Fiscalizacão Da Constitcionalidade - Mocambique

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TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Conferência das Jurisdições Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa I Assembleia RELATÓRIO MOÇAMBIQUE FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE E ESTATUTO DAS JURISDIÇÕES CONSTITUCIONAIS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA LISBOA - MAIO DE 2010

Transcript of Fiscalizacão Da Constitcionalidade - Mocambique

  • T R I B U N A L C O N S T I T U C I O N A L

    Conferncia das Jurisdies Constitucionais dos Pases de Lngua Portuguesa

    I Assembleia

    RELATRIO MOAMBIQUE

    FISCALIZAO DA CONSTITUCIONALIDADE E ESTATUTO DAS JURISDIES CONSTITUCIONAIS PASES DE LNGUA PORTUGUESA

    LISBOA - MAIO DE 2010

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    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    CONFERNCIA

    DAS JURISDIES CONSTITUCIONAIS

    DOS PASES DE LNGUA PORTUGUESA

    (CJCPLP)

    FISCALIZAO DA CONSTITUCIONALIDADE E ESTATUTO DAS JURISDIES

    CONSTITUCIONAIS DOS PASES DE LNGUA PORTUGUESA

    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP

    Lus Antnio Mondlane

    Presidente do Conselho Constitucional

    de Moambique

    Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

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    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    Introduo

    Os ilustres organizadores desta I Assembleia da Conferncia das Jurisdies

    Constitucionais dos Pases de Lngua Portuguesa tiveram a felicidade de

    trazer para a nossa reflexo o tema: A FISCALIZAO DA

    CONSTITUCIONALIDADE E ESTATUTO DAS JURISDIES CONSTITUCIONAIS

    DOS PASES DE LNGUA PORTUGUESA.

    Para alm de cativante revela-se de grande importncia e actualidade para

    a comunidade jurdica e para o pblico em geral em cada um dos pases

    aqui representados, neles se incluindo Moambique.

    nossa inteno assinalar, atravs do presente Relatrio, os elementos

    essenciais de enquadramento da realidade moambicana no mbito da

    temtica geral da Conferncia. A sua elaborao seguiu, grosso modo, o

    questionrio enviado pelos organizadores da Conferncia, ao qual

    procuramos satisfazer oportunamente. Por tal razo no se far uma

    abordagem exaustiva das questes formuladas naquele documento.

    Com vista a conferir clareza na exposio, o Relatrio vai ordenado em

    cinco captulos: o primeiro debrua-se, ainda que sumariamente, sobre a

    jurisdio constitucional em Moambique na perspectiva da sua gnese e

    evoluo at situao actual; o segundo traa o perfil do Conselho

    Constitucional moambicano luz da Constituio vigente; o terceiro

    caracteriza o sistema e os processos de fiscalizao da constitucionalidade e

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    da legalidade adoptados na ordem jurdica moambicana; o quarto procede

    ao balano sucinto do desempenho do Conselho Constitucional desde a sua

    entrada em funcionamento; o quinto e ltimo captulo aflora algumas

    ideias sobre as perspectivas de evoluo da jurisdio constitucional em

    Moambique.

    I

    A Jurisdio Constitucional em Moambique: Gnese e Evoluo

    Moambique tornou-se independente e constituiu-se em Estado soberano

    em 25 de Junho 1975. A primeira Constituio da Repblica (CRM) adoptou

    o regime poltico de democracia popular fortemente inspirado, do ponto de

    vista ideolgico, no modelo socialista. Consagrava o princpio da

    constitucionalidade de forma indirecta e com alcance limitado mas no

    previa um sistema autnomo e especializado de controlo da conformidade

    dos actos do poder pblico com a Constituio.

    Esta situao durou at finais de 1990, altura em que, por via de uma

    transio constitucional, Moambique adoptou o modelo de Estado Social e

    Democrtico de Direito.

    Em consonncia com os fundamentos deste modelo de Estado, a

    Constituio de 1990 (CRM/90) proclamou a sua supremacia formal e

    material na ordem jurdica interna, definindo-se desde logo no prembulo

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    como ...a lei bsica de toda a organizao poltica e social da Repblica de

    Moambique.

    Para alm de constar do prembulo, a ideia-chave da supremacia da

    Constituio achava-se positivada como princpio normativo vinculante no

    artigo 206, nos termos seguintes: As normas constitucionais prevalecem

    sobre todas as restantes normas do ordenamento jurdico.

    Tratava-se, certamente, da consagrao expressa do princpio fundamental

    da constitucionalidade das normas jurdicas, para cuja garantia a

    Constituio instituiu o Conselho Constitucional integrando-o no sistema

    dos rgos de soberania1 e definindo-o como o rgo de competncia

    especializada no domnio das questes jurdico-constitucionais.2

    No rol das competncias ento atribudas ao Conselho Constitucional

    pontificava o poder de apreciar e declarar a inconstitucionalidade e a

    ilegalidade dos actos legislativos e normativos dos rgos do Estado, e

    este facto traduzia a inequvoca vontade do legislador constitucional de

    conferir ao novo rgo de soberania o estatuto de principal guardio da

    Constituio e do Estado de Direito ento emergente no Pas.

    Paralelamente, a Constituio confiou tambm aos tribunais em geral a

    misso de garantir a constitucionalidade dos actos normativos, vinculando-

    1 Artigo 109 da CRM/90.

    2 Artigo 180 da CRM/90.

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    os ao dever de no aplicar, em nenhum caso, leis ou princpios contrrios

    ordem constitucional estabelecida.

    Podemos assim afirmar que o sistema moambicano de fiscalizao da

    constitucionalidade apenas ficou configurado a partir da Constituio de

    1990, caracterizando-se essencialmente por ser misto em virtude de

    conjugar elementos, por um lado, do modelo austraco de controlo

    sucessivo abstracto, concentrado num rgo especializado, por outro, do

    modelo americano de controlo sucessivo concreto e difuso, designado

    judicial review of legislation, na expresso inglesa.

    importante assinalar que o estabelecimento formal do Conselho

    Constitucional pela Constituio de 1990 no foi seguido da criao das

    condies legais e institucionais requeridas para a sua entrada em

    funcionamento. Alis, esta situao estava prevista na prpria Constituio

    que inseria uma disposio cometendo ao Tribunal Supremo o exerccio das

    competncias do Conselho Constitucional at que este iniciasse as

    respectivas funes.

    O perodo transitrio prolongou-se at Novembro de 2003, altura em que,

    pela primeira vez, foi aprovada e entrou em vigor a Lei Orgnica do

    Conselho Constitucional, ao abrigo da qual procedeu-se designao dos

    membros que inauguraram o exerccio da jurisdio constitucional no pas.

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    Em Novembro de 2004, o Parlamento moambicano, no final da sua

    segunda Legislatura multipartidria, concluiu o processo de reviso

    constitucional do qual resultou uma nova Constituio formal e

    instrumental.

    Com efeito, o texto de 2004 manteve o ncleo essencial da Constituio

    material de 1990. Todavia, a reviso constitucional verificada desenvolveu

    e, nalguns casos, explicitou e clarificou princpios e regras fundamentais do

    Estado de Direito Democrtico, nomeadamente nos domnios dos direitos,

    liberdades e garantias individuais, dos direitos econmicos, sociais e

    culturais, da organizao do poder poltico, do sistema de administrao da

    justia e o da garantia da constitucionalidade.

    Neste ltimo domnio, a Constituio de 2004 (CRM/2004) veio a tornar

    explcito o princpio de que o Estado subordina-se Constituio, tendo

    igualmente reafirmado e reforado o princpio da constitucionalidade dos

    actos normativos do poder pblico.3

    O Conselho Constitucional adquiriu uma nova configurao e as suas

    competncias foram significativamente ampliadas, facto que ditou a

    actualizao da sua Lei Orgnica, passando a reger-se pela Lei n 6/2006, de

    2 de Agosto (LOCC).

    3 Artigo 2, ns 3 e 4 da CRM/2004.

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    II

    O Actual Perfil do Conselho Constitucional

    1. Definio e natureza Jurdica

    Como j foi referido, a Constituio de 1990 definia o Conselho

    Constitucional simplesmente como o rgo de competncia especializada

    no domnio das questes jurdico-constitucionais. Esta concepo sofreu

    uma alterao fundamental no actual texto constitucional que define o

    Conselho como o rgo de soberania ao qual compete administrar a

    justia em matrias de natureza jurdico-constitucional4.

    de grande relevo a modificao assim operada pois que encerra a ideia de

    que embora no designado formalmente por tribunal, o Conselho

    Constitucional passou a ter a natureza de rgo jurisdicional que se situa no

    vrtice da pirmide do sistema de administrao da justia constitucional

    em Moambique.

    2. Composio, modo designao e mandato dos membros

    Na sua composio o Conselho Constitucional integra sete Juzes

    Conselheiros, dos quais um (o Presidente do Conselho) nomeado pelo

    Chefe do Estado, nomeao sujeita ratificao da Assembleia da

    Repblica que designa, por sua vez, cinco Juzes segundo o critrio de

    4 Artigo 241, n 1 da CRM/2004.

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    representao proporcional. O stimo juiz designado pelo Conselho

    Superior da Magistratura Judicial.5

    Os Juzes Conselheiros so designados para um mandato de cinco anos,

    passvel de renovaes sucessivas no limitadas nos termos da

    Constituio.6

    A designao dos Juzes apenas pode recair sobre cidados com idade igual

    ou superior a trinta e cinco anos e, com pelo menos, dez de experincia

    profissional na magistratura ou em qualquer actividade forense ou de

    docncia em Direito.7

    3. Estatuto dos Juzes

    A propsito da designao da maioria dos Juzes do Conselho Constitucional

    por rgos polticos e da possibilidade ilimitada de renovao sucessiva dos

    mandatos, existe certa corrente de opinio no sentido de que este modelo

    de designao e de mandato dos Juzes comporta o potencial risco de

    politizao da justia constitucional.

    Porm, sem pretender discordar com os que assim pensam, entendemos

    que tal risco encontra-se prevenido e mitigado por um conjunto de

    garantias que integram o estatuto dos Juzes.

    5 Artigos 242, n 1 e 179, n 1, alnea g) da CRM/2004.

    6 Artigo 242, n 2, da CRM/2004.

    7 Artigo 241, n 3, da CRM/2004.

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    Assim, os Juzes constitucionais gozam, por fora da Constituio, da

    garantia de independncia, inamovibilidade, imparcialidade e

    irresponsabilidade e sujeitam-se ao mesmo regime de incompatibilidades

    estabelecido para os magistrados judiciais, o qual consiste na

    impossibilidade de exercer o mandato cumulativamente com outras

    funes pblicas ou privadas, exceptuando-se as actividades de docncia e

    de investigao jurdica, de criao, divulgao e publicao cientfica,

    literria, artstica e tcnica, mediante autorizao do prprio Conselho

    Constitucional.8

    Por sua vez, a Lei Orgnica do Conselho Constitucional estabelece medidas

    que visam especificamente salvaguardar o exerccio do mandato dos Juzes

    de interferncia poltico-partidria, nomeadamente interditando-os de

    exercer cargos partidrios e de militncia activa em partidos e associaes

    polticas e de emitir, publicamente, declaraes de carcter poltico9. Mais

    expressivamente, a lei determina a suspenso do estatuto inerente

    filiao em partidos ou associaes polticas, durante o perodo de

    desempenho do cargo de Juiz Conselheiro do Conselho Constitucional.10

    Complementam este conjunto de garantias os regimes legais de cessao

    de funes e de responsabilidade disciplinar, civil e criminal dos Juzes

    constitucionais.

    8 Artigos 244, n 2, e 243 da CRM/2004.

    9 Artigo 15, n 1, da LOCC.

    10 Artigo 15, n 2, da LOCC.

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    Com efeito, a cessao do mandato dos Juzes, antes do termo do perodo

    ordinrio de cinco anos, s pode ocorrer nos casos de renncia, aceitao

    de lugar ou prtica de acto legalmente incompatvel com o exerccio das

    funes e de demisso ou aposentao compulsiva decorrente de processo

    disciplinar ou criminal11. O exerccio do poder disciplinar sobre os Juzes

    constitucionais atribudo exclusivamente ao Conselho Constitucional, a

    quem compete instaurar o processo, nomear o respectivo instrutor entre

    os seus membros, deliberar sobre a eventual suspenso preventiva e julgar

    em definitivo.12

    Os Juzes, salvo os casos especialmente previstos na lei, no so

    responsabilizadas pelas suas decises, sendo-lhes aplicveis, mutatis

    mutandis, as normas pertinentes efectivao da responsabilidade civil e

    criminal e ao regime de priso preventiva e foro especial previsto para os

    Juzes Conselheiros do Tribunal Supremo.13

    4. Competncia

    O Conselho Constitucional continua a caracterizar-se, essencialmente, pelo

    seu poder de fiscalizar e declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de

    actos normativos dos rgos do Estado.

    11 Artigo 10, n 1, da LOCC.

    12 Artigo 12, n 1, da LOCC.

    13 Artigos 11, 12 e 13 da LOCC.

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    No entanto, o mbito da sua competncia abarca vrios outros domnios da

    justia constitucional em sentido amplo, nomeadamente:14

    a) Resoluo de conflitos de competncias entre rgos de soberania;

    b) Verificao prvia da constitucionalidade dos referendos;

    c) Verificao dos requisitos legais exigidos para as candidaturas ao

    cargo de Presidente da Repblica;

    d) Apreciao, em ltima instncia, de recursos eleitorais;

    e) Validao e proclamao dos resultados eleitorais;

    f) Deciso, em ltima instncia, da legalidade da constituio de

    partidos e coligaes de partidos polticos, bem como apreciao da

    legalidade das respectivas denominaes, smbolos e siglas e, ainda,

    deciso sobre a extino dos mesmos;

    g) Julgamento das aces de impugnao de eleies e de deliberaes

    dos rgos de partidos polticos, das aces relativas ao contencioso

    do mandato dos deputados e das aces concernentes a

    incompatibilidades previstas na Constituio e na lei;

    14 Artigo 244 da CRM/2004.

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    h) Fiscalizao das declaraes sobre incompatibilidades, patrimnio e

    rendimentos dos dirigentes superiores do Estado e titulares de

    cargos governativos.15

    5. Modo de funcionamento e de deciso

    O Conselho Constitucional funciona sempre em sesses plenrias no

    estando prevista, por conseguinte, a sua organizao em seces. O

    plenrio rene-se, ordinariamente, quando for convocado pelo Presidente,

    por iniciativa prpria, ou a requerimento de um tero, pelo menos, dos

    juzes em efectividade de funes. 16

    O qurum das reunies plenrias fixado em dois teros, pelo menos, dos

    juzes efectivos, sendo as deliberaes tomadas por consenso ou, na

    ausncia deste, pela pluralidade de votos dos juzes presentes, dispondo o

    Presidente de voto de qualidade e os demais juzes do direito de lavrar voto

    de vencido.17

    6. Publicidade das decises

    As decises do Conselho Constitucional, que assumem a forma de acrdo

    ou de deliberao, consoante a matria do respectivo objecto, so

    15 Competncia acrescida pelo n 3 do artigo 6 da Lei Orgnica, ao abrigo do n 3 do artigo 244 da Constituio, segundo o qual o Conselho Constitucional exerce as demais competncias atribudas por lei.

    16 Artigo 32 da LOCC.

    17 Artigo 33 da LOCC.

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    notificadas aos interessados e publicadas no Boletim da Repblica que o

    Jornal Oficial.18

    A Lei Orgnica prev formas especficas de publicidade de certas decises.

    Por exemplo, os acrdos relativos verificao dos requisitos legais

    exigidos para as candidaturas a Presidente da Repblica so tambm

    afixados porta do Conselho Constitucional e publicados no jornal dirio de

    maior circulao nacional.19

    Para alm das formas de publicidade legalmente fixadas, o Conselho

    Constitucional tem recorrido a outros meios com vista a tornar as suas

    decises cada vez mais acessveis ao pblico, tais como entrega gratuita

    de cpias dos acrdos e deliberaes aos rgos de comunicao social,

    quando solicitado; a publicao imediata dos acrdos e deliberaes, em

    formato electrnico, na sua pgina oficial da internet cujo endereo

    www.cconstitucional.org.mz; finalmente, a publicao peridica da

    colectnea Deliberaes e Acrdo, cujo terceiro volume est neste

    momento em processo de edio.

    18 Artigos 248, n 3, da CRM/2004; 32 e 35 da LOCC.

    19 Artigos 90, ns 2 e 3.

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    III

    A Fiscalizao da Constitucionalidade e da Legalidade

    1. O sistema de fiscalizao

    A constituio de 2004 manteve, no essencial, o j referido modelo misto

    de fiscalizao da constitucionalidade e da legalidade oriundo da

    Constituio de 1990, continuando assim a pertencer ao Conselho

    Constitucional o exerccio, em exclusivo, da fiscalizao sucessiva

    abstracta20 e aos tribunais o controlo sucessivo concreto por via

    incidental21. Contudo, foram introduzidas duas inovaes de capital

    importncia, designadamente, a fiscalizao preventiva das leis a cargo do

    Conselho Constitucional22 e o controlo por este mesmo rgo das decises

    dos tribunais que recusem a aplicao de normas com fundamento na sua

    inconstitucionalidade.23

    Em relao ao objecto, a fiscalizao da constitucionalidade e da legalidade

    apenas abrange os actos normativos dos rgos do Estado24, ou seja, os

    actos legislativos tanto da Assembleia da Repblica como do governo,

    respectivamente, as leis e os decretos-lei, os decretos normativos do

    Presidente da Repblica, os decretos regulamentares do governo e os

    avisos do Governador do Banco de Moambique.25

    20 Artigo 245 da CRM/2004.

    21 Artigo 214 da CRM/2004.

    22 Artigo 246 da CRM/2004.

    23 Artigo 247, n 1, conjugado com o artigo 214, ambos da Constituio.

    24 Artigo 244, n 1, alnea a), da CRM/2004.

    25 Artigos 143 e 148 da CRM/2004.

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    Nestes termos, embora tambm vinculados Constituio e lei, no esto

    abrangidos pelo sistema de fiscalizao da constitucionalidade e da

    legalidade previsto, nomeadamente os actos de natureza poltica,

    jurisdicional e administrativa.

    2. Os processos de fiscalizao

    2.1. A fiscalizao preventiva

    A fiscalizao preventiva da competncia exclusiva do Conselho

    Constitucional e a iniciativa do respectivo processo cabe unicamente ao

    Presidente da Repblica26. O objecto do controlo preventivo confina-se aos

    actos legislativos da Assembleia da Repblica que, nos termos da

    Constituio, so os nicos que se sujeitam promulgao do Presidente

    da Repblica27. O exerccio da iniciativa processual tem como efeito a

    interrupo do prazo da promulgao.28

    2.2. A fiscalizao sucessiva abstracta

    Tal como na fiscalizao preventiva, compete em exclusivo ao Conselho

    Constitucional exercer o controlo sucessivo abstracto. Contudo, a

    legitimidade processual activa reconhecida a vrias entidades,

    designadamente o Presidente da Repblica, o Presidente da Assembleia da

    26 Artigo 246, n 1, da CRM/2004.

    27 Artigos 246, n 1 e 163 da CRM/2004.

    28 Artigo 246, n 3, da CRM/2004.

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    Repblica, um tero, no mnimo, dos deputados da Assembleia da

    Repblica, o Primeiro-Ministro, o Procurador-Geral da Repblica, o

    Provedor de Justia e cidados perfazendo o mnimo de dois mil.29

    Neste tipo de fiscalizao a aco directa de inconstitucionalidade pode ter

    por objecto quaisquer normas vigentes na ordem jurdica interna, desde

    que emanadas de rgos do Estado, podendo a iniciativa do processo ser

    exercida a todo o tempo da vigncia da norma.30

    2.3. A fiscalizao concreta

    A fiscalizao concreta, que sempre sucessiva, exercida tanto pelos

    tribunais como pelo Conselho Constitucional. Com efeito, qualquer

    tribunal, independentemente da respectiva jurisdio, tem o poder-dever

    de recusar a aplicao, aos casos concretos, de normas que julgar

    inconstitucionais ou ilegais31, e as decises jurisdicionais da decorrentes

    so obrigatoriamente remetidas ao Conselho Constitucional que aprecia e

    decide em definitivo a questo prejudicial de inconstitucionalidade ou de

    ilegalidade suscitada no processo.32

    3. Valor e efeito jurdicos das decises

    29 Artigo 245, n 2, da CRM/2004.

    30 Artigo 245, n 1, da CRM/2004.

    31 Artigos 214 e 247, n 1, alnea a), da CRM/2004.

    32 Artigo 247, n 1, alnea a).

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    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    De forma geral, os acrdos do Conselho Constitucional so de

    cumprimento obrigatrio para todos os cidados, instituies e pessoas

    jurdicas, so irrecorrveis e prevalecem sobre todas as demais decises,

    incluindo as dos tribunais.33

    No entanto, a Constituio e a lei prevem efeitos especficos das decises

    em funo da espcie do processo e do sentido de cada deciso.

    Assim, na fiscalizao preventiva as decises de no provimento

    determinam, a partir da sua notificao ao requerente, o comeo da

    contagem de novo prazo da promulgao da lei em causa34 e as de

    provimento vinculam o Presidente da Repblica a vetar o diploma legal

    sindicado, com fundamento na inconstitucionalidade declarada, devendo

    devolve-lo Assembleia da Repblica.35

    No controlo sucessivo abstracto, as decises declarativas da

    inconstitucionalidade ou da ilegalidade tm fora obrigatria geral e os

    seus efeitos produzem-se a partir da entrada em vigor da norma declarada

    inconstitucional ou ilegal e determinam a repristinao das normas

    revogadas. Nos casos de inconstitucionalidade ou ilegalidade

    superveniente, a respectiva declarao s produz efeitos a partir da

    entrada em vigor da norma paramtrica.36

    33 Artigo 248, n 1, da CRM/2004.

    34 Artigos 246, n 4 e 163, n 2, da CRM/2004.

    35 Artigo 246, n 5, da CRM/2004.

    36 Artigo 66, ns 1 e 2, da LOCC.

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    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    As decises negativas, porque no declaram a constitucionalidade ou a

    legalidade das normas, limitando-se a no acolher a questo de

    inconstitucionalidade ou de ilegalidade suscitada, vinculam apenas o

    Conselho Constitucional no sentido de no poder voltar a pronunciar-se

    pela inconstitucionalidade ou ilegalidade das mesmas normas, salvo se o

    requerente apresentar fundamentos diferentes dos alegados no processo

    anteriormente julgado.

    Na fiscalizao concreta, as decises de provimento obrigam o tribunal a

    quo a reformar a sua deciso de acordo com o julgamento da questo da

    inconstitucionalidade ou da ilegalidade feito pelo Conselho Constitucional e

    fazem caso julgado no processo quanto a aludida questo.37

    4. Os casos de decises intermdias

    A Lei Orgnica prev casos de decises intermdias, por um lado, na

    fiscalizao sucessiva abstracta, ao conceder ao Conselho Constitucional a

    prerrogativa de limitar o alcance dos efeitos da declarao de

    inconstitucionalidade ou de ilegalidade, normalmente previstos na lei, com

    fundamento na segurana jurdica, em razes de equidade ou de interesse

    pblico de excepcional relevo38, por outro lado, na fiscalizao concreta,

    habilitando o Conselho Constitucional a formar um juzo de

    constitucionalidade sobre a norma desaplicada pelo tribunal a quo,

    37 Artigo 73, alneas a) e c) da LOCC.

    38 Artigo 66, n 4, da LOCC.

  • pg. 20

    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    baseando-se numa determinada interpretao da mesma norma, que seja

    mais conforme com a Constituio.39

    IV

    Balano Sumrio do Desempenho do Conselho Constitucional

    Nos primeiros trs anos da sua actividade, ou seja de 2003 a 2006, a

    actuao do Conselho Constitucional foi dominada por processos eleitorais,

    tendo sido muito raramente solicitado a decidir em matrias de

    inconstitucionalidade ou de ilegalidade.

    Tal situao alterou-se significativamente a partir de 2007, altura em que o

    fluxo dos processos de fiscalizao da constitucionalidade e da legalidade

    comeou a registar um relativo incremento.

    Embora o volume de processos eleitorais continue a ser o mais alto em

    comparao com as demais espcies de processos, tem-se verificado uma

    gradual diversificao das solicitaes justia constitucional noutras

    matrias.

    Com efeito, no domnio da fiscalizao da constitucionalidade, o Conselho

    Constitucional vem sendo solicitado desde 2007, ainda que

    39 Artigo 73, alnea b) da LOCC.

  • pg. 21

    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    esporadicamente, a decidir questes em processos de controlo tanto

    preventivo como sucessivo abstracto e concreto.

    As aces de fiscalizao sucessiva abstracta tm sido maioritariamente da

    iniciativa dos deputados da oposio parlamentar, enquanto os processos

    de fiscalizao concreta foram at hoje impulsionados pelo Tribunal

    Administrativo e por um tribunal aduaneiro, no havendo, portanto,

    qualquer processo oriundo de tribunais comuns.

    A fiscalizao das declaraes de incompatibilidades, patrimnio e

    rendimentos dos dirigentes superiores do Estado e titulares de rgos

    governativos sempre exercida por ocasio do incio ou cessao de

    funes dos titulares de cargos obrigados a prestar tais declaraes e ainda,

    anualmente, por ocasio da actualizao obrigatria das mesmas

    declaraes.

    No mbito do contencioso relativo ao mandato dos deputados e s

    deliberaes dos rgos de partidos polticos as solicitaes tm sido em

    nmero muito reduzido.

    O Conselho Constitucional ainda no foi chamado a pronunciar-se em

    matrias tais como conflitos de competncia entre rgos de soberania,

    constitucionalidade dos referendos, constituio ou extino de partidos e

    coligaes de partidos polticos, assim como incompatibilidades.

  • pg. 22

    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    Apesar da sua juventude e do relativo baixo nvel de solicitaes de

    fiscalizao da constitucionalidade e da legalidade, notamos com satisfao

    que o Conselho Constitucional tem vindo a conquistar e a consolidar

    gradualmente a sua posio como o mais alto rgo da jurisdio

    constitucional e eleitoral em Moambique.

    V

    Algumas Perspectivas de Evoluo da Justia Constitucional

    Poderamos, nesta apresentao, compilar muitas ideias que actualmente

    se discutem sobre as potencialidades de evoluo do sistema de justia

    constitucional moambicano. No obstante, consideramos elucidativos dois

    aspectos.

    Primeiro, nos tempos que correm, no tm faltado reflexes produzidas na

    academia e na sociedade civil em geral, revelando a necessidade de se

    ampliar o mbito do direito de acesso dos cidados aos tribunais,

    consagrado na Constituio, para o domnio da justia constitucional.

    Esta ideia tem sido tambm debatida no seio do Conselho Constitucional e

    podemos dizer que j existe um certo consenso entre os juzes no sentido

    de que, para alm de garantir a constitucionalidade e a legalidade em

    termos objectivos, a justia constitucional deve constituir, igualmente, um

    meio privilegiado de proteco dos direitos e liberdades fundamentais dos

    cidados.

  • pg. 23

    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    Neste contexto, parece adequado perspectivar o estabelecimento de

    mecanismos processuais visando habilitar qualquer cidado a apelar

    directamente ao Conselho Constitucional para a defesa dos seus direitos e

    liberdades, sempre que, objectivamente, se mostre impossvel conseguir tal

    defesa atravs dos demais meios legalmente estabelecidos na ordem

    interna.

    No descartamos a hiptese, no prevista na Constituio moambicana,

    de o cidado interpor recurso directo, perante o Conselho Constitucional,

    da deciso do tribunal que, no processo de que aquele parte interessada,

    recuse a aplicao de normas julgadas inconstitucionais ou ilegais ou

    aplique normas cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade haja suscitado.

    Segundo, o imperativo de concretizao dos direitos econmicos, sociais e

    culturais consagrados na Constituio moambicana e que materializam o

    Estado Social de Direito, confere cada vez mais relevncia e actualidade o

    problema do cumprimento das disposies constitucionais programticas,

    sobretudo no que respeita ao acatamento pelo legislador ordinrio das

    ordens de legislar expressas ou implcitas nas mesmas disposies.

    A experincia de alguns pases reveladora de que a justia constitucional

    tem o potencial de contribuir valiosamente neste mbito, quando no

    sistema das garantias da constitucionalidade se incluir tambm o controlo

    das omisses legislativas.

  • pg. 24

    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    Assim, entendemos ser pertinente, tendo em conta a actual realidade

    constitucional moambicana, uma reflexo profunda sobre a possibilidade

    de, futuramente, introduzir no nosso sistema de fiscalizao o controlo da

    inconstitucionalidade por omisso.

    Concluso

    A exposio que acabamos de fazer permite-nos concluir que a emergncia

    de uma jurisdio constitucional autnoma e especializada em

    Moambique coeva da Constituio de 1990, a qual adoptou o modelo do

    Estado Social e Democrtico de Direito, consagrou expressamente o

    princpio da constitucionalidade das normas jurdicas e instituiu o Conselho

    Constitucional como rgo de soberania, de competncia especializada no

    domnio das questes jurdico-constitucionais.

    O Conselho Constitucional definido, nos termos da Constituio vigente,

    como o rgo especializado na administrao da justia constitucional, o

    que lhe confere natureza jurisdicional, ainda que no seja formalmente

    designado por tribunal.

    A competncia do Conselho Constitucional abrange, para alm do controlo

    da constitucionalidade e da legalidade dos actos normativos dos rgos do

    Estado, outros domnios materiais, tais como conflitos de competncia

    entre os rgos de soberania, contencioso eleitoral, do mandato dos

  • pg. 25

    Relatrio sobre Moambique I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

    deputados, dos partidos polticos, conflitos de interesses e tica

    governativa.

    O modelo moambicano de fiscalizao da constitucionalidade misto

    porque compreende, alm dos controlos preventivo e sucessivo abstracto,

    concentrados no Conselho Constitucional, o controlo concreto exercido de

    forma difusa por todos os tribunais.

    A actuao do Conselho Constitucional tem tido maior incidncia nos

    processos eleitorais, sem prejuzo do progressivo incremento e

    diversificao dos pedidos de fiscalizao da constitucionalidade e da

    legalidade dos actos normativos.

    Em termos prospectivos, consideramos que a justia constitucional em

    Moambique poder evoluir, por um lado, no sentido da sua maior

    acessibilidade ao cidado, de modo a tornar-se, efectivamente, garantidora

    dos direitos e liberdades fundamentais, por outro, no sentido de contribuir

    para uma cada vez maior efectividade das normas constitucionais

    programticas atravs da possibilidade de controlo jurisdicional das

    omisses legislativas.