Fui à... e lembrei me de você: peregrinações sobre memórias e histórias
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CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO
Bacharelado em Artes Visuais, Pintura, Gravura e Escultura
LUIZ FERNANDO BUENO
FUI À... E LEMBREI-ME DE VOCÊ:
PEREGRINAÇÕES SOBRE MEMÓRIAS E HISTÓRIAS
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Bacharelado em Artes Visuais: Gravura, Pintura e Escultura
do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo como
parte dos requisitos para a obtenção do grau de Bacharel
em Artes Visuais, sob a orientação da Professora Dra.
Juliana Moraes.
SÃO PAULO
2014
Há tempo, muito tempo
Que eu estou
Longe de casa
E nessas ilhas
Cheias de distância
O meu blusão de couro
Se estragou
Ouvi dizer num papo
Da rapaziada
Que aquele amigo
Que embarcou comigo
Cheio de esperança e fé
Já se mandou
Sentado à beira do caminho
Prá pedir carona
Tenho falado
À mulher companheira
Quem sabe lá no trópico
A vida esteja a mil
E um cara
Que transava à noite
No Danúbio Azul
Me disse que faz sol
Na América do Sul
E nossas irmãs nos esperam
No coração do Brasil
Tudo Outra Vez - Belchior
agradeço a Maria Brasil
que me aconselhou a estudar a arte
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FUI À... E LEMBREI-ME DE VOCÊ:
PEREGRINAÇÕES SOBRE MEMÓRIAS E HISTÓRIAS
LUIZ FERNANDO BUENO1
RESUMO
O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) FUI à... e lembrei-me de você:
peregrinações sobre memórias e histórias é resultado de imersões a pé de minha cidade,
Nazaré Paulista, até quatro lugares religiosos que vou desde criança: Bonsucesso,
Tambaú, Pirapora e Aparecida do Norte. Durante o percurso, coleto objetos e entrego em
locais sagrados desses lugares. Além da performance, existe a produção de quatro
vídeos, a instalação que apresento na Belas Artes e um livro de memórias. Outro fator
importante é a exploração de um contexto sócio-cultural do Brasil, daqueles que andam,
valorizando suas especificidades e o lugar onde vivem, a estrada. Sejam hippies,
trecheiros, romeiros, chapas ou malucos. Instauro discussões acerca da memória e
história que atribuímos aos objetos e sua resignificação como ex-voto, aos lugares
religiosos do estado de São Paulo e a potência de suas romarias, a minha e como as
mesmas são compartilhadas pelo outro através das relações sociais.
Palavras-chave: Ex-voto. Romaria. Trecheiro. Vídeo-arte. Performance.
ABSTRACT
The Work of Course Conclusion I WENT ... and remembered you: pilgrimage of
memories and stories is a result of the immersion to walk from my home town, Nazaré
Paulista, to four religious places which I visited since my childhood: Bonsucesso, Tambaú,
Pirapora, and Aparecida do Norte. Along the way, I collect objects and hand them in to
these sacred places. Besides the performance, there is a production of four videos, an
installation presented at the Belas Artes University and a memoir. Another important fact is
the exploration of a Brazilian sociocultural context, by characterizing individuals, like
hippies, roamers, pilgrims, day laborers of the road or madmen, who are wandering,
highlighting their particularities and the special place where they live - the road. This
1 Aluno do Curso de Bacharelado em Artes Visuais, Pintura, Gravura e Escultura do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. [email protected]
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process leads to discussions of memory and history which we connect with objects and
their resignification as ex voto gifts at religious places in the state of São Paulo, as well as
the potencial of pilgrimage, especially my personal one and how they are shared by others
through social relationships.
Keywords: Ex voto gifts, pilgrimage, roamer, vídeo art, performance
APRESENTAÇÃO
E aí, beleza? Meu nome é Luiz e daqui para frente gostaria de lhe pedir licença,
caro leitor, para te chamar de trecheiro, figura que apareceu nos percursos dessa
experiência e a que talvez melhor se encaixe naquilo que você é nesse momento. Mais
para frente isso se tornará mais claro.
Trecheiro, estes são meus escritos referentes à obra Cruzeiro (2014). Projeto que
nasceu da ideia de percorrer a pé os caminhos das romarias da minha infância, lugares
religiosos aonde vou desde criança, embora não a pé. No percurso, coleto objetos
pessoais que encontro pela estrada e, no final do trajeto, deposito-os em quatro locais
sagrados do estado de São Paulo.
As palavras aqui escritas de forma alguma revelarão o que foi a experiência vivida
por mim e tão pouco a obra dá conta de propiciar tal situação, pois nem mesmo se eu
propusesse a cada pessoa que quisesse experimentar a estrada, ainda assim seria
diferente, pois a vida não se repete como um filme que você pode voltar para assistir. Mas
trecheiro, não estamos aqui falando sobre arte? E quem dirá que toda obra passa a
mesma experiência para todos, hein?
Que tal caminharmos para refletir?
CRUZEIRO
Trecheiro, Cruzeiro é uma vídeo-instalação-performance constituída de quatro
vídeos das ações que realizei. Nos vídeos vou a pé de Nazaré Paulista-SP, minha cidade,
até quatro locais sagrados coletando objetos que encontro pelo caminho e guardando em
minha mala, ao final entrego-os em um saco amarrado com fita, também proveniente do
percurso, nos seguintes lugares: Bonsucesso (Bairro de Guarulhos), Tambaú, Pirapora do
Bom Jesus e Aparecida. Ia até o lugar a pé e voltava de ônibus para casa.
No vídeo ESTAÇÃO I – FUI À BONSUCESSO E LEMBREI-ME DE VOCÊ!, entrego
os primeiros objetos na Sala dos Milagres no Santuário de Nossa Senhora do
Bonsucesso (Bonsucesso-Guarulhos-SP) (34,6 km) com dois dias de viagem. No caminho
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encontrei um rolimã, uma blusa, um cartão de entrada de empresa, um pé de tênis, uma
placa de carro de Lins-SP e um clips. De casa, levo uma corrente dourada com coração e
uma chave encontradas num percurso que fiz a pé até São Paulo, e uma imagem de São
Benedito doada por minha amiga Lilian Vogel.
Em ESTAÇÃO II – FUI À TAMBAÚ E LEMBREI-ME DE VOCÊ!, minha segunda
caminhada, deixo os objetos na cama do Padre Donizetti na Sala dos Milagres (Tambaú-
SP) (246 km) com 14 dias de viagem. No caminho para Tambaú achei uma chave de
carro, uma placa de moto de Atibaia-SP, um rolo de filme com algumas imagens, uma fita
vermelha e um pente marrom. De casa levo um pingente que ganhei em Bonsucesso e
um saquinho amarrado com juta que enchi com terra da mesma cidade.
No vídeo ESTAÇÃO III – FUI À PIRAPORA E LEMBREI-ME DE VOCÊ!, entrego os
objetos aos pés do Senhor Bom Jesus (Pirapora do Bom Jesus-SP) (110 km) com cinco
dias de viagem. Deixei um pé de meia de bebê, uma ferradura e um óculos que encontrei
pelo percurso, e uma fita e um escapulário do Padre Donizetti que levei de casa.
Em ESTAÇÃO VI – FUI À APARECIDA DO NORTE E LEMBREI-ME DE VOCÊ!,
deixei os objetos da última viagem no Balcão de Promessas após passar aos pés da
santa no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida (Aparecida-SP) (147 km). No
percurso para Aparecida do Norte encontrei um chapeuzinho de crochê e uma bolinha de
gude, e de casa levei um chaveiro e uma fita do Senhor Bom Jesus de Pirapora.
Luiz Fernando Bueno Cruzeiro (2014)
Hei Trecheiro, no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo a obra será
exposta desse jeito: cada vídeo será exibido nos espaços entre a porta corta-fogo e a
porta de acesso à saída de incêndio da Unidade 1 e no topo da escada da saída de
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incêndio. As projeções ocorrerão nos três andares e também no depósito-reserva no
último andar.
Os vídeos não podem interferir um no outro, então, os espaços criados com a porta
corta-fogo e a porta de acesso à escada tornam-se propícios para a execução do
trabalho. A obra surge de um universo mundano, portanto não se comportaria bem num
“cubo branco”, mas sim nesse espaço de passagem, assim como uma estrada. Os vídeos
seguirão a ordem que percorri, até o último andar, numa ideia de ascensão.
Simulação de montagem de Cruzeiro (2014)
Escolho o título Cruzeiro nesse processo posterior em que começo a pensar na
exposição na escadaria e consigo atribuir esses valores. Em Aparecida existe um lugar
chamado Santo Cruzeiro, uma subida que contém uma via-sacra, com os passos de
Jesus Cristo até sua morte, daí vem o título, também de um lugar muito querido de minha
memória. Porém há cruzeiros em outros lugares que mantém a questão da escadaria ou
morro, mas sem a via-sacra. Uma via-sacra possui 15 estações, a minha tem quatro
apenas, mas mantive a analogia com relação aos títulos de cada vídeo.
Poderíamos pensar que isso é tudo. Não, não é. A cultura popular por si só é
dinâmica e mesmo as romarias hoje em dia tem muito mais facilidades e recursos para
serem executadas. Observe aqui outro fator, tenho tempo e lugar, mas vou sozinho, então
as relações sociais surgem do desconhecido e acabo por descobrir um cenário rico
culturalmente daqueles que vivem nesse espaço “entre”, um lugar de passagem,
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daqueles que se aventuram pela estrada. Esse contexto surpreendeu-me e ampliou as
significações do trabalho.
O CAMINHO
Caro trecheiro, conto agora sobre meus trabalhos anteriores. O projeto Estudos
sobre o caminhar: 25 anos, por onde andei (2013) é composto de 25 matrizes de alumínio
medindo aproximadamente 13 X 5 cm, 25 impressões calcográficas sobre papel debret
creme medindo 32,5 X 22 cm, seis vídeos e um diário decorridos dos experimentos de
andar com matrizes fixadas num calçado com fita adesiva ou fita banana com o qual eu
caminhava durante períodos determinados, uma comemoração pelo meu aniversário de
25 anos.
Luiz Fernando Bueno Estudos sobre o caminhar: 25 anos, por onde andei (2013)
Então trecheiro, foi assim. Fixava a matriz no calçado e saia andando com um
tempo determinado. Acabando, retirava do pé e guardava. Após ia para o ateliê e
imprimia a gravura. Cada gravura contém um código embaixo feito com transferência de
Xerox invertido que dá acesso ao diário. Se você pegar, por exemplo, o código PROJETO
C 5H07 5 DIAS Nº1 saberá um pouco do aconteceu no percurso. Durante o processo
também fiz vídeos.
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Agora é hora de migrar! É o que eu dizia todo dia de manhã quando ia pegar a
estrada. Migrar (2013), é uma vídeo-performance em que registro o percurso que fiz a pé
de minha cidade natal, na qual resido até hoje, Nazaré Paulista-SP, município do interior,
até o marco zero de São Paulo-SP na Praça da Sé. São cerca de 70 km puxando uma
mala cheia de terra da minha cidade, retirada do jardim de minha casa. A caminhada
durou cinco dias.
A mala possuía um furo que causava o cair progressivo da terra, porém, apenas
quando se cutucava o buraco é que a terra caía, permitindo-me ter controle sobre a terra
até sua chegada no ponto final. Além disso, dentro da mala a terra estava armazenada
em três sacos plásticos e à medida que eu me aproximava de meu objetivo, ia liberando
essa terra no interior da mala. Derrubava a terra pelo caminho até jogar o que sobrou no
marco zero, na Sé.
Luiz Fernando Bueno Migrar (2013)
É trecheiro, aqui o chicote estrala! Nesse momento minhas performances começam
a ganhar novos ares. E mergulho mais fundo no âmbito da experiência. Começo em
Migrar a criar formas para me filmar e acabo inventando uma estética autoral. Surge
desse projeto grande parte do que seria Cruzeiro.
As relações com trabalhos anteriores são inúmeras e falei aqui apenas de dois
trabalhos, mas é comum em minhas obras a ligação com a rua, a precariedade matérica e
a ideia de ação para se realizar.
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DA HERMENÊUTICA A HERMES
Trecheiro, a hermenêutica busca dar entendimento entre a obra e o ser humano.
Arte de explicar e de mediar com base em um esforço interpretativo, sempre quando o
que é comunicado não é pelo todo inteligível. Ela habita esse espaço “entre” e constrói
vias de acesso para a leitura da arte. Seria algo como uma tradução de uma língua para
outra, do imagético e sensível para o verbal e lingüístico, e assim se fazer compreender.
Não é à toa que a origem de sua palavra vem de Hermes, um mensageiro que mediava o
diálogo dos homens com os deuses e vice-versa. Hermes, o tradutor da mensagem divina
para os homens, conforme Hans-Georg Gadamer (2010).
As andanças que fiz remetem a ideia de uma epopeia heróica e sempre me
perguntei, que figura ou ser mitológico eu seria? Penso que me assemelho a Hermes.
Sou o mediador que caminha pelas estradas a coletar objetos dos humanos e entrego-os
com zelo a um local sagrado, retiro do mundo e ofereço aos deuses. Cumpro aqui a
mesma função do mastro na cultura popular, cuja simbologia diz sobre a ligação entre o
céu e a terra. O mastro é também um mediador que leva mensagens.
Carregar objetos não é meu único fardo, absorvo também as histórias que vou
ouvindo e envolvo-me com minha vontade de ajudar as pessoas. Busco solucionar seus
problemas, sanar suas doenças e acompanhá-las o quanto posso na tentativa de tentar
fazer-lhes um pouco de bem.
E por vezes sou Carontes, o barqueiro da mitologia grega que faz o transporte das
almas a troco de uma moeda. Assim como ele pego moedas nas estradas e tudo aquilo
que ela oferecer-me, mas seu remo é meu cajado, remo pelo chão e navego pelo vento. E
o que dirá São Pedro, que contém a chave do céu e também faz a ponte entre céu e a
terra?
DOS OBJETOS
Os objetos são coisas do mundo, certo trecheiro? Assim, ao reconhecê-los nos
remetemos ao passado, pois foi no passado que os conhecemos. A lembrança da
utilização do objeto pode guardar em si mais do que seu uso utilitário e desenrolar
memórias afetuosas e histórias riquíssimas concentradas num sólido por mais banal que
seja.
Na estrada encontro objetos que significaram muito para alguém um dia e que
estavam jogados ou perdidos, mas hoje se encontram novamente valorizados por mim, o
peregrino que pegou e guardou-os com carinho em sua valise antiga. E no final, coloquei-
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os com o mesmo zelo num saco e amarrei com uma fita. Deixo num local em que muitas
emanações boas chegam.
Saco com objetos que deixei em Aparecida do Norte
Nas salas dos milagres se encontram esses objetos designados como ex-votos,
coisas físicas que estão ali por algum milagre alcançado ou por uma prece a um santo,
ainda a se cumprir. Na minha concepção já são obras pelo simples fato de carregarem em
seu âmago algo que não está ali propriamente dito, mas que se acredita ser a própria
coisa que a pessoa conseguiu ou deseja conseguir. Seja um alcoólatra que deixa uma
latinha de cerveja para abandonar um vício que está dentro de si ou mesmo um deficiente
que entrega suas muletas, pois não precisa mais usá-las. De acordo com José Cláudio
Alves Oliveira (2011), objetos existem enquanto testemunho, uma mídia cuja semiologia,
através de estudos interdisciplinares consegue ler indícios de fatos, acontecimentos e
narrativas. Da etimologia da palavra:
A etimologia é originada do latim ex-voto, cuja preposição ex representa a
'causa de, em virtude de' e voto advém de votum, i 'voto', do rad. de votum,
originado de vovère 'fazer voto, obrigar-se, prometer em voto, oferecer,
dedicar, consagrar'. (OLIVEIRA, 2011, p. 7)
Sobre o conceito votivo e o ex-votivo: usar figas, seguir romarias, dar nome de
santos a filhos, dentre outras coisas, são ações votivas; o ex-votivo ocorre quando, dentro
uma ação votiva, por exemplo, numa romaria, a pessoa deixa um objeto na igreja em
graça a algum santo, um ex-voto, conforme Oliveira (2011).
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Os objetos, os lugares e as relações entre eles e as pessoas são atributos que os
seres humanos conferem-lhes através de uma rede de significações que promovem seu
discernimento e difusão, assim, criam-se parâmetros de reconhecimento e uso de
símbolos e modos de viver dentro de uma cultura.
Sybil Safdie Douek (2003) numa análise do livro A memória coletiva do pensador e
sociólogo francês Maurice Halbwachs, aponta sobre o termo “memória coletiva”,
argumentando que a memória não é somente individual, mas existem memórias grupais,
por exemplo, uma família compartilha memórias que são comuns a essa família. De
acordo com Douek (2003) a memória é uma lembrança viva, passado que ainda se faz
presente, transmitida pela oralidade, diferentemente da História, que surge quando morre
a memória e se escreve sobre o passado (neste caso passado e presente estão
separados). A memória coletiva e a tradição estão intimamente ligadas. A palavra tradição
vem do latim, traditio, dar, ensinar, transmitir, entregar.
Os objetos em geral por si só têm valor para as pessoas que possuem. Não
querendo assim perde-los ou descartá-los. O romeiro atribui novo valor ao objeto
tornando-o ex-voto. Eu penso no valor que o objeto tinha a alguma pessoa e transformo-o
em ex-voto ao colocar nos locais sagrados. Assim, o período de permanência com esses
objetos também os tornam meus. Dou novas histórias a objetos que já tinham histórias.
Levo a parte de alguém até o lugar onde ficam os pedidos, as promessas, os desejos e os
milagres.
A seleção do objeto é feita através da narrativa que atribuo a ele. Por exemplo, a
ferradura que encontro na Estrada do Maracanã indo para Pirapora poderia muito bem ser
de um romeiro, pois ali muitos passam a cavalo, mas se não for, podia ser de algum
cavaleiro que passava por ali, quem sabe a passeio ou levando alimentos que comprou
na venda para seu rancho. Enfim, muitas histórias.
Ferradura encontrada no percurso para Pirapora
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Desenvolvendo mais um pouco, uso a hermenêutica de Gadamer (2010) como
ferramenta, pois traduzo o imagético para o linguístico através da leitura dos códigos ou
indícios, supondo que um romeiro ou alguém perdeu seu objeto. Assim, também o
romeiro usa na práxis inconscientemente a hermenêutica, já que consegue construir
discurso de testemunho da promessa ao objeto. Aquele que faz a promessa tem um santo
de devoção, um problema ou necessidade e uma graça alcançada ou um pedido, valores
depositados nesse objeto semiológico que é o ex-voto. O romeiro fica aqui paralelo ao
artista que cria uma obra. A semiologia também é minha fiel companheira nesse discurso
e a mesma também deve ser usada na práxis.
A significação atribuída ao ex-voto é uma prática difundia por toda a América Latina
e nasce da apropriação popular do Cristianismo. Cria-se aqui uma situação de fetiche não
só com relação ao objeto, mas também com relação aos lugares religiosos ou mais
precisamente as imagens dos santos que lá estão. Basta citar o exemplo da peregrinação
de Nossa Senhora Aparecida no período entre 1965 e 1967 por todo o país comovendo
os fiéis, sabendo que ali estava a imagem encontrada no Rio Paraíba. Fato que iniciava
as comemorações do Jubileu dos 250 anos de seu encontro, o que arrebataria centenas
de romeiros a Aparecida, numa inversão do que a santa fez, com o lema “Todos a
Aparecida!”, conforme José Cordeiro (2008).
Caros trecheiros, a vontade de autonomia e a flexibilidade de conseguir cultuar
suas próprias crenças ainda persistem, pois surgiu da vontade de não separar os santos
dos humanos e ter assim uma relação próxima, e na verdade mais eficácia naquilo que se
pede. Há tempos que podemos ter nossos altares em casa e, por exemplo, falar
diretamente com Santo Antônio para lhe pedir um casamento e se não der certo, colocá-lo
de castigo. E quantos pedem a São Longuinho para encontrar um objeto perdido? O
profano e o divino caminham juntos.
“RODOVIÁRIA DE MALUCO É POSTO DE GASOLINA”
Hei trecheiros, malucos, romeiros, hippies e chapas! O universo da estrada contém
seus próprios personagens, figuras que transformam o lugar de passagem num de
permanência. Cada um possui seu estilo de vida com características que podem facilitar
sua identificação nesse contexto.
O trecheiro. Existem dois tipos de trecheiro. O trecheiro que trabalha de cidade em
cidade, mas que possui residência e que por vezes pode achar sua vida um fardo. Ele fica
um tempo fora trabalhando e depois volta para a família. Mas existem trecheiros que são
mais livres por assim dizer. Esses trecheiros livres caminham para consumir cultura. Eles
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querem conhecer cidades a pé ou de carona. Fixam residências, mas sempre voltam a
caminhar. Podem por vezes fazer ocupações e mangueiam, ou seja, pedem com um
diálogo altamente articulado aquilo que necessitam. A arte de manguear se sustenta na
forma sagaz de como o sujeito se comunica com a pessoa mangueada, então, quanto
mais fidedigno e coerente soar o mangueio, maior é chance de conseguir aquilo que
deseja.
O hippie. O hippie é um exímio mangueador. Difere do trecheiro nesse aspecto,
pois mangueia com seu trampo ou trabalho, artesanato hippie, brincos, pulseiras, filtro dos
sonhos, uma infinidade de outras coisas. Discursa a fim de vender ou minimamente
trocar, mas pode haver casos em que um hippie mangueie apenas com a voz
dependendo da situação em que se encontre. Os hippies não são de andanças a pé, mas
sim de pegar a BR de ônibus, mas como disse, não são regras inquebráveis. Hippies
deslocam-se mais por dentro da cidade onde estabelecem uma pedra, local de trabalho,
uma calçada, ao invés de andarem por rodovias.
O maluco. “Rodoviária de maluco é posto de gasolina!” é trecho de uma música do
grupo Ventania de São Thomé das Letras-MG e dá pista de um local importante para os
da estrada, o posto de gasolina, pois é lá que fazemos e adquirimos tudo aquilo que
precisamos, é um shopping do estradeiro. O maluco é um cara de pouca conversa que
perdeu um tanto de seus hábitos de higiene e carrega muitos sacos nas costas. Não
consegui conversar com nenhum, no máximo ganhei um comprimento. São figuras que
caminham lentas devido ao peso que carregam e parecem quase perdidas no tempo.
Cobertas de pó da estrada, não sei como mangueiam. Para mim ainda são um mistério.
O chapa. Quando estiver chegando a uma cidade para descarregar seu caminhão
e não souber se localizar direito, olhe na pista e seu amigo estará lá para te ajudar. É isso
mesmo! Chapa é uma gíria para a palavra amigo que ganha novo sentido na estrada, pois
um chapa é aquele que pode orientar-te ao teu destino e até te ajudar a descarregar
mediante pagamento. Um trabalhador da estrada que roda o Brasil, mas que possui casa.
O chapa entende muito de rotas, rodovias e cidades, carrega consigo mapas caso precise
de mais informações e por vezes pode trabalhar em grupo. Sua marca registrada é a
escrita CHAPA sobre tecido ou placa, às vezes um tecido revoando ao vento amarrado
em algum lugar ou batidas que executa em sua cabeça com a mão aberta, um sinal.
Quando ainda é madrugada, fazem fogueiras para serem identificados por aqueles que
precisam de auxílio.
O romeiro. A figura do romeiro está intrinsecamente ligada a um percurso de
começo e fim. Geralmente, sua jornada na estrada envolve sair de sua cidade e seguir até
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um destino religioso, lugar para onde muitos seguem. A grande maioria anda em grupo e
embora tenha esse viés religioso, existe também a camaradagem e o desejo de uma
aventura. Suas andanças são executadas a pé, de bicicleta, de moto, a cavalo e de tantas
outras formas que assim desejarem. Na maioria dos casos, tem seus pontos de parada
certos, carro de apoio e todo ano repetem, esse grupo cria um vínculo que mantém com
muito afinco. Para os que andam a pé é designada uma expressão do popular,
caminheiro.
Na estrada sou questionado se sou hippie, trecheiro, romeiro, andarilho, cigano e
quantas vezes pensam que eu não sou desse país devido à mistura de índio, negro e
branco, quer mais brasileiro que isso? Devo ser uma mistura de todos, um estilo de vida
miscigenado, difícil de identificar. Mas trecheiro, isso não importa, voltemos a caminhar.
CONCESSIONÁRIAS, POSTOS DE GASOLINA, ALBERGUES E BARES
Trecheiro, trecheiro, trecheiro! Onde vamos dormir essa noite? Onde vamos
arranjar comida para comer? Onde tem mais cachaça para aguentar o trecho? “The
answer, my friend, blowin’ in the wind”, diz Bob Dylan. Sim, a resposta está soprando no
vento da estrada.
As concessionárias são empresas privadas contratadas pelo governo do estado
para fazerem a manutenção das rodovias e também darem auxílio aos motoristas. E
trecheiro, quando vir uma concessionária, pare! O pessoal que trabalha na concessionária
é um povo gente boa. Dão café e bolachas e ainda batem um papo. Existem vários, a
CCR AutoBAn, a CCR NovaDutra, a Intervias, a Rota das Bandeiras, dentre tantas que
cuidam de um determinado trecho. No Brasil existem 50 concessionárias que operam
nesse esquema de concessão.
Os postos de gasolina como já explicitei é o paraíso de um trecheiro. Lá comemos,
bebemos, dormimos, tomamos banho e temos nossas relações sociais. Quando não se
encontra um posto de gasolina é mais indicado ir para o bairro de uma cidade a beira
pista ou mesmo o centro se for uma cidade pequena. Lá ficarás tranquilo. Ou faça como
eu quando não encontro, suba num barranco de grama na beira da pista, um lugar aonde
ninguém vai ver você, só torça para não chover.
Os albergues são geralmente ONGs que recebem auxílio da prefeitura para ajudar
as pessoas que não tem onde dormir. Oferecem esse serviço e também alimentação e
banho. A triagem do albergue funciona com a ficha de chegada, nela eles pegam seus
dados como uma pesquisa. Acredito que fazem isso para manter um controle e ter uma
base social dos que passam por ali. Têm horários e regras como todo espaço. No dia
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seguinte, se quiseres pode procurar a assistência social e eles auxiliam com transporte
para cidades vizinhas, ou pegue o trecho novamente.
Os bares são ótimos não só para beber, mas também para dormir. É só fazer
amizade com o dono que tu consegues dormir no coberto em frente e sempre tem mesas
de sinuca em que você pode ficar melhor mocozado, escondido. Quando não encontrares
um bar para cair de mocó, dormir. Procure uma construção ou casa abandonada, padaria,
praça, rodoviária, enfim, siga seu instinto, mas só durma quando se sentir seguro e de
preferência pouco visível. Encontre seu mocó, sua morada.
BONSUCESSO, TAMBAÚ, PIRAPORA E APARECIDA
Trecheiro, quer visitar esses lugares? Aqui vou contar um pouco da história e
tradição desses lugares de povo humilde, mas de muita fé e que ainda conservam suas
origens de festejos e manifestações. Sejam as cavalhadas, as catiras ou modas de viola.
Bonsucesso. Distrito que pertence ao município de Guarulhos. Faz divisa com
minha cidade no Bairro Tapera Grande pela Serra de Itaberava. A santa cultuada lá é
Nossa Senhora do Bonsucesso. Sua festa acontece durante todo o mês de agosto com
romarias, levantamento de mastros e a Festa da Carpição que consiste na carpição ao
redor da Igreja de Bonsucesso em um sistema de mutirão na primeira segunda feira do
mês. O contexto da tradição de benzer a terra nasce no início do garimpo Lavras do
Geraldo ou Lavras Velhas do Geraldo, cujo dono era Geraldo Correia Sardinha, isso em
1612. Ao limparem o solo, removiam a terra e levavam para casa. Acreditavam que a
santa não só traria ouro como também curaria doenças e faria milagres. A cura pela terra
é algo único no Brasil e talvez na América. Transporte de terra. O padre benze a terra de
manhã e depois as pessoas colocam a terra no lugar do corpo que dói, e caminham até a
Igreja de São Benedito várias vezes, onde depositam a terra.2
2 DUARTES. Pe. Bernardo Renato. A tradição da terra. Panfleto da Festa de Nossa Senhora do Bonsucesso 2012.
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Percurso de Nazaré Paulista a Bonsucesso
Tambaú. Cidade do interior paulista, próxima ao Sul de Minas Gerais e que teve
uma enorme onda de fiéis nos anos 50 por causa dos milagres atribuídos ao mineiro
Padre Donizetti Tavares de Lima, atraindo de vários lugares todos os dias, cerca de 40 mil
visitantes. Em 30 de Maio de 1955, acontece sua última aparição pública e por ordens
superiores ele aceita se recolher. Falece em 1961. Em 1997 entram com o pedido de
beatificação por seus milagres atribuídos em vida e depois de sua morte. A Casa dos
Milagres de lá era sua antiga residência e é comum as pessoas deixarem seus ex-votos
sobre a cama do padre.3
3 PREFEITURA MUNICIPAL DE TAMBAÚ. Disponível em: <http://www.tambau.sp.gov.br/>. Acesso em 03
jun. 2014.
SITE OFICIAL PADRE DONIZETTI. Disponível em:
<http://www.padredonizetti.com.br/02_home/home.php?page=principal_main>. Acesso em 03 jun. 2014.
18
Percurso de Nazaré Paulista a Tambaú
Pirapora do Bom Jesus. No ano de 1725, foi encontrada a imagem do Senhor Bom
Jesus de Pirapora apoiada em uma pedra às margens do rio Tietê nas terras
pertencentes a José de Almeida Naves. A imagem foi levada e guardada em um paiol de
milho. Ocorre o primeiro milagre, o paiol pega fogo, mas nem a imagem nem os milhos se
queimam. A imagem de cedro em tamanho natural, medindo 2,06 m foi colocada em um
altar doméstico da família Naves. Tentaram levar à Santana de Parnaíba, pois Pirapora
era uma sesmaria pertencente ao distrito, colocaram a imagem em um carro de boi com
seis juntas e partiram. No km 44 da estrada de Pirapora-Parnaíba ocorreu o segundo
milagre, onde hoje se encontra uma capela conhecida como capela do descanso o carro
de boi parou repentinamente e o carreiro não conseguia fazer com que ele andasse.
Aparece um homem surdo e mudo para tentar ajudar. O mudo conseguiu falar para que
deixassem apenas uma junta de boi e voltassem para Pirapora, pois era lá que o Sr. Bom
Jesus queria ficar, então voltou o carro com uma junta de bois. Em 1727, o Sr. Naves
doou terreno para construir uma capela devido aos muitos milagres e romeiros que
vinham ao local. Em 1897, Pirapora do Bom Jesus é desmembrada de Santana do
Parnaíba.4
4 PREFEITURA MUNICIPAL DE PIRAPORA DO BOM JESUS. Disponível em:
<http://www.piraporadobomjesus.sp.gov.br/>. Acesso em 03 jun. 2014.
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Percurso de Nazaré Paulista a Pirapora
Aparecida. No ano de 1717 é encontrada em Guaratinguetá no Rio Paraíba a
imagem de Nossa Senhora da Conceição. Conta-se que três pescadores estavam no rio
sem êxito na pescaria. Ao lançarem a rede, encontram uma imagem sem a cabeça.
Lançam novamente e encontram a cabeça, reconhece que é a Nossa Senhora da
Conceição, a Aparecida. Após começam a aparecer peixes como nunca nas redes
lançadas. Erguida a Capela, logo, começariam romarias e a tradição da sala dos milagres.
Aparecida também se torna cidade, e a construção do Santuário Nacional ocorre de forma
monumental, sendo considerada o maior da América Latina. (CORDEIRO, 2008)
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Percurso de Nazaré Paulista a Aparecida do Norte
PEREGRINOS
Hein Trecheiro, porque esse nomadismo? Por que não ficas sedentário? O ser
humano sempre caminhou. Ato inerente. O nomadismo dos homens das cavernas surgia
principalmente da necessidade de encontrar alimento, coletores. Num salto de tempo para
a Modernidade e o crescimento das cidades, a vida mudou. O escritor Charles Baudelaire
(1996) percebe em meados do século XIX na França as implicações nos hábitos sociais e
as novas formas de vivenciar a cidade.
Baudelaire (1996) reitera que o meio urbano deve ser sentido a plenos pulmões.
Assim como a figura do flanêur, que literalmente flana pelas ruas, a deriva. Porém, sem
criticar o contexto político, social ou histórico, como analisa Marshall Berman (1987). Sua
visão é de um grande vislumbre pela novidade da vida nos bulevares, mas não enxerga
que sua construção foi possível com a expulsão dos pobres que viviam na região para
alargarem a rua.
No final dos anos 50 e início dos 60, ainda na França, Guy-Ernest Debord instaura
o Situacionismo. Os situacionistas eram artistas que propunham uma reorganização
cultural e da arte partindo do pressuposto que a automatização da produção e a
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socialização de bens proporcionariam ao indivíduo sua autonomia. Acreditavam que
assim todos seriam artistas e não haveria espetáculo, nem autoria. Debord criou uma
Teoria da Deriva, técnica de passagem rápida por diferentes ambientes a fim de
reconhecer efeitos psicogeográficos e a afirmação de um posicionamento lúdico-
construtivo, contrário a viagem ou o passeio. (JACQUES, 2003)
Nos Estados Unidos, por volta dos anos 40 a 60, inicia-se o que chamariam de
geração beat, um grupo de jovens que querem conhecer seu país e outros pegando
caronas ou se virando como podem para viajar. Jack Kerouac foi um precursor desse rolê,
ele começou suas viagens em 1942. Publica o livro On the road em 1957 e tantos outros
que provavelmente inspiraram e inspiram tantos jovens mochileiros pelo mundo.
(KEROUAC, 2013)
Trecheiro, e quem anda no Brasil? Antes de começar meus trabalhos com
andanças refleti sobre o assunto e me inquietava, porque caminhar? Pensei comigo,
desde pequeno sempre tive que caminhar longas distâncias. Caminhávamos cerca de
uma hora a pé carregando compras morro acima para o sítio de meus pais, por vezes
amarrávamos as sacolas num pedaço de pau ou taquara (bambu) e carregávamos no
ombro como se fosse uma balança. Muitas pessoas em Nazaré Paulista têm os pés
rachados de tanto andar e é comum o uso de chinelo de dedo, as clássicas Havaianas.
Essa foi minha primeira referência.
A outra se refere a meu carinho pelos lugares que vou todo ano desde muito
pequeno. Um dia quero ir a pé até esses lugares, eu pensava. Assim começo a refletir,
que contexto cultural existe nesses lugares? Existe a romaria. Viagens a pé, de moto,
ônibus, cavalo ou coisa que o valha com lugar de partida e ponto de chegada. Geralmente
igrejas, monumentos religiosos, mas nem sempre está ligada a religião, conforme Lilian
Vogel (2007).
Nazaré Paulista faz parte da região Entre Serras. Localizada entre a Serra da
Cantareira e da Mantiqueira. A cidadezinha possui dentre muitas manifestações
populares: A Festa do Divino, as Rezas de São Gonçalo, o Círio de Nazaré com sua
romaria fluvial pela represa, a Romaria das Águas pelo rio que sai da barragem da
represa em homenagem a Nossa Senhora Aparecida no dia 8 de Dezembro até sua
capela no Bairro Tanque Preto, a Congada Preto e Branco e as romarias até os lugares
aonde eu fui.
A identidade cultural ainda é tangível no interior paulista e se manifesta nos
folguedos, nas festas populares, no modo de produção artesanal e em tradições
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transmitidas pela oralidade. As diversas formas de expressão da cultura popular
transmitem inconscientemente ao povo valores sociais, políticos e artísticos.
O VÍDEO-DOCUMENTÁRIO E A REALIDADE
Trecheiro! A produção de vídeos que permeiam tanto o cinema como as artes
visuais, tanto o documentário quanto a vídeo-arte é crescente, principalmente no cenário
nacional. Aponto aqui como exemplo o artista Cao Guimarães que desde os anos 90
produz filmes experimentais que possibilita novos olhares sobre a imagem e o uso do
dispositivo.
Seu filme Andarilho (2006) participou da 27ª Bienal de São Paulo (2006), bienal
que tinha a temática “Como viver junto” e o filme de Cao foi justamente escolhido por
fazer aposição ao que se propunha. Na proposta de Andarilho, o artista filma três
andarilhos solitários sem dirigi-los e encontra com seu olhar cenas muito poéticas. Além
disso, o filme possui um tempo diferente, as imagens são de um mero inseto ou mesmo
uma sacola voando, fatores que vão compondo um enredo alucinante. (LINS, 2007)
Cao Guimarães Andarilho (2006)
Assim como em Andarilho, faço recortes bem executados, não pensando somente
no registro, mas apurado esteticamente. De forma alguma ignoro a presença da câmera,
que por vezes quase parece um ser vivo por causa de sua função tracking focus, que não
consigo desabilitar, cujo papel é de estar sempre buscando foco se houver movimento.
Acabo por achar interessante tal situação, pois proporciona o efeito de certo torpor ao
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estado da andança, relativa ao cansaço. Impossível é ignorar o som do dispositivo ao
focar e muito menos ao usar o zoom, recurso que não achava atraente, mas que hoje vejo
com bons olhos, mais uma vez enxergando como afirmação da existência do aparato e
potencialização do mesmo.
Nas edições faço poucos cortes, apenas retiro alguns ruídos ou tremores iniciais de
cada filmagem, coisa mínima. Não há inserção de efeitos de transição, uso cortes secos e
tudo o que filmo é cru, o que chamam de edição básica. Corto em determinados pontos
para casar com a cena seguinte em contraste ou harmonia. Uso quase todos os vídeos,
pois todos são muito precisos em sua captação.
Sobre o caráter documental, vejo em meus trabalhos a necessidade da narrativa,
mostro recortes de lugares com a intenção de que o trecheiro possa reconhecer através
de indícios o que faço e para onde vou. Se o trecheiro estiver atento verá que não são
somente placas que indicam o que está acontecendo, o lugar ou a época. Há desde Ipês
que só aparecem num período do ano, bandeirinhas do fim da Copa do Mundo, anúncios
de políticos e a Represa Atibainha mostrando os carros por causa do baixo nível.
O som é outro elemento que possibilita informar, embora sejam poucos os
diálogos, surgem de forma certeira. Mesmo assim, a narrativa não destrói minha
subjetividade, pois há lapsos de tempo-espaço, aquilo que não se mostra é o ponto para o
trecheiro preencher.
Quanto a dirigir os que aparecem no caminho, não faço. Não controlo quem anda
comigo e nem peço para fazer cena. Eles podem dirigir! Às vezes, eles querem ser
filmados, mas, eles pouco aparecem. Embora sejam importantes e contribuam com o
desenrolar do percurso, ainda tenho que focar no que é a performance. E cumprir o
objetivo de chegar.
Outro fator importante é a captação com a improvisação de cajado, câmera, tripé e
fita adesiva. Gambiarra que proporciona movimento e dinamismo às cenas de batidas de
tripé, visões inferiores e superiores de meu caminhar, extensões e giros feitos com muito
controle e percepção de meu corpo. Tal empreitada acentua a relação com a realidade e
a ideia de documentário, as características, como câmera na mão e corte seco são
peculiaridades que achei interessante de conhecer através do Dogma 95, manifesto de
1995 dos dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg. Eles instauraram dez
mandamentos, regras ou dogmas de como se fazer filmes. Com intuito de criar um
cinema mais realista, simples, barato e menos comercial.
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LUIZ DE NAZARÉ E PAULO NAZARETH
Trecheiros! Luiz Fernando Bueno nasceu em 1988, em Nazaré Paulista, São
Paulo, Brasil. Paulo Nazareth nasceu em 1977, em Governador Valadares, Minas Gerais,
Brasil. Bueno foi a pé de sua cidade natal até São Paulo puxando uma mala cheia de
terra da sua cidade. Nazareth foi a pé de sua cidade natal até Nova York sem lavar os pés
pegando poeira da América Latina. O paulista derrubava terra pelo caminho. O mineiro
acumulava poeira. O brasileiro jogou o que sobrou da terra no Marco Zero da Sé. O
brasileiro lavou os pés no Rio Hudson.
EUA, potência que regula de forma hierárquica a entrada de imigrantes dos países
da América Latina, latino-americanos que vêem a potência mundial como um sonho de
vida. São Paulo, megalópole que é quase considerada o centro do Brasil pela rotatividade
de serviços e economias, brasileiros que vêem a cidade como um sonho de vida.
É para se confundir mesmo! Diante das proximidades de meios para se fazer, da
estética improvisada e da imersão em caminhadas. Até nossas roupas são parecidas.
Escolhi as minhas não querendo parecer ser um esportista e nem querendo ficar
desconfortável. São escolhas óbvias quando se vai viajar, temos carrinhos para não
carregar nada nas costas, pois pesa.
Nem negros, nem índios e nem brancos. Mestiços. Nascidos de estados muito
próximos. A cultura caipira de ambos quase que se mistura e temos muitas imagens
semelhantes se não iguais da nossa infância. A referência autobiográfica fica clara em
muitos de nossos trabalhos.
Nesse trabalho Notícias de América (2011-12), Nazareth também cata objetos pelo
caminho, encontra com pessoas e estabelece relações fora desse sistema. Produz
desenhos como ex-votos e deixa tudo em exposição na feira de arte Art Basel Miami
Beach. Mostra como um etnógrafo que transforma o espaço de arte em sítio arqueológico.
(NAZARETH, 2012)
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Paulo Nazareth Notícias de América (2011-12)
Coletar é algo comum para aqueles da estrada, andamos sempre de olho para ver
se encontramos algo. Em Cruzeiro, levo os objetos para o contexto, desloco para lugares
sagrados, pensando numa intervenção com ex-voto e apresento como trabalho posterior
uma instalação com os vídeos. Nazareth integra em Notícias de América outros trabalhos,
tanto que sua ação na exposição chama-se Banana Market (2011) em que aparece
vendendo bananas.
Paulo Nazareth Banana Market (2011)
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Dente de Elefante (2007), outro trabalho de Paulo, é um projeto que tem muitas
facetas, mas envolveu fazer um ex-voto de um dente de madeira e levá-lo até o Santuário
Nacional de Aparecida, com intuito de pagar uma promessa que nunca foi feita. Esse
humor não aparece em Cruzeiro e nem em Migrar.
Em Cruzeiro, minha ação é menos política e mais poética, ou pelo menos mais
ligada ao contexto social interno do Brasil. Enquanto que Nazareth em Notícias de
América traz a discussão ao nível internacional, de relações entre países. Viaja como um
imigrante, só que com ironia e deboche dos Estados Unidos.
Paulo Nazareth Notícias de América (2011-12)
Encontramos contextos diferentes na estrada e o que vejo como a parte mais
importante de nossos trabalhos enquanto contribuição de pesquisa. E a forma de
apresentar, eu registro apenas a performance e faço-a virar outra obra numa instalação.
Paulo parece não se importar com a efemeridade da performance e em sua instalação a
questão com os pés de poeira se perde. De forma alguma julgo, acho linda e poética sua
performance.
Tanto na obra de Nazareth quanto em Cruzeiro e Migrar é muito importante o lugar
por onde se caminha, o contexto que permeia as áreas escolhidas são os atributos que
sustentam o discurso do trabalho. Performances que ocorrem num site efêmero, um site
cuja duração é apenas a do tempo em que ela ocorre, performances para nunca mais se
executar.
Olhar as semelhanças estéticas de meu trabalho com o de Nazareth e achar que
são muito parecidos é uma visão rasa, calcada em obviedades e negligenciando o
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contexto em que ocorrem, como tratamos o trabalho posteriormente e nossas questões
conceituais.
A FÉ
No que você acredita trecheiro? A fé é algo que me acompanhou desde o início, e
não digo de fé calcada numa religião, pois essa não me interessa. Tenho fé na vida, numa
rede de associações e consequências que podem ser percebidas se nos atentarmos. O
mundo te dá pistas de como encontrar os caminhos certos, mas é preciso perceber, é
preciso acreditar.
“Na estrada só passa fome quem quer”, diz Edvan Silveira, um trecheiro.
Realmente tudo que pedi, foi-me dado. Quando tive fome, vieram laranjas. Quando quis
fumar, vieram cigarros. Quando fiquei sozinho, vieram amigos. E quando não sabia o que
fazer, esperava, pois sabia que algo ia acontecer e resolver meu destino.
Conhecemos as coisas que existem no mundo e a partir desse conhecimento
conseguimos manipular essas coisas ao nosso favor. Para saber o que fazer, deve-se
estar sempre pleno em todo lugar ou deslocado em relação ao mesmo, isso seria algo
como conseguir se enxergar num ambiente de fora e refletir sobre o mesmo. Ser capaz de
discernir as pessoas que ali agem, as coisas e poder prever ou evitar situações
indesejáveis. As características dos locais são fatores imprescindíveis para saber onde
estamos pisando.
Na necessidade de algo que lhe falta é só pedir. Saiba sempre a hora de parar e de
prosseguir. Essa é minha fé.
REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
BERMAN, Marshall. Baudelaire: o modernismo nas ruas. In: Tudo que é sólido
desmancha no ar: a aventura da modernidade. Marshall Berman. São Paulo: Companhia
das Letras, 1987.
CORDEIRO, José. Aparecida: devoção Mariana e a imagem Padroeira do Brasil. José
Cordeiro, João Rangel e Denílson Luis. São Paulo: Ed. do Autor, 2008.
DOUEK, Sybil Safdie. Entre memória e história. In: Memória e exílio. Sybil Safdie Douek.
São Paulo: Escuta, 2003.
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2010.
28
JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a
cidade / Internacional Situacionista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
KEROUAC, Jack. Os vagabundos iluminados. Porto Alegre: L&PM, 2013.
LINS, Consuelo. Tempo e Dispositivo nos Filmes de Cao Guimarães. In: Cao Guimarães.
Cao Guimarães. Edição Caja de Burgos: Espanha, 2007.
NAZARETH, Paulo. Paulo Nazareth: arte contemporânea / LTDA. [textos Janaína Melo...
et al. ; versão para o inglês Philippa May Bennett]. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012.
OLIVEIRA, José Cláudio Alves. Semiologia dos ex-votos no Brasil: simbolismo e
comunicação religiosa. Artigo apresentado no IX Congresso Lusocom | UNIP – São Paulo
– SP | 4 a 6 de agosto de 2011. Disponível em: <http://www.ex-votosdasamericas.net/>.
Acesso em 28 de Mai. 2014.
VOGEL, Lilian. As festas de fé da Região Entre Serras. Atibaia, SP: 2007.
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APÊNDICE
Trecheiro, quer mais? Têm um DVD com os quatro vídeos! Quando virares esta
página, verás. Presente massa, não é? Criei um menu básico para não passar direto de
um filme para outro. A ordem do menu é a ordem em que percorri os caminhos. Não sou
de pular do primeiro livro de uma trilogia para o terceiro. Acho interessante ver o
desenvolvimento de um para outro. Sei lá, é só uma ideia. O controle está em sua mão,
então você decide a melhor forma de ver. Bom filme!
Ainda não acabou. Estou revisitando minhas lembranças e escrevendo os relatos
de minhas peregrinações. Têm o título de Memórias do Trecho e está nesse endereço:
www.issuu.com/luizfernandobueno3. Estou sempre atualizando o arquivo quando sobra
um tempinho. Seu conteúdo é importante, pois comecei a escrevê-lo antes desse artigo e
a forma como escrevo lá foi um sinal para como eu deveria escrever aqui. Além do que,
existem detalhes e explicações que não caberiam num artigo. Não tem muitas páginas
ainda. Se quiseres, leia.
Adeus trecheiro! Despeço-me, pois não sou de sair sem dizer nada. Vejo daqui,
sentado na frente do computador, a porta de minha casa aberta. O vento balança as
plantas de meu jardim. Vento que leva e que dá saudades daquilo que vivi e do que ainda
tenho para viver. Tenho muito mais a aprender sobre o mundo. Tenho mais para aprender
sobre as estradas e os andantes. Dá vontade de sair agora por essa porta. Sede de
aventura. Ainda não posso. Mas trecheiro, se algum dia encontrarmo-nos num posto de
gasolina ou coisa que o valha não negue meu mangueio. Pague um marmitex, uma
cerveja ou quem sabe um café. Em retribuição batemos um dedo de prosa e posso te
contar um pouco daquilo que aprendi e de minhas novas aventuras. Abraço.