Gersao, t. Os Anjos

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  • Teolinda Gerso nasceu em Coimbra, em 1940, estudou nas Universidades de Coimbra, Tbingen e Berlim, doutorou-se em 1976 e prosseguiu na carreira universitria at 1995, como professora catedrtica da Universidade Nova de Lisboa. O seu primeiro romance, O Silncio (198 I), foi saudado pela crtica como um livro-data na fico portuguesa ps-25 de Abril. Tendo nascido e crescido sob a ditadura fascista, o sofrimento imposto ao indivduo por estruturas autocrticas, no s poltico-sociais mas tambm culturais :e mentais, um dos temas recorrentes na sua obra. Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (1982) retrata uma sociedade sufocada pela censura, exausta por uma guerra colonial injusta e sem sada, e encena o derrubar da ditadura de O.(liveira) S.(alazar). Outras formas de opresso social e mental so os temas de O Cavalo de Sol (1989), retomados, de forma irnica, em A Casa da Cabea de Cavalo (1995). Alm da estadia na Alemanha viveu dois anos em So Paulo, Brasil (reflexos dessa estadia surgem em alguns textos de Os Guarda-Chuvas Cintilantes) (1984) e conheceu Moambique, cuja capital, ento Loureno Marques, o lugar onde decorre o romance de 1997 A Arvore das Palavras. Em 1999 editado Os Teclados (narrativa). As suas ohras encon t ram-se traduzidas em diversas lnguas. {J Silncio c O Cavalo de Sol foram distinguidos com o prmio do f'cn (:Iuh e A Casa da Cabea de Cavalo foi vencedor do (;randc Prmio de Romance e Novela da Assodao Porruguesa dt Escritorc.li. Os Anjos o seu livro mais recente.

    reolillda Gers()

    OS ANJOS Narrativa

    2.a edio

  • HibliorL'cl Naollal - Caralogao na Publicao l ;L'rsJo, ')'L'olinJa, 1 40-Os anjos: narrativa. - (Aurores de lngua portuguesa) ISBN 72-20-1747-0 CDU 821.134.3-3"19"

    Publicaes Dom Quixote, Lda. Rua Cintura do Porro Urbanizao da Marinha - Lore A - 2,0 C 1900-649 Lisboa Portugal

    Reservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigor

    2000. Teolinda Gerso e Publicaes Dom Quixore

    Reviso ripogdflca: Francisco Paiva Rolo I." edio: revereiro de 2000 2." edio: Novemhro de 2000 hJrocomro\io: J\BC (;rfica, I.da, I Jcr\iro It:galn." ),)722H/OO IrflJ!f('\\;io ( ' alaharm:nro: (;rfica Manuel Barbosa & hlhos, l.da.

    I\Br 1: 'r/). J.(J 1Ft/o

    A minha me estava em cima de um banco e tinha na mo uma cavaca acesa. Eu tinha ido prender o co e quando voltei dei com ela assim.

    Gritei-lhe da porta: Pra! Mas ela no me ouvia, esticava o corpo e

    agitava os braos, o fogo saa da cavaca e tocava nas traves do tecto. Corri para ela e agarrei-lhe os ps, ento ela caiu por cima de mim e comemos a arder, eu tinha muito calor na cara e sentia a roupa colada ao corpo. Ento ela parou de rebolar no cho e de gritar, agarrou o cntaro da gua e deitou-o por cima de ns, a cozinha encheu-se de fumo e no se conseguia ver nada.

    Depois ela comeou a chorar e a tremer de frio e disse que a culpa era minha, porque lhe

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  • tinha agarrado'- os ps e ela no podia sal tar do banco.

    No sei se foi por minha causa que ela caiu. Eu s tinha querido agarrar-lhe a camisa de noite e pux-la para baixo, mas talvez com a aflio lhe puxasse os ps e tombasse banco. No sei se foi assim. Mas no valia a pena dizer mais nada.

    Quando ela se levantou e abriu a porta para deixar sair o fumo, reparei que havia um rasgo na camisa. Podia ter-lhe dito: Foi a tua camisa que puxei, a prova que est rasgada. Mas tambm no disse.

    Havia agora muito menos fumo e era como se nada tivesse acontecido. A casa afinal o pegara fogo e eu no ia contar ao meu pai. lamos ficar noite lareira, como sempre sem dizer palavra, o meu pai bebendo da garrafa at adormecer, a minha me sentada no cho, olhando em frente sem pestanejar, como se quisesse cair dentro do lume.

    s vezes estendia as mos sobre as chamas, at se queimar. A pele ficava vermelha e devia doer-lhe, mas ela nunca se queixava. Untava a mo com azeite, enrolava-a num leno, voltava a sentar-se e continuava a olhar o fogo.

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    Se eu me punha na fren te ela no me via. (Js olhos pareciam vazios, como se tivesse ficado cega de repente. Nunca sorria quando lhe sorramos, nem se voltava para ns quando a chamvamos.

    No princpio o meu pai enfurecia-se, quando ela comeou a ficar assim. No se vestia nem penteava, trazia a camisa de noite o dia inteiro, andava descala e falava sozinha, no fazia a lida da casa, esquecia-se do )antar. O meu pai bebia e partia a garrafa na parede, dizia que assim no se podia viver, ela no respondia, deixava cair os copos e os pratos e ficava a torcer as mos e a olhar a janela.

    A certa altura comeou a fugir de casa, en-, :contrvamo-Ia mais longe, cada debaixo das ,rvores, com os cabelos cheios de terra e parecendo dormir de olhos abertos. Quando a .levantvamos olhava-nos espantada, como se nada do que acontecia tivesse relao com ela. E houve o dia em que cortou os pulsos com a faca da cozinha e a encontrmos numa poa de sangue, debaixo da nespereira.

    Ento o meu pai montou-a na burra e levou-a ao mdico da vila. Andaram trs lguas,

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  • ele a p e ela montada na burra. E toda a gente viu como ele lhe queria bem.

    O meu pai sempre tinha dito que a minha ,me era muito bonita. Tinha um retrato dela em cima da prateleira, com um vestido novo, n um dia de festa. Nesse tempo do retrato a minha me ria e cantava e eu ainda no tinha nascido.

    Agora, em cima da burra, ela ainda parecia bonita, sentada ao lado do alforge e do saco do farnel, com uma blusa de manga curta s Horinhas, que o meu pai a obrigou a vestir, e um chapu de palha na cabea. Mas debaixo ,do chapu a cara estava triste, parecia que nem 'tinha olhos.

    Quando l chegaram o meu pai disse:' Doutor, olhe que eu morro se ela nunca mais ficar como era dantes.

    O mdico limpou os culos e enxugou a testa, mandou-a tirar a blusa e auscultou-a, tomou-lhe o pulso e receitou uns ps que ela deitava num copo e desfazia em gua e depois ficava todo o dia a dormir.

    Quando acabou de os tomar voltaram l , o mdico receitou-lhe outros ps e disse que no havia mais nada a fazer, porque no tinha

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    cura. Ela tornou a tomar os ps e a durmir o dia todo, e continuou a fugir de casa e a olhar, emparvecida, para o lume.

    O meu pai tinha medo que ela se queimasse, se perdesse nos campos, morresse afogada no rio. Vigiava-a constantemente quando estava em casa e antes de ir para o trabalho di-7.ia-me: Olha pela tua me, se no acontece uma desgraa.

    .

    Eu tambm tinha medo que lhe acontecesse algum mal, por isso, e porque o meu pai mandava, a seguia sempre.

    Mas ela no gostava de ser seguida, desatava a gritar e a ficar vermelha, as pernas e bra os punham-se rijos como paus, comeava a vomitar e a espumar da boca, e revirava os olhos para cima. Bastava um olhar para enfurec-la, sobretudo um olhar do meu pai. Mas tambm comigo se enervava, fechava-me. no canil com o co ou metia-me no galinheiro e no me dava de comer durante todo o dia.

    Uma vez fugi e corri para a fonte, ela corria atrs de mim e gritava: Pra, Ilda, se no apanhas mais, eu continuava a correr porque tinha medo dela, corri at fonte com ela atrs de mim, na fonte estava a Lourena Car-

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  • neiro que me agarrou e dizia minha me, ai vizinha, agora que dar-lhe poucas, a minha me batia e a outra no me largava, at que lhe mordi na mo com toda a fora e foi assim que ela me soltou.

    De outra vez fui atrs da minha me es..; condida atrs das rvores, seguindo-a de longe para ela no me ver, ia por dentro dos valados e saltava os muros, mas de repente deu-me uma dor to forte na barriga que ca no cho e desmaiei. Quando me encontraram era quase noite, j no estava desmaiada mas no tinha conseguido pr-me em p.

    Tambm me lembro de um dia, por vingana, lhe querer pregar um susto. Escondi-me debaixo da cama enquanto ela ia fonte, e pus na minha ideia que quando ela voltasse e passasse perto lhe tocava no p, para ela pensar que era um rato e soltar um grito. Mas adormeci debaixo da cama e quando ela voltou e no me viu foi por mim a todo o lado, juntaram-se os vizinhos e andaram pelos quintais, o meu pai dizia que eu tinha cado ao poo, a minha me tinha medo que eu tivesse fugido. Quando acordei e vi a casa cheia de gente pensei que tinha acontecido alguma

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    coisa ruim, porque quando as casas se enchiam assim de gente era quando morria uma pessoa e ento no sa de debaixo da cama com medo de que algum estivesse morto e eu no sabia.

    Mas isso foi antes de ela ter piorado. Porque no princpio da doena ainda eu ia com os outros brincar no olival, onde gostvamos de estar porque havia muito espao, os mais pequenos sentavam-se em mantas, os maiores tomavam conta deles, ramos sempre muitos, porque a Lourena, a Marlia, a Prazeres e a Belmira tinham cada uma oito filhos, dormiam todos na mesma cama, uns com a cabea na cabeceira e outros com a cabea nos ps. As outras mulheres da aldeia tambm tinham muitos filhos e era bom assim, porque ningum estava s.

    Jogvamos com pedrinhas, atirvamos gravetas aos buracos, jogvamos o galo no cho e a apanhada, os rapazes pequenos faziam burros das oliveiras tortas, se encontravam algum tronco no caminho.

    Quando passava um avio dizamos: Se ele casse aqui em baixo ficvamos ricos. Porque devia haver muita coisa l dentro. E ento gri-

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  • tvamos: Cai aqui em baixo, cai aqui em baixo, e ficvamos a olhar para o cu e a agitar os braos enquanto ele passava.

    Mas depois a minha me comeou a piorar e eu fiquei em casa para tomar conta dela. No me importava, porque no gostava de andar na escola. O meu pai tambm dizia que no fazia mal eu no ir, porque assim como assim nunca l tinha aprendido nem as letras.

    A minha me ficava muito tempo janela, depois fazia uma trouxa com roupa e dizia que se ia embora. s vezes abria a porta, arastava a trouxa at soleira, e quando eu di :lia que ia com ela enfurecia-se comigo e comeava a bater-me. Outras vezes dizia que no podia levar-me, desatava a chorar e abraava-me. Escondia por fim a trouxa atrs da porta ou dentro do armrio do quarto, tirava os sapatos e guardava-os debaixo da cama, voltava para a janela e chorava olhando o caminho.

    Na altura em que o meu pai foi buscar o meu av, ela j andava assim h muito tempo. Quando se soube que a av tinha morrido e o av vinha viver connosco a minha me zangou-se e gritou e o meu pai tambm gritou, no se percebia o que diziam porque cada um

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    gritava mais alto que o outro 'E depois o--meu pai bateu com a porta e saiu e a minha me sentou-se diante da mesa da cozinha e comeou a chorar.

    Nos dias seguintes discutiram mais. O meu av era um peso, dizia a minha me. Carregasse-o ele, que era seu filho. Fosse busc-lo a casa do diabo e viesse com ele s costas, j que o trazia por paus e por pedras. E para cuidar dele, que se aviasse sozinho, com ela no contasse. Para a moer, j bastava eu.

    Mais tarde a Germana Marreira disse que tinha sido o meu av a pegar-lhe a doena, porque ele tambm deixava cair as coisas, tremia muito dos braos e das mos e ficava sentado, emparvecido, na soleira da porta. No era verdade, porque a minha me j andava assim mui to antes de ele vir. Mas era verdade que o meu av tambm estava doente, ele prprio contou. O meu pai j sabia quando o foi buscar, mas no disse nada sobre isso.

    Quando ele chegou pareceu-me quase da minha altura, porque era franzino de corpo e muito magro. Trazia um chapu muito pequeno na cabea e no tomava banho. A minha me foi-se deitar e no quis receb-lo.

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  • Durante muito -tempo fingiu que no o via, nem sequer olhava para ele. O meu pai dava-me dinheiro, eu ia comprar o necessrio e fazia o comer sozinha.

    O meu av gostava de falar. Era muito diferente do meu pai, que sempre tinha sido de poucas falas. Antes de a minha me adoecer, ela perguntava-lhe noite, quando ele vinha do trabalho: Ento? Ele encolhia os ombros e respondia: O costume.

    O meu pai cortava rvores, para a serrao. s vezes eu pensava que ele tinha emudecido, como um tronco. As rvores no tinham nada para dizer. Mas estavam l e davam sombra. Eu gostava do meu pai e das rvores.

    O meu pai tambm gostava das rvores e preferia no as cortar. Mas o dinheiro tinha de se ganhar e ele ganhava.

    O meu av tambm gostava do meu pai, embora ele no o visitasse quase nunca, no tempo em que a av vivia, e quando l ia, de fugida, no achava nada para lhe dizer. No era por mal, dizia o meu av. Ele era assim.

    Mas o meu av contava muitas coisas. A av tinha sempre sade e morreu de repente, quando ningum esperava. Ele e a av

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    eram caseiros numa quinta, nessa altura, porque a aldeia em que moravam antes tinha sido inundada. De propsito, sim. Fizeram uma barragem e abriram as comportas, a aldeia desapareceu mas as pessoas no morreram, tinham ido para outros lugares e outras casas.

    Foi nessa altura que ele adoeceu. Mas no sabia que era doena, cuidou que passava. Comeou por sentir falta de fora no polegar da mo esquerda. Foi mau jeito que dei, pensou. Mas no melhorou com o passar do tempo, alastrou tambm aos outros dedos, no conseguia separ-los nem dobr-los, sentia a mo muito pesada e inchada. Com aquela mo no conseguia pegar na ferramenta, embora com a direita segurasse bem o escopro e o martelo. Mas faltava-lhe a esquerda para trabalhar. Homessa, pensou. No querem l ver esta agora.

    A av insistia que fosse ao mdico, acabou por ir, mas s quando a falta de fora lhe passou para o antebrao e o brao e depois tambm para a outra mo. Porque ele acreditava pouco em mdicos, nunca at ali precisara deles. O mdico mandou-o a outro mdico, e este ao hospital. Foi l umas dez vezes, deram-lhe quinino, salvarsan, e at lhe fizeram trans-

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  • fuses de sangue, mas avisaram-no de que iria pIorar sempre.

    Na altura no quis acreditar, mas agora sabia: era uma coisa que trepava pelo corpo, como uma hera na parede. Avanava pedao a pedao, devagar mas sem recuos. J a sentia subir a caminho da cabea, tinha muito peso nos ombros e dores na nuca quando voltava o pescoo. Mas no lhe custava falar, e por isso falava: Lembrava-se da aldeia que tinha sido inundada, depois de todos se terem ido embora, da casa onde tinham vivido quarenta e oito anos, e onde o meu pai tinha nascido.

    A gua veio de repente e cobriu tudo, disse o meu av. Num instante galgou as ruas, as portas e janelas das casas, os telhados e as chamins, e tudo ficou debaixo dela, as pedras da calada, os passadios, as escadas, os currais do gado, os cachorros de pedra com vasos de flores. Porque ningum tinha podido levar tudo, eles prprios tinham deixado, dos lados das janelas, vasos de gernios encarnados.

    Mas eu no podia acreditar que aquilo tivesse acontecido assim to de repente, como se Deus tivesse aberto o cu e inundado o

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    mundo, porque ningum podia mandar tanta gua, s Deus. O meu av contava mal, ou tinham-lhe mentido. Fora de certeza mais devagar que tudo acontecera: eu via a gua correr, como um ribeiro (pensava nela de noite, quando ficava acordada a ouvir a chuva), depois engrossava, ficava revolta e irada como um rio, quando o rio se zangava e rugia e in undava as terras e todos lhe fugiam pela frente, as pessoas e o gado, cavalos, machos e ces, manadas de bois e rebanhos de ovelhas e cabras, homens de foicinha ao ombro, mulheres com crianas ao colo, e outras crianas tropeando, levadas pela mo -

    mas tinham tido tempo de fugir, porque a gua no matara ningum, disse o meu av,

    eu via a gua avanar, cobrir as pedras da calada, chegar s portas, s janelas, subir at cozinha, ao forno, ombreira das portas, aos cachorros das janelas, s chamins e aos telhados, e depois muito acima, muito acima das casas, de tal modo que a aldeia ficou l no fundo como um monte de conchas, de pedras ou de ossos.

    A superfcie a gua ficou larga e fechada como um mar. Ouvia-se a sua voz, a gua fa-

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  • lava. Mas a aldeia ficou em silncio, no havia nenhum som alm da voz da gua, tornou-se uma aldeia muda, um lugar dos mortos. No fundo, no fundo.

    No entanto quando fechavam as comportas e a gua retrocedia podia-se l voltar, disse o meu av. De tantos em tantos anos isso acontecia.

    Ele j no podia, nunca ia l voltar. E se calhar era melhor assim, no veria os estragos, a aldeia deserta, as ruas onde no passava ningum, as pedras, as paredes, os telhados arrancados, porque muita coisa, claro, tinha ido por gua abaixo, mas na vida era assim, muita coisa ia por gua abaixo, voltava-se a cabea e as coisas j l no estavam, as pessoas j l no estavam -

    No entanto tambm era como se a gua cobrisse a aldeia e a deixasse l guardada para sempre, pensei. Podia imaginar que a av continuava a morar na casa, assomava de quando em quando janela ao fim da tarde, esperando o av para a ceia. Podia imaginar. Aprendia muita coisa com o meu av.

    S na escola eu no aprendia. Mesmo assim, uma vez por semana o meu pai disse que

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    eu voltava l, e ele ficava com a minha me e o meu av.

    Tive ganas de fugir ou de esconder-me, para no obedecer ao meu pai. noite chorei porque tudo ia continuar como antes:

    A professora perguntava o que estava escrito no quadro preto e eu ficava a olhar e no sabia. Perguntava aos outros e logo eles respondiam: ro-da, ri-o, ri-bei-ro.

    Ento a professora deu-me com a rgua na palma da mo e mandou-me para o canto da sala com as orelhas de burro na cabea. Virei-me para a parede para esconder a cara, mas ela mandou-me voltar de frente e ento comecei a chorar porque faziam pouco de mim e a mo estava inchada e me doa.

    O Joo e o Faustino, na fila da frente, abanavam as mos em cima da cabea, a fingir de orelhas, e depois no ptio gritavam todos minha volta: burra! burra! e faziam: Hi-ho, hi-ho, e eu comecei a fugir, mas eles corriam mais e vinham atrs de mim e ento tropecei e ca e uma chanca perdeu-se, ou eles a esconderam, porque nunca mais a achei e voltei para casa com um p descalo.

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  • Mas o meu av disse que no fazia mal uma chanca a mais ou a menos. Deu-me um almanaque para eu ver as figuras e contou-me que sabia tocar gaita de beios, embora agora no pudesse tocar porque lhe faltava o sopro. Quando era pequeno tinham-lhe dado uma. Chamavam-lhe harmnica. A primeira que teve, foi ele que a inventou: era um pente pequeno, coberto com um papel de celofane. Quando ele lhe soprava com a boca, o papel cantava.

    E eu contei-lhe que no outro dia o Joo e o Faustino comearam a saltar em volta do Z Paulo, no recreio, e disseram que a irm dele se ia encontrar com o Serafim das Canas e todos se puseram a rir e a gritar, batendo com o punho na palma da mo: A tu-a ir-m e o Se-ra-fi-im-im, a tua irm e o Se-ra-fim-im-imo E o Rui disse que por causa do Serafim o homem da Palmira era destes - e espetou dois dedos na testa, e o Albertino Quintas riu-se e bateu-lhe porque isso no se dizia.

    E a Josefa abanou a saia em volta do Z Paulo e cantou: 6 Laurindinha, laranja laranja, quem no tem amores depressa os arranja e fizeram muito barulho e chacota e tor-

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    naram a dizer que a irm dele andava com o Serafinl.

    Quando vou mercearia tambm ouo falar mal do Serafim:

    Dia em que ganhe algum, perde-o logo s cartas, pela noite adiante, disse a Adelaide Pinto Fernanda Candeias. No tem nada que preste, o Serafim das Canas, a no ser boa figura. Mas disso no se vive, disse a Maria Salvada, boa figura e paleio, o diabo que os leve. Deve dinheiro a toda a gente, disse a Adelaide Pinto, o Z Caador j nem lhe fia. E dizem que no d nada Maurcia, garantiu a Felisbela Raposo, nem sequer dinheiro para alimentar a menina. E a Salvada tornou: Pois, a Maurcia, coitada, foi mais uma. Mas as mulheres ainda olham para ele, irritou-se a Eugnia. No chega o que fez Maurcia. Se calhar, querem igual. Comea a fazer-lhes olhos e elas caem que nem tordos. No sei o que tem a mais que os outros, disse a Adelaide. S se for sacanagem. E a Fernanda Candeias suspirou: Ai de quem se fia em homens desses.

    Quando vou venda buscar vinho tambm os homens falam:

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  • Pediu outra vez ao Barbeiros, disse o Cruz. Garante que vai receber uma herana, pediu por conta, riu-se o Cndido Moutinho. Pois sim, fia-te nessa e mais na Virgem, riu-se tambm o Carlos. Aquele s depois de morto que se emenda, disse o Beato Bordalo. Nem depois de morto, disse o Carlos. Ainda h-de jogar o que tem e o que no tem, com trs palmos de terra em cima.

    Eu fazia a comida e dava-a na boca ao meu av, porque as mos lhe tremiam e no segurava a colher. O meu pai vestia e lavava o meu av e ficava calado, bebendo noite at adormecer ao p do lume, a minha me continuava a fugir e a desmaiar debaixo das rvores, ou encostava-se janela, com a trouxa da roupa atrs da porta, olhando o caminho.

    Eu tambm tinha vontade de fugir, chorava noite debaixo do lenol e no me apetecia falar com ningum.

    Ao domingo, quando se sente melhor, a minha me vai comigo missa. O Serafim est sempre sada, no meio de outros homens e rapazes, mas nunca nos diz nada. A minha me tambm no diz nada, d-me

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    logo a mo e puxa por mim quando chega perto, com muita pressa de passar adiante.

    Hoje a minha me no foi missa, doa-lhe a cabea e ficou na cama e a Maria Salvada passou para me levar. sada da igreja o Serafim veio ter connosco e deu-me um embrulho. um remdio para o teu av, disse ele. No te esqueas de entregar tua me, porque urgente.

    No dei o embrulho minha me porque no gosto do Serafim, entreguei-o logo ao meu av. Ele cheirou o pacote mas no o abriu e entregou-o minha me que pareceu irritada e o meteu no bolso, com o papel e a guita.

    uma receita do boticrio de Alvio, disse a minha me mais tarde, sem olhar para ns. Dizem que um remdio bom para as tremuras.

    O meu av aceitou experimentar e ela fez-lhe um ch, que ele bebeu em pequenos goles, sem o deixar arrefecer.

    Nos dias seguintes a minha me tinha um ar melhor. Parecia-se mais com a cara que tinha no retrato, quando danava nas festas, de vestido novo. Nessa altura ela no prendia o cabelo nem amarrava o leno como agora, na

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  • parte de trs da cabea, nem se vestia de preto ou de cinzento, que eram as cores com que a vi sempre, trazia saias rodadas, de cor, e blusas atadas com fitas, que ficavam muito justas na cintura, e gostava de rir e de cantar. Quando se fica a olhar para o retrato, muito tempo, quase se pode ouvir a msica de dana.

    O meu av tambm se lembrava de ir a festas, na aldeia onde vivia. Saam os cabeudos, disse ele, o Ramada tocava concertina, o Xavier gaita de foles, e havia pandeiretas e ferrinhos, cantava-se e danava-se. O que mais se ouvia era a concertina, o Ramada comeava a tocar no cimo da vila, ao p da igreja, e vinha por a abaixo, com um cortejo de midos atrs dele. E depois juntava-se mais povo, rapazes e raparigas, homens e mulheres, todos acorriam ao toque da concertina e comeavam a danar. No largo da feira j todo o povo tinha vindo, s quem era muito velho ficava a ver da janela.

    De dentro do saco da roupa o av mandou-me tirar um gato de loua, um espelho e uma caixa de vidro em forma de meia-lua. Tinham pertencido av, disse ele, e agora eram um presente para a minha me e para mim. A mi-

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    nha nle no agradeceu, mas eu corei de prazer porque no costumava receber presentes.

    O primeiro tinha sido o almanaque. Interessava-me cada vez mais pelas figuras, ficava a olh-las at as saber de cor. Algumas tinham letras em baixo, o meu av apontava-as com o dedo. As letras diziam o mesmo que as figuras. Assim por exemplo, se ele mostrava: O co do Belarmino, em baixo as letras repetiam: O co do Belarmino. Podiam olhar-se as figuras ou as letras, eu preferia sempre as figuras.

    Um dia olhei uma figura, e as letras em baixo, e novamente a figura. E ento as letras, quando tornei a olh-las, correram a juntar-se em molhos. Cada molho era uma coisa, um molho era um co, outro molho era uma casa. Fiquei vermelha de surpresa e senti-me quase sufocar. O meu av riu-se, e eu vi que agora no podia voltar atrs: no conseguia olhar as letras sem ler o que diziam. Era assim com tudo o que me aparecia pela frente, rtulos de garrafas, caixas de fsforos, latas de sardinhas, letreiros das lojas, nomes de ruas nas paredes. Passei a ler pedaos do almanaque, uma coisa aqui e outra ali.

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  • Sentia-me curiosa e deslumbrada, mesmo quando no entendia o sentido.

    Arrumei na prateleira o gato de loua, o espelho e a caixa em meia-lua. O almanaque meti-o no gaveto do roupeiro, l bem no fundo.

    Foi nessa altura que pensei de repente: Era com o Serafim que a minha me danava. No tempo em que eu no tinha nascido.

    De noite sonhei que ouvia o som da concertina descendo a rua e uma voz que dizia: Vem danar. E ela ia, levada pela msica, os ps de ambos mal tocavam o cho, como se voassem, danavam por montes e vales, na areia das dunas e na beira das ondas, danavam mais e mais sobre as ravinas escarpadas, at que chegavam demasiado beira e ela punha um p em falso e caa no mar.

    Acordei e senti que o sonho era real. Lembrei-me de um retrato do Serafim no fundo do gaveto do roupeiro, no lugar onde havia um pedao de tbua levantada. Eu tinha-o visto, muito tempo atrs, e tinha-me esquecido. Ou isso tambm era sonho?

    Fui ver e l estava. Era um retrato muito pequenino, do tamanho de uma unha, e ele

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    estava vestido de soldado. Agora j no tinha a farda, mas a cara era a mesma, quando esperava sada da missa, ao fundo dos degraus da Igreja.

    Ol, disse-me no domingo seguinte, quando passei adiante, pela mo da Salvada. No lhe respondi porque estava a pensar nas coisas que a Felisbela, a Adelaide e as outras mulheres tinham contado.

    Amanh vou outra vez a Alvio e trago o remdio para o teu av, disse ele depressa. Passa l em casa a busc-lo.

    Continuei sem responder e fui-me embora, sem passar por casa dele a buscar nada.

    Logo a seguir a me tornou a piorar e cortou novamente os pulsos. Perdeu mais sangue, ficou muito mais plida que das outras vezes e a Lourena, a Fernanda Candeias e o Carlos Bordalo disseram ao meu pai que era melhor ela ir para o hospcio, porque no podamos vigi-la o tempo todo.

    O meu av ficou apreensivo e comeou a dar voltas em redor da casa, com a cabea inclinada. Fazia impresso v-lo caminhar: avanava com muito esforo e os braos, em lugar de balanarem, ficavam pendurados ao longo

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  • do corpo, como se no lhe pertencessem. Agora tambm nas pernas ele perdia a firmeza. Parecia-lhe que o cho lhe fugia debaixo dos ps, como se as pernas fossem curtas de mais para o seu peso, ou se tivessem transformado em borracha.

    Sentou-se finalmente no banco, na soleira da porta, como a minha me costumava fazer, e pareceu-me to alheado e perdido como ela.

    Para o fazer voltar a si, comecei a falar. Contei-lhe que o Serafim me tinha falado do remdio, mas que do Serafim s queramos distncia porque ele no prestava, toda a gente dizia.

    Mas o meu av no estava de acordo. Pode ser tudo isso que dizem, mas tambm um bom homem, achou. O remdio tinha-lhe feito bem s dores e era urgente que eu fosse buscar mais. Vai pelo olival, disse, escusas de atravessar a aldeia e de perder tempo a falar com este e mais aquele.

    No lhe contei do retrato escondido no gaveto do roupeiro, porque isso me parecia outra vez sonho. Embora fosse verdade.

    Pus-me a caminho, pelo meio do olival e dos pinheiros bravos, evitando o rio e as casas

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    ao longo da margem. A nossa era a ltima, a alguma distncia da correnteza das outras. Do outro lado da aldeia, ainda um pedao distante das primeiras construes, era o lugar onde ele morava. A primeira coisa que se via, descendo pelo olival, era o telhado vermelho e, atravs da porta sempre aberta, o claro da forja.

    Foi portanto o que vi primeiro, o fogo e o vulto dele passando adiante, de um lado para o outro. Quando cheguei mais perto, ouvi o bater do martelo na bigorna, cada vez mais forte. Falei-lhe da porta mas ele no ouviu, o barulho abafava-me completamente a voz.

    Esperei um pouco, mas ele no se interrompia, descia os braos sobre o fogo e batia o ferro, sem medo de queimar-se. Estava descalo e tive a sensao de que ele poderia andar, sem sentir dor, sobre carves acesos.

    O ferro brilhava e era vermelho como o fogo. Se se olhasse muito tempo ficava-se pregado ao cho, encandeado.

    Finalmente ele viu-me. Ol, disse. Tirou o avental de couro e, em tronco nu, saiu a porta do quintal, abriu a torneira e lavou as mos, os braos e a cara. Depois lavou os ombros e

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  • o tronco, deitando para cima chapadas de gua.

    J no trazia fuligem na pele quando se aproximou de mim, com uma toalha em volta do pescoo.

    Vens por causa do teu av. Era uma afirmao, no uma pergunta.

    No respondi e entrei pela porta atrs dele. Parei junto do fogo, com vontade de estender as mos e de tocar as chamas. Queria v-lo outra vez bater o ferro, lidar com o fogo como se domasse um animal.

    Mas ele no recomeou o trabalho. Abriu uma gaveta e retirou um embrulho em tudo igual ao outro, atado com uma guita da mesma cor. Entrega tua me, disse. urgente.

    No entreguei minha me, dei-o logo directamente ao meu av. Mas tudo se passou como antes, o meu av no o abriu e entregou-lho a ela. A minha me meteu-o no bolso do avental muito depressa, desapareceu para dentro da casa e gritou alegremente da cozinha: J lhe levo o ch.

    Nessa noite o av quis dormir no espIgueiro. Para rezar e pensar, disse.

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    Quando o vi de manh pareceu-me um morto: estava branco como a cal (ultimamente andava cada vez mais plido) e tive que o amparar para no cair. Olhei para a cruz no telhado, recortada contra o cu, como se o espigueiro fosse um jazigo, e tive medo da morte.

    Ento o av disse: So espritos que andam com ela. A tua me tem de saber o que q uerem. Tem de ir sozinha, de noite, ter com eles. De contrrio nunca a vo deixar em paz.

    O que so espritos? perguntei. So anjos, disse ele. Bons ou maus? perguntei ainda, porque ti

    nha medo pela minha me. O av abanou a cabea, como se nada

    disso fizesse sentido. So anjos, repetiu. E eu pensei que os anjos lhe batiam e ba

    tiam, lhe apertavam o corpo com tenazes e espetavam os olhos com agulhas, anjos ou espritos, havia bons e maus, mas o av coou a cabea e repetiu que eram apenas anjos e que a minha me tinha de ir ter com eles. Quando eles querem que se v, a gente tem de ir, disse ele. De contrrio acontece algum mal. No se pode desobedecer aos anjos.

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  • Mas eu no estava convencida e continuava a ter medo. E se ela se perdesse e no achasse o caminho? Se tropeasse nas pedras, casse nas silvas, se se cruzasse com lobos, se escorregasse do alto das ravinas?

    Mas o meu av abanava a cabea. Ela estaria segura, disse, porque os espritos iriam com ela e a guiariam. Os anjos.

    Ando na catequese e vou missa e por isso tambm eu conheo os anjos. So como vento ou pssaros, como um sopro roando na face. Trazem recados de Deus.

    E h tambm os querubins. E os serafins, que tm seis asas, duas para cobrir a face, duas para cobrir os ps e duas para voar. Tenho a certeza de ter ouvido isso sobre os serafins. Seguram brasas nas mos e no se queimam.

    Antes de adormecer penso nos serafins. Mas no consigo v-los, tudo o que vejo a cara do Serafim das Canas, ao fundo dos degraus da igreja, penteado com brilhantina e com olhos que parecem rir e deitar lume. Quando adormeo ele est sentado mesa da cozinha. Joga as cartas com a minha me e ganha sempre. Talvez seja por isso que ela comea a chorar.

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    A minha me passou a sair de noite, quando mudava a lua. Dias certos, uma vez em cada lua. No primeiro dia da mudana.

    No via nada em redor de si, quando voltava. No existamos ns, nem a casa, o poo, o co, os coelhos, as galinhas. No existia nada. Sentava-se ao lado do av na soleira da porta e olhava o caminho. Mas no tornou a fugir nem a cortar os pulsos. Ao contrrio do av, parecia melhorar.

    Mas o meu pai enfureceu-se e gritou que o av era um porco velho e um porco sujo, e que estava a comprar quem tratasse dele na doena e nem se importava de fazer pouco do seu prprio filho, porque ele bem sabia dos anjos e das noites de lua, agarrou na p do forno com tanta fora que julguei que ele ia matar o meu av, ou a minha me, mas o meu av deu um grito to forte que o meu pai parou de repente e deixou cair a p, encostou-se parede e escorregou para o cho como se fosse desmaiar. Durante muito tempo ficou sentado, com a cabea entre os joelhos, depois bateu a porta e saiu e s voltou passados vrios dias.

    Quando ele se foi embora tornei a abrir a porta e fiquei a olhar o caminho. Era uma

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  • noite escura e no se via nenhuma estrela no cu.

    Pensei se tambm ele iria ao encontro dos anjos. Mas s se via a noite, em toda a volta. Achei que para ele no haveria anjos no caminho.

    Fechei a porta e ouvi o meu av dizer que, se a minha me no fosse, a cada mudana de lua, mudaria outra vez ela prpria. Tornaria a ficar louca e morria.

    Quando ia noite soltar o co habituei-me a ver a lua diminuir e crescer no cu, uma lua partida que devagar se ia outra vez enchendo, como gua a subir num cntaro redondo. Outras vezes olhava-a do postigo da cozinha, quando ela parecia pousada no parapeito, como um pssaro.

    Quando a lua mudava, a minha me saa. Voltava de manh, com a roupa cheirando a fumo. No a deixava ao relento, a arejar estendida na corda, metia-a logo no armrio. Durante muitos dias, quando se abria a porta, sentia-se no ar aquele cheiro a fumo, resina, madeira queimada.

    Nas noites em que ela saa eu sentava-me no seu lugar a olhar o fogo. A lenha torcia-se,

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    sibilava como cobra, enovelava-se sobre si prpria. As chamas danavam, nunca mais largando o que tocavam, enrolavam-se em volta, faziam corpo com o outro corpo, como se o devorassem. Os troncos grossos e rugosos iam ficando escavados, finos por fim que nem galhos ou pncaros de fruta. E depois nada, sumiam-se no lume, voavam no ar.

    So horas de dormir, dizia finalmente o meu av cabeceando e acordando o meu pai, que j tinha adormecido.

    O meu pai tirava da lareira a ltima cavaca, batia-a no cho para a apagar, deitava-lhe gua por cima. A lenha chiava, deitava fumo, a gua danava superfcie, feita em pequenas bolhas, desaparecia. A cavaca ficava negra e, medida que ele a batia, ia-se desfazendo em pedaos incandescentes de carvo. Acesos por dentro, apesar da gua. Porque o fogo era mais forte.

    Num domingo, na missa, o padre tambm falou dos anjos e do fogo:

    Um rei mandava deitar trs jovens numa fornalha acesa, a chama subia e subia, saa para fora e abrasava os que estavam prximos, mas o anjo do Senhor fazia soprar uma brisa fresca

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  • como o orvalho no meio da fornalha e o fogo no os queimava e eles cantavam.

    Naquela altura eu prestava mais ateno missa, porque ia fazer a primeira comunho. O padre dizia que o dia da primeira comunho era o mais feliz da nossa vida.

    O meu av tinha piorado entretanto, trazia as pernas cada vez mais cansadas, doa-lhe a cabea, sentia formigueiro nas coxas, depois comearam a dar-lhe grandes sacudidelas como se fossem ataques, e quando lhe davam no conseguia mexer-se, deixava-se ficar dias inteiros na cama com as pernas muito encolhidas. Tambm a vista estava cada vez mais fraca, s vezes eu lia-lhe coisas do almanaque, ele gostava de ouvir, embora j no conseguisse ver nem as figuras.

    Eu abria o livro e lia o que calhava: Leito de Janeiro, vai com a me ao fumeiro. Tempor a castanha que por Maro arreganha. O sol nasce s 7h e 55 m e o ocaso s 17h26m. Em tem po frio e seco deve-se proceder trasfega do vinho. Em cama quente plantar o pepino, o melo, o pimento e a abbora.

    Ele assentia com um mover de plpebras, ou abanava um pouco a cabea e sorria.

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    Por vezes eu continuava a ler em voz aJta, saltando pginas e folheando ao acaso, mesmo depois de ele ter adormecido.

    Foi assim que encontrei a histria de Maom.

    Quem era Maom? perguntei no dia seguinte ao meu av, mas ele no sabia.

    Na catequese, perguntei ao padre. Porqu essa pergunta? disse ele franzindo a testa. Contei-lhe do almanaque, ele mandou-me lev-lo, sem falta, na vez seguinte. No me esqueci e levei-lho, ele meteu-o no bolso, sem dizer palavra.

    Demorou muito sem mo devolver. De cada vez eu esperava que no fim da catequese mo desse, e respondesse pergunta, mas ele mandava-nos embora e no dizia nada. Hesitei algum tempo ainda, por fim pedi-lho, j tinha passado mais de um ms. Ele respondeu qualquer coisa entre dentes, desabrido. Devolveu-mo por fim, quando eu j desesperava, e se tinha passado outro ms.

    Agarrei no almanaque e corri para casa. Pouco me importava agora quem era Maom. Bastava-me a sua histria, bela como o toque de um sino.

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  • Folheei o almanaque procura, para trs- para a frente, vrias vezes. At dar conta de que as pginas estavam arrancadas.

    Chorei de raiva, atirei o almanaque parede como se o atirasse cara do ladro - era o MEU almanaque, ele tinha roubado o que no lhe pertencia. Aos ladres cab ia o fogo do inferno, enfureci-me. Fosse padre ou no.

    No domingo seguinte ele falou na homilia do perigo das leituras no vigiadas. Almanaques e quejandos, na sua aparncia inocente, estavam cheios de supersties e crendices, e podiam at aliciar para falsas religies. Deveriam s ler-se jornais e folhetos visados pela autoridade eclesistica, porque esses que eram amigos do povo e tementes a Deus.

    Chorei outra vez de raiva no meu quarto, com o almanaque na mo. Pouco me importava quem era Maom, mas a sua histria tinha-me pertencido. Continuava a pertencer-me, apesar de o padre a ter rqubado. Porque eu a ainda a sabia, verifiquei procurando na memria os pormenores:

    A revelao era uma coisa que caa sobre ele, dizia Maom. Uma coisa que o tocava,

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    como uma palavra ouvida de repente. E depois nada ficava igual. Uma palavra que era como um relmpago e rasgava uma janela no mundo.

    Quando sentia vir a revelao ele escondia a face, a palavra abatia-o e ele suava em gotas grossas, como se um peso enorme o esmagasse.

    Por vezes a palavra chegava como o ressoar de um sino. Depois desaparecia, mas ele tinha compreendido. Outras vezes o anjo tomava a forma de um homem, e dirigia-se a ele com palavras.

    Maom dormia quando o arcanjo Gabriel veio procur-lo e o conduziu, rpido como um relmpago, ao primeiro cu e a todos os outros cus. Maom elevou-se to alto que ouvia o ranger das asas dos anjos em volta da cabea. Percorreu os cus em quinhentos anos. Um cu era de ao, outro cu era de ouro, outro de pedras preciosas. E l dentro havia anjos de fogo.

    E ele viu muitas coisas, e mesmo a face de Deus, at ao momento em que o anjo o trouxe de volta terra. Atravessou num relmpago todos os mundos, at ao local onde o anjo o procurara.

    Diz-se que ao partir para os cus derrubou um copo de gua. Quando a gua se entornou

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  • n

    e o copo caiu no cho, j ele tinha voltado da sua viagem celeste.

    Sabia-a de cor, verifiquei com jbilo, repetindo-a vezes sem conta mentalmente, o padre no podia nada contra mim. A histria ia ficar comigo, mesmo que ele tivesse arrancado as pginas. A histria do instante em que a vida de algum se transformava.

    Pensava nela dia e noite, porque tambm eu ia passar por uma revelao, agora que o dia mais feliz da minha vida estava perto. Deus ia tocar no meu corpo, e mudar a minha vida para sempre.

    Distraa-me na missa, no ouvia o padre. Ele falava com voz humana, mas os anjos falavam com vozes que soavam como o toque de um sIno.

    O sol entrava pelos vitrais da igreja, lanava reflexos azuis e vermelhos no cho. O fogo das velas tremia nos altares, a msica do rgo subia at aos candelabros do tecto, em redor o povo repetia em coro: anjos cantai comigo, anjos louvai sem fim.

    Os anjos eram sbitos e poderosos como labaredas, viriam at mim como o vento e nas suas asas eu voaria, de cu em cu. Um cu era

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    de ouro, outro de pedras preciosas. Em volta eu ouvia um rudo quase ensurdecedor de ranger de asas, mas era ao mesmo tempo uma msica suave como um zumbir de abelhas. Havia anjos azuis e vermelhos que espelhavam reflexos como as chamas, outros tinham ps de cabra e brilhavam como bronze derretido, tinham faces animais e humanas, tambm face de homem e mos de homem. Eu entendia a sua lngua sem precisar de palavras, um olhar bastava. Porque mil coisas se transmitiam num segundo, quando o meu olhar e o do anjo se cruzavam.

    Um anjo oferecia-me o seu corpo como escada, por ele eu subia at Deus. Outro anjo segurava uma brasa nas mos, que tinha retirado com pinas do altar. Com ela tocava-me na boca.

    E ento o meu amado estaria em mim, e eu nele. A hstia tocaria a minha boca como um fogo, abrasando-a sem doer. Enquanto a face de Deus se revelava.

    Mas o dia mais feliz da minha vida chegou e passou e nada aconteceu.

    A hstia era uma coisa leve como p, que me ficou colada lngua e quase nem senti ao

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  • b

    engolir. Rezei para que Deus se revelasse e eu visse a sua luz, mas no havia luz nem revelao, s a chama trmula da lamparina, igual a sempre, boiando sobre o azeite, diante do saerrio. O coro do povo entoava anjos cantai comigo, mas as vozes desafinavam, arrastadas, e uma nota na msica do rgo, a que fazia mais falta, no som mais agudo, emudecera. Devia ter essa corda partida.

    No fim da missa houve um almoo de festa e toda a gente estava alegre, mas eu s desejava que tudo acabasse depressa para poder ir-me embora.

    No domingo seguinte nem sequer fui missa, fingi-me doente e fiquei na cama, s escuras. Como a minha me fazia dantes, pensei. Mas agora esse tempo parecia muito longe, porque ela deixara de estar doente. Voltara a ver-nos e a sorrir-nos, tinha pacincia com tudo, mesmo com o meu av, que deixara de andar. Empurrava-lhe a cadeira de rodas para ao p da janela, metia-lhe a comida na boca e nunca parecia enervada ou cansada.

    Aos domingos voltava da igreja, onde o Serafim esperava porta, para a ver sada. Mas eu no voltaria Igreja, decidi. Porque ne-

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    nhum anjo me esperava nos degraus da porta, nem nos degraus do altar.

    Vamos para a mesa, disse a minha me pondo-me na mo uma travessa cheia.

    Odiei-a porque ela parecia feliz, enquanto para mim o dia mais feliz j passara e fora igual aos outros, se felicidade era isso eu no a queria, o melhor era a minha vida acabar naquele instante, pensei em desespero, se o que tinha a oferecer-me era nada.

    Ento os anjos roaram a minha face e abrasaram-na de fogo. Os anjos maus desceram sobre mim como relmpagos, estenderam-me o brao na direco do roupeiro, abriram-me a boca e encheram-na de palavras como carves acesos:

    Ela tem l dentro o retrato do Serafim, vestido de soldado, h um retrato escondido no gaveto, no lugar onde a madeira do forro est levantada.

    Mas os anjos bons roaram a minha outra face e no cheguei a dizer as palavras. S deixei cair a travessa.

    No me lembro exactamente do que aconteceu depois. Tenho ideia de pegar no balde, no pano do cho, de gua vertida para limpar

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  • t

    a sujidade, de cacos de loua espalhados, da voz enfurecida do meu pai dizendo desperdcio e desastrada e da voz da minha me respondendo que no era o fim do mundo e que havia mais comida, alm da que tinha posto na travessa.

    No me lembro de ouvir mais do que isso, talvez tivesse ficado de algum modo surda. Mas lembro-me de olhar e de ver tudo muito claro, como se uma luz mais forte se acendesse.

    ramos uma famlia, vi. O meu pai, a minha me, o meu av e eu. O que quer que acontecesse, a minha me voltaria sempre, no punha um p em falso ao andar nem caa do alto das ravinas. Nem a levava o vento. Porque estava ligada a ns.

    Olhei para ela outra vez: Estava to bonita como no tempo do retrato, antes de eu nascer. E eu estava contente por ter nascido.

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    Obras de Teolinda Gerso

    o SILNCIO (Romance), 1981, 4.a edio, 1995 Prmio de Fico do Pen Club, 1981 (traduo alem) PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO (Romance), 1982, 4.a edio, 1996 (traduo alem e holandesa) HISTRIA DO HOMEM NA GAIOLA E DO PSSARO ENCARNADO (literatura infantil), 1982 OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES (Dirio Ficcional), 1984, 2.a edio, 1997 O CAVALO DE SOL (Romance), 1989 Prmio de Fico do Pen Club, 1989 (traduo francesa) A CASA DA CABEA DE CAVALO (Romance), 1995, 2.a edio, 1996 Grande Prmio de Romance e Novela da Associao Portuguesa de Escritores, 1995 A RVORE DAS PALAVRAS (Romance), 1997 OS TECLADOS (Narrativa), 1999 OS ANJOS (Narrativa), 2000