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Este ensaio trabalha com a problemática do interdito e sua relação com o objeto fotográfico. Discute, ainda, as imagens traumáticas como re- presentações culturais do sofrimento social, as di- versas formas de apropriação para propósitos po- líticos ou morais, o uso social do sofrimento e a criação de um mercado pulsante para imagens e discursos sobre o tema na contemporaneidade. A primeira hipótese de trabalho busca com- preender como as diversas formas de apropriação da imagem fotográfica, com temáticas de interdi- tos sociais ou que representam cenários liminares, parecem se fazer a partir da intencionalidade do ato em função da pessoa e, desse modo, apare- cem para o observador comum como uma forma de apropriação não social do produto da ação. As imagens de interdito funcionam como um plano moral singular que tende a retirar do social qual- quer vínculo que possa ter com a ação ou com o fato de ser uma “coisa proibida”, passando-o para o interior do indivíduo como uma subjetividade. A segunda hipótese, conseqüência da primeira, analisa o objeto fotográfico a partir da idéia de expe- riência abstrata. Ao trabalhar em cenários de frontei- ra, no alcance dos códigos morais e na especifici- dade dos códigos de interdito e de poluição, esse objeto parece retratar situações de sofrimento na ambivalência entre abrangência e especificidade e na ambigüidade das regras morais e das expressões poluidoras e interditas. Isso o torna um subprodu- to de uma ação legal ou legítima exercida institu- cionalmente ou, ainda, na esfera privada, uma ameaça concreta ou potencial dos medos gerais que conformam os indivíduos sociais. Fotografia e interdito As fotografias analisadas aqui revelam duas te- máticas que interagem uma com a outra. Embora FOTOGRAFIA E INTERDITO Mauro Guilherme Pinheiro Koury Artigo recebido em março/2003 Aprovado em novembro/2003 RBCS Vol. 19 nº. 54 fevereiro/2004

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Este ensaio trabalha com a problemática dointerdito e sua relação com o objeto fotográfico.Discute, ainda, as imagens traumáticas como re-presentações culturais do sofrimento social, as di-versas formas de apropriação para propósitos po-líticos ou morais, o uso social do sofrimento e acriação de um mercado pulsante para imagens ediscursos sobre o tema na contemporaneidade.

A primeira hipótese de trabalho busca com-preender como as diversas formas de apropriaçãoda imagem fotográfica, com temáticas de interdi-tos sociais ou que representam cenários liminares,parecem se fazer a partir da intencionalidade doato em função da pessoa e, desse modo, apare-cem para o observador comum como uma formade apropriação não social do produto da ação. Asimagens de interdito funcionam como um planomoral singular que tende a retirar do social qual-quer vínculo que possa ter com a ação ou com o

fato de ser uma “coisa proibida”, passando-o parao interior do indivíduo como uma subjetividade.

A segunda hipótese, conseqüência da primeira,analisa o objeto fotográfico a partir da idéia de expe-riência abstrata. Ao trabalhar em cenários de frontei-ra, no alcance dos códigos morais e na especifici-dade dos códigos de interdito e de poluição, esseobjeto parece retratar situações de sofrimento naambivalência entre abrangência e especificidade ena ambigüidade das regras morais e das expressõespoluidoras e interditas. Isso o torna um subprodu-to de uma ação legal ou legítima exercida institu-cionalmente ou, ainda, na esfera privada, umaameaça concreta ou potencial dos medos geraisque conformam os indivíduos sociais.

Fotografia e interdito

As fotografias analisadas aqui revelam duas te-máticas que interagem uma com a outra. Embora

FOTOGRAFIA E INTERDITO

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Artigo recebido em março/2003Aprovado em novembro/2003

RBCS Vol. 19 nº. 54 fevereiro/2004

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possam ser entendidas em separado, tornam-se maisexpressivas e ganham sentido nos intercruzamentosque conduzem à leitura do plano social, para quemelas buscam revelar e de onde são produtos e obje-tos de discurso e também promotoras de falas com-petentes ou de projetos discursivos. Essas duas temá-ticas tratam da morte e dos interditos: ambasprodutoras de discursos morais que servem de guiapara um específico societário situar-se e situar seusmembros em formas de conduta no tempo e no es-paço, consolidando noções de passado e futuro pormeio da presentificação da regra.

Interdito indica uma ação intentada com ofim de proteção e caracterizada por um preceitoproibitório, como o impedimento do uso, a fruiçãode bens ou o obstáculo ao acesso a lugares ou acoisas considerados sagrados ou puros.1 Relaciona-se com noções de proibição e impedimento, e coma noção de poluição e contaminação. O uso de re-cursos interditos socialmente, assim, poderá acarre-tar prejuízos individuais e sociais para quem deleparticipa, ativa ou passivamente. Prejuízos que po-dem ir desde a perturbação mental ou social, até aconstrangimentos pessoais ou coletivos entre par-tes em interação expostas ao recurso interdito.

Os prejuízos decorrentes da exposição pos-sibilitam uma contaminação do sujeito expostopelos elementos poluidores constantes da açãoou da coisa proibida. Uma coisa interdita, assim,quando tocada por mãos ou olhares pode provo-car um ato poluente e criar uma área de contami-nação que ocasiona perigos vários aos envolvidosdiretos ou indiretos do ato de exposição.

As ações e as coisas interditas estão, portanto,sujeitas a todo um regramento pela disfuncionalida-de que podem causar aos indivíduos ou a grupossocietais, interagindo em tempo e espaço específi-cos. Os interditos podem ser considerados em suasformas de apropriação no plano social, por umapessoa ou grupo de referência, e em suas formassimbólicas expressas no conteúdo imaginário, nãonecessariamente consciente daqueles que a mani-pulam, se expõem ou são expostos (Eliade, 1992).

A eficácia de um interdito é a sua aceitaçãosocial, por toda a coletividade ou por parte dela.Quanto mais simples o meio social, mais a noçãodo interdito perpassa todas as camadas e funciona

na sociedade em geral. A pluralidade apresentadapor um meio social mais complexo, diferentemen-te, permite a existência de fragmentações de vá-rios níveis e graus no plano social, dissolvendo osinterditos em um conjunto de regras passíveis deserem ou não absorvidas ou aceitas pelo todo.

Os interditos como padrões morais, em todocaso, são ressignificados cotidianamente pelos in-divíduos, grupos e pela sociedade como um todo.Trata-se de uma espécie de imposição imagináriaque toca em padrões arquetípicos de comporta-mento e de interação entre indivíduos ou gruposde um determinado meio social, ou, ainda, nasformas diversas de apropriação das ações de in-terditos entre os diversos grupos ou personagensenvolvidos, passivos ou ativos, com o resultadoda ação ou da situação.

No caso das noções de morte e violência, osinterditos perpassam redes abrangentes, sociaisou mentais, em que as temáticas no cotidiano ten-dem a ser negadas ou vinculadas a um tipo deapreensão passível de visualização. As diversasformas de apropriação parecem se fazer a partirda intencionalidade do ato em função da pessoae, desse modo, aparecem como uma forma deapropriação não social do produto da ação.

A morte, como conceito e expressão, encon-tra-se interdita na sociedade ocidental contempo-rânea. O modo de vida atual impede a vivênciada morte sob um discurso de juventude eterna edominação da natureza; a morte acontece e é en-tendida como uma forma de fracasso tecnológico.Como não pode ainda ser evitada, é aventadacomo a morte do outro e, como tal, as formas ri-tuais e as expressões de dor são minimizadas etratadas de modo higiênico.

Estudos sobre o Brasil urbano do final do sé-culo passado constatou as formas interditas no tra-to da morte e do luto, o desconforto advindo, a di-minuição e o esfacelamento das relações sociais,ampliando a esfera da solidão do homem comum(Koury, 2001, 2003).

A objetividade do social funciona como umaespécie de regramento das subjetividades, enqua-drando-as dentro de significados psicológicos quepodem interferir no comportamento social em ge-ral, se não forem embargadas ou, pelo menos,

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acionados controles morais para sua contenção.Além disso, a manipulação pode ser feita por meiode subjetividades intencionais, dentro de um rígi-do controle disciplinar imposto socialmente pelooutro da relação. Controle disciplinar ativado pe-las noções de vergonha ou culpa, sempre pes-soais, mas também referentes às inter-relaçõespossíveis, vinculadas direta ou indiretamente como meio social mais geral (Elias, 1990, 1993).

Pensar o objeto fotográfico, em sentido am-plo, refere-se à apropriação. A apropriação do reale sua transformação em realidade captada e reve-lada, capaz de reproduzir um espaço que foi vistoe capturado por uma lente e transferido na suaimortalidade de objeto revelado para todo e qual-quer olhar que a ele se atenha.

Artefato de objetificação do real, a fotografiasubmete a realidade ao olhar mecânico da máqui-na e, através dele, parece disciplinar o conjuntode fatos capaz de organizar um discurso sobre omundo e os homens, ou dos homens e seus mun-dos e suas relações com a natureza e o sobrena-tural. A fotografia aparece, assim, como uma for-ma singular de apreensão do real, e seu uso temum significado variado segundo as formas de as-similação ou os discursos produzidos a partir doselementos conotados que a constituem.

Uma mesma fotografia representa uma infi-nidade de formas de apreensão e apropriação se-gundo os usos a que se encontra submetida. Osinterditos, quando agem, funcionam sempre emrelação aos outros, espaço onde se objetifica o so-cial, embora internamente, na subjetividade dapessoa, possam ser apropriados de forma diferen-te. O sentimento de culpa pela posse ou guardade uma fotografia, por exemplo, permite ressigni-ficá-lo em uma simbologia que acomoda essa cul-pa da posse, transformando-a em uma emoçãoqualquer, sentimental, em relação ao objeto deque se fez guardiã ou proprietária.

Os dramas internos acomodados e o objeto,sendo de significação apenas pessoal, sem o con-trole e o aparecimento público, é possível admi-nistrá-lo e conviver com ele na sociedade. Desco-berto, porém, ou entreaberta a possibilidade deposse sobre objetos interditos ou de suspeição so-cial, a pessoa se sentirá constrangida, terá receio

de passar vergonha em público e, em último caso,ser levada a um tratamento especializado porconta de sua fixação em objetos não aprovadossocialmente.

Este parece ser o caso da Foto 1. Esta foto éum dos resultados da democratização da fotogra-fia, que popularizou o ato de retratar e inseriu, demodo mais arraigado, o fotografar no âmbito doprivado. Ela foi colhida por mim durante um tra-balho de campo sobre luto e sociedade2 em umacidade do interior de Minas Gerais. Retrata umhomem pendurado pelo pescoço em um dos cai-bros da residência. Foi tirada por um familiar, apedido da esposa da vítima, após ter sido encon-trado e antes de a polícia chegar e se apropriar docorpo para perícia técnica. O retrato é guardadocom carinho como a única lembrança deste entepela esposa. Faz parte do que se convencionouchamar álbum de família: instrumento privadoem que se depositam as lembranças iconográficas

Foto 1 - Anômima - Álbum de família.

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familiares, de amigos próximos e pessoas impor-tantes que, de forma direta ou indireta, estiverampresentes na vida e na organização familiar.

Essa fotografia não possui qualquer expres-são pública. Trata-se de uma apropriação privadaem um instante familiar. Um instantâneo que retra-ta o último momento de um ente querido. Os ele-mentos de interditos aparecem quando, a pedidoda proprietária, a situação pôde ser revelada, masnão puderam ser discriminados o nome do retra-tado, da proprietária e da família, nem o local exa-to onde aconteceu o ato, suicida e fotográfico.

Tratar-se de uma foto de um homem enfor-cado ainda preso à corda que o matou parece serum detalhe na administração sentimental dos fa-miliares que a possuem e a utilizam como objetode memória sentimental do morto.3 A foto, contu-do, é mantida sob um misto de segredo e receio.

É considerada na comunidade, entre vizi-nhos e inclusive familiares, uma espécie de doen-ça mórbida – “esta mulher é maluca” –, ou pormeio de expressões de nojo e distanciamento,como se a foto, e através dela, a família quea possui, pudesse contaminar os demais pelaafronta que representa: a idéia de um suicí-dio acontecido de fato, naquela residência.

A idéia de morte adjetivada pelo suicídiotraduz um receio sobre as conseqüências quepoderá trazer à comunidade. Evitar a fotogra-fia e, por conta disso, evitar relações mais es-treitas com a família que a guarda de manei-ra sentimental, parece ser o mais prudente afazer.

A fotografia mortuária no século XIX enas primeiras décadas do XX foi um instru-mento de lembrança de importância especialpara os álbuns de família. Por intermédio dasfotos repassava-se para as gerações seguintesos que um dia fizeram parte da família, assimcomo se administrava o estatuto social da fa-mília em fotos de velórios, onde o corpomorto era rodeado por familiares e autorida-des, amigos, pessoas comuns, agregados en-tre tantos outros. Estudiosos como Bourdieu(1967), Jay Ruby (1995, 2001), Koury (2001a),entre outros, estudaram o fenômeno na Europa,nos Estados Unidos e no Brasil, respectivamente.

No Brasil, a fotografia mortuária foi largamen-te utilizada nas classes alta e média até o final de1950, quando fotógrafos retratavam mortos para ál-buns privados. O desuso desse tipo trabalho deu-se no final dos anos de 1950, embora ainda sejafreqüente o envio dessas fotos com dedicatórias,são elas guardadas com carinho e utilizadas comorecordação por grande parte da população urbanade classe média, como mostra a Foto 2, de uma fa-mília paraibana, tirada em 1961. Esta fotografia foi-me cedida durante trabalho de campo sobre luto esociedade no Brasil por uma das irmãs da mulherretratada, na cidade de João Pessoa, Paraíba. Fazparte do álbum de família desta informante.

A contradição entre a diminuição significativadesse costume e o freqüente uso ou guarda de fo-tografias mortuárias entre os brasileiros contempo-râneos é apenas aparente. De um lado, essas fotos,nos últimos quarenta anos tem sido cada vez maistiradas por fotógrafos amadores, quase sempremembros da família do morto, o que retira para ainstância do privado um ato até então público. Deoutro lado, porém, a saída para o âmbito privado

Foto 2a - Anônima - Álbum de família.

Foto 2 - Anônima - Álbum de família

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ampliou, nas relações públicas, uma espécie de in-terdito sobre esse tipo de retrato.

A modernidade brasileira veio acompanhadade um discurso de higienização das relações so-ciais e do trato da morte. Levou a um estranhamen-to das formas de expressão de sentimentos vigen-tes e a um arrefecimento dos rituais. As relações eos discursos proferidos a propósito do processo damorte e das formas de agir quando as pessoas sãoatingidas direta ou indiretamente tornaram-se am-bíguos e ambivalentes.

A fotografia mortuária tornou-se, assim, in-terdita. Uma espécie de “proibição branca” fazcom que seu uso hoje seja dissimulado pelos queo praticam e criticado de uma maneira geral.Quando essas pessoas são questionadas se foto-grafam seus mortos, a primeira expressão é de re-ceio ou indignação, para depois, ao ganhar con-fiança, confessam que possuem ou tiram fotosmortuárias de entes queridos.

A vergonha da posse é uma expressão mo-derna do interdito sobre a propriedade de fotogra-fias mortuárias, o que faz a apropriação ser cons-trangida e a relação pública de expressão socialambígua e ambivalente. O medo de ser tratado delouco, de estranho e motivo de gracejos ou pre-conceito, circunscreve o retrato dos mortos ou suaguarda e reverência em uma espécie de sombra,com pouca ou nenhuma visibilidade social. O mes-mo acontece com as expressões de sentimento erigor ritual no trato com a morte e com os mortos.

A comparação entre o estado mórbido daFoto 1, que retrata um suicida, e o da Foto 2, queretrata uma jovem morta em seu caixão, dedicadapara a irmã como lembrança dos últimos momen-tos, é bastante fecunda e se faz necessária. A pri-meira não expressa apenas o sentido de recorda-ção, mas relata a forma com que o retratado foimorto e o tipo de morte, o que torna essa foto equem a possui como lembrança íntima algo nomínimo bizarro, aos olhos dos outros.

A segunda também incomoda, mas é possí-vel de ser administrada socialmente como um cos-tume antigo, já que muitos possuem retratos des-se tipo ou conhecem quem os conserva. Já a Foto1 apregoa repugnância, não só pelo interdito damorte, mas pela morte adjetivada no ato suicida.

Ambas possuem para o olhar exterior umaconotação não moderna de reviver a morte e osmortos. A primeira, porém, intimida os demaispela “presentificação” de um ato voluntário con-tra a vida. Na cultura cristã, o suicídio é encaradocomo um desafio a Deus e está sujeito, portanto,a uma denegação simbólica que prende o suicidasenão no inferno, a vagar por entre mundos, semnunca obter a salvação e a misericórdia. Açãoessa que compromete não apenas quem o prati-cou, mas toda família.

Até que ponto uma etiqueta social tem ne-cessidade de elementos considerados sujos e po-luidores para a formulação de uma padronizaçãodo comportamento individual e coletivo? A insis-tência da família em guardar a fotografia que eter-niza o ente querido preso a uma corda como lem-brança íntima reforça a estranheza sobre ela,concretizando o perigo da sujeira, atualizada e fi-xada na fotografia, em contaminar a quem dela seaproxime ou toque (Douglas, 1976). O perigo ésentido e deve ser evitado a qualquer custo, oque leva as pessoas a se esquivarem das relaçõescom a proprietária e sua família. As fotos servemde enredo a conversas sobre a etiqueta da mortee do morrer, como um elemento positivo de evi-tação das regras que erigem o comportamento doenlutado em relação aos mortos e aos membrosda família e da comunidade e vice-versa.

A terceira fotografia utilizada neste ensaioretrata um homem jovem agonizante, vítima daAids, cercado pelo carinho e sofrimento dos fami-liares. Esta fotografia de Therese Frare, de 1992,teve como destino-alvo uma campanha publicitá-ria da Benetton. Ao lado esquerdo, embaixo, ob-

Foto 3 - Therese Frare. Aids. Propaganda da Benetton.

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serva-se uma tarjeta verde que identifica a marcada campanha (Foto 3).

Como as outras fotos, esta retrata um dramafamiliar de cunho privado, no caso, o acompa-nhamento da agonia de um ser humano por suafamília. Fotografia que poderia ser destinada aoálbum de família, como recordação.

Ela reedita, assim, a simbologia da fotografiamortuária.4 Junto à agonia da morte retratada norosto do doente, pode-se enxergar também umsentimento de satisfação, por estar, talvez, acom-panhado pela solidariedade dos que o amam e aque ama. A emoção dos familiares revela a soli-dariedade e o conforto que querem transmitir, aomesmo tempo que se expressa, claramente, a in-conseqüência da morte.

A foto parece retratar um momento privadoque se quer reter na memória familiar e que pre-tende conservar, para as novas gerações, a singe-leza e a importância da família como estrutura so-cial. Das três fotos, esta talvez seja a mais crédulae a que melhor expresse a fotografia mortuária decunho privado e que destaca o significado da fa-mília como um bem universal a ser conservado.Uma fotografia que, embora olhada com certoviés de passado, de tradição, poderia ser suporta-da pelos olhos da cultura ocidental individualistamais chegada a memoriais.

Contudo, trata-se de uma cena real feita parailustrar a publicidade de uma grife internacional deroupas. Sua veiculação foi proibida em vários paí-ses pelo discurso moral provocado, sendo bastan-te comentada na mídia internacional da época.Uma semana após seu lançamento foi interditadanas cidades italianas e a seguir, país a país, proibiu-se sua exibição. Três ordens de consideração po-dem explicar a proibição. A primeira remete aomoribundo: por se tratar de um doente terminal deAids, criou-se uma espécie de estigma, já que aprópria enfermidade é vista com preconceito, cha-mada de “praga mundial” e, sobretudo, urbana,identificada no final de 1970, e que atingiu o augenos primeiros cinco anos da década de 1990 – a fo-tografia data de 1992. A segunda indica a indigna-ção internacional orientada pelas igrejas e por ins-tâncias jurídico-políticas por ela ter sido produzidapara uma campanha publicitária e, como tal, paga

aos familiares e ao doente. O elo sacrossanto quepoderia haver na fotografia para uso privado foiquebrado e o debate sobre a frágil estruturação dafamília moderna, ampliado. A terceira sintetiza asanteriores, indicando a origem e o papel que a fo-tografia deveria desempenhar e, em contrapartida,o papel que de fato desempenhou: vender um pro-duto específico, no caso, roupas da grife Benetton.

A discussão moral resultou numa bandeira éti-ca contra o uso de determinadas temáticas parapropaganda. Alastrou-se pela sociedade civil emmanifestos contra a forma e o uso de temas preju-diciais a segmentos determinados da população, ouque ajudariam a ampliar os preconceitos. Assim,grupos organizados pronunciaram-se contra a Be-netton e sua linha de propaganda.

Vale lembrar que a Benetton envolveu-se emdiversas disputas jurídico-políticas e acarretou vá-rios protestos com outras fotografias temáticas.Em 1991, por exemplo, a fotografia “o anjo e odemônio”, de Oliviero Toscani, retrata duas crian-ças se abraçando, uma branca e uma negra. Am-bas olham direto para a câmera. O “bem e o mal”abraçados parodiam as representações cristãs so-bre a imagem do anjo e do demônio. Uma brin-cadeira contra o preconceito, talvez! Entretanto,não foi absolutamente entendido dessa forma. NoBrasil, diversas organizações protestaram contra opreconceito advindo da imagem e conseguiramdiminuir o tempo de sua divulgação.

Em 1995, duas fotografias conjuntas, tam-bém de Oliviero Toscani, criavam a idéia temáti-ca da propaganda. Um casal de homossexuaismasculino e um feminino, este último com umacriança, simbolizavam o tema liberation. O car-taz também causou polêmica e protesto em vá-rios países.

No ano anterior, uma fotografia intitulada“Soldado Bósnio” retratava uma calça militar euma camisa de algodão encharcadas de sangue ecom perfuração de balas. Em 1998, a série “Inimi-gos” unia judeus e árabes, servos e bósnios, e ou-tros inimigos étnicos abraçados. A mais comenta-da, com protesto de várias organizações judias, foia fotografia de Oliviero Toscani, de uma moça ju-dia beijando um rapaz palestino, no front.

A Benetton, polêmica armada, ganhava os jor-

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nais e se fazia conhecida e discutida mundialmen-te. A apropriação de imagens traumáticas de con-teúdo moral ou de linguagem ambígua pela propa-ganda parece atingir o público pela utilização daambivalência inerente aos estatutos do individua-lismo e da individualização ocidental contemporâ-nea. De um lado, tudo é possível, do outro, nemtudo, antes pelo contrário.

Ao jogar a ambigüidade como temática, essetipo de campanha publicitária apontou a aleivosiado cosmopolitismo ocidental e realçou o precon-ceito, a solidão e o não saber agir dos sujeitos nacena social. O debate sobre até que ponto a liber-dade de ações individuais são ativas e quais os li-miares de admoestação do novo na sociedadecontemporânea expandiu-se. O que é ético, o queé preconceito e o que é razão moral, enfim?

Essas questões foram também suscitadasquando da discussão em torno de uma fotografiaque retratava um abutre pousando, pacientemen-te, próximo a uma menina subnutrida. Sem con-dições de seguir, a criança pára, as pernas ficamo chão sem forças, ela cambaleia e senta sobre osjoelhos; pela tontura do sol, da fome e da sede,sua a cabeça queda e se entrega ao abatimento.O abutre, ave de rapina acostumada a essas ce-nas, espera pacientemente o desfalecimento davítima para, talvez, dar o golpe mortal e alimen-tar-se dos restos (Foto 4).

Esta é uma descrição linear de uma fotogra-fia tirada em 1993 por um fotógrafo sul-africano. Acena passa-se na África, perto de um campo de re-

fugiados no Sudão. O fotógrafo estava no localpara cobrir o impacto causado por mais um con-flito entre etnias em disputa pelo controle estatal,na modernidade africana. Como o abutre, pacien-temente, ele se posicionou e esperou, acompa-nhando a trajetória de dor desta pequena tragédiahumana, os rodopios e o ganhar segurança da avediante do alvo.

Com esta foto, Kevin Carter ganhou o prê-mio Pulitzer de fotojornalismo em 1994 e, algumtempo depois, suicidou-se aos 33 anos de idade.

Ele até então era pouco conhecido no mundodo fotojornalismo. O obituário de autoria de ScottMacleod, publicado na revista Time, de 12 de se-tembro de 1994, informa que Carter ganhou noto-riedade internacional por meio desta fotografia, eque sua repercussão se deu em um dos acasos davida cotidiana. Fotógrafo free-lance conhecidoapenas na África do Sul, segundo artigo de JudithMatloff no Columbia Journalism Review, de no-vembro/dezembro de 1994, após fotografar as víti-mas do Sudão, retornou a Johannesburg. Por coin-cidência, o New York Times procurava fotografiassobre o país e comprou algumas de Carter. A foto-grafia da menina sudanesa foi publicada na ediçãode 26 de março de 1993, causando grande impac-to na opinião pública norte-americana e mundial.

A notabilidade da fotografia se deveu por to-car sentimental e politicamente os olhares observa-dores mais diversos – do homem comum, atéagências de Estado e organismos internacionais go-vernamentais e não governamentais. Primeiro, pelaviolência emanada, que serviu de suporte para dis-cursos e campanhas de controle e ajuda aos povosque vivem na extrema miséria. Segundo, pelo sui-cídio do autor, atribuído em bilhete a não mais tercondições de viver depois de presenciado tal ato eparticipado dele apenas como observador.5

Essas questões geraram um intenso debateentre fotojornalistas sobre a ética por trás da cap-tação de imagens. Em outras palavras, a discussãoem torno da busca de notoriedade ou da melhorfotografia, sem se importar com quem está sendoretratado. Desde o lado aventureiro do fotojornalis-mo até as alusões de que os fotógrafos eram caça-dores de imagens e a discussão sobre a necessida-de de pensar visualmente em campo no processoFoto 4 - Kevin Carter - O abutre e a menina sudanesa.

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de obtenção de imagens com melhores ângulos ouqualidade técnica sobre o produto retratado, tudofoi tema de discussão. Em depoimento, o fotógra-fo James Nachtwey afirma ter ouvido de Carter:“[...] você está fazendo um visual aqui, mas dentroalgo está gritando! [...] Mas é tempo de trabalhar. Selida com o resto depois. Se não puder fazer isso,então saia do jogo”.

Passou-se a refletir sobre o processo ético noato fotográfico em si. O suicídio de Carter, nessecontexto, constituiu-se, usando suas próprias pala-vras, uma forma de sair do jogo e do não podermais fazer esse tipo de trabalho. Alguns depoi-mentos, com o intuito de entender a fatalidadeacometida, comentaram a instabilidade emocionaldo fotógrafo, o consumo de drogas e álcool e ofato de ele buscar notoriedade a qualquer preço.Nessa sentido, esses depoimentos queriam, naverdade, se livrar de um sentimento de culpa maisgeral. Culpa presente no ato fotográfico implícitoao trabalho de fotojornalismo; culpa relativa aoconsumo de imagens no mundo ocidental con-temporâneo e à busca da mídia sem limites de ex-ploração de sentimentos e de ampliação de ven-dagem das edições, não importando as fronteirasda moral e da ética. A relação entre venda, novi-dade diária e qualidade da imagem nas agências enas mídias internacionais, em nome da informaçãoimediata e dos furos de reportagem, impõem aosfotógrafos um modo de agir, no momento mesmoda captura da imagem – um pensar visual –, quesepara o trabalho de suas vidas cotidianas.

No meio acadêmico, a análise deteve-se so-bre as formas de discurso geradas pela apropria-ção de imagens traumáticas – dominação e explo-ração ou/e sensibilização das pessoas. Kleinmane Kleinman (1997, pp. 1-24), a partir da fotografiae do suicídio de Carter, discutem as bases deapropriação do sofrimento social pela política epela mídia contemporânea na sociedade ociden-tal. Falam das imagens traumáticas como repre-sentações culturais do sofrimento social e suasapropriações para propósitos políticos ou morais;discutem o uso social do sofrimento como umcomponente da política econômica globalizadacontemporânea e da criação de um mercado pul-

sante para imagens e discursos sobre o tema. Osofrimento social tornou-se uma mercadoria degrande procura no mercado midiático e de políti-cas públicas internacionais.

Luc Boltanski (1993) discorre sobre o sofri-mento à distância para expressar as formas pelasquais a cultura popular se apropria e é estimula-da a se apossar de imagens que traduzem o sofri-mento social no mundo e que, nesse contexto, setornam mercadorias. Alvos de retóricas e de re-presentações discursivas e culturais, essas ima-gens são como restos pouco densos e distorcidosde uma experiência social que se passou distantedos sujeitos que a vêem. Representações culturaisveiculadas por meio de imagens traumáticas, tor-nadas objetos temáticos, hierarquizados e estig-matizados, geralmente sob a égide protetora e in-tervencionista de uma moral social dominante esuas instituições.

A mesma discussão ética fomentada pelo im-pacto causado pela Foto 4 pode também servir debase para as fotos 5 e 6 com uma diferença, con-tudo. A diferença diz respeito às formas de ediçãode imagens fotográficas: censura moral, cortes,formas de manipulação e sobre o que deve ser ounão mostrado nas imagens publicadas.

A Foto 5 ilustrou um jornal popular, Folha dePernambuco, no seu primeiro ano de existência.A fotografia de 1999, do fotógrafo Clemilson Cam-pos, retrata um travesti morto.

A fotografia é banal e retrata uma cena co-mum: um travesti morto nas ruas, num dos becosda periferia de Recife. A sua composição seria co-

Foto 5 - Clemilson Campos.

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mum à fotografia jornalística de jornais populares –tipo de enquadramento, angulação, sangue derra-mado pela vítima etc. – se não fosse um pequenodetalhe. O travesti morto estava com o pênis ereto.

A editoria resolveu retirar o inconveniente dafoto, borrando-o digitalmente, de forma grosseira,conforme depoimento do editor de fotografias dojornal cedido a mim, embora a matéria escrita fa-lasse claramente da ereção da vítima. No mesmoano, o jornal publicou outra foto, de Hélia Schep-pa, com as mesmas características: a manchetechama a atenção – “Idoso achado morto, nu e compênis levantado”. Igualmente, a região peniana seencontra borrada, escondendo e, ao mesmo tem-po, mostrando o elemento interdito.

Nessas duas fotografias, está-se falando deimagens traumáticas e de sua expressão na im-prensa chamada popular. O sofrimento social temaí uma intencionalidade direta, como uma espé-cie de editorial, sobre o significado construídopara a violência urbana e seus protagonistas, ge-ralmente populações pobres ou grupos conside-rados marginais à moral comunitária em vigor.

O papel da imprensa popular na construçãodas imagens de sofrimento como mercadoria e nasua disseminação como discursos intervencionis-tas de ação direta ou, ainda, como banalização eestigmatização do sofrimento social é por demaisdebatido, seja como espetáculo da experiência es-pecífica de um segmento da população – pessoascomuns, moradores das periferias das cidades,trabalhadores ou desempregados; pequenos ban-didos, estupradores e suas vítimas, homossexuais

e travestis; grupos de extermínio organizados, pa-gos pelo comércio local; grupos de linchamento,que buscam a justiça pelas próprias mãos; a pró-pria polícia, tanto no seu lado corrupto como node ação e proteção do cidadão –, seja como con-sumo mórbido. Em um outro trabalho (Koury,1998, pp. 67-86), ao analisar a questão da indife-rença no processo de consumo de imagens trau-máticas na imprensa, tendo por base de pesquisaos depoimentos de informantes que foram expos-tos a um conjunto de fotografias, cujo tema prin-cipal era a morte, pude identificar o motivo da ba-nalização e da rotinização desse tipo de imagem.

Embora a morte incomodasse por sua mor-bidez, não dizia respeito de imediato aos medos,aos receios e às perdas pessoais dos informantes.Sua impessoalidade abria espaço para uma inter-pretação sobre os horrores e a violência do mun-do, sem que afetasse diretamente o mundo pes-soal do observador.

A perturbação era mais social, não atingindodiretamente o lado subjetivo da pessoa. Os retra-tados eram os outros, os homens em abstrato, in-divíduos quaisquer, distantes, virtuais, o que tor-nava possível cada um abstrair, fazendo com queos depoimentos transcorressem em um nível dedistanciamento em que as emoções vinham àtona por meio de categorias muito amplas e apa-rentemente desligadas do cotidiano.

Os elementos indicados servem de pano defundo para se discutir o significado do corpo naconstrução imagética de fotografias traumáticasna imprensa popular. O corpo e, especificamente,o corpo morto fotografado fazem parte de umconjunto de símbolos de conotação social. A foto-grafia na imprensa popular alude o que deve ecomo deve ser mostrado, e o que deve ser inter-dito ou censurado. Ela trabalha com os símbolospresentes no imaginário social para expressaruma espécie de ardil visual direcionado à apreen-são pelo leitor (Barthes, 1984a, pp. 13-25).

Para Douglas (1976, pp. 141-158), no corpoestá expresso todo o poder e o perigo creditado auma estrutura social. Por meio dessa ligação é quese pode perceber no meio social o limite de expo-sição, positividade ou negação do corpo, na sua to-talidade, em partes ou, ainda, nos excrementos –

Foto 6 - Hélia Scheppa.

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sangue, suor, saliva –, já que nele estão gravadas asimagens da sociabilidade. A fotografia, por intermé-dio do corpo objetivado, restaura, ao mesmo tempoem que instaura, uma nova leitura ressignificada, oque Turner (1990, p. 87) chama de drama social.

Trata-se de um conjunto de comportamen-tos ou representações que compõem unidadessociotemporais quase fechadas, sinalizam meca-nismos de projeção inconscientes e elaboram umquadro de referência sobre o que é adotado ouo que se deve adotar como critérios para suaapreensão. O simbolismo do corpo, assim, é in-vestido de poder e perigo e age dentro de umplano emotivo, em virtude da experiência imagi-nária vivida por uma coletividade e introjetadapelos indivíduos que dela fazem parte.

A linguagem do sofrimento nas fotografias dehomicídios publicadas nos jornais populares, porexemplo, ao trabalhar com o poder e os perigos docorpo, arremessam um drama social não apenaspara as vítimas expostas, mas também para cada in-divíduo e toda a coletividade. Drama social que as-segura o estatuto social de pertença do retratado elida com os limiares imaginários da vulnerabilidadee dos perigos a que estão expostos os que com elese identifiquem ou se horrorizem, no processo deapropriação da imagem retratada.

O corpo morto fotografado, em particular, re-veste-se de significados precisos de transgressãoem uma ótica de mercado e referencia subliminar-mente a condição social do retratado e suas for-mas de apreensão: perigosa, desviante, violenta.

Ademais, esse tipo de fotografia torna o sofrimen-to social uma sensação e um objeto de consumo.A fotografia expropria o corpo pela exposição doselementos que singularizam a morte e a condiçãosocial do fotografado, além de mostrar excremen-tos, líquidos, furos ou pedaços arrancados queprojetam o que não deve ser visto, como vísceras,sangue, ossos etc. Ao mesmo tempo, a imagembusca retratar a poluição dos elementos expostos,na sua mistura com a terra e a lama, nos locais oudepósitos de desova, ou na exposição do corpoem degradação a quaisquer passantes.

Duas fotografias publicadas na Folha de Per-nambuco de 30 de junho de 1999 (Foto 7) e 12de maio de 2000 (Foto 8), de Hélia Scheppa e Ex-pedito Lima, respectivamente, são, nesse sentido,reveladoras.. Ambas retratam corpos mortos cha-cinados, o sangue misturado às impurezas do lu-gar e, em particular na primeira foto, sujando umaedição do Evangelho.

Foto 7 - Hélia Scheppa. Foto 7a - Hélia Scheppa.

Foto 8 - Expedito Lima.

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Essas fotos vulgarizam o sofrimento, tornan-do-o uma experiência social banal e distanciadaporque enquadrada em uma dramaturgia especí-fica, mas que, concomitantemente, tira todo equalquer cidadão de seu invólucro protetor, pelapoluição representada e os discursos expressosquando impressas.

Como um contraponto, as fotos 5 e 6 traba-lham com essas mesmas questões, mas, acima detudo, singularizam um interdito: o plano que expõeo sexo e sua anomalia na morte fotografada. O sexomasculino ereto, que na sociedade ocidental simbo-liza potência e virilidade, parece não se enquadrarem um corpo decomposto, vitimado e poluído. Daía negação e a proibição no plano fotográfico. Proi-bição visível quando na edição é borrado aquiloque não deve ser mostrado, mas que é destacadopelo rabiscar grosseiro e intencional, pelas manche-tes e no decorrer do texto da reportagem.

Contradição aparente entre escrita e fotogra-fia. Aparente porque se, de um lado, o interdito –virilidade do membro ereto – se revela ao simplesolhar, de outro, ele é introduzido como um sinalde desvio, passível de interpretação risível, comoanedota. A relação entre o texto e a foto vulgarizao corpo morto retratado e o reinsere em seu lugarsocial de exclusão, criando uma imagem parcial esensacionalista da criminalidade e da pobreza.

Conclusão

As formas interditas ou os intercâmbios po-luidores presentes no registro fotográfico e a rea-ção sobre eles tem muito a ver com a moral. Osofrimento social publicado é repassado comoum elemento particular de um fenômeno geral –idéia de ordem e segurança –, o qual deve ser en-frentado como ameaça pessoal ou por instânciascompetentes. Para Douglas (1976, p. 160), é mui-to difícil definir as situações morais, pois elas sãonormalmente obscuras e contraditórias. Servem adiferentes discursos, apropriações e formas subli-minares de manipulação e sedução, assim comopara uma apreensão abstrata de fenômenos pre-sentes no imaginário social e experienciado porum indivíduo ou grupo social.

É da natureza da regra moral “ser geral e asua aplicação a um contexto particular deve serincerta” (Idem, ibidem). As regras de poluição, aocontrário das regras morais, são inequívocas. Oobjeto fotográfico, trabalhando na fronteira, naabrangência dos códigos morais e na especificida-de dos códigos de interditos e de poluição, den-tro de uma idéia de experiência abstrata, retratasituações de sofrimento na ambivalência entreabrangência e especificidade e na ambigüidadedas regras morais e nas expressões poluidoras einterditas. Torna-se um subproduto da ação legalou legítima exercida institucionalmente ou, noâmbito privado, uma ameaça concreta ou poten-cial dos medos que perpassam a sociedade e quemodelam seus membros. Pode tornar-se, alémdisso, uma instância de conformação e confortosentimental e de memória na esfera da vida priva-da, ou de ordem e segurança no coletivo que oexpressa e de onde se configuram as apropria-ções discursivas sobre o fato fotográfico em sicomo objetificação do real.

Para Barrington Moore (1987, p. 622), a legi-timidade tende a ser aferida a qualquer princípiode inevitabilidade, seja qual for o sofrimento. Esseprincípio nas fotografias traumáticas aparece re-presentado pelas concepções de ordem e segu-rança que, de forma subliminar, o legitimam. Faz-se presente também na banalização e nosensacionalismo dos meios de comunicação nassociedades ocidentais desde a Segunda GuerraMundial. A exposição dos corpos na sua banali-dade remete o olhar à naturalidade da cena, comose ela fosse algo comum e cotidiano. Reforça a in-diferença e, no limite, exalta a morbidez e a ine-vitabilidade da violência nela contida, ou, ainda,revela o interesse de chocar.

O sofrimento é estigmatizado e negado. Éretirado de cena pela amplitude das generaliza-ções que legitimam a morte pública e sua inevita-bilidade, transformando-se em experiência abstra-ta e mercadoria de largo consumo.

A fotografia traumática, ao fornecer uma co-leção de objetos parciais, favorece o fetichismo euma espécie de perversão (Barthes, 1984, p. 51).Em nome de negar a violência incorporada ao so-frimento social, ela legitima a violência em si mes-

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ma, pela descaracterização da imagem nas con-venções que reforçam a inevitabilidade do ato re-gistrado nas fotografias.

É possível reconhecer o sofrimento social noenquadramento fotográfico, mas o que se experi-menta tem a ver com uma espécie de adestramento;com o meio cultural que formou e do qual necessa-riamente participa o observador, dando significadoàs ações, às figuras e às cenas que as fotos revelam.Uma espécie de recalcamento é sombreada: restosperdidos, parcelas inacessíveis ao olhar, que assom-bram a imagem justamente pelo invisível nela conti-do, catalogado como morbidez, como inevitável, outratado com indiferença.

Como se o sofrimento prenunciado das fotosperdesse seu significado, dando lugar a uma indi-ferenciação em que tudo se equivale. Espécie derito de passagem traumática que interroga a lin-guagem, bloqueia a significação e reforça a noçãode inevitabilidade.

Noção que conota um universo regido, emparte ao menos, por forças não suscetíveis à vonta-de e à ação dos indivíduos, impedindo ou sufocan-do a indignação moral. Movimentos de auto-ilusãoerigidos reforçando a perigosa capacidade humanade acostumar-se às coisas, ou de sufocar os impul-sos à violência que das fotos emanam, endurecen-do o olhar para enfrentar a tragédia da existência.

Notas

1 Para uma discussão sobre fotografia e a noção dosagrado, ver, entre outros, Tacca (2002).

2 Sobre os resultados desta pesquisa, ver Koury(2001, 2001a e 2003).

3 Ver, como comparação, o trabalho de Disderi, foto-grafando corpos mortos e arrumando-os como seainda estivessem vivos, conforme Dubois (1994).Ver, também, a incorporação sentimental de foto-grafias de corpos mortos pelos familiares e sua uti-lização para uma posse simbólica do ente queridoque se foi, em Ruby (1995) e Koury (2002).

4 Algumas vezes, observadores enxergaram na ence-nação proposta nesta foto da Benneton uma simbo-logia que procurava retratar o Cristo morto na figu-ra do moribundo ou, ainda, a figura de ‘Che’Guevara exposta pela mídia, morto pelo exército

boliviano. Ver, também, sobre o discurso publicitá-rio e o uso de fotografias traumáticas pela Benne-ton, o número especial da revista Colors, publicaçãodo grupo Benneton, tendo como editor OlivieroToscani (1998), e o trabalho de Finco, 1996.

5 Para uma comparação com a forma trágica da foto-grafia e do suicídio de Carter, ver Sontag (1986, pp.33-52), que retrata a melancolia do projeto fotográ-fico norte-americano por meio da trajetória tambémtrágica da fotógrafa Diane Arbus.

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FOTOGRAFIA E INTERDITO

Mauro Guilherme PinheiroKoury

Palavras-chaveFotografia; Interdito; Sofrimentosocial; Código moral;Representações culturais.

Este ensaio trabalha com a pro-blemática do interdito e sua relaçãocom o objeto fotográfico. Discute asimagens traumáticas como represen-tações culturais do sofrimentosocial, suas apropriações parapropósitos políticos ou morais, e ouso social do sofrimento como umcomponente da política econômicaglobalizada contemporânea. Analisa,ainda, a criação de um mercado pul-sante para imagens e discursossobre o tema.

PHOTOGRAPHY ANDINTERDICT

Mauro Guilherme PinheiroKoury

Key wordsPhotography; Interdict; Socialsuffering; Moral code; Culturalrepresentations.

This paper works with the problemof the interdict and its relationshipwith the photographic object. It dis-cusses traumatic images as culturalrepresentations of social suffering,its appropriations for either moral orpolitical purposes, and the socialuse of suffering as a component ofthe contemporary globalized eco-nomic politics. It also analyses thecreation of a vigorous market forboth images and speeches on thetheme.

PHOTOGRAPHIE ETINTERDIT

Mauro Guilherme PinheiroKoury

Mot-ClésPhotographie; Interdiction;Souffrance Sociale; Code moral;Représentations Culturelles.

Cet article aborde la problématiquede l’interdit et son rapport avec l’ob-jet photographique. L’auteur pro-pose une discussion à propos desimages traumatisantes comme cons-tituant des représentations cul-turelles de la souffrance sociale, deson appropriation pour des propospolitiques ou moraux et de l’usagesocial de la souffrance comme unecomposante de la politiqueéconomique globalisée contempo-raine. Il analyse également la créa-tion d’un marché énergique pour lesimages et les discours sur ce thème.