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Gabriela Doninho

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Gabriela Doninho

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Exp

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iente Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Comunicação Social - Jornalismo Vias de Mão DuplaGabriela Doninho Rosa Orientação Editorial: Marcos CripaOrientação Gráfica: Valdir Mengardo Projeto Gráfico: Ivanir dos Santos Júnior Faculdade de Filosofia, Letras e Artes - FaficlaRua Monte Alegre, 971 - PerdizesSão Paulo - SP Novembro - 2012

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AgradecimentosAcabou uma fase, muitas outras estão por começar e eu tenho uma sorte tremenda em realmente poder dizer que nunca cheguei a lugar algum sozinha. Brindemos!Silvana e Carlos, as pessoas que passaram por coisas que apenas nós três sabemos e me ajudaram a chegar até aqui. Os melhores pais do mundo. Obrigada, meus melhores amigos!Neuza e Branco, vovô e vovó, as inspirações da minha vida. Obrigada por terem me dado, dentre tantos valores, aqueles que eu encontrei para escrever este livro. Ele é para vocês.Cripa, o orientador que tanto me puxou as orelhas. Obrigada professor e amigo, por ter me mostrado o quanto eu poderia ir longe. Foi uma batalha vencida, eu confesso!Letícia, Laís e Paty, cadê a Gabi? “Tá debruçada sobre o TCC e não tem tempo mais para nada”. Compreensão foi pouco para este ano e ninguém traça um caminho sozinho. Eu nunca vou parar de agradecer.Vinícius, Marco, Marina, Júlio (sim, eu tenho muito irmãos), Diego, Filipe, Bruno, Vi e Juninho (irmãos de sangue e coração), obrigada por me fazerem rir, essa foi a parte mais importante de todas.Celina e Tânia, duas das principais pessoas que fizeram parte do meu livro. Não me lembro de já ter aprendido tanto. Tudo o que vocês me disseram – e ainda me dizem – me fez enxergar muito mais além do que eu achei que poderia. Muito obrigada.Carol, Isabel, Maria, Bruna e Bárbara, as minhas meninas, e Renan, que madrugou nos textos comigo. Meus eternos companheiros de sala. Existe um pouquinho de vocês na jornalista que se forma agora. Vamos para o bar?Aos companheiros de teto Bia, Aline, Lubs, Carol, André, Marcelo e Marjory, qualquer história aqui iria longe demais. Deixa pra lá e vamos pedir uma pizza.À minha segunda família, aquela que eu formei aprendendo a ajudar os outros e ajudar a mim mesma. Não vou citar nomes aqui, todos vocês estão comigo. Obrigada por essa nossa mania de aprender e ensinar juntos. Obrigada por todos as crises de nervoso que vocês me viram ter. Rotaract e Interact, juntos, obrigada por terem me feito uma pessoa melhor.

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ÍndiceO Tema e eu..........................................................4O Voluntariado......................................................8A Educação..........................................................12A Educação II.......................................................15Tempos Modernos...............................................23De onde vem a força............................................33Ideias Móveis.......................................................36Lidando com adultos............................................44Por um método mais metódico............................53O homem que queria casar..................................62O garoto que não escrevia direto.........................67As dores no corpo...............................................73Um quadro mais complicado...............................77Para terminar.......................................................85Bibliografia...........................................................92

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O Tema e EU

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O Tema e Eu

A realização de um trabalho de conclusão de curso é um fardo bastante grande de se car-

regar, afinal de contas, escolhemos a profissão da melhor maneira possível e, neste mo-

mento, temos que mostrar que não vivemos estes quatro anos de graduação em vão e que

temos bagagem suficiente para a entrada definitiva no mercado de trabalho.

O mais inesperado de tudo, porém, foi a carga de descobertas desta jornada. Pode ser um

mal de todas as profissões, mas acho que um TCC de jornalismo é mais difícil de fazer do

que os das outras áreas, já que passamos todos os anos da faculdade aprendendo justa-

mente a nos comunicar e escrever com perfeição. Tivemos bons professores, moramos em

uma cidade que nos dá todo o suporte, estagiamos e realmente não existe desculpa algu-

ma para um trabalho fracassado. Passamos apuros, levamos chás de cadeira de entrevis-

tados, mudamos todo o trabalho que dissemos para o orientador que seguiríamos à risca.

O meu trabalho sofreu ainda mais mudanças do que se pode imaginar. Começou ano pas-

sado, 2011, em conversas sem fim sobre um tema que, ao final das contas, percebi que não

fazia sentido algum. Passei todo este ano correndo atrás do prejuízo e do tempo perdido,

aprendendo que às vezes uma madrugada de concentração e vontade de trabalhar – e,

não posso mentir, uma carga enorme de pressão – rendem mais do que um mês inteiro de

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sossego.

E este tema não caiu no meu colo de paraquedas, assim como não aconteceu com o jor-

nalismo e nem com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Todos foram escolhi-

dos a dedo dentro dos meus limites, para todos contei com apoio e conselhos de muitas

pessoas. E é com imenso orgulho que apresento um trabalho que agora faz parte de mim.

O trabalho voluntário sempre me atraiu bastante, fosse pela admiração ao perfil das pes-

soas que costumam desenvolvê-lo, fosse pela sensação que ele proporciona. Posso dizer

que voluntariar é o trabalho mais obrigatório que eu já pude conhecer, com a diferença de

que a obrigatoriedade aqui não é algo pejorativo.

Percebi nas pessoas com quem conversei uma sensação bastante difícil de descrever.

Poesias à parte, é quase como se aquilo fosse um pedaço do corpo, uma coisa praticamen-

te vital. Afinal de contas, os mais pacíficos que me desculpem, mas não há nada pior do que

decepcionar o próprio eu e o voluntariado é muito mais uma cobrança de si para si próprio

do que um compromisso firmado com o chefe da empresa. É uma coisa que simplesmente

ninguém pode fazer por você.

Espero poder passar a partir daqui grande parte do que senti e do que vivi durante esses

meses do meu último ano da faculdade. Espero também que tudo que vem escrito daqui

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pra frente possa fazer um sentido maior para quem se dispuser a ler e que estas pessoas

acompanhem comigo passo a passo dos momentos em que passei a me sentir jornalista.

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O Voluntariado

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O Voluntariado

A economia do país tem sofrido árduas mudanças e não é de se espantar que com isso

surjam novas vertentes de trabalho. Também conhecido como Terceiro Setor, o trabalho

voluntário aparece traçando um caminho que, de acordo com Ayres (2001), une os fins

universais do Estado com a eficiência da ação empresarial.

Pode-se citar os programas específicos que organizam e direcionam pessoas que querem

participar do Terceiro Setor. O Instituto Voluntários em Ação, por exemplo, surgiu em 1998

na cidade de Florianópolis, com a intenção de difundir a cultura do voluntariado e atrair

cada vez mais pessoas para ajudar os necessitados. Em 2008, dez anos após sua funda-

ção, o grupo criou um site (http://voluntariosonline.org.br/) que procura unir aqueles que

querem ajudar com qualquer tipo de ONG que precise de auxílio.

Ayres ainda cita em seu artigo a seguinte passagem: “a articulação em rede existe desde

a criação dos primeiros Centros de Voluntários, a partir do ano de 1997. Estes Centros

surgiram como frutos de uma estratégia do Programa Voluntários do Conselho da Comu-

nidade Solidária em tê-los como organizações de referência para o voluntariado no Brasil,

procurando aproximar potenciais voluntários das necessidades de ação na sociedade. O

Programa Voluntários, além de estimular a criação dos Centros de Voluntários, ainda finan-

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ciou os três primeiros anos de atuação dos dez primeiros Centros, através de um convênio

com o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Apesar disso, os Centros de Voluntários

sempre foram autônomos em sua tomada de decisões estratégicas sendo totalmente livres

para articularem seus próprios relacionamentos.”

E, assim como os que se enquadram nestas redes, existem aqueles voluntários que podem

ser chamados de “autônomos”, ou seja, que procuram saber de locais que precisam de

qualquer tipo de apoio e planejam seu próprio sistema de ajuda. A campanha Free Hugs¹ –

Abraços Grátis, por exemplo, surgiu na Austrália em 2004 e conquista pessoas por onde (li-

teralmente) passa. Em entrevista com alguns jovens participantes do movimento que atuam

constantemente na Avenida Paulista, pode-se perceber que a maioria possui certo tipo de

vínculo, fazendo com que os atuantes sejam de círculos de amizades que se cruzam. Po-

rém, isso não é uma regra. Alguns dos jovens ali presentes disseram ter descoberto a data

e o local do movimento e aparecido ali para prestar ajuda e participar.

Dentre “abraçadores”, ainda pode-se ouvir histórias de adolescentes envolvidos em cam-

panhas de prestação de servidos em prol de moradores de ruas e em movimentos que se

dedicam a providenciar bons tratos e abrigo a animais abandonados. A maioria dos jovens

que quis falar rapidamente sobre o assunto (já que havia muitas pessoas para abraçar)

relatou conhecer pessoas que participavam das tais campanhas e a partir daí resolver co-

nhecer e ir ajudar.

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Os casos que aparecem daqui por diante não são sobre pessoas que decidiram participar

de campanhas ou grandes movimentos. Também não mostram grandes projetos conheci-

dos e, na maioria das vezes, sequer contam com um número significativo de pessoas. As

histórias aqui citadas, como o

1: O movimento Free Hugs consiste em grupos de pessoas que se reúnem em centros que costumam ter um

fluxo grande de transeuntes e, com cartazes, placas e muita alegria, oferecem abraços a desconhecidos.

leitor pode perceber ao longo desse trabalho, não contam com ativistas sociais e muito me-

nos com pessoas que possuem um currículo vasto de experiências em voluntariar, sendo

que em muitos dos casos, os próprios entrevistados se surpreenderam um pouco com o

fato de que o que eles fizeram pudesse ser considerado uma ação social ou algo que vá

além de um simples favor a alguém que estava precisando de ajuda.

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A Educação

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A Educação

Educação: s.f. Ação de desenvolver as faculdades psíquicas, intelectuais e morais: a edu-

cação da juventude. Resultado dessa ação. Conhecimento e prática dos hábitos sociais;

boas maneiras: homem sem educação. Educação nacional, conjunto de órgãos encarrega-

dos da organização, da direção e da gestão de todos os graus do ensino público, bem como

da fiscalização do ensino particular. Educação física, conjunto dos exercícios corporais que

visam a melhorar as qualidades físicas do homem.

De início, a educação no Brasil era apenas uma questão de boa educação, de enquadra-

mento do homem nos parâmetros do que se chamava de caráter civilizatório. Com o passar

dos anos, foi-se percebendo que a questão da alfabetização e do ensino vai muito além de

vaidade da classe financeiramente abastada e é um dos elementos mais importantes para

que uma sociedade tenha progresso.

De acordo com Paulo Freire em “A Pedagogia do Oprimido”, considera-se a educação a

chave para libertar o homem. Utilizando as palavras do Professor Ernani Maria Fiori, “em

sociedades cuja dinâmica estrutural conduz à dominação de consciências, a pedagogia do-

minante é a pedagogia das classes dominantes”. Isso traz à tona toda uma discussão sobre

as diretrizes que um homem precisa para realmente se inserir em uma sociedade que o

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considere livre, fazendo com que a pedagogia torne-se também uma parte da antropologia.

Faz-se da educação a humanização do mundo.

O intuito deste trabalho não é aprofundar-se em pesquisas sobre os fundamentos educa-

cionais da sociedade, mas sim expor algumas situações cotidianas que acabaram sendo

transformadas pela força de pessoas que dispuseram de tempo e força de vontade para

ajudar outro alguém a, de certa forma, tornar-se livre.

Este livro mostra que a genialidade de unir a pedagogia com o trabalho voluntário está

justamente em sair da zona de dependência, seja ela dos governantes, da legislação ou

até mesmo da ideia que enquadra os parâmetros tradicionais do educar. Após um rápido

mergulho através da história do Brasil, expõe-se aqui algumas histórias de alfabetizados e

alfabetizadores que encontraram um novo caminho para seguir.

“O homem (quando encontra a educação) substitui o envoltório protetor do meio natural por

um mundo que o provoca e desafia” – Professor Ernani Maria Fiori.

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A Educação II

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A Educação II

Começando do começo

De acordo com sites referentes à área e livros de pesquisa¹, a educação dentro dos mode-

los tradicionais chegou ao Brasil em 1559 – quase 60 anos após os portugueses colocarem

seus pés aqui – e, somente então, começou a ser reconhecida.

Como estudado na escola, os padres jesuítas, quando adentraram o país, fizeram-no com

uma missão civilizatória, visando converter os habitantes locais à fé do catolicismo, que era

considerada uma das únicas verdades absolutas da época.

Feitas em anexo às ocas, as “escolas” eram fabricadas com matérias simples e serviam

como palco para os indiozinhos aprenderem o português – de Portugal – e o espanhol, visto

que alguns dos padres vinham da Espanha. Além da alfabetização, ainda eram concebidas

ali operações como o teatro e o canto, que também eram úteis na hora de catequizar.

Por ser um método completamente imposto, a catequização dos nativos gerou alguns im-

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pactos, fazendo jovens adolescentes (talvez os primeiros rebeldes brasileiros) se recusa-

rem a assistir às aulas e algumas mães preferirem refugiar suas crianças no meio da mata

a fazê-las passar pelo horário de ensino.

1: http://www.brasilescola.com/educacao/educacao-no-brasil.htm

Apesar disso, a educação na colônia continuou. Tornando-se ainda mais cara, pois tinha

que arcar com os alimentos, vestes e remédios dos índios, a catequização começou a en-

volver também crianças brancas, sendo elas órfãs portuguesas e filhas de pessoas da alta

sociedade colonial.

Sendo assim, o primeiro colégio brasileiro foi fundado em 1564, na Bahia, em sistema de

internato e sem espaço aberto para nativos indígenas. Após passarem onze anos reclusos,

os alunos ainda podiam ingressar na universidade, chamada na época de Além Mar. Ape-

sar de carregar certo status, este último degrau da educação não era tão necessário quanto

se tornou posteriormente. Saber ler e escrever já era um grande diferencial acadêmico.

Um dos pontos que vale a pena ser ressaltado neste momento – girando ali pelo ano de

1577 – é a dificuldade que alunos e professores encontravam para difundir a educação.

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Em tempos de iPads e impressoras é bastante difícil calcular o grau de trabalho que encon-

travam os contemporâneos da pena e do pergaminho, apesar da ciência absoluta de que

ele existia.

Em carta enviada à corte, um dos mais conhecidos padres jesuítas dos livros escolares,

o Padre Anchieta, reclama das dificuldades da vida de um catequista, que contava com

horas de sono a menos e trabalho em demasia. Para cada aluno que estivesse em sala,

uma cópia da lição precisava ser feita, não só à mão como também à pena e tinteiro e, evi-

dentemente, sem quaisquer erros ou borrões. Era a época em que, de acordo com Neuza

(uma das pedagogas entrevistadas para o trabalho) se buscava a perfeição acima de tudo.

Como método de ensino, os padres usavam a repetição das informações, que eram tes-

tadas ao longo de provas periódicas. Era função do aluno, e apenas dele, colher toda e

qualquer informação sobre a aula que achasse relevante e, a partir daí, montar seu próprio

manual de estudo.

Do mesmo jeito que a chegada dos padres jesuítas fez um marco na trajetória da educação,

a saída deles fez outro, acerca do ano de 1759, sob o comando do Marquês de Pombal. Em

busca de fortalecer o absolutismo de seu governo, o Marquês expulsa os padres do Brasil,

diminuindo assim a influência causada por eles.

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A partir daí, dá-se início a epopeia: A Educação Comandada pelo Estado.

Agora, concursados e assalariados, os professores do país têm uma mudança brusca em

seu material didático, já que os livros jesuítas encontram-se proibidos.

O foco da escola continua não sendo a universidade (que, quando buscada, leva os alunos

a embarcarem para Portugal), já que a maior parte dos formandos ainda passa a se dedi-

car à agricultura, à Igreja e ao funcionalismo público. Dentre os possibilitados de estudar

estão os filhos de autoridades como capitão-mor, senhores do engenho, trabalhadores da

área da saúde, militares e de pai desconhecido – encaixando nesta última ala os frutos dos

compromissos ilegais de padres com mães solteiras.

Obviamente que, até este momento, em parte alguma se incluiu a educação das mulheres.

Meninas, naquela época, eram mantidas em casa e educadas pela mãe ou, em falta desta,

pela ama de criação.

Dentre os itens de estudo, tarefas domésticas, como corte, costura e culinária são bastante

presentes, ao passo que a escrita é praticamente nula. Em suma, a verdade é que a parte

feminina da sociedade apenas era treinada para saber ler o necessário para cuidar da casa

e dos filhos, não necessitando assim de cartilhas ou penas.

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Aos poucos, com o passar dos anos e a influência de mulheres como a Marquesa de San-

tos, que ignorava as tradições e enviava para a corte cartas feitas pelo próprio punho, este

quadro vai se modificando.

Em 1827, são criados colégios especiais com salas também para meninas, sendo estas

ensinadas apenas por pessoas do sexo feminino. Estas escolas, que existem apenas em

cidades desenvolvidas e bastante povoadas, propagam um novo método de estudo. Agora,

cada aluno também é um pouco professor.

O método se torna mútuo: após receber a carga de conhecimento, o aluno fica responsável

por passar aquilo para o colega, o que divide a sala em grupos de dez pessoas, separadas

por nível acadêmico. Este modo de ensino era agregado apenas a colégios masculinos,

visto que os femininos possuíam um número bem menor de estudantes.

A partir deste ponto, a evolução das escolas começou a correr. Colégios masculinos pas-

saram a ensinar latim, gramática, grego, física, botânica, astronomia e mais matérias que

levassem o aluno à reflexão e à sede de conhecimento. Assim que formados no colégio, os

meninos poderiam ingressar para as faculdades de medicina, direito ou engenharia. Este

foi um dos pontapés para o início da educação privada.

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Livros importados começam a fazer parte das escolas laicas tanto quanto dos colégios

femininos. Muitas das escolas chegam com a intenção de viabilizar mentes instruídas para

trabalhar na economia atual do país, como aconteceu na época do café.

Em 1889, com a tão efervescente Proclamação da República, o governo interfere um pouco

na educação do ensino primário e, acompanhando um pouco a revolução e pensamentos,

a mulher acaba por se inserir mais ainda no quadro, tendo a opção de cursar o Ensino Nor-

mal também como alternativa viável em contrapartida ao casamento e a ofícios tidos como

exclusivamente femininos (lavadeira, parteira).

Criada essa nova maneira de pensar, as coisas começam a tomar um pouco mais da for-

ma que são hoje em dia. O cidadão masculino alfabetizado ganha direito ao voto, crianças

menores de sete anos já podem frequentar a instituição de ensino e outras ciências entram

na grade estudantil do aluno, que agora é visto como o centro da escola. A partir daí, a

matéria tende a ser explicada de uma maneira diferente, chegando cada vez mais perto da

realidade vivida pela criança.

Indo por este viés, são criadas as escolas profissionalizantes, por volta do ano de 1942, ar-

rastadas pelo aumento das indústrias de base no país. É aqui que surge o Serviço Nacional

de Aprendizagem Industrial, conhecido hoje em dia apenas como SENAI.

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Os anos de 1950 e 1960 já partem de outro ponto de vista, acompanhando a rápida evo-

lução do Brasil e a chegada da tecnologia. Aos pés de uma sociedade ainda cercada de

adultos analfabetos, os tempos modernos tentam acabar com este quadro, com a intenção

de viabilizar cada vez mais mão de obra trabalhadora capacitada.

Com o crescimento da vida social e política, começam a adentrar novas maneiras de

alfabetização, como os ensinamentos de alguns mestres. Um dos marcos educacionais da

época é a inserção de cortadores de cana no mundo da escrita e da leitura feita em apenas

45 dias por Paulo Freire. O educador então passa a participar mais ativamente da reformu-

lação do quadro educativo brasileiro.

Anos de 1960 vão, ditadura vem, e as coisas se tornam mais radicais, tendo em vista o exí-

lio de Freire. Agora as lutas por um ensino público mais abrangente e demais movimentos

sociais fazem parte dos itens reprimidos, da mesma maneira que disciplinas consideradas

reflexivas, como História e Geografia. Cartilhas militares e o Mobral (Movimento Brasileiro

de Alfabetização) passam a ser os responsáveis pelos analfabetos. Neste momento tam-

bém são criados o vestibular como porta de entrada para o ensino superior e a obrigatorie-

dade escolar de oito anos.

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Passada a época militar, chega-se enfim mais perto dos dias de hoje, com a entrada do

ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e do Prouni (Programa Universidade para To-

dos).

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Nos temposmodernos

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Educação

Hoje em dia, nos dias de hoje

A educação nos dias de hoje é outro assunto bastante discutido, tanto pela imprensa quan-

to pelos políticos e, consequentemente, pela população de uma maneira geral. Para falar

rapidamente do assunto, a pedagoga Maria da Luz Milan passa por alguns pontos do tema.

De acordo com Maria, um dos principais problemas do processo educacional no nosso país

é que os alunos (principalmente os dependentes da rede pública de ensino) têm pouca ou

nenhuma convivência com a língua escrita, ou seja: não leem a não ser que sejam obriga-

dos.

Mesmo nas redes de ensino privadas, que geralmente contam com livros mais coloridos,

dinâmicos e atrativos do que os da rede pública, o aluno encontra certa rejeição ao ato de

retirar um exemplar da prateleira, abrir e começar a lê-lo. Podem culpar a televisão, a in-

ternet, os videogames, o excesso de atividades que a criança tem por dia (judô, natação,

ballet, inglês, xadrez, francês, informática, pintura, dança), a má alimentação, a quantidade

exagerada ou reduzida de sono, o estresse do dia a dia ou o que quer que seja, a verdade

é apenas uma: as crianças das gerações mais recentes não têm o hábito de ler, não conse-

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guem desenvolvê-lo nas escolas e não recebem esse exemplo dentro de casa.

Vários fatores podem ser analisados. Ao mesmo passo que os livros são associados aos

estudos (pouco atrativos), a leitura exigida para as provas de vestibulares que dão ingresso

à faculdade é, grosso modo, bastante maçante. Professor e aluno acabam por entrar em

um confronto entre o que é necessário e o que é entediante e nenhum dos dois lados se

favorece.

O resultado é que a criança que pouco lê chega ao quinto ano do ensino fundamental mui-

tas vezes não alfabetizada, o que acarreta uma deficiência em todo o processo de estudo

que vier daí para frente: ela lê mal, evita fazê-lo e acaba por nunca tornar disso um costume.

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Mas a culpa é da escola?

Ou é dos pais?

Essa é uma daquelas discussões que faz um looping eterno na mente de quem nela se

envolver.

Antigamente as coisas eram bastante claras: o professor ensina, o pai trabalha e a mãe

cuida da casa, das refeições, das roupas, da educação e dos cadernos e lições de casa

dos filhos, salvo raras exceções. Pode ser que alguns pais, com a inserção ativa da mulher

no mercado de trabalho e com o aumento da carga horária para ambos os lados, acabam

por participar menos da vida estudantil da criança. Claro, não se pode esquecer de somar

a isso fatores como a dificuldade de locomoção nas cidades grandes, a lentidão do tráfego,

o aumento do valor financeiro de alguns produtos (que, muitas vezes, passam da categoria

de úteis para a categoria de extremamente indispensáveis) e aquela série de atividades

que as crianças acabam por desenvolver durante o dia (judô, natação, ballet, inglês, xa-

drez, francês, informática, pintura e dança). O envolvimento dos pais com a criança acaba

por se tornar também uma questão de investimento financeiro, o que leva ao trabalho árduo

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e à necessidade de se fazer jus a ele.

A escola, aquela mesma que nasceu com os Padres Jesuítas e a missão de alfabetizar os

índios, hoje em dia vai muito mais além. Cabe a ela receber, aconselhar, alimentar, vestir,

encaminhar para profissionais da área da saúde e, além de tudo isso, também alfabetizar,

plantar a semente da cultura e direcionar para o ensino superior. Necessita-se de merenda

para os muitos que conseguem apenas se alimentar ali ou, pelo menos, de uma boa cantina

que supra tudo aquilo que os responsáveis pela criança ofereceriam em casa. Necessita-se

de uniformes, que hoje em dia compreendem calças, camisetas, roupas de frio e de calor.

Necessita-se também que cada professor tenha condições psicológicas para lidar com os

diferentes tipos de crianças, além de conhecimento suficiente para saber relacionar com

aquelas que, por alguma razão, apresentam diferenças drásticas das demais. Problemas

como o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) são bastante frequentes,

assim como aqueles que são encontrados em alunos que têm problemas em casa. Cabe

ao professor, ao coordenador e a todas as pessoas que fazem parte do universo da criança

dentro da escola a notarem esse tipo de problema, assim como qualquer problema de saú-

de, e saberem enviá-la a algum profissional especializado.

De acordo com Fiori, a missão do professor também não é apenas repassar o conhecimen-

to, colocando o aluno na posição petrificada de quem é ensinado e nada tem a ensinar, e

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colocando a si próprio em um estigma de absoluta fonte de conhecimento. O fato de depo-

sitar a matéria escolar não acarreta aprendizado e nem absorção de conteúdo. O professor

deve ser um coordenador, que fornece as informações solicitadas pelos alunos e propor-

ciona uma dinâmica favorável para que o conhecimento seja aplicado não só às aulas, mas

também à vida. Não cabe ao educador ter uma intervenção direta, mas sim fazer com que

o momento de disseminar conhecimento caminhe naturalmente associando-se à história

do aluno.

Muitas vezes, a escola ainda recebe a missão de buscar e deixar os alunos em casa, com

segurança e conforto. Espaços de recreação e desenvolvimento de outras áreas educati-

vas e/ou culturais também são necessárias, como o contato com o mundo das artes, do

cinema, da política e do convívio em grupo. Cabendo à instituição de ensino tantas funções,

é pouco evidente que ela consiga cumprir sua principal função, a de fluir conhecimentos da

sociedade.

Um ponto a ser refletido é que, ainda de acordo com Maria da Luz, nunca se leu e escre-

veu tanto quanto hoje em dia, apesar de tudo. O que antes era resolvido por telefonemas

e reuniões presenciais, hoje em dia é rapidamente discutido em e-mails e comunicadores

instantâneos. Enquanto antigamente as pessoas se encontravam para saber os aconteci-

mentos recentes da vida da outra, nos dias de hoje acompanha-se tudo por redes sociais,

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sites e redes fotográficas. O Instagram e o Facebook são os exemplos mais clássicos desta

nova onda.

O primeiro é a mais moderna mania das pessoas que possuem aparelhos celulares com

câmeras fotográficas e dispositivos que permitem conexão com a internet nos modelos fa-

bricados pela Apple ou com tecnologia Android – ou seja, uma quantidade significativa de

fotógrafos internautas. Após fazer o download do aplicativo, pode-se capturar imagens e,

simultaneamente, colocá-las a disposição de quem quiser olhar em diversas redes.

Já o segundo, o Facebook, popularmente conhecido e utilizado até por aquelas que alguns

anos atrás mal sabiam ligar o computador, foi incorporado na vida das pessoas não apenas

na ala dos entretenimentos encontrados no mundo virtual, mas também como ferramenta

de trabalho, discussões e até mesmo como parte do currículo de candidatos a vagas de

trabalho, sendo muitas vezes examinado pelo diretor de recursos humanos da empresa

contratante.

A rede social consegue unificar o compartilhamento de textos, fotos e documentos, além

da criação de grupos de discussão e páginas que agrupam interessados sobre um mesmo

assunto, as conhecidas fanpages.

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Ao perguntar para a estudante Ana Beatriz Dias se ela utilizava a ferramenta, a resposta

veio carregada de certa indignação. Ana disse que resolveu se livrar do Facebook por um

tempo, já que passava uma grande parte de seus momentos de lazer presa ao computa-

dor, o que considera um desperdício. “O problema é que todo mundo usa o Face e, por

isso, comecei a ficar de fora das coisas. Deixei de ir a comemorações de aniversários de

amigos, que apenas criaram uma página de evento informando data, local e horário por ali,

dando aos convidados a oportunidade de responder se iriam ou não. Até aí, tudo bem, a

gente fala com os amigos mais próximos e, de uma maneira ou de outra, eles perguntam ‘e

aí, confirmou presença no meu aniversário pelo Face?’. O problema maior foi com a minha

turma da faculdade.”

De acordo com Ana, informações que deveriam ser passadas para todos os alunos da sala

eram muitas vezes disponibilizadas virtualmente. Textos que deveriam ser lidos, mudanças

de grupos de estudo, temas de trabalhos, fotos e, até mesmo, pedidos de socorro, como

e-mail e telefones de professores.

“Resolvi voltar para o Facebook o dia em que perdi uma prova. Fiquei extremamente brava

e incomodada comigo mesma, pois, ao reclamar com meus colegas de que ninguém havia

me informado sobre a mudança de horário, só ouvi justificativas como: ‘poxa, Ana, estava

no grupo (do Facebook) da sala. Todo mundo viu, é a maneira mais rápida que temos de

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nos comunicar!’. Daí eu percebi que isso era mesmo muito real e que eu estava deixando

passar muita coisa por ter cancelado o meu acesso. Tive que reativar.”

A partir deste exemplo nota-se a dependência que a vida moderna tem dos recursos vir-

tuais, assim como da escrita e da leitura. Se usado da maneira correta, o computador tem

um imenso potencial para se tornar uma válvula de impulso para acarretar o hábito da lite-

ratura, tanto infanto-juvenil quanto adulta.

Mesmo assim, para que isso possa acontecer de maneira contínua, um cuidado – entre vá-

rios outros – que deve ser tomado e repensado é a linguagem utilizada. Por mais que clás-

sicos da literatura sejam importantes e deem ao estudante todo um embasamento histórico,

não costumam serem eles a impulsionar o gosto pelo saber. “A língua é viva, o português

muda”, acrescenta Maria da Luz.

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De onde vem a força

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De onde vem a força?

Computadores e novos métodos à parte, o único fato real e comprovado agora é de que

muitas das escolas públicas, com ou sem as boas ideias, não conseguem singularmente

cuidar da criação de todas as crianças nascidas em território brasileiro e dependentes da

rede de ensino educacional não particular.

Por mais que todos se atentem ao fato de que computadores, assim como exemplares de

livros mais novos e dinâmicos, com linguagem mais atrativa, sejam uma das alavancas

para a melhoria do futuro do país, não se pode esquecer que são poucas as escolas que

conseguem, sem qualquer ajuda exterior, arcar com esse tipo de investimento financeiro.

Os próprios computadores, além do espaço que ocupam, a manutenção frequente, as me-

sas e cadeiras adequadas, e os livros mais coloridos e mais envolventes têm certo custo,

requerem um investimento que não é nada compatível com a parte da verba que não é

destinada nem para a alimentação, nem para os uniformes, nem para os médicos e nem

para os psicólogos dos estudantes, que são igualmente necessários.

Restringir esta informação às escolas, neste momento, é quase que um egoísmo. Nem

todas as comunidades carentes têm, para chamar de sua, uma biblioteca ou uma sala de

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computação compatíveis com a quantidade de pessoas que precisa utilizá-las. E, muito

menos, pessoas instruídas que possam fornecer apoio cultural e profissional de qualidade.

A parte deste livro que está por vir mostra um pouco de como o trabalho voluntário é res-

ponsável pelo passado, presente ou futuro de pessoas que não puderam contar com a

alfabetização ou o incentivo à cultura de que lhe era direito.

E que fique claro logo de antemão que não existe interesse algum em emocionar, vangloriar

ou esbanjar elogios para qualquer pessoa ou instituição. Daqui pra frente, pessoas comuns

mostram ações também comuns que podem servir de ideia àqueles que querem solucionar

problemas comuns e fazer com que a vida de outra pessoa fuja desta triste realidade (infe-

lizmente) também comum.

x1x1

Ideias Móveis

37

Ideias Móveis

Quebrando a cabeça atrás de um plano

“A leitura possui inúmeros fatores que a torna importante, sendo fundamental para o bom

desempenho dos leitores em qualquer disciplina escolar, bem como para contribuir com o

desenvolvimento humano e pessoal, para o processo de formação e para o exercício da

cidadania, permitindo que o leitor aprenda novas culturas, modos diferentes de pensar,

conheça novos povos, sendo isso importante para a sua formação como um todo.” –

Jovens de uma Instituição de Trabalho Voluntário de Jardinópolis, SP.

O problema não era nem novidade, nem surpresa e muito menos fácil de ser resolvido:

muitas pessoas precisando de ajuda, cruzando com o caminho de poucas pessoas que,

além de não saberem exatamente como ajudar, eram mesmo bem poucas.

A entrevistada deste capítulo é Érika Braghetto, que possui 31 anos e é formada em peda-

gogia pela FFCLRP-USP, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP da cidade Ri-

38

beirão Preto. Érika, que sempre quis ser professora, possui especialização em Ética,

Valores e Saúde na Escola e atua como professora há cerca de 10 anos, trabalhando com

alunos do quinto ano e do maternal.

De acordo com ela, por mais que fizessem campanha de arrecadação de livros e arreca-

dassem muito mais do que era possível em uma cidade de pequeno porte como Jardinó-

polis, seria completamente inviável construir um espaço físico que comportasse todos os

exemplares. Não havia dinheiro, nem patrocínio e, como já foi dito, sequer havia muitas

pessoas.

E, então, que instituição ajudar? Como melhorar a vida de uma criança e deixar outra de

lado? Que critérios usar? De que ponto partir? E se a escolha fosse feita de maneira erra-

da, e alguém saísse prejudicado? Muitas perguntas, poucas respostas. E uma coleção de

ideias.

Desta coleção, uma delas se destacou: e se as coisas funcionassem de um jeito a não

desfavorecer ninguém? E se, ao invés das pessoas andarem, a biblioteca pudesse fazê-lo?

Agora sim, as perguntas clareavam a mente.

39

A ideia da Biblioteca Móvel surgiu assim, da vontade de dar uma garfada maior do que a

boca.

O primeiro passo, assim como todos os primeiros passos, foi meio óbvio e meio inseguro:

a arrecadação de livros. De mãos dadas com um supermercado da cidade, alguns jovens

profissionalmente atuantes na área da educação da cidade, que se localiza a 330 quilôme-

tros de São Paulo, realizaram uma arrecadação de livros – que estivessem em bom estado

– por todo o município, acrescentando estes a alguns que já possuíam. No total, consegui-

ram uma doação de 290 exemplares por parte do supermercado que, somados ao restante,

atingiam o total de 690.

A partir deste ponto, o processo seria contínuo. O levantamento das instituições necessita-

das veio com o apoio de uma assistente social, que procurou locais verdadeiramente caren-

tes de um acervo cultural. A comissão formada por pessoas atuantes na área profissional

da educação pode definir detalhes importantes, como a maneira em que os livros seriam

catalogados.

De acordo com os temas e as abordagens dos exemplares, a separação seria feita, de

maneira com que se tornasse mais fácil o desenvolvimento e atividades únicas e diferentes

entre si, com cada grupo de livros e de crianças.

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Em entrevista, Érika afirma que foi bastante proveitoso para o grupo trabalhar dentro da

área de atuação profissional de alguns dos membros, no caso, a psicopedagogia. Não só

a separação dos livros, mas também o monitoramento dos grupos, foi feito de acordo com

planejamento prévio, análise e uma tempestade de ideias.

Quando um voluntário resolve doar seu trabalho para um projeto novo, é importante saber

que ele não está doando apenas a mão de obra, mas sim todo o seu eu. O grupo dos jovens

de Jardinópolis persistiu a todos os contratempos e, em momento algum, deixou de buscar

uma solução para o problema mais recente da lista.

Em cada parte do plano que levaria a cultura a caminhar ao redor de pessoas que dela

precisavam, ficou uma parte da bagagem de vida do atuante. Seja na ordem dos catálogos,

nas atividades pensadas, na cor das capas. Por ser feito sem uma obrigação que incluísse

retorno financeiro, cada parte que ia dando certo era uma conquista maior ainda.

O experimento número um foi testar aquilo de verdade, levando cerca de 100 exemplares

de livros a um espaço e tentando fazê-los interagir com os pequenos.

Mais voluntários foram convidados a fazer parte daquele plano que, apesar de ainda ser

um pouco bagunçado, já cheirava a bons frutos e, melhor que isso, ainda tinha espaço para

41

boas ideias. As crianças, no início tímidas, logo começaram a mergulhar em todo aquele

universo, que elas mal sabiam o tamanho da imensidão.

Como sempre acontece, os falantes viraram alvo de fotografias, abraços, beijos e excla-

mações carinhosas, enquanto os mais recatados arranjavam um bocado de tios e tias que

concorriam em fazê-los sorrir, brincar, dizer o nome, a idade e a cor favorita. O tio mais feliz

era aquele que ganhava o tão difícil sorriso.

Vale ressaltar que a prefeitura da cidade, o SESI e a rede de televisão local também se en-

volveram no projeto, fazendo a divulgação e fornecendo a cobertura e o apoio necessários.

Sendo assim, terminou-se a fase de projeção da ideia com três instituições ajudadas, que

fazem o rodízio de 100 livros por vez, trocados após três meses no mesmo lugar, ou então

até que todas as crianças tenham feito uso deles – o que é previamente combinado entre

as instituições.

O restante dos exemplares arrecadados fica em posse dos associados ao grupo voluntá-

rio, que são responsáveis por fazer outros projetos com pessoas de outras comunidades,

estabelecendo assim parcerias mais fortes e um maior conhecimento das necessidades da

cidade, como um todo.

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Com objetividade numérica, são consideradas atingidas continuamente pela biblioteca 160

crianças, fazendo parte das instituições fixas. A se falar de uma maneira geral, o número se

torna imensurável, pois as ações realizadas com os exemplares que ficam sob posse dos

psicopedagogos abrangem sempre um número diferente de pessoas a cada vez.

Posteriormente, em reunião realizada juntamente com diretores e coordenadores das ins-

tituições, os resultados positivos vieram a calhar. As práticas da leitura e da escrita foram

visivelmente aprimoradas, além da interpretação de textos, criatividade, concentração e,

até mesmo, conscientização, vista de um modo geral.

Ao serem informadas de que outras crianças de outras escolas fazem o uso daqueles

mesmos livros, os pequenos acabam por aproveitá-los com mais intensidade (já que têm

um limite de data para transportar os exemplares a outro lugar) e a cuidar bem para que

não sejam amassados, recortados, sujos ou perdidos. Pode-se notar neste momento certa

preocupação vinda das crianças com a instituição seguinte, o que desenvolve nelas uma

consciência coletiva e a percepção de um mundo que vai além do já explorado.

O aumento das atividades em grupo também é um ponto positivo que interfere – e muito –

na postura dos alunos perante a escola. Por participarem de uma atividade interessante em

conjunto com os colegas, eles passam a se esforçar para conseguir ler e escrever melhor,

43

fazer um bom desenho ou compreender corretamente uma história. O companheirismo

também é estimulado, já que todas têm que trabalhar juntas e dividir um mesmo monitor.

Outro detalhe importante a ser notado é que, após o contato com uma biblioteca de verda-

de, as crianças se interessam por detalhes como a editora, a data de publicação e o nome

do autor de cada livro, reconhecendo os mais famosos e perguntando sobre eles.

O senso crítico é mais um lado fortemente desenvolvido e trabalhado, além do poder de

análise das obras e do interesse que isso alimenta. Pequenas discussões entre colegas so-

bre o fim da história ou a ação de algum personagem faz com que todos os outros prestem

atenção e gravem a mensagem que o livro passa.

Érika, que tem uma enorme paixão pelo educar, ainda faz questão de uma informação va-

liosa e fundamental para que seja reconhecido o sucesso da Biblioteca Móvel: o trabalho

de cada pessoa que ajudou na formação do projeto foi incrivelmente motivador e obteve um

alto grau de aprendizado para as mesmas. Tanto na vida profissional quanto pessoal, cada

voluntário pode desenvolver uma missão – a sua missão. E esta missão é contínua, visto

que reuniões com os monitores são feitas com frequência, além das campanhas com os

livros que, por ora, não estejam em instituição alguma. Basicamente, os voluntários fazem

pelas crianças e as crianças fazem pelos voluntários.

x1

Lidando com adultos

45

Lidando com adultos

E com suas dificuldades

Por mais que seja clichê dizer que as crianças são o futuro na nação, a preocupação com

elas geralmente é maior. Por serem indefesas e necessitarem de total apoio de adultos

para traçar uma linha de desenvolvimento, a parte infantil da sociedade é, por assim dizer,

motivo de maiores preocupações. Inclusive em muitos dos planos de governo, os pequenos

costumam ser, por motivos evidentes, favorecidos.

Quando uma criança não sabe ler, mesmo que ela já possua idade um pouco avançada

para tal, a sociedade se preocupa, a escola se reúne com os pais, a própria mãe ajuda ou,

quando possível, leva a um psicólogo, procura um professor particular. Por mais que seja

carente ou abandonada, uma criança muitas vezes vai encontrar alguém que se preocupe

com ela.

Agora, se é chegada à fase adulta e ela continua analfabeta, o quadro muda completamen-

te. Fugiu da escola? Não quis estudar, né? Casou-se cedo e pensou mesmo que nunca

46

precisaria ler uma placa de ônibus ou uma receita de bolo? Que exemplo vai dar aos filhos?

Como vai conseguir um emprego? – Sim, essas são as perguntas que se formam na mente

de todos quando topam com uma pessoa que, com idade avançada, ainda não domina a

leitura e a escrita.

E, por mais incrível que isso possa parecer, os adultos analfabetos são os mais difíceis de

se ajudar. Primeiramente, eles demoram um tempo para confessar que realmente não do-

minam as palavras. Alguns costumam escrever o próprio nome e reconhecer um ou outro

vocábulo com o qual conviva muito – o nome de um remédio, a placa de alguma loja – e,

assim, condenam-se a viver pelo resto da vida.

Também existe o fato de que um adulto dificilmente é sozinho e livre de responsabilidades,

ou seja, não tem longos períodos de tempo livre que possam ser preenchidos com aulas. E

ainda existe a falta de paciência ou, até mesmo, de concentração, que não foi desenvolvida

o suficiente quando deveria ser. Todas as obrigações, o trabalho e as tarefas domésticas

acabam por cansá-lo e tirar grande parte de sua força de vontade para fazer a vida mudar.

Passei 30 anos analfabeto, para que aprender a ler agora?

Para Paulo Freire, quando uma pessoa constata que realmente quer uma busca maior pelo

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saber, ela é levada a reconhecer a desumanização como realidade histórica. “É, também e,

talvez, sobretudo, a partir desta dolorosa constatação que os homens se perguntam sobre

a outra viabilidade – a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscre-

vem em um permanente desenvolvimento de busca. Humanização e desumanização, den-

tro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como

seres inclusos e conscientes de sua inconclusão”, diz.

No ano de 2005, Angela Teixeira, advogada residente na cidade de Marília, que fica a 438

quilômetros de São Paulo, resolveu tentar mudar a vida de pessoas que faziam parte des-

te grupo da sociedade. Angela, que sempre se sentiu incomodada com a quantidade de

analfabetos que existiam na cidade, resolveu não se fazer calar e lutar por melhorias na

comunidade. O primeiro passo, neste caso, foi o mais difícil de ser dado: o recrutamento

de pessoas.

Enquanto Érika e seus amigos apenas fizeram contato com instituições de ensino, Angela

se deparou com um quadro um pouco mais agravante: por mais que as assistentes sociais

tivessem o conhecimento de quais pessoas das comunidades não podiam ler e escrever,

a maioria dessas pessoas se recusava a falar sobre o assunto ou, quando falava, negava

o fato.

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Ainda havia aquelas que pareciam ser caso ganho. Chegava-se lá, apresentava-se a ideia,

conquistava-se um pouco a confiança. O indivíduo acabava até por se abrir um pouco, dizer

que possuía, sim, interesse em se alfabetizar, anotar o endereço das aulas. Mas dificilmen-

te retornava.

Primeiro, resolveram que alfabetizariam as mulheres. O material e a mão de obra de en-

sino eram poucos e, atingindo as mães de família, poderiam chegar mais facilmente aos

maridos, irmãos e até filhos. Fora que, alfabetizadas, elas poderiam ler bulas de remédios,

tarefas de casa do colégio dos filhos e receitas culinárias – já que muitas delas cozinhavam

sob encomenda, para obter a renda financeira mensal.

O bairro de Santa Paula, localizado nos subúrbios da cidade, foi o eleito como mais ne-

cessitado de cuidados e escolhido para ser o foco do projeto. Também havia o fato de que,

talvez apenas entre mulheres, estas senhoras se sentissem mais à vontade.

Este projeto funcionou bem por um ano e meio, quando veio a decair e, por fim, ter de ser

extinto.

49

Angela conta que, na época, chegou a entrar em contato com padres, pastores e qualquer

outro tipo de pessoas que os moradores do bairro considerassem líderes, tentando con-

vencê-las de que aquele era um caminho que valeria a pena. Criou-se, então, outra insti-

tuição, em outra sede, e agora abrangendo qualquer adulto que quisesse aprender a ler e

a escrever.

Alguns apareceram, mas, evidentemente, nada que se possa comparar ao número de

crianças. Cerca de 14 pessoas começaram a frequentar as aulas, que formou apenas seis

ou sete alfabetizados. Alguns alegavam um quadro de agravo à saúde, que impossibilitava

a ida à escola. Outros, mesmo que saudáveis, não tinham com quem deixar o filho, a mãe

ou a esposa que precisava de cuidados, e ficavam em casa para fornecer o tratamento

necessário.

Angela lembra-se bem e uma senhora, já de idade bastante avançada, que frequentava

o curso com entusiasmo e progressos quase que diários. Ao notar que ela havia parado

de frequentar as aulas, fez questão de ir até sua casa para saber o que havia acontecido.

Descobriu então que em uma das idas da senhora ao centro de ensino, sua casa havia sido

assaltada. Sem conseguir recuperar-se do susto – e das perdas financeiras que o assalto

havia causado – a mulher passou a sentir-se ameaçada e sem coragem de sair de casa,

estagnando o aprendizado. As coisas são mais delicadas quando tratadas com pessoas

50

que carregam muito mais responsabilidades do que se pode calcular.

Mesmo assim, havia aqueles que davam o fervor e a força de vontade para continuar lu-

tando.

Um senhor, em meados do curso, recebeu a doação de um notebook. Com aquele mate-

rial nas mãos, o homem pareceu um tanto constrangido, sem saber o que fazer. Quando

descobriu todas as funções do aparelho eletrônico, o senhor olhou para o mundo da escrita

com outros olhos.

Para um adulto, principalmente se este já estiver idoso, o mundo da tecnologia e do apren-

dizado faz parte das gerações que vieram depois. Em uma mistura de medo, apreensão e

nervosismo, a pessoa de idade acaba por não mergulhar no universo que compreende tudo

aquilo que ela chama de moderno. Além de parecer extremamente complicado, sempre

existe um receio de que a tarefa de lidar com eletroeletrônicos seja árdua demais para um

velhinho que, com letras infantis, apenas escreve o próprio nome.

A partir do momento em que esse senhor não somente escreveu como também começou

a dominar o princípio do computador, a motivação que cresceu nele foi aparente. Assim

como a criança, o adulto se motiva e enxerga a possibilidade de um futuro melhor do que

51

foi o passado.

A ferramenta de estudo para todas essas pessoas não ia muito além do convencional. Um

professor, do campus Marília da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, a

UNESP, foi requisitado para fornecer as aulas, enquanto que a instituição de voluntariado

fornecia uma cartilha para o aprendizado.

Estas cartilhas, segundo a entrevistada, não possuíam nenhuma diferença muito notável

dos livros de alfabetização para crianças. Coisas pequenas, como o tipo de linguagem e

imagens, fugindo do mundo infantil, foram observadas, além da postura do professor que

precisa ser muito bem avaliada.

Segundo Maria da Luz Milan, uma das entrevistadas presentes neste trabalho, uma das

deficiências da educação é a formação dos professores que, despreparados, acabam por

não saber como direcionar o conhecimento a seus diferentes tipos de alunos.

Para lidar com adultos analfabetos, o professor escolhido precisou de um preparo comple-

tamente diferente ao que possuía para lidar com crianças e adolescentes. Além do modo de

tratamento adaptado – com mais respeito, lembrando-se sempre de que o idoso exige uma

carga maior de paciência –, deve-se lembrar que os adultos não possuem e mesma facili-

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dade de aprendizado das crianças e, muitas vezes, têm vícios de fala bastante complicados

de se corrigir.

Por exemplo, se uma senhora passou os 60 anos de sua vida pronunciando uma palavra de

maneira errada, não vai logo nas primeiras aulas conseguir pronunciá-la corretamente. E,

muito menos ainda, escrevê-la. A maneira mais fácil é usar daquilo que faz parte do cotidia-

no da pessoa envolvida, seja isso uma receita de bolo, uma bula de remédio ou um manual

de placas de trânsito. O adulto apresenta mais vergonha em perguntar, em correr o risco

de errar e, principalmente, em não conseguir aprender. É uma situação bastante delicada.

Mesmo assim, o objetivo de Angela conseguiu ser cumprido, e ela apresentou resultados

positivos a seu grupo de trabalho. A escola funciona até os dias de hoje e, embora com

menos resultados numéricos do que instituições infanto-juvenis, realiza uma mudança bas-

tante significativa na vida de pessoas que talvez já tivessem perdido a vontade de mudar.

x1

Por um método mais metódico

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Por um método mais metódico

Revolucionando a Alfabetização

A Sra. Neuza Ponciano sempre gostou de ler, ensinar e aprender. Nascida em uma família

de poucos recursos e criada em uma fazenda, ela pode acompanhar a educação dos dois

irmãos mais novos e, quando completou 17 anos, disse à mãe que queria ser professora.

“Naqueles tempos, a gente não escolhia tanto, não como fazem vocês. Mulheres geralmente

se formavam professoras mesmo, a nossa única opção era estudar ou não estudar para

isso”, diz.

Um pouco a contra gosto do pai, Neuza se mudou para Campinas, onde concluiu seus

estudos em um colégio de freiras. Vivendo com o dinheiro que a mãe conseguia lavando

roupas para a vizinhança, ela diz ter convivido com muitas pessoas simples e, talvez por

causa disso, ter desenvolvido uma enorme coragem para ensinar.

Na época desta história, ela era professora recém-formada e lecionava na cidade de Re-

gente Feijó, que fica a 547 quilômetros da capital paulista, nos anos cinquenta. Este fato,

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mais especificamente, aconteceu em 1952.

As escolas, como conta Neuza, eram precárias e completamente sem recursos, principal-

mente quando se tratava na zona rural. Podia-se contar apenas com a lousa e o giz, sendo

que os alunos, que às vezes mal podiam se alimentar, deveriam ficar encarregados de ad-

quirir todo o material didático. Eram tempos difíceis.

Neuza dava aula para crianças entre o primeiro e o terceiro ano, o que hoje seria equiva-

lente ao último ano da pré-escola (quando acontece o início da alfabetização) e ao segundo

ano do ensino fundamental. No início do ano, foi surpreendida por uma proposta completa-

mente fora de seus planos: alfabetizar uma turma de adultos. Ela aceitou, já que, naquela

época, como acrescenta, não se costumava recusar trabalho. E que trabalho viria pela

frente.

Em um primeiro contato, ela chegou a se sentir intimidada. Os alunos eram, em sua maioria,

do sexo masculino, e variavam a idade entre 30 e 50 anos. Alguns chegavam a ultrapassar

este limite. Sem saber exatamente como lidar com aquela turma tão diferente das outras

que possuía, ela resolveu apresentar seu método, o mesmo utilizado com as crianças.

As aulas começaram a acontecer todos os dias úteis no período da noite, horário em que

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eles eram dispensados do trabalho e destinados à sala de aula da escola que também fa-

zia parte da zona rural. “O problema era que nenhum deles prestava atenção e o número

de presença começou a cair consideravelmente. Eram piores do que as minhas crianças,

imagine só. E eu, ainda mocinha, não sabia bem como chamar a atenção, nem como man-

dar todos aqueles alunos ficarem quietos. Pense comigo, mais de 60 anos atrás, como a

relação entre as pessoas não era mais complicada, mais respeitosa. Eu não fazia ideia de

que direção tomar, mas a verdade era uma só: eles não estavam nem aí para nada do que

eu falava e, se continuasse daquele jeito, chegariam ao final do ano sem escrever uma

palavra. E o que eu iria falar para o diretor da escola? E quando chegassem as provas?

Eu iria ficar ali, com cara de boba, falando sozinha?”. Foi aí que ela resolveu tomar uma

providência.

Assim que os senhores adentraram a sala, ao invés de pedir para que eles abrissem os

cadernos, apontassem os lápis e olhassem para a lousa, ela puxou uma primeira conversa

fora do planejado. A impressão era de que eles haviam esperado por isso o tempo todo.

O primeiro que conseguiu se fazer ouvir no meio da balbúrdia que ficou a classe explicou

com bastante sinceridade a situação. Como o trabalho deles era braçal, letras não interes-

savam tanto. Eles alegavam que já haviam passado toda uma vida sem saber escrever e

que, naquelas circunstâncias, a falta da escrita e da leitura não era o que eles considera-

57

vam prioridade. A questão é que os adultos tinham ansiedade de crianças pequenas e que-

riam é que Neuza pulasse logo das letras para os números, que se faziam mais próximos

do cotidiano daquelas pessoas. Era compreensível.

A professora conta que eles tinham vontade de saber calcular a área dos lugares, saber

o que era o comprimento, a distância, o perímetro. Quanto valia um centímetro, um metro

e um quilômetro, um mililitro, um litro, um grama ou um quilo. Quanto de leite a jarra que

eles usavam poderia suportar e quanto de dinheiro aquilo poderia valer. A curiosidade era

de saber fazer operações numéricas simples, poder conferir se o troco do mercado estava

certo e se o dinheiro no bolso seria o suficiente para comprar o que cada filho havia pedido.

Era uma proposta completamente diferente do que Neuza havia planejado, mas, como ela

disse, melhor possuir uma curiosidade diferente do que não possuir curiosidade alguma.

Ela resolveu então passar o número à frente das letras, exatamente como os alunos pedi-

ram. Era um novo desafio.

A proposta foi contada ao diretor da escola e, a partir daí, começou a missão-quase-impos-

sível deste capítulo. O senhor, munido de todas as suas razões didáticas, não permitiu que

as aulas fossem dadas em determinadas condições, e disse que, sendo assim, não haveria

diploma ao final do curso. Neuza, que não teve como contra-argumentar, preferiu gastar o

tempo que usaria para discutir em uma reflexão sobre o problema. Chegou à conclusão de

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que, voluntariamente, iria continuar.

Começou com a matemática. Durante todo o primeiro mês se dedicou em passar aos alu-

nos apenas o conhecimento que eles pediram para receber. Introduziu os números, ensinou

a eles algumas operações, conceitos de medidas e de valores. Num dado momento, ela

percebeu que poderia ousar. Ao explicar aos alunos o conceito da palavra “área”, ela resol-

veu colocá-la escrita na lousa. Ao que eles olharam a palavra, ela continuou, perguntando

se eles sabiam que palavra era aquela e como ela era formada. Neuza contou aos homens

que, assim como as medidas, as palavras eram divididas em pequenos pedaços para se-

rem aprendidas. Ensinou a eles então as vogais “A” e “E”, e pediu para que eles formassem

palavras apenas com aquele som. Uma das primeiras conclusões veio do fundo da sala, ela

se recorda. “Ae é o que meu filho diz quando cai e se machuca”, disse um deles.

Mesmo que todo o cuidado fosse tomado, chegava um momento em que alguém reclamava

que aquilo não eram contas e a professora se via obrigada a parar a aula e voltar para os

conceitos numéricos. Apesar disso, cuidadosa e lentamente, todas as letras e sílabas foram

introduzidas ao vocabulário daquelas pessoas. Neuza explicava a eles que era necessário

que se soubesse ler pelo menos as palavras básicas, para o caso de precisarem entender

um manual de instruções ou o que dizia a embalagem de algum produto. Logo, aquilo se

tornou parte da aula e, assim que terminava com os números, ela já começava a explicar

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as letras, sílabas e palavras todos os dias. “Quando eu via que eles estavam se disper-

sando, tratava logo de comparar o português com algum elemento do mundo deles, para

descontrair um pouco e despertar a atenção. Prometia que se conseguissem, por exemplo,

escrever PERÍMETRO, eu explicaria a eles um modo mais rápido de calculá-lo. Sempre

funcionava.”

Depois de ensinada a parte básica, ela ousou ainda um pouco mais. Perguntou a eles o

nome do sítio que cada um possuía, como se chamavam os filhos e as esposas. Explicou

que era importante saber reconhecer também estas palavras, para o caso de precisarem

assinar contratos, autorizações e certidões. Cada vez mais eles entendiam a importância

da linguagem escrita e da leitura na vida da pessoa. O plano estava saindo bem melhor do

que o esperado.

O dia que Neuza mais se sentiu realizada foi quando entregou a cada um uma folha de jor-

nal. Conseguiu em uma mercearia a parte que falava de agricultura e pecuária e resolveu

propor aos alunos que tentassem ler. “Acredita que eles teimaram comigo que não seriam

capazes? E como estavam errados. A missão daquele dia foi auxiliar um ou outro que ain-

da tinha dificuldade em diferenciar a letra escrita da letra impressa, mas acabou que eles

mesmos conseguiam se ajudar. O que um esquecia o outro lembrava e assim consequen-

temente. Era uma coisa muito satisfatória de se presenciar.”

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Depois deste fato, Neuza achou que era a hora de chamar o diretor da escola. Pediu ainda

que ele viesse junto com um juiz e, apresentando os resultados obtidos em aula, fez com

que os dois aceitassem aplicar as provas finais aos alunos e, de acordo com as notas obti-

das, conceder a eles um diploma. Não havia muito que argumentar, já que os alunos além

de alfabetizados, sabiam matemática básica.

Quando chegaram as provas, a surpresa foi maior ainda. Não pelo fato de que eles conse-

guiram resultados suficientes para adquirir o certificado, porque isso Neuza já esperava e já

se orgulhava de dizer. O surpreendente foi a reação dos alunos com a chegada das provas.

De acordo com a entrevistada, eles reclamavam que aquelas provas eram completamente

infantis e que, com as palavras deles, ninguém estava preocupado com o que o Joãozinho

fora fazer na feira.

“Tudo aquilo realmente abriu muito os olhos da gente. A maneira de alfabetizar adultos que

não queriam ser alfabetizados, a ideia de trazer o mundo deles pra dentro da sala de aula,

tudo isso amadureceu muito aquela escola e ela nunca mais foi a mesma.”

Posteriormente, descobriu-se que aquelas pessoas possuíam vergonha de falar que esta-

vam sendo alfabetizadas e que preferiam dizer que estavam fazendo um curso de contas e

medidas numéricas. Acabou que fizeram os dois.

61

Passado este episódio, a professora conseguiu que outras turmas se formassem com sua

maneira de ensinar improvisada e garantiu para o currículo um certificado de metodologia.

As esposas, os filhos e até os amigos daquelas pessoas vieram para mais perto da escola,

mesmo que nem todos a frequentassem até o final. Hoje, aos 83 anos, Neuza diz que esta

foi, sem sombra de dúvidas, a maior realização de sua carreira profissional.

x1

O homem que queria casar

63

O homem que queria casar

A história de um sucesso fracassado

“Ele não conseguia aprender de jeito nenhum, mas parece que também não queria tanto

assim. Apenas queria casar e, para isso, fazia questão da própria assinatura.”

O homem já beirava os 40 anos e, enfim, iria realizar a cerimônia do casamento. Era o ter-

ceiro de sete irmãos e, por algum motivo que a todos escapava, não havia frequentado a

escola. O irmão caçula, marido de Neuza Ponciano – que mais uma vez concede entrevista

-, disse que ele não ia bem no colégio e, por isso, parou de frequentá-lo logo nos primeiros

anos letivos.

Agora, era diferente. Ele iria se casar.

Neuza, que na época trabalhava justamente como professora de alfabetização, passou a

sentar com o homem por quase todos os dias da semana na mesma mesa e, como fazia

com suas crianças, ensinava-o o bê-a-bá.

64

“Eu percebia que ele não demonstrava interesse em nada, nenhuma daquelas coisas. Tudo

o que eu ensinava hoje, ele esquecia amanhã e assim consequentemente. Por mais de

meses, a aula não saía do lugar.” E assim a história continuou, até que a senhora resolveu

colocar um fim.

- Luiz, você não tem vontade de aprender a escrever, não é?

- Não, Neuza. Você me desculpa? Passei todos esses anos sem escrever e não tenho von-

tade de aprender agora. Só quero poder assinar meu nome na hora do casamento, para

sentir que estou dando a minha própria palavra de que vou casar com a Fátima.

- Então pronto. Vamos aprender a escrever seu nome.

E foi isso que a professora fez. Ensinou a Luiz todas as letras que faziam parte de seu nome

por extenso, uma por uma e depois todas de uma vez. Talvez tenha sido o “Luiz” mais com-

plicado de todos os seus anos de professora, mas ele enfim foi escrito, com sobrenome e

tudo.

No dia da cerimônia, ela estava lá, junto ao irmão do noivo ocupando o posto de madrinha.

O escrivão fez as suas palavras e passou o documento para Luiz que, nervoso, arregalou

65

os olhos. Olhou para o papel, para o escrivão, para o papel novamente, para a janela, para

o teto e para os próprios pés. Olhou para todos os lugares que não fossem perto da noiva

e, enfim, teve a ideia de olhar para a Neuza. Ela já previu o que estava acontecendo e fez

com os lábios “L – U – I – Z...”

O escrivão, completamente assustado, pediu para que ela parasse pois Luiz era analfabeto

e, sendo assim, não poderia assinar seu próprio nome. “E como é que eu ia deixar o coitado

do Luiz passar por aquilo, de carimbar o dedo na certidão? Ele tinha pavor dessa ideia, o

coitado. Chegava a ter lágrimas nos olhos naquela hora.”

Com muito custo – e, talvez, por um pouco de compaixão – o escrivão deixou-se enrolar,

fingindo não perceber que Neuza soletrava as palavras que Luiz, por nervosismo, já havia

esquecido. Ele conseguiu.

O nome completo começava na linha certa e ia subindo, como uma escadinha desenhada

por uma criança, até quase o último parágrafo do documento. A noiva, bastante emocio-

nada, assinou seu nome ao lado, devolveu a caneta à mesa e puxou um beijo do, então,

esposo. E o beijo foi realmente a única coisa que desmanchou o sorriso de satisfação da-

quele homem.

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Luiz pode não ter aprendido a ler e nem a escrever e, de uma maneira fria, essa pode ser

considerada uma história de fracasso. Porém, em momento algum se pode negar que a

vida daquele homem tomou um rumo melhor depois que ele aprendeu a escrever o próprio

nome, que ele realizou um sonho de satisfação pessoal e que os anos que se seguiram

(que infelizmente não foram muitos) tiveram uma nova cor na vida daquele senhor. Foi o

fracasso mais bem sucedido da vida de Neuza e ela em momento algum fala dele com

tristeza.

x1

O garoto que não escrevia direito

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O garoto que não escrevia direito

E o que se faz com garotos que não escrevem direito?

Era 1992 e ninguém sabia mais o que fazer. Bruno chegava chorando da escola todos os

dias, ora porque havia levado bronca da professora, ora por causa de brincadeiras de mau

gosto dos colegas. Ele já não queria mais ir ao colégio, o irmão mais novo já conseguia ler

sozinho e ele, aos oito anos de idade e cursando a segunda série, mal sabia diferenciar

vogais de consoantes. A mãe resolveu buscar ajuda em Rancharia, a cidade na qual mora-

vam, a cerca de 520 quilômetros de São Paulo.

Como a cidade era pequena e pouco desenvolvida, ela não chegou a nenhum psicólogo

ou psicoterapeuta, mas sim a uma professora, igualmente profissionalizada à professora

que dava aulas a Bruno, porém um pouco mais aberta a novas ideias e, digamos também,

curiosa. Celina, a responsável pela história que vem agora, é pedagoga e, beirando os 68

anos, atua por quase 40 na área. Ela, que cresceu em meio aos livros que a irmã mais velha

gostava de ler, desenvolveu um prazer imenso em alfabetizar. Na entrevista conta que, a

cada vez que a irmã viajava, deixava um livro sob seus cuidados, pedindo para que ela cir-

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culasse cada nova palavra e depois conseguisse descobrir o significado. Talvez por causa

disso, Celina desenvolveu uma sede enorme de conhecimento e curiosa com a situação,

resolveu ajudar. Mesmo sem saber qual problema impedia Bruno de aprender melhor, acei-

tou dar aulas para o garoto durante as férias escolares do mês de julho.

A princípio, percebeu que o maior problema dele era conseguir unir elementos. Bruno sabia

o som de cada letra e como ela deveria ser usada, porém não era capaz de unir duas ou

três delas e formar uma sílaba. Inclusive, quando o fazia, não chegava a formar uma pala-

vra.

Celina pouco tempo antes havia estudado o método da argentina Emilia Ferreiro e achou

que aquela pudesse ser uma ótima oportunidade de colocá-lo em prática. E acertou em

cheio.

Em um trecho retirado do site de educação da Editora Abril, encontra-se a seguinte expli-

cação: “Emilia Ferreiro se tornou uma espécie de referência para o ensino brasileiro e seu

nome passou a ser ligado ao construtivismo, campo de estudo inaugurado pelas descober-

tas a que chegou o biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) na investigação dos processos

de aquisição e elaboração de conhecimento pela criança – ou seja, de que modo ela apren-

de. As pesquisas de Emilia Ferreiro, que estudou e trabalhou com Piaget, concentram o

70

foco nos mecanismos cognitivos relacionados à leitura e à escrita. De maneira equivocada,

muitos consideram o construtivismo um método. Tanto as descobertas de Piaget como as

de Emilia levam à conclusão de que as crianças têm um papel ativo no aprendizado. Elas

constroem o próprio conhecimento – daí a palavra construtivismo. A principal implicação

dessa conclusão para a prática escolar é transferir o foco da escola – e da alfabetização em

particular – do conteúdo ensinado para o sujeito que aprende, ou seja, o aluno.”

Celina separou todas as sílabas em fichas e, mostrando as mesmas ao garoto, pediu para

que ele tentasse formar palavras. O primeiro passo do método era o nome de própria crian-

ça e, a partir daí, Celina usava o que ele conseguia assimilar para formar palavras novas.

Bruno aprendeu novamente o som das letras, depois passou a reconhecê-las melhor, co-

meçou a formar sílabas, logo depois palavras e, de uma hora para outra, começou a se

tornar íntimo de parágrafos inteiros.

Mergulhando no mundo dos textos, o aluno pode escolher ler o que mais lhe interessava,

conseguindo então assimilar uma nova quantidade de palavras e sons. A satisfação de

Bruno foi tão grande que ele sentia cada vez mais vontade de ler e, ao ver que conseguia

fazer isso já com poucas dificuldades, o estudo se tornou prazeroso. Ele já não se sentia

mal frente aos livros.

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O problema que tinha dificultado o começo da vida escolar do garoto ficou tão para traz que,

de acordo com a pedagoga, ela nem chegou a conhecer qual era. Talvez ele apresentasse

algum transtorno de aprendizado, talvez algum trauma infantil. O importante é que o que

faltava na vida de Bruno – fosse o que fosse – havia sido encontrado, e em 35 dias ele já

conseguia ler e escrever como qualquer garoto de sua idade.

“Em um dos últimos dias das minhas aulas com ele, fui surpreendida pela avó do garoto,

a Sra. Salete. Como em cidade pequena todos se conhecem, eu certamente sabia quem

ela era, porém fui tão surpreendida quanto se não a conhecesse. Nunca havíamos nos fa-

lado e posso dizer que praticamente não nos falamos aquele dia. Ela me deu um presente.

Colocou ele nas minhas mãos, apertou-as com força e disse ‘muito obrigada’. Fiquei tão

surpresa que não soube o que dizer. O Bruno também me agradeceu, mas foi com aquele

sorriso de criança satisfeita consigo mesmo, como aqueles que aparecem diante de um gol

feito no jogo de futebol.”

Como tomou gosto pela leitura, o aluno deslanchou. A mãe passou-o para uma escola de

ensino privado e ele foi campeão de dois concursos de texto, um de redação e outro de

poesia, enquanto fazia a terceira e a quarta série. Terminou todo o colégio e cursou a fa-

culdade.

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Celina, que é professora primária, considera que existe certa deficiência na educação das

escolas públicas, mas que isso não deve ser associado apenas ao governo. “Ótimos livros

chegam às escolas públicas, sim, tanto literários quanto didáticos. Porém, os professores

não fazem a cobrança necessária e os alunos acabam por não aproveitar tudo o que é

oferecido. Não existe mais aquele sistema de correção que se fazia antigamente. Não mar-

cam nos cadernos, não corrigem a tarefa de casa. Se não for assim, o aluno não se dedica

mesmo.”

Ela ainda acrescenta que as escolas brasileiras acabam por querer copiar a metodologia

de países com a cultura muito diferente da nossa e que isso é completamente prejudicial.

Um pai brasileiro, englobado na realidade atual da maioria, não consegue, por exemplo,

acompanhar os cadernos do filho, ver se a lição de casa está sendo feita e se a criança

apresenta alguma dificuldade. Os alunos acabam chegando à escola com problemas que

os pais não conseguem resolver e nem sequer os professores. É uma realidade muito triste

para a criança, que perde a chance de aprender melhor.

x1

As dores no corpo

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As dores no corpo

E como isso mudou a vida de Maria Helena

A psicóloga Tânia Santarém, que narra as duas últimas histórias deste livro, possui uma

maneira diferente de lidar com seus pacientes. Formada em psicologia pela Universidade

de Marília, a Unimar, ela desenvolveu uma maneira própria de trabalhar, aliando à profissão

o amor que sente por cavalos. Tânia, no começo de sua carreira, alugou uma sala e insta-

lou seu consultório para atender como a maioria dos demais profissionais da área. Atraiu

alguns clientes e começou com algumas consultas, porém não se sentia completamente

satisfeita, como se achasse que poderia ir além e fazer algo mais para todas aquelas pes-

soas. Foi então que surgiu a ideia.

Além do consultório com conversas, cadeiras e anotações, ela leva todos que procuram

sua ajuda a um universo paralelamente externo. Abertas as portas do escritório, os pacien-

tes e seus acompanhantes têm a oportunidade de enxergar um campo com muita grama,

árvores frutíferas, uma fonte, um lago, arbustos, flores, algumas baias, um cercado grande

de terra e os amados cavalos, que são o ponto chave da terapia.

Talvez seja o contato com a natureza, talvez sejam os animais. Talvez seja a naturalidade

que tudo aquilo provoca ou talvez seja a liberdade que proporciona e faz com que as pes-

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soas tenham mais vontade de abrir o coração, a mente e a vontade de se deixar ajudar. A

única coisa certa é que o amor de Tânia pela natureza rompeu fronteiras.

Maria Helena chegou ao consultório da psicóloga levada pelas mãos da filha, como se faz

com uma criança. Ela sentia muitas dores no corpo e a moça, vendo o sofrimento da mãe,

resolveu buscar uma ajuda que não fosse mais médica, já que esta não havia surtido qual-

quer efeito.

A mulher era tímida e bastante recatada. Dificilmente se posicionava sobre alguma coisa

e, quando o fazia, ela com a voz baixa regada de muita timidez, como se achasse que não

deveria se expressar.

Tânia começou com uma sessão normal de psicoterapia, seguindo em frente com conver-

sas e anotações, como fazia com seus outros pacientes. Passaram-se algumas sessões,

aconteceram algumas caminhadas pelo campo. Assim que se estabeleceu um vínculo mais

profundo de terapeuta e paciente, a psicóloga pode descobrir com muito custo o motivo da

timidez que tanto aparecia em Maria Helena: a mulher não sabia ler e nem escrever e es-

condia isso de todas as pessoas ao seu redor, inclusive da filha.

Ao ser questionada se gostaria de ser alfabetizada, a mulher sentiu-se mais envergonhada

ainda, porém a resposta foi positiva, deixando claro que apenas se o processo fosse reali-

zado durante a terapia. Tânia concordou.

76

Maria Helena ainda está em processo de alfabetização e, obviamente, este nome é fictício.

Tânia conta que além de estar evoluindo bastante bem com a gramática, o fato de estar

perante a possibilidade de saber ler e escrever mudou completamente a postura da mulher.

Ela agora conversa mais, dá suas próprias opiniões e convive melhor com as pessoas ao

redor. Pode-se ver em seus olhos a mudança e a vontade de continuar mudando. Hoje em

dia ela, que descobriu gostar muito de História, já consegue ler seus próprios livros e, a

cada dia que passa, tem mais sede de conhecimento.

A paciente/aluna, que aparentava ter tantos problemas, talvez só precisasse mesmo de

uma mão amiga disposta a conversar com ela sobre seu problema.

Um dia, se este livro for publicado, a história completa de Maria Helena e a superação do

analfabetismo serão mais um episódio de muito sucesso.

x1

Um quadro mais complicado

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Um quadro mais complicado

A vitória de uma criança autista

A alfabetizadora desta história é novamente Tânia, que mostrou o espaço em que trabalha

e concedeu a este livro mais um depoimento. Este, porém, é sobre um caso bastante com-

plicado.

Diversos tipos de pessoas, além de Maria Helena, aparecem por ali: algumas crianças

com dificuldade de falar em público, outras com hiperatividade, outras ainda que não con-

seguem conviver com os coleguinhas da escola. O tratamento começa quase que igual: a

criança é apresentada ao espaço do haras, ao celeiro e à pista. Dá um olhar desconfiado ao

cavalo, faz carinho, encara as árvores e as frutas – e vai ganhando um pouco de simpatia.

Após o primeiro contato, os trabalhos compreendem muitas vezes a montaria, levando os

mais tímidos a competir fora da cidade e trazer troféus para casa. Sim, aqueles mesmos

que mal conseguiam conviver com outras crianças passam a se tornar tão confiantes em

cima de um cavalo, que levam a confiança para casa e aplicam-na por toda a vida. É um

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trabalho bastante intenso.

Entretanto, um dos trabalhos mais significativos da psicóloga tem outro viés que, por in-

crível que pareça, foge completamente de sua área de atuação: a alfabetização de uma

criança autista. Em uma parte da monografia de Tânia, escrita no ano de 2007, pode-se ler:

“A equitação terapêutica, com a ajuda do objeto transicional metalúdico - o cavalo, possi-

bilita uma maior interação da criança com o meio ambiente e com o outro. O tratamento

iniciou-se quando a criança tinha três anos de idade, estando agora com cinco anos. As

sessões aliadas às suas análises fornecerão subsídios ao leitor na compreensão das difi-

culdades de interação sócio emocional, de linguagem e de comportamento que dificultavam

ou impediam o desenvolvimento do ser cognoscente, emergindo o prazer em aprender por

meio das articulações de seus esquemas.”

- A primeira palavra que ele escreveu foi ‘Figura’, que era o nome do cavalo.

O garoto chegou ao consultório junto com sua mãe. Os motivos eram: não interagir, não

olhar nos olhos, não falar e fazer uso da mão do outro como se fosse extensão da dele

(auxílio mecânico). Os sintomas foram percebidos pela avó materna, quando o paciente,

João, tinha oito meses. Após consultas, a família foi aconselhada a esperar e, quando ele

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completou um ano, fez novos exames. A neurologista detectou imaturidade neurológica no

córtex frontal direito. No occipital detectou-se estrabismo, o que descartava o possível pro-

blema de audição. Ele foi encaminhado a fazer um tratamento fonoaudiológico.

Quando chegou ao consultório de Tânia, ele não falava, apenas observava todo o cenário,

as baias e o cavalo que iria ser peça-chave em sua terapia, o Figura. Após um primeiro con-

tato com Figura, o menino e a psicóloga montaram e saíram para passear. Ele continuou

calado e às vezes ria. Apenas isso.

Ao entrar na sala de terapia, João ganhou uma folha de papel e alguns lápis coloridos e

começou a rabiscar. Ao notar a presença de Tânia ao seu lado, começou a balbuciar “Ôôô!

Ôôô!”. Pacientemente, ela perguntou o que ele queria dizer e pediu para que ele tivesse

calma, que ela estava se esforçando e iria entendê-lo. “É ‘vovô’ que você quer dizer?”. A

psicóloga se juntou ao garoto e desenhou com ele a caminhoneta do avô, escrevendo ao

lado as palavras “caminhoneta”, “vovô”, “carro”, “cavalo”, “vovó” e “carro da vovó”. Ele ape-

nas observou. No segundo dia de terapia, foi apresentado à égua mais velha do rancho,

que todos chamam de avó. Ao final, João passou por ela e repetiu “vó”. Passados poucos

dias, ele já conseguia repetir mais palavras.

O primeiro contato do paciente com as letras aconteceu quando estava em cima do cavalo.

81

Com várias penduradas na cerca, Tânia apanhava uma a uma e entregava ao menino fa-

lando qual era, para que ele pudesse assimilar. Após um tempo, João desenhava a letra “A”

sozinho, sem ninguém pedir. Foi o primeiro passo. Associando as vogais a palavras de fácil

pronúncia, João passou a distingui-las sem ajuda após dois meses de tratamento.

O impressionante é que, gradativamente, o garoto passou a se interessar mais pelos brin-

quedos que continham letras e, assim, Tânia começou a ensinar-lhe as consoantes. O

trabalho de novamente pegar letra por letra enquanto estavam no cavalo, segundo ela,

deu-se porque a criança tem mais facilidade com coisas concretas, coisas que ela possa

pegar com as mãos.

Em pesquisa feita novamente nas obras do Professor Ernani Maria Fiori, lê-se: “uma pes-

quisa prévia investiga o universo das palavras faladas, no meio cultural do alfabetizando.

Daí são extraídos os vocabulários de mais ricas possibilidades fonêmicas e de maior carga

semântica – os que não só permitem rápido domínio do universo das palavras escrita como,

também, o mais eficaz engajamento de quem a pronuncia, com a força pragmática que

instaura e transforma o mundo humano.”

João foi aprendendo a falar, reconhecer letras e números ao longo das sessões. Logo, já

sabia toda a ordem do alfabeto e fazia várias brincadeiras. A primeira palavra que formou

82

foi seu nome. Com a ajuda da psicóloga, ele pegou letra por letra e posicionou-as para que

formassem “JOÃO”. Logo após, já com menos dificuldade, escreveu “mamãe” e “papai”.

Neste dia, entregou a folha escrita de presente para sua mãe.

Após algumas sessões, o garoto começa a escrever as palavras com as quais se familiari-

zou, quando brincava com o cavalo. “Figura”, “cocho”, “carinho” passaram a fazer parte de

seu universo.

Em um dia de chuva, Tânia apresentou a João uma sequência lógica que continha cartas

de números e cartas de histórias. Ao que o garoto escolheu primeiro a de números, ela o

ensinou a desenvolver os algarismos de um a nove em ordem correta e ele não apresentou

muitas dificuldades. Passado isso, ele quis fazer a sequência de histórias. A escolhida con-

tinha quatro cartas que contavam o seguinte:

“A mamãe pata saiu de casa com os patinhos e foi passear!”

Segundo quadro:

“Um dos patinhos se distraiu com um grilo e se perdeu!”

Terceiro quadro:

“Começou a relampejar e o patinho ficou com muito medo!”

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Quarto quadro:

“O patinho entrou dentro de um balaio e se escondeu! Ficou escondido lá até a chuva

passar!”

Quinto quadro:

“Quando a chuva passou, a mamãe pata achou o patinho, o abraçou e o beijou!”.

O garoto observava enquanto Tânia contava a história e interagia bastante com ela. Co-

mentava que o patinho tinha medo de chuva, dava risada e pedia para que ela repetisse.

Ele aparentava observar e prestar atenção a cada mínima parte do conto, interagindo com

a literatura.

Num outro dia, ainda, João deu um passo grande à frente. Após fazer carinho no cavalo em

que montava, o Figura, ele alcançou no armário duas placas de letras móveis, apontou-as

e disse “Figura”. A entrevistada então perguntou se ele gostaria de escrever o nome do

cavalo e o garoto disse que sim. Ao soletrar a palavra, ele conseguiu escrever “Figura” e

“Felipe”, o nome do ajudante.

O método de Tânia, apesar de muito mais elaborado devido às circunstâncias do problema

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que a criança possui, pode ser relacionado com o que Celina, mesmo sem tantos recursos,

utilizou com Bruno, o garoto que não conseguiu ser alfabetizado na escola.

Num primeiro momento, o aluno teve que se sentir acolhido, vendo que alguém se impor-

tava com ele e iria ajudá-lo (mesmo que João, no início, não percebesse isso com tanto

discernimento). A partir daí, os dois foram convidados a experimentarem o mundo sozinhos,

formando palavras, frases e textos a partir de seu próprio movimento. Os dois garotos tive-

ram seus problemas resolvidos dentro dos parâmetros de vida de cada um e João, hoje em

dia, apresenta um quadro evolutivo muito maior do que a maioria das crianças autistas. Foi

uma vitória incalculável.

O convívio com um mundo novo e prazeroso (o mundo da equitação, da natureza, das no-

vidades) trouxe ao garoto elementos fundamentais para sua evolução na leitura, na escrita

e até na fala. Recebendo o estímulo da psicóloga, ele descobriu sozinho um mundo novo e

fez dele o apoio para sua meta que, com muito prazer, foi alcançada e superada. A amizade

e a paciência, mais uma vez, foram fundamentais.

x1

Para terminar...

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Para terminar...

O lance é que a educação é fortemente completada pelo serviço voluntário, sim, e a força

de determinadas pessoas pode mudar o mundo de outras – e melhorar o nosso. Como diz

Paulo Freire, os homens humanizam-se trabalhando juntos para fazer do mundo um lugar

mais consciente e livre.

Estas histórias passearam por vários lados: vergonha, humilhação, falta de recursos, fra-

cassos, sucessos, medo de tentar o novo e medo até de consegui-lo. O Brasil não só apre-

senta problemas em restaurar o que tem de velho, como também em fazer nascer o novo,

a nova vontade de aprender, o novo ponto de partida.

Talvez quando Celina disse que o país se espelha demais em culturas externas, ela estives-

se certa. Além das americanizações das lojas, roupas, comidas e até da língua portuguesa,

existem aquelas escolas que fãs número um do modelo que os Estados Unidos criaram,

para a criança estudar como se não existisse infância, brincadeiras, pés no chão e tombo

de bicicleta. Em meio às entrevistas para que este trabalho fosse realizado, ouviu-se de

tudo, inclusive pessoas que alegaram que jamais colocariam seus filhos em colégios que

ocupam orgulhosamente a primeira posição no ranking de aprovados em vestibulares das

principais universidades do país. A educação deve vir como libertação para o homem, como

abertura e portas para um mundo que lhe abrirá o dobro de portas e assim por diante. O sis-

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tema de pressionar sobre o futuro, contratar os melhores professores do mundo e colocar a

apostila com as questões mais complicadas para o aluno aprender parece um pouco cruel e

até, como disseram entrevistados, inútil. É um esforço enorme que completa apenas e soli-

tariamente um único caminho da vida: a entrada para a universidade. E daí todos os outros

talvez tenham sido eliminados e o recém-declarado universitário aparece na faculdade sem

experiências de vida, sem ter ido a festas e viagens (a não ser, talvez, aquela de formatura),

sem ter conhecido muitas pessoas e até mesmo sem saber se cuidar direito. Vale a pena?

O método engessado de estudo também pode não ser a melhor ideia. Do mesmo jeito que

a falta de recursos dos colégios públicos, apesar de inevitável, também não é. E nem a bi-

blioteca mantida pela prefeitura da cidade, se não houver um incentivo para que as crianças

e adolescentes aproveitem seu tempo livre – que é tão importante quanto o tempo ocupado

– para ali passear, aprender e descobrir. Um mundo que vende mais jogos de videogames

e computadores do que livros não pode, de maneira alguma, ser considerado um mundo

correto.

Está tudo errado há muitos e muitos anos, provavelmente há anos mais longínquos do que

os cinquenta, quando passaram pela vida de Neuza aqueles senhores que, no final das

contas, tinham vergonha de querer se alfabetizar. E talvez Luiz, o cunhado, não tenha re-

cebido a instrução necessária na escola para se aproximar dos estudos e, por causa disso,

quase não tenha realizado o simples sonho de se casar.

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A questão é que – com o perdão aos revolucionários – gritar num mundo em que mal se

ouve o alarme do despertador anda sendo pouco significativo. As greves, os abaixo-assi-

nados, os movimentos estudantis, as manifestações de rebeldia contra o sistema e as pas-

seatas infelizmente não têm a mesma voz ativa de antes. Elas, que já foram responsáveis

por derrubar governantes e fizeram com que todas as pessoas se mobilizassem por uma só

causa, hoje em dia perderam parte do efeito. Talvez estejam um pouco certos aqueles cha-

tos que dizem que a juventude não é mais a mesma ou talvez os políticos de agora sejam

mais desavergonhados e despudorados do que os de antigamente. Talvez o mundo tenha

mesmo se tornado um lugar mais difícil de se viver, como dizem os saudosistas. Talvez as

três coisas. Talvez mais um bilhão delas.

Não existe como ter certeza absoluta da impressão que cada pessoa vai carregar deste

punhado de reportagens. Uns podem levar para o lado do romantismo e da melancolia, ou-

tros, para a revolta contra o sistema. Nenhuma destas foi a intenção. Até mesmo para aque-

les que não tiveram impressão alguma sobre essas oito histórias, se é que eles existiram,

não se pode dar a missão cumprida. A sementinha aqui plantada vai um pouco mais além.

Em meio à gritaria de verdades absolutas e certos versus errados, algumas pessoas fize-

ram a diferença e isto só foi revelado agora por causa das entrevistas. A Celina, por exem-

plo, levou muito a falar sobre seu aluno e, mesmo assim, relutou em fazê-lo. E ainda bem

que o fez. A diferença que sua história fez não poderia ser somente guardada para Bruno

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e sua família, sendo que pode fazer muitas outras pessoas a pensarem de outra maneira

e a levar em conta a ideia de que infelizmente a educação no Brasil, para ter sucesso, não

pode caminhar sem ajudas externas.

Porém não, não deixem de revolucionar, não deixem de estudar bastante, não deixem de

ouvir as verdades certas e erradas. A questão é que uma sociedade melhor leva na receita

muitos e muitos ingredientes e todos devem estar frescos e ser colhidos todos os dias. Se a

população favorecida não se mobilizar para ajudar aqueles que não têm recursos, o mundo

continuará amarrado a um elefante branco que engorda cada vez mais. Se o número de

voluntariados não crescer e não puder ser contado como uma diferença considerável, os

revolucionários e os estudiosos não completarão a receita deste bolo tão difícil de fazer e

não desamarrarão o elefante branco. É, basicamente, como se fosse um grande trabalho

em equipe, daqueles que o monitor do acampamento programa para testar a capacidade

das crianças. Os destacados, que conseguem fazer a fogueira acender ou o barco a remo

chegar ao final do rio, são os que enxergaram mais além e conseguiram com que seus

colegas os ajudassem por um mesmo ideal. O melhor grupo da corrida foi aquele em que

alguns tiveram que parar para levantar os outros pela mão.

Não é novidade alguma que o sistema de educação, sendo esse seu propósito ou não,

favoreça apenas os que já são bem favorecidos também pelo dinheiro ou os que deram

muita sorte em algum momento da vida. E estes são uma minoria muito pequena. E que o

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sistema, na maioria das vezes, não chegou à maneira ideal.

O livro “A Pedagogia do Oprimido”, do autor Paulo Freire, cita o seguinte trecho: “a luta pela

humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como

pessoas, como ‘seres para si’, não teria significação. Esta somente é possível porque a

desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas

resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos”.

O homem, para querer mudar, precisa perceber-se dentro de uma situação estagnada, que

não vai levá-lo a lugar algum.

Moral da história: professores muitas vezes não são capacitados, pais não têm tempo e

nem a tradição de ajudar seus filhos, colégios cobram muito ou não cobram nada, crianças

crescem sem o mínimo interesse pela leitura e sem contato não obrigatório com ela. E a

solução depende das horas de sono a menos no domingo, da novela não assistida e do

descanso interrompido. Das ideias discutidas em grupo, das ideias inovadoras. Depende

daquilo que pode não parecer absolutamente nada demais, mas que pode mudar rotinas e

futuros.

É aquela velha história de slogans de campanhas do agasalho: o que sobra para você está

fazendo falta para muitas pessoas. E talvez por um motivo que a todos escape, a ajuda

costuma vir dos quase tão necessitados quanto os que precisam de ajuda, que vão dividir

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o pouco (de roupa, comida, ensino ou alfabetização) com aqueles que não têm nenhum.

E dividir e ajudar o próximo nunca foi tão urgente.

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Bibliografia:

FREIRE, Paulo – A Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, 2011

FIORI, Ernani Maria - A Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, 2011

GONZALES, Tânia Maria Santarém – Os ganhos cognitivos de uma criança com transtorno

invasivo do desenvolvimento por meio das vivências lúdicas da equitação terapêutica: Um

estudo de caso, Garça, 2007

FERREIRO, Emília – Psicogenese da Língua Escrita, Nittas e Vídeo, 2008

AYRES, Bruno Ricardo Costa - Os centros de voluntários brasileiros vistos como uma rede

organizacional baseada no fluxo da informação, 2001