Foto e Texto: Relações Fortes
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Fotografia e Texto na Imprensa:
RELAÇÕES FORTES
© Dinis Manuel Alves
A fotografia de imprensa não pode dissociar-se do texto que a emoldura. Entre texto e foto
jogam-se relações fortes, com a foto a conferir estatuto de verdade ao texto, testemunhando
a narração jornalística; com a foto a proporcionar o espectáculo compensador do correr
monocórdico da prosa; com a foto reforçando, por redundância, o que se escreve.
Mas do texto em direcção à foto o circuito também funciona: o texto da legenda pode
reenviar a foto para outros lugares, para outros sentidos; o texto da legenda ou da notícia
desenvolvida pode guiar o sentido que se pretende dar à foto, reduzindo o seu carácter
polissémico.
É certo que a fotografia de imprensa tem muita força, força até para ajudar a acabar com
uma guerra, força para catapultar uma obscura personagem aos píncaros da fama, ou para a
mergulhar no lodo.
Nessa relação foto/texto, importa sinalizar sempre a importância da selecção da imagem que
decidimos paginar. Essa selecção e montagem percorre os seus caminhos lado a lado com a
subjectividade do jornalista e do repórter fotográfico.
A fotografia de imprensa tem uma particularidade que a
distingue das outras fotos - a sua moldura é o texto.
Mesmo que a fotografia valha por mil palavras, é preciso
que as palavras lá estejam, na página do jornal.
Esta foto vale desde logo, e concordarão comigo, pelas
palavras "concórdia", "felicidade", "o voltar à vida", tudo
de bom que o fim de uma guerra traz. São flores,
oferecidas por crianças aos soldados, sob um título
confirmativo: o final da guerra e o pós-guerra. É o
tempo do perdão, porque o pós-guerra é sempre melhor
que a guerra. É a foto a valer por muitas palavras.
Outras fotos poderão valer, não por mil
palavras, mas por mil sons. Quem é que
vendo estas fotos não sente o estampido
fragoroso dos canhões?
E vendo esta, não somos invadidos pelo
silêncio?
E vendo esta, não nos sentimos
incomodados com a poeira, mesmo não
vendo o helicóptero de Arafat que a
provoca?
Diz Fréderic Lambert que a foto de imprensa é um
género particular, no sentido em que ela é vista
em relação a uma legenda, um título, um texto.
Esta foto só por ela reproduz Alberto João Jardim.
Mas a legenda retira-o da foto, e reenvia-nos para o
seu sucessor - "Quem será o próximo a sentar-se na
Quinta da Vigia?" - pergunta a legenda.
Alberto João sai da foto para dar lugar ao sucessor,
que ainda não está na foto.
O texto transformou uma foto banal, monossémica,
em polissémica, lembrando-nos que nem o
perpétuo João Jardim é eterno - um sucessor virá.
Diz também Lambert que a objectividade em
informação fotográfica é um falso problema - o
fotógrafo testemunha os factos com a ajuda da sua
cultura visual, da sua subjectividade.
Cavaco Silva poderia aparecer de frente, mas
escolheram paginá-lo de costas. Porque de costas
transmite um ar mais solitário, dá mais razão ao
título - "Sozinho no hotel".
O mesmo vale para Miterrand, também de
costas, simbolizando a partida para a última
viagem, ele que no título viveu 16 vidas.
Em fotos quase iguais, mesmo que tiradas por fotógrafos diferentes, a subjectividade derrama-
se no texto que as ancora.
Para o Diário de Notícias, vale aqui o momento histórico - "Arafat e Rabin: antes da assinatura
do documento de 450 páginas".
Já o jornal "Público" prefere, em legenda, rotular o gesto amigo de uma mão nas costas do
velho inimigo: "Somos como velhos conhecidos".
Agora, a foto é sempre de Raymond Rutting. Só o texto muda: Êxodo bíblico para o "Público";
Holanda reforça diques, para o "Diário de Notícias"; Inundações ameaçam diques holandeses,
para o "Jornal de Notícias".
A força das fotos é tanta que pode ajudar a
acabar com uma guerra, como a do
Vietname.
Pode levar uma famosa revista a comprar as fotos
de uma princesa, para, imagine-se, não as
publicar, nem ninguém as publicar, e assim não
ferir mais a princesa sofrida de vários "annus
horribilis".
Outras princesas "entre aspas", precisam das
suas fotos nos jornais para ganharem
notoriedade. Aconteceu com a obscura e muito
desconhecida Lilian Ramos, que atingiu os
píncaros da efémera fama, e ganhou muito
dinheiro à custa de uma presença e de uma
ausência: a presença ao lado do presidente
brasileiro, a ausência das cuequinhas.
Aqui, é a foto que vale tudo, porque é a foto que provoca o texto, que provocou milhões de
caracteres escritos em milhentos jornais, e até valeu um programa de informação (sic) na SIC.
Aqui, a foto vale tudo, o texto vem de empurrão, para legitimar uma foto que, noutras
circunstâncias todos considerariam ordinariamente pornográfica.
Sem cuecas, ao lado do presidente brasileiro, a fotografia virou acontecimento.
É a foto-espectáculo que quase dispensa as palavras.
Nas páginas do jornal, a informação principal não vem do texto, nem da foto, mas do seu
encontro, diz Lambert. Estamos de acordo. Relações fortes, de redundância, de reforço do
conteúdo que a imagem carrega. Relações fortes e tensas, tentando aprisionar a foto a um
determinado sentido, conduzindo o sentido através do texto da legenda. No caso desta foto
publicada no "Correio da Manhã", a legenda identifica o presidente do Brasil, diz-nos que não se
trata de um instantâneo, que durou toda a noite, e que está a provocar mais um escândalo
político em Brasília. Olhamos para a foto e, ajudados pela legenda, imaginamos um espectáculo
contínuo de horas: “Durou toda a noite".
Mas se o texto nos dissesse que a imagem tinha sido tirada momentos
após os dois terem mantido relações sexuais, olharíamos de novo a
foto com outros olhos.
Ou se o texto nos dissesse que a moça sofre de Sida, encontraríamos
ainda outros olhos para ver a foto.
E se o texto nos dissesse que Itamar Franco se divertia no sambódromo, enquanto seu filho se
encontrava entre a vida e a morte no leito de um hospital, olharíamos muito mais o presidente,
chamar-lhe-íamos canalha, e talvez até conseguíssemos desviar o olhar das partes pudibundas
da moça.
A foto de imprensa, está visto, vive do encontro com o texto.
Por seu turno, a prosa do jornalista carece cada vez mais de
fotos, como ilustração, ou como estatuto de verdade do que se
escreve.
Uma foto, num texto, é quase sempre também uma selecção. Daí
a subjectividade, não só da foto, não só do texto, mas do todo
continente de textos e fotos.
Já nos íamos esquecendo: a
primeira notícia que viram,
lembram-se dela ainda?
Já não?! Eu volto a mostrá-la. Falava do final da guerra e do
pós-guerra. A concórdia, a paz, o voltar à vida.
Só que a foto escolhida e publicada no "Diário de Notícias" não foi
a que vos mostrámos aqui, mas sim esta com que agora vos
deixamos: centenas de cadáveres amontoados num campo de
concentração.
Com esta foto, o fim da guerra continua a
ser concórdia, paz, voltar à vida?
Já agora, para satisfazer a vossa curiosidade, deixamos a foto que
utilizámos no recorte com que abrimos esta apresentação