a-Shoah-e-o-dever-da-mem%C3%B3ria.pdf>. Acesso em 19.11.2013.
Recebido: 17 de dezembro de 2013.
Aceite: 15 de março de 2014.