GARBOSA. Contribuicoes Da Historia Da Leitura Para a Educacao Musical

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Estudos Pedagógicos

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    revista da abem

    GARBOSA, Luciane Wilke Freitas. Contribuies terico-metodolgicas da histria da leitura para o campo da educao musical: a perspectiva de Roger Chartier. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 22, 19-28, set. 2009.

    Contribuies terico-meto-dolgicas da histria da leitura

    para o campo da educao musical: a perspectiva de

    Roger ChartierTheoretical-methodological contributions of history of reading to the

    fi eld of Music Education: Roger Chartiers perspective

    Luciane Wilke Freitas GarbosaUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM)

    [email protected]

    Resumo. Este artigo constitui-se em um ensaio terico, no qual apresento algumas refl exes acerca da Histria Cultural e da escola dos Annales, de onde provm o movimento iniciado em meados da dcada de 1960 no qual Roger Chartier se inspirou, bem como sobre relaes desse campo com a educao musical. Assim, apresento um panorama geral do referencial chartieriano, destacando os conceitos de apropriao, representao e cultura popular, centrais nos estudos do autor. Em se-guida, exponho os processos de produo do texto e produo do objeto que lhe serve de suporte, focalizando ainda as prticas de leitura ou usos que recaem sobre o livro. A terceira parte do artigo constituda por refl exes em torno de relaes entre o referencial de Roger Chartier e o campo da educao musical. Assim, so apresentadas consideraes referentes ao canto enquanto prtica de leitura decorrente de cancioneiros1 ou de livros escolares de msica, os quais se caracterizam como objetos culturais que revelam momentos da histria de nossa rea.

    Palavras-chave: educao musical, Roger Chartier, livros escolares de msica

    Abstract. This article is a theoretical essay in which I present some considerations concerning Cultural History and the Annales school, which was the foreground of the movement started in the 1960s that infl uenced Roger Chartier. I also present relations of this fi eld with Music Education, offering a gene-ral view of the Chartierian principles, pointing out the concepts of appropriation, representation and popular culture; all of them seminal in the studies of the above mentioned author. Next, I deal with the processes of text production, focusing on reading practices or uses of the textbook. The third part of this article presents considerations concerning relations between Roger Chartiers principles and the fi eld of Music Education, with reference to singing as a reading practice to decode song books or school music textbooks, which are viewed as cultural objects that reveal moments of history in our fi eld.

    Keywords: Music Education; Roger Chartier; school music textbooks

    A histria cultural

    A histria, enquanto disciplina institucio-nalmente legitimada nos anos 1960 e 1970, configurava-se como uma das reas acadmicas

    dominantes, cujo foco de estudos centralizava-se em problemticas econmicas, demogrficas e sociais. Com o desafio lanado pela lingustica,

    _________________________________________________1 O termo cancioneiro, neste estudo, refere-se a obras constitudas a partir de colees de canes dirigidas, em especial, escola.

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    sociologia e psicologia, em relao aos funda-mentos tericos e aos saberes sobre os quais a histria se sustentava, observou-se uma reao dos historiadores desviando a ateno das hie-rarquias para as relaes, das posies para as representaes (Chartier, 1990, p. 14). Dessa forma, a partir de propostas de estudo at ento alheias histria e com a importao de novos princpios, os historiadores,

    [] puseram em ao uma estratgia de captao lanando-se nas frentes abertas por outros. De onde o aparecimento de novos objetos em seu questiona-mento: as atitudes diante da vida e da morte, os rituais e as crenas, as estruturas de parentesco, as formas de sociabilidade, os funcionamentos escolares etc. o que signifi cava constituir os novos territrios do historiador por meio da anexao dos territrios dos outros (etnlogos, socilogos, demgrafos). (Chartier, 2002, p. 63).

    A partir desse momento, foi-se configurando um novo paradigma, apoiado tanto na tradio da histria das economias e das sociedades quanto nos novos campos de pesquisa que se abriam. Com a introduo de novas questes e, conse-quentemente, de outros tipos de fontes e mtodos, configurava-se uma nova histria, nomeada pelos historiadores dos Annales2 como histria das men-talidades ou psicologia histrica. Conforme Burke (1997, p. 397), a Nova Histria buscava substituir a narrativa tradicional de acontecimentos por uma histria problema, descrever/reconhecer a histria alm de fatos polticos, buscando os elementos de todas as atividades humanas e, consequentemen-te, integrando a histria com outras disciplinas das Cincias Sociais.

    Desta forma, a histria cultural se configurou, no final dos anos 1980 e incio dos anos 1990, a partir da articulao dos postulados da histria social com novos campos de investigao, atra-vs da colaborao de historiadores pertencentes tradio dos Annales, incluindo historiadores da literatura, bibligrafos, palegrafos e outros. Assim, o trabalho histrico foi chamado a rever seus princpios que incluam projetos de uma his-tria global. Os historiadores passaram a buscar a compreenso da sociedade e de seu funciona-

    mento desvinculados de uma diviso rigidamente hierarquizada, no intuito de entend-la a partir de um relato, de um acontecimento, de prticas particulares ou mesmo de objetos. Da mesma forma, voltaram-se a singularidades regionais e, finalmente, buscaram as variaes culturais, visto a impossibilidade de se explicar acontecimentos e prticas unicamente a partir da histria social ou de diferenciaes socioeconmicas.

    A atual definio de histria cultural coloca o pesquisador diante dos prprios artefatos. Assim, o historiador interpreta-os enquanto objetos hist-ricos de anlise, cujo principal objetivo consiste na identificao do modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social construda, pensada, dada a ler (Chartier, 1990, p. 16-17). Nessa perspectiva Roger Chartier, en-quanto historiador dedicado aos estudos em torno do livro e de suas formas de leitura, considera a histria cultural como uma histria das represen-taes coletivas do mundo social, ou seja, de las diferentes formas atraves de las cuales las comu-nidades, partiendo de sus diferencias sociales y culturales, perciben y comprenden su sociedad y su propia historia (Chartier, 1996, p. i).

    O referencial de Roger Chartier

    Para a compreenso da perspectiva terica proposta por Chartier, alguns conceitos so conside-rados centrais, ou seja, as noes de apropriao, representao, e de cultura popular/cultura erudita ou de elite. Da mesma forma, os processos de produo, compreendendo a produo do texto e a produo do impresso; de circulao; e de apropriao, caracte-rizando os usos ou prticas que do objeto se apode-ram, so essenciais dentro dessa concepo.

    Frente ao exposto, parte-se de uma diviso tradicional do fazer histrico que opunha alta cultura/cultura de elite e cultura popular. Objeto privilegiado da histria das mentalidades na Frana, a cultura popular, ou cultura da maioria, relacionava-se a uma abordagem coletiva e quantitativa, referindo-se a conjunto de textos nomeado Biblioteca Azul.3 Em sntese,

    __________________________________________________2 Conforme Burke (1997), os Annales foi um movimento dividido em trs fases, compreendendo, inicialmente, uma reao radical contra a histria tradicional, a histria poltica e a histria dos eventos; uma segunda fase, marcada pela aproximao ao que com-preendemos como escola, com conceitos e novos mtodos; e um terceiro momento que assinala uma fragmentao, o qual exerceu grande infl uncia sobre a historiografi a, em abordagens chamadas de Nova Histria ou Histria Cultural. Assim, torna-se importante enfatizar que os Annales no se constitua em uma escola rigidamente organizada ou fechada em torno de uma convico ou pa-radigma, mas em um movimento no homogneo, marcado, conforme Jacques Revel, por um conjunto de estratgias, por uma nova sensibilidade, de forma a promover a pluridisciplinaridade, favorecendo a unio das cincias humanas.3 Conforme Burke (1997), os Annales foi um movimento dividido em trs fases, compreendendo, inicialmente, uma reao radicalcontra a histria tradicional, a histria poltica e a histria dos eventos; uma segunda fase, marcada pela aproximao ao que compreendemos como escola, com conceitos e novos mtodos; e um terceiro momento que assinala uma fragmentao, o qual exerceu grande infl uncia sobre a historiografi a, em abordagens chamadas de Nova Histria ou Histria Cultural. Assim, torna-se importante

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    [] todas as formas culturais onde os historiadores reconheciam a cultura do povo revelam-se, atualmente, sempre como conjuntos mistos que renem, em uma imbricao difcil de desatar, elementos de origem muito diversa. [] saber se deve ser chamado de popular o que criado pelo povo ou ento o que lhe destinado , pois, um falso problema. Importa, antes de tudo, a identifi cao da maneira como, nas prticas, nas representaes ou nas produes, cruzam-se ou imbricam-se diferentes figuras culturais. (Chartier, 2002, p. 49).

    A noo de apropriao, fundamental para Chartier e para a histria cultural, relaciona-se pluralidade de compreenses, de interpretaes e, por consequncia, de empregos. Refere-se assim liberdade criadora dos agentes, no caso, dos leitores. Para Chartier (2002, p. 68) apropriao refere-se a uma histria social dos usos e das in-terpretaes, relacionadas s suas determinaes fundamentais e inscritos nas prticas especficas que os produzem. Logo, apropriao refere-se construo de sentido a partir de uma leitura ou de uma escuta, efetuada pelas comunidades de leitores frente aos discursos e dirigidas pelos ele-mentos inscritos nas pginas que compem obras ou textos singulares.

    O conceito de representao e sua articu-lao com as prticas culturais caracteriza outra noo essencial no esquema terico de Chartier. Representao pode ser entendida como uma for-ma de internalizao, de incorporao da estrutura social pelos indivduos e, consequentemente, da criao de esquemas de percepo e de juzo, no mbito pessoal, os quais fundamentam as maneiras de pensar e de agir. Por outro lado, cada indivduo socialmente organizado constri uma representa-o de si a partir de gestos, de um estilo de vida, de uma existncia, ou seja, as representaes que cada indivduo, grupo ou comunidade elabora de si, bem como seu reconhecimento ou no por parte de outros grupos, constituem a sua realida-de social. Um terceiro sentido para essa noo relaciona-se representao de uma identidade, de um poder, de uma coletividade atravs de seus representantes.

    As representaes caracterizam uma histria de relaes simblicas de fora, onde os dominados aceitam ou rejeitam as representaes forjadas que visam a perpetuar sua submisso e seu as-sujeitamento. Inscritas nas prticas que compem o cotidiano, as representaes so construdas pelos discursos, assegurando e perpetuando uma dependncia ou uma dominao.

    Representaes, enquanto objetos da hist-ria cultural, tm por objetivo a construo do mundo social, podendo ser fabricadas a partir de formas simblicas ou iconogrficas, expressas mediante discursos, gestos e textos, fundindo as noes de representao e prtica. Segundo Chartier (2002, p. 66), no h prtica ou estrutura que no seja produzida pelas representaes, contraditrias e afrontadas, pelas quais os indivduos e os grupos do sentido a seu mundo. As prticas discursivas, das quais os textos e as obras so constitudas, so produtoras de sentido, ordenamento, hierar-quizao, e assim espelham e so espelhadas por meio das representaes que as produzem e que contm. Por outro lado, as prticas de apro-priao caracterizam-se como plurais, mltiplas, complexas, compreendendo formas diferenciadas de interpretao.

    Imagens, textos, rituais, canes e comporta-mentos so, nesse sentido, fontes preciosas para a histria cultural e para o estudo das representaes sociais. Da mesma forma, afirma Chartier, objetos especficos para uma aproximao nessa linha de investigao dizem respeito a

    [] textos cannicos o no, obras clsicas o sin mrito, pero tambin la produccin iconogrfi ca en todas sus formas o inclusive, si es posible reconstituirla, la cir-culacin de la msica, del canto y de todas las formas que se remiten a la palabra viva. Son objetos legtimos, fundamentales y articulados, podramos decir, de la Historia Cultural. (Romero, 2000).

    A histria do livro constitui assim um dos domnios da histria cultural, dirigindo suas investi-gaes para as conjunturas da produo impressa, para as estratgias editoriais, bem como para a desigual posse do livro numa sociedade, tratando o texto, no entanto, como uma abstrao, como um discurso existente fora do objeto que o d a ler, e a leitura como ato universal. A partir de interrogaes direcionadas apropriao do discurso pelo leitor, a histria do livro foi se convertendo em histria das leituras, examinando os distintos modos de leitura, interpretao e apropriao do texto em uma sociedade, bem como as formas plurais com que leitores diferenciados apreendiam e manejavam os discursos contidos nos livros.

    Considerar e aplicar a perspectiva de uma histria das leituras implica reconhecer o vnculo essencial entre o texto em sua materialidade, que suporta os textos, e as prticas de apropriao, que so as leituras (Chartier, 2001a, p. 29). Desse modo, a perspectiva chartieriana se volta materia-

    __________________________________________________ enfatizar que os Annales no se constitua em uma escola rigidamente organizada ou fechada em torno de uma convico ou pa-radigma, mas em um movimento no homogneo, marcado, conforme Jacques Revel, por um conjunto de estratgias, por uma nova sensibilidade, de forma a promover a pluridisciplinaridade, favorecendo a unio das cincias humanas.

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    lidade dos objetos culturais e de sua participao nos processos sociais, analisando assim aspectos materiales del libro y prcticas de lectura (Rockwell, 2001, p. 11). Nessa circunstncia, os textos

    [] no existem fora de uma materialidade que lhes d existncia. Esta materialidade geralmente um objeto, um manuscrito ou um impresso, mas tambm pode ser uma forma de representao do texto sobre o palco, uma forma de transmisso vinculada s prticas da oralidade: recitar um texto, l-lo em voz alta etc. Todos estes elementos materiais, corporais ou fsicos, per-tencem ao processo de produo de sentido. (Chartier, 2001a, p. 30).

    Para Rockwell (2001, p. 15), a anlise da materialidade do texto requer o exame dos aspectos fsicos do livro, englobando a disposio do texto nas pginas, a impresso e a encadernao, o ta-manho e a extenso do livro. Para a autora, los ilus-tradores e impresores agregan otros elementos la proporcin y relacin entre texto e ilustracin, el uso de smbolos y elementos grficos, el tipo y tamao de la letra, y la disposicin de los ejercicios que orientan la lectura (Rockwell, 2001, p. 15-16).

    Os objetos culturais, em sua dimenso ma-terial, so elaborados, transmitidos e apropriados pelos indivduos mediante os processos de pro-duo, circulao e recepo. Nessa perspectiva, o surgimento de tais produes culturais resulta, inicialmente, das circunstncias do meio, objeti-vando atender as expectativas e necessidades de um determinado contexto. Livros impressos, enquanto objetos culturais, constituem-se em frutos do trabalho de indivduos, compreendendo autores ou organizadores e editores, imersos numa deter-minada situao histrica e existencial, e sujeitos s influncias do meio, as quais marcam tanto o processo de produo quanto os processos de circulao e recepo. Inscritos nessas dimenses, encontram-se ainda as figuras do livreiro, do leitor, alm de mediadores que se interpem entre os processos.

    O processo de produo de textos, o qual pode ser entendido como uma criao indita ou como a organizao de uma obra por um ou mais indivduos inseridos em um contexto especfico, so-fre, portanto, a ao de diferentes foras que influem em suas estruturas textuais, em seus contedos e nas suas formas de apresentao.

    Enquanto processo, a produo constituda por duas etapas fundamentais, ou seja, a produ-o do texto, efetuada por um ou mais indivduos,

    e a produo do objeto, o livro impresso, que o conduz leitura. No que se refere ao texto, os personagens dessa elaborao dizem respeito ao autor ou ao organizador.4 Para Chartier (1997, p. 22), o autor no escreve livros, mas textos que se tornam objectos escritos, manuscritos, gravados, impressos (e hoje informatizados). Assim, autor ou organizador, responsvel por selecionar e or-ganizar textos de modo indito, inscrevem na obra elementos voltados a uma leitura desejada. O autor, cujo nome prprio d identidade e autoridade ao texto (Chartier, 1999, p. 32), se constitui no sujeito produtor de um discurso. Tal personagem busca inscrever no texto um conjunto de dispositivos que o conduzam a um protocolo de leitura, objetivando, em ltima instncia, a transmisso de um sentido nico, uma leitura autorizada, uma interpretao correta, um condicionamento do texto sobre o leitor. Nesse sentido, [] podemos definir como relevante produo de textos as senhas, explcitas ou impl-citas, que um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leitura correta dela, ou seja, aquela que estar de acordo com sua inteno (Chartier, 2001b, p. 96).

    Considerando-se a trajetria que vai do texto ao leitor, a edio, que compe a segunda etapa da produo do livro, o momento em que o discurso transforma-se no objeto impresso que o conduz leitura, associando-se figura do editor. Conforme Chartier (1999, p. 53-54),

    o editor pode possuir uma grfi ca, mas isto no neces-srio e, em todo caso, no isto que fundamentalmente o defi ne; ele pode tambm possuir uma livraria, mas tampouco isso que o defi ne em primeiro lugar. [] Seu sucesso depende de sua inventividade pessoal. [] Tudo gira em torno deste empreendedor singular que se v tambm como um intelectual e cuja atividade se faz em igualdade com a dos autores; da, alis, suas relaes freqentemente difceis e tensas.

    Assim, os dispositivos empregados pelo autor somam-se queles utilizados pelo editor, o qual desempenha papel fundamental na produo e na difuso do objeto impresso. Segundo Chartier (2001a, p. 50), o editor moderno o responsvel pela seleo dos textos, pela adequao dos dis-cursos, pelo formato e pelo encontro do objeto com um pblico de leitores.

    Os suportes e as formas textuais dependem da figura do editor, ao qual conferido o poder de deciso na produo do livro, envolvendo desde a seleo dos textos, o pagamento do autor, at as modificaes que lhe parecerem pertinentes. Nesse

    __________________________________________________4 A produo de um texto se relaciona tanto fi gura do autor quanto do organizador. O autor o sujeito responsvel pelo ineditismo de um texto e o organizador pelo ineditismo de uma disposio. Assim, compreende-se o processo de produo do texto como fruto do trabalho do autor ou do organizador, quando for o caso.

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    processo, o editor busca a melhoria da obra literria, bem como sua adequao aos leitores, ou seja, s capacidades de leitura dos compradores. Dessa maneira, ao editor, visto sua funo de leitor, per-mitida a transformao ou modificao dos originais, incluindo, segundo estudos efetuados por Chartier (1990, p. 129-130), a remodelao da apresentao dos textos com sua reduo ou simplificao, en-volvendo o encurtamento do nmero de captulos, pargrafos e episdios considerados suprfluos; a diviso e a criao de novos captulos aos textos, com a multiplicao de pargrafos e a incluso de ttulos e resumos; e a censura a descries e termi-nologias. Por meio das intervenes ento dirigido ao pblico um texto, espelhando as competncias que o editor imagina serem de seu pblico leitor. Autor e editor so, nessa perspectiva, os respon-sveis diretos pela produo do impresso.

    O autor, enquanto produtor do texto, efetua uma pr-seleo de acordo com o que considera como tendncia literria defendida pelo editor e aspirada pelo leitor. No entanto, novas selees se impem, as quais so realizadas pelas instncias econmicas, culturais e ideolgicas que norteiam os projetos de produo do impresso, determinadas pelos interesses dos editores ou de grupos que mantm o poder, produzindo representaes do mundo social.

    O processo de produo do livro escolar, em suas etapas de produo do texto e produo do impresso, inclui, necessariamente, uma srie de escolhas. Logo, a seleo de temas e de contedos a serem abordados, a organizao do material, com a distribuio do conhecimento e das tarefas, a escolha da metodologia, bem como a escolha dos textos a serem ilustrados e dos elementos grficos predominantes, constituem aspectos que caracte-rizam os dispositivos empregados pelos agentes produtores do texto autor e editor com vistas a um protocolo de leitura. Nesse processo, entram em jogo as intenes e estratgias dos produtores, a partir dos objetivos, valores, ideias, comportamen-tos e mensagens que desejam veicular.

    A circulao do artefato cultural compreende a constituio de um pblico sem que as pessoas estejam necessariamente no mesmo lugar, em mtua proximidade (Chartier, 2001a, p. 64). Dessa forma, uma produo pode ser concebida objetivan-do uma circulao mais ampla e popular, em que autores e editores pretendem ganhar um pblico mais numeroso. H uma inteno dos produtores na elaborao de impressos com preos acessveis e uma facilitao da leitura, cujas possveis altera-es so efetuadas nas etapas que compreendem

    o processo de produo. Circulao, nesse sentido, caracteriza um espao de recepo, imaginado an-tes ou durante os processos de produo do texto e produo do impresso, revelando um pblico, o qual se constitui em indcio para a caracterizao da circulao de um discurso.

    Integrando o trip do qual fazem parte autor, obra e leitor, a circulao no se realiza de forma direta. Com o crescimento de um pblico cada vez mais heterogneo e com sua disperso na sociedade moderna, o distanciamento entre autor e pblico se acentuou, havendo a interveno de me-diadores que se interpem entre os processos. De acordo com Darnton (1990, p. 109), os objetos que comunicam o texto esto inseridos num circuito de comunicao que vai do autor ao editor, passando pelo impressor, pelo distribuidor, pelo vendedor, at chegar ao leitor, no qual mediadores atuam como conectores, auxiliando na transmisso do objeto impresso ao pblico.

    Para Chartier (1997, p. 35-36), o acesso ao impresso no se d unicamente por meio da pro-priedade particular do livro ou do manuseamento do objeto em uma biblioteca. Da mesma forma, a aproximao com o escrito se d tanto entre letra-dos e virtuoses da leitura quanto entre analfabetos ou no letrados, os quais apreendem o texto por meio da oralizao, ou seja, pela mediao de uma voz que os l em diferentes espaos.

    A circulao de textos entre leitores numero-sos pode indicar funes disciplinares aos discur-sos, de forma a moldar comportamentos e gestos em virtude da amplitude de seu destino. Nesse sentido, a partir do estudo da cultura impressa nas sociedades do Antigo Regime, Chartier (1997, p. 38) observou que a circulao de textos entre leitores populares revela a

    [] importncia atribuda escrita, e aos objetos que a veiculam, por todas as autoridades que pretendem regu-lar os comportamentos e moldar os espritos. Da o papel pedaggico, aculturador, disciplinador, atribudo aos tex-tos colocados em circulao para leitores numerosos; da tambm, as verifi caes feitas ao impresso, submetido a uma censura que deve afastar dele tudo o que poderia pr em perigo a ordem, a religio ou a moral.

    Aos processos de produo e circulao vem somar-se ainda a recepo do texto pelo leitor, caracterizando o momento do processo em que a noo de apropriao sobrevm. O texto, para se constituir em obra, necessita ser lido, interpretado e apropriado, o que significa considerar que um texto existe apenas porque h um leitor para lhe atribuir um significado (Chartier, 1997, p. 12). A leitura enquanto prtica realiza-se em um espao histri-

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    co, no qual os leitores compartilham dispositivos, comportamentos, atitudes, significados culturais e representaes sociais. As leituras e seus significa-dos, no entanto, so plurais enquanto prticas de inveno de sentido, uma prtica a leitura que raramente deixa vestgio, que se espalha numa infinidade de actos singulares, que se liberta facil-mente de todos os constrangimentos que desejam domin-la (Chartier, 1997, p. 12).

    O leitor, enquanto indivduo central no ato da leitura, normalmente visto pelo autor como sujeito a um nico significado, a uma interpretao correta e a uma leitura autorizada (Chartier, 1992, p. 213). No entanto, o leitor distorce, ressignifica e recria os discursos a partir de suas vivncias e experincias, inventando novas leituras de um mesmo texto. Ler no significa apenas submisso ao mecanismo textual. [] ler uma prtica criativa que inventa significados e contedos singulares, no redutveis s intenes dos autores dos textos ou dos produ-tores dos livros (Chartier, 1992, p. 214).

    O ato da leitura o encontro entre uma proposta e uma recepo, entre o autor e o leitor, cujos significados plurais e mveis so construdos, nessa ligao, a partir de fatores relacionados no s aos produtores e ao pblico leitor, mas ao tempo e aos espaos nos quais tais sujeitos se encontram. Desse modo, a familiaridade com a leitura e com a escrita no idntica para todas as comunidades de leitores, cujas diferenas se fazem notar entre os sexos, as profisses, as condies sociais, a escolarizao, as faixas etrias, bem como entre as populaes do campo e da cidade.

    A leitura, enquanto prtica plural, condi-cionada por fatores ligados disposio do corpo, ao uso da voz e ao ritmo no ato de ler (Rockwell, 2001, p. 16). Da mesma forma, as competncias dos indivduos para a leitura, as necessidades e expectativas das comunidades de leitores e o espao onde a leitura efetuada, se privado e fe-chado na biblioteca, no gabinete, no quarto ou coletivo e aberto no jardim, na praa, na escola influem nessa prtica cultural. Nesse sentido, um fator a influir na leitura diz respeito coletividade ou individualidade, ou seja, leitura visualizada, privada, ntima, solitria ou, por outro lado, leitura oralizada, compartilhada, pblica. Para Rockwell (2001, p. 16), diversos elementos del contexto condicionan y orientan las maneras de leer. El espacio, la luz, el mobiliario y los tiles influyen en estas maneras.

    As formas tipogrficas do impresso consti-tuem um dos elementos que regulam a significao

    ou ressignificao do discurso pelo leitor, induzindo as maneiras de ler, visto que a compreenso do texto depende, em parte, das formas pelas quais atinge o leitor. A disposio e a diviso do texto, sua tipografia e suas ilustraes podem sugerir leituras diferentes, afetando o processo de construo de sentido, visto que a organizao tipogrfica traduz uma inteno autoral ou editorial. Da mesma forma, os sinais visveis presentes nos textos, incluindo ttulos antecipadores, caixas de memria e resu-mos, afetam a prtica do ler, dirigindo a leitura a um protocolo autorizado. Desse modo, o formato, a paginao, o modo de fragmentao do texto, as convenes tipogrficas remetem a uma funo que, em ltima anlise, visa a exprimir uma in-teno, dirigir uma recepo, forar o leitor a uma interpretao correta.

    Apesar da presena de elementos que con-duzem a um significado nico, a liberdade do leitor, enquanto criador de sentidos ou ressignificador, concede leitura o estatuto de uma prtica criadora, inventiva, produtora (Chartier, 2001b, p. 78), a qual, a partir de estruturas abertas a reapropriaes e ressig-nificaes, dirige-se a distintas comunidades de lei-tores inscritas em situaes histricas diferenciadas. Dessa forma, as variaes presentes nas relaes estabelecidas entre texto, livro e leitura so objetos de mltiplas decifraes exploradas a partir dos prprios textos, mediante o seu formato, a sua apresentao, o discurso veiculado, e as suas leituras, entendidas como prticas concretas e como processos de inter-pretao (Chartier, 1997, p. 12-13).

    Os textos presentes nos impressos constro-em representaes, as quais so essenciais para uma histria das prticas da leitura. Identificar os discursos que constroem as representaes e as prprias representaes do mundo social dadas como naturais constitui a tarefa do pesquisador im-budo na compreenso das relaes entre artefatos, prticas e mundo social e, nessa perspectiva, entre literatura, cultura e sociedade.

    O referencial adotado e o campo da educao musical

    Para a anlise pretendida, importante que se contextualize acerca da histria da leitura nos campos da educao e da educao musical, refletindo-se, a seguir, sobre as possibilidades dessa histria frente s prticas do canto escolar. Em seguida, buscam-se na histria da educao musical brasileira dois momentos cujas prticas escolares foram marcadas pelo uso da cano, de modo a compreenderem-se possibilidades do referencial chartieriano para a rea.

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    GARBOSA, Luciane Wilke Freitas. Contribuies terico-metodolgicas da histria da leitura para o campo da educao musical: a perspectiva de Roger Chartier. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 22, 19-28, set. 2009.

    A histria da educao, enquanto rea de estudo, apresenta algumas reas bem delimitadas para investigao, as quais incluem o estudo dos indivduos que frequentaram escolas, colgios e universidades; dos programas, das disciplinas e dos materiais educacionais; alm do campo de estudo das prticas pedaggicas. Nesse sentido, a histria da leitura se configura em uma linha de investiga-o tanto para o campo dos materiais pedaggicos quanto para o campo das prticas efetuadas. Assim, uma das vinculaes realizadas entre histria da leitura e da educao se deu a partir da noo de alfabetizao funcional,5 ajustada aplicabilidade da leitura ao cotidiano e mensagem religiosa. Outro vnculo se deu atravs da noo de alfabetiza-o ligada a um conjunto de textos ou repertrio de autores clssicos ou cannicos, os quais deveriam fazer parte da educao dos indivduos.

    O duplo registro histrico do ensino escolar e de seus suportes liga-se prpria defi nio de leitura e de seus fi ns (porque, no primeiro caso, a alfabetizao funcional utiliza como suporte na escola as cartilhas, os silab-rios, os catecismos material que mistura uma didtica religiosa elementar com a aprendizagem da leitura), enquanto que a abertura da leitura aos valores que a vinculam a uma defi nio do indivduo, de uma nao ou de uma cultura, levam a inventar manuais e a enriquecer seus contedos. (Chartier, 2001a, p. 78).

    A perspectiva terica adotada e suas relaes com o campo da educao musical focalizam o livro de msica ou o cancioneiro6 como material central no processo pedaggico da rea. Assim, a leitura escolar, atravs de manuais e livros de msica, envolve o coletivo, transforma os indivduos e, por vezes, determina a interpretao. Enquanto objetos voltados a uma circulao numerosa, livros esco-lares apresentam funes disciplinares, moldando espritos e comportamentos. Nessa perspectiva, Chartier (1997, p. 37) observou que h muitos tex-tos que tm tendncia para se anularem enquanto discurso, produzindo na prtica comportamentos reconhecidos como corretos em relao s normas sociais ou religiosas.

    Os textos, e nesse sentido os livros e manu-ais utilizados na prtica do canto, transmitem um conhecimento que se deseja veicular, produzindo efeitos de carter prtico nos espaos em que circu-lam. Tais textos apresentam diferentes funes, as quais variam conforme o leitor, a disciplina e o con-texto no qual so elaborados e utilizados (Gerard; Roegiers, 1998, p. 74). Livros didticos, manuais

    escolares, cancioneiros, livros de msica, enquanto objetos culturais produzidos por um ou mais indiv-duos, constituem-se em trabalhos de elaborao e redefinio da realidade, construo e espelho de uma sociedade (Choppin, 2002, p. 22).

    A partir do estudo de textos da sociedade do Antigo Regime, Chartier se deparou com livros escritos, mas tambm com uma prtica amplamente oral, gestual e iconogrfica, identificando imbri-caes mltiplas entre os modos de expresso. Nesse contexto, os livros escolares de msica, voltados prtica vocal e instrumental, enquanto objetos culturais que constituem e so constitudos por representaes sociais elaboradas a partir de uma expresso sonora, caracterizam uma prtica de leitura especfica, na qual a produo musical se alicera sobre uma sucesso de sons que guar-dam uma organizao e, por vezes, determinam a experincia. O canto, enquanto prtica de natureza sonora, combina as formas literrias e textuais com as formas musicais, produzindo experincias singu-lares. Na cano, o texto apresenta como veculo de difuso as melodias, harmonias e estruturas musi-cais que conduzem as mensagens a letrados e no-letrados, elite e povo, homens, mulheres, crianas, influindo no processo de apropriao. Nesse sentido, manuais escolares de msica ou cancioneiros, de modo geral, se caracterizam pela difuso do canto, constituindo uma forma de comunicao garantida pela oralizao, o que supe a presena, a eficcia e a fora de uma voz que o far em voz alta, ou que recitar ou declamar ou atuar sobre o palco (Chartier, 2001a, p. 83). Livros de msica elabora-dos a partir da cano, produzidos para a escola e utilizados em tais espaos, constituem-se assim em objetos da cultura escolar que revelam tendncias pedaggicas e prticas de sala de aula.

    Na prtica do canto realizada nos espao escolar, a voz constitui o instrumento pelo qual a mensagem disseminada entre o pblico. Da mesma forma que a leitura, nos sculos XVI e XVII, o canto constri-se como uma oralizao, e o seu leitor como o auditor de uma palavra leitora. Dirigida assim tanto ao ouvido como ao olho, a obra joga com formas e processos aptos para submeter a escrita s exigncias prprias da performance oral (Chartier, 1997, p. 21).

    Como prtica de natureza oral, o canto sus-tenta o encontro com o outro, induz uma prtica

    __________________________________________________5 Alfabetizao funcional diz respeito no s capacidade de ler e escrever, mas de fazer uso da leitura e da escrita de modo a continuar aprendendo ao longo da vida (Soares, 2004).6 No contexto deste trabalho, cancioneiros, manuais ou livros escolares de msica so compreendidos como objetos caractersticos da cultura escolar, produzidos e utilizados para fi ns educacionais, especifi camente voltados a prticas de ensino e aprendizagem em msica, tendo como principal elemento a cano.

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    socializadora, alimentando uma relao entre o lei-tor-cantor e a comunidade de ouvintes, permitindo, desse modo, uma apropriao indireta da cultura escrita. Em virtude de sua natureza, a execuo vocal apresenta um grande poder de alcance, estendendo-se a pessoas no familiarizadas com o texto impresso e com a leitura. Atravs do seu efeito multiplicador, o canto concede aos menos letrados a participao na prtica coletiva, mesmo que de forma passiva, favorecendo a veiculao de normas e valores a todos os segmentos da sociedade, independentemente de raa, gnero, letramento ou classe.

    No que se refere s caractersticas espec-ficas do material, as estruturas textuais repetitivas e as melodias curtas do repertrio que compe os manuais escolares so provenientes, muitas vezes, do cancioneiro popular ou de uma combinao de temas e motivos do povo com a tradio musical erudita, permitindo um aprendizado e uma memo-rizao quase que imediatos. Para Chartier (1990, p. 230), os materiais que transmitem as prticas e os pensamentos das pessoas comuns so sempre formas e temas mistos e combinatrios, inveno e tradio, cultura erudita e folclore.

    A cano popular, tambm reconhecida como folclrica ou verncula,7 enquanto repertrio presente em livros escolares, marcada por uma prtica de natureza circular, ou seja, de uma prtica oral a um texto escrito, do objeto impresso sua performance para um pblico e o consequente retorno oralizao. Nessa perspectiva, o manual escolar de msica, enquanto produto de autores ou organizadores, consiste em uma seleo de canes inditas e de canes j publicadas, por vezes conhecidas, as quais podem ter atravessado uma prtica circular, apresentando caractersticas diferenciadas em relao aos elementos musicais e textuais oriundos das diferentes leituras e apro-priaes.

    Uma vez contendo frmulas da tradio popular, a cano pode caracterizar um re-encontro no livro com canes j conhecidas por intermdio da comunidade ou da famlia, em que o aluno, uma vez em contato com a melodia ou com o texto j memorizado, re-encontra-o e confirma-o. Como nos textos da Biblioteca Azul ou da literatura de cordel, os cantores-leitores-ouvintes uma vez confrontados com o livro, os reconhecem mais do que os descobrem (Char-tier, 1990, p. 130).

    Tendo em vista a singularidade dos textos, a prtica do canto, em algumas comunidades, gira em torno de poucas canes provenientes de uma tradio cultural passada de pai para filho, cuja aprendizagem se alicera em torno da escuta e da memria. Nesse tipo de prtica, baseada em uma ligao afetiva entre leitor e texto, h uma produo de efeito nos indivduos de um mesmo grupo em virtude da incorporao do discurso existncia pessoal, na qual professores e pais atuam na for-mao do gosto e de protocolos de leitura.

    Em virtude de sua natureza e organizao, os cancioneiros, de modo geral, permitem ainda uma leitura descontnua, salteada, possibilitando uma aprendizagem mais flexvel, marcada pela al-ternncia das canes, caracterizando um material pedaggico cuja estrutura no fixa. O espao de leitura dos livros de msica, inicialmente a sala de aula, e a prpria natureza da rea, requerem o uso do corpo em virtude da rtmica inerente s melodias. Seja em p ou sentado, o corpo faz parte do ato de cantar, produzindo uma prtica cultural, na qual protocolos e maneiras de ler se encontram.

    Em sala de aula ou na comunidade, as can-es podem ser entoadas pelo professor-oralizador ou por outro indivduo, sendo memorizadas pelos alunos-ouvintes. A prtica escolar do canto, realiza-da na coletividade da sala de aula ou em um espao de auditrio, conduz a recepes, interpretaes e apropriaes diferenciadas, dependentes das identidades daqueles que ouvem.

    Enquanto textos que constroem represen-taes, os livros ou manuais escolares de msica guardam vestgios sobre sua circulao, sobre as concepes de leitura e de leitor, e sobre aquilo que se privilegiou ou no para ser lido e conser-vado em uma dada poca. Da mesma forma, os cancioneiros, que combinam formas musicais, literrias, e grficas, produzem representaes ob-jetivando a modificao de uma ordem, configuran-do-se em fontes privilegiadas para a investigao da cultura escolar. Em face disso, o livro didtico configura-se na chave dos paradigmas de leitura ou das prticas de leitura prprios de comunidades particulares (Chartier, 2001a, p. 162). A partir da materialidade dos cancioneiros, das formas de ler em sala de aula ou no cotidiano, das prticas orais que envolvem os processos de ensino e de apren-dizagem, ao pesquisador permitido transitar entre protocolos de leitura e prticas reais, registrando a histria da educao musical no pas, mediante

    __________________________________________________7 De acordo com o Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa (2001, p. 2849), vernculo se refere ao que prprio de um pas, nao, regio.

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    os cancioneiros ou livros escolares de msica de cada poca.

    Na histria do ensino de msica no Brasil, o trabalho alicerado sobre a cano se tornou fundamental em diferentes momentos e espaos. As misses religiosas assinalam uma forte relao entre f, educao, texto, gesto e msica, verifi-cando-se prticas aliceradas sobre a mensagem divina ou sobre textos cannicos, desde a chegada dos jesutas ao pas. Em diferentes espaos, tais textos buscaram uma interpretao correta, uma leitura autorizada, uma disposio dos corpos. Nas escolas, com o movimento orfenico; nas igrejas, com os hinos religiosos; nas sociedades de canto, com as melodias da cultura; nas famlias, com as canes da infncia; nos clubes, nos espaos desti-nados ou mesmo ocupados pela cano, as leituras se fizeram marcadas pela presena da msica, conduzindo a uma apropriao decorrente de uma voz, de uma audio, de uma oralizao.

    Nesse sentido, a materialidade dos textos no se constitui somente a partir do livro impresso, mas de representaes de um texto sobre o palco, do canto compartilhado no grupo e pelo grupo.

    Os corais, como prtica musical presente nos servios religiosos, contriburam para um ensino musical coletivo, caracterizando uma educao musical sacra. Especial-mente entre os luteranos, a msica era entendida como veculo de pregao do evangelho. Assim a comunidade participava do culto expressando um pensamento e uma ao conjunta atravs do canto-coral. Os eventos no eram puramente musicais, compreendendo-se a can-o no como adorno ou preenchimento do tempo nos cultos, mas como instrumento de reforo f luterana. Neste sentido, os hinos eram concebidos como palavras oradas e clamadas, como meios para professar a crena de toda a comunidade unida em forma de msica. F e canto-coral em conjunto se complementavam, interagin-do com os fi is e colaborando para o desenvolvimento de comunidades cantantes que professavam musicalmente a crena em Deus. (Garbosa, 2003, f. 28-29).

    A Reforma se apia nesses conventculos em que o canto dos salmos e a leitura em voz alta do Evangelho

    misturam na f aqueles que lem e os que ouvem, os que ensinam e os que aprendem. [] Reunindo homens e mulheres, letrados e analfabetos, fi is de profi sses e de bairros diferentes, os cultos protes-tantes, tal como se pode perceber, apesar do segredo que os cerca, nas cidades atingidas pela Reforma, so um dos lugares em que se opera, em comum, a aprendizagem do livro. [] Lido e comentado pelos ministros e pregadores, possudo e manuseado pelos fi is, o texto impresso impregna toda a vida religiosa das comunidades protestantes em que o retorno ver-dadeira f no se separa da entrada do escrito impresso na civilizao. (Chartier, 2004, p. 101-102).

    O canto orfenico, enquanto um dos princi-pais movimentos musicais que marcaram a dcada de 1930, trouxe a cano como elemento primordial para o desenvolvimento do sentimento de brasilida-de. Mais do que ensinar aos alunos a arte musical, buscava-se incutir nos estudantes o amor ptria atravs da msica. Desejava-se uma interpretao nica, autorizada e imposta pelas instncias polti-cas pelos setores pedaggicos.

    A construo deste sentimento de brasilidade, da celebrao de heris e feitos hericos atravs do entoar de canes e hinos patriticos visava tatuar no esprito dos alunos de canto um forte sentimento de identifi cao com a Ptria, alm de uma conscincia musical autenticamente brasileira, de modo que suas aes futuras estivessem impregnadas destas paixes cvicas. (Teo, 2002, f. 21).

    Os cancioneiros j no se fazem presentes com a mesma intensidade nas escolas do pas. O canto escolar, por sua vez, no silenciou; encontra-se nos espaos educativos com toda a fora de uma prtica oral. Vozes, corpos, gestos, disposies Textos, leituras, apropriaes, representaes Para a histria da educao musical no Brasil no se faz suficiente a construo de uma histria dos manuais escolares a partir dos textos veiculados pelas canes escolares. Torna-se necessrio que se ingresse no territrio das prticas de leitura, dos usos, apropriaes e representaes, que guardam vestgios de uma cultura escolar, revelando prticas pedaggico-musicais.

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    Recebido em 07/07/2009

    Aprovado em 02/08/2009