Fundamentos de Direito Público

39
Capítulo I Regulação Jurídica do Poder Político 1. Poder 1. Os seres humanos não vivem sós. Buscam sempre, por diversos modos, estabelecer relações as mais variadas com seus semelhantes: comunicam-se, trocam bens, unem esforços em atividades comuns, compartilham os espaços. A vida humana é, essencialmente, uma experiência compartilhada. A vida impõe, portanto, a formação de grupos sociais. Cada indivíduo participa de inúmeros grupos, no interior dos quais mantém relações. Inicialmente, todos integram o grupo de habitantes da Terra, vinculados por interesses em parte se- melhantes - a preservação da paz e da natureza, o respeito mútuo - e em parte distintos - a disputa por territórios, o pagamento de dívidas internacionais. Depois, esse grande grupo vai se dividindo, quase ao infinito, em múltiplos outros: o dos habitantes de um mesmo continente, o dos nacionais de um país, o dos moradores de uma cidade, o dos empregados de uma empresa, o dos membros de um partido político, o dos inte- grantes de uma _família. A convivência, seja dos indivíduos no interior desses gru- pos, seja de cada grupo com os demais, depende de um fator essencial: da existência de regras estabelecendo como devem ser as relações entre todos. Em uma palavra: a convivência depende da organização. - Os integrantes de cada grupo social - uma família, uma empresa, um clube, uma cidade, um país, o mundo - vivem sob regras comuns. O grupo social pode ser definido, portanto, como a reunião de indivíduos sob determinadas regras.

description

Livro sobre os fundamentos de Direito Público estudados na matéria de Direito Constitucional II

Transcript of Fundamentos de Direito Público

Page 1: Fundamentos de Direito Público

Capítulo I

Regulação Jurídica do Poder Político

1. Poder

1. Os seres humanos não vivem sós. Buscam sempre, por diversos modos, estabelecer relações as mais variadas com seus semelhantes: comunicam-se, trocam bens, unem esforços em atividades comuns, compartilham os espaços. A vida humana é, essencialmente, uma experiência compartilhada. A vida impõe, portanto, a formação de grupos sociais.

Cada indivíduo participa de inúmeros grupos, no interior dos quais mantém relações. Inicialmente, todos integram o grupo de habitantes da Terra, vinculados por interesses em parte se­melhantes - a preservação da paz e da natureza, o respeito mútuo - e em parte distintos - a disputa por territórios, o pagamento de dívidas internacionais. Depois, esse grande grupo vai se dividindo, quase ao infinito, em múltiplos outros: o dos habitantes de um mesmo continente, o dos nacionais de um país, o dos moradores de uma cidade, o dos empregados de uma empresa, o dos membros de um partido político, o dos inte­grantes de uma _família.

A convivência, seja dos indivíduos no interior desses gru­pos, seja de cada grupo com os demais, depende de um fator essencial: da existência de regras estabelecendo como devem ser as relações entre todos. Em uma palavra: a convivência depende da organização. -

Os integrantes de cada grupo social - uma família, uma empresa, um clube, uma cidade, um país, o mundo - vivem sob regras comuns. O grupo social pode ser definido, portanto, como a reunião de indivíduos sob determinadas regras.

Page 2: Fundamentos de Direito Público

20 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBUCO

2 . Para existirem tais regras , alguma força há de produ­zi-las ; para permanecerem, alguma força deve aplicá-las, com a aceitação dos membros do grupo. A essa força, que faz as regras e exige o seu respeito . chamél-sc poder .

Norberto Bobbio, mencionando a distinção de três correntes expli­cando o significado do poder, indica que a mais aceita "estabelece que por 'poder' se deve entender uma relação entre doi s sujeitos . dos _ quais o primeiro obtém do segundo um comportamento que . em caso contrário, não ocorreria. A mais conhecida e também a mais sintética das definições rei acionais é de Robert Dahl: "A influência (conceito mais amplo, no qual se insere o de poder) é uma relação entre atores , na qual um ator induz outros atores a agirem de um modo que, em caso contrário, não agiriam " ( 1963 , trad . it., p. 68) . Enquanto relação entre dois sujeitos, o poder assim definido está estreitamente ligado ao conceito de liberdade; os dois conceitos podem então ser definidos um mediante a negação do outro: O poder de A implica a não-liberdade de B. A liberdade de A implica o não-poder de 8" (F.stado . Governo. Sociedade, p . 78) .

Em todo grupo um, ou alguns, dos membros exerce sobre os outros o poder: na família, os pais sobre os filhos; na em­presa, o diretor sobre os gerentes, os gerentes sobre os chefes de seção , os chefes sobre os demais .

2. Poder político

3 . Se é certo que em todo grupo organizado há um poder, existem no entanto diferentes espécies de poderes e, em conse­qüência, diferentes espécies de grupos sociais. Dentro da em­presa, o poder do patrão sobre o empregado resulta da depen­dência econômica: o empregado insubmisso (que não aceita o poder do patrão) perde o emprego. No clube, o poder da dire­toria se expressa, entre outros meios, pela possibilidade de punir os associados.

Ao pensarmos no Brasil como um grupo de pessoas (brasi­leiras e estrangeiras) organizadas sob determinadas regras, que permitem a convivência de todas, verificamos ser ele também um grupo social, pertencente à espécie a que chamamos de Estado. Então, !!S?_ Estado brasileiro há um poder, que sujeita todos os habitantes do país. Damos a esse poder a designaçãt>

Page 3: Fundamentos de Direito Público

, '

REGULAÇÃO ) URÍDICA DO PODER POLÍTICO 21

de poder político. Qual a peculiaridade dele, a determinar sua - dístinção em relação aos demais tipos de poderes existentes?

4 . A primeira característica do poder político é a possibi­lidade do uso da força física contra aqueles que não se compor­tem de acordo com as regras vigentes: quem não obedece à proibição de matar seu semelhante é perseguido e preso; quem não paga os impostos é privado de seus bens. f: verdade ser uma exceção o uso, pelo Estado, da força física contra os mem­bros do país. Mas essa possibilidade existe, como último recurso contra os insubmissos, e é em virtude dela que as pessoas, nor­malmente, aceitam, sem resistir, as imposições do Estado.

fsso não é tudo. O que há de significativo no Estado é o fato de ele reservar para si, com exclusividade, o uso da força. O Estado nega, a quem por ele não autorizado, o direito de usar a força contra os outros indivíduos. Assim, a segunda ca­racterística fundamental do poder estatal é a de não reconhecer a ninguém poder semelhante ao seu.

Então, a peculiaridade do poder do Estado (poder político) é, de um lado, o basear-se no uso da força física, e, de outro, o reservar-se, corn exclusividade, o uso dela.

"Uma vez reduzido o conceito de Estado ao de política e o conceito de política ao de poder, o problema a ser resolvido torna-se o de diferenciar o poder político de todas as outras formas que pode assumir a relação de poder. ( ... ) O poder político vai-se assim identifi­cando com o exercício da força e passa a ser definido como aquele poder que, para obter os efeitos desejados (retomando a definição hob­besiana) tem o direito de se servir da força, embora em última instância, como extrema ratio. ( ... ) Se o uso da força é a condição necessária do poder político, apenas o uso exclusivo deste poder lhe é também a condição suficiente'' (Norberto Bobbio. Esta~o. GoJJerno. Sociedade. pp. 78-80 e 81).

\~ )

5. Decorrem disso duas consequencias muito importan­tes. A primeira: o poder do Estado se impõe aos demais poderes existentes em seu interior, razão pela qual lhes é superior. Os poderes do patrão, do pai, do sindicato, da diretoria do clube, são subordinados ao poder do Estado. A segunda: o Estado não reconhece poder externo superior ao seu. O Estado brasileiro não admite que o alemão exerça qualquer poder sobre as pessoas residentes no Brasil. A isso denominamos ~oberanil!.:..J

L') -<

Page 4: Fundamentos de Direito Público

'i

l \~

22 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

6. Resumindo, o grupo organizado de pessoas chamado Estado:

a) mantém-se com o uso da força; b) reserva para si seu uso exclusivo;

c) não reconhece poder interno superior ao seu; d) não reconhece poder externo superior ao seu (é sobe­

rano).

3 . Estado-poder e Estado-sociedade

7. Mas, no interior do Estado, como em todo grupo, há alguém que exerce o poder e quem se submete a ele. Quem é, dentro do Estado, o detentor do poder e quem é seu desti-natário? ~'

Chamaremos o detentor do poder político de Estado-poder e seu destinatário de Estado-sociedade. O Estado-poder é inte­grado por aqueles que definem as regras de convivência na sociedade e as aplicam, com o uso da força, se necessário: o

~ presidenteda repúEhcã, os ministros, os deputados e senadores, os governadores, os deputados estaduais, os prefeitos, os verea­dores, os juízes, os servidores públicos em geral. O Estado­sociedade é formãdo por todos os habitantes do país.

8. O Estado-poder cria e faz cumprir as regras regendo as relações das pessoas dentro do Estado-sociedade: as de rela­cionamento entre pais e filhos, patrão e empregado, credor e devedor, entre vizinhos. Quem não as cumpre espontaneamente, sujeita-se ao uso da força, pelo Estado-poder, para a obtenção da obediência. A essas regras, criadas pelo Estado-poder e im­postas com o uso da força, chamamos de normas jurídicas.

Normas são regras de conduta. A regra segundo a qual as pessoas não devem comer à mesa com as mãos também é uma norma, pois também pretende impor condutas. Porém, não é norma jurídica. A razão é simples: sua observância não ode ser imp~sta com o uso ~ Se não ate tar a ela, não mais serei convidado a jantar com os amigos, mas não rei por eles fisicamente constrangido a usar os talheres. A regra pel qual os pais devem alimentar os filhos é norma jurídica: se descump da, pode levar à prisão do pai, imposta pelo Estado-poder.

v o \' I.J, . • ~r "!< t • ~ • \ f f •, '-I

' ~-r l f' '

Page 5: Fundamentos de Direito Público

I '

REGULAÇÃO JURÍDICA DO PODER POLÍTICO 23

9. O Estado-poder não é um ser humano, não é pessoa no sentido comum da palavra. Vimos que é integrado por indi­víduos. No entanto, quando realizam as atividades do Estado­poder, seus integrantes não o fazem como se cuidassem de suas próprias vidas, mas sim como se, naquele momento, fossem outras pessoas. Quando o servidor público varre a rua, quem está limpando a cidade é o Estado-poder. Quando o Presidente da República expulsa estrangeiro do país, quem pratica o ato é o Estado-poder. Quando o juiz condena um criminoso, a sen­tença é do Estado-poder. Assim, pode-se dizer que esses indi­víduos agem no lugar de outra pessoa (o Estado-poder), que só existe em nossa imaginação. Essa pessoa imaginária é uma pessoa jurídica.

O Estado-poder é uma pessoa jurídica. Para maior facili­dade, passemos a chamá-lo simplesmente de Estado.

O Estado, como pessoa que é, relaciona-se com os membros da sociedade. O Estado se relaciona com o criminoso, quando o condena à prisão; com a empresa, quando a contrata para fazer a limpeza de prédio público; com o servidor público, quando o demite do trabalho; com todos os indivíduos, quando edita normas jurídicas regendo suas vidas. Existirão regras esta­belecendo os termos da convivência da pessoa Estado· com os membros da sociedade? (Quando alguém pode ser condenado à prisão? Quais os direitos e deveres da empresa que contrata com o Estado? ~ possível demitir servidor público? Como deve ser feita a norma que vai reger a vida dos indivíduos?)

O que regula tudo isso são normas jurídicas. Existem, por­tanto, normas jurídicas para reger a relação da pessoa Estado com as demais pessoas.

Interessante perceber que, sendo normas jurídicas, essas regras de­vem ser obedecidas, seja pelos indivíduos, seja pelo Estado. Daí ,a dúvida: se o Estado não cumprir as normas (condenando alguém inde­vidamente à prisão, deixando de pagar a empresa pelos serviços reali­zados, demitindo servidor que não podia ser dispensado, editando nor­mas sem observar os requisitos necessários) quem vai obrigá-lo a se submeter, usando até a força, se necessário? Veremos mais tarde que é o próprio Estado quem fará isto. Parece improvável, à primeira vista, que o Estado constranja a si próprio, mas existem mecanismos adequa­dos para garantir o funcionamento do sistema.

Page 6: Fundamentos de Direito Público

..

24 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

4 . Direito público e direito privado

10. Vimos até aqui que as relações dos membros da so­ciedade entre si (o marido com sua mulher, os comerciantes com os consumidores, os empregados com seus patrões, o loca­dor com o inquilino) são regidas por normas jurídicas. E, tam­bém, as relações entre o Estado e os membros da sociedade (indivíduos em geral, empresas, servidores públicos) são regidas por normas jurídicas.

O conjunto de todas essas normas forma o Direito. Para facilitar seu estudo, vamos dividi-lo em dois grandes grupos: o direito público e o direito privado. Veremos mais tarde qual a utilidade e sentido exato dessa distinção. Por ora, podemos trabalhar com estas noções aproximativas (um tanto imprecisas. ainda):

a) O direito privado é formado pelo conjunto de normas regendo as relações dos indivíduos entre si, dentro do Estado­sociedade (relações de família, relações dos comerciantes entre si e entre comerciantes e seus clientes, relações entre locador e inquilino, e outras mais);

b) o direito público é formado pelo conjunto de normas que regulam as relações entre Estado e indivíduos (relações Estado-servido r, Estado-empresa, etc.).

11 . Podemos agora ampliar um pouco a idéia de direito público, embora sem pretender um conceito científico.

O Estado, sendo pessoa jurídica, é integrado por muitos indivíduos, que realizam (cada qual como se fosse o próprio Estado) as várias atividades estatais: produzir leis (uma das espécies de normas jurídicas), julgar os acusados de crimes, prestar os serviços públicos (como os de transporte coletivo e iluminação urbana), e assim por diante. Chamamos esses indi­víduos áe agentes públicos (o governador de Roraima, o juiz de Pirassununga, o deputado federal do Paraná, o fiscal de rendas, o procurador da república). f. claro que os agentes pú­blicos não escolhem, por sua vontade, a atividade estatal que vão desenvolver. Cada qual tem sua com_petência sua atribuição. Vários agentes integram um órgão (os procuradores da repú":'

Page 7: Fundamentos de Direito Público

R?cULAÇÃO I URÍDICA DO PODER POLÍTICO 25

blica integram a Procuradoria Geral da República). A divisão de competências entre os vários agentes (0 que faz um gover­nador? O que faz um fiscal?) e entre os vários órgãos (Qual a atribuição do ministério da economia? E da secretaria da segu­rança pública?) é estabelecida em normas jurídicas. Normas de direito público, é evidente, por tratarem da organização da pessoa jurídica Estado.

Ainda mais. O Estado brasileiro trava relações com outros Estados (o argentino, o indiano, o italiano), celebrando trata­dos, trocando embaixadores, fazendo intercâmbio científico. Essas relações são regidas por normas de direito público.

12. Agregando-se essas referências, podemos dizer que o Direito Público é o ramo do Direito composto de normas jurí­dicas tratando:

a) das relações do Estado com os indivíduos;

b) da organização do próprio Estado, através da divisão de competências entre os vários agentes e órgãos;

c) das relações entre Estados.

Perceba como esses conceitos simples são apresentados por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, um dos mais importantes juristas que se dedicaram no Brasil ao estudo do direito público:

"As normas jurídicas que organizam o Estado-poder e regulam a sua ação, seja em re1ação com outros Estados, seja em relação com tr

• própria entidade, através dos seus órgãos, ou com outras pessoas, que receberam o encargo de fazer as suas vezes, ou mesmo com terceiros, particulares, no Estado-sociedade, a fim de realizar o objetivo deste,

• são de valor social diferente das normas jurídicas prescritas para rege­rem as relações dos partículares, entre si, ou das comunidades por eles 'formadas.

• "Isto se explica porque ordenam institutos jurídicos para o Es-tado-poder alcançar o bem comum dos indivíduos coletivamente consi­derados .como elemenfõs o EStado-sociedade, como- part1c1pantes de

"11m todo político. Não se confundem com os oferecidos aos particulares para alcançarem imediatamente o seu bem individual, de cada qual iso­ladamente considerado, nas suas relações recíprocas.

"Fundamentam, destarte, a distinção do direito em dois ramos distintos: público e privado" (Princípios Gerais de Direito Administra­tivo, vol. I, p. 13).

13. Voltando agora à idéia de poder político, é fácil cons­tatar que o direito público compõe-se das normas jurídicas regu-

Page 8: Fundamentos de Direito Público

26 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

!adoras do seu exercício. Definimos o poder político como aquele que, para obter os efeitos desejados (para obrigar os indivíduos a respeitarem suas determinações) tem o direito exclu­sivo de se servir da força e que não reconhece poder superior ao seu, interno ou externo. ~ireito público disciplina as rela: ções entre o Estado (que detém o poder político) e os indi:

..Yicluo§..(que sofrem o poder político), ~a~ a distri~içãoJ!o poder político del}tro da pessoa jurídic.a Estado. (entre os diver­sos agentes e órgãos) ~gula as rela_ções ~ntre _os vários Esta­dos (isto é, entre os detentores de poder político).- ~

14. Nosso curso, de fundamentos do direito público, estu­da a regulação jurídica do poder político, isto é, as normas iurídicas ~e discjplinaJll sua organiza_ção (dentro da pessoa jurídica Estado) .s-seu exercício, nas relações com quem sofre o poder (os indivíduos) e com os outros Estados.

- ·\leia que não estudaremos o próprio pod'er político, mas as normas jurídicas que o regulam. Portanto, não veremos a sociologia do poder, a história do poder, a psicologia do poder, mas apenas o direito do poder. Em suma, cuidaremos da ciência do direito público (estudo das normas que regulam o poder político).

15. Só se conhece o direito público depois de saber o modo como as normas regulam o poder político (f: ele limitado? Como é dividido seu exercício? O indivíduo tem instrumentos jurídicos para se opor ao poder político? Um Estado obedece às leis do outro?) Até este momento, sabemos apenas qual será o objeto do estudo. Por isto, não podemos ainda definir o direito público: antes, precisamos descobrir as características dele, em seus aspectos fundamentais. Também não há como indicar ainda o que o distingue em essência do direito privado. Qual a distin­ção entre um macaco e um ganso? Certamente não é o fato de terem nomes diferentes, antes ao contrário: têm nomes distintos porque têm características diversas.

Em outras palavras, queremos dizer que a reunião, em dois conjuntos distintos (direito público/ direito privado) de cer­tas normas jurídicas, resulta de havermos constatado que as normas do conjunto que chamamos direito público regulam as

Page 9: Fundamentos de Direito Público

\

REGULAÇÃO JURÍDICA DO PODER POLÍTICO 27

relações delas objeto (as relações do poder político) de modo radicalmente diverso do que as normas do conjunto direito privado disciplinam as relações de que se ocupam (outras rela­ções que não as envolvidas com o poder político).

5 . Plano

16. Sendo certo que o Estado exerce o poder político, o estudo da regulação jurídica deste deve esmiuçar aquele, tanto em seu aspecto estático (enquanto ser, enquanto instituição), quanto em seu aspecto dinâmico (enquanto ação).

Partindo de rápida visão sobre o progresso, através dos tempos, da regulação jurídica do poder político - que servirá ao menos para vislumbrar as razões que encaminharam o Estado moderno a ser como é hoje em dia - fixaremos o conceito de Estado Social e Democrático de Direito. Isso porque não nos interessa verificar o modo de ser do direito público de qualquer Estado, mas sim o do tipo de Estado no qual o brasileiro atual se classifica.

Com esse pano de fundo, iniciaremos um percurso que nos leve a surpreender o poder político em seus aspectos quem?, o que?, como? e para quem?.

17 . A análise revelará que o Estado é pessoa jurídica (dando significado à afirmação nesse sentido lançada um pouco acima), mostrando como se estrutura ·e como se relacionam seus agentes e órgãos. O primeiro ponto, então, consiste no exame do Estado enquanto sujeito de direito.

O segundo tópico destina-se a apontar o que faz o Estado, quais são suas atribuições. Relevante, aí, será não apenas co­nhecer as atividades em si, como, sobretudo, saber de sua re­percussão jurídica na vida social. Resultará, igualmente, uma nítida distinção entre o campo público de atividades (o setor das atividades reservadas ao Estado) e o campo privado de atividades (o setor reservado aos indivíduos).

Prosseguindo, teremos noção de como se exerce o poder, das várias etapas que demanda a produção de um ato estatal e da maneira como os indivíduos podem participar.

Page 10: Fundamentos de Direito Público

I

28 FUNDAMENTOS DE DJREITO PÚBLICO

A seguir, será hora de verificar a posição em que o Estado se apresenta em face do indivíduo e este em face daquele. Em outras Jlalavras, de saber quais são os termos das relações jurí­dicas entre eles. Descobriremos, então, que o direito público não é - como poderia parecer inicialmente de um ramo jurí­dico relativo à disciplina do poder político - um direito auto­ritário, mas certamente o oposto: um conjunto de normas cuja finalidade primordial é cercear o poder e, como conseqüência , proteger os indivíduos .

18 . Delineado o painel inicial, poderemos aprofundar e tornar mais precisos nossos conhecimentos, o que faremos estudando em seqüência o direito e a ciência jurídica, a grande dicotomia direito público x direito privado, a função dos prin­cípios no direito e, finalmente, os princípios gerais do direito público.

Page 11: Fundamentos de Direito Público

•' l

I . Introdução

Capítulo IJ

Evolução Histórica da Regulação do Poder Político

I . Um estudo jurídico do direito público há de ser feito a partir das normas vigentes em dado país, num certo momento. Os problemas jurídicos não se resolvem, de fato, senão com o exame do direito positivo. As cogitações históricas, políticas e ideológicas não são, enquanto tais, atribuição específica dos juristas.

Contudo, o Direito é fruto de produção cultural, longa­mente sedimentada, sendo por vezes impossível compreendê-lo sem situá-lo dentro da história. Em outras palavras: o Direito consagra certos modelos cujo sentido advém do contexto his­tórico, ideológico ou político em que concebidos. Quando se fala, hoje, em direito público, faz-se referência a um \plexo de idéias consagradas modernamente, sobretudo após ãs Revo­luções Americana e Francesa, em torno das relações entre indi­víduo e Estado, mas que nem sempre foram aceitas e aplicadas. Por isso, como introdução à análise jurídica do direito público e, em certa medida, como condição dela, ftiz-se necessário um exame prejurídico, que revele seu significado cultural.

2 . Pré-história

2. Nos primórdios· - pensemos no homem das cavernas - as relações humanas também adotavam estruturas de poder. Evidente que o caçador, ao usar da força para impedir o outro de apoderar-se do animal abatido, estabelece com ele relação de poder.

Page 12: Fundamentos de Direito Público

30 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

f: difícil, porém, identificar poder político em um grupo pré-histórico nômade. Por razão muito simples: o emprego da força não era reservado a ninguém. Ao contrário, todos disputa­vam suas posições no grupo através da força. Eram instáveis, em conseqüência, as posições no grupo, dependendo do resul­tado das disputas físicas, que se sucediam.

3. Na medida em que o homem começa a se fixar na terra e os grupos vão se organizando em torno de certas regras mais ou menos estáveis - sobretudo as que permitem a deter­minação de quem manda e quem obedece - começa a surgir poder político, ainda que embrionário.

Pensemos na comunidade indígena - o exemplo atual de sociedade primitiva - e na existência de um cacique e um pajé: estes exercem poder político dentro do grupo.

Há regulação jurídica do exercício desse poder? Em ver­dade sim, porém de modo muito limitado. Realmente, observam­se regras de sucessão na posição de chefe (passando de pai para filho, pOr exemplo), de divisão de atribuições (indicando as do cacique, as do pajé), de solução de conflitos. As regras sobre o exercício do poder são, entretanto, em pequeno número, mesmo porque são pouco extensas as atribuições dos chefes.

Não há Estado em sociedade como esta, dada a extrema simplicidade da estrutura de poder e sua não-institucionalização.

3 . Antiguidade \

\

4. A cidade é a unidade política, não só dos gregos, como de toda antiguidade clássica. O grego é um cidadão, integrante da cidade, de cujos órgãos participa.

A lei é elemento essencial da identificação do grt;gQ com a cidade: a coesão desta vem daquela. O grego sente orgJho de se subllleter a um_a. ordem (à lei), nãoà vontade de um nomem. Entretanto, a concepção grega de lei - que vigorará por longos séculos - difere substancialmente da atual. A lei para os antigos era sagrada e Tmutável1 sendo atribuída a um poder divino e, desse modo, integrando a religião. Is~ exp~a porque nãe se- podiam identificar normas regulando o exercício do poder de editar leis (isto é, de editar as normas disciplinandC

Page 13: Fundamentos de Direito Público

..

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REGULAÇÃO DO PODER POLÍTICO 31

as relações dos indivíduos entre si, que hoje chamamos como normas de direito privado): ou não se reconhecia aos homens tal poder - embora, de fato, sempre tenha sido usado pelos pode­rosos -, ou se o reconhecia a título de exceção, ou era expli­cado pelo poder divino dos soberanos.

5. O julgamento dos conflitos envolvendo os indivíduos, desde tempos imemoriais foi assumido pelas autoridades pú­blicas, embora sem a exclusão imediata de membros da comu­nidade em certas decisões. Contudo, isso não levou à identifi­cação da atividade de julgar como regulada por um direito público, diverso do direito privado que se visava aplicar. As normas regendo a atividade de julgar (que hoje incluímos no direito processual, um dos ramos do direito público) eram en­tendidas como parte do direito civil (ramo do direito privado).

Os Tribunais só conheciam das demandas entre cidadãos, não se cogitando do exame judicial de questões envolvendo o Poder Público. Vale dizer: não havia como questionar, perante um órgão julgador, o desrespeito pelos detentores do poder político das normas que regulavam seu exercício.

"Mesmo depois de passar a ser missão do Estado, a proteção dos direitos continuou circunscrevendo-se à proteção dos cidadãos entre si. Os tribunais públicos não podiam conhecer nem das pretensões do Estado ou contra o Estado nem das transgressões da ordem sacra ou doméstica. O Estado se encontrava acima dos tribunais. A sanção dos crimes contra o Estado cabia apenas aos magistrados competentes, com a intervenção, quando necessária, dos comícios (iudicium publicum, pro· vocatio ad populum). A solução dos litígios entre o Estado e os parti· culares com relação aos contratos competia, do mesmo modo que o exercício dos direitos públicos administrativos, aos funcionários que gozavam do necessário poder coercitivo (coercitio), sem fiscalização judicial e sem intervenção de juízes" (História de/ Derecho Romano, Robert Von Mayr, vol. I, p. 105).

6. A administração dos negocws públicos (recolhimento de impostos, policiamento da ordem na cidade, etc.) sempre esteve confiada a certos agentes públicos. Contudo, frequente­mente, essa atividade se confundiu com a de editar normas, estando ambas em poder de um soberano. A rigor, desconhecia­se a disÜnção entre as atividades legislativa e executiva, que só poderá ser feita com clareza quando, a partir sobretudo das

Page 14: Fundamentos de Direito Público

I

32 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

idéias de Rousseau, afirmar-se o princípio da superioridade da, leis. Ademais, não se podia cogitar de regras cogentes. (de observância obrigatória) a regular o exercício das funções admi­nistrativas, eis que não se conhecia a idéia de direito individual. Por isso, é totalmente descabido falar de um direito administra­tivo da época.

7. Cumpre ressaltar devidamente .a inexistência, na anti­guidade, dos direitos individuais.

f: certo que, na Grécia, as idéias de liberdade e de igualdade ocupam espaço fundamental no pensamento político. Porém, são inconfundíveis as concepções grega e moderna de liberdade. A liberdade para os helênicos era, essencialmente, a oportunidade de participar dos negócios públicos, de cumprir uma função na cidade, de se submeter à lei (liberdade política) e a não sujeição corporal de um cidadão a outro (liberdade civil).

Como a cidade, enquanto instituição, era o instrumento da liberdade, esta não seria oponível àquela. Inexistia um direito à liberdade individual contra a autoridade.

Fustel de Coulanges, demonstrando que os· antigos não conheceram o conceito individualista de liberdade, escreve: "Singular erro é, pois, entre todos os erros humanos, acreditar-se que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade. O homem não tinha, sequer, a mais ligeira concepção do que esta fosse. Ele não se julgava capaz de direitos, em face da cidade e dos deuses". E, mais adiante: "Ter direitos políticos, poder votar e nomear magistrados, poder ser arconte, a isto se chamou liberdade; mas o homem, no fundo, jamais deixou de ser escravo do Estado. Os antigos, sobretudo os gregos, exageravam muito sobre a importância e os direitos da sociedade e isto, sem dúvida alguma, devido ao caráter sagrado e religioso de que a sociedade se revestiu na origem" (A Cidade Antiga, p. 185).

8. A distinção teórica entre o direito público e privado foi formulada pelos romanos, que desenvolveram intensamente a doutrina privatista. Entretanto, inexistindo uma consciência clara, à época, da diferença entre o poder político e outras espécies de poderes, como acabamos de examinar, seria impos­sível levar muito longe os estudos em torno da regulação jurí­dica do poder político (do direito público), que teriam de aguardar muitos séculos até que pudessem adquirir feição.

/

Page 15: Fundamentos de Direito Público

'· EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REGULAÇÃO DO PODER POLÍTICO 33

4. Idade média

9. O advento da Idade Média, com a dispersão da auto­ridade entre inúmeros centros de poder (os reis, a Igreja, os senhores feudais, as corporações de ofício, etc.), torna mais complicada a identificação de normas de direito público a re­gerem as relações entre os poderosos e os indivíduos.

Com a autoridade central enfraquecida, as atividades legis­lativa, judicial e administrativa serão disputadas entre os reis, a Igreja, os senhores, as corporações e explicadas com o recurso a idéias variadas. A aspiração da Igreja em erigir um Império da Cristandade e a conseqüente pretensão de · interferir em assuntos temporais estará fundada na religião. Os poderes militares, administrativos, fiscais e jurisdicionais dos senhores feudais será explicado pela situação patrimonial, pela posse da terra , regulada pelo direito privado.

Dalmo Dallari bem analisa a situação do período: "Conjugados os três fatores que acabamos de analisar, o cristianismo, a invasão dos bárbaros e o feudalismo, resulta a caracterização do Estado Medieval, mais como aspiração do que como realidade: um poder superior, exer­cido pelo Imperador, com uma infinita pluralidade de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontável multiplicidade de ordens jurí­dicas, compreendendo a ordem imperial, a ordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direito comuna! que se desenvolveu extra­ordinariamente, as ordenações dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelas corporações de ofícios. Esse quadro, como é fácil de compreender, era causa e conseqüência de uma permanente instabilidade política, econômica e social, gerando uma intensa necessi­dade de ordem e de autoridade, que seria o germe da criação do Estado Moderno" (Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 62) .

5 . Absolutismo

10. A Idade Moderna, com a centralização do poder em torno de um soberano, permitirá enfim a identificação mais clara das regras a regerem as relações deste com seus súditos.

O período se caracteriza pela formação do Estado, de um poder soberano dentro de certo território, sujeitando todos os demais. A idéia de soberania, formulada originalmente por Jean Bodin (Les Six Livres de la Republique, 1576), identificará a

Page 16: Fundamentos de Direito Público

f

34 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

partir de então as normas ligadas ao exercício do poder político. De um lado, explicará a unificação do poder dentro de certo território, com a submissão de todas as pessoas à mesma ordem jurídica e o não reconhecimento de outras ordens - as vigentes em outros territórios - como aplicáveis. E a origem do Estado Moderno. De outro lado, a mesma concepção de soberania servirá para a justificação do absolutismo. O poder soberano não encontra limitação" quer interna, quer externa. Será, por isso, insuscetível de qualquer controle. Parecia, ao espírito da época, que quem detinha o poder- de impor normas, de julgar, de administrar - não poderia ser pessoalmente sujeito a ele: ninguém pode estar obrigado a obedecer a si próprio.

11. Tentando sintetizar as normas que então disciplinavam o exercício do poder político, podemos indicar as seguintes:

a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O Poder Público pairava sobre a ordem jurídica.

b) O soberano e, portanto, o Estado, era indemandável pelo indivíduo, não podendo este questionar, ante um Tribunal, a validade ou não dos atos daquele. Parecia ilógico que o Esta­do julgasse a si mesmo ou que, sendo soberano, fosse submetido a algum controle externo.

c) O Estado era irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no wrong. Destarte, impossível seria exigir ressarcimento por algum dano causado por autoridade pública.

d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí referirem-se os autores, para identificar o Estado da época, ao Estado Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer obrigações ou restrições às atividades dos particula­res. Em conseqüência, inexistiam direitos individuais contra o Estado (o indivíduo não podia exigir do Estado o respeito às normas regulando o exercício do poder político), mas apenas direitos dos indivíduos nas suas recíprocas relações (o indivíduo podia exigir, do outro indivíduo, a observância das normas regu­ladoras de suas relações recíprocas).

Page 17: Fundamentos de Direito Público

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REGULAÇÃO DO PODER POLÍTICO 35

e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centrali­zados nas mãos do soberano, a quem cabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios públicos. Os funcionários só exerciam poder por delegação do soberano, que jamais o alienava.

12. Como se vê, o direito público (vale dizer, as regras que regiam o exercício do poder político) poderia ser resumido, na época, a uma norma básica: o poder deve ser acatado e é ilimitado.

O notável jurista argentino Agustin Gordillo explica por que seria impossível desenvolver-se, nesse clima, o estudo do direito público:

"No Estado de Polícia, em conseqüência, ao reconhecer-se ao soberano um poder ilimitado quanto aos fins que poderia perseguir e quanto aos meios que poderia empregar, mal poderia desenvolver.se uma consideração científica desse poder. Não cremos que se possa afirmar, pura e simplesmente, que não existia um Direito Público, como por exemplo disse Mayer, pois inclusive este princípio do poder ilimi­tado e as normas que dele emanaram constituem um certo ordenamento positivo; porém, ao menos pode-se sustentar que não existia, em absoluto, um ramo do conhecimento jurídico em torno do mesmo" (Princípios Gerais de Direito Público, p. 28).

6. Idade contemporânea

13. A transformação radical da regulação do poder polí­tico, dando-lhe a feição que tem hoje e ensejando a construção da ciência do direito público, ocorrerá na Idade Contemporânea, sendo as Revoluções Americana e Francesa (e as Constituições delas resultantes) seus marcos históricos mais notáveis.

O que há de significativo neste novo período é que os sujeitos incumbidos de exercerem o poder político deixarão de apenas impor normas aos outros, passando a dever obediên­cia - no momento em ue atuam -acertas normas jurídicas cuja finalidade é im_por limites aO- po er-e permitir m conse­qüência, o controle do poder pelos seus destinatários.

O exemplo mais remoto de norma jurídica imposta ao poder polí­tico para limitá-lo, com a finalidade de proteger os destinatários, é o da Magna Carta da Inglaterra, que os barões e prelados ingleses impu­seram ao rei em 1215. O seu parágrafo 39 dispõe: "Nenhum homem livre poderá ser detido ou mantido preso, privado de seus bens, posto

Page 18: Fundamentos de Direito Público

36 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

fora da lei ou banido, ou de qualquer maneira molestado, e não proce­deremos contra ele nem o faremos vir, a menos que por julgamento legítimo de seus pares e pela lei da terra".

14. Perceba como as normas sobre o exe.tc1c1o do _poder se ampliam. Até então, em todas as épocas anteriores, desti­navam-se a impor - praticamente sem limites e sem contrqles - a obediência das pessoas às determinações do poder político. Agora, cuidarão ainda de fazer prevalecer o poder político sobre os indivíduos (que pagarão impostos ao Estado, submeter-se-ão ao seu julgamento, obedecerão as leis por ele produzidas); mas também - e sobretudo - de organizar o Estado para limitar e controlar seu poder (os cidadãos escolhem em eleições os parlamentares, o Parlamento faz normas para regular a cobrança de impostos pelo Executivo, um Tribunal pode anular a lei feita pelo Parlamento, o indivíduo pode mover uma ação judicial para se furtar da cobrança ilegal de impostos ... ) .

Cunha-se, a partir de então, o conceito de Estado de Di­reito, isto é, de um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, contrapondo-se ao superado Estado-Polícia, onde o poder político era exercido sem limitações jurídicas, ape­nas se valendo de normas jurídicas para se impor aos cidadãos.

15. Não há como conhecer o direito público moderno sem ter presente a noção de Estado de Direito. Por isso, vamos estudá-la com detalhes a seguir. Contudo, a evolução da disci­plina jurídica do poder político não terminou aí. A idéia de Estado de Direito, sem perder o conteúdo inicial, foi sendo en­riquecida até se chegar hoje ao Estado Social e Democrático de Direito. Saber o que seja um Estado ao mesmo tempo de Direito, democrático e • social é o objeto do capítulo seguinte.

Page 19: Fundamentos de Direito Público

Capítulo III

O Estado Social e Democrático de Direito

) 1 . Estado de direito

1 . Terminamos o capítulo anterior indicando a noção Estado de Direito como fundamental ao conhecimento das ca­racterísticas essenciais do direito público. Estudá-la significa descobrir princípios que estão estampados em cada norma de direito público . .

A idéia intuitiva a respeito - dada pelo próprío sentido literal da expressão - é aquela segundo a qual Estado de Direito é o que se subordina ao Direito, vale dizer, que se sujeita a normas jurídicas reguladoras de sua ação. O Estado­Polícia apenas submetia os indivíduos ao Direito, mas não se sujeitava a ele.

O professor português Afonso Rodrigues Queiró, após enfatizar, como nós, que "o Estado de Direito não é uma noção secundária e transcurável, mas essencial, primária, um postulado, um pressuposto teórico do direito público", explica seu conceito em termos semelhantes. Confira: "Para nós, como conceito desse tipo de Estado, vale o de Stahl ; 'o Estado deve ser Estado de Direito ... deve assegurar inviola­velmente e perfeitamente determinar os confins e limites de sua ativi­dade e as esferas de liberdade dos seus cidadãos na forma do Direito' . O Estado de Direito é, para Stahl, de certo modo, um conceito formal , e é nesta medida que na ciência do direito público deve ser acolhido. Todas as funções do Estado - e a administrativa in specie - se devem realizar na forma do Direito e as normas do Direito são o quadro da atividade do próprio Estado. ( .. . ) A fórmula de Stahl, que perfilhamos, permite dizer que os fins do Estado devem 'tecnicizar-se nas formas do Direito' (Ravà) e é o que se não passa no outro tipo técnico e histórico, o chamado Estado-Polícia, que por isso se opõe como 'categoria', como 'espécie fixa logicamente' (Panunzio}, ao Estado de Direito. Portanto:

Page 20: Fundamentos de Direito Público

38 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

o Estado do Direito Público moderno é o Estado de Direito. A sua atividade realiza-se dentro de normas, e precisamente de normas jurí­dicas; assim a Justiça como a Admini.stração" (Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder em Direito Administrativo, pp. 8 e 9).

2. Adotado este ponto de partida - o Estado de Direito define e respeita, através de normas jurídicas, seja os limites de sua atividade. seía a esfera da liberdade dos indivíduos - po­demos agregar ainda duas idéias, para chegarmos finalmente ao conceito que procuramos.

De um lado, percebemos que a vinculação do Estado à lei, para ser efetiva, exige que, dentro dele, uma mesma autoridade não seja incumbida de fazer a lei e de, ao mesmo tempo, aplicá­la. Caso contrário, ao fazer a aplicação, poderia alterar a lei anteriormente feita. Ainda: necessária a presença de outra auto­ridade, também diversa das demais, para julgar as eventuais irregularidades da lei e de sua aplicação. Em outras palavras, as funções de fazer as leis (legislar), aplicá-las (administrar) e resolver os conflitos (julgar), devem pertencer a autoridades distíntas e independentes. A isso denominamos separação dos Poderes.

De outro lado, essa separação n.ão pode ser mudada pelo legislador, através de lei, pois, do contrário, bastar-lhe-ia exercer sua atividade (legislar) para anular o poder do administrador e do juiz. Também, os indivíduos não teriam direitos oponíveis ao próprio Estado, se este pudesse suprimi-los através de lei. Em suma, deve haver uma norma superior à lei (e, em conseqüên­cia, superior ao Estado que a produz) definindo a estrutura do Estado e garantindo direitos aos indivíduos. A essa norma chamamos Constituição.

Assim, definimos Estado de Direito como o criado e regu­lado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cida­dãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado.

Page 21: Fundamentos de Direito Público

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 39

Acompanhe como Norberto Bobbio constrói seu conceito em termos semelhantes : "Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que o regulam, salvo o direito do cidadão recorrer a um juiz inde­pendente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso e o excesso de poder. Assim entendido, o Estado de direito reflete a velha doutrina - associada aos clássicos e transmitida através das doutrinas políticas medievais - da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens, segundo a fórmula [ex facit regem, doutrina essa sobrevivente inclusive da idade do absolutismo, quando a máxima prin­ceps legibus solutus é entendida no sentido de que o soberano não estava sujeito às leis positivas que ele próprio emanava, mas estava sujeito às leis divinas ou naturais e às leis fundamentais do reino. Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma deter­minação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos. Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio " invioláveis" (esse adjetivo se encontra no art . 2." da constituição italiana) .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele próprio da

doutrina liberal, são parte integrante todos os mecanismos constitucio­nais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o exercício ilegal do poder" (Liberalismo e Democracia, p . 19).

3. As pedras de toque desse novo modo de conceber as relações entre os indivíduos e o Estado - cuja falta faria des­moronar todo o edifício - são, portanto:

a) a supremacia da Constituição;

b) a separação dos Poderes;

c) a superioridade da lei ; e

d) a garantia dos direitos individuais.

' Vamos examinar cada uma, verificando seu funcionamento e relacionamento.

Page 22: Fundamentos de Direito Público

40 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

1 . 1 Supremacia da Constituição

4. Acima das leis, produzidas pelo Estado, existe uma norma jurídica fundamental, que não é feita nem alterada por ele, estabelecendo os termos essenciais do relacionamento entre as autoridades e entre estas e os indivíduos: a Constituição (também chamada de Carta ou Lei Magna).

O ordenamento jurídico (conjunto das normas jurídicas) pode ser visto graficamente como uma pirâmide. No topo dela se encontra a Constituição, pairando sobre todas as demais normas. A Constituição define quem pode fazer leis (quem tem competência legislativa), como deve fazê-las (qual o pro­cesso a ser seguido) e guais osJ~a lei (p. ex.: os direitos individuais, que não podem ser prejudicados pela lei). Por isso se diz que a lei tira seu fundamento de validade da Constituição. Uma lei vale, deve ser "'õbedecida - seJa pelos P~eres Execu­tivo e Judiciário, seja pelos indivíduos - porque foi feita com base e na forma da Constituição. Um ato do Presidente da República (a nomeação de funcionário, a doação de leite para crianças desnutridas) tira seu fundamento de validade da lei; este ato vale, deve ser acatado, por haver sido produzido na forma e com base na lei. A sentença do juiz (condenando um criminoso, decretando o despejo de inquilino em débito) tam­bém tira seu fundamento de validade da lei. Por isso o ordena­mento jurídico é uma pirâmide: o ato administrativo e a sen­tença valem se estiverem de acordo com a lei, que lhes é supe­rior; a lei vale se estiver de acordo com a Constituição, que lhe é superior. Olhando no sentido inverso, verificamos que a Cons­tituição é o fundamento de validade de todas as normas do ordenamento jurídico. Nisso consiste a supremacia da Cons­tituição.

A lei editada por alguém não autorizado pela Constituição, ou cujo conteúdo viole direito individual por ela assegurado, será inconstitucional. A norma inconstitucional, como não en­contra seu fundamento de validade na Constituição, não vale, não pode nem deve ser acatada. Para garantir que leis incons­titucionais não sejam aplicadas, com isto violando os direitos

Page 23: Fundamentos de Direito Público

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 41

individuais, a própria Constituição concebe um sistema para sua eliminação do mundo jurídico. B o chamado controle da constitucionalidade das leis, realizado no Brasil pelo Poder J u­diciário, através de ações adequadas.

5. A Constituição é feita por um Poder Constituinte. A Carta brasileira de 1969 foi ditada por três pessoas: os chefes militares, autoinvestidos na função de constituintes. A Carta de 1988 foi promulgada por Assembléia de representantes do povo, eleita para tal finalidade . Os militares, num caso, e a Assembléia, no outro, foram o Poder Constituinte.

Inexistem normas jurídicas regulando o Poder Constituinte: ele é poder de fato, não jurídico. Exerce a função de consti­tuinte quem tiver força para fazer respeitar o conjunto de regras de organização do Estado que houver concebido .

Feita a Constituição, o Poder Constituinte desaparece. Surge o Estado, como criatura da Constituição. Podemos dizer, então, que o Estado brasileiro atual nasceu, no sentido jurídico, em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da vigente Carta.

A Constituição opera papel importantíssimo na sujeição do Estado à ordem jurídica, eis que, como norma jurídica anterior a ele, supera a dificuldade de submetê-lo às normas que por si próprio crie. A Constituição não é feita pelo Estado . Ao contrá­rio, o Estado é fruto da Constituição. O Estado, em conseqüên­cia, é pessoa jurídica, criada e regida pelo Direito Constitucional, que o precede. Por isso, todo seu funcionamento haverá de aten­der às disposições constitucionais .

"Não só estarão o Poder Executivo e o Poder Judiciário submetidos à lei , mas também estará o legislador submetido à Constituição, cujos limites e princípios não poderá violar nem alterar ou desvirtuar. Desta maneira todos os órgãos do Estado, todas as manifestações possíveis de sua atividade, inclusive as que outrora se puderam considerar como supremas, estão hoje submetidas a uma nova ordem jurídica superior. Este há de ser um passo de suma importância para o posterior desen­volvimento do Direito Público sobre a base dos princípios constitucionais e não só legais ou regulamentares" (Agustin Gordillo, Princípios Gerais de Direito Público. p . 64).

Page 24: Fundamentos de Direito Público

42 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

1 . 2 Separação dos Poderes

6. Para ser real o respeito da Constituição e dos direitos individuais, por parte do Estado, é necessário dividir o exercício do poder político entre órgãos distintos, que se controlem mu­tuamente. A cada um desses órgãos damos o nome de Poder: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. A sepa­ração dos Poderes estatais é elemento lógico essencial do Estado de Direito.

Cada Poder (isto é, cada órgão) exerce uma espécie de função. Ao Legislativo cabe a função legislativa, correspon­dente à edição de normás gerais e abstratas (as leis), seja para regular o-saemais atos estatais, seja para regular a vida dos cidadãos. Ao Executivo cabe a função administrativa, isto é, a " atividade de, em aplicação da lel antenormente editada, cobrar 'tributos (dos quais o imposto é uma espécie), prestar serviços (como a distribuição de água encanada, de geração de energia elétrica, de transporte aéreo), ordenar a vida privada (multando indústrias poluidoras, controlanao o trânsito de veículos pelas ruas, autorizando a construção de edifícios), e assim por diante. Ao Judiciário cabe a função jurisdicional: julga, sob provocação do mteressado, os conflitos entre os indivíduos -(a disputa em torno da propriedade de terreno, a cobrança de dívida, a ação de divórcio), ou entre indivíduos e Estado (a ação proposta por empresa para anular multa imposta pelo Executivo, ou por cida­dão para se livrar de imposto cobrado de forma inconstitu­cional).

Os Poderes exercem suas funções com independência em relação aos demais. Cada um tem suas autoridades, que não devem respeito hierárquico às autoridades do outro Pod;;r.-o Presidente da República é impotente para dar ordens ao juiz. O Presidente do Congresso Nacional não avoca para si atribui­ções dos Ministros do Executivo.

A cada função corresponde uma espécie de aro (de norma) estatal: a lei (função legislativa), o ato administrativo (função administrativa) e a sentença (função jurisdicional). A lei se submete à Constituição. O ato administrativo e a sentença são inferiores à lei. A sentença pode anular (isto é, desfazer os efeitos, tirar do mundo jurídico) o ato administrativo ilegal.

Page 25: Fundamentos de Direito Público

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 43

Agora está solucionada dúvida surgida no capítulo I: se o Estado deve se submeter às normas jurídicas e se o descumprimento delas é sancionado (punido) pelo próprio Estado, como evitar que ele escape à sanção? A resposta é simples: o Judiciár.i.o_ - órgão independente e, por isso, imparcial - é quem, dentro do Estado, incumbe-se de velar pelo respeito dos demais Pod~ à ordem jurídica, negando efeito às lêiSinconstitucionais e anulando atos admmts!rahvos ilegais, Assim, o Estado se submete à lei porque se submete à jurisdição. Esse ponto é especialmente destacado por Geraldo Ataliba, em obra fundamental para o direito público brasileiro: "Assim também, para que se repute um estado como de direito, é preciso que nele se reúna à característica da subordinação à lei, a da submissão à jurisdição, nos termos postulados por Giorgio Balladore Palieri (v. Diritto Costituzionale, 3." ed., Milão, Giuffie';" p. ElY e ss., espec. a 85). Este notável publicista milanês insiste que só é possível reconhecer Estado de Direito onde: a) o Estado se submeta à jurisdição; b) a jurisdição deva aplicar a lei preexistell\e; c) a jurisdição seja exercida por uma magistratura imparcial (obvia­mente independente) cercada de todas as garantias; d) o Estado a ela se submeta como qualquer 'pars', chamada a juízo em igualdade de condições com a outra 'pars'" (República e Constituição, p. 94).

Em resumo, à separação de órgãos (Poderes), corresponde uma distinção de atividades (funções), que produzem diferentes atos, como segue: Poder Legislativo - função legislativa- lei; Poder Executivo - função administrativa (ou Governo) - ato administrativo; Poder Judiciário função jurisdicional (ou Justiça) - sentença.

7 . Percebe-se a importância da separação dos Poderes no ~ controle do exercício do poder político. Cada Poder corresponde a um limite ao exercício das atividades do outro. Assim, o de freia o .E,Oder, evitando a tirania.

A formulação teórica da divisão dos Poderes e funções do Estado é de Montesquieu, em sua obra clássica Do Espírito das Leis, cuja cita­ção é inevitável.

" A democracia e a aristocracia, por sua natureza, não são Estados livres. Encontra-se a liberdade política unicamente nos governos mode­rados. Porém, ela nem sempre existe nos governos moderados: só existe nestes últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que ..tod~omem que tem po~r é...tentado a abusar dele ; vai até ond ncontra imÍtes. Quem o diria! A própria virtude tem necesstdade de ltmttes.

1

"Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela dis~ posição das coisas, o poder i r.;ie o p.illkf. Uma constituição pode ser de tal modo, que ninguém sera constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite . ( . . . ).

Page 26: Fundamentos de Direito Público

~; .. -· 44 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

"Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que dependem do direito civil.

"Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra; envia ou recebe embaixadas, estabelece a segu­rança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último do poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado.

"A liberdade política, num cidadão, é esta tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança; e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão.

"Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

"Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

"Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de juigar os crimes ou as divergências dos indivíduos" (Do Espírito das Leis, pp. 148 e 149) .

1 . 3 Superioridade da lei

8. A lei que, até o período medieval, era vista como sa­grada e imutável e, no período absolutista, como fruto de um querer divino (que o soberano expressava), ganha, com o Estado de Direito, característica humana: passa a ser a expressão da vontade geral. A lei, destinada a reger a vida dos homens, deve ser feita por eles.

"As leis não são, propriamente, mais do que as condições da asso­ciação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Só àqueles que se associam cabe regulamentar as condições da sociedade", dirá Jean Jacques Rousseau, em seu Do Contrato Social. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, acolhendo sua doutrina, estabe­lecerá que "a lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou por seus representantes, para sua formação" (art. 6.•).

Page 27: Fundamentos de Direito Público

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 45

9 . Sendo expressão da vontade geral, a lei se imporá ao próprio Estado, quando este se ocupar do Governo e da Jus­tiça. Nisto consiste a superioridade da lei: na virtude de ser superior - e, portanto, de condicionar - aos atos administra­tivos e às sentenças. Desse modo, estabelecendo-se uma hierar­quia entre a lei e os atos de sua execução (atos administrativos e sentenças), criam-se os meios técnicos indispensáveis ao fun­cionamento da separação dos Poderes.

"Parece-nos que a idéia rousseauniana da superioridade da lei (vontade geral) postula a existência duma repartição orgânica das funções do Estado, pois só se concebe que a lei seja revestida de superioridade quando há órgãos que na realização das suas funções lhe devam obe­diência. Quer dizer: Rousseau é insuficiente por si e só ao lado de Montesquieu o seu pensamento adquire relevância para a ciência do direito público" (Afonso Rodrigues Queiró, op. cit., pp. 8 e 9, nota 2). Em verdade, aqui temos uma via de mão dupla: nem a superioridade da lei pode funcionar onde inexista separação dos Poderes, nem esta é possível sem a superioridade da lei.

O administrador e o juiz, ao exercerem suas atividades (produzindo atos administrativos e sentenças), apenas aplicam a lei, apenas realizam concretamente a vontade geral, sem que suas vontades particulares interfiram no processo. ~ ~tividade pública deixa, assim, de ser vista como propriedade e quem a exerce, passando a significar apenas o exercício de um deyer­poder, mdissoluvelmente ligado a finalidade estranha ;;; agente. Ademais , ninguém exercerá autoridade pública que não emane da lei.

10 . De outro lado, só a lei pode definir e limitar o exer­cício dos direitos individuais. O interesse individual só cede ante interesses públicos e estes são estabelecidos pela lei , não pela vontade isolada do príncipe. A propósito, a citada Decla­ração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabeleceu que os limites ao exercício dos direitos naturais de cada homem não poderiam ser determinados senão pela lei (art. 4.0

), de modo que "tudo o que não está proibido pela lei não pode ser impe­dido, e ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não ordene".

Com isso, os cidadãos se submetem ao governo da lei, vale dizer, têm seus deveres regulados por uma norma geral e abstra­ta, emanada da Assembléia de seus representantes.

Page 28: Fundamentos de Direito Público

f"

o,/ '

(

(

46 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

"Por "governo da lei" entendem-se duas coisas diversas embora coligadas: além do governo sub lege, que é o considerado até aqui, tam­bém o governo per leges, isto é, mediante leis, ou melhor, através da emanação (se não exclusiva, ao menos predominante) de normas gerais e abstratas. Uma coisa é o governo exercer o poder segundo leis preesta­belecidas, outra coisa é exercê-lo mediante leis, isto é, não mediante ordens individuais e concretas". (Norberto Bobbio, O Futuro da Demo­cracia- Uma Defesa das Regras do fogo, p. 157).

É essa nova concepção de lei que permitirá a construção de todo o direito público moderno.

1 .4 Garantia dos Direitos Individuais

11. Também da Constituição resulta o reconhecimento de certos direitos - os de liberdade e igualdade, sobretudo -que ...QS indivíduos titularizam inde_pendentemente de outorga estatal. As Declarações de Direitos, solenemente embutidas nas Constituições Americana e Francesa e depois repetidas e aumen­tadas em todas as Constituições modernas, permitirão que os indivíduos oponham seus direitos ao próprio Estado.

O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América, editada em 1787, afirmava: "Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Esta­dos Unidos da América". Contudo, o texto da Constituição se limitou a regular o funcionamento dos Poderes Públicos. A enumeração de direitos individuais contra o Estado surgirá através da Primeira Emenda. Nela, prevê-se, por exemplo, que "o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de manifestação ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos".

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Outubro de t 789, posteriormente mantida como preâmbulo da Consti­tuição Francesa de 1791, afirmava, com eloqüência ainda maior: "Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, con­siderando que o desconhecimento, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governantes, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo

Page 29: Fundamentos de Direito Público

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 47

social, lhes relembre sem cessar os seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser a todo momento comparados com a finalidade de qualquer instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas em princípios claros e incontestáveis, sirvam sempre à manutenção da Constituição e à felicidade de todos". Em seguida, em seus artigos l.o e 2.0

, estabelecia que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos e que a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem: a liberdade,\ a · propriedadrf, a segurança e a resistência à opressão.

Sendo de origem constitucional, tais direitos não poderão ser suprimidos pelo Estado, nem mesmo por via legislativa. Portanto, ainda que o interesse público prevaleça sobre o inte­resse particular, isso nunca poderá se dar em prejuízo dos direitos individuais previstos na Constituição. A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão ~dispôs, a pro­pósito, que "a lei não tem o direito de proibir senão as ações prejudiciais à sociedade" (art. 5.0

) e que "a lei não deve estabe­lecer senão as penas estrita e evidentemente necessárias" (art. 8.0 ). Assim, o respeito aos direitos dos indivíduos passa a ser um dos fins do Estado, torna-se de interesse público.

12. Da garantia, contida na Constituição, de direitos em favor dos indivíduos, surgirá a noção de direito subjetivo pú­blico, isto é, de um direito que o indivíduo titulariza contra o próprio Estado, ampliando o antigo conceito de direito subje­tivo, até então circunscrito às relações entre particulares.._ O direito de propriedade, que já era ass~urado em Roma j?elãS'"" IeíSCtVE.o--CQllSlSlla en1ãQ num direíto suQjetivo privado: o pro-

/ Prletário tinha a faculdade (o direito) de recorrer aos Tribunais ~ qualquer semelhant~ invadisse seu imóvel. Mas não tena a mesma faculdade se a violência viesse ão Etaã'êf;" por isso, o direito de propriedade era apenas um direito subjetivo privado, não direito subjetivo público (isto é, oponível ao Es­tado). Contudo, quando a Constituição garante o dit:ci.to de. propriedade como direito individual, está confetindo ao ,Pro­prietário um direito subjetivo público, que o Estado haverá de FJe garantir.

lT. Com a referência - propositalmente a última - à garantia dos direitos individuais, nós, que já havíamos apreen-

Page 30: Fundamentos de Direito Público

48 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

dido a dinâmica do funcionamento do Estado de Direito, con­seguimos visualizar sua razão de ser, sua finalidade. A sepa­ração dos Poderes, a superioridade da lei, a Constituição, não são valores em si mesmos, antes existem para tornar efetiva, permanente e indestrutível a garantia de direitos individuais. A proteção do indivíduo contra o Estado é o objetivo de toda ã magistral construção jurídica que percorremos. Nada mais na­tural, portanto, que o direito públic~ inteiro esteja• embe­bido desta preocupação última, que exala desde a Constituição até a mais ínfima das normas.

Gordillo, ao analisar a evolução do Estado de Direito da mera legalidade para a ampla constitucionalidade, acentua com propriedade esta idéia: "O conceito de Estado de Direito, por certo, não é unívoco e sofreu uma evolução que o foi aperfeiçoando: numa primeira fase pode-se dizer que o fundamento era um respeito à lei por parte do Poder Executivo: este era o então vigente princípio da legalidade dos particulares. Logo os limites que o Estado de Direito impõe são esten­didos à própria lei: se diz então, como já vimos, que também a lei deve respeitar princípios superiores; é o outro princípio fundamental do respeito à Constituição por parte das leis manifestado através do con­trole judicial da dita constitucionalidade. O indivíduo aparece, assim, protegido contra os avanços injustos dos poderes públicos numa dupla face: por um lado, que a Administração respeite a lei, e por outro, que o legislador respeite a Constituição. O cerne da questão radica sempre, como se percebe, em que os direitos individuais não sejam transgredidos por parte dos poderes públicos" (Princípios Gerais de Direito Puõllco , p. 68).

-- 2. Estado democrático de direito

14 _ Vimos no tópico anterior que Estado de Direito é o criado e regulado por uma Constituição (isto é, por uma norma jurídica superior às demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado.

Pois bem. Um Estado como esse não é necessariamente de­mocrático. Iniciando nossa construção do conceito de Estado democrático - ao qual iremos agregando pouco a pouco todas

Page 31: Fundamentos de Direito Público

j

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 49

as notas que definam as condições suficientes de um Estado do gênero - podemos defini-lo como aquele onde o povo, sendo o destinatário do poder político, participa, de modo regular e baseado em sua livre convicção, do exercício desse poder. O mero Estado de Direito decerto controla o poder, e com isso protege os direitos individuais, mas não garante a participação dos destinatários no seu exercício.

A noção de democracia, que já existira desde a Grécia, chegou inclusive a ser entcn I ãCõiiio contraditória à de Estado de Direito, consagrada pelo liberalismo. "O liberalismo dos modernos e a democracia dos antigos foram freqüentemente considerados antitéticos, no sentido de que os democrat d ti üidade não conheciam nem a doutrina dos direitos naturais nem o dever do Estado de limitar a própria atividaáe ãõ mímmo ileCeSsário para a sobrevivência da comuni a e. De0utra parte, os modeiiiõS I e ais nasceram exprimindo uma profunda desconfiança para com toda forma de governo popular, tendo sustentado e defendido o sufrágio restrito durante todo o arco do século XIX e também poste­riormente. Já a democracia moderna não só não é incompatível com o libe­ralismo como pode dele ser considerada, sob muitos aspectos e ao menos até certo ponto, um natural prosseguimento" (Norberto Bobbio, Libe­ralismo e Democracia, p. 37).

15. Superada sua fase inicial, o Estado de Direito foi paulatinamente incorporando instrumentos democráticos, êom a finalidade de permitir a participação do povo no exercício do poder - de modo muito coerente, aliás; com o projeto inicial de controlar o Estado. O conceito jurídico que inicialmente sin­tetiza tais instrumentos é o de República - idéia que se vai mesclando à de Estado de Direito, para formar com ela na atualidade um todo uno e indivisível.

A República, tal como consagrada por nossa Constituição, implica em fazer dos agentes públicos, que exercem diretamente o poder político, representantes diretos do povo, por ele esco­lhidos e renovados periodicamente. Os agentes passam a exer­cer mandato - palavra que, em sua origem no direito privado, significa contrato entre o titular de certo direito e alguém por ele investido temporariamente no poder de exercê-lo. Estabele­ce-se, destarte, relação de representação entre o povo (titular do poder) e os agentes públicos (exercentes do poder), atuando estes como mandatários, como verdadeiros procuradores da­quele . A procuração política se outorga por tempo determinado,

Page 32: Fundamentos de Direito Público

50 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

através de eleições, de modo a permitir que o dono do poder seja chamado periodicamente a renová-la ou cassá-la, transfe­rindo-a a outrem. Mas a renovação dos mandatos não é o único controle do povo sobre os exercentes do poder. Estes podem ser responsabilizados (punidos e destituídos de seus cargos) quando violam seus deveres, excedendo ou descumprindo os termos do mandato que receberam.

"República é o regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nomJ<, fazendu-o com (êsponsabilidade; eletivamente e mediante man­datos renováveis periodicamente. São, assim, características da república a ~ a periodicidade e a responsabilidade. A eletividade é instrumento da representação. A periodicidade assegura a fidelidade aos mandatos e possibilita a alternância no poder. A responsabilidade é o penhor da idoneidade da representação popular" (Geraldo Ataliba, Repú­blica e Constituição, p. IX).

16. A Constituição brasileira não se contentou, contudo, em adotar o modelo republicano (art. 1.0

, caput), baseado es­sencialmente na representação, é dizer, no exercício indireto do poder pelo povo, através de seus representantes eleitos. A ele somou instrumentos de participação popular direta, anunciando, já no parágrafo único de seu art. 1.0

: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou dire­tamente, nos termos desta Constituição". Tais mecanismos são objeto, por exemplo, do art. 14, onde se prevê a realização de plebiscito (votação para conhecer a opinião popular sobre deter­minada decisão fundamental) e referendo (exame popular de lei elaborada pelo Legislativo), bem como a possibilidade de iniciativa popular das leis (propositura ao Legislativo, por certo número de cidadãos, de projetos de lei).

Dessa maneira, o Estado democrático não se limita a ser republicano, estendendo-se a mecanismos de exercício popular direto do poder.

17. A influência do ser democrático de um Estado na face concreta do direito público é evidente. Não só justifica a exis­tência de ramo dedicado exclusivamente às questões eleitorais (o direito eleitoral), como produz uma categoria diferenciada de direitos: os direitos políticos.

Page 33: Fundamentos de Direito Público

·'

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DlREITO 51

Os direitos garantidos pela Constituição aos indivíduos -que no mero Estado de Direito se limitavam à proteção das manifestações individuais em face do poder: direito de exercer uma profissão, direito de não ser preso indevidamente, direito de possuir bens - se ampliam em outros de diversa qualidade: no asseguramento jurídico da participação popular nas decisões do Estado. Surgem não apenas os direitos de votar, de ser votado, de fundar e participar de partidos políticos - corres­pondentes à garantia imediata da participação no poder - como seus necessários sustentáculos: os direitos à liberdade de ex­pressão do pensamento e de imprensa, de reunião, de informa­ção, e outros mais.

Balladore Pallieri insiste em que os direitos políticos não podem se resumir à garantia formal de participação (isto é, ao asscguramento da expressão da decisão popular), mas pressupõem a possibilidade de livre formação da vontade que se vai expressar: "Não há Estado demo­crático onde o direito não preveja e discipline manifestações inequívocas, regulares e freqüentes, da vontade do povo, das quais resulte de maneira objetiva o pensamento dele sobre os negócios públicos, e pelas quais_!!.. decisões rruüs_jnu?ortantes s(!jam_ ealmente tomad.ãS livremente ~lo ~ segu~do seu juíz9.: Por isto, o regime democrático só é possível em clima \i IiberJadê política" (Diritto Costituzionale, p. 98, g. n.). Também o notável pensador italiano Norberto Bobbio expressa essa idéia, ao expor as condições da democracia: "~ indispensável uma ter­ceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. -os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do estado de direito em sentido forte, isto é, do estado que não apenas exerce o poder sub [ege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos "invioláveis" do indivíduo. Seja qual for o fundamento filosófico destes direitos, eles são o pressuposto necessário para o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um re­gime democrático" (0 Futuro da Democracia - Uma Defesa das Regras do Jogo, p. 20).

18. Podemos agora aditar - em verdade salientar algo Ja subjacente às noções expostas: República, direitos polí­ticos - uma última condição indispensável à democracia, que

Page 34: Fundamentos de Direito Público

52 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

demonstra a necessária vinculação entre ela e o Direito: o res­peito às regras do jogo.

Não é democracia o regime onde a adoção das decisões fundamentais para o Estado, mesmo se expressivas da vontade de muitos homens, não seja feita com absoluto respeito a regras predeterminadas e estáveis, definindo quais os sujeitos titula­dos a decidir (Todo o povo? Só os maiores de idade? Os solda­dos?) e o modo como o farão (A eleição se faz em um ou dois turnos? B necessária maioria absoluta ou relativa?). A inexis­tência de regras anteriores e estáveis regulando a decisão a tomar permite que, na dependência do interesse dos poderosos, sejam chamados a decidir ora um grupo, ora outro de pes­soas - em evidente manipulação, totalmente alheia à idéia de participação popular. A inexistência de regras definindo o papel de cada membro do grupo, cujo respeito ele possa exigir, per­mite excluir pessoas sempre que sua presença não convenha. Regras ~stáveis e predeterminadas têm nome: normas jurídicas, sobretudo as constitucionais; normas jurídicas definindo os direitos políticos, o processo eleitoral, a participação direta , e assim por diante. Não há democracia sem normas jurídicas (de direito público, decerto) regulando o processo político.

Neste momento adquire sentido a afirmação, posta de início, de que Estado democrático e Estado de Direito, conquanto originalmente distintos, fundem-se hoje em necessária convivência. Mais uma vez Bobbio : "Disto segue que o estado liberal é o pressuposto não só histó­rico mas jurídico do estado democrático. Estado liberal e estado demo­crático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liber­dades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não demo­crático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais. A prova his­tórica desta interdependência está no fato de que estado liberal e estado democrático, quando caem, caem juntos" (O Futuro da Democra­cia . .. , p. 20). Sabendo perfeitamente disso, o Constituinte brasileiro de 1988, após informar, no preâmbulo da Constituição, que pretendia insti­tuir um "Estado Democrático" imediatamente estabeleceu, no caput do art. 1.0

, estar criando um "Estado Democrático de Direito".

Page 35: Fundamentos de Direito Público

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 53

19. Chegamos assim aos elementos do conceito de Estado Democrático de Direito:

a) criado e regulado por uma Constituição;

b) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres;

c) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos. que controlam uns aos outros;

d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais Poderes;

e) os cidadãos, s~do titulares de direitos, inclusive polí­ticos, podem opô-los ao prÓprio Estado.

Em termos sintéticos, o Estado Democrático de Direito é a soma e o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de Poderes, legalidade e direitos (individuais e políticos).

3 . Estado social e democrático de direito

20. Fechando o ciclo que nos impusemos, para definir o modo jurídico de ser do Estado brasileiro atual e com isto fixar adequados pontos de partida para o estudo do direito público, topamos com o Estado Social.

O liberalismo, gerador do Estado de Direito, tinha seu modelo econômico calcado no absenteísmo estatal: era preciso que o Estado não interferisse nos negócios dos indivíduos, res­tringindo sua ação à garantia da ordem, da paz, da segurança . Em suma, queria-se um Estado mínimo, com reduzidas funções, sem interferência na vida econômica .

As idéias de Estado de Direito e Estado mínimo, conquanto resultantes ambas do liberalismo, não são auto-implicantes. Um Estado pode ser mínimo (isto é, limitar suas atividades, dei­xando grande espaço para a iniciativa econômica dos indiví­duos), e não ser de Direito, por adotar formas autoritárias de exercício do poder político - lembrem-se algumas ditaduras latino-americanas muito recentes. Será possível, porém, que o

Page 36: Fundamentos de Direito Público

54 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

Estado amplie suas funções, passando a interferir intensamente na vida econômica, inclusive para nivelar as desigualdades so­ciais, sem deixar de ser Estado de Direito?

21. A questão foi posta neste século quando a crise eco­nômica do primeiro pós-guerra levou o Estado a assumir - for­çado, diga-se, pelas exigências da própria sociedade - um papel ativo, seja como agente econômico (instalando indústrias, am­pliando serviços, gerando empregos, financiando atividades), seja como intermediário na disputa entre poder econômico e miséria (defendendo trabalhadores em face de patrões, consu­midores em face de empresários) .

As Constituições mais modernas, sobretudo após as de _ Weimar (1919) e do México (1917), cuidaram de mcorporar estas novas preocupações: a de desenvolvimento da sociedade e de valorização dos indivíduos socialmente inferiorizados. O Estado deixa seu papel não intervencionista para assumir nova postura: a de agente do desenvolvimento e da justiça social.

Enquanto as clássicas declarações de direitos consagravam basicamente a proteção do indivíduo contra o Estado, reser­vando àqueles um espaço intangível de liberdade, as novas de­clarações passaram a se ocupar também da proteção dos indi­víduos em face do poder econômico e em propiciar-lhes pres­tações estatais positivas.

22. O Estado se torna um Estado Social, positivamente atuante para ensejar o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do nível cultural e a mudança social) e a reali­zação de justiça social (é dizer, a extinção das injustiças na divisão do produto econômico).

Em um primeiro plano, aparecem os chamados direitos sociais, ligados sobretudo à condição dos trabalhadores: garan­te-se o direito ao salário mínimo, restringe-se - em nome da proteção do economicamente fraco - a liberdade contratual de empregadores e empregados.

De outro lado, o indivíduo adquire o direito de exigir certas prestações positivas do Estado: o direito à educação, à previdência social, à saúde, ao seguro-desemprego e outros mais.

Page 37: Fundamentos de Direito Público

O ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO 55

Para incrementar o desenvolvimento econômico, sobretudo nos países subdesenvolvidos, o Estado passa a atuar como agente econômico, substituindo os particulares e tomando a si a tarefa de desenvolver atividades reputadas importantes ao crescimento: surgem as empresas estatais.

23. O Estado Social substitui o Estado de Direito e seu desenvolvimento, o Estado Democrático de Direito?

A resposta é enfaticamente negativa: o Estado Social não só incorpora o Estado de Direito, como depende dele para atingir seus objetivos. O oferecimento de prestações positivas aos indivíduos (serviços de educação, saúde, previdência) cor­responde a um direito destes a tais prestações. Não há como falar em direitos contra o Estado senão onde exista Estado de Direito! A proteção do pobre contra o rico se faz com a atri­buição de direitos àqueles em face destes. Os direitos dos tra­balhadores, constitucionalmente previstos, só podem prevalecer onde haja controle de constitucionalidade das leis (contra as leis que os violem), onde haja um Judiciário independente (não só em relação aos demais órgãos estatais, como em relação ao poder econômico): tudo isso é mecanismo do Estado de Direito.

É esse também o pensamento de Gordillo a expressão _!:stado de Bem-Estar~ designar o Esta o Social: "A...Q.ií.l:.rença as1ca entre a "'Ctm~o-elá-ssi:ca do liberalismo e a do Estado de Bem~star é que, enquanto naquela se trata tão-somente de colocar barreiras ao Estado, esquecendo-se de fixar-lhe também obrigações positivas, aqui, sem deixar de manter as barreiras, se lhe agregam finalidades e tarefas às quais antes não se sentia obrigado. A identidade básica entre Estado de Direito e Estado de Bem-Estar, por sua vez, reside em que o segundo toma e mantém do primeiro o respeito aos direitos individuais e é sobre esta base que constrói seus próprios princípios" (Princípios Gerais de Direito Público, p. 74).

24 . Assim sendo, para definir juridicamente o Estado bra­sileiro de hoje - não só ele: a maioria dos Estados civiliza­dos - basta construir a noção de Estado Social e Democrático de Direito, agregando-se, aos elementos ainda há pouco indica­dos, a imposição, ao Estado, do dever de atingir objetivos sociais, e a atribuição, aos indivíduos, do correlato direito de exigi-lo.

Page 38: Fundamentos de Direito Público

56 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

Os elementos do conceito de Estado Social e Democrático de Direito serão, portanto:

a) criado e regulado por uma Constituição;

b) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renova­dos periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres;

c) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos , que controlam uns aos outros;

d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais Poderes;

e) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive polí­ticos e sociais, podem opô-los ao próprio Estado;

f) o Estado tem o dever de atuar positivamente para gerar desenvolvimento e~

Em termos sintéticos, o Estado Social e Democrático de Direito é a soma e o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de Poderes, legalidade, direitos (individuais, políticos e sociais), desenvolvi­mento e justiça social.

Verifique, no Preâmbulo e no Título I da Constituição Brasileira de 1988, se a ciência do direito público brasileiro - isto é, o estudo das normas jurídicas que regulam o exercício do poder político -deve ou não tomar como base a noção de Estado Social e Democrático de Direito:

"Preâmbulo: Nós. representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promul­gamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

TfTULO I -DOS PRINCfPIOS FUNDAMENTAIS

Art. 1.0 • A República Federativa do Brasil, formada pela umao indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

Page 39: Fundamentos de Direito Público

56 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

Os elementos do conceito de Estado Social e Democrático de Direito serão, portanto:

a) criado e regulado por uma Constituição;

b) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renova­dos periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres;

c) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que controlam uns aos outros ;

d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais Poderes ;

e) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive polí­ticos e sociais, podem opô-los ao próprio Estado;

j) o Estado tem o dever de atuar positivamente para gerar desenvolvimento e~~

Em termos sintéticos, o Estado Social e Democrático de Direito é a soma e o entrelaçamento de : constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de Poderes, legalidade, direitos (individuais, políticos e sociais), desenvolvi­mento e justiça social .

Verifique, no Preâmbulo e no Título I da Constituição Brasileira de 1988, se a ciência do direito público brasileiro - isto é, o estudo das normas jurídicas que regulam o exercício do poder político -deve ou não tomar como base a noção de Estado Social e Democrático de Direito :

"Preâmbulo: Nós. representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promul­gamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

TITULO I -DOS PRINCíPIOS FUNDAMENTAIS

Art. 1.0 • A República Federativa do Brasil, formada pela umao indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: