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1Hugo Crema

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GAGÁRIN

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Universidade de BrasíliaCampus Universitário Darcy RibeiroCEP 70910 900 Brasília DF Brasilfone 61 3307 2890www.unb.br

© Hugo CremaTodos os direitos dessa edicao reservados

Crema, Hugo, 1989 - Gagárin / Hugo Crema1ª Edição Brasília: UnB, 2010ISBN 1234456781. Literatura Brasileira I. Crema, Hugo II. TítuloCDD 123.45

Equipe: Juliana Holanda e Hugo CremaEditor Fulaninho de TalRevisao Hugo CremaCapa Juliana HolandaDiagramacao Juliana Holanda

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pra Ferdi e pro Thiago,por me deixarem escrever isso aqui

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Sumário

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Yuri Gagarin foi um cosmonauta russo, a primeira pessoa a viajar ao espaço sideral. Em 1961, no auge da Guerra Fria foi lançado à órbita terrestre pela nave Vostok 3KA-3 e ainda que não conste dos registros da nave comentou ao ver nosso planeta não haver qualquer deus lá encima; palavras reforçadas depois pelo chanceler Nikita Kruschev. A corrida espacial e as ignomínias das guerras foram responsáveis por um momento que de singular tem o fato de pousar na mão do homem o papel de observador que altera a ordem do observado.

Apresentação

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O menino mais velho esfregou as pálpebrasafastando pedaços de sonho.

João Graciliano Ramos

Este livro não é, a seu modo, muitos livros.

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ComeCei a pensar em desistir: o terceiro carro só neste dia passou a toda velocidade sobre uma poça, molhando a minha camisa. Chovendo havia mais de quatro dias seguidos, a água se acumulava nos buracos no asfalto. E eu tentava identificá-lo entre perguntas emaranhadas, há exatos três dias. Não muito fácil descobrir o número e o per-curso da linha, o turno deste cobrador. Só tinha o nome, nem um rosto eu tinha. Nem contatos na empresa que explicaram algo. Cheguei a consultar um daqueles serviços de rastrear dados das pessoas só pelo nome, mal sabia eu que há no mínimo trinta pessoas registradas assim só nesta cidade, e pelo menos duas trabalham como cobrador de ônibus. Letras num verso de foto amarelada

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querem dizer pouCo e era o que eu tinha até ali. E mesmo assim eu tinha minhas dúvidas de que essa pessoa do papel amarelado, encontrado dentro de um livro também amarelado, fosse saber alguma coisa. Difícil mesmo, eu diria, não era uma linha lá muito regular, fui no primeiro dia às sete da noite, a parada ficava num bairro relativa-

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mente perto do centro, estava vazia. A rua toda era um silêncio, apesar do horário. Ou eu era um câncer para a quietude do ambiente ou as casas estavam realmente desabitadas. Acho que eu era mesmo o câncer porque fui crescendo dentro do assunto, sem perceber, como se a vontade fosse penetrar o mistério que eu inventei pra mim e explodir lá dentro. Esperei uns quarenta minutos e fui embora sem ter visto qualquer ônibus, não só o que eu procurava. Voltei pra casa a pé, repetindo o nome várias vezes; Berenice, Berenice, Berenice. Dava uns quarenta minutos andando dali até o prédio, a palavra foi perdendo o sentido à medida que eu repetia, gasta enquanto passava por lugares e objetos que não diferenciam uma cidade das outras, na verdade as unificam. Um poste e uma pessoa apres-sada. Uma kombi num terreno baldio, preenchida por mato. Semáforos encravados em calçadas, tudo eu achava que eram fonemas de um idioma comum a qualquer cidade e que me ajudaria a achar as pessoas que eu procurava. Porém ali, debaixo da chuva fina, sem guarda-chuva, eu ainda não sabia o que era um fonema. E isso foi bem no princípio.

Quase anterior a tudo, não anterior.Camisa manchada, as frases desmanchando por excesso de uso. De

lama e de água. Um cachorro que me seguiu por três quarteirões pra depois me trocar por um vendedor de bíblias com cara de chinês. Essa foi minha volta do primeiro dia, não desanimei. Por que será que todo aquele que quer ser ex-fumante tem lapsos de atirar o maço de cigarro longe, mesmo que cheio, pra posterior arrependimento? Custa dinheiro e esforço descer à banca e comprar algo que talvez nem use; dessa vez ele caiu dentro de uma poça, e mesmo a maior vontade não me faria buscá-lo. Que é melhor comprar outro, só pra ter; foi o que eu disse pro garoto pasmo com meu arremesso.

A ida no terceiro dia foi parecida porque eu não percebi se era um indício aquilo ou não, se era pista falsa ou até algo que eu queria que fosse algo, indício ou pista falsa. A princípio eu continuava na mesma. O mesmo papel amarrotado. O mesmo nome e as mesmas palavras doces no verso. O mesmo registro catalográfico anotado às pressas. Meio que aquela pessoa de que captamos um sorriso e achamos que se dirige a

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nós ou que arreganha os dentes e não importa se quer nos repreender ou não, o importante é que olhares se cruzem no momento exato. Eu encontrei a linha certa no horário certo, levantei o braço sinalizando para o motorista do tal ônibus, entrei. Ninguém nos bancos, a sensação de entrar numa boca. O nome do cobrador devia estar em algum lugar ali, sem dúvida: nem em crachá, nem bordado na blusa eu vi. E o pior de tudo, o cobrador era mulher, além da dificuldade de fazer funcionar os pensamentos em relação a puxar assunto ou não, entregar dinheiro a mais pra tentar conversar ao receber o troco ou entregar a quantia exata e me calar, nada importava porque além de não ter ensaiado o que dizer em nenhuma ocasião, ainda mais nessa, ele era ele, embora o nome sugerisse qualquer coisa. Paguei o dinheiro justo, sentei calado, à espreita querendo me apropriar de qualquer conversa entre o motorista e ela, qualquer troca de nomes. Me aferrar a palavras alheias, era o que eu andava fazendo nas horas vagas.

O ônibus me deixava longe de casa: independente da parada que eu escolhesse; ainda precisaria de um táxi ou metrô pra voltar. O silêncio porque me acostumara ao ronco do motor e só esperava pra fazer alguma leitura labial que acabou nem sendo precisa, se mantiveram quietos: a cobradora impaciente tamborilando a caixa de guardar dinheiro com os dedos num ritmo próprio, desconectado dos ritmos do ônibus. Figura apreensiva e com vontade de ir embora, tanto é que recolhia pequenos objetos que tinha espalhado ao seu redor. Um rádio de pilha, os óculos, uma vasilha que, do lugar ao fundo do ônibus aonde eu me sentei, pare-cia pelos farelos que tinha guardado um bolo ou um biscoito, os sapatos baixos que agora calçava cobrindo as meias à mostra, os movimentos uma imagem da pressa sob as luzes frias intermitentes do ônibus.

Mesmo assim, se o cobrador era mulher, quem era Iliá?Resolvi descer ali mesmo, na parada seguinte, vai saber se haveria

trânsito se ele entrasse mesmo no centrão. Levantei um pouco antes, o ônibus já estava com alguns passageiros e o que me deu ânimo pra não sair, apenas esperar em pé, diante da porta do ônibus, foi ver a grande piada que era o papel amarelado em que eu depositava tantas esperan-

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ças. Os garranchos atrás do papel manchado da foto, em que decifrei a palavra Iliá e algumas outras, podiam ser qualquer coisa também. E nisso eu percebi, atracado a uma das hastes de metal, já acionado o sinal pra parar o ônibus, que pra sufocar a pressa, fosse quem eu vim ver aqui ou não, a cobradora folheava um livro displicente fino, verde, título em letras brancas garrafais na capa.

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resolvi seguir. quase certeza, ele/ela dedica suas manhãs a cuidar dela, comprar e prepa-rar comida, levar ao médico, ao cabelereiro, quem sabe se até não conversam um pouco, muito embora eu achasse Berenice nova demais pra precisar ser cuidada, talvez o contrário, talvez outros, na verdade, precisassem ser cuidados por ela; a 18

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não ser que ela fosse mesmo como eu estava pensando, como eu temia em segredo. E aí Berenice precisaria de ajuda, por ser como eu. Mas eu não acredito, pelo que eu lembro não dá pra dizer. Perder o que eu perdi e ganhar o que eu ganhei. Por que será que eu me deixei levar por este absurdo de pensar em simetria? Se eu não tivesse cedido pro-vavelmente não estaria aqui. Ou será que eu

Então por que os últimos papéis que desempenhamos foram tão diferentes? Radi-calmente opostos, o que só me leva, de novo, a pensar em uma correspondência entre eu existir e ela escrever. Mesmo que eu não saiba qual é. Mas uma equação não é o contrário de um verso e é isso que eu ainda temo. Preferi calar tudo que ela preferiu exprimir. É a

estive Certo sempre e ela também me proCurou?

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mesma ação suponho, entende que por sermos diametralmente contrários é que somos tão parecidos? Sim, porque mesmo um espelho reflete as ações invertido, é pensado isso já.

No caminho entre o apartamento e o resto da cidade, pelo menos o resto da cidade que interessava ao travesti, a escola, o bar, as escadas que dão pro metrô, uma rua mais conhecida; passando por uma praça, me vê e acha que eu tenho cara de cantor desaparecido, poeta às escondidas, taxidermista. Não sei nem me pergunto se ele sabe que taxidermista é o que ele chama de empalhador de animais, só sei que ele tem certeza que eu preferi o silêncio e a fama incógnita. Quando vem sem pressa o banco é o meio do caminho e logo some na noite. Eu sentado achava aquele rosto familiar, achei mesmo que pudesse ser o da foto, insegurança me deteve, não associei de imediato, incompatíveis os dois. Nem assim dá tempo de imaginar o que a sombra dele/dela faz aqui a esta hora. Passa direto rápido, mas - talvez hoje seja dia de folga - sem pressa, sacolas do mercado ou criança no colo. Antes que seja tarde pra alguma coisa. Estar cego à cidade imóvel, espreitando com a imobilidade de um animal, de quem ainda sentimos o hálito e o vai e vem da respiração, o peito oscilando. O jornal voou em alguma ventania. Com certeza acordou e não planejou, é automático passar por aqui. As olheiras e a barba nascendo acusam o rosto de ser domingo. Os passos devagar, os gestos sonolentos, o corpo tateia os bolsos atrás de um cigarro e se o puseram na boca, não acharam o isqueiro. Ele me pediu fogo e sentou ao meu lado enquanto eu procurava nos meus próprios bolsos. Meio espremido pelo espaço no banco que eu ocupava. Àquela hora era homem por trás de maquiagem borrada, só resquícios. Um resto de sombra azul sobre uma pálbebra me fez associar de vez o rosto à foto. Desconfiei. Conversamos não lembro muito bem sobre quê: lembro que ele era nada afeminado de manhã, lembro que falou que estava juntando dinheiro para montar um café ali mesmo na praça e que tinha um filho. Sua mulher os abandonou logo depois do parto; deixou o menino no berço, preparou uma mala, escreveu uma carta e foi. A carta, acima de tudo, serviu pra ele sentir pena da mulher e ter certeza que só com o salário de torneiro mecânico não daria pra pagar

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as contas e ainda sustentar outra pessoa, com tantas necessidades como um filho. Por isso mudou de profissão. Omitiu pra qual profissão tinha mudado, isso eu inferi a partir da foto. Encerrou a conversa e disse que tinha compromissos logo cedo, com uma amiga que ajudava às vezes. E mesmo já tendo reconhecido, achei melhor me deixar ali fumando. Outros domingos viriam, ele morava perto de mim, mais de uma vez já vi lá da esquina ele desgrudando um jornal do sapato. Desdobro um jornal, difícil de manobrar, que comprei justamente pra ler ali, sem amigos da Berenice me atrapalhar. Equilibro no colo, a primeira notícia fala de uma região do México que está ficando deserta, os traficantes estão expulsando as pessoas para plantar coca onde antes se cultivava arroz e milho.

Acendo um cigarro, começo a voltar pra casa esquivando de coisas que fossem eles; os rostos da foto, o travesti abraçado à Berenice, que esconde com uma jaqueta a ausência do braço, um rosto de homem maquiado de palhaço olhar meio torto, e um cara de soslaio, mas ainda incluído no conjunto da foto, os três sentados num capô azul de um carro e o cara olhando de longe a Berenice. O versinho dedicado escrito atrás dela É preciso peito para encarar um ano novo, e que esse peito seja novo ele mesmo neste ano, parabéns, Iliá. O nome borrado eu adivinhei qual é; e a caligrafia era a dela, igual à da dedicatória de dentro do livro, o verso fedia a Berenice. A semana seguinte passou como deveria passar, lenta, sem notícias novas sobre muita coisa e menos ainda sobre a Berenice. Uma foto unida por um clipe de metal a uma folha amarelada de papel são pouca informação, o suficiente para que ao sair do trabalho eu con-siga deixar de pensar em procurá-la. Penso no travesti, tento adivinhar qual seria seu ponto, vou a muito desses pontos com a foto em mãos e ninguém é capaz de dizer o paradeiro. Todos os travestis o conhecem, mas de vista só; sem saber nome, endereço. Não sento no banco, mas todo dia a partir das sete passo pra me da apropriar da praça, entender seus ritmos, os fluxos de gente e as conversas estanques, pairando sobre as poucas cabeças dali como uma palavra omitida. Desejo que um travesti que não sei se conheço de vista cruze meu caminho, diria que ardente-mente. Um espinho sem nome ou preço atravessado na minha garganta.

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Muitos seis dias de gente gritando e suspiros enamorados e balões coloridos e cagadas de pássaro e vendedores e carroças de cachorro quente e cheiro de álcool e cheiro de tinta e mancha de tinta nos dedos e livros roubados e jornais amarfanhados atirados ao fundo de qualquer gaveta e saltos altos e freadas bruscas e cigarras e fumaça e antenas e garga-lhadas explodindo em lágrimas e toques furtivos e nômades e mendigos sedentários e barracas de ciganos e semáforos hesitantes e pombos e milho desperdiçado e dívidas e concreto e orelhões e os brasões da pre-feitura no chão desenhados em pedra portuguesa e nuvens ameaçando e aviões de pouco calado e grilos e passos anônimos e bêbados pedindo que alguém divida o banco com eles e pardais nos fios de alta tensão e Berenice e outras putas e a coceira e o sol e roupa em diversos estados de conservação e museu e bares e casas lotéricas e mãos levantadas e biblioteca tomada por traças e sanfona e pandeiro e dinheiro no chapéu e mofo nas comisuras do cimento e a parte de baixo das árvores pintada de branco e uma mosca ou outra e colegiais e professorinhas e portões e ventiladores e saídas do expediente com o relógio de ponto andando cada vez mais lento e celulares e esbarrões e espirros e pedidos de desculpas e chapéus e rinhas de galo nos quintais das casas ouvidas dali e anões e cartomantes e porteiros e o relógio e o sotaque e a névoa dissipando e farmácia e bombeiros e dentista logo ali dobrando a esquina e uma gaivota transviada de rumo e as dúvidas em mim e o silêncio.

Nenhum dos três nessa semana.Algumas coisas não foram bem em vão. Na época eu gostava do meu

trabalho e, por mais vontade que eu tivesse, não sobrava muito tempo pra seguir travestis que possivelmente cuidassem da Berenice, eu me refiro a ela pelo nome, mas a única vez que a chamei assim ela ignorou, por razões óbvias. Gastava muito tempo no atelier de um amigo pensando em rostos triangulares, o Jorge ainda pagava bem a quem se lembrasse de não assinar as telas com o próprio nome. Eu não era o melhor deles, até admito, mas comecei fazer uma coisa que ninguém fazia, e que talvez tenha sido a causa de perder mais esse emprego. Comecei a criar telas originais me baseando apenas no estilo do pintor, uma imitação que

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poucos colocariam em questão e que o Jorge sempre poderia apresentar aos seus contatos como um achado recente. Percebe que é uma questão que está além de ser ou não empregado dele, estar contratado? Sem o Jorge não venderíamos nenhum quadro porque ele era o único comprador que conhecíamos. Comprava depois vendia pra interessados, o que era uma garantia de que um trabalho mal-feito não seria rastreado de volta à origem e todos nós seríamos presos, apesar de abaixar o nosso preço. Adiantou pouco, eu desenhava bem, mas faltava um toque final meu em tudo. Desde então eu achava que a imperfeição é o lugar em que a obra é mais fluída. Não errava de propósito, mas as falhas ajudavam a me legitimar. Trabalhava em casa, teve momentos em que eu gostava tanto de fazer o que eu fazia que vendi a televisão e o tapete pra não haver distrações e também pra ter mais dinheiro pra mais material. Por isso eu ficava pouco ali, tinha mais o fim de semana mesmo; ele devia trabalhar também. O fato é que nunca o vi sair pra levar o filho à escola ou ao médico, se ele não morava por ali, não faria sentido passar ali num domingo de manhã. Aquela não foi a primeira vez que eu vi o rosto dele/dela lá do meu banco, foi a primeira vez que soube que ele me levaria diretamente à Berenice.

No domingo seguinte o homem ressurgiu, eu sequer tinha desistido ainda, só achava mesmo que não ia vê-lo naquela praça só porque queria. Precisava fazer algo mais, como para merecer que ele aparecesse e eu perguntasse coisas, e não era do braço que perdi, por mais que o homem tivesse cara de saber tudo, por mais que naquela época ainda sentisse falta. A sensação de membro fantasma era pelo braço e pelo travesti, só que esse nem parte minha já fora. O outro sim, mas perdi ambos do mesmo jeito, tendo reconhecido. Era incapaz de conjurá-los e ele surgiu sem sobras de maquiagem no rosto, era mesmo uma pessoa comum indo a algum lugar, andando rápido, com passo naturalmente sem pressa. Me cumprimentou com um gesto da cabeça, disse bom dia fazendo cara de semi-familiar – entre desagrado surpresa e resignação -, eu só fumando,

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com o jornal enrolado embaixo do braço. Não se deteve, continuou cami-nho. Ainda à espera de algo, à medida que via a silhueta diminuir ao longo da rua decidi segui-lo.

Precisei de força de vontade para acompanhá-lo a distância, um passo rápido e displicente ao mesmo tempo. Rápido o suficiente para atravessar a rua um segundo depois de o sinal abrir sem que algum dos poucos carros que circulavam no domingo de manhã me atropelasse, um segundo antes de eu resolver correr por achar que ele já tinha ganho distância demais. Displicente o suficiente para dar a ele tempo de asso-viar e cumprimentar pessoas, algumas com quem eu trombava inclusive, sem saber ao certo como manter uma distância decentemente próxima mantendo o disfarce. Atravessaríamos, ele deslizava, eu suando pra des-viar da multidão no exato segundo antes de me acertarem, uma mulher contente,

- flores para a namorada, flores para a namorada, rosas para quem se ama, flores para a namorada.

Logo depois de comprar uma acelera o passo mais ainda e após uns cinco minutos cumprimentando um e outro com acenos da cabeça entra num espaço entre dois prédios que eu não gostaria de chamar de beco. Porque é uma penumbra coberta com telhas de zinco, plantas escorrendo pelas paredes dos prédios e um portão baixo de metal que ele destrancou por dentro ao entrar, só mexendo o trinco com a mão. Estalo nítido.

Não entrei, pareci um gângster, fumando, o pé apoiado na parede.

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sentei num banCo daqueles altos e redondos, na barra do bar a caminho do trabalho. Acordei sem muita vontade de falar mesmo, e o palhaço de um pouco antes aparecer tirou de vez o resto dessa vontade; por isso ignorei o dono do bar ler um jornal em voz alta, competindo com os berros dos riscos verticais da televisão em preto e branco e com o outro cliente do bar, que retrucava a televisão e o dono. Espantar moscas com o pano de prato, o cigarro atrás da orelha, o avental engordurado, nada disso resumia melhor o homem atrás do balcão que o jornal policialmente sangrento gritado para os dois clientes e quem mais passasse na rua ouvir. Manchetes tão sensacionalistas quanto prosaico era eu estar ali meio de pé, muita

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com manteiga. Um menino recorrente que eu sempre achei que era mudo também estava lá, com sua caixinha de engraxar sapatos. Sentava lá e esperava o dono ter pena o bastante pra lhe dar um

só era meio angustiante ver aquele garoto ali te olhando e pedindo tudo o tempo todo sem articular nenhuma palavra. Me concentrava no café da manhã que eu engolia ainda mais rápido pra não ter que ficar enca-

pão ou algo; inComodava ninguém,

já pedindo o mesmo de sempre, um Café e um pão

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rando. Sempre a mesma combinação de chapa e garrafa térmica pra me lembrar que pouca coisa muda e até as manchetes parecem requentadas, MATA FILHOS E MULHER AO FLAGRAR OUTRO DENTRO DE GELADEIRA; CABELEREIRA GUARDA CABEÇA DE RIVAL PARA USAR EM RITUAL SATÂ-NICO; HOMEM COM ESPADA DE SAMURAI INVADE BANCO; SEQUESTRADO NO BANHEIRO; POLTRONAS DE CINEMA ESCONDEM AGULHAS COM AIDS. Termina a leitura para começar um discurso sobre as bases morais da sociedade estar sendo minadas pelos vícios privados e pela falta de refe-rências das pessoas. Brandindo o jornal enrolado, reclama da ausência de luminares públicos, pilares de sabedoria para guiar as pessoas inferiores em inteligência e força de caráter ao caminho da verdade. Espanta com a mão uma mosca do bigode e não vê vir o copo que o outro cliente arre-messou na cara dele, acerta só de raspão e o barulho do copo espatifando contra as garrafas na estante atrás do balcão abafa o que o meu colega de bar disse. Só ouvi porque estava perto quando ele olha em volta em busca de mais objetos pra jogar.

- Cala a boca, reacionário de merda. Ao que o dono do bar, já bastante puto, se importando pouco com o

prejuízo, pega o gargalo de uma das garrafas que tinha caído no chão e arremessa.

– Vai se fuder, seu cocainômano, comi a vagabunda da tua mãe seis vezes e tu vem me xingar, me respeita, seu bosta.

Trocarem olhares, acusações, xingamentos e estilhaços a princípio não espantou o garoto, só assustou. Achei melhor ir indo. Na hora que eu deixei o mesmo dinheiro de sempre encima da minha mesa, o interior do bar era uma névoa espessa de álcool, urros, sangue. Os dois atracados sobre a madeira do tampo de uma das mesas, um quase de costas no chão encardido, a mesa em si desabada sob o peso dos dois.

Assim que a discussão começou eu percebi que o menino estava por algum motivo esfregando o que ainda sobrava de camisa nos azulejos mais perto do piso. Não sei o que ele queria com isso, e percebi também que ele me seguiu logo que eu fiz menção de não tomar parte na briga. Me seguiu, não sem antes roubar uma garrafa intacta da estante, uma

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de vermute, das poucas inteiras e ao alcance da altura dele. Pôs a garrafa sob a camisa, crente que ia conseguir esconder de alguém. Veio atrás de mim como um cachorro pela calçada, de vez em quando algum ganido lembrava que ele estava ali sem me fazer me importar. Eu tinha toda a intenção de ir trabalhar, com certeza não deixariam ele entrar no pré-dio. Andava trabalhando com computadores, projetando programas por demanda. Não podia trabalhar avulso, só pra empresa. Difícil difícil não era, mas eu tinha caído meio de pára-quedas ali, nunca tinha mexido a sério com computadores, não tinha realmente mais noção que qualquer um ali. Enquanto me pagassem eu me dava por satisfeito, menos satisfeito é óbvio que na época dos quadros porque lá o horário era livre, eu podia pintar até pelado se quisesse; agora não, tinha até crachá e ganhava menos. A verdade é que não deu pra entender direito por que o Jorge parou de comprar meus quadros depois do que ele falou naquela noite. Bom, o fato é que até passar a roupa pra ir trabalhar eu tinha que passar agora, então seria bem fácil me livrar daquele muleque, seria barrado, enxotado, sei lá, algo assim.

Comecei a estranhar quando ele parou de me seguir e passou a fazer o mesmo caminho que eu, mas antes de mim. Andava na frente como se previsse aonde eu ia, pensei rápido e desviei o caminho, coisa que ele adivinhou também. Você acha que ignorar adiantaria? Talvez eu tivesse que ter feito isso mesmo e não dirigido a palavra a ele. É, é isso, tentar me comunicar pode ter sido a pior coisa que fiz nessa história toda e o que me fez acabar aqui, inclusive. Quer saber por quê? É certo que eu nunca iria descobrir daquele modo se ele era mesmo mudo ou não, o fato é que ao perguntar

- menino aonde você vai com tanta pressa? O menino reagiu de uma forma que eu devia ter esperado e justamente

por não ter esperado que desencadeei isso aqui. A resposta dele foi genial, poderia ter sido melhor, mas concordo que ele virar de súbito, com uma expressão firme no rosto firme me encarar o rosto todo de uma vez, quase me fazendo tropeçar nele, atropelá-lo – me obrigando inclusive a me apoiar no seu ombro pra não cair - o vermute respingando da garrafa

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recém-quebrada com a queda, e no solavanco começar a chorar foi o mais inesperado. Desafinar, uma sirene esganiçada no meio das pessoas, veia saltada no pescoço, ficar vermelho até eu desconcertado com tanto choro e tanta lágrima e tanta gente me olhando torto puxar ele por um braço e conduzi-lo até uma transversal menos movimentada daquela rua.

Saímos da multidão, segurou o choro, irrompeu do sarcasmo um riso.As paredes altas de cada lado da viela amplificavam meu amiguinho.

Rir mesmo, gargalhar apontando pra mim, lacrimejando inclusive, até uma velha abrir uma janela em um dos prédios e fazer ssshhh pedindo silêncio, querendo dormir. O garoto concordou com a velha; o esquisito é que ele fazia barulhos até bem altos quando chacoalhava de rir, mas apenas amedrontou com a cabeça frente à minha pergunta do seu nome. Rua com pouco movimento quer dizer que prestamos menos atenção nos carros que se materializam. Um quase atropelou, por não percebermos que a esta altura nos encarávamos bem no meio da rua. A buzina: cada um pulou pro lado, nem assim ele gritou, só arregaçou a boca, uns den-tes pretos bem lá no fundo, ameaçadores que demoraram a formar, mas formaram, acabou cuspindo um primeiro som. O que a princípio me soou como um grunhido foi se aglutinando, se agarrando à língua e aos lábios na tentativa de sair em forma de palavra. Você é ele, só essas quatro sílabas distingui entre uns murmúrios antes de vê-lo dobrar a esquina correndo e dar de cara com uma mulher (saia caótica, descalça, olhar vidrado de azul, manchas brancas de pássaros cagarem na blusa, assoviando, rosto cubista em retalhos) que conduzia um carrinho de compras atulhado de livros. Embora ela caminhasse devagar, bem devagar, o choque com o garoto amedrontado foi tão escandaloso que não me deixou perceber naquela ocasião nada do que me impressionaria minutos depois, o braço faltando, os olhos muito azuis sob olheiras, de que só pude ver frestas, entrevistas por entre os cabelos desgrenhados. Por falta de gritos, a trilha sonora ficou a cargo do metal do carrinho arranhando o asfalto ao escapar para o meio da rua, e mais freadas bruscas de carros assustados. Nenhum dos nossos rostos continha voz, só expressões atônitas. O carrinho tom-bado, o menino no chão também: desconfio de que ela não quis ajudá-lo

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a levantar porque trocou com ele um gesto secreto, um contorcionismo qualquer do rosto, que indicasse cumplicidade, dever bem-feito. Ajudei a recolher os livros, enquanto o garoto ia embora sem olhar pra trás. Um grito já sem enxergá-lo.

- Você é ela, você é ela. Devem ter combinado tudo.

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fazendo dinheiro rápido demais pros padrões dele. Dia esquisito o que ele me denunciou. Acordei com o sol bater na minha cara me dando uma sensação de que seria um bom dia, pisei no livro ao sair do colchão e quase escor-reguei, o que importava era o otimismo. Tomei banho, pus uma tela em branco, que tirei detrás

tintas, hoje era um dia Pollock, já tinha enchido pintar celebri-dade. Fazia uns três anos que eu não via uma tela do Pollock e só lembrava de um monte de riscos e de ele pintar com a tela na horizontal, jogar tinta balançando o pincel. Desci pra tomar um café antes de começar a trabalhar e quando voltei da escada vi dois caras de terno na minha porta. Estavam de costas conversando, um deles fumando, nem notaram que eu

ele me denunCiou. aChou que eu andava

do sofá, no Chão da sala, preparei as

vendi uma série de retratos de pessoas famosas em quatro cores que não foram as que o Warhol usou. Saíram bem mais rápido do que eu pensei, mas foi porque eu não vendi só pro Jorge e por isso

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estava ali, bem que eu podia ter ido embora, mas eu continuei achando que era um bom dia, talvez até fosse mais gente que a Berenice mandou pra me confundir, que nem ela fez usando o palhaço. Já andava meio puto com ela porque eu a buscava e encontrava nada e ela que já sabia tudo de mim continuava conseguindo me encontrar quando quisesse. Antes fosse gente mandada por ela pra me deixar mais frustrado e mais curioso, antes fosse. Por isso nem tive medo de ir falar com os dois, que acabei descobrindo que serem gêmeos. Um usava barba, o outro chapéu, talvez quisessem se diferenciar; e não falaram uma língua que eu conhe-cesse até verem eu me aproximar. Só percebi que tinha entendido o que disseram quando parei e tentei digerir os sons, quando já estava no chão sendo chutado pelos dois.

- Você nos deve nada, o Jorge pagou seu prejuízo, imbecil, mas isso aqui é por achar que podia nos passar pra trás. E é melhor mesmo parar de fazer as coisas desse jeito, pro seu bem, camarada.

Estirado na entrada do apartamento, conseguia nem levantar e abrir a porta. O teto formava um ângulo esquisito com as plantas da vizinha que cresciam agarradas parede acima, ajudadas pela luz fraca e fria e oblíqua: este meu fim de corredor não tem janelas, só portas, muitas de cada lado, nem sempre emparelhadas. Cartas em pilhas, bilhetes alfineta-dos nas madeiras assinalam os apartamentos vazios. Acho que nem nesse andar, nem no prédio inteiro, há apartamentos de mais de um cômodo. Tudo se resume a um vão numa parede, geralmente com um colchão, um banheiro e um microondas que mais de uma pessoa compartilham. De vez em quando uma criança passou ao meu lado brincando, fazendo algum barulho sem parar e me notar. Sem voz, não cogitei me esforçar muito pra me incorporar. Dali eu ouvi um telefone tocar duas vezes, senti um cheiro de comida sendo feita, de tinta fresca, de caminhão de lixo, e das plantas acasalarem. Meio difícil saber se os dez minutos ou cinco horas que passei deitado ali correram mais rápido ou devagar porque um car-teiro sem se dar conta de que contornava meu corpo inerte colocou um envelope sob a minha porta. Sem cuidado, sem olhar lado nenhum, com o hábito com que sempre faz isso, mesmo que eu raramente recebesse

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alguma coisa, pra ele foi corriqueiro e automático não me notar e eu não tentar me fazer notar. À luz baça de um silêncio turvo uma aranha que se dignasse a percorrer meu corpo sentiria que meu pulso não vacila, é sempre o mesmo morno de não querer mudar de posição. A tarde cai, a luz escorre sobre as montanhas do meu decúbito dorsal. Sei disso pelo fio de luz que desanima, antes uma linha constante sob minha porta, agora algo que estremece num espasmo, prestes a morrer. Anoitecer não muda minha opinião sobre jazer à porta do meu apartamento porque não lembro direito que horas cheguei ali. Que horas os socos, que horas os chutes, que horas as donas de casa chegando apressadas com suas sacolas, a berinjela deixada cair rolando em direção a um rodapé. Caiu a noite e naufraguei em seus meandros, quem me estendeu a vontade de levantar dali e ir dormir no meu sofá foi o Jorge, com palavras tecendo uma corda. Apostei comigo mesmo que você não teria levantado, estava esperando você me ligar, eu te liguei e você não atendeu, esperei você me retornar e nada também, dei umas horas e resolvi aparecer, nem sei por que pressenti você aqui fora ainda. Vamos entrar, eu trouxe comida e aspirina pra você. O sarcasmo no sorriso não era pra me recriminar por tê-lo traído, ele confessou no final através de ironias que tinha me denunciado, mas que tinha feito tudo com a intenção de que eu apren-desse com quem estava lidando, mas que inevitavelmente voltava pra me ajudar, uma segunda chance, agora que já devia ter aprendido a lição.

Essas coisas eu verifiquei na referência de tempo que eu tinha, o relógio do microondas, foram ditas às três da manhã com ele querendo saber qual era meu plano agora que não podia mais pintar sem ser sob rigoroso disfarce. Lembrei da última vez que fui ao cinema, com meu irmão ver Forrest Gump, Have You Given Any Thoughts on Your Future, Son?; What Future? Deitei no sofá, o Jorge me servindo uma vodca com gelo atrás da outra, deslizando os dedos pelo meu cabelo, feições realmente preocupadas, gotículas de saliva atingiam minhas bochechas; perguntei se ele fazia isso com todo mundo que trabalhava pra ele.

- Isso o quê?

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- Isso de fuder a pessoa, fazê-la se colocar no seu devido lugar pra depois reconfortá-la.

Respondeu com cara de evitar mais perguntasque perguntas dão dor de cabeça. Naquele momento eu realmente fiquei sem resposta, percebe? Mudei de assunto falei que estava ocupado num tipo de busca, que naõ tinha esquecido que o trabalho que ele me dava era excelente, apesar de eu andar egoísta por causa de algo meio importante que eu tinha des-coberto. Vir me visitar àquela hora pra checar se eu estava bem me fez desconfiar do que ele queria comigo. Evitar meu olhar alimentou minhas suspeitas. Me manter no trabalho confirmou e por isso eu persisti no que já tinha decidido e falei que precisava parar com aquilo por um tempo, não é como se eu fosse desperdiçar um talento, até porque não é como se esse talento sequer existisse. Parar e arranjar um emprego comum, parar e comprar comida de verdade, dormir oito horas e não pensar em poetas apaixonadas por quem elas não conhecem. Eu ainda não tinha contado pro Jorge a história da Berenice, nem tinha intenção de contar. Mas por pior que julgasse que fossem seus desejos, eu tinha de admitir que a pessoa mais próxima de mim era ele, ou seja minha relação mais pessoal era com alguém que era meu patrão e queria me comer. À deriva, consciente de que o que me prendia ali, tinha aberto mão há tempos de ser meu irmão o que me ancorava à cidade, agora era um livro sobre meus detalhes oblíquos e um cara que eu tinha sacaneado, que tinha me sacaneado e que agora me perdoava.

- A gente se vê.Assim que ele foi embora tomei um banho e pensei em comprar uns

livros. Qualquer livro que limpasse minha consciência pesada de ser narcisista a ponto de só ter uma autobiografia torta em casa, o resto do lugar era dos LPs, das apostilas que minha irmã deixou aqui antes de viajar, do colchão, das pilhas de caixas de pizza, dos materiais de pintura, dos pôsteres, de umas tábuas, pregos e martelo, lixas, tinta e cola de madeira que eu falhei em transformar em estante, uma fantasia da peça de que eu quase participei. Tudo menos livros abarrotava o meu entorno, tudo o que dissesse menos que eu mesmo, que dizia muito pouco, muito

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menos que livros. Objetos ao redor em que eu escondia os medos que me emudeciam. Nesse dia não dormi, enrolado na toalha, da minha janela aberta vi o resto despertar. Os primeiros carros e as primeiras pessoas apressadas finalmente decidiram por mim. Saí pra procurar um emprego que já tinha certeza sem procurar que não apareceria assim.

Só apareceu porque eu vi o menino do bar e do carrinho de compras e tentei acompanhar seus movimentos do banco em que estava sentado, só com os olhos. Gritei por ele, que não reconheceu minha voz. Mas o namo-rado do Jorge, de quem eu nunca descobri o nome, sim. Me reconheceu, me abraçou, menos escancarado que o companheiro, perguntou como eu estava e minha mudez o atraiu. Quis saber se eu estava precisando de alguma coisa. Foi gentil da parte dele, sabe? Penso que inclusive isso me motivou a contar o que eu planejava naqueles momentos ali, só sobre o emprego, nada dos outros assuntos. Me ofereceu o trabalho a que faltaria três dias só na primeira semana e a que, ao não me despedirem por isso, resolvi me adaptar de uma vez por todas e aceitei, auxiliar de dentista na empresa que me demitira de programar por justa causa umas duas semanas antes. Uns minutos depois que ele partiu, enxerguei o menino se aproximando e me perguntei se ele ia falar comigo ou só não tinha me visto mesmo. Gritei por ele e ao olhar na minha direção começou a vir mais rápido. Comprei um picolé pra ele porque queria que ele quisesse dizer alguma coisa sobre o assunto todo, embora eu ainda tivesse a dúvida sobre ele saber falar ou não. O silêncio das mãos dele procurando por lugar onde se aquietar durante mais de quarenta minutos me fez chegar atrasado ao primeiro reencontro lá na empresa. Já estava contratado há um tempinho e ainda não tinha surgido por lá desde a demissão. Devo-rou o picolé em frações de segundos e aproveitou pra ficar olhando as mulheres que passavam em roupa de ginástica. O que mais parece que o impressionou foi um caminhão-pipa que usavam pra regar os canteiros da praça. Por mais que a frase no dorso do reservatório intrigasse, ÁGUA BRUTA - eu duvido que ele conseguisse lê-la - penso mesmo que ou ele

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estava era hipnotizado pela pressão da mangueira revolvendo a terra ou estava à espreita em silêncio pra não assustar algum pombo que plane-java chutar.

Mantinha os olhos arregalados pra qualquer eventualidade. - Sorte sua que ela não tirou a foto de dentro do livro, senão você

nem ia ter como investigar nem nada, né? – a felicidade despreocupada sob a forma de um desafio - Ela nem me deixaria dizer isso, cara, mas ela pesquisou muito pra escrever aquele livro, realmente foi inexplicável ela não te perguntar nada. É verdade mesmo que ela não fez isso?

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boca da Berenice me chamou pri-meiro a atenção, passado o susto: só muito depois eu vi as olheiras sob os olhos, que me deram essa vontade de descrevê-la desse jeito. O sarcasmo não era só na boca e em volta dela, o corpo todo, em todos os gestos em todas as palavras que ela demorou quase dez minutos para proferir, até no vento que muda a rota das moscas que a orbitavam, encontrando comida nas dobras mais insólitas das roupas superpostas. A mulher era um espan-talho, um pombal em miniatura e um relâmpago. A primeira impressão foi a última de fato, a não ser que contemos, é claro, a última última

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após os primeiros momentos, após executar a cena planejada para infundir terror e me incriminar nos mais ínfimos detalhes. Nossos corpos se desencontraram a partir dali por mais que eu quisesse que não, ela quis que sim que se desencontrassem

mesmo, mas essa ela não pôde muito Controlar

o sorriso de Canto de

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porque todo contato já teria sido feito durante aquele encontro e nos encontros posteriores com quem ela decidisse. Ou seja, depois dali, justo quando mais supliquei pra isso acontecer, eu não a veria de novo.

O momento em si decepcionaria, se você pensar nele hoje em dia. Em comparação ao que eu quis que representasse encontrá-la depois dali. Sorriu um sorriso que ironizava a frase do menininho espavorido,

- O que será que ele quis dizer com você é ele? Depois eu confirmei a suspeita daquele instante, ela tinha a minha

idade, mas disfarçava com as roupas e a sujeira. O braço faltando mesmo. Só agradeceu meio displicente a ajuda, temendo ver de relance alguém que juntasse autora e obra. E me ofereceu o livro. Não sei o que você vai anotar aí, mas tem que concordar que é esquisito receber um livro como recompensa de qualquer coisa, talvez menos esquisito se for pra recompensar a ajuda em levantar e encher de volta um carrinho de compras que estava cheio de livros até agora há pouco esparramados por uma avenida. Ainda menos esquisito se não for justo um livro fino, verde, título em letras brancas garrafais na capa. É pouco, perceba que eu não vou andar por aí aumentando a história porque ela do tamanho que é já comporta todo tipo de absurdos, sendo que o maior deles é a lembrança mais corroída, esse que eu acabo de contar: Berenice, nome alheio a mim até ali, me entregar o livro com algumas folhas outonais que pessoas pisavam, amareladas e caindo no meio da rua.

- Toma um pra você, acho que desse você vai gostar, fui eu que escrevi. Gestos do sarcasmo contido mais imperceptível, que a esta altura não

garanto que inventei ou que existiu mesmo. Recolhi o livro e senti que a mão dela tremia um pouquinho, esperava algo de mim. Talvez que-rendo contar algo ali logo, talvez querendo esconder que quisesse contar algo, talvez tremesse de frio ou de fome, talvez só não me quisesse ali e quisesse o livro livre de mim, qual um quadro que reijetasse a moldura, talvez. Ou não esperava nada, confesso mesmo que essa é a parte da história mais importante e a que eu recordo pior, a parte da história em que eu mais tenho a sensação de ter inventado algo, não com base no que aconteceu, mas com base na comodidade e na coerência em relação

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ao que vem depois. Então, não estranha se eu parar, olhar pros lados, respirar fundo e ficar alheio da conversa por três segundos pra pensar ou rememorar o que fizemos de fato naquele dia. Há sempre nuances de que um ou outro discordaria e mesmo assim, não importa o consenso, porque se eu já estou aqui é porque já houve pouquíssimas saídas pra mim. Sou o maior mentiroso do mundo, li nenhum livro antes de entrar aqui à exceção do único que justamente não precisei ler pra saber o final. É mais ou menos isso, mais ou menos por isso que você tem que vir aqui me entrevistar. Porque ela hesitou também, mesmo depois de fazer o que ela fez. E o que ela fez? A resposta é simples e vem com o prosseguimento da história, seja em qual versão ele vier. A resposta é simples se você considerar que logo eu que lia nada, menos ainda poesia, ganhei um livro e logo esse livro me fez ter que saber mais coisas sobre livros e escrever. Nem sei o que passou pela cabeça dela ao me entregar, escrever tudo bem, sempre houve a chance de nunca ter chegado a mim. Mas quando eu não dei importância à trombada do garoto com o carrinho de compras que ela usava pra disseminar a dúvida na cidade eu assinei um atestado de querer ignorar isso. Atestado que atropelou sem me dar ouvidos. Porque ela nunca ouviria outras palavras de mim que não fossem um de nada meio constrangido, meio apressado ao seu

- Toma um pra você – a aspereza dos dedos encostarem -, acho que desse você vai gostar, fui eu mesma que escrevi, lê e depois me devolve, não é difícil me achar, me reconhecer, eu estou sempre por aqui com estas mesmas roupas e o carinho de compras amassado por encontros súbitos como este que você acabou de presenciar, se não quiser me devolver, se quiser ficar com o livro, tudo bem, só pediria que você me entregasse algum outro, um de que não goste muito, só pro carrinho não ir esva-ziando, o livro de que você não gosta pode agradar alguém.

Se intrometeu em uma ordem tocando com a ponta dos dedos um nervo sensível, meu apreço pelo silêncio e desprezo por livros, sorri pra poder ir logo embora sem precisar explicar nada disso. Por isso o momento breve, por isso me arrependo agora de esquecer de fazer ela sentar em um banco e conversar comigo. Por isso o passo apressado sob o sorriso

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complacente dela insinuando pra tomar cuidado com leituras de livros de tiragem esgotada há quinze anos com prefácios maledicentes. O que eu posso afirmar é que o livro ficou jogado a um canto indefinido do apartamento por mais ou menos três meses porque eu tinha muito o que fazer e faltava tempo pra ler uma poesia que eu achei estranha quando folheei o livro e não vi a foto dedicada. Letras como goteiras em pingos pela página. Gotas que me continham, que podiam conter qualquer outro se tudo fosse diferente, mas que iam à frente sempre e a que não dei a atenção devida quando era devido dar atenção. Ficou lá, jazeu lá, entulhado, soterrado entre uns discos e umas roupas em que eu desisiti de mexer. À deriva, e quem sabe essa deriva não era a minha também, deixo claro que não vejo o livro como um boneco meu, o que me acontece pode não estar ali, eu não sofro o que acontece ao livro. Além de tudo, só descobri que as letras pendurados no papel amarelo falavam de mim quando ter que sair daquele apartamento e mudar pra um igualzinho me fez desenterrar essas coisas. Não só o livro, mas principalmente ele. A capa verde, ter esquecido de onde ele vinha, a dedicatória na página inicial amarela, a dedicatória na foto que eu descobri só muito tempo depois. Na verdade, não foi na hora de pôr em duas ou três caixas o que eu queria levar pro outro apartamento que eu descobri o que havia pra descobrir daquele livro. Uma parede, um muro pelo qual eu não tinha como não passar de raspão a caminho do trabalho, em que gravaram TODA AUTOBIO-GRAFIA É MITOBIOGRAFIA, SUA VIDA DE MERDA ESCREVERAM EM TODOS OS LIVROS E EM NENHUM, me fez vontade do livro que eu tinha a mão pra confirmar. Sempre passei naquele muro, mas só nessa vez específica parei pra lê-lo e topar com a verdade de que possivelmente um manual de carro, um livro de receitas pudesse ter passagens da minha vida. E o livro da Berenice confirmou isso de forma literal e visceral. Uma pena passar por ali de carro dois dias antes de vir pra cá e notar que apagaram essas palavras do muro, agora com cara de folha em branco. Minha boca seca articulou os primeiros versos, atônita de vontade e confirmação. Mais que meu, revirar as caixas atrás de um monte de papel grampeado, convulsivamente buscar, me avisou, mais que meu, aquele livro sou eu.

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Nos detalhes ínfimos. Eu estava escutando o Vaia de Bêbado não Vale do Tom Zé vir de algum carrinho de vender alguma coisa, que estava na rua, quando eviscerei o livro já querendo que falasse de mim e li pela primeira vez. Previ: os primeiros versos que vi de relance na primeira folheada não tinham meu nome, mas citavam e citava o nome do médico que fez o meu parto, nosso endereço na época e o gato da família que morreu envenenado por uma visita. Por que, e essa é a única pergunta que eu te faço nisso tudo, a minha vida por meio de detalhes tão insignificantes que só eu reconheço interessaria? Por quê e de que maneira é sequer possível que ela vasculhe?

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Aquela rua me era familiar, já tinha deco-radas as feições dos edifícios decifrando em braille as rugas de um bairro que eu não conhecia assim tão de memória. Só falhava a memória em relação ao portão-zinho enferrujado que trancava o beco. Mas bem ou mal conhecia. Um mesmo rapaz esfarrapado vinha sempre na direção contrária à minha me abordava sempre que eu passava por ele, - Tem isqueiro 2

5/0

5

mais umas cinco horas ainda. Eu fumava, apoiado numa pilastra de concreto ouvindo um saxofone que não enxergava. Casal descendo a rua rindo, bem arrumados (tênis limpos, uniformes de colégio). O garoto atirou uma moeda aos meus pés, nem o olhar apaixonado da garota com que ia abraçado sufocou um risinho que até eu ouvi. Duas mulheres um pouco menos esfarrapadas que o meu colega Tem isqueiro aí, chefe? atravessando a rua sob um guarda-chuva compartilhado

que eu não quis, mas ouvi assim mesmo, falavam sobre a filha de alguma das duas que, grávida do namorado, estava voltando da faculdade, tarde da noite, e, tendo que passar por uma rua de terra pra chegar em casa, tro-peçou em algo e caiu dentro de umas únicas cisternas da comu-

aí, Chefe? - esperei o travesti sair por

debaixo de um sol a pino Contavam uma história

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nidade; sobreviveu comendo sapos, que matava segurando pela perna e arremessando contra a parede, enquanto interrompia o abastecimento de dos barracos. Deram pela falta da garota, filho ainda vivo, quando foram checar o porquê de faltar água. Os reservatórios das casas esvazia-rem lentamente só fizeram demorar mais a encontrar um corpo, embora inconsciente, enrugado e tremendo, respirando. E se afastavam rindo, criticando com risadinhas condescendentes o descuido de engravidar e com alaridos de pássaro velho deixando a rua inteira, que já não era lá tão larga, descobrir a burrice da menina em não gritar pedindo socorro. Uma das duas, um segundo antes de atravessar uma outra rua pisou em falso no meio-fio, caiu e se deparou com a iminência de ser acertada por um carro qualquer desavisado: gritou para ninguém porque o riso da outra abafava os pedidos de socorro. Acendi mais um cigarro porque pressenti a espera longa e agoniada, se eu saísse ele podia aparecer e ir embora despercebido. Me pediram dinheiro pra comprar passagem de volta pra casa, pra comprar comida pros filhos. Justo esses outros que tinham me confundido com alguém precisando de passagem ou comida, sendo que só o que eu precisava era que aquele travesti falasse comigo e me desse um endereço, um nome, uma feição. Sim, um nome e uma feição porque eu já inventara outra Berenice a esta altura, uma estátua de Berenice que, por sorte, coincidiu, fisicamente no mínimo, com o corpo que eu encontrei. Espirrei uma gripe antiga, sem muito o que fazer. Três velhinhos se aproximaram com o assunto de estar faltando alguém pro dominó. Sentados em caixotes queriam o mínimo de jogadores. Só faltava eu, e minha paciência de jogar; teria que abandonar tudo sem concluir se o travesti resolvesse voltar pra almoçar em casa. Ou buscar algo pra Berenice comer.

- Tem isqueiro aí, chefe? Tudo se repetir me fez pensar que o mundo era espelho da minha

espera. Preferiram começar uma partida truncada, só com três parti-cipantes a chamar o meu colega recorrente, que subia e descia a rua, atrás de isqueiro e de puxar assunto por meio do tabagismo. Por que eu negava o isqueiro a ele?

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A rua muito quente, daquele beco escuro vinha um vento frio sei lá por que motivo. Estava à sombra das plantas e de telhas precariamente distribuídas, é certo, mas sei lá, intrigava ainda assim. Até que enfim. Ou não me reconheceu ou fingiu. Era ele o da foto, eu tinha essa certeza como a daquelas coisas, como formas de rostos numa montanha ou uma frase numa música que depois de vistas não podem deixar de ser.

Era realmente complicado convencê-lo a conversar comigo enquanto andava rápido, desviando das pessoas em volta e de mim provavelmente por chamá-lo.

- Iliá!? É você? Seu desagrado de canto de olho passa reto pela minha voz. Só se vira

pra me olhar quando bato nas costas repetindo o nome.- Não sei quem é Iliá. A rispidez.Ir seguindo em silêncio é sua resposta ao meu - E qual o seu nome, então se não é esse?- ...- Lembra que você me pediu o isqueiro hoje mais cedo na praça? Pois

é, eu queria ter te perguntado algumas coisas, nem sei porque preferi ficar em silêncio. A gente tem assunto demais acumulado e eu pretendo mesmo resolver essas questões, se você concordar. Se você soubesse que minha inquietude está em suas mãos e que sua disponibilidade é impor-tante pra mim, a gente podia sentar em algum lugar e você me explicar tudinho. Sobre a Berenice, o livro, a foto, os garranchos.

- O senhor vai me desculpar, nunca pedi isqueiro, não sei do que está falando, até porque nem fumar fumo; está me atrasando, meu filho espera em casa para almoçar.

- Só um minuto, é você nessa foto, não é? Sei da sua profissão, não adianta querer esconder. Sei em que circunstâncias trabalha. E duvido mesmo de que não tenha lembrado de mim, conversamos hoje de manhã-zinha, a praça vazia ecoou nossas palavras de início e eu resolvi te seguir porque sei que você é o da foto. A maquiagem borrada e tudo.

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- Tá bom, me deixa em paz de uma vez, até sei quem é o senhor, mas por que eu lhe deveria satisfações?

- Porque eu acho que você sabe onde ela mora e por que ela fez isso e é muito amigo dela e se entender o meu lado é a pessoa pra me ajudar a contactá-la. Confesso que inclusive acho que é da casa dela que você acabou de sair, cumprindo sua visita dominical de costume. Pode confir-mar que eu acertei, a gente se falou.

- Já lembrei de você, mas qual é a nossa familiaridade pra você achar que pode me seguir e me exigir explicações de qualquer coisa? Mesmo que eu contasse o que você quer ouvir, qual seria a vantagem pra qualquer um de nós? Percebe que não faz sentido ceder à sua chantagem e que eu tenho a menor intenção de te deixar a par de qualquer notícia sobre qualquer coisa, isso tudo levantando a hipótese, falsa, de que sou eu na porra da foto. Não sou, garanto.

O Tem um isqueiro aí, chefe? quase foi derrubado pela nossa pressa, ao trombarmos os dois ao mesmo tempo com ele; absortos em evitar um ao outro a cidade nos atingia com força

- Claro que é. Não é certo eu desperdiçar uma semana da minha vida pra ouvir de você isso.

- Agora estou mesmo sem tempo, entenda.- Só admite que é o da foto que eu vou embora e no próximo domingo

a gente conversa.- O senhor está enganado, não sou eu na foto. E não tenho por que

compactuar com seus delírios. Tenho mais o que fazer, meu filho está esperando, estou ocupado, se o senhor não está, saia do meu caminho.

Passos de pessoa recém apressada reverberaram por entre os grunhidos de metal retorcido, o meu Garanto que é você cambaleou zanzando e foi engolido pelos pedestres que agora nos separariam.

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o dono do apartamento me despejou sem motivo aparente, tive que me mudar pra algo mais ou menos perto de onde morava pra poder continuar indo andando pros lugares a que já me acostumara. Mencionando mais de uma reclamação expressa. O que incomodava não era nem ter que mudar em si, mas ficar longe da praça e das ruas que, já

26/05 empoçado fazia o asfalto bipolar

transpirar a poesia que eu lia. Fez isso e me deu três dias pra empacotar tudo e achar um lugar novo. Nunca me comunicou nada pessoalmente, na verdade só o vi uma vez na vida, a carta deixada sob minha porta que sucintamente explicava tudo. Justo a carta que demorei três dias pra ler. Por lembrar de vê-la sendo entregue e esquecer de abrí-la quando devi, saí à rua como quem não quer nada e arranjei um emprego e programei minha vida toda para os dias seguintes, mas sem esse detalhe da mudança. Insinuava motivos de barulhos altos noite afora. Até parece que houve grandes objetos a ser transportados, talvez eu levasse o livro, talvez eu ainda não tivesse descoberto pra que ele servia. Esse último apaga e anota de novo, eu já tinha descoberto sim

neste ponto, reCendiam a bereniCe, até o Calor

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pra que o livro servia. Senti sua falta semana passada, por que você não pôde vir mesmo? Não que você tenha me ajudado, que fique claro, mas pra que pelo menos um registro a gente tenha, minha biografia nem é lá tão desprezível e aqui não tem ninguém interessado em ouvi-la, até porque a biografia de ninguém aqui é desprezível, por isso estão aqui. O que eu não acabo de entender é por que você está aqui. A minha história é meio incrível até, eu sou um injustiçado e tudo mais, mas o que você teria a ganhar vindo aqui com essa frequência? Ainda mais conhecendo a história toda e sabendo que ela invariavelmente vai acabar. Não é porque eu sou simpático, admita. Só queria sua sinceridade em relação a isso. Se é a vontade do chão, de me fazer folhetim ou mesmo poesia já aviso, é impossível porque eu emudeci e minha língua não forma senão arbitra-riedades impublicáveis, sob pena de não vender se acabarem publicadas.

Ontem tive um sonho muito estranho, por entre os vales dos roncos erráticos do meu companheiro de cela. Pra você ver como essa questão de você vir falar comigo, querer me saber me preocupa. O conteúdo do sonho eu não peguei direito, sei que foi estranho porque eu acordei com o lençol nos pés e isso nunca acontece. Você aparecia em algum momento e eu estava solto, com o pressentimento de que haviam esquecido algo dentro de mim durante alguma cirurgia, algo que balançava e chocava com os meus ossos fazendo um ruído metálico. O que chamava mais a atenção era que tentávamos nos cumprimentar e não conseguíamos, você também perdera um braço direito e eu supus que foi na mesma cirurgia em que deixaram algo tilintar ecoando na minha caixa torácica. Enquanto isso em algum lugar não muito longe do nosso encontro, um lugar coberto com iluminação muito branca, um outro você, ou alguém com seus olhos e seus dedos rápidos discursava sobre um púlpito, pra ninguém. E por ninguém te ouvir naquele dia, você se veria impedido de vir me entrevistar no dia seguinte porque era obrigado a falar até que alguém te ouvisse, não podia sair dali sem que alguém te escutasse e por isso faltou comigo. Por isso ou porque tivesse sido você que esqueceu algum instrumento cirúrgico dentro de mim.

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O sol rasgar o horizonte com gilete na manhã fria arrepiou minha pele quando eu acordei e olhei pela janela. O vento na noite recém acabada e talvez me arrumar pra ir trabalhar, poucos motivos pra levantar da cama desencavar uma camisa limpa e rastejar por entre caixas até ouvir da porta

- Bom dia de trabalho. Uma rotina se você quer saber, e uma que eu não gostava muito, essa

dos dias que antecederam o que aconteceu. Nada disso eu faço mais, são só reflexos que eu conservei da época em que estava solto. A rotina daqui eu não detesto, mas ainda é a imperfeita porque não dá pra pintar se eles não concluírem que eu sou louco. Por isso só leio mesmo, os dias são tranquilos, no geral entediantes. Acordar, tomar o banho do dia, comer, ler, comer, trabalhar, ler, comer, dormir, acordar. Evitar certas brigas e pessoas também é cotidiano. Tentei ensinar o cara da minha cela a jogar xadrez, ele não decorou o movimento das peças, então voltei a ler. Nunca li tanto como agora, esse é um lado que eu não sei se é tão bom; se pre-firo hoje aos tempos em que na minha casa só tinha o livro que decorei pra depois perder. Com certeza é melhor ler que malhar, melhor que ler seria poder pintar, ou algo assim, o que eu só vou conseguir daqui a uns seis anos, caso dê tudo certo com a progressão de pena.

E resta ainda o ponto de decifrar as razões de ter vindo parar aqui, pelas palavras desconexas de um juiz, eu devo ter feito algo grave. Trinta anos por ficar calado durante um julgamento é muita coisa. Devem ter guardado raiva de mim, ou raiva de alguém e resolvido descontar em mim. Rememoro direitinho ainda como se estivesse tatuado na pele que sobrou.

- O réu fica apenado em dezessete anos e oito meses de reclusão em regime fechado com direito a progressão parcial da pena, por ter o merítissimo juiz Ramiro C. L. da quinta vara penal julgado procedentes as acusações da promotoria pública de lesão corporal grave seguida de morte - com o agravante de requintes de crueldade - omissão de socorro, homicídio doloso e invasão de domicílio contra as vítimas.

Sufocar num degredo de paredes forçadamente brancas nas quais transcrevo de memória os versos da biografia que ela me impôs é pior do que ter aquele espinho na consciência de não ter agido antes em relação

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a minha vida estar esboçada de antemão num manual que cumpri sem conhecer. Já te disse a teoria vigente? As palavras do livro necessaria-mente ou são pesquisa dela ou minha? Mesmo sendo escrito uns trinta anos depois de eu nascer, impressiona o livro ir lá contando tudo por meio de uns detalhes de que nem eu lembrava até ler. O nome de gente com quem briguei no colégio, o nome da mãe de uma vizinha que cuidou do reumatismo e da esclerose da minha vó, sendo simultaneamente amante do meu avô, o barulho que o porquinho das índias da minha irmã fazia ao comer. No fim das contas só achei lá no meio uma história história mesmo. Uma que eu contaria se perguntassem algo de mim.

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oi, tudo bem? via a Cidade através da maquiagem carregada que gotas de suor escorrendo faziam se acumular sob o queixo em grumos brancos, de cima de um monociclo e me perguntava como eu estava, eu morrendo de sono, resistindo a não voltar a fumar, era de manhã e ter de ir trabalhar não dava espaço para responder a perguntas cretinamente colocadas, que se posicionassem no meio do cami-nho entre eu e aquele engraçadinho, continuei. Meu nome verdadeiro é Romero. Sem a menor paciência, não parei pra refletir como Romero é um nome de

Achou que a boca vermelha borrada, a peruca fora do lugar davam direito a agir de qualquer jeito em relação a qualquer um. Quer ver eu adivinhar uma coisa de você que ninguém sabe? Dos milhões de seres humanos que habitam esse lugar por que será que escolheu justo a mim que sei tão pouco de tantas coisas, e já escondi

dizer não mentiras, mas de dizer o que não importa, uma autobiografia do que ninguém escolheria, essa é a culpa da Berenice. Vamos lá, por que está tão caladinho hoje, logo você que é mestre em falar o desnecessário, não quer que eu revele o seu verdadeiro nome? Não adianta, murmurei para os meus ouvidos apenas, querer saber, eu não sei o meu direito, de tantas vezes que

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muitas delas de muitas pessoas no silênCio de

batismo ruim pra um palhaço. desvinCulado.

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já trocaram por outro ou omitiram em prol de uma outra verdade: nome é sempre uma porta inútil pras entranhas do que queremos destruir, uma porta falsa que entrega nada, as palavras em geral são essa porta falsa, uma rua sem saída entre brumas prenhes de volumes sólidos em cujos contornos, sendo eles tudo o que podemos ver, adivinhamos algo que desejamos que sejam verdades. Mas não são. Vem comigo, falta o trabalho hoje que eu tenho coisas pra te contar, sobre a Berenice inclusive. Meus olhos arregalados descobrirem finalmente por que aquele palhaço estava ali, revê-lo depois da foto esquecida e que agora me dizia tanto, àquela hora da manhã recém-ex-madrugada, o afugentaram, saiu rápido de mim, o monociclo, que eu recolhi e voltei pra casa pra guardar, desenterrando mais um canto pra empilhar objetos que antes não existia, não dobrou a esquina. Segui o caminho porque não queria me atrasar. Não sei se você já se agoniou com essa sensação de que o tempo não passar vai fazer você atingir nunca o ponto final; como se pairasse no ar a notícia do seu atraso, pra todo mundo saber. Combinamos, só podia ser: descendo a escada - vi através do vidro da porta que dá pra rua em frente ao prédio - na maquiagem, de novo um muxoxo. Tem como devolver meu monociclo? Ir embora daquele jeito foi só pra te impressionar, cara, ver se você me chamava de volta. Ao que continuei andando, segurando a vontade de sair correndo; enquanto mantinha o passo intacto, ele me seguia com voz quase suplicante. Simpatizei com você, será que você não podia só responder uma ou duas perguntinhas de nada que ela me encarregou de te fazer? Incrédulo parei; tendo finalmente associado o rosto à história toda, implodiu meu peito o que eu tinha deixado de dizer até ali:

- Mas ela já sabe tudo que há pra saber sobre mim, não? Cacete. Senão qual seria o sentido daquela merda de livro? Ela tem que ter pesquisado minha vida de alguma maneira, médium é que ela não é, porra.

Assustado como se perseguido, mais uma outra vez o palhaço saiu correndo, a cabeça adiante para não me avistar, correndo desta vez pra se manter à margem desta história. Menos mal, a Berenice já tinha enfiado personagens demais estreantes, a trama estava abarrotada. O alfinete

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vermelho vivo da dor de cabeça crescer só me obrigou a precisar ainda mais de um café: entrei no bar que ficava entre o apartamento e o tra-balho, sentei num banco daqueles altos e redondos.

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em pé por mais uns quinze, vinte minutos sem decidir sobre falar com ela ou não. A essa altura as vinte ou trinta pessoas ali que não tivessem se planejado, invariavelmente se atrasariam pra qualquer coisa, presos a um engarrafamento desses comuns agravados por pontos em que o asfalto alagou. Quando resolvi ficar e querer saber já havia ninguém de novo nos bancos, só um cara meio bêbado esperava o ponto final da linha. Chegamos, no que ela foi descer do ônibus, pela porta da frente, corri e

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a dedicatória do livro. Acelerou o passo, pulou os dois degraus de ferro e na rua a interceptei. Com palavras calmas pedi pra ela conversar comigo e tudo, que eu vinha em paz, não queria machucá-la. Eu tinha certeza que aquele exemplar era o meu, os gestos hesitan-tes dela, com olhos querendo correr de mim entregaram tudo e nem a resposta pronta

murmurei enCarando seu rosto CétiCo

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dela - Tem meu nome nessa dedicatória, apagaram a impressão de ter perdido o livro e de ele estar com esses dedos cujas pontas gorduchas agora estavam roxas de frio. Forçaria a mim mesmo lembrar de procurar quando chegasse em casa, agora o importante seria interrogá-la. Por que será que todo mundo que tá errado tem que vir ou com palavras prontas há séculos ou com reticências? Com ela, a mesma coisa. Tive que segurar firme pro braço dela não se desvencilhar; aproveitei que o motorista saía agora do ônibus, toalha no ombro, talvez tomasse banho no terminal mesmo, não estava muito longe, ainda conseguiu me escutar: ecoei mais alto que os grilos no pátio cheio de veículos e mais alto que os motores e mais alto que os passos dele se apressando pra me desviar.

- O nome dela é Iliá? Desconcertado consulta a cobradora com um olhar, ela rápida levantar

e baixar os ombros resignada só o torna resignado.- É sim, por que você quer saber? Mas entrou no prédio da sede dessa empresa sem esperar eu responder. Alcancei.- Será que a gente pode conversar um minuto, Iliá?- Sobre o quê?- Não se faça de desentendida, colega.Algumas pessoas nos barracos de madeira que davam pra rua acende-

ram a luz pra me assistir arrastar ela pelo braço por uns trezentos metros sob uma lua precária e uns postes que só serviam pra ter periquitos empoleirados. Mães aflitas puxavam crianças de fraldas fuçando o nariz com o dedo afoitas pra dentro de casa. Aquilo já não eram horas. Apesar da hora da noite, eles ainda faziam um barulho infernal. Ela aceitou conversar e fechou a cara. Sentamos nas cadeiras de lata do lado de fora de um bar ao lado do terminal. Não vi nenhuma pessoa de uniforme, mas supus que fosse um bar que os motoristas e os cobradores daquela empresa frequentem.

Solene, usando ter decorado a dedicatória que eu decorei justo pen-sando em uma ocasião dessas.

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- Pra todo aquele que trabalha porque terá sua recompensa, não se esqueça de que vale a pena, Iliá.

Segurava firme o livro pra me impedir de verificar a folha de rosto do livro.

- O que é isso que você tá falando, idiota?Cheio e ainda assim sem muito do barulho que o cercava, só uma ou

outra tacada mais forte, arroto engolido. Bar abafado como se de algum jeito o separassem do resto da rua. O silêncio cheio de perguntas, algu-mas com barba, outras que até penteavam o cabelo, convictas de que poderiam comer alguém naquela noite se fizessem isso. Mas tudo bem, era um bar legal porque era menos barulhento que a rua, inclusive. Quase tão silencioso quanto a mulher em frente a mim, separada por uma mesa e eu esboçava todas as perguntas sem chegar a articulá-las, ela olhava a jukebox, mexia dentro da bolsa, os olhos fora da minha órbita, disfarçados sob uma contrariedade de boca e mãos. Os braços cruzados desviando o livro de mim aceitam a cerveja que ofereci. Fui buscar no balcão e o dono desse bar começou a contar uma história interminável sobre os poemas de amor carnal, como ele definia, que escrevia reaproveitando os espaços em branco dos folhetos com os cânticos dos cultos da igreja perto da casa dele, sempre os mesmos dois ou três versos grosseiros

- será que dá pra chamar de eróticos? Só trocava a ordem o nome da crente pretendida. Seguia comendo

eventualmente uma ou outra guria dessas, até o pai de uma delas achar um desses folhetos e expulsá-lo do vilarejo, o que o obrigou a vagar por algumas cidades até virar garçom daquele bar e muitos anos depois dono. Esse é o tipo de força que quando vai embora, vai embora sem olhar pra trás, imagina se ele fosse escoraçado da cidadezinha de merda lá aos quarenta anos de idade se ia ter condições de se manter vivo, pior ainda e se tivesse sessenta e cinco? Catando as palavras que serviriam pra minha amiga não me fugir na noite fria, fui ao banheiro, fiz uma coisa que até hoje eu adoro, mijar fumando em mictórios, peguei a cerveja e dois copos. Atravessei a fumaça que pairava lá dentro, contornei umas outras mesas, não muitas e não muito cheias, quis chegar à nossa e Iliá

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tinha sumido. Me mostrou acenando que só tinha mudado de mesa. Sentei e pus cerveja nos copos sem acabar de decidir o que eu queria com essa mulher que eu tinha certeza que tinha roubado meu livro. E nunca a palavra meu teve um peso maior do que nessa hora. O lugar não só era silencioso, da varandinha em que a gente estava sentado dava pra ver que era meio deserto também. Uns barracos com antenas, uns buracos por onde saíam luzes, cachorros esfregando as costelas ao passar por quem estava sentado às mesas. Uivo de coruja, olhos de gato, realmente não me interessou descobrir como ela fazia pra voltar pra casa nos dias comuns em que faltasse alguém pra levá-la pra casa porque não conseguiu falar tudo que quis ali na frente de todo mundo. Nem queria saber de falar esse tudo, que ainda assim me travava só por isso, por não conseguir falar.

Um cachorro furioso invadiu o bar, a boca espumando, e só ouvimos os gritos, as pessoas se acumularem em torno dos rosnados e barulhos de coisas sendo atiradas tampava a visão do que pudesse estar acontecendo lá dentro. Imaginamos, acho que cada um uma cena que não compartilhou e que depois ficou demonstrada pela perna que o cachorro sangrento levava e a pessoa que carregavam em uma toalha de mesa em direção ao chevette mais próximo.

Esvaziamos a garrafa, e por mais demorados que fomos ainda nenhum dos dois se animou a dizer qualquer coisa. Apesar disso as moscas falavam por nós, à nossa volta, dentro de nós. Ao pousar a segunda garrafa na mesa já tinha engatilhado na cabeça.

- Por que te deram esse nome de homem?- O meu pai sempre gostou de um pintor russo que tinha esse nome.

Um pintor muito famoso durante o Império Russo.- Por que te deram esse nome de homem?- Deixa eu continuar, e queria pôr o nome do filho igual ao nome do

pintor. Aí eu nasci e ele fez isso. Nasci garota e mesmo assim ele insistiu na idéia. Mas foda-se porque ninguém conhece esse pintor, eu mesma não conheço, e todo mundo pensa que Iliá é nome de porra nenhuma, então nem fez tanta diferença essa idéia estúpida.

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E ela sorria pra mim, os palavrões saiam da boca facilmente, o que não quer dizer que ela estava irritada. Também nunca ouvi falar desse cara na vida.

- Entendi e você conhece alguma poeta chamada Berenice?- Uma vez ele disse que o meu nome vinha de uma expressão em francês

que eu não lembro o que quer dizer. E de qualquer jeito, eu não lembro nem dele falando francês nem apreciando pintores russos e sei lá o quê.

- Tá bom, mas qual é a desse livro?- Eu ganhei na rua. Eu adoro o Elvis, sabia? Tenho um pôster dele que

pendurei atrás da porta.Minha incredulidade bufa de cansaço ao encher o copo dela mais uma

vez.- Como foi isso de ganhar o livro?Goles curtos como se ela me preparasse para uma história inutilmente

longa. - Esqueci como foi, desculpa, porra, para de falar disso. Uma vez eu

fui comprar absorvente e teve um assalto, acredita que eles não levaram nada?, só bateram numa mulher mal-vestida que tinha – os goles ace-lerando - largado um carrinho de compras cheio de livros na entrada da farmácia. Defendi ela e ela me deu o livro. Me bateram também. Talvez tenha – os goles acelerando - sido até você que assaltou, não pára de falar nessa merda. – até que de repente o copo esvazia como num fôlego antes do mergulho na mentira decisiva - Não quer ir lá pegar alguma coisa pra gente comer não? tô até com certa fome.

Comecei a pensar em desistir de procurar. Era bem pouco importante mesmo achar a tal Berenice além de que dava muito trabalho, sem garantias. Afastei a cadeira e fui atrás de comida, será que ela suben-tendeu que era eu que devia pagar por tudo? Tanto faz, eu já tava num fim-de-mundo pouco usualmente silencioso com ventiladores tão baixos que prestes a decapitar um bêbado mais alto. Eu também gosto bastante do Elvis, ponderei se devia continuar com o assunto do livro ou levá-la logo pra casa. Se ainda deveria querer saber por que ela ficou tão tímida quando pronunciei seu nome. O dono do bar avançava com as histórias

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noite adentro, pelo menos agora a vítima era um grupo de bonés, uns vermelhos outros pretos, baixinhos e magrelos, não deviam ter mais de dezessete anos e só queriam cerveja barata e sinuca barata. Pedi batata frita pro cara que estava atendendo no balcão e alguém tinha apagado alguma luz ou quebrado alguma lâmpada, tudo meio escuro, se eu mal via o braço do cozinheiro lá atrás numa janelinha era graças a ilumina-ção que vinha dos postes da frente do bar. Os postes em torno dos quais gente se apoiava em reunião. Continuaria perguntando, enquanto levava pra casa, era um direito meu querer ouvir algo que eu sei que ela diria.

Mijei, confundi um cara numa mesa com um conhecido, ela pediu um cigarro que eu não tinha, o dono continuando a saga da sua trajetória de vida pra mim e pra quem fosse ao balcão buscar bebida. Fui trazendo algumas, conforme ela pedia. Mais fácil pra interrogar, pra conseguir coragem, sei lá o quê, dependendo do estado. Só então, quando sentei me dei conta do efeito de todas as cervejas.

Por algum motivo indecifrado, a Iliá sorria todas as vezes em que eu voltei do balcão com mais garrafas.

- Agora você vai me contar.A cabeça de um lado para o outro em recusa intrigante.As bocas eram um labirinto. Porque ela me beijou pra eu parar de

perguntar, Porque no recesso entre as línguas só caouberam palavras desgarradas. Esse contato nos arraigou por uns quarenta minutos, tempo em que flutuamos por sobre comentários de quem assisitia. Logo depois as vozes, me dei conta, mas ninguém se incomodar nos poupou de baixá-las. Gritávamos não um com o outro, mas contra os outros clientes, despercebidos. Ninguém avisou, só continuamos, trôpegos.

Olhos apertados, fixos na parede a frente, gestos desabridos acariciavam meu rosto e tentavam expressar algo mais ao mesmo tempo. Algo que a visão duplicada e a reincidente vontade de mijar e dormir em algum canto me proibiram de decifrar.

- Posso dormir na sua casa? Eu fui despejada hoje de manhã e não tenho aonde ir.

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- Acho que pode, sei lá. Da última vez que eu deixei essas coisas, um amiguinho seu levou meu livro embora.

Intercalava palavras e batatas fritas ávida. Atropelou minha resposta com outra.- Você parece doce, não desapontaria alguém.- Pode.Levantou rápido e a cabeça girou. Quase caindo foi amparada por mim.- Então vamos logo, só tem gente bisbilhotando nessa merda de lugar.Sigo, arriscando a meia-volta.

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aCho que eu não fui a primeira pessoa se virou preocupada ao ouvir uma buzina insistir, pro-curou o carro e não era com ela. É meio idiota pensar que alguém que tivesse algo pra nos dizer escolheria essa maneira de chamar a atenção. Mas três buzinadas quase ensur-decendo são três buzinadas quase

ainda, identifiquei nenhum braço chamando. Era um estacionamento, tive certeza que a buzina procurava alguém ao invés de chamar a atenção de outros motoristas quanto a freadas bruscas, conversões não sinalizadas. Abstraí: tinha tempo, depois de tudo.Tossi antes de dois policias me abordarem, adivinhando essa minha hora vaga. Andaram acompanhando a distância por um tempo, comigo sabendo, e resolveram. Quem chamou os dois pra separar

o dono do bar do Cliente deve ter me descrito, mencionado minha presença durante a formação da briga. Pararam pedindo documen-tos. Perguntavam como quem quer nada. Se eu estive no bar naquela manhã. Se eu freqüentava lá. Se eu tinha visto alguma briga. Se eu tinha idéia do porquê da briga. Se eu tentei apartá-los. Se briguei antes de sair também. Se eu não queria convidar dois policias simpáticos pra um café. Se alguém além de

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ensurdeCendo. me virei Caminhando

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mim fora testemunha. Se essa testemunha estava localizável e como se vestia. Ao que eu respondi só que com pressa, atrasado. Anotaram o número da minha identidade e meu endereço, demorou bem uns três dias pra me notificarem de que eles tinham me fichado e autuado por não colaborar propriamente com as autoridades.

Pondo o livro embaixo do braço, apertei a mão dos dois e premido pelo tempo escasso mesmo parti. Fui ganhar dinheiro pelo resto do dia sem me preocupar em me livrar de acusações que ainda nem sabia que existiam.

Trabalhei.O que é uma insistência em ser medíocre. Repeti o sonho do dia ante-

rior, momentos após jogar o livro em qualquer canto, segundos antes de tombar no colchão. Entre mobilizar as pálpebras e fechar os olhos vi uma estrela no céu preto apagada por nuvens. Do sonho só retive a sensação de repetido: de trocar membros de posição, braço por pernas, pernas por braço esquerdo; uma sucessão de imagens estáticas, uma cor laranja com riscos, uma garganta por dentro, um casaco que uma mulher esqueceu na minha casa ou que eu esqueci em algum lugar, um sussurro estridente refletido no espelho.

Acordei com gente grunhindo no corredor, batendo à porta; mas não atendi. Só acordei e virei o pescoço, o rádio-relógio me informou em vermelho, cinco e meia da manhã. Fiz um café pra nós dois deixando arestas por aparar: informações meio desejadas, meio descartadas de antemão porque inatingíveis.

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uma que eu Contaria se perguntassem algo de mim porque inverossímil de que conservo vivos a maioria dos detalhes. Contaria e contei porque ele seguiu eu levantar do banco. Assustou as pálpebras erguidas me per-guntar. - É verdade mesmo? E fiz menção de seguir caminho, ir trabalhar, mesmo sem esperanças de que me deixariam entrar àquela hora. E foi mais ou menos por perceber que

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fugir que eu falei praquele menino parar de me seguir, querendo ouvir o que queria comigo, o nome dele no mínimo. Nessa hora só o que eu quis foi que abaixassem o volume desafinado da rua porque ouvi tudo dele tão

porra nenhuma, e ainda por cima depois me deu a mão. Começou uma história esquisita que coincidia com uma minha. Uma sobre um carro e um cara e vender rosas. Pisquei os olhos: entre fechá-los e reabrir, estávamos na porta do meu prédio, o menino me puxando pra entrar. E logo arrumou

qualquer Caminho soa falso quando se quer

num murmúrio, num jato, que eu entendi

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seu canto sem ruído, e logo admiti que comer e falar pouco era uma das qualidades dele. Qual um vira-lata que se instalasse sem permitirem ou proibirem em um canto com que ninguém se importa.

Bom, no começo funcionou porque insistimos em ficar calados. Era mais fácil ir trabalhar, voltar, fazer compras, fingir que tinha vontade de pintar, acordar com vontade de fumar às três da manhã, não jantar, conviver com baratas e ratos que já tinha batizado, dormir no sofá antes do menino. Agora havia um canto pra ele e não deixar faltar comida era importante. Se bem que ele mais dormia que tudo, com horários mais trocados que os meus até, de vez em quando ele desatava a falar sobre crateras na Guatemala e montanhas de corpos de pássaros empilhados à beira da estrada. Nessa época boa eu nem televisão tinha, e os dias se resumiam a trabalhar e pintar e fumar. Ele gostava de contar coisas da Berenice, meio desencontradas entre si, concluí que ela quis semear informações conflitantes através dele. Fingindo que me informava e eu sem comentários. O livro, lá, escondia poucas coisas que não me inte-ressavam desbravar e por esses e outros motivos continuamos vivendo juntos por uns três meses até chamarem à minha porta de madrugada e eu não atender. Eram os dois policias e eu tinha sido denunciado por manter aquele menino em cativeiro. Obrigando o menino a trabalhar pra mim, prestar favores sexuais, e outras coisas. Mas nesse dia o menino já tinha ido embora. Nunca provaram algo que não fosse a intenção daqueles dois de fuder a minha vida.

Sem conseguir lembrar do nome, só desfiz o ninho de mantas que ele tinha acumulado numa esquina da sala, sacudi os panos e encontrei uma coleção de pedrinhas, uma outra de pernas de pombos - algumas sem uma unha, outras com um dedo a mais, conservadas - sem mencionar uma inverossímil pilha de conchas, que eu consegui nem cogitar onde ele pudesse ter catado. Na parede, bem perto do chão, no rodapé, havia uns desenhos que ele gravou com uma concha, fissurando a tinta. Último item do inventário: uma página arrancada do livro lá, uma das primeiras, sem texto ainda, só um quadrado preto com o nome da autora completo, a cidade em que imprimiram o livro e o nome da editora. Pode ser bom

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confessar uma história atroz se é pra pessoa sair correndo depois de ouvir? Por isso o silêncio é preferível, e a voz estritamente para uso dos pássaros. Mais do que ouvida, a palavra ao vivo devia ser vetada: assim ordenaram na Espanha do século dezesseis, proibíram a palavra conquista, mas falharam em disfarçar o lado imperialista de chegar às Américas. Porque sair correndo é o que eu acho que aconteceu, o menino partiu um dia depois, na calada da noite, de eu contar a história de perder o meu braço. Que é a história que a Berenice conta no livro, o resto são detalhes sórdidos.

Houve dias em que ele não dormiu em casa, sem eu ter dado a chave a ele. Ia e vinha como aprouvesse, meio que teletransporte. Convenci a tomar banho, comprei um tabuleiro e peças de damas pra gente jogar, acordava cedo e os dois caminhavam num cotidiano de quase gatos rotineiros desapegados. Íamos bem, imersos em muitas ignorâncias em que refugiávamos, eu a minha busca em silêncio, ele a busca por pala-vras. Conversas noite a dentro, foi estranho quando ele me entregou um dinheiro, sem nem ter bolsos, agradecendo por tê-lo livrado da remoção de pobres pra periferia que a prefeitura vinha realizando. Pensei precisar de jeitos imaginativos de perder o braço; flechas furtivas se esgueirando por entre os retalhos que retive da conversa sobre civilizações desapa-recidas, enquanto decidi divergir da versão da Berenice só pra ver se o menino percebia que se a minha é real, ela só pode estar mentido. E a minha versão é a real só por ser minha.

- Olha só, menino, eu te proponho uma troca, conto uma história minha e você responde a umas perguntas que eu vou te fazer sobre a Berenice, tá bom? Porque eu não sei se você já percebeu, mas a lua está nos observando hoje, isso quer dizer que a gente não vai conseguir dormir sem dizer a verdade.

Tomei a cabeça dele virada contemplando azuis bruxuleantes de televisões refletidos em outras janelas pela janela do meu apartamento como um sim.

- Foi bem assim, minha família nunca tinha muito dinheiro e a nossa mãe queria me fazer ajudar no sustento da casa, então conseguiu pra mim

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vários tipos de trabalho esdrúxulos que não vale a pena listar. O que vale a pena é falar que a Berenice tinha consciência desses trabalhos e atribuiu eu perder o braço a um deles, mas errou, não era esse que ela citou que tinha me feito perder o braço; eu tinha de fato perdido o braço lá pelos oito anos de idade num acidente, trabalhando, mas em outra coisa e pá.

Na verdade eu pude dizer qualquer coisa pra ele, se não tivesse con-tado que já não tinha o braço quando passei pela mesma situação com o cara na rua e os policiais e a porta de carro aberta decidindo por mim.

- Arrancaram meu braço numa briga em que não me envolvi. Meu colega arremessou um facão contra o capataz da fazenda por não suportar mais ele dar um jeito de comer o cu de cada novato: ao vê-lo desviar, eu também desviei mas a lâmina de raspão perfurou minha braquial e eu tive que amputar. Essa foi a que eu escolhi e que saiu até mais ou menos, sem precisar falar do meu irmão e das outras coisas.

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antes de roubarem o livro, logo depois que eu descobri que ele existia: li algumas vezes o poema, as suficientes pra me dar conta de que era de mim mesmo que a Berenice falava. Não devo ter lido mais por não querer aprofundar a desconfiança de que ela conhecia muito de mim que nem eu tinha reparado ainda. O que chamava atenção e que eu me obriguei a ler várias vezes foi o prefácio.

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pra variar o autor do prefáCio tenta Chamar mais atenção pra si mesmo do que pro autor, sendo que esse ia mais longe e sentava o pau na obra. Como será que permitem colocar antes de um texto um outro texto dizendo pra não lermos o texto a que ele se refere? Recito de memória quando quero incentivar o meu com-panheiro de cela a se interessar por leitura. E ele ironiza, já recita de memória também, ele e o faxineiro daqui. Tom o nome desse cara que vive prometendo uma música com esse prefácio. O Tom vive prometendo muitas coisas, pelo menos é simpático, a faísca de ausência de tédio na vida carcerária. Sempre traz revistas de mulher pelada, ou uma garrafa de conhaque rotineiro, ou cigarros, ou baralho

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– que eu não consigo jogar, percebe? – e quando varre o corredor justo em frente à nossa cela sempre gritava imponente um trechinho do prefácio: EU SOU O TOM: PROFERIR A PALAVRA SILÊNCIO É PRODUZIR UM RUÍDO A MAIS NO MUNDO; e ria alto de si mesmo, inclusive uma vez ao contorcer os braços numa risada quebrou uma lâmpada com o cabo da vassoura. Berrava outras frases em frente a outras celas, mas nenhuma tinha a ver com o tal prefácio, que vinha mais ou desse jeito:

Conquanto abundem motivos para deixá-la passar, a desinte-ressante face biográfico-ficcional da autora carece de motivos para ser levado a sério, caso o leitor não disponha de tempo e paciência para coisas infrutíferas. Abandonando seu fazer poético, antes con-sistentemente elaborado, Berenice abraça o que denomina fusão de ecletismos, mas falha. O despreparo da autora fere uma diretriz que infelizmente nem todo aspirante a literato respeita: pronunciar a palavra silêncio é apenas uma outra fonte de ruído externo. É essa a razão de o esforço de Berenice merecer tão pouca consideração, porque é ruído. Contribui em muito pouco, haja visto ser a proposta risivelmente rasa. Quem gasta atenção e tempo com esse lixo pode se preparar para sentir um vazio existencial quando acabar: o livro leva a lugar nenhum, tanto não se resolve, quanto não se começa, fica perdido no meio do caminho entre mentir, inventar e copiar. Sem precedentes aqui não é elogio, fica patente que a autora desconhece príncipios literários tão básicos quanto os procedimentos para um delineamento psicológico dos personagens coerente. Por favor lei-tores, só peço que a despeito do ínfimo sucesso que este livro vem tendo parem de elogiá-lo. Por estes e outros motivos, aconselho a todos que compraram isto aqui enganados pela moda a jogar no lixo o mais rápido possível, e a quem folheia agora pela primeira vez em alguma livraria que não o compre se não for para ajudar as livrarias a desencalhar algo tão abjeto para depois atirá-lo à fogueira mais próxima.

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Ela emendava ainda por umas três páginas que eu entendi menos ainda do que essas, sempre falando mal, isso até eu enxerguei, até o Tom enxergou. Pensei em pedir pra ele uma vez a chave da minha cela, ou alguma ajuda pra sair daqui, então eu tive uma revelação. Preso é o lugar perfeito pra mim porque há silêncio e comida, que são tudo que eu sempre desejei. Agora eu desejo livros, que também consigo, de alguma forma, seja na biblioteca daqui - que já não serve porque já li tudo -, seja pelas caixas com livros que me enviam. Eu quis mesmo acreditar que é a Berenice quem manda as caixas, mas, com ela morta, acho difícil. A Iliá também não. Quando fui preso eu falava com quase ninguém, às vezes via o menino na rua e sorria pra ele subitamente vazio de expressões. O travesti também é outro que meio que sumiu. O palhaço também. E no trabalho eu falei com tão pouca gente além do porteiro do prédio e do ascensorista, que realmente entendo nenhum ter perguntado por mim ou pelas minhas faltas. Ainda tem o meu irmão, o Acácio, mas desse, depois de vê-lo só por três dias pra nunca mais, recebi uma carta e uma ou duas ligações, ambos pedindo um dinheiro que eu não tinha pra comprar uma passagem e vir me visitar. Aposto como o dinheiro era pra comprar qualquer outra coisa menos essa passagem, eu queria realmente vê-lo, mas ignorei a carta e o telefonema, sem perguntar se já mandar a passagem adiantaria de algo pra ele. Não que eu tivesse como. Às vezes quis mesmo traçar minha vida com o meu irmão sendo eu. Fazer tudo de novo diferente porque teria um corpo completo, a cabeça mais centrada e um peito são, sem um livro pra atrapalhar tudo. Por que sempre ten-tei proteger os irmãos - mais o Acácio, minha irmã se virava bem sem as pessoas, se cada um acabaria na merda de um jeito diferente -, sem que os outros dois tomassem conhecimento? Uma merda bem movediça em que afundamos o pé, a perna inteira, atolados sem nos enxergarmos reciprocamente: não pude me salvar porque não tinha braço pra levantar pra me puxarem; com o braço que sobrou, eu agarro esse livro sobre meus detalhes, que incluem meus irmãos em certos pontos.

Interligações travadas, por que será que a porra da editora quis publicar um livro com aquele prefácio grudado? Será que gerou alguma controvérsia

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na época? Será que não queriam que o livro vendesse? Foda-se. Cheguei a procurar mais livros da Berenice em mais de uma livraria e só achei um, de receitas, o que contradizia o menino e o travesti. Em todo caso, eu tentei pelos dois lados, mergulhar no universo de poesia até chegar na Berenice, e partir do pouco que eu sabia da Berenice pra chegar no universo da poesia e daí extrair informações mais amplas. O que deu mais certo foi o segundo e ainda assim com ressalvas e com base em infor-mações truncadas que os dois me deram. Provavelmente ela instruiu os dois a me dar esse tipo de informação, na dose certa entre me estimular a querer desvendar mais e detectar as falhazinhas nos sinais.

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amanhecer, é meio foda. Agora vai ser bem diferente, por mais que a praça seja a de sempre, a manhã de domingo análoga às outras e os pombos os mesmos chutados por meninos de qualquer vez. Diferente só porque uma nuvem vermelha me disse que a vida seguia apesar da Berenice, que eu conheço de mim mesmo já bem pouco, quanto mais dela. Jornal aberto, sol a postos, cigarro aceso, semáforos orquestrando o barulho do metal incandescente dos automóveis. O frio arranhar na pele o tato. Quase pronto e eu

03/06eu sempre Começo falando de anoiteCer ou

convincente assim te dizer que eu estava despreparado, mas em prol do realismo vou dizer que pensava em nada disso. O lugar estar deserto fazia ele parecer mais vasto, sei lá. A manhã de domingo sincera me preparou uma surpresa, depois de esquecer do livro. Um ritmo na estática fremente do ar me avisou,

naquele palCo imprevisto. não sei se seria tão

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embora eu decidisse que o passado era pó, que me recolheria ao silêncio; se não fosse por haver um lugar desocupado no meu banco habitual. A pergunta do pedinte bem que me avisou também, Tem isqueiro aí, chefe? Porém eu, disposto a ignorar qualquer incentivo, jogaria no lixo chances de escapar a tempo de algum modo. Literário ou não. Pronto, ignorei todos os sinais e já posso contar como perder a esperança foi a senha pra ele pisar a praça, sentar no banco e sem pedir começar com um sotaque engrolado semelhante a ruínas soterradas bem abaixo do calçamento da praça.

- A foto mostra pessoas aleatórias, sua sorte é que uma delas é meu irmão – o homem sem ansiedade começou a aparar as unhas com um cortador tirado do bolso. A que você achou que fosse eu, não sou eu, é só alguém igual a mim, ele é gêmeo. E travesti porque cansou o pai desistiu de parecermos. Vestiu roupas de menina no que nasceu primeiro para nos distinguir. Por causa de um intervalo de três segundos entre partos, travestido, conheceu as pessoas na foto, as quais eu nunca tinha conheci – concentrado nos dedos arredondava arestas que me eram des-percebidas - pessoalmente, só de nomes. O carro sim, o carro eu assisti estacionar em frente à nossa casa – o rosto faminto se volta a procura do meu - mais de uma vez e meu irmão entrava e voltava uns dias depois, pupila meio dilatada, bem sorridente. E ninguém desconfiava que de quem havia naquele carro só duas pessoas sobreviveriam. Dois remanes-centes em cinco – minha atenção decapita o discurso dele, que começa a desvariar -, mais baixas que a guerra do Vietnã, e nem foi acidente, só foram morrendo por aí assim, um e outro. O meu irmão gostava muito deles, não parava de falar sobre as coisas que faziam juntos e tudo mais, nunca trouxe algum deles pra casa, nem explicou por que isso. Ao que parece, ele tinha vergonha da casa ou da familia, só hipótese, é claro. Animado com praias e violões e cachoeiras e vilarejos, durante cerca de um ano desesperou a mãe com sumiços. E meio que sumiu, inventou que arranjou emprego num haras, numa fazenda, granja, não sei direito, que tinha que resolver os problemas da vida dele e se afastou no carro junto com o pessoal. Eu penso que até deles ele se afastou, uma mulher

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– retoma as unhas com afinco e ainda quer me convencer - ligou lá em casa uma vez dizendo que era poeta e que estava procurando pelo meu irmão; um cara ligou também, pedindo por ele, chamando pelo apelido e tudo. Confundindo logo a voz, que era algo que eu tinha de diferente com o meu irmão, começou a combinar um passeio estranho pra fora da cidade e tive que desfazer o engano. Bom, na última vez que o vi, ele tinha sido demitido do haras e voltado a se vestir de mulher, com a intenção de vender o corpo. Engraçada a desculpa dele de que procurava um ritmo cotidiano pra vida dele, o haras era uma respiração – recuso a oferta de cortar as minhas unhas - artificial demais para alguém com a alma artística e que fantasmas não o incomodariam amanhã nas ruas sujas de seu coração. Embora ele seja o mais metódico, esbofeteou minha ironia abafada e eu caí no chão ainda assim, me revirando de rir; ato seguido, ele apenas fechou muito forte a porta e desapareceu pra nunca de novo. Comentou nada sobre a profissão nova, eu descobri com ele fugindo de mim. Meu carro meio de madrugada – agora se fixa em rotas migratórias de pássaros enquanto suas mãos ainda se dirigem a mim - de passagem pra outro bairro, numa avenida dessas que concentra esse tipo de gente, avistei e gritei seu nome, ele só se enfurnou uns becos adentro e não o vi mais. Desconfiei durante uma semana. Até achar uns papéis que ele deixou lá numa gaveta de casa. Já era travesti há tempos e tinha sido demitido do haras porque o desmascararam. Achei então uma foto parecida com a que você mostrou. Ele num carro com uma mulher e um palhaço sentados num capô de carro e um cara de longe, o que quinto amigo suponho que seja o que tirou a foto, ou talvez o que faltou ao passei. Ou seja, já era travesti quando – cumprimenta afável uma senhora - andava com esses elementos, e vinha sendo há uns cinco, seis anos. Nos papéis escreveu que a mulher chamava Berenice, a melhor poeta da sua geração, não-reconhecida. Uma página tinha letra bordada, meio escrita rápido, amarfanhada a um canto da página contava que assim que os cinco jogando Banco Imobiliário bêbados em um apartamento de um deles resolvem dormir, Berenice sobe numa caixa e declama uns ver-sos sobre um menino que vende rosas e escreve em paredes, versos que

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inseriria em um livro que ela planejava escrever há tempos. No meio da declamação para e olha em volta porque algo parece incomodar, impedir que ela continue. Vai em silêncio até a cozinha e contempla a torneira que estava pingando: o barulho das gotas no alumínio ressoa alto no apartamento calado, que não é o dela. Agarra e arranca – a respiração arfante de quem idolatrava o irmão levar uma vida que ele mesmo não tivera coragem de assumir - a torneira num acesso de fúria estudada, a água jorrar consistente começa a manchar o teto, inundar o chão, alagar o apartamento; ela rindo junto com os outros acordou vizinhos que esmurravam a porta exigindo explicações. Se recusaram a sair com a água que já vazava por baixo dos móveis, transpunha a moldura da porta, escorria escada abaixo. O sofá encharcado, as faíscas do abajur podendo eletrocutar qualquer um mais bêbado desavisado e continuavam rindo, ninguém sabe do quê. Até o prédio ser desocupado, os cinco ignoraram as ameaças – os olhos do meu interlocutor desviavam de entregar que ele segurava um risinho também - dos vizinhos, depois só saíram rapidinho pra passar despercebidos. Tipo, parece que meu irmão gostava bastante dessa gente e que abandonou ou foi abandonado quando a fama incipiente começou a atrapalhar. Me diz, como um travesti pode ficar famoso? Since-ramente perguntei a um travesti uma vez, um tapa na cara e um soco no estômago esclareceram travesti não é pouca merda não, tá achando que é só chegar aqui achando que as coisas são fáceis que eu vou te entender e tal, tá muito enganado, agora vai se fuder que eu não quero te ver mais na minha frente. Desconfio que o meu irmão morreu por não aguentar as pressões – a pose de intrépido aventureiro sofrido dele versus o meu descaso eram flagrantes dissonâncias - do resto do mundo que, por não ter coragem de ser ele, exigia que ele continuasse no circo de horrores. Alguns motivos eu descobri pelos papéis, outros devem ser exclusivos da cabeça dele e da arma. Parei de procurar travestis e respostas; eu ex-gêmeo, tinha que sair de casa, arranjar um emprego, meu filho estava chegando. Minha mulher, apaziguando, garantiu que só carregava uma unidade de criança na barriga; nas nossas mãos a chance de construir uma família sensata, estável.

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Bocejei, agoniava ficar ali agora que ele tinha provado que não era o da foto, vontade de correr na contra-mão, fugindo do rumo da minha casa, mas, voltando o cortador de unha pro bolso, insistia que eu ficasse mais, tinha muito pra mim ainda. Muito que eu repudiava a essa altura, nojo mesmo de encostar no que ele me oferecia. Essa história pareceu interessantemente engraçadinha em um começo e tudo, não mais. Preferi me abster de ouvir qualquer coisa, inclusive o silêncio que chamava de volta.

A manhã seguiu seu curso a meu despeito.

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mas o Contato era zero. Se em outro tempo algumas horas nos separassem; através de um olho mágico: grande angular olho-de-peixe ou de uma escotilha, o monossilabismo do rosto dela me chegasse distorcido. Um aceno em vão? O corpo era mais um silêncio caminhando ao meu lado, devassar entre pios de coruja a selva do nosso nada a dizer estava realmente longe de ser minha primeira preocupação. Iliá avançava na noite da estrada de terra alheia a uma sucessão de coisas agradáveis pululando perto, ao redor do que ela insistiu em chamar de atalho. O foco nos pés; oscila-vam direito, esquerdo a frente do corpo. Cores em profusão de nuances. Cheiro de plantas iluminado pela luz da lua, azu-lada por culpa de um filtro de nuvens.

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se acomodou resignada ao braço da minha companhia. O caminho serpenteava por entre duas cercas de arame farpado pra desembocar no asfalto, uns trezentos metros adiante.

abraçada pela Cintura, minha perplexidade

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- Uma vez um cara que nem esse mal-encarado aí, sentado bem nesse mesmo tronco serrado, me assaltou. Pelo menos só levou dinheiro.

Um desdém no fim do sorriso do homem mantinha intacta a impressão de que aguardava algo. Imóvel, mãos no joelho, acompanhou só com o olhar atingirmos a pista. Um aroma de dama da noite fez a Iliá parar e recuar uns metros antes do acostamento murmurando que era macumba. Ao que apenas cambaleei tão firme quanto o álcool permitiu.

Sem a confiança dela em que tinha um que passava por ali de vinte em vinte minutos, não dormiríamos, eu no chão, ela no banco, na parada de ônibus. Já acordou atrasada, reclamando de dor no quadril. Acariciou meu rosto com as costas da mão, meus os olhos contemplando o céu de linhas da palma da Iliá por entre frestas na pálpebra. As juntas dela estalaram diante do espreguiçamento de um corpo daquele tamanho. Esticou os braços unidos pelas mãos e com um bocejo se incorporou de uma vez. Uma pausa e recupera o fôlego.

- Me busca no terminal hoje à noite? Eu evitando movimentos desnecessários, as mãos da Iliá apressada me

balançando frenéticas. Indiferença matinal era reticências atropeladas por ela sem pressa, sadicamente disposta a me fazer acordar porque sim.

- ...- Obrigada.Pelo frio me convenci que era cedo ainda. Porque ali era ponto, não

me atrasaria pro trabalho, só não teria trocado de roupa, ainda bem que ninguém repara nessas coisas. Acabou que era dia de exame médico no trabalho. Solicitamente contentes, me fizeram as recomendações de sem-pre, parar de fumar, fazer exercício e alongamento, emagrecer. O doutor só ficou mais bravo quando eu ri do conselho de usar camisinha, ficou desconcertado com o meu Eu não preciso dessas coisas, doutor. Poderia até explicar, mas nem tinha cara de quem merecesse entender. Dia de trabalho abreviado pelas consultas coletivas, ainda bem que sobrou tempo pra énsar sobre ir buscar a Iliá no terminal ou não. O sono e a dor nas costas pela noite passada ao relento me diziam que era melhor ir pra casa dormir, a reminiscência infantil de um toque nas costas me afastando,

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a pressa de um indivíduo me pedindo passagem já me vislumbrava no terminal, trazendo ela de ônibus pra minha casa. Porque só de ônibus mesmo, ou ela achou de verdade que eu tinha carro e só andava de ônibus ao querer encontrá-la?

Informação errada na banca de jornal me jogou na direção contrária, percebi a tempo de parar e abrir mão de cortar caminho. Fui a pé do centro à mesma parada em que esperei pelo ônibus da primeira, segunda e terceira vez. E neste dia a história é meio da diferente da primeira, nessa o cobrador é homem, abomina livros, preferindo rádio de pilha e paguei a passagem sabendo que teria que esperar quatro horas no terminal. A grande vantagem é que agora eu tinha noção de quem procurar. Que rosto eu circularia na multidão se eu fosse digno e não um homem exilado na lua de si mesmo, fingindo que se interessa em classificar taxonomica-mente a legião de formiguinhas que vê de longe. Não o homem em órbita cuja vontade de pessoas e sons se esfarela como cinzas prensadas entre os dedos. Tinha noção, não considerava isso uma grande vantagem. Ela querer casa, comida e roupa lavada era o último que me excitaria em qualquer um, seus olhos seriam os últimos a perfurar minha pele, acele-rar meu pulso; as respostas que carregavam já ensurdeceram há tempos. Não estava curioso por causa de uma cobradora, ou por causa de um livro. Talvez fosse a primeira vez na vida, ou a segunda, que o que me interessava era uma mulher se interessar por mim. Obcecado por até que ponto isso era culpa da bebida ou não, me sentei num meio-fio pra ver a noite desfilar atroz diante da minha incredulidade. Desconfiar sempre de que um carro é um carro só porque nomearam desse jeito entendiou a ponto de me lançar a um descaso. Um brilho no farol dianteiro de um motorista qualquer foi meu átimo de lucidez. Percebe que esse brilho poderia ser motivado tanto pela perspectiva de atropelar alguém nas próximas horas, ou pela urgência de querer evitar um parto no veículo, ou fugir da polícia, ou querer embarcar em um avião já tendo perdido a hora? Embarcar em um avião: considerar essas ínfimas possibilidades foram minha única porção de orgasmo da noite e dos próximos três meses. Deu uma da manhã e ela faltava.

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a bereniCe não foi a primeira pessoa de quem fui personagem: Me dublaram aos dezesseis anos. No dia em que preferi sair de casa a continuar vegetando encontrei no chão um panfleto que me narrava, grampeei junto com a foto e os dois apareceram aqui, dentro dentro de um livro que enviaram: O menino olhar a lua e, acho, pensar em distân-cia. Num átimo de raiva destacar uma flor das outras, querer jogá-la no chão. Certeza que ele e os irmãos moram com a mãe apinhados. Divisar na multidão os olhos do pai. Procurá-lo entre algumas poucas alternativas. Morreu,

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um quinto filho. Ou os dois. Ou foi largado pela família enquanto dormia bêbado demais para reparar. Espaço aberto, bastante gente e ainda assim. Os olhos percorrer vários dos lugares. Parecer que ninguém mais quer comprar

largou a família quando avisaram que viria

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rosas. Os olhos mais para curiosos que para desanimados. O buquê cheio: mulher rir de receber, velhos não ter mais lapela, só risada sem dentes, essa música ser frevo não tango.

Talvez nem ele queira descobrir por quê, cabisbaixo, agarrado a um estertor de orgulho. Muita gente sim: não sei se de vergonha pelo braço, mas aborda constrangido. Difícil mesmo saber dessa distância se não ter a parte atrapalha ou ajuda ele a vender.

Crianças de mão dadas com os pais, pessoas sozinhas que procuram pouco; cerveja, pipoca, maconha, banheiros químicos, consolo, formas em nuvens.

Cansado, parar um pouco, apoiar o buquê em um banco. É nítido que ele não é pidão, nos gestos dele dá para ver que as palavras que ele usa não são para dar pena. Os outros parecer tão mais invisíveis quanto mais o ignoram. Aproveito e conto, dezoitos rosas a ser vendidas antes da lua se pôr. Uma velha comprar uma transigindo, uma mulher com uma máquina de foto comprar outra. Agora dezesseis.

Esse tipo de evento, de graça e aqui, atrai sempre mais ou menos o mesmo tipo de gente. Não pode faltar barulho, cheiro de queimado e palhaços em pernas de pau. O menino se orientar bem no meio de tudo, sem estranhar. Quase nadar entre gente girando.

Trançando por entre dançarinas incansáveis, chegar aonde ficam uns casais se engalfinhando; não querem intrusos, é mais difícil sim, mas é bem provável que apanhe em casa se não vender tudo. Se ainda fossem poemas, ou colares, ou a salvação, faria sentido passar sem ver, flores não se explica muito - comprar seria corriqueiro, num assomo de qual-quer coisa.

Ganir com o murro de um namorado ofendido e recuar quase perdendo o equilíbrio. Finalmente desistir. Corro gramado afora quando percebo que se afasta. Esbarrando nas pessoas, alcanço e ofereço uma carona que ele aceita sem perguntar para onde. É mais calado e gentil do que a primeira vista.

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Talvez a dificuldade em colocar o cinto de segurança, mas ele tem um ar meio de contrariado com a situação. Mostrar isso sem articular nenhum som, evitando chances de que eu puxe assunto.

Carro já em movimento, descendo a avenida deserta.- Aonde você quer ir?Meio assustado, murmura palavras que eu não entendo. Repito.- Aonde eu te deixo?- ...O momento de silêncio perturba, vou rodar a esmo pela cidade até ele

se dignar a me dizer algo. Eu nervoso não paro de falar merda.- Tem noção que quando eu te vi ali no meio de tantas pessoas que

servem para nada, você me chamou atenção de cara? Pois é, te achei bonito, educado, é ciente do seu lugar e do seu papel no contexto; é uma pena você ter jogado as rosas fora na hora de ir, eu compraria alguma de você. Só pra te ouvir dizer alguma coisa. Já te contei que quase nada me interessa mais? Não tenho tanto dinheiro, nem tantas coisas que eu queria ter, mas mesmo assim nada tem graça. Por isso que você me surpreendeu tanto, você é o que eu vim esperando esse tempo todo.

Me enraivecendo com ele nem olhar pra mim, só ficar brincando com o acendedor de cigarro do carro. Nem sei se seria engraçado se ele quei-masse a única mão que tem, mas sei que eu riria: um grito seria a grande chance de ouvir a voz dele ao invés da minha.

- Eu sou poeta, escrevo e tal, mas não vivo disso. Meus pais até me deixaram dinheiro, mas eu gastei tudo com bobagens de cheirar. Por isso hoje em dia finjo que ir a eventos ditos culturais vai me tornar mais culto. Me aculturar de certa maneira. Porque é bem isso, não faço poema, só poesia, um dia talvez você também descubra o prazer em rimar os senti-mentos com as palavras. É assim, simples, basta pontuar direito - escorro meus dedos rosto dele abaixo. Estendo a mão e alcanço uma garrafa que deixo sempre no banco traseiro pra essas ocasiões. Recusa com a cabeça e continua sem falar

- colocar os pronomes, você sabe o que é um pronome?, nos seus lugares devidos

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Estaciono o carro num lugar sem gente a vista. Os gestos do meu amiguinho estão mais fluidos agora e ele ainda estátua de sal. Como se eu tivesse feito algo contra ele de propósito. E nem foi. O tapa soa ainda mais forte porque as janelas estão abertas e o concreto ecoa. Nem as lágrimas dele fazem barulho quando caem.

Desabotôo o short dele e seguro esse pau mole, ou será que é desse tamanho mesmo?, chego bem perto, e ele desvia do meu hálito ardido, beijo seu pescoço enquanto seguro o cotoco: ao perguntar o que ele quer que eu faça ele começa a chorar mais, calado sempre põe a mão na maçaneta, ao que hesito; é aí que perco a noite porque ele sai do carro e eu nem tenho vontade de seguir pra convencê-lo de nada.

Voltando pra casa meio triste, não sei, uma sensação esquisita de por dois segundos quase achar que encontrei meu pai hoje. O dinheiro que eu ganhei não dá pro ônibus, talvez tenha sido isso, um cara ter adivinhado que eu tava sem dinheiro pra voltar pra casa e por isso me oferecer carona, foi o que me fez pensar que ele tinha me identificado e eu não a ele. A grande merda é que era um viado que só queria me comer. Não sei como vou explicar pra mãe porque tô chegando a essa hora sem as rosas e sem dinheiro. O foda é que por muito menos eu já apanharia: pode nem valer a pena voltar pra vida de bosta, não é como se eu fosse passar mais fome do que já passo e ter menos dinheiro do que já tenho se saísse de casa. Já não sou criança pra ficar apanhando, tendo que entregar meu dinheiro pros outros. É melhor mesmo ir embora como o meu pai, tenho certeza que ele é rico e come uma mulher gostosa diferente por dia. O problema é meu irmão, o Acácio, foda-se os outros, que ela minha mãe trata bem, mas ele ela trata pior do que ela me trata. Queria protegê-lo das merdas que acontecem comigo, impedir que viados deêm carona pra ele, essas coisas. Mas não sei se vale a pena voltar só por ele, talvez eu devia só procurar nosso pai e voltar com ele pra casa, a mãe não me bateria por isso, mesmo assim, é uma merda largar o muleque lá. Vou pra casa hoje, amanhã eu decido, vou ter que descer pra cá pra cidade de qualquer jeito. Às vezes eu me pergunto o que é maior, o silêncio dentro de mim ou o silêncio daqui. Quase chegando, mas eu sei que não vai ter ônibus a essa

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hora e não tem como eu ligar avisando. Pode ser a chance de ir embora, vão achar que eu desapareci, mas procurar ninguém vai mesmo, boca a menos, comida a mais, tá bom.

Puta que pariu, PM’s. Melhor entrar por aqui e não ser visto, sei lá qual é o humor deles hoje.

Esse carro tá bebendo bem mais do que deveria, mesmo assim vou em marcha lenta, acompanhando ele de longe, na calçada, esperando ele virar pra trás me procurando. Se ele fizer isso, eu finjo que passo direto só pra ele ficar com saudades.

Mas é claro que eu não passo direto, dou uma ré e abro a porta do carro. É quase de manhã e a lua continua muito grande, ele anda sem olhá-la de novo, olha os próprios pés esbarrarem neles próprios. Se distrai: meio pensativo, tropeça num saco de lixo, quase bate num poste. Nem carros nem gente perto, a rua é mais muda que ele a essa hora, esquisito pensar em como me atrai esse tipo de gente.

Não tirei tempo nem para avaliar o que ele me faz sentir, foi só vê-lo ali, sem um braço, roupa meio esfarrapada, mas sempre polido, uma polidez de resignação, que já quis algo. Às vezes ser impulsivo é insuportável. Não gosto dele, meu objetivo foi só alguém esta noite.

Tem um cachorro seguindo o meu amorzinho agora. Cheirando o corpo dele procurando alguma coisa, elétrico ao redor, é justo o contrário do menino reflexivo caminhando contra a lua.

Tremo enquanto apago um cigarro, sinto que vai demorar mais do que eu previ e é melhor não buzinar. Surgiram policiais há pouco e vêm nessa direção; vista de longe, ele já desvia, entra num vão entre dois prédios, mas acho difícil que abordem um menino desses.

Retorna à calçada onde posso vê-lo, o passo acelerado de quem não fez nada.O latido cão-guia acompanha acelerando junto, e emergem da tentativa de fugir umas ordens de fique onde está, mão na parede, pés afastados.

Os três começam a correr e o cachorro se recolheu a um canto, som de botas acertando o cimento e os gritos dos policiais contaminam o que tornava o silêncio tão bonito.

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- Para aí, seu muleque fedorento de merda- nem adianta achar que vai conseguir correr mais que a gente- nessa tu se fudeue coisas assim, acelero o carro até um pouco mais à frente e emparelho

com menino, rodas tornadas brancas ao raspar o meio-fio.A distância entre ser espancado, e sei lá mais o quê, e se safar vai

diminuindo. O carro em movimento, seus dedinhos se agarram à porta do carona, recém-aberta:

- Se quiser entrar vai ter que me dizer seu nome, querido.

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o menino deitar na minha cama me obrigava a sentar no chão, e mesmo assim eu ainda desconfio que ele mesmo me denunciou. Seria esperado terem combinado isso antes. Justo ele que adivinhava desenhos nas rachaduras do teto, que pedia pra eu trazer amendoins da rua, que eu pensei que estava fora

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Deitado o menino, eu de pernas cruzadas sobre o tapete, vítimas de um frio que vagava entre nós, cuidei pra distância não diminuir ou aumentar. Nossas palavras situadas num ponto médio no qual empilhávamos preca-riedades que começamos a compartilhar, um pouco antes dele ir embora e um pouco antes da minha versão da história em que perdi o braço desmistificar a Berenice.

do CirCo que a poeta que eu persegui montou.

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Um dia antes, na madrugada de perder a história de contar o braço.Formigas trilharam, entre o pé da mesa e a janela, um caminho pra o

qual cegamos, elas tinham saída, o menino e eu já tínhamos sido plane-jados por uma mulher vinda de fora dos acontecimentos. Uma violadora do cemitério que construimos ali entre duas pessoas em três meses. Ela pisar sem querer desmontados membros como manequins espalhados pelo chão só me dava a certeza de um destino. Eu li o livro todo e ele não falava de futuro, mas mesmo assim, nos senti um fantoche num desenlace apócrifo. Autoria duvidosa. Berenice era a ghost writer da minha voz.

Convivência mais estável com outra pessoa dentro do apartamento de que me despejaram. Naufragaria com a Iliá mais pra frente, achei que vinha dando certo com o menino, embora depois a mesma Iliá me tenha feito descartar a hipótese. Sem percepção de nada além da desimportância da história nas folhas de papel prensadas entre as capas do livro fino, verde, título em letras brancas garrafais na capa; que não me procurava então, demorei a descobrir que o menino levou aquela porcaria ao sair da minha casa. Cego de sono, antes de grunhirem do lado de fora da porta às cinco e meia da manhã, o menino já tinha roubado noturno minha memória pra nunca mais, só deixou o registro catalográfico. Suponho que o livro evaporou junto com a blusa esfarrapada e os pés descalços. Suponho que ele supôs que eu nunca encontraria a foto que Berenice me legou através dele, debaixo do colchão.

Diáspora de menino e homem: O prazo expirou assim que intranquilos fomos embora dali.

- Ali, aquela rachadura perto da cortina, mais pra esquerda das formi-gas: é uma lagosta, elas são os únicos animais incapazes de sentir dor, já te contei? A Berenice adora lagostas, mesmo nunca tendo comido uma, achava que elas eram bem bonitas, se eram gostosas ou não, não tinha como descobrir. Ao que parece, no dia em que ela ganhou de um amigo uma lagosta de plástico e pendurou na sala do apartamento novo, encima da televisão, uma inspiração a fez sentar e escrever um livro todo de uma vez, sem planejar algo antes. Você conhece esses animaizinhos de plástico que você aperta um botão, se contorcem e cantam uma música de natal?

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Não era muito Berenice isso de inspirar, costumava arranjar motivos por muito tempo antes de escrever qualquer coisa. Sempre atrás de uma desculpa pra não ficar calada. A Berenice queimou os outros papéis e só publicou esse livro. Um livro sem ser de receitas.

- Que tipo de livro?Tem que ser muito burro pra fechar uma porta sobre o próprio dedo,

o plantonista confidenciou entre risinhos que conteve pouco. O menino lá dentro da salinha sem noção de onde pousar os olhos, maravilhado, tendo que colocar a mão, com o dedo torto incluído, sobre uma chapa, enquanto eu, de jaleco pesado, assistia por uma janelinha. Sacolejava sobre a cama de metal, conforme o médico dava as instruções a ele. Agora o dorso apoiado, agora a palma, agora de lado, não mexe muito, pára, porra, de mexer. E a cara do menino de querer perguntar o que é dorso. Pareceu bem menos frágil que o normal, mesmo com o cara gritando com ele a cada três segundos por aquele microfone. Gritou de dor sim ao querer ir no banheiro e imprensar a si mesmo na fresta da porta, mijou nas calças ao longo do percurso e continuava berrando. Mas algo devia obrigá-lo à compostura diante de autoridades médicas, um impulso de auto-afirmação por meio da imposição de ser digno. Pressão dos pares? Me perguntaram se eu era pai do menino. Ainda teve de passar por umas radiografias que eu nem sei pra que precisava. De tórax. O menino lá estendido fingindo uma tosse antiga, de dentro da salinha acho que não dava pra ver quem espiava na janela. Devia ser aquelas de espelho por dentro e vidro trans-parente por fora. Ou não. Ou só estava tão concentrado em conter a dor apertando os dentes, que ignorou minha apreensão e a displicência do doutor. O tédio de já ter atendido um milhão de casos como aquele em um milhão de outras madrugadas, de saber de desde antes do começo que dor era fingimento e anestesia mais fingimento ainda. Porque quem entrava ali, saía intacto, não curado, só intacto mesmo. Li nos bocejos desse médico que prontuários são mentiras que as pessoas inventam pra poder reclamar de algo e depois exibir cicatrizes numa competição mór-bida, mas comum. O menino arregalava os olhos e fingia que queria se

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contorcer, ator de si mesmo, a dor de si mesmo valendo bem menos que a atenção dos outros. Uma dor instrumental, cirúrgicamente calculada pra me manter ali, pálido de preocupação.

Na volta, sorria já. Entre brincar com a tala no dedo e ver a rua passar rápido em frente a si - mais rápido do que demora retê-la -, coçava o nariz. Bocejou ao escutar minha negativa à pergunta de se eu queria que ele contasse onde a Berenice mora. E não quis mesmo, só bem depois, mas não depois de tudo.

Fechei a janela e, antes de irmos dormir, os ganidos reclamando do dedinho e os roncos já se misturavam no menino.

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o aCáCio reCusou fiCar aqui em casa. Surgiu as três vezes sentado no chão, na calçada ao lado da porta do prédio, me esperando, sempre nos horários exatos, com os dentes mais sorridentes do mundo, nem parecia que tinha ficado no sereno, o orvalho qual gotas no cabelo dele. Três dias seguidos materializado diante de mim atônito. - Parto. - Parte?

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ouvir, preferiu sempre se espalhar conversa afora, estranha a hesitação dele comigo, queria contar algo que não conseguiu. - Você tem tempo? Ofereci a casa, a cama, mais de uma vez, mas ele era bem mais de surpresas manhã adentro do que eu; sem falar dos assuntos incógnitos: nada de trabalho, ou família, falou da consulta às cartas do tarô e da perseguição a

das cidades que veio galgando até mim. Do país, inclusive. Viver é respirar sem culpa e suplicava na minha frente, achando que resgatava e pagava uma dívida esquecida, de tão antiga. A primeira caixa com livros, nos braços dele, a voz mudada não me deixaram reconhecer o rosto, todo traços

ou parto? o meu irmão não era muito de

ele, Cada outdoor na rua, um aviso pra fugir

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que retive pra posterior apreciação quando nos separamos. Ele é diferente de mim fisicamente, mais magro, com a cabeça sempre procurando por movimentos furtivos na sombra da visão periférica. Parece com o pai, que era o mesmo que o meu, acredite. Era enorme a caixa que depositou aos meus pés, o esforço escondido atrás do dente.

- Espero que goste.- Me ajuda a levar lá pra cima.Acho que o Acácio achou meu apartamento pequeno, ou desarrumado

ou desconfortável, um dos três. Mal desconfiava que a caixa duraria menos do que ele previu, ali. Fechada, joguei prédio abaixo. A cada lance de escada, uma gota de suor manchou o papelão, abri a porta que dava pra rua. Cinco minutos na calçada em frente ao prédio, alguém já abriu pra checar o conteúdo. Dez minutos, já levaram metade dos livros. Vinte minutos, nem a caixa estaria mais lá pra contar a história. Mesmo sob chuva, é rápido assim se apropriarem do que nunca quis revelado. No primeiro dia, meu irmão ainda tinha que fazer caber a vida inteira num monólogo disfarçado de conversa. No segundo, quis perguntar coisas por esse viés estranho que sempre usou.

- Quando foi seu último suspiro?No terceiro, me acompanhou até o trabalho e aguardou o fim do expe-

diente como um índio, agachado perto de uma parede. Algo pairou, o Acácio só me convenceu de que a história dele ficava incompleta porque o pedaço ausente é impublicável. Ser inconveniente plantado à soleira da minha porta. Parar de pensar porque quis esquecer que ele um dia. Que ele um dia nada, reticentes tratávamos o presente igual ao passado e o passado igual a um cachorro que expulsamos de casa.

Que meu irmão um dia trabalhou pra trazer dinheiro pra casa. Minha mãe conseguiu um empreguinho pra ele, mais leve por ele ser mais novo, um que eu já tinha feito, vender rosas por aí adiante. Sempre que ela arranjava esse emprego pra alguém, a pessoa tinha oito anos de idade, um pouco mais, um pouco menos, e era capaz de imitar no rosto um sofrimento que se existisse de verdade, era só na cabeça dela. E treinava a gente pra fazer cara de coitado, mais pra vender as rosas, mas também pra

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cortar cana, engraxar sapato, lavar e secar louça. O Acácio era bom nessa cara; até o cara que pagou cinco reais ao meu irmão por cada vez que o comeu concordou com isso. Lacrimejou muito às escondidas em casa e só depois da quinta vez, um tapa da mãe trouxe à tona o porquê do choro. Conta-gotas com que pretendeu esconder a recorrência dos fatos. Longe de ser sexo, o que o afligia foi não conseguir acobertar. Um tapa meu só trouxe à tona mais lágrimas afloradas fecundando o rosto. De costas pra mim, recolhido em decúbito dorsal virado pro encosto do sofá, alguns socos e chutes bastaram para marcar manchas na blusa dele: e nada de grunhidos, reclamações ou se virar pra me encarar. Mãe resignada ao filho aleijado corrigir o filho bicha. Que aceitava punição sem questionar. Que aos prantos descarado num murmúrio antes do primeiro tapa, confessou que doeu no começo, que só quis ajudar a família, que agora não doía mais. Ninguém pediu ao Acácio nada mais do que a única coisa que ele desrespeitou. Minha mãe convulsionando de choro e alaridos cacarejava pra vizinhança que agora se assomava à janela da nossa casa; indecisa entre entrar e intervir, ou só contemplar o espetáculo.

- Você sabia, meu filho, que teu pai foi embora com um desses? Aca-bou o espaço pra gente assim no coração de Deus. Não se perdoa a quem desvia dos desígnios dos céus. Já me basta um filho inútil pra trabalhar, agora me vem o outro com essa porcaria.

O Acácio correu, pulou pela janela, esquivando da multidão espectadora ajuntada lá fora. Descalço tropeçando em uns pneus, atropelando gatos, sumiu de vista. Minha mãe me mandou buscar o irmão pra onde quer que ele pudesse ter corrido; cansado, saí e dormi na frente da porta de ferro de um açougue, sem a mínima vontade de voltar pra casa ou prosseguir. Já deviam estar longe os dois parentes que eu tinha a esta altura. Só faltou lembrar da minha irmã, recolhida debaixo da cama. Bastante tempo depois desse dia, em que eu deitado vi numa estrela um apagamento que achei parecido com ela, minha irmã surgiu de imprevisto na vida nova também. Antes do Acácio, deu certeza que não lembrava desse nosso último dia como família, nem de por que eu fui e o Acácio foi.

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Meu irmão tratou a vida pregressa como um episódio não acontecido, relevou e eu por medo de mencionar deixei passar. Mas uma desconfiança mútua. Mas um auto-respeito falho. Três dias em que pra me livrar desse atrito de uma vez, era cordial com o Acácio, quis protegê-lo de novo, dessa vez mais de si mesmo do que de caras que te abordam oferecendo carona. Passou, não sem assuntos de sempre entre irmão ser ignorados, ele curioso por coisas bestas da minha vida. Atropelamos o que nos sepa-rou, sem nos virarmos pra ver se isso ainda se contorcia de dor no meio do asfalto. E nos contorcíamos, um ímpeto me eletrocutava por dentro.

Sangue corria a despeito dos esforços para conter que recompuséssemos laços. É foda pensar que a mesa esteve ali pra esclarecermos ao invés de preferirmos não fazer. E preferimos. Sem caixa nos dias seguintes, o que os dois queríamos é que acabasse? Acabasse o quê? O fingimento, talvez. Não, acho que ele era sincero em querer reatar, mas eu não considerava seriamente em reavivar espinhos tão antigos entre nós.

Três beijinhos no rosto, passagem comprada pra fora daqui, recusa ser levado ao aeroporto ou dinheiro pro taxi. Também não vi a sombra das malas. Do Acácio ao término do último nosso parágrafo juntos o que nos separou foram caixas.

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- bom dia, senhor, para darmos início eu preciso que me diga seu nome completo, o qual deve coin-cidir com o nome que consta da sua ficha de triagem. Sim, não é necessário que explique, basta com dizer o nome que forneceu ao dar queixa no nosso departamento médico. Sim, sim. Bom, para dar prosseguimento preciso que

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só os anos, os meses não precisa. O sexo é masculino, certo? Ahn, muito bem. Que cor de pele o senhor declara ter? Não, mulato claro não é uma resposta exata. Tem que ser branco, negro ou pardo. Branco? Certo. Eu corrijo aqui, pardo mesmo, está certo? Qual é a nacionalidade, o país em que o senhor nasceu? Quê mais, ah, o grau de instrução. Não é censo não, preciso mesmo que me diga tudo isso, são os requisitos da primeira consulta. Prometo que não demora e que essa é a única vez que recolho esses dados. Pode ser analfabeto, alfabetizado, primeiro, segundo ou terceiro grau completo ou incompleto; primeiro completo? Anotado. Vou fechar essa janela, o senhor está desatento com algo lá fora, presta atenção aqui. Profissão definida? Não quero saber se é de carteira assinada ou não, quero saber se trabalhava em algo constantemente antes de vir pra cá. Ah pintor. De paredes? De quadros a definição é artista. Pode colocar aqui, artista? Aham. Qual é o estado civil em que o senhor se encontra? A vida que leva, não perante a lei, mas como se sente, casado, morando junto ou solteiro?

informe sua idade em números redondos. não,

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Óbvio que é antes de vir parar aqui. Solteiro ou morando junto, decida. Solteiro, então. Professa alguma religião? Posso pôr aqui catolicismo não praticante sim. O senhor sabe de cor seu número de prontuário? Não te informaram? Tudo bem, depois eu preencho isso.

Agora nessa segunda parte eu preciso que me diga qual é sua queixa principal. O que te fez sentir que precisava procurar ajuda psicológica? Isso não é bem um motivo. Mas sua história já foi transposta pro papel? Entendo, o senhor guarda uma cópia desse livro consigo? Não precisa recitar as partes que decorou ainda, temos tempo, é um tratamento a longo prazo, eu estou aqui pra ouvir qualquer coisa que quiser, qualquer coisa que lembrar. Essa dor passa, basta você ver que ela é ficcional. Ao longo das nossas conversas eu vou tentar te fazer perceber que isso é invenção, é o senhor tentando se agarrar aos álibis que criou.

Me conta mais sobre essa dor dentro do senhor, surgiu de repente ou veio aumentando com o tempo? Passando de imperceptível a insupor-tável. Alguma coisa fazia prever o aparecimento da doença. A primeira coisa que o senhor precisa admitir ao procurar tratamento é que padece de uma doença. Cujas causas descobriremos, por isso está aqui. Não, não posso prometer cura, nem receitar remédios, posso prometer que tenta-remos entender o que está acontecendo com a sua cabeça. Houve alguma alteração nos interesses hábitos, comportamento ou personalidade antes de o senhor ser preso? Sim, portas fechadas. Achar que a culpa é dos outros é normal, mas a justiça é infalível. O que o senhor fez logo que percebeu essa dor de cabeça? Evito remédios a qualquer custo, qualquer desvio pode ser tratado com consultas, se o senhor falar tudo, contar toda a história, eu estou apta a diagnosticar e tratar sua doença. Fique tranquilo, só queremos o seu bem. Que remédios veio tomando antes de chegar a mim? Está claro que conseguiu com receitas falsas. Tem consci-ência de que o princípio ativo deste remédio pode agravar seu estado? Vou escrever aqui no laudo para reforçarem a revista de quem o vem o visitar. Não pode continuar tomando isso, tomar por conta própria já perigoso, se eu prescrever os riscos aumentam mais ainda. A dor vem toda de uma vez? Em que parte da cabeça essa pontada é mais forte?

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O senhor me parece muito arrogante para quem está com tanta dor assim e precisando de ajuda. Hoje não faremos testes, só perguntas sobre sua história, que eu preciso que conte com a máxima sinceridade. Comece por onde quiser, o que vier à mente primeiro, confiança é talvez o passo mais importante nesse primeiro contato, você perceber que pode contar tudo pra mim. Relações da infância, problemas na escola, problemas na família, qualquer coisa que incomode. E também o que te alegra ou faz chorar. Traçaremos juntos um panorama do caminho que o senhor per-correu até esse exato segundo em que está sentado nessa cadeira, tão atento ao que ocorre lá fora, e tão pouco ligando para o que eu estou tentando te transmitir.

Faz uso de álcool, nicotina ou qualquer outra droga? Quantos cigarros fuma por dia? E quantos fumava antes de tentar parar? Só cigarros mesmo? Preciso de tudo como aconteceu, não vou julgá-lo, só quero entender.

Sua memória é a corrente que amarra quem você é a quem você foi, a quem você será. Por isso recomendo que relaxa, vou abaixar a luz pra o ambiente ficar mais calmo e o senohor se sentir a vontade em me contar qualquer coisa que queira. Só assim poderemos detectar se essa dor é de fundo psíquico ou somático. Se a origem for somática, ou seja, vier de reações físicas do próprio corpo, vou indicar que seja transferido a outra especialidade. Mas algo me diz que não é isso que vai acontecer, algo me diz que o que o senhor tiver a relatar durante as nossas consultas guarda estreitos laços com um distúrbio de ordem emocional, que eu inclusive já imagino qual seja. Não nos apressemos, estou pra cuidar que o senhor receba o melhor tratamento que o estado puder oferecer. Então, feche os olhos, respire fundo e deixe um fluxo de acontecimentos dominar sua linguagem. Vou fechar a cortina, concentre-se em si mesmo, na sua capa-cidade de retração da consciência. Retome algo que lhe aflorar e apenas me conte. A consulta é de cinquenta minutos, senhor. O ideal é que não fique em silêncio. Apenas lembre que foi essa atitude que o condenou aos olhos do juri. Quem cala consente com o que estão acusando. Prefiro que me olhe enquanto nos falamos, é difícil?

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a meu despeito também, puxa minha Camisa quando faço menção de me levantar. Reparou que sinos que ralhavam perto, indicando as horas, afogavam todo barulho que havia em torno, por isso aproximou a boca do meu ouvido, provável algo que deixou passar de propósito. Suspense que esbarrou no meu bocejo, gente tossindo e andando, em frente a nós, que ensurdecemos pelos sinos. A igreja sempre dificultando a comunicação. Abriam a boca e colocavam a mão tampando, dublagem de atos de pessoas normais, mesmo que normal fosse pouco comparado a um homem cochichando no ouvido de outro em plena praça dominical. Ignorado vasculhava meu rosto, por trás dos olhos. Ignorada, minha boca começou a expelir um não,

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fim do resto da história me perpassar, mão dele tateando meu braço. Na guantánamo que há dentro da minha cabeça escoariam por frestas nas paredes em segundos os ecos. Como se tivesse entregue de si muito mais do que planejou, hesitou, segredando as palavras de

um grito, uma esCapatória. guardei, deixar o

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Berenice, e o peso, imperceptível à primeira vista, que vigorava sob as roupas-disfarce. Sem conhecer e sem admitir que não conhecia, maquiou às pressas um enredo velho como se um prazo limite fosse antes de eu ir embora. Assunto em suspenso conseguiu me interessar, fileira de freiras e o que o ex-irmão do travesti confessava ter visto num papel.

- Berenice nasceu com frio – como se nem o interlocutor nem o irmão acreditassem na história que contavam e ouviram -, era dizia quando se dignava a dizer algo pra gente. E prosseguia, repetindo a Berenice num ensaio infinito. Tremia sempre como se algo fosse escapar se não repetisse, talvez querendo esconder uma biografia pregressa: as pessoas jamais souberam o que ela era antes de andar por aí em repartições públicas perguntando – uma tosse fora de época denuncia a desconfiança - se ninguém tinha uma revista velha, livro usado pra doar. Sempre fazia igual, parava um carrinho de compras na porta do edifício e subia de andar em andar disfarçando os farrapos das roupas com uma linguagem polida, educada pra impressionar. Logo que atulhava o carrinho com papéis que outros queriam jogar fora, saía distribuindo os livros por aí afora. À noite escrevia – sarcasmo comedido - um livro que andava anunciando no meio do povo que seria bombástico. Um dia sobreveio o que tentara esconder o resto do tempo, perdeu o braço para um caminhão que passou por cima dele e do carrinho. Mas só o carrinho ela arranjou outro, por isso continuou fingindo – risinho de canto de boca - que era um Gutemberg novo e sem braço. Distribuindo livros, encontrou gente, e acabou publicando seu livro, que foi um fiasco por causa da má distri-buição. Berenice acabou reunindo em torno de si um grupo de pessoas que a princípio – mais tosse denunciando - se disseram seus admiradores. Ajudavam a coletar os livros sem parar e pensar qual era o objetivo dela ao fazer isso. E assim conheceu, meu irmão foi um dos últimos, essas pessoas todas com que andava e o grupo depois ficou reduzido às cinco pessoas – um lenço no bolso vem ao socorro - que se autodenominavam grupo de promoção cultural Rima Involuntária, Palavra Apátrida, que na verdade não passava de cinco pessoas querendo encher a cara por aí com a desculpa de parecer culto.

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Eu bocejando e ele não se importando com que meus bocejos deixassem transparecer que a história não me interessava mais. Eu tentava tossir pra interrompê-lo e conseguir levantar, e ele arranjava um jeito de me prender com palavras ao banco. Queria voltar pra casa e terminar logo um Magritte que tinham me encomendado. Apesar disso prosseguia como se a catarse pela morte do irmão requisesse um desconhecido.

- Um panfleto que eu encontrei dentro desses papéis, era sobre filiação partidária, ao que parece o tal grupo – disfarça que asuoa o nariz – alegava o projeto de uma rede de ação social. Mas isso não vem ao caso, a última coisa que eu encontrei foi num papel uns poemas dedicados a um tal Iliá, poemas de amor – o rosto contrai em rugas repetitivamente minúsculas - pra te ser muito sincero: a princípio eu não entendi o meu irmão ser gay, eu ainda vivia sob a ilusão de haver travestis heterossexuais. Um poema dizia – a mão crispa qual o rosto esmagando algo invisível - claramente algo sobre percorrer o corpo de Iliá com a língua e não fora escrito pelo meu irmão; a assinatura lá embaixo da folha era dessa Berenice, supo-nho que meu irmão pediu pra ela – a veia no pescoço salta - escrever e nunca teve coragem de entregar. O outro comparava o corpo desse Iliá a entrar num ônibus apertado, porque parece que ele era cobrador ou motorista de ônibus. Depois eu descobri que era cobrador mesmo – sem motivo aparente expira muito ar do pulmão de uma vez, como um alívio extenuado do esforço de se enfurecer -, descobri rabiscado às pressas no verso de uma folha com um poema sobre os olhos do Iliá serem a per-feição circunferente. Nem me pergunte o que é circunferente, só sei que é o que estava escrito no papel. Enfim, atrás desse poema havia umas indicações da linha e do horário do ônibus em que ele trabalhava – um papelzinho os dedos alcançam no estômago da carteira.

Língua arfante sem fôlego dele versus o meu relaxado claustrofóbico daquela praça a que a manhã me obrigou.

Me alcança o papel com garranchos, o papel em que depois eu anotaria os dados do livro achando que ainda a situação sob controle. Tudo plano de outros e representar um personagem que não escrevi.

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- Uma carta entre tantos poemas deixava a entender que ele recusar se envolver amorosamente com – a raiva evolui de tal forma que o faz parecer prester a cair no choro ali - meu irmão lançou os dois a um período meio longo de depressão, que acabou com a amizade dos dois. Amizade essa que já estava estremecida desde que o meu irmão, não sei ao certo é o que dá pra inferir dos poemas, trapaceara esse Iliá numa aposta – o interesse sonolento com que o encaro o faz represar esse choro iminente. Por isso a quantidade absurda de poemas escritos pelo meu irmão e citações de outros poetas, sempre sobre amor não correspondido e pedidos de desculpas.

Ensaiei um olhar de preocupação fingindo que algo naquele melodrama estapafúrdio me dizia respeito. Vontade de roubar o violão que me irritava ali perto e dar com ele na cabeça que se dignava a me tomar algo que eu precisava e me devolver algo que eu evitei.

- Sim sim, e eles nunca não se viram antes do teu irmão morrer?É, a verdade é que ele estava contando a história pra si mesmo. As

linhas do rosto harmonizavam com as rugas que também contavam lá alguma coisa.

- Mas esse Iliá é irrelevante, a não ser pelo fato de ter abrigado a Berenice por um tempo em casa, já na mesma noite que uns vândalos queimaram os livros e jogaram o – minha posição no banco se endireita para escutar melhor - carrinho de compras fora. A poeta simplesmente apareceu lá pedindo abrigo e não sabia que esse amigo dela era também amigo do meu irmão. Inferências a partir de algo intrinsecamente menti-roso como um poema – chego ao absurdo de aproximar meu ouvido mais da boca dele - podem ser perigosas, mas ainda assim, creio ter atingido uma versão aproximada das razões da morte inexplicada e desavisada do meu irmão. Talvez Iliá esteja implicado, talvez ter brigado com Berenice e se afastado dos amigos – contive um nojo pelo hálito de cuspe me atingir e fiquei no lugar esperando a hora. Sei que estou impedido pra sempre de falar com meu irmão e ninguém me deixou saber disso antes que eu falhasse em travar contato – meus dedos agarram o banco para me impedir de levantar naquele segundo em que ele freia a língua.

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O papel na mão calava meu próximo passo, disfarçava a mão tremendo. Meu sorriso fazia as vezes de sinal de trânsito, indicava ao homem uma direção que desviava do tremor que me percorria no exato instante em que só desejei sair correndo daquela praça. Papel na mão.

Com um comentário sobre o tamanho da bunda de alguma mulher aguentou meus olhos por um segundo ou outro em que eu ainda me esforçava em imaginar a desculpa perfeita.

Abandonar a segurança das rochas e me lançar ao vazio que o papel prometeu é assim como aprender a andar em um espaço desabitado por gente em que da nave/submarino contemplo minha autoria. Que descobrir de cor minha autoria só é longe de mim. Um passo que inauguro aqui nessa superfície intacta de humanos tem o efeito de ser inédito só na cabeça de quem dá o passo e de quem vê o passo ser dado. O resto são outros inóspitos que eu não ouvir falar acarreta serem vedados sempre. Sou o primeiro a desvendar as runas do meu espaço, o primeiro depois da Berenice. Nunca singrei a pele da poeta rumo às linhas de um papel, a caneta da Berenice nunca rasgou os oceanos do meu peito. Adernamos juntos no espaço entre a mão que segura e a caneta. Naufrágio longe da costa. Muitas pedras submersas.

A não ser nas duas vezes em que nos tocamos: a primeira, minha mão roçar seus dedos ao reter o livro comigo. A segunda quando me debrucei sobre a pilha de risos, sílabas sobre mim e carne que ela era ao ser achada.

Levantou exausto do banco: esgotado, com dificuldade de andar, não se despediu.

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pois o frio sob o Céu aberto do terminal provocava o frêmito de cem agulhas súbitas simultâneas me invadirem. Voltaria andando contra o nevoeiro, con-dições semelhantes às condições nas quais me fez voltar algumas outras vezes já. Preparei com um fôlego a caminhada longa e alguém surgiu das vísceras da espera. Pude ver de muito longe a Iliá se aproximando com um descuido premeditado, entre arreganhar os dentes num bocejo e com a mão tentar alinhar o cabelo. Mesmo jeito da véspera, um ar de sempre com sono e roupas com que tentava disfarçar o peso. O sapato baixo estralava contra o cimento e reverberava.

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se desCulpou por um suposto acidente Com o ônibus às três da tarde ter atrasado o restante dos percursos. Admitiu que foi só uma batida nem muito grave, mas que obrigou todos os passageiros a descer e prestar depoimento a um delegado da polícia

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rodoviária. O pior foi a histeria de uma mulher que entrou em estado de choque ao ver o farol quebrado do ônibus e a moto caída a um canto. O motorista e o motoqueiro bem e a mulher descontrolada em altos brados.

O motorista era o mesmo do dia anterior, manobrou e desceu de um ônibus que não parecia batido em algum lugar; com a toalha no ombro, me reconheceu de esguelha, com um aceno de cabeça; e entrou.

Encontro. Respiração menos voluntariosa que quando se despediu de mim umas vinte horas antes. Minha mão seguiu trêmula por falta de um cigarro perto, ao ser acolhida em uma das mãos da Iliá.

- Vamos embora?Ela vasculhar com esperanças se esvaindo rápido os arredores do ter-

minal à procura de um carro - meu e estacionado ali perto - me levaram a repeti-la, automaticamente.

- Vamos embora?Nosso caminho não passou perto do bar do dia anterior, as crianças às

portas dos barracos desarvoradas amarelas como corujas à nossa passagem. Em vigor um silêncio de madrugada sob a luz anêmica dos postes, essas crianças em vigília assinalavam o caminho, pareciam olhos-de-gato no asfalto. Sendo sincero, eu, e acho que Iliá também, não tinha idéia do que havia de vigiável em uma rua carcomida de barracos de madeirite, às três da manhã; dava a imprssão de que Berenice estava por trás de tudo outra uma vez. Por trás até de um braço da Iliá se enroscar no meu quando desviamos do atalho que usamos antes por ela querer desviar do cara sentado no tronco. Por trás do sugestivo bigode do taxista, desem-brenhado incrivelmente daquela solidão de fim de mundo. Por trás da cabeça da Iliá se aninhar no meu peito, enquanto ela sussurra por uma ajuda que só torna o trajeto mais interminável. Agradece poder ficar na minha casa, mas pede mais coisas, que eu vou aceitando conforme vai querendo. No final da noite ela termina na minha cama, eu no chão, com a promessa de que pode ficar lá quanto tempo precisar, e de que recuso ajudas com as contas. A vida dela anda um caos e ela não quer dar tanto trabalho a alguém que conheceu há pouco tempo, mas é um caso de extrema necessidade, não conhece mais ninguém a quem poderia

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reconhecer. O mais engraçado de tudo é que muito provavelmente a Bere-nice esteve por trás disso também, depois que conseguiu me incriminar e fazer vir parar aqui, eu costumo ver a caligrafia dela em tudo desde que começou e mesmo antes. Ela que é a criminosa na verdade, das que após o crime deixa uma marca característica, seja uma rosa, uma corda de violino enrolada nos genitais, uma cicatriz, uma aranha dentro da boca da vítima, um z na blusa, coisas comuns que pessoas comuns não identificariam como marcas de um crime atroz.

Do vidro veloz do taxi, que não sei por que tomamos, avistei um andaime periclitante. Cutuquei Iliá pra que ela visse que preocupava o jeito que andaime oscilava como se fosse tombar a qualquer momento. Encima de uma rede verde, das que impedia que um tijolo matasse alguém caindo na cabeça de quem passasse pela calçada, uma pessoa aquecia as mãos junto a uma fogueira. Iliá fez pouco caso do meu achado urbano, contou que sempre o vira ali. Que ele nunca descia. Era um homem e o nome dele era Jorge, ou é, não sei se ele continua lá depois disso ou se mudou de identidade. Pintor, vendia os quadros dali mesmo. Nesse instante virei a cabeça, esquivei o meu rosto do rosto que eu não encontrava há um bom tempo, desde as tentativas de me comer, enquanto me oferecia um emprego. Juro que esquivei.

Eu tentei evitar, bem que tentei, o que me arruinou foi eu ser um afluente da Berenice sem nunca chegar a ela. E permitir que Iliá instalasse suas coisas no meu lugar. Desde buscá-la no terminal, esperar três horas; desde o Jorge no andaime. Sem me cortar da vida anterior, inventava dores pelo corpo, apenas afetações distantes da hipocondria, se divertia sem padecer, resmungando o pulso acelerado, a arritmia, a perda de peso, a dor nas juntas. Morria de medo de farmácia e eu de preguiça de descer pra tentar salvá-la, a nossa via foi sempre a diplomática, ela culpava o reumatismo de algo, eu fingia que prestava atenção. Isso durou um tempo longo pros meus padrões, durante o qual a convivência fluía tão despretensiosa quanto desesperada. Um proto-casal: eu cozinhava, ela lavava os pratos. Mas sem sexo, só quis abrigo contra o resto. Sujava o chão de farelos, enquanto preparava um bolo pra quando eu chegasse.

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Até que um dia trouxe um cachorro, que prontamente expulsei, pra fazer companhia, enquanto eu estava no trabalho. Era uma convivência tolerável não sei por qual razão, mas em momentos meio que agradava até, sem razão. Além do mais, Iliá adorava me irritar com algo que sabia que me dava nos nervos, assoviar bem alto melodias inventadas, coisas assim bestas realmente me faziam duvidar do porquê de acolhê-la em mim. Pra não precisar falar da intenção dela de me expulsar de casa; tentou três vezes roubar a chave, mas eu nunca contei da chave reserva que eu guardava com o zelador. Sempre acho que era assim que o menino lá entrava e saía sem eu perceber. A Iliá não, entrava, me trancava do lado de fora achando que o apartamento seria pra ela, após minha morte oportuna. Numa bela manhã fui comprar pão. Fiquei deixado do lado de fora. A chave sumiu, bati umas três vezes e só ouvi uns risos da Iliá e a televisão alta lá dentro. Só de irritação por isso, tive que arrombar a porta - que nem minha era - que nem em filme, com um chute; pior pra mim porque o apartamento era alugado. Assim que a folha da porta cedeu escancarada, escorreguei no tapetinho, me desequilibrei e caí. Durante a queda, vi de relance pela fresta aberta, ela se contorcer de riso. Entrei bufando e a gargalhada ininterrupta só me provocou a dar um soco no ombro da Iliá, ao que a poltrona capotou. Com o tombo, minha amiga bateu a cabeça e ficou uns bons cinco minutos estatelada.

- MERDA, MINHA HÉRNIA! MINHA HÉRNIA! MINHA HÉRNIA! MINHA HÉRNIA! ME AJUDA, PORRA! MINHA HÉRNIA, CACETE!

Eu convulsionando de rir, quase espumando de raiva, ainda não escu-tava golpes que não desistiam à porta do apartamento.

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em seguida tropeCei Com o Tem isqueiro aí, chefe? pela milésima vez, mas não xinguei. Um velho que passou rente à minha caminhada atônita perguntou se estava tudo bem, se eu tinha usado tóxico. É verdade, não tinha usado, mas parecia, andava desviando das pessoas, mantendo uma distância grande de precaução. As veias dos olhos como se fossem saltar a qualquer momento, pupila dilatada, a boCa muito aberta. a vitrine

em que olhei para ver se alguém me seguia de algum lado denunciou minha situação. Só afastei o velho com o braço, tinha infringido o afastamento mínimo. Pisei-lhe o pé, o fluxo da calçada, na minha contra-mão, todo convergia para que me incriminassem como ela quis. A visão tóxica da cena, isso era minha aflição de correr, para onde não sabia, nem nunca che-

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guei a descobrir. Caminhei um bom tempo, a cabeça olhando para os dois lados sempre, ouvindo estalos de armas e passos de botas no concreto o tempo todo. O dia nublado blindava qualquer certeza sugerindo que eles viriam das nuvens, emergiriam do próximo bueiro ou descobrissem meu endereço. Isso não, eles já sabiam meu endereço desde muito tempo. A vírgula obrigatória na minha caminhada foi mais alguém estranhar eu fingindo que andava lentamente, enquanto me segurava pra não correr e mantinha um afastamento regulamentar de tudo em que o meu toque pudesse deixar pistas. Sequer suportava um desdém de curiosidade vindo de qualquer um, nem mesmo de gente pedindo dinheiro querendo me comover encarando meus olhos. Senti um tremor que não identifiquei que parte do corpo percorria tomar conta. O velho tremor amigo, aquele de não ter como querer fumar. Me permiti uma segurança de distância suficiente e sentei num banco em frente a um hotel. Hotel Dom Bosco, o nome. Um dos três que ocupavam escondidos no centro o posto de remanescentes arquitetônicos da cidade. Conservavam a art déco que era moda nos anos dez, quando a elegância consistia em prédios simétricos com janelas e portas enormes, frios e localizados nos arredores do teatro. Dos outros eu nem lembro o nome agora. Desse eu lembro por causa desse dia, por causa do tapete vermelho e dos dourados nas maçanetas que lustraram muito nas quase dez décadas de estar ali. Através da vidraça enorme que dava vista pro saguão enxerguei atrás do balco da recepção um Mondrian que eu já tinha copiado nos meus tempos. Linhas ortogonais e cores prima-riamente confrontadas. As proporções da Composição dois em vermelho ainda me arrepiavam, nunca consegui imitar aquilo com uma obra minha pra vender depois como obra do Mondrian. Um carregador de malas - ar de superior por trabalhar no hotel mais decrépito das redondezas, porque mais pretensioso - veio me persuadir a deixar de manchar a entrada do hotel com a minha presença. Meu peito arfante ainda desestabilizado achou irônica a voz agradável da pessoa que o expulsava. E decidimos permanecer. A falta de fôlego trancava o resto de mim pra represálias no turbilhão. Eu não habitei a terra naqueles instantes, apenas orbitei

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a Berenice e a cena que ela preparou com cuidado pra mim. A pintura mais genuinamente atroz que já presenciei alguém fazer. O carregador, testemunha da minha tremedeira gaga, sem ar.

- Tem um cigarro aí, chefe?Sempre tentei me convencer de que as pessoas me recusarem algo

nunca significa desprezo. Às vezes eu consigo. Dura um bom tempo quando eu consigo. Mas essa não era uma dessas vezes, por isso levan-tei com a culpa tão acelerada quanto antes. Os passos de perseguidores que eu não via ribombando atrás de mim. Perfuravam meus tímpanos, urgência em não deixar que me vissem. De pingo em pingo da garoa me afastei do beco com o portão enferrujado. Pálpebras em riste para tatear nos detalhes que me condenassem. Medo de ter deixado pegadas nos lugares por onde passei. O pior foi a dupla, me rastrear o tempo todo, sempre me localizar, só esperando eu me cansar – cansar de verdade, não só sentar ofegante num banco - pra me prender por desordem pública, uma manobra pra ganhar tempo e me acusar de todas as outras coisas. Justo os dois policiais que apareceram o tempo todo fuçando a cidade atrás da minha sombra estavam à porta do meu prédio falando alto e assoviando pras mulheres que passando. Um de bigode e um fumando. Um claro alívio nos rostos quando me identificaram. Chovia e eu tentando achar as chaves de dentro dos bolsos.

Abordaram.Como sempre, houve ironia e bajulação. Palavras sobre direitos humanos

e se interessarem pelo briga do bar. Revelar que andavam acompanhando minha vida desde o comecinho desse assunto e vinham achando bem interessante. Perguntaram se minha mulher estava bem sem mencionar o nome. Eu desconcertado, só queria a chave e deixar que falassem sozi-nhos. Só queria que a chave aparecesse antes que um deles confessasse entre dentes que me prenderiam antes do final do dia. Antes que eu sequer tomasse consciência do que estava acontecendo. Só esperavam o momento e o motivo. Ou seja, era questão de um rádio interno deles lá avisar do apartamento claustrofóbico e do rastro na escada em caracol. Me precipitei ao contar umas piadas com que os dois não se animaram,

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meu punho fechado bater no ombro de um deles, só ia piorando as coi-sas, porém me divertia muito irritar esses dois. Já pouco a perder a esta altura do campeonato, perceba. A chave, vasculhava os bolsos e não encontrava a chave. Milagre, estava num bolso que fica dentro do bolso, esses jeans de hoje são foda. Abri a porta e já ia trancando quando vi um dos policiais com o bocal de um rádio. O bigode do outro num formato de sarcasmo nítido.

Não era hora, mas uma sirene estourar no fim da rua me sobressaltou um tanto suficiente pra que eu desmaiasse.

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- tá doendo mesmo, porra. se você me ajudar, eu conto da Berenice. Acho que foi mais ou menos isso que ela disse da primeira vez, não sei direito, as risadas não me deixaram ouvir direito. Da segunda vez foi mais incisiva, por isso, talvez, tenha desviado minha atenção do quanto era engraçado ela ali estirada imóvel. Ao ouvi-la reparei pela primeira vez em algo que pareceu que tinha habitado o inconsciente até o momento, bati-das espancando a porta, que estava solta das

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posto um móvel lá pra escorá-la. - Sim, sim, foi aquela poeta de merda que me mandou, mas eu tô precisando mesmo que você me leva pra um hospital, contundi algo sério aqui. Em troca eu digo o que você quiser sobre ela. O disfarce, a pesquisa, o processo de delineamento do livro, como ela planejou eu estar aqui, qualquer Coisa

que você queira. Virei as costas e boce-jando fui ao banheiro antes que ela continuasse. Eu já tinha aprendido a essa altura que o melhor caminho era ignorar esses ataques da Iliá, deixar que ela se contorcesse fingidamente até se cansar de tentar me comover. Ignoro

dobradiças e só se segurava porque eu tinha

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os malabarismos de braços que ela arruma pra chamar a atenção. Me assusto e disfarço a urgência surgida recente, solenemente dou ouvidos à insistência da porta. Num assomo de vontade de algo indecifrado Iliá berrou um endereço alegando ser da Berenice. Afasto o móvel, a porta cai para dentro do apartamento levantando uma poeira, tornados visíveis os raios de sol vindos da janela aberta, cortina corrida. E abrir a porta não é a contenção da minha vontade de sair correndo até o endereço e comprovar algo que recupera importância, rói a meus ossos por dentro. Um comichão se apodera das entranhas: não contenho, abro a porta e correr é a melhor opção. Porque tenho o endereço e agora também por outro um motivo: são os dentes dele ali na entrada do apartamento. O rosto que vinha sendo evasivo desde o andaime. A camisa manchada gotejava o piso, denunciava um rastro que pressenti deixado também no corredor, nas escadas e na cidade em frente à entrada do prédio.

Fugir com a desculpa da pressa, a primeira coisa em que veio à mente antes de ele me segurar pelo braço. Isso ou me apressar com a desculpa de fugir do Jorge. Que me segurou e perguntou aonde eu ia.

- Não interessa, é algo grande em que você não está envolvido, deixa eu passar. Tenho pressa com isso aqui.

Tampando a porta com o corpo, nojenta a camisa, que agora eu via de perto. Jorge contendo ironia com palavras pacíficas.

- Espero que você esteja querendo outro lugar que não a casa da Berenice, ao que parece ela não se mudou.

- Como assim, como você sabe da Berenice.- Jorge, me ajuda, esse imbecil me deu um soco e se recusa a me levar

pro hospital.Ele também a ignora.Meu ex-patrão volta o móvel à posição de onde eu o tirei para deixá-lo

entrar e pede com dois tapinhas sobre o tampo, quase imperceptivelmente nervoso, que eu sente ao seu lado. Se volta para a mulher tomada em frente a nós e não se levanta. Encara o meu incômodo rasgando, ao que desvio o rosto. A entrada, semi-fechada pelo amontoado de madeira, deixa ver lá fora a porta do próximo apartamento e uns sacos de lixo

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acumulado. Um pássaro súbito que plana pelo corredor emoldura a si mesmo naquela fenda da porta durante frações ínfimas de tempo. Vai uma vez, volta uma vez.

- A gente precisa conversar, tempo que não te vejo. Depois você visita ela, pode ser?

- É grave isso, Jorge, prometo que eu te procuro depois que eu for lá conversar.

Procurei jeitos, ele impedindo a passagem obstruindo a entrada sen-tado no móvel.

- Oi, Iliá, o que aconteceu com você, por que não vem me dar um beijo?O semblante dele focalizando a Iliá caída me atingem como um raio,

só nesse lampejo me ocorre o quanto o Jorge parece – vi de lado, ou seja o mesmo ângulo do rosto dele na foto - o cara lá. O cara que olhou a Berenice, sentada num capô de carro, de soslaio. Se bem que achar ele o focinho desse cara de longe pode ser só tentativa de racionalizar o fato de haver uma relação entre a pessoa que me denunciando fez com que me espancassem e a pessoa cuja identidade o cobrador denunciou quando perguntei. Pior ainda, se reconhecerem numa situação assim.

Problema deles se tinham muito o que contar. Coisas mais amplas não se resolveriam sozinhas, prescindiam de mim naquele minuto. Berenice, Berenice, Berenice, eu ocupado em desgastar o sentido do nome não me ative à conversa entre os dois recém-camaradas da vida toda. Só estilhaços das falas me perfuram e chamam a atenção.

- ... tempo que ...- ... mudou de cidade, foi incriminado ...- ... ganhou um dinheiro ...- ... para a filha ...- ... Adamastor que trouxe, depois eu ...- ...ainda tem a foto?...Tomei o impulso que me jogou aqui enquanto percebi que não me

concentraria no nome até eles calarem. Quis abstrair. Jorge pediu que eu sentasse encima do móvel também, ao lado dele. Cuspia enquanto falava de perto. Tomei o impulso logo que ele começou a percorrer meu corpo

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com os dedos – um vai-vem chato entre a perna e o pescoço - como quem quer nada. Desprevenido onde se sentara. Ao que se irritou com o meu impulso. Isso eu até confesso, minha intenção ao empurrá-lo nesse instante foi sim afastá-lo para eu poder sair e encontrar a Berenice de uma vez. Agora, a culpa não é minha se ele tomou tão a mal um empurrãozinho amistoso que só quis deixá-lo a vontade com a Iliá. O meu desconforto fez as vezes de ofensa do Jorge. Achou mesmo que era agressão e retri-buiu com um soco. Acumulou mais socos na minha barriga. De onde veio essa fúria dele? De pé já os dois: cuspiu a palavra vadia quatro vezes, a expressão falta de consideração duas vezes, mesmo número de vezes que usou o termo proíbo. Acusava de algo que eu nem lembro, aquela camisa imunda ali, quase encostou em mim quando ele fez menção de mostrar que ter dois braços sempre serve pra empurrar alguém direito.

O que pra mim sempre será legítima defesa foi o meu desvio. Jorge empurrando o ar e logo o nada. Minha participação nessa cena foi só tirar o corpo. A vidraça trincou e a moldura de ferro da janela amassou no ponto em que ele tentou se agarrar, já caindo.

Três segundos de silêncio até o baque. Me surpreendi nesse dia com quanto o meu apartamento é alto e fica longe da calçada. Com vontade de fazer pouco barulho, enganar a Iliá para ela não perceber que eu estava saindo pra encontrar a Berenice.

Compromisso inadiado, a hora era exatamente essa: de vê-la e de decidir se era uma fuga ou não o que eu estava prestes a empreender com isso. Não acompanhei a trajetória do Jorge, porém desconfio que se calar durante a queda foi resignação.

E Iliá passou a alternar gritos de auxílio. Uma ajuda pedia pra ela, a próxima ajuda era pra me criar remorsos e descer e ajudar o Jorge, ver se o corpo dele estava incólume e respirando. Bufei de pressa e ironia. O próximo berro: levá-la a um hospital, o outro: não negligenciar nosso amigo mútuo.

É, tem muito de negligência aqui. Antes do final eu fui sabendo mais da Berenice e menos de escrita, e menos até das minhas próprias pala-vras. Mesmo antes dessa briga não-intencional eu fui ficando mais fora

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de ordem, menos centrado. Perdi minha visão de gente como ângulos e retas, agora pra mim qualquer um é só um borrão; pode ser quem for, se você me apresentar alguém nesse exato instante, não vou poder escapar à merda de noção difusa e indistinta com que agora filtro as pessoas. Muito de negligência. Nunca voltaria ao apartamento mesmo. Não, não voltaria ao meu, ao da Berenice já confirmei que voltaria sim. E porque eu nunca voltei minha aproveitadora e amiga ficou lá: descobri pela boca do juiz que a Iliá morreu. Sem pena, o Juiz só cérebro devia acumular a este cargo o cargo de anunciador de mortes, ele foi perito em diluir o impacto que eu senti ao receber a notícia no impacto que eu senti ao ser preso injustamente. O próprio tribunal, comprado de má-fé desde o princípio desses absurdos que a poeta me fez passar só pra sei lá o quê. Só pra satisfazer a arrogância dela achar que pode ser alguém às minhas custas.

Uma das explicações que me veio foi a que a Berenice depois tentaria sugerir em um escrito que eu achei solto. O único escrito que eu achei inclusive: dentro da casa escotilha eram as únicas palavras que ela escre-veu, o resto era de autores. A sugestão dela é que das duas uma; ou ele me amava, ou ele sentia um ciúme doentio dela. E isso ele sempre sentira.

Da casa escotilha vi sempre um fundo de mar, alheio ao mundo porque um mundo em si. Com corais por entre os quais nadam peixes de cores. Mínima vontade de descrever e menos de escrever; ando preocupada com os ciúmes da multidão em relação a ele. Sentimento mortífero para o peito foi acometer logo o Jorge meu, que eu tanto amo e que me ama de volta, do jeito tortuoso dele, mas até que ama. Não sei se o pobre ama de verdade o meu sujeito da enunciação ou é só ciúmes. É fato que ele sempre quis a maioria das coisas que eu tenho. Começou a pintar por causa disso, inclusive.

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A porta era exatamente a mesma da outra vez, enferrujado portão e hera galgando as paredes a procura de um céu. Bati palmas que ecoaram pra ninguém, ao que obviamente resolvi entrar: pulando o portãozinho e escalando a escada encaracolada. Formigas se deliciavam em debruçar-se sobre um filete vermelho, língua fina escorrendo da boca do beco. Action painting mesmo eram as gotas da mesma cor, qual estalctites dos degraus. Encorpadas, lentamente atingiam o solo, para deleite das

antenas das minhas amiguinhas. o lugar tão frio quanto eu lembrava, o metal da escada estar gelado retraiu meus dedos. Se alguém cozinhava nas redondezas, o cheiro acre repelia, de fogão deixado aceso sem nada em cima. Já subi com a consciência de que a porta escancarada e as pegadas impressas no chão de madeira eram minhas culpas. O sol não entrava por um basculante à esquerda da entrada. Nem por alguma fresta sob a porta, era barrado pelas telhas de zinco que eu quase podia tocar, estando no topo da escada. Como um hálito do dia a dia, um resquício de guardado se misturava ao pinho sol que se misturava à naftalina e ao cheiro de

tem um isqueiro aí, Chefe? 17/06

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queimada, que juntos se sobrepunham a um incenso que vinha de uns dos quartos. Não do dela, porém: o dela eu sempre intuí bem ou mal onde ficava. Corredor já estreito ainda mais oprimido, por estantes atulhadas de todo tipo de livro e revista, novo e desconjuntado. O teto baixo escon-dia um alçapão no fim do corredor. O teto baixo em que a parte de cima das estantes fazia cócegas. O teto baixo, a grande desculpa do lustre. Sirenes ainda não, daqui a pouco. Tem tempo ainda antes que elas atroem se aproximando perigosamente dos meus calcanhares, adentrando a rua. Tempo, por exemplo, suficiente para eu não achar o interruptor e derru-bar uns quantos livros ao tatear as estantes paralelas que emolduravam o corredor. A cabeça rente ao teto, quase colidindo, era eu em tempo de, pela ameaça de dor, pensar em desistir de explodir. Fui em frente, à frente da lufada de vento que a porta da casa permitia. Acertei com a cabeça um lustre que tornava o cômodo mais baixo ainda, tropeçando em meio aos livros ladeando o vão escuro, me apoiei no primeiro fragmento de parede que consegui tatear, era um interruptor por fim. Os cristais tilin-tar e retalhos de luz balançar. A sala tornada um caleidoscópio. Cheguei a considerar ser auto-consciente três meses e duas semanas antes de ouvir essa música pasteurizada. De natal repetida à exaustão meio alta plágio nauseante de outras tão iguais a esta quanto ela mesma. Um midi que destoava de como as linhas eram aconchegantes agora que eu enxer-gava mais que vultos de livros. O meu corredor bastante fundo, de bas-tantes portas, duas paredes que se encontravam o infinito e eu no meio. Fora o abismo em que habitava nesse instante, abismo dentro e fora de mim, tudo mais me era comum com a Berenice. Como se aquele cheiro que finalmente intuí ser gás de cozinha já estivesse previsto e nosso conhecido em comum. Compartilhamos características que ela inventou quando me delineou. Eu mudei o livro e a Berenice, ela mudou a mim e ao livro, o livro nos mudou: e um enredo sem ensaio e uma platéia diante do palco vazio. Ator e gestos, autor e obra. Tio, sobrinho, subproduto: o que eu era da poeta e o que eu era da poesia, meus passos entre o teto que me roçava a cabeça e o chão de tacos só me deixavam me enganar. Porque saber eu não sabia, o que era pra dizer à Berenice ela tinha supri-

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mido do livro. Deveu estar na página que destacou-se outonalmente amarelada das outras e buscando indepedência em relação à história permitiu-se alcançar o chão. Apagamentos provisórios de capítulos de mim, sobre os quais eu improvisava um esboço da Berenice, minha poe-tinha que me interessava tão pouco a essa altura que eu tremia à simples sugestão que o ar passando fazia do seu nome. Continha, contive por um tempo esses impulsos pra não me decepcionar se ela não estivesse ento-cada na sua escotilha. O esquisito é que ela estava lá. Minha presença chapinhava na trilha vermelha estranhando. A esta altura eu identifiquei o cheiro como de gás de algum fogão em torno. A música parecia uma de carrossel ininterrupto, um bipe digital, logo outro bipe mais agudo, logo outro; todos imitando voz humana feliz e fraterna. Lampejo fatídico: a Berenice estava no quarto em penumbra no final do corredor, não em qualquer outro cujo sol se infiltrasse indireto por entre as frestas das janelas interditadas: por tábuas e pregos, por cobertores e poeira. Embora numa ordem invejavelmente anárquica, a arrumação desses quarto obe-decia a uma ordem prévia bonitinha que não me detive em decifrar. Só senti na carne o efeito da disposição metódica dos porta-retratos, dos sofás, dos papéis sobre as escrivaninhas, das máscaras tribais africanas penduradas, do quadro do Bosch que eram aquelas sombras projetadas. Eu enxergava as coisas de relance: o canto do olho captando fugidio descrições da poeta que me descreveu. Eu farejando gás mais forte a medida que. E pensar que achei que ela talvez tivesse esquecido aberto por descuido. Aqueles desenhos animados antigos mostram a comida soltar uma fumacinha que era o cheiro, e o cheiro na forma de uma mão branca grande que puxa os personagens pelo nariz. A mão branca e grande ali na casa que eu supus ser da Berenice era a combinação do cheiro plano e inerte do gás me embebedando mais o rastro vermelho que era pegadas no assoalho mais o ensurdecimento natalino. Adentrei a gruta em que ela viveu tão fundo que minhas mãos na intempérie da parede pressentiram que era minha autora no próximo cômodo. Já passara da cozinha e do resto do lugar: a origem da mão invisível de desenho ani-mado que me puxava era o quarto que sobrou pra ver. O quarto a frente,

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coincidentemente o que finalizava o corredor abissal. O meu esgar de felicidade não se confundia com um sorriso, um formato em que meu rosto estancou antes de cruzar a porta semi-aberta. Empurrei buscando naufragar em respostas. A luz penetrava da janela aberta, atravessava as cortinas que esvoaçavam por culpa de um vento que disseminava o urro tétrico da cidade todo pra dentro dali e tecia uma superfície dourada e impermeável sobre a cena, um manto que no começo me impediu de apreendê-la toda de uma vez. Aos poucos a poeira luminosa baixando me permitiu reparar nos detalhes que a Berenice se esmerara tanto em posicionar no lugar exato. Cada detalhe com uma ordem de entrada no meu campo de visão. Primeiro a mesinha de canto tombada, em seguida os livros que deveram estar apoiados na mesinha formavam uma trilha até o próximo elemento da cenografia que ela preparou pra mim, uma lagosta de plástico pendurada na parede com seus piados elétricos dava o tom natalino à cena, mexia a cauda enquanto cantava: vítima de uma convulsão abria a boca também. Então é natal, ano novo também... Uma composição hiperrealista, confesso que o próximo que eu vi não era lá muito relevante, os dedos da minha querida poeta, tão no chão quanto o resto do corpo dela, exibiam anéis. O cano de gás arrebentado emitia um chiado que só percebi ali de perto. O roxo aberto da concussão na testa dela vazava vermelho, as duas cores se opuseram ao amarelo onírico da composição. Relâmpago esmaecido. De linhas bruscas formando uma caligrafia toda nova, o vermelho ainda escorria recente sob a pele des-valida do rosto e desaguava manchando as roupas e o chão. A linha da boca semi-abria, o braço num ângulo oblíquo, a torção das feições; nada disso desfez meu esgar de felicidade, aliviado suspirei com resignação diante da prova contundente das minhas teorias. Sem rastrear o quarto por bilhetes de despedida ou evidências: o que eu senti e achei desde que a conheci estava comprovado por aquela posição de gargalhada. Porque ela morrer só pôde ser pra rir de mim e da minha prisão iminente que também já devia ter sido arquitetada pela Berenice; igual ela fez com as minhas falas e com os meus sentidos até aquele justo átimo em que o sarcasmo daquela morte me fez dar uma risadinha, só pra acom-

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panhar a gargalhada dela mesmo, e a risadinha foi aumentando até chegar a uma convulsão tão ou mais estrondosa quanto à do corpo. Ela que ria tanto de ter me arquitetado, eu que ria tanto por ter ido por água abaixo. Tanto que caí sobre o corpo estendido. Me incorporei rápido, pele morta dá nojo. Refreei a vontade de cuspir na cara dela e acender fósforo comigo dentro do apartamento, aproveitando que o gás grátis estava ali à disposição. Refreei, negligenciei, me furtei, aderi e fingi: tudo muito antes do meu corpo apressado varar as ruas veloz crente que podia pro-longar o alívio que a morte dela me proporcionou.

No entanto não, só me coube, tive isso escondido da minha consciência o tempo todo, desfrutar daquele fôlego ali nos dois, três segundos de hiato entre a morte da autora e a gargalhada da obra, que iria presa em breve.

Uma sirene no começo da rua me sobressaltou um tanto: perdi esse instante de liberdade que ela me deixou de herança.

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Este livro foi impresso pela gráfica impressões em papel pólen soft 80g/m2 feita pela Cia. Suzano, São Paulo

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