Filomena Silvano - Diáspora

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Título “Na realidade, Portugal, Moçambique, Brasil ... eu ligo muito à ideia de nação portuguesa”: ligar o que a vida separou. Title "In fact, Portugal, Mozambique, Brazil ... I do value the idea of a Portuguese nation": to connect what life has parted. Resumo O texto tem por base uma etnografia realizada com três gerações de três famílias que integraram as elites coloniais portuguesas: a primeira geração partiu de Portugal, nos anos 1950/60, para viver em Moçambique e daí partiu, depois de 1974, para o Brasil, onde já nasceram os membros da terceira geração. Pretende contribuir para uma concepção da noção de diáspora sustentada na observação das práticas e das representações de pessoas concretas em situações de deslocação espacial também elas concretas. Para tal faz um entrosamento entre a discussão académica que tem envolvido a noção nas últimas décadas e a ideia de diáspora agenciada pelos membros das famílias estudadas (“diáspora colonial”). Termina afirmando que os conteúdos que lhe são atribuídos estão relacionados com as condições objetivas e subjetivas dos percursos experimentados por quem os convoca. No final, o texto aborda o papel que os objetos deslocados assumem na construção da ideia de diáspora. Abstract This article is based on an ethnography carried out with three generations of three families which belonged to the Portuguese colonial elite. The first generation left Portugal and settled in Mozambique in the fifties and sixties, and lived there until 1974. After the revolution, the families migrated to Brazil, where the third generation was born. The article aims to contribute to the depiction of the concept of diaspora by observing the practices and

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Filomena Silvano

Transcript of Filomena Silvano - Diáspora

  • Ttulo

    Na realidade, Portugal, Moambique, Brasil ... eu ligo muito ideia de nao portuguesa: ligar o que a vida separou.

    Title

    "In fact, Portugal, Mozambique, Brazil ... I do value the idea of a Portuguese nation": to connect what life has parted.

    Resumo

    O texto tem por base uma etnografia realizada com trs geraes de trs

    famlias que integraram as elites coloniais portuguesas: a primeira gerao

    partiu de Portugal, nos anos 1950/60, para viver em Moambique e da partiu,

    depois de 1974, para o Brasil, onde j nasceram os membros da terceira

    gerao. Pretende contribuir para uma concepo da noo de dispora

    sustentada na observao das prticas e das representaes de pessoas

    concretas em situaes de deslocao espacial tambm elas concretas. Para

    tal faz um entrosamento entre a discusso acadmica que tem envolvido a

    noo nas ltimas dcadas e a ideia de dispora agenciada pelos membros

    das famlias estudadas (dispora colonial). Termina afirmando que os

    contedos que lhe so atribudos esto relacionados com as condies

    objetivas e subjetivas dos percursos experimentados por quem os convoca.

    No final, o texto aborda o papel que os objetos deslocados assumem na

    construo da ideia de dispora.

    Abstract

    This article is based on an ethnography carried out with three generations of

    three families which belonged to the Portuguese colonial elite. The first

    generation left Portugal and settled in Mozambique in the fifties and sixties,

    and lived there until 1974. After the revolution, the families migrated to Brazil,

    where the third generation was born. The article aims to contribute to the

    depiction of the concept of diaspora by observing the practices and

  • representations of these particular families, in specific mobility contexts. The

    article promotes to integrate the recent academic discussion on the concept of

    diaspora with the lived experience and of the families and the appropriations

    they do of to the concept (colonial diaspora). The article concludes that the

    contents associated to the concept are highly marked by the subjective and

    objective experiences of those who experience them. At the end, the paper

    addresses the role of displaced objects in the making of an idea of diaspora.

    Palavras Chave: Dispora colonial, elites-coloniais, dispora portuguesa, objetos.

    Keywords: Colonial diaspora, colonial elites, Portuguese diaspora, objects.

    Autoras

    Filomena Silvano

    Professora Associada

    Faculdade de Cincias Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

    Av. De Berna, 26-c

    1069-061 Lisboa

    Portugal

    [email protected]

    Marta Vilar Rosales

    Investigadora Auxiliar

    Universidade de Lisboa, Instituto de Cincias Sociais

    Av. Professor Anbal de Bettencourt, 9 1600 - 189 Lisboa Portugal [email protected]

  • Na realidade, Portugal, Moambique, Brasil ... eu ligo muito ideia de

    nao portuguesa: ligar o que a vida separou

    Filomena Silvano, Marta Vilar Rosales

    Na realidade, Portugal, Moambique, Brasil ... eu ligo muito ideia de nao

    portuguesa. ideia do que est agregado prpria dispora. Eu vejo muito

    como uma grande nao, tipo ... no existem os judeus? no ? A seriam os

    portugueses: uma grande nao, com todos esses tentculos. Isso ao que

    eu dou valor.

    O autor do pequeno fragmento de entrevista nasceu em Portugal na

    dcada de 1960, viveu at ao incio da adolescncia em Moambique, voltou

    a Portugal por um ano e fixou-se, com os pais e as irms, no Brasil em 1975.

    J adulto descobriu que a sua me, nascida e criada em Portugal, era neta

    de uma brasileira e resolveu pedir, utilizando o direito de sangue, a

    nacionalidade brasileira. Quando fala da sua vida convoca, de forma explicita,

    a noo de dispora. Graas a ela, transcende o seu percurso multinacional :

    Para mim sempre estive na mesma nao. Apenas mudei de local, como se

    vai de uma cidade para a outra. Eu sinto assim. Existem os passaportes,

    mas existe tambm, e talvez sobretudo, um contnuo vivido.

    Nos anos 2006 e 2007 trabalhmos com trs famlias que vivem,

    desde a dcada de 1970, respectivamente em Fortaleza, S. Paulo e Belo

    Horizonte1. Todas elas incluem trs geraes, tendo a primeira partido de

    Portugal, nos anos 1950/60, para viver em Moambique e da partido, depois

    da revoluo de Abril de 1974, para o Brasil, onde j nasceram os membros

    1Referimo-nos ao projeto Mobilidades transnacionais e construo de espaos domsticos: ligando Moambique, Portugal e Brasil (POCTI/ANT/61058/2004financiado pela FCT).

  • da terceira gerao. Depois de terem integrado, em Moambique, as elites

    coloniais portuguesas, inseriram-se nos estratos mais elevados da classe

    mdia brasileira. Todos eles, embora de formas diferentes e nem sempre to

    explicitas como no caso apresentado em abertura, convocam a ideia de

    dispora como forma de transcender algumas das cises presentes nas

    suas histrias de vida.

    Ao longo do texto, faremos um entrosamento entre a discusso

    acadmica que tem envolvido a noo de dispora nas ltimas dcadas e a

    ideia de dispora agenciada pelos membros das famlias estudadas. Ao

    trabalhar dados etnogrficos de um contexto que integra relaes

    transnacionais que envolvem Portugal, Moambique e Brasil, tentaremos

    contribuir para um entendimento da noo mais centrado nas vidas concretas

    das pessoas e, consequentemente, mais integrador da diversidade que a

    envolve. No quadro do objecto de trabalho especfico do projecto de

    investigao antes referido, abordaremos tambm o papel que os objectos

    deslocados assumiram na construo da ideia de dispora bem como na

    (re)construo e estabilizao das identidades das famlias que estudmos.

    Aps a dispora da dispora, ainda trabalhar a dispora

    Em 2005, num texto que, dada a velocidade do tempo contemporneo,

    j quase podemos chamar de clssico, Rogers Brubaker fez o ponto da

    situao do uso, crescente desde os anos 1980, da ideia de dispora.

    Usando, no ttulo, a sugestiva formulao de dispora da dispora, identifica

    a existncia de uma disperso dos significados da dispora nos espaos

  • semntico, conceptual e disciplinar. Essa disperso acompanha a disperso

    de outras duas noes a de cultura e a de identidade - tambm centrais

    para o pensamento antropolgico e quase inevitavelmente associadas, nos

    seus quadros conceptuais, de dispora. Brubaker (2005) identifica trs

    critrios bsicos que integraram as formulaes da ideia de dispora - a

    disperso espacial, a orientao para uma terra me (homeland) e a

    manuteno de fronteiras apresentando tambm as mltiplas crticas a que

    essa formulao, que j corresponde a uma verso minimalista, foi sendo

    sujeita. O critrio mais susceptvel de discusso seguramente o da

    orientao para uma terra me, uma vez que, como referia Clifford em

    19942 (Clifford, 1997), o desejo de retorno terra me nem sempre est

    presente (nem to pouco na dispora judaica, tida por arqutipo). Na

    realidade, muitas disporas tm-se a si prprias como referncia: a pertena

    a pertena dispora e no real ou suposta terra de partida. O que faz

    com que o risco de substancializao que frequentemente enforma a

    produo da ideia de homeland se estenda tambm produo da ideia de

    dispora. nesse sentido que Brubaker prope que o uso da noo no

    interior dos quadros conceptuais das cincias sociais seja feito a partir do

    estudo das prticas a dispora enquanto categoria da prtica 3 - e do

    estudo das representaes identitrias a dispora enquanto idioma 4 (o

    2 Reagindo ento ao texto de William Safran que, em 1991, enunciou seis caractersticas para definir a dispora.

    3 As a category of practice, diaspora is used to make claims, to articulate projects, to formulate expectations, to mobilize energies, to appeal to loyalties (Brubaker, 2005, p. 12).

    4 As idiom, stance, and claim, diaspora is a way of formulating the identities and loyalties of

    a population (Brubaker, 2005, p. 12).

  • que implica, tal como no caso da cultura e da identidade5, o estudo crtico

    dos seus processos de substancializao). Em 1996, numa altura em que o

    uso da noo estava em plena efervescncia, Avtar Brah referia a

    necessidade de olhar para as mltiplas fraturas de gnero, de raa, de

    classe, de idade ... - que integram as disporas, referindo que estas

    correspondem frequentemente confluncia, numa memria coletiva, de

    experincias diferentes e individuais (Brah, 1998).

    Em sntese, podemos dizer que a generalidade dos estudos sobre

    dispora se foram, ao longo das ltimas dcadas, aproximando de

    perspectivas analticas mais flexveis (no que diz respeito enunciao de

    critrios definidores) e etnograficamente mais diversificadas (incluindo novos

    grupos de pessoas em movimento). Como referiram em 2003 Brazil e

    Mannur, organizadoras da obra Theorizing Diasporas, os estudos sobre

    disporas - necessariamente conectados com os estudos sobre

    transnacionalismo, pensado como o pano de fundo macro-econmico e

    macro-sociolgico da contemporaneidade olham cada vez mais para as

    pessoas e concebem cada vez mais o seu objeto como um fenmeno

    humano - portanto vivido e experienciado6. Se verdade que do ponto de

    vista de uma escala macro o estudo de uma dispora nos serve

    necessariamente para perceber que os Estados-nao so hoje mais do que

    5 O texto de Stuart Hall Cultural identity and diaspora precursor na proposta de uma

    abordagem no essencialista das trs noes : Cultural identity, in this second sense, is a matter of 'becoming' as well as of 'being'. It belongs to the future as much as to the past. It is not something which already exists, transcending place, time, history and culture. Cultural identities come from somewhere, have histories. But, like everything which is historical, they undergo constant transformation (Hall, 1990, p. 225).

    6 (...) diaspora studies will need to move beyond theorizing how diasporic identities are constructed and consolidated and must ask, how are these diasporic identities practiced, lived, and experienced? (Brazil; Mannur, 2010, p. 9).

  • nunca atravessados e subvertidos7 por movimentos de pessoas, tambm

    verdade que s quando reduzimos a escala de observao ao nvel das

    vidas concretas de pessoas concretas que percebemos o significado desses

    atravessamentos e dessas subverses. No entanto, mesmo quando

    centramos a observao ao nvel da filigrana das vidas domsticas, somos

    obrigados, para interpretar o que observamos, a fazer constantes saltos de

    escala - que nos levam novamente a atravessar naes e continentes

    (Silvano, 1990, 1994, 2012). por isso necessrio encontrar metodologias de

    trabalho que nos permitam fazer, tanto ao nvel da observao como da

    anlise, esses constantes movimentos de aproximao, distanciao e

    ligao. A noo de espao de dispora (diaspora space), proposta por

    Avtar Brah (1998), permitiu - ao interceptar as noes de dispora, de

    fronteira e de deslocao ultrapassar algumas das dificuldades colocadas

    abordagem espacial da dispora.

    Face a um alargamento dos fenmenos migratrios englobados pela

    noo de dispora que ultrapassaram a concepo inicial, associada

    disperso, por razes traumticas e determinadas pelo exterior, de um povo

    Robin Cohen (2008) props uma tipologia distintiva. Nela surgem

    identificadas as disporas em que a disperso resultou de ambies

    coloniais, bem como aquelas em que resultou da procura de trabalho ou de

    oportunidades para fazer negcios. Tendo o imprio colonial britnico como

    referncia, Cohen caracteriza, no essencial, a dispora colonial pela

    presena de uma conexo constante com a terra de origem (homeland), uma

    7 The nation-state, as common territory and time, is traversed and, to varying degrees, subverted by diasporic attachments (Clifford, 1997, p. 250).

  • deferncia e uma imitao das instituies polticas e sociais do pas de onde

    partiram os seus membros e a conscincia de fazerem parte de um grande

    imprio. Refere-se a disporas quase imperiais quando, por razes

    diversas, ocorrem localizaes ou crioulizaes8.

    Apesar dos estudos sobre disporas terem incidido fortemente sobre o

    fenmeno geral das disporas coloniais e ps-coloniais, a esmagadora

    maioria dos trabalhos sobre as disperses populacionais que delas

    resultaram estuda as populaes que, no interior dos imprios, foram

    denominadas de nativas (ou seja, e no caso concreto britnico, de todos

    aqueles que, originrios das terras do imprio, no o so das Ilhas

    Britnicas). Num quadro de poder em que a classificao de nativo exprime

    uma desigualdade fraturante no interior das populaes deslocadas, a

    dispora dos no nativos - menos estudada - diferencia-se, no seu interior,

    por critrios de classe, de gnero, de idade e outros (Brah, 1998). No

    essencial, este o pano de fundo conceptual em que inserimos o nosso

    texto: o da afirmao da necessidade de observar e interpretar as prticas e

    as representaes de pessoas concretas em situaes de deslocao

    espacial tambm elas concretas. Dado o contexto etnogrfico em estudo,

    ser ainda necessrio abordar, se bem que de forma sucinta (e isto apesar

    da sua complexidade) o quadro especfico da denominada dispora

    portuguesa.

    8 Quasi, because in a number of instances, localization or creolization occurred, with the new settlers marrying into the local community or turning against their homelands (Cohen, 2008, p. 69).

  • Trs anos aps a Revoluo de Abril de 1974, Eduardo Loureno

    comentou uma cerimnia oficial, que se desenrolou no ento Dia de

    Cames - hoje Dia de Portugal, de Cames e das comunidades

    portuguesas - identificando o incio de uma nova construo da simbologia

    nacionalista: (...) centrar a viso do nosso passado (...) no em volta da

    imagem do portugus-colonizador que durante quinhentos anos nos serviu de

    referencia e vitico pico e moral, mas do portugus-emigrante, sua verso

    moderna e aceitvel (Loureno, 1988, p.120). Esta amlgama entre

    dispora colonial e dispora de trabalho (Cohen, 2008), com tudo o que

    ela comporta de obscurecimento do real, foi continuada ao longo das ltimas

    dcadas e serviu construo da ideia de dispora portuguesa - apesar de,

    como referia ento Eduardo Loureno, partir pobre para ser ou tentar ser

    senhores no ser o mesmo que partir pobre para servir povos mais ricos e

    organizados do que ns (Loureno, 1988, p. 125).

    No quadro de uma Quase dispora colonial, se usarmos a expresso de

    Cohen, a ideia de dispora portuguesa integrou - e isto apesar da

    diversidade das suas formulaes - uma representao especfica da relao

    entre colonos e colonizados, elaborada pelo Estado Novo com o objectivo de

    distinguir o colonialismo portugus dos outros colonialismos (Almeida, 2000;

    Castelo, 1998). Essa representao, que deu continuidade a discursos sobre

    a nao portuguesa proferidos por historiadores, antroplogos, ensastas e

    polticos, integrou, a partir da dcada de 1950, componentes do luso-

    tropicalismo de Gilberto Freyre que sustentaram com base na valorizao

    simblica da miscigenao portuguesa e, posteriormente, brasileira a

    aproximao entre o colonizador e o colonizado. Dadas as especificidades

  • histricas que conduziram independncia do Brasil, este, j enquanto

    Estado-nao, facilitou tambm, em pleno perodo ps-colonial, a produo,

    por parte daqueles que se moveram no interior do antigo Imprio Portugus,

    de discursos diaspricos que valorizam a existncia de continuidades dentro

    desse espao9. Como refere Feldman-Bianco (2001), o facto de aps a

    independncia do Brasil se ter assistido ao uso recorrente de uma retrica de

    descendncia comum tornou ambguas as fronteiras entre os dois pases

    irmos.

    Pensamos que estudar hoje a dispora portuguesa passa,

    necessariamente, por um trabalho de contextualizao etnogrfica que

    permita diferenciar aquilo que social, cultural e historicamente diverso. S a

    partir da se pode produzir um olhar crtico sobre os processos simblicos de

    amlgama da diversidade que a prpria ideia de dispora necessariamente

    contm. Nesse sentido, e como j referimos, basearemos o nosso texto num

    estudo contextualizado, socorrendo-nos, sempre que acharmos til, de

    comparaes com outros trabalhos por ns realizados em outros contextos

    da dispora portuguesa.

    9 De imediato, a singularidade dos fluxos migratrios entre Portugal e Brasil j instaura um trao particular na relao entre o migrante e o nativo. Pelo fato de o ambiente se revelar mais propcio para a elaborao de discursos que iro valorizar sobremaneira as semelhanas e continuidades entre os dois pases, a relao de poder entre as esferas no radicalmente assimtrica e nem se d sob o signo da opresso (Monteiro, 2008, p. 25).

  • Sou uma portuguesa que no quer viver em Portugal : percursos e

    identidades

    Para o nosso estudo escolhemos famlias que, apesar das suas

    especificidades, respondessem a alguns critrios comuns. O primeiro diz

    respeito aos percursos seguidos: partiram de Portugal para viver em

    Moambique nas ltimas dcadas do regmen ditatorial, abandonaram

    Moambique aps a queda do mesmo regmen e, depois de uma breve

    passagem por Portugal, foram viver para o Brasil, onde hoje residem. O

    segundo diz respeito estratificao social: em Moambique integraram as

    elites coloniais10 e depois posicionaram-se, com xito, nos estratos mais

    elevados da classe mdia brasileira. O terceiro critrio refere-se

    continuidade geracional - o percurso corresponde a trs geraes tendo a

    terceira j nascido no Brasil - e o quarto ao entrosamento, por via da aliana

    matrimonial, com a sociedade brasileira: a segunda gerao casou com

    brasileiros/as. Com estes critrios pretendemos desenhar um universo de

    estudo que, no interior dos estudos sobre disporas, nos permitisse observar

    pessoas e percursos pouco estudados: membros dos estratos mais

    favorecidos da sociedade colonial cujo percurso de vida incluiu o fim de um

    imprio e a presena em espaos que hoje correspondem a trs Estados-

    nao.

    Se seguirmos os critrios mais comuns utilizados para definir um percurso

    de dispora, deparamo-nos, no nosso estudo, com uma situao complexa.

    Comeamos com um percurso que integra a lgica da dispora colonial

    10

    Representantes do regime na colnia, administradores, industriais, responsveis pelas instituies estatais a operar na colnia.

  • partida de Portugal para Moambique, ento colnia portuguesa - e

    terminamos num percurso que integra a dispora de trabalho fixao num

    Estado-nao onde as famlias encontraram os meios de sobrevivncia

    adequados aos seus projectos. Sendo que este segundo percurso se faz

    para um Estado-nao que foi uma colnia do pas de partida e com o qual

    esse pas de partida mantm, historicamente, relaes ditas de

    fraternidade11. Por esse motivo, a disperso pode inserir-se, do ponto de

    vista das representaes, numa lgica simblica ambgua de continuidade da

    dispora colonial12. Todos os entrevistados referem a existncia de uma

    continuidade existencial entre Moambique e Brasil que minorou, sobretudo

    para a segunda gerao, os efeitos do trauma da partida. Essa continuidade,

    que se transcreve em vrias terrenos da vida quotidiana, correspondeu

    manuteno de um estilo de vida prximo do de Moambique: vida ao ar livre

    resultante de uma proximidade climtica, produtos alimentares semelhantes,

    conforto resultante da existncia de serviais dentro de casa ...13.

    Sabe, que l havia essa liberdade que em lugar nenhum era possvel. Depois,

    quando vieram para c, os meus filhos tiveram a sorte de Fortaleza ser uma

    cidade onde tambm se conseguia viver bem.

    At o caju ... Porque l em Moambique comia castanha de caju. Achei muito

    parecido. O clima mais parecido; embora seja diferente, muito parecido.

    11

    Numa tentativa de descolagem do discurso, de base culturalista, do luso-tropicalismo, Boaventura Sousa Santos teoriza essa proximidade a partir da definio da condio semi-perifrica de Portugal (Santos, 1994).

    12 O processo de assimilao (Clifford, 1997, p. 250) vai, provavelmente, dar um carcter transicional a esta dispora: Although they endured for a long time, the two forms of diasporas considered here, a labour and an imperial diaspora, can best be seen as transitional types (Brubaker, 2005, p. 77).

    13 A partilha lingustica o mais importante factor de produo do efeito de continuidade

    to bvia que, a este respeito, nenhum entrevistado a refere. Ela s surge quando se trata de comentar as tcticas de insero/no insero na sociedade brasileira, que nuns casos passaram pela aproximao e noutros pela resistncia forma brasileira de falar portugus.

  • A continuidade dos estilos de vida, sentida sobretudo pelos membros da

    segunda gerao, resultou do facto de a primeira gerao ter accionado, para

    se instalar no Brasil, uma srie de ferramentas relacionais que lhes

    permitiram colocar-se nos estratos mdios altos da sociedade brasileira: a

    chegada apoiou-se em relaes sociais anteriores que decorriam ou das

    redes de parentesco ou das actividade econmicas das famlias14.

    Meu pai j andava a pensar que a possibilidade seria vir para o Brasil. Na

    realidade, ele j tinha vindo ao Brasil e ele j tinha conseguido uma coisa

    que eu e minha me e minha irm no. S ele. Meu pai conseguiu residncia

    no Brasil dada pelo consulado em Angola. Ento ele no teve que passar por

    todo o processo aqui. Deram-lhe como pessoa bem-vinda ao Brasil, sabe?

    Porque era um empresrio.

    No essencial, essas redes relacionais foram criadas no interior do espao

    que havia sido o do Imprio Portugus. Veja-se o relato da chegada de uma

    das famlias ao Rio de Janeiro, para ser recebida por uma famlia brasileira

    que, por sua vez, havia sido recebida pela primeira numa estada que fizera

    em Moambique.

    Sa no Rio de Janeiro. Eles estavam nossa espera, o avio atrasou, em

    vez de chegar s seis, sete horas, chegou era meia-noite. Ele tinha l o

    motorista e disse: - Ns no vamos ficar no Rio, vamos para Petrpolis.

    Vocs vo l ficar um ms. Ns vamos lev-los, ficamos l (o outro dia era

    um domingo, acho eu). Eles ficaram no fim-de-semana e depois deixaram-

    nos a ns, toda a famlia, com empregados. Para eles, para os midos,

    tambm foi muito bom, porque tinha piscina, cavalos ... Mas veja como eles

    eram nossos amigos.15

    14

    Como referem vrios autores (Clifford, 1998; Brah, 1997), as condies de chegada so determinantes para a definio do percurso de cada dispora.

    15 Num comentrio sobre o acolhimento aqui referido, uma das filhas da famlia refere a

    existncia daquilo a que poderamos chamar uma solidariedade de elite: Agora eu te

  • No interior deste percurso multinacional, definir aquela que foi a terra de

    partida tambm uma tarefa complexa. As famlias partiram de Portugal

    para uma terra africana que, numa manobra de ocultao internacional da

    situao colonial, levada a cabo pelo Estado Novo a partir da dcada de

    195016, era denominada de provncia ultramarina. Essa ento provncia

    portuguesa vir a tornar-se na Terra que ser, para todos eles, o espao

    de pertena onde queriam viver, mas que abandonaram, forados por

    acontecimentos histricos que os ultrapassaram (passando assim, pelas

    condies dramticas da partida, os seus percursos a responder ao critrio

    mais ortodoxo da ideia de dispora). A partir da, a existncia de fronteiras

    que separam os pases em que viveram - outro dos critrios referidos na

    literatura para definir a presena de uma dispora - passa a ser tambm um

    facto nas suas vidas.

    Eu nunca me assumi como moambicano, isso no. Eu continuo a assumir-me

    como portugus, isso no h discusso. Simplesmente, o melhor pas - evidente

    que no vou dizer que Moambique melhor que Portugal, so diferentes,

    completamente - mas para viver e para morrer, era Moambique que eu tinha

    destinado.

    A partida traumtica fez-se para deixar uma terra que, entretanto, deixou de

    pertencer nao de onde so originrios.

    A leitura que eu fao que a terra deles Portugal e que, quando os meus pais

    imaginavam se estabelecer definitivamente em Moambique, eles faziam isso na

    pergunto: porque que esse casal ia se interessar justo pelo meu pai e pela minha me? Se no fossem pessoas educadas, se no fossem pessoas bem postas?

    16 A Constituio de 1951 reformula o Acto Colonial de 1930 e os territrios passam a

    chamar-se provncias, estabelecendo-se tambm o princpio da assimilao e da integrao como princpios ideolgicos (Almeida, 2000, p. 174).

  • compreenso que eles tinham: a de que era uma extenso de Portugal. No

    como uma opo por morar noutro pas. a leitura que eu fao.

    Houve por isso uma dissociao entre aquela que se transformou na terra de

    eleio Sim, se no tivesse acontecido o que aconteceu, eu teria ficado l

    a minha vida toda. Feliz da vida - e a ptria. Moambique surge sempre,

    nos discursos, como a terra mtica de onde se partiu17, mas nunca como

    uma ptria, ou mesmo como a terra onde se queira, ou possa, voltar (terra

    desejada).

    Mas eu acho que a gente recalcou isso: um tempo. Como se l no fosse um

    lugar. Eu falo muito isso: um tempo que ficou assim ... uma memria que

    foi bastante recalcada. Mas continua sendo misturado: eu acho que a gente

    no consegue separar o que era Portugal do que era Moambique, sabe?

    uma coisa mais de um universo do que de um pas. Universo que digo assim:

    simblico, a cultura. Talvez o sentido de nao seja esse, no sei. No o

    poltico, mas o do significado. Ento assim, Portugal, para a gente, nunca vai

    ser os dez mil quilmetros.

    Os que l voltaram fizeram, a partir desse contacto com o real, um

    processo de luto que enviou, definitivamente, essa terra de origem para o

    universo das suas memrias18. Face a essa impossibilidade, Portugal no se

    oferece como alternativa - nem mtica, nem real - para configurar a ideia de

    terra desejada. Pelo que, numa formulao que comporta a ideia de

    controle pessoal dos percursos de vida e que se conforma bem com a

    representao que as elites contemporneas fazem das suas migraes

    eles se afirmam como sendo portugueses que no querem viver em

    17 Um nico caso foge a esta regra geral, e essa diferena prende-se com o facto de ser a nico entrevistado que viveu, no interior de Moambique, o fim da guerra colonial.

    18 Facto que no acontece com outras famlias que com eles partilharam experincias coloniais e redes de pertena em Moambique e que se instalaram em Portugal aps o processo de independncia (Rosales, 2007).

  • Portugal. Essa opo , obviamente, o resultado de uma integrao feliz na

    sociedade brasileira19: No verdade que eu no me lembro que sou

    portuguesa. Agora verdade que eu sou uma portuguesa que assumiu o

    Brasil como seu pas. Como referimos, o trauma da partida abrupta de

    Moambique foi ultrapassado graas presena de algumas similitudes entre

    os dois contextos geogrficos, sociais e mesmo culturais. A integrao na

    sociedade brasileira dependeu no entanto de estratgias familiares e

    pessoais que tiveram de ser, passo a passo, adaptadas s circunstncias, e

    que, sobretudo para a gerao mais velha, comportaram sacrifcios e perdas

    significativas.

    Na minha opinio, houve uma vida interrompida, uma coisa assim meio

    louca, que eu percebo que hoje muito determinante na qualidade de vida

    que o meu pai tem. No era para ele ter essa qualidade de vida. Ele era para

    estar intelectualmente mais activo. Ento, nesse sentido, foi tudo pssimo.

    Eu no perdi o que ele tinha. Perdi, porque perdi amigos, perdi a minha vida,

    mas no tinha construdo. Ele tinha construdo uma vida. Ele e os outros

    pais. Todos os outros pais perderam muito mais do que ns, que tnhamos

    dezoito, dezanove anos.

    Ao invs de outras situaes por ns estudadas na dispora portuguesa

    (Silvano, 2012; Silvano; Rosales; Ferreira, 2012), no encontramos em

    nenhuma das famlias uma opo de fechamento no interior do grupo

    nacional neste caso dos portugueses a viver no Brasil , mas antes uma

    atitude de integrao voluntria na sociedade brasileira, fortemente

    associada ao objectivo de manter o posicionamento nos estratos

    19 Embora seja comum afirmar-se que os imigrantes se assimilam e as disporas no (Clifford, 1997), no nos parece que o uso desta dicotomia nos ajude a interpretar os nossos dados etnogrficos. Pelo contrrio, no jogo entre a assimilao e a manuteno da distancia simblica que as estratgias identitrias destas famlias se constroem temporalmente.

  • superiores da classe mdia brasileira20. Essa opo surge associada a um

    posicionamento claramente distintivo face a emigrantes portugueses cujas

    origens de classe so diferentes (Bourdieu, 1979).

    A gente teve a capacidade de adaptao, a inteligncia social se a gente

    pudesse chamar isso de inteligncia, seria uma inteligncia social de saber

    chegar. Porque quando a pessoa no sabe chegar direito, eles cortam

    mesmo e ningum chega l, nessas elites. Eu presenciei muita gente que

    ficou de fora porque no soube chegar.

    Uma medida que eu achei muito acertada, por parte dos meus pais, foi

    colocar a gente no melhor colgio, porque a partir do colgio voc define as

    amizades que voc vai ter. Tambm tivemos a sorte de ficar num dos

    melhores bairros da cidade, numa casa boa.

    Eu tive sorte, quando entrei na faculdade, porque fiz uma amiga que foi

    super simptica e que me ajudou. Eu ca aqui de pra-quedas, com um

    sotaque que ningum entende. Ningum entende o teu falar. Ento uma das

    coisas que no adianta teimar na mesma tecla.

    No contexto relacional da sociedade brasileira, as tcticas de insero no

    precisaram, para estas famlias, de passar pela recusa da identificao

    identitria com a portugalidade. Como afirma Miguel Vale de Almeida, em

    virtude da sua constituio como Estado-nao segundo um modelo europeu

    e a partir de uma realidade econmica forte (...) a sociedade brasileira

    continuou a divisria colonial das fronteiras entre brancos/classe alta e

    negros/classe baixa (...) (Almeida, 2004, p.10). No interior dessa

    demarcao, a portugalidade surge do lado mais forte da divisria, pelo que,

    20

    Filiamo-nos aqui na proposta de trabalho de Mark Liechty que, conciliando Marx e Weber, estudou as dimenses culturais implicadas na construo da classe mdia nepalesa. A manuteno/reproduo de uma cultura de classe foi determinante para os percursos das famlias que estudmos : (...) class culture is always a work-in-progress, a perpetual social construction that is as fundamentally bound to the concrete of economic resources as it is to the cultural practices of people who jointly negotiate their social identities (Liechty, 2003, p. 4).

  • num contexto cultural e socialmente favorvel, a pertena nacional pde ser

    positivamente agenciada21. Quando tenta recordar-se do que, enquanto pr-

    adolescente, sentiu aquando da chegada ao Brasil, uma das entrevistadas

    refere, justamente, a continuidade da clivagem referida por Miguel Vale de

    Almeida.

    Outra coisa que acredito possa ter pesado, no sentido de eu no perceber

    tantas diferenas, o facto de ... embora ns estivssemos a conviver numa

    colnia, ns no tnhamos essa noo. Eu no tinha essa noo, eu s

    morava ali. E acostumei-me a ver, evidentemente, os negros numa condio

    social e econmica inferior, normalmente de serviais. Mas isso uma coisa

    que h quarenta anos atrs existia aqui tambm, s que no eram negros

    indgenas mas, por questes bvias, as pessoas mais humildes aqui tm

    uma cor de pele mais escura que as menos humildes. Via de regra. No que

    esteja comparando uma coisa com a outra. Alis, eu estou comparando, mas

    nesse sentido, do que uma criana sente. Eu comecei dizendo: como eu me

    lembro de como me sentia.

    Os movimentos de aproximao e de distanciao face portugalidade

    variam segundo as geraes e, como seria de esperar, a segunda gerao

    aquela que, na juventude, se distancia mais dela para assim se poder

    aproximar da sociedade brasileira. neste nvel da anlise que a questo

    lingustica se coloca: nalguns casos da gerao mais velha houve uma

    recusa distintiva face forma de falar o portugus do Brasil (mesmo

    reconhecendo que essa recusa era, do ponto de vista da integrao

    profissional, nefasta22), enquanto que na segunda gerao houve,

    basicamente, uma adeso tctica. Essa aproximao, que passou pela

    21

    Sendo que, como refere noutro texto o mesmo autor, o luso-tropicalismo fez, tanto no Brasil como em Portugal, uma reinterpretao positiva dos processos que deram origem a essa desigualdade, dificultando assim o seu combate (Almeida, 2000).

    22 Mas eu vou-lhe dizer uma coisa: eu, ali naquele gabinete, vejo a RTP todos os dias. Eu

    quero ouvir a lngua, no quero desabituar-me.

  • integrao escolar em colgios ou universidades de elite e pelo

    estabelecimento de laos de aliana matrimonial com famlias brasileiras, foi

    essencial para, na idade adulta, poderem ocupar posies sociais e

    profissionais slidas. Num dos casos mais conseguidos, uma das filhas, que

    partiu de Moambique j no fim da adolescncia, inseriu-se na elite cultural

    de S. Paulo onde depois veio a ocupar uma destacada posio enquanto

    ceramista. A insero, feita com xito, na sociedade brasileira, foi

    acompanhada pela manuteno, por parte de todas as famlias, de relaes

    econmicas e sociais com Portugal23 onde algumas tm patrimnio e pela

    manuteno, atravs de vrios meios, de uma pertena simblica

    portugalidade. Essa estratgia identitria perdurou at terceira gerao j

    nascida no Brasil sendo, nalguns casos, os progenitores brasileiros aqueles

    que mais agenciaram, em prole das suas filhas, as componentes simblicas e

    materiais da pertena portugalidade (que entretanto viu acrescentar-se-lhe

    o valor simblico da incluso europeia).

    A ideia de dispora portuguesa que partilham permite-lhes dar sentido

    quilo que corresponde, de facto, a uma experincia e a uma prtica de vida

    transnacional. Aquilo que convocam, quando a ela se referem, , no

    essencial, uma actualizao contextualizada dos discursos produzidos pelo

    poder poltico - apesar das nuances que separam os discursos situados

    direita, dos discursos situados mais esquerda -, pelo senso comum e

    mesmo pela academia. Como referia Eduardo Loureno (1988), uma verso

    que se socorre do mtico e heroicizado passado imperial para valorizar, como

    23 No caso de uma das famlias pode mesmo falar-se de uma situao de gesto patrimonial transnacional (Vertovec, 2004): em momentos chaves do funcionamento do mercado de arte toda a famlia se rene na Europa para gerir o seu patrimnio artstico.

  • se de um todo se tratasse, a actual disperso de portugueses pelo mundo24.

    Os seus espaos de dispora - onde se interceptam a dispora, as

    deslocaes e as fronteiras so percepcionados atravs de uma narrativa

    historicista que permite dar sentido quilo que, apesar das rupturas de facto,

    percepcionam como uma continuidade vivida: A seriam os portugueses:

    uma grande nao, com todos esses tentculos. Estamos face a um caso de

    concepo de dispora em que a referncia no tanto o Pas de partida

    mas antes a dispora em si mesma tanto mais que a dispora portuguesa,

    exactamente porque integra nas suas dimenses simblicas um discurso

    heroicizante, , enquanto idioma identitrio, muito mais gratificante do que a

    afirmao da pertena a um pas pequeno e economicamente frgil. A

    convocao do status que a dimenso simblica da dispora permite , de

    uma certa maneira, autonomizada das condies objectivas da

    nacionalidade.

    Mas se a ideia de dispora portuguesa lhes permite, at certo ponto,

    superar as rupturas a que as suas vidas foram sujeitas - e at, quando bem

    agenciada, assegurar um bom posicionamento na sociedade brasileira - ela

    no deixa por isso de os obrigar a delicadas negociaes identitrias. Em

    abstrato a dispora corresponde a essa memria coletiva que se sobrepe s

    experincias individuais, mas em concreto ela integra pessoas que so,

    realmente, diferentes. E a, as particularidades dos percursos e a origem

    social das pessoas implicadas explicam a diversidade dos contedos

    24 No momento em que escrevemos este texto (Vero de 2014), por razes que se prendem com a recente interveno em Portugal de uma Troika constituda pelo Fundo Monetrio Internacional, a Comisso Europeia e o Banco Central Europeu, a fixao nesse discurso - baseado numa heroicizao do passado que serve para ocultar as condies reais do presente - foi re-ativado pelo governo de centro-direita.

  • convocados para desenhar a dispora. Quando comparamos o uso que

    feito, neste contexto etnogrfico, da dispora enquanto idioma identitrio,

    com aquele que observmos estudando portugueses com origem em estratos

    sociais mais desfavorecidos e hoje sediados em Frana e no Canad,

    deparamo-nos com diferenas muito significativas. Sobretudo em Frana,

    mas tambm no Canad, a ideia de dispora quando surge25 associada

    de comunidade portuguesa (referindo-se, respectivamente, apenas aos

    portugueses a viver em Frana ou no Canad). No presente estudo essa

    ideia de comunidade portuguesa no tem sequer existncia. Em Frana e

    no Canad no possvel acionar, como no Brasil, uma ideia de dispora

    imperial, pelo que a valorizao simblica predominante aquela que se

    baseia no xito do percurso de integrao econmica e social do emigrante

    pobre nos pases ricos de acolhimento. Para l disso, tanto nos casos

    estudados no Canad como nos estudados em Frana, surge um trabalho de

    etnicizao feito a partir de componentes da cultura material e performativa

    de origem popular, que, no caso aqui em estudo, no tem qualquer

    existncia26. Esses factos comprovam que os contedos atribudos ideia de

    dispora esto relacionados com as condies objetivas e subjetivas dos

    percursos experimentados por quem os agencia. Por causa das suas

    caractersticas sociais e culturais, e apesar de os seus percursos terem tido

    uma componente de partida forada, estas famlias aproximam-se, em certas

    dimenses, do individualismo dos exilados (Clifford, 1997) e das elites

    25 A ideia de dispora surge sobretudo convocada por instncias polticas portuguesas, sendo depois associada ideia de comunidade, essa sim com uma origem mais marcadamente mic.

    26 A este respeito ver : Silvano (2012) e Silvano; Rosales; Ferreira (2012).

  • cosmopolitas em trnsito descritas por OReilly e Benson (2009) e por Amit

    (2007). O uso que fazem da ideia de dispora tem por isso que ser

    interpretado a partir da identificao das suas inseres e posicionamentos

    scio-culturais, bem como dos capitais herdados e adquiridos (Bourdieu,

    1979) antes e depois das partidas. Todos os entrevistados se referem, no

    interior de uma estratgia de distino, de forma mais ou menos explicita s

    clivagens de origem de classe existentes no interior da imigrao portuguesa

    no Brasil.

    E depois vem outra coisa, tambm, que eu tenho de lhe explicar: este

    pessoal portugus, que esto aqui h muitos anos - isto no depreciao -

    so todos padeiros. Mas evoluram, no ? Hoje tm filhos formados,

    advogados, engenheiros, etc.. A emigrao que foi mais evoluda, mais

    preparada, foi esta do 25 de Abril.

    Ns no somos os legtimos representantes dos emigrantes. Ns somos uma

    classe de emigrantes completamente diferente daquela que costumava, hoje

    at costuma mesmo, acontecer de fora para o Brasil. - Nunca sentiu o

    preconceito de ser emigrante?, eu digo: - Emigrante? Eu sou emigrante?!

    Eu no sou emigrante, porque para mim emigrante era aquele povo que

    vinha, l naqueles navios, aquela coisa horrvel, para trabalhar a terra. No

    aconteceu nada disso com a gente.

    No fao a menor questo na arca, porque a nica coisa que ela tem

    o valor de ser de Moambique percursos, objetos e identidades

    O projecto de investigao que esteve na base da escrita do presente

    texto centra-se no estudo das relaes que os membros das famlias

    estabeleceram, ao longo dos seus percursos, com os seus objetos. Tendo

    por base propostas de trabalho que acentuam o papel que os objectos,

  • enquanto materialidades, assumem nas vidas das pessoas (Bourdieu, 1979;

    Miller, 1987; Appadurai, 1986; Gell, 1998; Latour, 2007), tentmos ler a

    construo dos percursos diaspricos das famlias focando-nos nos objetos

    que as acompanharam. Considermos, seguindo Bourdieu (1997), que os

    objetos so parte integrante da construo dos habitus, pelo que, em

    situaes de mobilidade espacial, lev-los ou abandon-los significa manter

    ou no manter o quadro (Latour, 2007) onde se desenrolaram as suas vidas

    domsticas. Mais do que isso, considermos, como prope Miller (1987), que

    as coisas materiais permitem a objetificao dos sujeitos integrando assim

    os processos de construo das identidades pessoais, familiares e at

    nacionais. Numa perspectiva mais centrada nos objectos do que nos sujeitos,

    prxima da de Appadurai (1986) e Kopytoff (1986), demos tambm ateno

    aos sentidos que as coisas, por causa das suas vidas sociais, levam consigo

    quando se deslocam. Como Gell (1998) e Latour (1993) demonstraram, pelas

    suas componentes simblicas e materiais as coisas agem no e sobre o

    mundo. De uma forma por vezes discreta (Miller 1987), orientam a

    agencialidade dos sujeitos que com elas convivem. No quadro de uma

    dispora, levar ou deixar coisas traduz-se por isso na presena ou na

    ausncia dessa capacidade de aco. A memria, elemento central para a

    construo da ideia de dispora, construda tambm pelos objetos: como

    referem Hecht (2001) e Marcoux (2001), as coisas que as pessoas

    transportam esto no centro da constituio das suas memrias permitindo,

    quer pela sua presena, quer pela sua ausncia, ligar o passado, o presente

    e o futuro (Rosales, 2010).

  • No essencial podemos falar, no que diz respeito aos objetos que foram

    selecionados para serem levados para o Brasil, em duas categorias: a

    primeira diz respeito aos que objetificam a portugalidade e a segunda aos

    que, metonimicamente, convocam, no Brasil, as casas moambicanas do

    passado. Os primeiros participam na construo da ideia de dispora

    portuguesa e os segundos na construo de um percurso de vida familiar em

    que as rupturas so ultrapassadas com a ajuda de algumas continuidades

    materiais.

    Na primeira categoria encontram-se objetos que falam da histria de

    Portugal e materializam o carcter historicista da ideia de dispora que os

    membros das famlias partilham. No caso de duas das famlias, esses objetos

    esto directamente ligados sua prpria histria familiar. Numa delas, o

    braso da famlia encontra-se reproduzido em pinturas emolduradas e

    penduradas nas paredes tanto da casa dos pais como das casas dos filhos.

    Um deles, que tem estudado a genealogia da famlia, afirma que quanto mais

    recuamos no tempo mais a histria da famlia se confunde com a histria de

    Portugal (onde inclui, numa reproduo dos princpios luso-tropicalistas, as

    suas origens brasileiras/mestias). No escritrio do pai, o espao onde esto

    guardados todos os documentos importantes para a memria familiar, a

    bandeira portuguesa encontra-se desfraldada junto secretria. A capa e a

    pasta usadas na universidade encontram-se guardadas e na sala est

    exposta uma fotografia das netas adolescentes, j nascidas no Brasil,

    trajadas de capa e batina. Os livros, que segundo a mulher foram sempre

    os objetos prioritariamente embalados e enviados a quando das mudanas,

    so tambm, no essencial, de autores portugueses e sobre Portugal. Nesta

  • famlia o quadro material (Latour, 2007) onde a interao familiar inter-

    geracional se desenrola conta uma histria de famlia cuidadosamente

    inserida numa historia de Portugal que sustenta a ideia de pertena a uma

    dispora Imperial. Menos visveis, mas com uma importncia simblica

    acrescida, so os objetos herdados, sobretudo as joias e os objetos em prata.

    Neste caso, a vida social dos objetos (Kopytoff, 1986) a quem pertenceram,

    onde viveram uma componente essencial para a sua aco. Duas das

    famlias trouxeram de Portugal objetos herdados que se encontram

    guardados e que sustentam, quando so desocultados, longas narrativas

    relativas histria familiar. Num dos casos, numa casa em que nada deixa

    transparecer a sua existncia, h uma arca onde esto guardados, sem

    grandes cuidados, vrios objetos valiosos, a maioria de prata. Foram eles

    que desencadearam uma narrativa sobre o passado familiar, realizada no

    pelo portugus que deixou Moambique, mas pela sua mulher brasileira.

    Numa longa conversa tida volta desses objetos preciosos percebemos que

    eles esto ali guardados para cumprirem, um dia, a funo de ratificarem a

    parte portuguesa e europeia da identidade da filha do casal. Esto

    normalmente escondidos, mas quando foram desocultados esses objetos

    revelaram a sua capacidade de agir ao desencadearem um discurso em que

    o seu prestigiado passado portugus aparece a sustentar os projetos de

    futuro para a filha que nesse momento se encontrava a fazer uma ps-

    graduao em Portugal. Numa outra famlia, a relao com a Histria de

    Portugal surge tambm transcrita nos objetos, mas atravs de uma prtica

    diferente: a do investimento de capital em objetos de arte. Chegado ao Brasil,

    o casal iniciou uma coleco de obras de arte portuguesa que haviam sido,

  • ao longo do sculo XIX e XX, deslocadas para o Brasil. Neste caso, a

    materializao da portugalidade no se fez usando para tal os objetos

    herdados ou levados pela famlia de Portugal, mas antes adquirindo - e

    associando-os uns aos outros no seio de uma coleo - objetos

    representativos da cultura erudita portuguesa levados, ao longo do tempo,

    para o Brasil. Essa coleo que corresponde a uma verso material de uma

    certa ideia de dispora portuguesa - acabou por retornar, em grande parte,

    a Portugal, para integrar o acervo da galeria de arte que a famlia entretanto

    abriu em Lisboa. Tambm neste caso, a presena, no quadro da interao

    familiar, de objetos que vieram de Portugal colabora na materializao da

    identidade portuguesa das trs geraes a dos avs que partiram de

    Moambique e se instalaram em S. Paulo, a da me que permaneceu no

    Brasil e a da filha (que, tal como a filha do casal anterior, se encontrava, na

    altura em que foram feitas as entrevistas, a estudar numa universidade

    portuguesa).

    J o dissemos anteriormente, o lugar da partida traumtica foi, para

    estas famlias, no Portugal, mas Moambique. Foi l que deixaram as suas

    casas, parte dos seus objetos e um projeto de vida interrompido: A minha

    me nunca voltou. Ela saiu um dia e nunca voltou. Mas ela no saiu para ir

    embora, ela saiu para passar uma semana. Para a segunda gerao foi a

    terra das suas infncias. Por isso, tanto para uns como para outros, os

    objetos que foram trazidos das casas de Moambique servem, no Brasil, para

    convocar a terra perdida.

    Tinha aquela mesinha, que a minha me deve ter mostrado, que est na

    casa dela, que tem os ps de pau-preto torneado. Tinha uma colher e um

  • garfo de madeira, enormes. Aquilo ali era uma farra l em casa... Porque o

    meu pai sempre foi muito alegre, ento aos sbados e domingos ele tocava

    aquelas msicas e a gente brincava com aquilo.

    Eu tinha uma pea de pedra de sabo que pesa vinte sete quilos e que

    andou comigo. S de louca, trazer aquilo para c! Uma pea de pedra de

    sabo desse tamanho capricho. Ainda por cima feia para burro.

    Todos os entrevistados referem a pouca importncia que davam, em

    Moambique, aos objetos africanos, e a re-valorizao que fizeram

    posteriormente dos mesmos. Arcas de madeiras exticas, peas de arte

    africana, esteiras e chinesices (objetos importados da China e vendidos em

    Moambique) foram, ao longo do percurso, aumentando o seu valor

    simblico. Comearam por ser usados como elementos materiais de

    manuteno de um quadro familiar antes conhecido - a presena nas casas

    de objetos vindos das casas moambicanas deu continuidade a um habitus e,

    ao mesmo tempo, sustentou o processo de construo da memria - para

    depois virem a ser re-valorizados. Nalguns casos por serem objetos raros

    (pela qualidade da madeira, pela qualidade da execuo ou mesmo pelas

    qualidades artsticas) e, noutros, apenas por possurem capacidades

    discursivas e evocativas (reproduzindo imagens e fragmentos de histrias e

    experincias vividas). Outros objetos, pelo contrrio, com o tempo perderam

    o seu encanto. Mas desfazer-se deles, dado o valor memorial de que se

    revestiram, no ainda possvel, pelo que acabam sendo presenas

    incmodas, mas incontornveis27.

    27 Agradecemos a Miguel Val de Almeida, a Jos Mapril e aos pareceristas as leituras atentas e as sugestes teis.

  • Tem uma outra arca que minha, mas est noutra casa. de jambira

    tambm, mas eu no fao a menor questo na arca porque a nica coisa que

    ela tem o valor de ser de Moambique. O desenho dela horrvel.

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