GAGNEBAN, Jeanne-Marie. Le Printemps Adorable a Perdu Son Odeur.

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    lE printEmps adoraBlE a pErdu son odEur.

    Jeanne-Marie Gagnebin

    Em seu ensaio seminal Alguns Motivos em Baudelaire, Wal-ter Benjamin cita o captulo nove da Sociologia de Georg Simmel, no qual o socilogo alemo descreve tanto as mudanas da percep-o aisthsis quanto as mudanas nas relaes entre os homens na grande cidade moderna. Essa citao no encontrar graa aos olhos de Adorno, mas Benjamin a mantm apesar das crticas. Sim-mel analisa as transformaes do espao social na grande cidade, tanto no nvel dito objetivo quanto no nvel psquico da percep-o humana, pois o espao social uma diviso e apreenso pela alma das diversas partes do espao objetivo.* Trata-se, portanto, de uma teoria esttica no duplo sentido da palavra: no sentido eti-molgico amplo de uma teoria da percepo (aisthsis) e no senti-do moderno mais especfico de uma teoria das artes e das prticas artsticas. Interessa a Benjamin em particular o excurso que se in-titula Para uma sociologia dos sentidos.

    Podemos resumir as anlises de Simmel por dois pontos cha-ves: a grande cidade representa a vitria do racionalismo e do indi-vidualismo em detrimento de relaes sociais mais orgnicas, mais afetivas, mais comunitrias que pertencem ao passado e que, apesar do seu encanto, tambm representavam uma ordem coercitiva e au-toritria. A racionalidade moderna tem sua fonte na racionalidade abstrata da economia monetria onipotente, afirma Simmel.

    No discuto aqui vrias objees possveis, em particular de cunho marxista, a essa teoria j exposta no livro anterior de Sim-mel, na Filosofia do Dinheiro. Em compensao, gostaria de ressaltar que, para Simmel, despersonalizao das relaes humanas e indi-vidualismo crescente andam juntos s que o indivduo no pode ser confundido com uma pessoa especfica, singular, com sua carga de afetos e de histrias. O indivduo , agora, um elemento nico, mas indiferente, entre outros vrios elementos, no grande edifcio das trocas mercantis. Mesmo que paream primeira vista opos-

    1 Esse artigo retoma vrias reflexes desenvolvidas em outras ocasies, em parti-cular na conferncia da plenria da Anpof (Salvador, 2006), intitulada O olhar contido e o passo em falso e no artigo Eros da distncia, no prelo.

    * (SIMMel, Georg. Gesa-mtausgabe. Rammstedt Ot-thein (org). 1995: 688.)

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    tos, individualismo exacerbado e anonimato irreversvel so com-plementares. O citadino moderno um indivduo isolado, entregue multido no trabalho, na rua, em casa. essa situao que Walter Benjamin situa no cerne de suas anlises da poesia de Baudelaire, lido por ele, portanto, como sendo, simultaneamente, um precur-sor e um emblema da situao da lrica contempornea.

    O nmero muito maior de habitantes e transeuntes que ca-racteriza a grande cidade em relao s formas de convivncia do passado, a presena da foule, multido e multitude, reforam, pa-radoxalmente, os sentimentos de solido, de incompreenso e mes-mo de hostilidade entre os indivduos: o excesso de proximidade torna as pessoas cada vez mais estranhas e distantes umas das ou-tras. Simmel analisa esse paradoxo no domnio da percepo sens-vel, na prpria aisthsis, na transformao histrica dos sentidos, em particular nas mutaes do olhar humano. O socilogo usa v-rias vezes a palavra alem Antlitz, palavra que pode ser traduzida tanto por olhar quanto por rosto, face (visage, dir mais tar-de Levinas), para enfatizar a dimenso de comunicao e recipro-cidade do olhar. A vista humana, diz Simmel, encontra sua pleni-tude na reciprocidade do olhar compartilhado, quando ateno de um olhar responde o olhar do outro. Essa afirmao, sem dvi-da discutvel, tira sua fora e sua pertinncia do contexto social que Simmel se prope a apreender e, em particular, da seguinte ques-to: o que acontece quando a viso humana fica submetida a uma nova organizao scio-sensorial que obriga os indivduos a uma viso constante de seus semelhantes sem que seja possvel esperar por uma reciprocidade feliz? Essa espera confiante caracterizava o olhar contemplativo tanto na teoria esttica clssica quanto na de-voo religiosa. justamente essa esperana de reciprocidade que, segundo Benjamin, liga a arte tradicional aurtica idia de culto e de transcendncia, mesmo quando no mais religiosa.

    Ora, escreve Simmel, o desenvolvimento da grande cidade moderna acarretou mudanas essenciais para o sentido da viso, especificamente no que diz respeito a essa comunho e comunida-de de olhares recprocos. Em primeiro lugar, a vista submetida a um excesso de estmulos em detrimento dos outros sentidos, que no conseguem mais acompanhar e explicitar o que foi visto; ela se torna um olhar sempre espreita. Em segundo lugar, o olhar re-cproco e confiante, base da atitude contemplativa, ameaado de extino, justamente por esse excesso de viso. A famosa desaura-

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    tizao da arte contempornea, na hiptese de Walter Benjamin, remete a essa transformao de um olhar recproco numa viso si-multaneamente saturada e sempre ameaada, sempre espreita. A aura significaria, pois, no s a aurola do poeta, agora cada no cho, como no conhecido poema em prosa de Baudelaire (Per-te daurole), mas tambm a expectativa de um horizonte trans-cendente no qual meu olhar e o do outro possam encontrar-se e se juntar na pequena eternidade da comunicao feliz, da comu-nho feliz, da comunidade feliz. A arte aurtica era caracterizada por um modo de apario do objeto, mesmo prximo, no qual es-te se mostrava como imagem aurtica, isto , como uma imagem emoldurada ou aureolada pela presena do longnquo, geralmen-te por outras imagens que remetiam ao infinito ou ao sagrado. O objeto se destaca sobre um fundo insondvel e, ao mesmo tempo, se transforma numa imagem aurtica enquanto os objetos ma-nipulveis se alinham uns ao lado dos outros, num espao mensu-rvel, sem nenhuma profundidade. A aura , sem dvida, um ti-po de aurola, mas tambm de moldura que empresta imagem emoldurada um campo de perceptibilidade prprio, uma abertu-ra sobre uma dimenso outra, diferente daquela da superfcie ha-bitual das percepes cotidianas.

    A perda da aura no tem somente, para Benjamin, conseqn-cias essenciais para as prticas artsticas. Ela atinge tambm outras prticas humanas, porque sinaliza uma transformao radical das relaes fundamentais entre distncia e proximidade na convivn-cia humana, convivncia dos homens entre si, mas tambm com a alteridade do mundo e do sagrado. Essa transformao atinge, em particular, o domnio do ertico e aqui, novamente, a poesia bau-delairiana vai ser um exemplo privilegiado.

    Num fragmento de juventude, provavelmente dos anos 1922-25, escreve Benjamin:

    Das Leben des Eros entzndet sich an der Ferne. Andererseits fin-det eine Verwandtschaft zwischen Nhe und Sexualitt statt. (...) Nhe (und Ferne) sind brigens fr den Traum nicht weniger bes-timmend als fr die Erotik.

    A vida de Eros se acende graas ao longnquo. Mas de outro lado existe um parentesco entre proximidade e sexualidade. (...) Proxi-midade e distncia so alis no menos determinantes para o sonho quanto para a ertica.2*

    2 Traduo literal de JMG.

    * (BeNJaMIN, Walter. Ge-sammelte Schriften, Band VI. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1985: 83, 85.)

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    Devemos fazer aqui uma observao filolgica. Como a maior parte das lnguas indo-europias, o alemo parece ter poucas pala-vras para dizer o prximo e a proximidade, enquanto as expresses de distncia so numerosas. Em alemo temos, por exemplo, Dis-tanz, do francs distance, Abstand, recuo, Ferne, o longnquo, afas-tado, Entfernung, afastamento. A raz fern indica a distncia, mas tem uma conotao que distingue tal afastamento de uma simples distncia objetiva e mensurvel. Enquanto vrios procedimentos podem aproximar um objeto distante e coloc-lo disposio do sujeito, o longnquo (fern) mantm uma certa independncia que torna o espao at ele intransponvel, pelo menos no quadro de operaes funcionais. Posso me aproximar de um objeto distante que desejo possuir, mas no posso apropriar-me do fern, porque o longnquo, no seu essencial afastamento, ultrapassa o quadro de aes teleolgicas: trata-se de uma distncia que a ao instrumen-tal do sujeito no consegue abolir. Esse carter de independncia e de inatingvel transforma o longnquo em smbolo do sagrado, mas tambm do csmico e do infinito do tempo. Assim aconte-ce com as estrelas, exemplo privilegiado da Ferne na poesia alem, mas tambm com o oceano infinito e com o passado imemorial na poesia de um Baudelaire.

    Que Eros esteja em relao com o longnquo, Plato j o di-zia pela boca de Diotima, no Banquete, um dilogo vrias vezes ci-tado por Benjamin nesse texto. Como as estrelas, em particular co-mo a estrela cadente, que passa por cima dos amantes nas Afinida-des Eletivas de Goethe, a mulher amada no pode, portanto, per-tencer a uma proximidade excessiva, ela deveria escapar do dom-nio daquilo que est sempre disponvel, sempre mo, no espao familiar e domstico. O exemplo privilegiado de um Eros feliz so os versos de Goethe que Benjamin cita reiteradas vezes neste frag-mento de juventude e tambm, mais tarde, nos seus ensaios so-bre Baudelaire. Esses versos dizem, segundo Benjamin, o perfeito equilbrio entre a proximidade e o longnquo no perfeito amor* Escreve Goethe:

    Keine Ferne macht dich schwierigKommst geflogen und gebannt.

    Nenhum afastamento te torna difcilTu vens voando e enfeitiada.3*

    3 Traduo literal de JMG.

    * (BeNJaMIN, W. Gesam-melte Schriften, Band VI. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1985: 86.)

    * (GOeTHe, Johann Wolf-gang von. Selige Sehnsu-cht. Weststlicher Divan. Hamburger ausgabe, vol. 2, Hamburg: Wegener Ver-lag, 1965: 19.).

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    Se percepo sensvel e dinmica do Eros so tributrias da dialtica do prximo e do distante, ento as mutaes profundas que afetam tal dialtica na sociedade moderna tambm vo afetar tanto a vida de Eros quanto a vida da arte. Essa transformao da imagem aurtica em objeto prximo e manipulvel ter conseqn-cias essenciais nas prticas artsticas contemporneas, em particular, com a famosa reprodutibilidade tcnica da obra, isto , com sua democratizao em massa que a torna mais disponvel para todos mas sem relao com o distante e o transcendente. No domnio do ertico acontece tambm uma mutao importante, como se a possibilidade de manipulao adquirisse um peso ertico de desta-que, em detrimento da dimenso de comunicao feliz que remetia possibilidade de transcender a clausura individual.

    Benjamin observa um detalhe essencial da poesia baudelairia-na que atesta essa transformao: Baudelaire descreve olhos dos quais poder-se-ia dizer que perderam a faculdade de olhar de vol-ta.4* Na experincia aurtica de Eros, a pessoa amada respondia ao olhar do amante como, na arte aurtica, a imagem parece olhar para o espectador que a contempla e responder sua demanda de beleza e de sentido. Os olhos da mulher desejada em Baudelaire so fixos, frios, exercendo sobre o poeta uma atrao sexual da qual Eros e seu apelo ao distante se ausentou. notvel que Ben-jamin, no contexto de seus estudos sobre Baudelaire, portanto na maturidade, retome os versos de Goethe para lhes opor a experi-ncia evocada na poesia baudelairiana:

    [Baudelaire] descreve olhos que perderam, por assim dizer, sua capa-cidade de olhar. Como tais, porm, so dotados de uma atrao (Reiz) que prov grande parte, seno a maior parte, das necessidades pulsio-nais do poeta. Encantado por esses olhos, o sexo em Baudelaire se dissocia de Eros. Se os versos de Goethe em Selige Sehnsucht,

    Nenhum afastamento te torna difcilTu vens voando e enfeitiada.,

    podem ser considerados como a descrio clssica do amor satura-do pela experincia da aura, ento dificilmente haver na poesia l-rica versos que to decididamente se lhes opem quanto os bau-delairianos:

    Je tadore lgal de la vote nocturne,O vase de tristesse, grande taciturne,Et taime dautant plus que tu me fuis...

    4 Traduo literal de JMG.

    * (BeNJaMIN, W. Gesam-melte Schriften, Band I-2. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1974: 648.)

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    [Eu te adoro como igualmente abbada noturna vaso de tristeza, o grande taciturna,E te amo quanto mais de mim foges ...(...)]

    Um olhar poderia ter efeito tanto mais fascinante quanto mais pro-funda foi a ausncia daquele que contempla, ausncia que nele su-perada. Em olhos que refletem como espelhos, essa ausncia con-tinua intacta. Por isso esses olhos no conhecem nada da distncia longnqua (Ferne).5*

    Em oposio experincia aurtica e ertica evocada por Go-ethe, Baudelaire descreve olhos que no sabem nada do longnquo, que brilham como as vitrines das lojas (illumins ainsi que des bou-tiques) e so fixos, no respondem ao olhar do outro: reificao e fetichizao do objeto sexual, cujo emblema a prostituta, que remete tambm recusa baudelairiana do amor burgus, tanto sob sua forma romntica quanto sob sua forma conjugal e familiar. Eros e sexo se separam.

    Ora, se o olhar compartilhado no se realiza mais, no so-mente a assim chamada comunicao intersubjetiva que sofre um abalo irreparvel, abalo evocado por numerosos poemas baudelai-rianos, em versos ou em prosa. Tal mutao repercute na prpria interioridade do sujeito, condenado agora a procurar por esse lon-gnquo, que d vida ao desejo e, tambm, deseja a vida, na soli-do da prpria interioridade reflexiva, j que nem as viagens nem os amores conseguem mais proporcionar a dimenso do infinito. O olhar volta-se para dentro, para o abismo de uma interioridade sem fundo ou, ento, para outra imagem simultaneamente lisa e abissal, o reflexo do espelho. Jean Starobinski analisou essa presena do olhar melanclico e reflexivo na poesia de Baudelaire, reflexo e melancolia sem fim, porque a alma no encontra mais em si mes-ma nenhum vestgio de transcendncia, nenhuma centelha divina que lhe permitiria ultrapassar a clausura do solipsismo.

    Permaneceria, porm, uma outra porta para o infinito e o longnquo, afirma Benjamin lendo Baudelaire luz retrospectiva de um outro grande escritor contemporneo da comunicao va-zia, da tagarelice mundana, dos enganos das viagens e das iluses do amor: Marcel Proust. A chave secreta consiste na infinitude da lembrana, na explorao dos labirintos da memria involuntria. A dimenso aurtica no emoldura mais as aparies sensveis do

    5 A traduo brasileira bastante deficiente, e retraduzi de maneira mais literal.

    * (BeNJaMIN, W. Sobre al-guns temas em Baudelaire. em Charles Baudelaire: um lrico no auge do capitalis-mo. Obras escolhidas III. So Paulo: editora Brasilien-se, 1989: 141.)

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    espao, mas se condensa no infinito do tempo recordado. A arte deixa o domnio da mimesis para adentrar o territrio das imagens mnmicas, como Baudelaire mesmo afirma com fora, em Le Pein-tre de la vie moderne, na figura de Constantin Guis, que s pinta noite, tentando lembrar aquilo que observou durante seus passeios incansveis pela cidade. As imagens mnmicas surgem, em Proust, desencadeadas pelo tato, pelo gosto, s vezes tambm pela msica; em Baudelaire, a memria se refugiou no olfato, esse outro sentido primitivo como o gosto, presente no sujeito antes da aprendizagem social e falha do olhar. Assim, os mais belos poemas erticos e aurticos baudelairianos tambm so hinos ao cheiro e ao perfu-me; cheiro dos seios ou dos cabelos que, literalmente, embarcam o poeta para longas viagens em direo a ilhas longnquas e azuis ou ao infinito de um passado imemorial, de uma vida anterior6 cuja plenitude invade o espao restrito do quarto dos amantes:

    Quand, les deux yeux ferms, en un soir chaud dautomne,Je respire lodeur de ton sein chaleureux,Je vois se drouler des rivages heureuxQublouissent les feux dun soleil monotone.(...)Guid par ton odeur vers de charmants climatsJe vois un port rempli de voiles et de mtsEncore tout fatigu par la vague marine (...)*

    O cheiro ala vo em direo imagem baudelairiana privi-legiada da felicidade, essa paisagem martima na qual o ritmo re-gular das ondas recorda o embalar da criana pela me e, tambm, os movimentos dos amantes. As metforas aquticas favorecem a ecloso da lembrana, fecundam a memria frtil como o rio Si-meonte, engrossado pelas lgrimas de Andrmaca, irriga a imagi-nao do poeta, ao atravessar uma praa deserta de Paris.7 O esp-rito do poeta navega sobre o perfume e, graas a ele, encontra um osis no deserto onde pode, enfim, estancar sua sede:

    6 Cf. La vie antrieure, poema nmero XII das Fleurs du mal.7 Andromaque, je pense vous! Ce petit fleuve, Pauvre et triste miroir o ja-dis resplendit Limmense majest de vos douleurs de veuve, Ce Simos men-teur qui par vos pleurs grandit, A fcond soudain ma mmoire fertile Comme je traversais le nouveau Carrousel... (Le cygne, poema nmero LXXXIX das Fleurs du mal).

    * (BaUDelaIRe, Charles. les Fleurs du Mal. em Oeuvres compltes. Biblio-thque de la Pliade. Pa-ris: Gallimard, 1975, 2 vol.: I, 25.)

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    Comme dautres esprits voguent sur la musique,Le mien, mon amour! Nage sur ton parfum. (...)Nes-tu pas loasis o je rve, et la gourdeO je hume longs traits le vin du souvenir?*

    Comentando a modernidade da poesia baudelairiana, que deve enfrentar a dupla perda da experincia (Erfahrung) e da au-ra, Benjamin cita Proust, que se refere justamente a esses dois po-emas das Fleurs du mal, La chevelure e Parfum exotique no l-timo volume da Recherche du temps perdu. Essa citao tem um du-plo propsito: como o narrador da Recherche o diz ironicamente, ele quer se replacer dans une filiation aussi noble, filiao arts-tica da memria involuntria que Chateaubriand, Nerval e Bau-delaire encarnam ao mesmo tempo, quer assinalar que Baudelai-re ainda est preso a um esforo de lembrana, a uma construo voluntria de memria involuntria portanto. Escreve Proust, ci-tado por Benjamin:

    Cest le pote lui-mme qui, avec plus de choix et de paresse, re-cherche volontairement dans lodeur dune femme par exemple, de sa chevelure et de son sein, les analogies inspiratrices...*

    A leve crtica do narrador da Recherche ao voluntarismo bau-delairiano indicaria um dos motivos possveis da vaidade do seu esforo. Proust diria talvez que, enquanto a vontade desesperada de lembrar no consegue abdicar diante da imprevisibilidade, do kairos da memria involuntria, o poeta continua presa da potn-cia destruidora do tempo; Benjamin parece aceitar essa hiptese quando introduz, depois dessa citao, outro tema decisivo de sua anlise da lrica baudelairiana, a saber, o fracasso dessas ressurrei-es da memria (Proust) em Baudelaire diante da temporalida-de destruidora do spleen. O Tempo devorador corroi at a harmo-nia feliz da reminiscncia e das Correspondances,8 o Spleen ven-ce o Ideal. E isso, segundo Benjamin, tambm faz a amarga gran-deza da lrica baudelairiana, porque toda harmonia final denun-ciada como iluso.

    Assim, em Baudelaire, nem mesmo o perfume perdura des-truio. A expresso privilegiada dessa derrota o motivo do frasco, do flacon, outrora pleno de perfume, agora vazio e sujo. No por

    8 Uma anlise mais precisa das Correspondances, poema nmero IV das Fleurs du mal, mostraria sem muita dificuldade que dissonncias j emergem aqui.

    * (BaUDelaIRe, C. les Fleurs du Mal. Op. cit.: 26).

    * (PROUST, Marcel. A la re-cherche du temps perdu, vol. IV. Bibliothque de la Pliade. Paris: Gallimard, 1989: 498-499.)

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    acaso a palavra flacon lembra outra, o flocon, esse floco da neve que recobre, pouco a pouco, o corpo enrijecido do poeta no Got du Nant. O frasco vazio, destampado, esquecido e jogado fora deixa escapar seu perfume como o corpo morrendo sua alma. Essas ale-gorias despersonalizantes e desvitalizantes* transformam o prprio eu do poeta em recipiente vazio, um corpo repugnante sem esp-rito. A alegoria festeja seus triunfos no mais pelo enobrecimento da idia, mas pela reificao das foras vitais:

    Ainsi, quand je serai perdu dans la mmoireDes hommes, dans le coin dune sale armoire,Quand on maura jet, vieux flacon dsol,Dcrpit, poudreux, sale, abject, visqueux, fl,Je serai ton cercueil, aimable pestilence!9*

    Memria, alma e perfume perecem juntos de uma morte na-da herica, mas suja e ordinria. Sucumbem ao cansao, ao tdio, resignao e poeira que vai se acumulando como neve. Sucum-bem ao Tempo do Spleen, tempo que s produz lucro e que no rene mais as dimenses extticas da memria e da esperana. Se-gundo Benjamin, Baudelaire o primeiro poeta que teve a aud-cia de no encobrir essa derrota espiritual no Got du Nant, o esprito chamado de morne, vaincu, e fourbu pela ide-alizao da funo potica ou pela grandiloqncia lrica. Baude-laire inaugura assim uma tonalidade de voz que deveria definir boa parte da mais exigente literatura contempornea: dizer o desespe-ro e o horror sem mesmo lhes conceder o consolo do pathos. Nas palavras de Benjamin, dizer com extrema discrio* o extremo sofrimento:

    Le Printemps adorable a perdu son odeur.*

    9 Destaque meu.. Ver tambm o Spleen, nmero LXXVI.

    (STaROBINSKI, Jean. La m-lancolie au miroir. Trois lec-tures de Baudelaire. Paris: Julliard, 1989: 35)

    * (BaUDelaIRe, C. les Fleurs du Mal. Op. cit.: 48).

    * (BeNJaMIN, W. Gesam-melte Schriften, Band I-2. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1974: 641)

    * (BaUDelaIRe, C. les Fleurs du Mal. Op. cit.: 76).

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    Jeanne Marie GagnebinJeanne Marie Gagnebin doutora em filosofia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha). Atualmente, professora titular de fi-losofia na PUC/SP e livre-docente em teoria literria na Unicamp. Entre suas principais publicaes, esto: Zur Geschichtsphiloso-phie Walter Benjamins (Erlangen, 1978); Walter Benjamin. Os Ca-cos daHistria (So Paulo, 1982); Histoire et narration chez Walter Benjamin (Paris, 1994), com traduo brasileira (Histria e Narra-o em Walter Benjamin, So Paulo, 1994) e alem (Geschichte und Erzhlung bei Walter Benjamin, Wrzburg, 2001); Sete Aulas sobre Memria, Linguagem e Histria (Rio de Janeiro, 1997) e Lembrar. Escrever. Esquecer (So Paulo, 2006).

    Resumo Esse artigo parte da anlise da lrica de Baudelaire proposta por Wal-ter Benjamin, em particular da idia, oriunda da sociologia de Sim-mel e retomada por Benjamin, de que as transformaes do espao e da percepo na grande cidade moderna afetam as relaes sen-soriais entre os homens. Essas transformaes dizem respeito tan-to ao domnio da aura quanto ao do eros, porque desfazem a liga-o entre desejo e presena de um afastamento essencial, tornado mais prximo na experincia ertica. Assim, o olhar compartilha-do no mais privilegiado na lrica ertica de Baudelaire; e mes-mo o perfume, que ainda conserva a possibilidade desse impulso em direo ao longnquo, fracassa diante da inexorvel destruio do Tempo devorador do Spleen.

    Palavras-chave: W. Benja-min; Baudelaire; eros; au-ra; Sentidos

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    AbstractThis paper takes as its starting point the analysis of Baudelaires poetry proposed by Walter Ben-jamin, with an emphasis on Simmels idea, recuperated by Benjamin, that the transfor-mations in space and percep-tion in big cities affect senso-rial interaction among indivi-duals. These transformations relate both to the realm of the aura and eros, for they disman-tle the link between desire and the presence of an essential dis-tancing, which is closer in ero-tic experience. Thus, the shared gaze is no longer of importan-ce in Baudelaires erotic poetry; and even perfume itself, which still keeps alive the possibility of this impulse towards the far away, fails before the inexora-ble destruction of Spleens de-vouring Time.

    Key words: W. Benjamin; Bau-delaire; eros; aura; Sense

    Mots-cls: W. Benjamin; Baudelaire; eros; aura; Sens

    Rsum Cet article part de lanalyse de la lyrique de Baudelaire pro-pose par Walter Benjamin, en particulier de lide, issue de la sociologie de Simmel et repri-se par Benjamin, que les trans-formations de lespace et de la perception dans la grande ville moderne affectent les relations sensorielles entre les hommes. Ces transformations touchent aussi bien le domaine de laura que celui de leros, parce quel-les dfont le lien entre dsir et prsence dun loignement es-sentiel, rendu plus proche par lexprience rotique. Ainsi, le regard partag nest plus privi-lgi dans la lyrique rotique de Baudelaire; et mme le parfum, qui conserve encore la possibi-lit de cet lan vers le lointain, choue devant linexorable des-truction du Temps dvorateur du Spleen.

    Recebido em25/05/2007

    Aprovado em12/06/2007