Filme estomago - Roteiro

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Roteiro completo do filme estomago

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  • Roteiro de

    Estmago

    Um Filme de Marcos Jorge

  • Estmago

    Roteiro deLusa Silvestre, Marcos Jorge e

    Cludia da Natividade

    para filme de longa-metragem

    verso para filmagem com

    notas de Marcos Jorge

    So Paulo, 2008

  • Coleo Aplauso

    Coordenador Geral Rubens Ewald Filho

    Governador Jos Serra

    Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

    Diretor-presidente Hubert Alqures

  • Apresentao

    Segundo o catalo Gaud, No se deve erguer monumentos aos artistas porque eles j o fize-ram com suas obras. De fato, muitos artistas so imortalizados e reverenciados diariamente por meio de suas obras eternas.

    Mas como reconhecer o trabalho de artistas ge niais de outrora, que para exercer seu ofcio muniram-se simplesmente de suas prprias emoes, de seu prprio corpo? Como manter vivo o nome daque-les que se dedicaram mais voltil das artes, es-crevendo, dirigindo e interpretando obras-primas, que tm a efmera durao de um ato?

    Mesmo artistas da TV ps-videoteipe seguem esquecidos, quando os registros de seu trabalho ou se perderam ou so muitas vezes inacessveis ao grande pblico.

    A Coleo Aplauso, de iniciativa da Imprensa Oficial, pretende resgatar um pouco da memria de figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveram participao na histria recente do Pas, tanto dentro quanto fora de cena.

    Ao contar suas histrias pessoais, esses artistas do-nos a conhecer o meio em que vivia toda

  • uma classe que representa a conscincia crtica da sociedade. Suas histrias tratam do contexto social no qual estavam inseridos e seu inevit-vel reflexo na arte. Falam do seu engajamento poltico em pocas adversas livre expresso e as conseqncias disso em suas prprias vidas e no destino da nao.

    Paralelamente, as histrias de seus familiares se en tre la am, quase que invariavelmente, saga dos milhares de imigrantes do comeo do sculo pas sado no Brasil, vindos das mais varia-das origens. En fim, o mosaico formado pelos depoimentos com pe um quadro que reflete a identidade e a imagem nacional, bem como o processo poltico e cultural pelo qual passou o pas nas ltimas dcadas.

    Ao perpetuar a voz daqueles que j foram a pr-pria voz da sociedade, a Coleo Aplauso cumpre um dever de gratido a esses grandes smbolos da cultura nacional. Publicar suas histrias e per-sonagens, trazendo-os de volta cena, tambm cumpre funo social, pois garante a preservao de parte de uma memria artstica genuinamente brasileira, e constitui mais que justa homenagem queles que merecem ser aplaudidos de p.

    Jos SerraGovernador do Estado de So Paulo

  • Coleo Aplauso

    O que lembro, tenho.Guimares Rosa

    A Coleo Aplauso, concebida pela Imprensa Ofi cial, visa a resgatar a memria da cultura nacio nal, biografando atores, atrizes e diretores que compem a cena brasileira nas reas de cine ma, teatro e televiso. Foram selecionados escri tores com largo currculo em jornalismo cul-tural para esse trabalho em que a histria cnica e audiovisual brasileira vem sendo re constituda de ma nei ra singular. Em entrevistas e encontros suces sivos estreita-se o contato en tre bigrafos e bio gra fados. Arquivos de documentos e imagens so pesquisados, e o universo que se recons titui a partir do cotidiano e do fazer dessas persona-lidades permite reconstruir sua trajetria.

    A deciso sobre o depoimento de cada um na pri-meira pessoa mantm o aspecto de tradio oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor .

    Um aspecto importante da Coleo que os resul -ta dos obtidos ultrapassam simples registros bio-gr ficos, revelando ao leitor facetas que tambm caracterizam o artista e seu ofcio. Bi grafo e bio-gra fado se colocaram em reflexes que se esten de-ram sobre a formao intelectual e ideo l gica do artista, contex tua li zada na histria brasileira , no tempo e espao da narrativa de cada biogra fado.

  • So inmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crtico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso pas. Mui-tos mostraram a importncia para a sua formao terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televiso, adquirindo, linguagens diferencia-das analisando-as com suas particularidades.

    Muitos ttulos extrapolam os simples relatos bio -grficos, explorando quando o artista permite seu universo ntimo e psicolgico , reve lando sua autodeterminao e quase nunca a casua lidade por ter se tornado artista como se carregasse desde sempre, seus princpios, sua vocao, a complexidade dos personagens que abrigou ao longo de sua carreira.

    So livros que, alm de atrair o grande pblico, inte ressaro igualmente a nossos estudantes, pois na Coleo Aplauso foi discutido o processo de criao que concerne ao teatro, ao cinema e televiso. Desenvolveram-se te mas como a cons-truo dos personagens inter pretados, a anlise, a histria, a importncia e a atua lidade de alguns dos perso nagens vividos pelos biografados. Foram exami nados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibili-dades de correo de erros no exerccio do teatro e do cinema, a diferena entre esses veculos e a expresso de suas linguagens.

  • Gostaria de ressaltar o projeto grfico da Coleo e a opo por seu formato de bolso, a facili dade para ler esses livros em qualquer parte, a clareza de suas fontes, a icono grafia farta e o regis tro cronolgico de cada biografado.

    Se algum fator especfico conduziu ao sucesso da Coleo Aplauso e merece ser destacado , o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu pas.

    Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com efi-ccia a pesquisa documental e iconogrfica e contar com a disposio e o empe nho dos artis-tas, diretores, dramaturgos e roteiris tas. Com a Coleo em curso, configurada e com identida-de consolidada, constatamos que os sorti lgios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de fil ma-gem, textos, imagens e pala vras conjugados, e todos esses seres especiais que nesse universo transi tam, transmutam e vivem tambm nos tomaram e sensibilizaram.

    esse material cultural e de reflexo que pode ser agora compartilhado com os leitores de to-do o Brasil.

    Hubert AlquresDiretor-presidente da

    Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

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    Presos pelo Estmago

    Comeou quando eu e o Marcos comeamos a trocar e-mails, mensagens at que meio formais, naquela onda do deixa eu manter contato com o cara porque vai que. Um dia, ele me chamou pra ir assistir um curta dele (Infinitamente Maio) no Cinesesc, na rua Augusta. No fui sou muito pijamo, pra sair de casa sou pior que monge be-neditino. Mas perguntei: ah, voc faz cinemo? Ele: fao, e estou atrs de idias.

    Eu: ah, ? Ele: .

    Eu tinha esse conto, o Presos pelo Estmago, que eu gostava muito. Era original, e tinha pelo menos dois personagens bastante inspiradores: o Alecrim e o Buji. Mandei pra ele ver. Diz ele que leu no Jardim Botnico daqui de Sampa, sentadinho na grama com o filho Pedro zoan-do ao redor. Influenciado pelos macaquinhos e preguias e vitrias-rgias do local, ele gostou e props fazer do conto um curta. Fomos almoar e traamos os planos. De cara, ele disse, como uma Carta ao Jovem Roteirista: olha, Lusa, de-mora, viu! Prepare-se para o curta ficar pronto s daqui dois anos. Tomamos um caf e cada um voltou pro seu canto.

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    Da ele sumiu. Ficou um ms sem dar satisfao. Cheguei a pensar que o projeto tinha ido pra cucuia. Um dia ele aparece do nada querendo fazer, do curta, um longa. E sugerindo uma trama paralela, onde iramos contar o que o Nonato fez antes de ir em cana. Comeamos a escrever, a princpio de uma maneira desespe-rada havia um prazo a cumprir, um edital de premiao daqueles de alguma estatal (se no me engano; quem sabe dessas coisas de prazo e edital a Cludia). Ficamos um ms dedicados a isso - foi uma delcia. Um ms acordando e dormindo pensando e produzindo uma obra pra cinema. Melhor no pode ser. Melhor que isso, s fazendo a mesma coisa sendo milionrio.

    Entramos nesse primeiro edital e perdemos. Serviu pra gente sossegar um pouco, e refazer o que no estava bom. A comeamos a reescrever o roteiro, num processo que s realmente parou quando o Marcos falou o ltimo corta, depois de cinco semanas de filmagens. A gente refez o roteiro inmeras vezes, eu e o Marcos suando no computador, a Cludia dando palpites e toques. Chego a questionar se temos realmente verses intermedirias, os tais tratamentos. Na minha cabea, refizemos o roteiro todas as semanas durante dois anos e pouco.

    Um dia, toca o telefone. Marcos emocionado me contava, entre vivas da Cludia e biribinhas

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    do Pedro, que a gente tinha ganhado o Edital de Filmes de Baixo Oramento do Ministrio da Cultura. Um prmio muito disputado, bastante prestigiado, e que possibilitaria levarmos o Nonato do roteiro pro cinema.

    A pr-produo do filme comeou. Duzentas coisas a se pensar ao mesmo tempo. A Cludia chegou a ter 11 contas de banco diferentes. J pensou? Muitas coisas a se ver: elenco, locaes, direo de fotografia, arte e continuar a reescre-ver o roteiro, at a gente ficar satisfeito. Ou at chegar a hora de filmar e no ter outro jeito.

    (Plato dizia que um artista no termina uma obra. Simplesmente a abandona).

    Uma das coisas mais importantes era a escolha do elenco. Isso determinante para termos um filme bom ou um filme ruim. Sobretudo no caso do Alecrim, da ria e do Biji.

    O que primeiro achamos foi o Biji. E, alm de ter sido timo pro projeto, foi timo pra mim como escritor. Descobri de maneira em-prica o comportamento da palavra em suas dimenses. Explico: para cada teste, a gente pinou um trecho do roteiro. Normal, os ato-res tm que atuar sobre alguma coisa. Pro teste do Buji, o Marcos escolheu um texto

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    que acabou nem entrando no corte final. Era uma passagem em que o Buji reclamava que ele s gostava de macarro com muito molho, e descia palavro. Certo. Quando eu vi o Babu no teste, no conseguia parar de rir. Ele tinha dado ao texto uma pegada que eu, como escri-tor, no tinha imaginado. No papel, no era um trecho engraado. Servia pra outras coisas, mas no tinha imaginado muita graa nele. Com o Babu, ficou muito divertido. Ou seja: palavras se comportam de maneiras diferentes no papel, no rdio, na telona.

    Ainda no casting: a ria. Outra que deu um pata-mar que eu no tinha imaginado pras palavras. Ela trouxe uma vida mais felliniana pro papel, pro escrito. Tudo bem, desde sempre a idia era ter mesmo um filme felliniano, mas certos olhares, certas pausas, silncios, tudo isso no estava pre-visto por mim inicialmente. Joo Miguel, a mesma coisa. Ele trouxe um Nonato perfeito, exatamente como a gente queria desde o primeiro segundo. Meio Macunama, um p no Joo Ubaldo, outro no Guimares Rosa. No tom certo, focado no que o Marcos queria uma comdia dramtica com temperinhos de humor negro.

    Outra coisa idia da Cludia que foi deter-minante pra qualidade do roteiro foi o contato com o Luiz Mendes, escritor que ficou 32 anos

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    preso. Tive vrios almoos com ele, repassamos o roteiro pgina a pgina juntos, eu perguntando se aquilo escrito correspondia um pouco pelo menos realidade da cadeia. Algumas coisas no eram verdade verdadeira, mas consegui convencer o Mendes que cinema no precisa ser assim, to verdade verdadeira. Uma experincia absolutamente inesquecvel, esse contato com o Mendes. Nos ajudou muito.

    Cinema trabalho em grupo. Os atores acres-centam vida aos personagens. O diretor de fotografia sugere um movimento que d mais ritmo. O montador d um corte que simplifica. O roteirista refaz os offs. Enfim: esporte coletivo, todo mundo jogando pra fazer gol. Cinema isso: outras opinies somando ao roteiro com a organizao e orientao do diretor, que quem sabe mesmo pra onde o filme deve ir. Um bando de gente que se juntou em torno de uma crena comum: temos um bom roteiro que vale a pena ser filmado e vai ser relevante. Funciona. Mas, repito: desde que o diretor mande. E o Marcos, se tem uma coisa que ele sabe fazer, orientar. Mo segura, brao amigo como o slogan das Foras Armadas.

    No comeo, era s uma brochura com um monte de papel junto. No quase-fim, j era um filme bom, com pegada, personalidade.

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    No fim, fim mesmo, isso: ele publicado em forma de livro. Fomos das palavras s cenas, e agora voltamos s palavras.

    Divirtam-se.

    Lusa Silvestre

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    Estmago O Filme

    O mais surpreendente era a originalidade do conto. J tinha lido muito texto e visto muito filme sobre cadeia, mas em nenhum deles as re-laes sociais e de poder eram travadas atravs do recorte da comida dentro da cela. Por isso, quando o conto chegou, primeiro deu vontade de fazer um curta e depois, um longa.

    Em 2004, a Zencrane Filmes ainda era pequena, eu e o Marcos Jorge tnhamos voltado h pouco tempo para o Brasil, feito alguns curtas e do-cumentrios, mas ainda faltava a experincia fundamental que a realizao de um longa-metragem. Naquele ano, estvamos bastante determinados a fazer um longa e a chegou o conto do Lusa que virou roteiro e com o qual ganhamos o Edital de Produo de Filmes de Baixo Oramento do Ministrio da Cultura. Para ver o quanto estvamos determinados, naquele mesmo dezembro de 2004, na mesma semana, vencemos tambm outro edital, com outro pro-jeto, para fazer um outro filme.

    Esse outro projeto, o Corpos Celestes, acabou sendo filmado antes de Estmago, mas s vai ser lanado no prximo ano. Filmar o Celestes pri-meiro acabou sendo importante, porque pude-

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    mos entender toda a complexidade da produo de um longa-metragem, formar uma equipe de produo eficiente e entusiasmada e identificar possveis problemas na realizao do Estmago. Produzir a arte da estratgia e, como na guer-ra, em um longa no se pode errar.

    Mas, voltando ao Edital do Ministrio da Cul-tura, processo super-democrtico que premia bons roteiros realizveis a baixo custo: O Edital era um bom incio para o Estmago, mas os recursos no eram suficientes, considerando o tamanho da ambio que tnhamos e o filme que queramos fazer. Da a necessidade, que virou motivao, de vencermos a burocracia e fazermos uma co-produo internacional. A Itlia era uma escolha bvia, pela nossa expe-rincia e pela prpria gastronomia. E eis que o filme virou binacional, brasileiro e italiano. Com os recursos complementares da Itlia pu-demos ampliar os limites iniciais da produo e fazer o Estmago que foi para a tela; de outro modo, o filme teria acontecido tambm, mas seria outro filme.

    No Estmago, desde a estruturao do roteiro, tivemos o cuidado de humanizar os personagens, deix-los verdadeiros em suas naturezas, nem bons, nem maus, como qualquer um de ns. Tivemos tambm a pretenso de dessacralizar a

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    gastronomia, deslocando o convencional foco do prazer pela boa comida entendida como parte exclusiva do universo das classes privilegiadas. No Estmago, pobre tambm gosta de comida boa e de comer bem. Acredito que esses objetivos, colocados logo nas pginas iniciais do roteiro, so a energia pulsante do filme, que se manteve viva na excelente interpretao dos atores e na perfeita direo de Marcos Jorge.

    O resto est nas pginas do roteiro e na imagem fixada do negativo. Olhando agora, at parece que nem deu trabalho.

    Cludia da Natividade

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    A Receita do Estmago

    O homem o nico animal que cozinha, logo, poucas coisas so to intrinsecamente humanas quanto a culinria. Alm de fazer cinema, e de v-lo como fabuloso instrumento de com-preenso do ser humano, eu gosto muito de cozinhar. Aprendi a faz-lo na Itlia, onde vivi toda a dcada de 90. L, a culinria coisa sria e bastante difundida entre a populao: prati-camente no h italiano que no cozinhe. L, aprendi a respeitar o momento das refeies como algo sacro, um momento de encontro privilegiado entre as pessoas. Um momento em que as pessoas se revelam, tambm, no que tm de melhor, e de pior.

    Assim que li o conto Presos pelo Estmago, do Lusa Silvestre, percebi que tinha um assunto interessantssimo nas mos. A mistura de culin-ria e poder ganhou-me no ato, e o uso original do ambiente cadeia convenceu-me de que dali podia nascer um bom filme. E o que me pareceu ainda melhor era que o conto era um timo ponto de partida, mas estava longe de ser a receita do filme. Era necessrio, para se chegar ao roteiro, inventar muita coisa ainda, que era justamente o que eu andava querendo fazer. Explico: depois de vrios vdeos experimentais,

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    alguns documentrios e dois curtas, que me de-ram mais de 50 prmios, era chegada a hora de tentar o longa-metragem. E, fiel ao que vinha fazendo antes, queria fazer algo em que, alm de dirigir, eu tambm escrevesse o que mais tarde realizaria.

    Para mim, aquele ms intenso que passei prati-camente trancado no escritrio escrevendo a pri-meira verso do roteiro do Estmago foi um dos momentos mais felizes de minha vida. Escrever to mais simples do que filmar (no mais fcil, vejam bem!) Filmar uma luta contra a natureza. Ao filmar, voc est se esforando para recriar a realidade e constrang-la dentro dos limites do enquadramento, coisa que a realidade se obsti-na, o tempo inteiro, em no fazer. J no papel, que diferena, no papel, praticamente tudo d certo! E como davam certo nossas idias naquele ms. Que delcia foi inventarmos a ria (que tem o nome de uma tia minha, embora ela no saiba, e embora o personagem no tenha nada a ver com ela), o Giovanni (pensado a partir de diver-sos italianos que conheo, especialmente de um chef de Viareggio), o Zulmiro (nome de um dos porteiros do prdio onde ento eu morava em So Paulo), e desenvolvermos a personalidade do Nonato relacionando-se com todos esses novos personagens! E a parceria com o Lusa deu certo

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    desde o incio. Alm de extremamente criativo e sensacional para dilogos, o Lusa ainda apre-sentava a enorme qualidade da generosidade, de no ser ciumento de suas invenes. Escreva-mos como possessos, cada um em seu escritrio, comunicando-nos pela internet. E, alm disso, eu trocava idias diariamente com a Cludia da Natividade (minha scia na produtora e na vida), que colaborava enormemente com comentrios e sugestes criativas.

    Desde os primeiros encontros com o Lusa, es-tabelecemos que Estmago seria uma ode gastronomia, mas no quela refinada e culta, tpica dos filmes internacionais sobre o assunto: o que nos interessava era a baixa-gastronomia, a culinria de boteco. Em geral, os filmes gastro-nmicos falam de alta cozinha. Basta lembrar de Vatel, Como gua para Chocolate, Simplesmente Martha, ou A Festa de Babette. Mesmo O Cozi-nheiro, O Ladro, Sua Mulher e o Amante (talvez aquele que, dentre os de tema culinrio, mais tem a ver com o Estmago) abordam o tema a partir de um restaurante fino. No Estmago, o que queramos era mostrar a beleza dos pratos populares, e a preparao deles em ambientes, como freqentemente acontece, precrios. Mesmo assim, queramos que o filme deixasse o pblico com fome.

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    Uma questo com que nos deparamos logo no incio e sobre a qual estivemos imediatamente de acordo foi a do uso do palavro. O texto original do Lusa j era recheado de palavres, e isso era lgico, afinal assim que as pessoas falam na cadeia. Sabemos todos que nas cadeias brasilei-ras, especialmente nas celas coletivas, nunca vo parar os representantes da elite letrada de nossa sociedade. Cadeia, ento, no um lugar onde as pessoas pedem por favor ou cuidam para que seu linguajar seja polido. O que nos surpreendeu durante o processo de criao foi descobrir que tambm nas cozinhas a coisa no diferente! Tambm as cozinhas so ambientes tensos, fre-qentemente competitivos, e em que no se est a pensar na elegncia do linguajar enquanto o peixe est queimando. Ento, em funo do rea-lismo que queramos, nosso roteiro tem dezenas, talvez centenas de palavres, mas nenhum que no esteja plenamente justificado pelo realismo do que narramos. Sempre estivemos conscien-tes de que essa postura apresentava o risco de no ser bem entendida, especialmente porque sabemos que existe um preconceito difuso em relao ao uso do palavro no cinema brasileiro (herdado dos tempos da pornochanchada que, efetivamente, tendia a abusar do palavro nos dilogos). Bem, decidimos ousar e at tentamos ser irnicos com isso: um dos offs de Nonato

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    ironiza o prprio uso dos palavres no filme, quando ele dubla, com sua voz, os comentrios chulos dos outros presos para sua comida. E o efeito muito engraado!

    Enquanto escrevamos ramos muito, o que era timo pois estvamos querendo fazer o pblico rir tambm. Mas, como na grande tradio da comdia italiana (por mim adorada e qual certamente este filme se filia), sob a aparncia de um tema ameno e trivial, o que se buscava era lanar um olhar crtico sobre a realidade brasileira, e fazer rir, sim, mas tambm emocio-nar e refletir ao mesmo tempo. Um fato muito importante a ser destacado sobre o Estmago que, apesar de sua aparncia fabulosa (no sen-tido de fbula), trata-se de um filme bastante realista, especialmente no que se refere vida dos protagonistas. A histria completamente inventada, mas poderia ter acontecido. E o re-levante, ao afirmar isso, que com Estmago procuramos escrever um roteiro que falasse da vida dos miserveis de maneira no paternalista (coisa bastante comum no cinema brasileiro, desde sempre). Mesmo os muito pobres riem, se divertem juntos, fazem piadas, gozam. Nem tudo so lgrimas e sofrimentos na vida dos que sofrem e choram. E a culinria certamente um dos poucos prazeres acessveis a quase todos,

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    inclusive aos pobres. Alis, a culinria a nica forma de arte acessvel a quase todos (menos aos que passam fome, bvio).

    Esse olhar crtico, s vezes cnico e cido, esteve presente desde a primeira verso do roteiro: Nonato primeiro praticamente encarcerado pelo dono de um boteco, onde trabalha em troca de comida e moradia, no tendo sequer direito a salrio; mais tarde, vai trabalhar - com bem mais dignidade, verdade - para o dono de um restaurante italiano, cujo carter brincalho no esconde, no entanto, o preconceito que o faz referir-se a Nonato s vezes como paraba, s vezes como cearense, muito embora Nonato afirme, vrias vezes, no vir nem de um nem de outro desses lugares. Estes preconceitos no so o tema do filme, mas esto l, evidentes, para que se reflita sobre eles. E para que se ria, tam-bm, claro, j que o riso inteligente a melhor forma de crtica que se conhece.

    Estmago acompanha a trajetria do protago-nista em seu aprendizado do sistema. E o faz de maneira um pouco cruel. Ningum nota, bvio, mas, desde a primeira verso do roteiro, tnha-mos planejado que o filme comeasse na boca do protagonista e acabasse em seu traseiro, assim como o sistema digestivo, que transforma tudo, todas as delcias que preparamos e comemos, em

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    excrementos. O percurso de Nonato pela histria do filme refaz o percurso da comida em nosso corpo. Alm de um filme divertido, queramos que as pessoas vissem no Estmago tambm a metfora de uma sociedade que, com seus me-canismos de poder, acaba degradando o talento (no caso de Nonato, o talento culinrio) e o amor (claramente representado pela ria), e mudando as posturas ticas. No uma metfora sutil, concordo, mas acho que isto no a faz menos potica ou menos verdadeira.

    Ainda antes de comear a escrever o roteiro pro-priamente dito, enquanto trabalhvamos com a escaleta (uma lista de cenas), surgiu a idia de misturar o tempo de antes com o tempo da cadeia, fazendo com que as duas fases da histria (que eram praticamente duas histrias diferentes, mas com o mesmo personagem) in-teragissem entre si, completando-se. Logo perce-bemos que essa estrutura, apesar de complicada de lidar, apresentava ainda a grande vantagem de permitir que as duas histrias se precipitassem juntas em direo a um granfinale. Mas qual?

    Depois de algumas semanas escrevendo, o rotei-ro tomava forma e ficava cada vez mais consis-tente, mas o final do filme no saa. O final do conto original e todos os outros finais que eu e o Lusa pensramos eram fracos para dar conta

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    do suspense que vnhamos criando com a supres-so do porqu do Nonato estar na cadeia. Uma noite, chego em casa e comento com a Cludia o impasse. Ela me sugere ento um final fortssi-mo, surpreendente. Na mesma hora vacilei, disse que no dava, que era demais para a histria, que no podamos acabar o filme assim... No dia seguinte, em meu escritrio, revi meu ponto de vista, lembrei-me do Manifesto Antropofgico de Oswald de Andrade (s a antropofagia nos une) e vi que o final sugerido por Cludia era mesmo perfeito, e completamente coerente com a histria que estvamos criando. Liguei para o Lusa e contei a sugesto da Cludia. O Lusa reagiu exatamente como eu, no dia anterior: que no dava, que era demais, que no poda-mos, etc. No entanto, naquela mesma tarde ele me ligou, tendo cado em si: o final era aquele, obviamente. E foi.

    O ttulo do filme tambm tem sua histria. O ttulo do conto (Presos pelo Estmago) no dava mais conta da histria, que fora bem alm da cadeia, e o primeiro nome do projeto foi Uma Histria Gastronmica. Mas o nome ainda no nos convencia completamente, precisvamos de um ttulo mais forte, que fosse compatvel com as tonalidades da histria que estvamos escrevendo. A surgiu Estmago, simplesmente.

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    No foi de aceitao imediata. Estmago nos falava obviamente da digesto, mas tambm de todas as metforas relacionadas ao rgo: soco no estmago, ter estmago para enfrentar uma situao, dor de estmago... Numa rpida pesquisa me surpreendi que, depois de mais de cem anos de histria do cinema, ningum tives-se tido a coragem de usar este substantivo to comum como ttulo de um filme. Talvez pelas contra-indicaes, que so muitas, e que os dis-tribuidores no se cansam de me lembrar. Mas o ttulo Estmago refletia bem a visceralidade da histria e acabou prevalecendo. O curioso que o ttulo vem prevalecendo tambm no exte-rior. Neste momento em que escrevo, o filme j foi lanado comercialmente em alguns pases e neles o ttulo adotado foi Estmago, seguido do sub-ttulo Uma Histria Gastronmica traduzido para a lngua do pas.

    A primeira verso do roteiro foi escrita muito rapidamente, em cerca de 30 dias, pois tnhamos uma data final para participarmos de um con-curso. E nela j estavam presentes todos os ele-mentos fundamentais que acabariam no filme. Mas, depois disso, o roteiro passou por muitas revises, muitas mesmo, mais ou menos umas dez. Nunca deixamos de trabalhar nele. As fases mais significativas dessas revises foram durante

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    a pr-produo, em que recolhemos as suges-tes de alguns colaboradores valiosos, como as do escritor Luis Mendes (que passou mais de 30 anos preso) e as do script-doctor Gualberto Ferrari; durante os ensaios, em que os atores deram muitas idias, especialmente quanto aos dilogos (Joo Miguel, Fabiula Nascimento e Babu Santana certamente merecem crdito por alguns achados belssimos); durante a prpria filmagem, pois chegamos a escrever uma cena numa noite e film-la no dia seguinte; durante a montagem (muitas das cenas acabam bem antes do que tnhamos escrito, e funcionam bem melhor assim, compreenso obtida graas ao excepcional trabalho do montador, Luca Alver-di); e at durante a finalizao do som, quando reescrevemos os offs do Nonato, e fizemos a adaptao dos dilogos para a verso italiana do filme, com a valiosa colaborao do Fabrizio Donvito. Um trabalho, mas que, estou certo, valeu a pena para todos os envolvidos.

    A verso que vocs vo ler neste livro aquela que serviu-nos de guia durante as filmagens. Difere bastante da verso final do filme: o filme mais curto (uma vez montada, a verso pre-sente neste roteiro durava 40 minutos a mais) e algumas alteraes significativas aconteceram tambm em relao ordem em que as cenas

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    aparecem [montar , de certa forma, reescrever o roteiro, mas podendo utilizar somente as pala-vras j filmadas.] Para facilitar a compreenso de quem l o roteiro tendo em vista o filme, escrevi algumas breves notas que explicam o como e o porqu dessas diferenas.

    Imagino que, se voc est lendo este livro, porque tenha gostado do filme e tenha tido prazer em assisti-lo. Partindo desse pressuposto, desejo que voc tenha, ao l-lo, um vlido com-plemento ao prazer que teve ao v-lo, e que este seja parecido com o que tivemos ao escrev-lo e realiz-lo.

    Marcos Jorge

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    TELA PRETA:

    NONATO (O.S.)Gor-gon-zo-la! O queijo Gorgonzola tem esse nome por causa da cidade l onde ele foi inventado, nas Itlia, ali perto dos Estados Unido.

    1. INT. CELA - DIA

    FADE IN:

    Detalhe dos dentes de um homem falando. A cmera lentamente vai abrindo e mostrando um homem de mais ou menos trinta e cinco anos, que fala diretamente para a cmera, tendo ao fundo uma parede de concreto, ve-lha e suja. Ele continua a fala iniciada ainda na tela preta:

    NONATOO Gorgonzola foi um dos primeiros quei-jo a ser inventado. Tem uns mil e tantos anos que se inventou esse troo, que teve uma iluminada que chegou, olhou praquele troo meio com as coisa verde parecendo filete de ranho, e falou: quei-jo bo! Queijo bo!

  • 35

    Foi assim, : o vaqueiro volt pr casa depois de ficar andando o dia inteirinho em cima de um cavalo, tocando gado, essas merdas. Claro, o sujeito tinha que levar leite pra casa, que a patroa daque-la poca tambm enchia o saco pra le-var comida na volta do trabalho. Vinha ele - pocot pocot - com uma bolsa dessas de couro cheia de leite nas costa, e chegando em casa, desce do cavalo, pendura a bolsa na varanda - e vai guar-dar o cavalo.S que nessa, ele tchum: entra em casa e esquece o saco com a porra do leite pra fora. Vira a noite, e o leite coalha, l, pendurado. No outro dia, a mulher v o saco pendurado e fica bem puta: essa merda vai ficar pendurada at ele tirar, onde j se viu?Bom, o cabra volta no fim do dia, e vendo que a mulher no recolheu a bolsa, em-putece tambm e larga aquele troo l: que se foda! Vira mais um dia, solo em cima, imagina s que bosta que ficou. A mulher - naquele tempo a mulher era menos teimosa - vendo que o marido no ia arredar um dedo pra tirar a bol-sa de l, foi jogar tudo no lixo, que mil anos atrs era em qualquer lugar, me-nos pendurado na varanda. Ento, me

  • 36

    acompanhe: a mulher curiosa pra ca-cete, isso todo mundo sabe. Pois a mu-lher do vaqueiro encasquetou de olhar l dentro, e viu que o leite tinha vira-do queijo. Cheiro esquisito, mas era um queijo. Pegou um pozinho, uma faca, tirou um lasco do queijo e botou no po pra comer. Gostou! Meio manteigo... Gosto bem forte, coisa de macho mes-mo. Porque o gorgonzola queijo de macho. Tem at uma variao do Gor-gonzola, mas feito pelos francs - aque-le povo que gosta duma putaria - chama Roqueforde, mas mais frouxo no gos-to que o Gorgonzola. Ihh, tem pizza de gorgonzola, tem sanduche, tem sobre-mesa, tem macarro com gorgonzola...

    Nonato interrompido por outro homem, Bu-ji, um negro forte, que entendemos era o des-tinatrio do que acabamos de ouvir de Nonato.

    BUJIAlecrim, esse gorgonzola pode ser o queijo do caralho que for, pode fazer o que quiser com essa merda, pode fazer macarro, pode fazer pizza... Faz o que te der nessa cabea chata que voc trou-xe l da Paraba...

  • A cmera revela onde se d a conversa destes dois homens: uma cela da penitenciria. Num espao reduzido amontoam-se oito homens, al-guns sentados no cho e alguns poucos em be-liches. Os homens esto todos prestando aten-o na discusso entre Nonato e Buji.

    BUJI...mas esta merda no vai dormir aqui dentro nem fudendo...

    CORTA PARA O TTULO DO FILME:

    ESTMAGO

  • 2. INT. RODOVIRIA - NOITE

    De um nibus coberto de poeira esto descen-do vrias pessoas, aparentando cansao por aquela que parece ter sido uma viagem extre-mamente comprida. Muitos homens, muitas mulheres carregando crianas no colo.

    NONATO (V.O.)Primeiro, Raimundo Nonato foi um san-to: So Raimundo Nonato. Depois, virou nome de cidade l no Nordeste, em ho-menagem a esse mesmo Santo, n. De-pois, virou nome de um monte de crian-a, porque na hora que o parto dificulta,

  • 41

    a mulher pede ajuda: Meu So Raimun-do Nonato, se essa criana nascer boa de sade, dou o nome do senhor. Assim fez minha me. Raimundo Nonato... eu.

    Nota: Este voice over, reescrito depois de ter-minada a montagem, foi movido para a cena 4. O texto dito pelo Nonato ficou assim: Primeiro, Raimundo Nonato foi um santo: So Raimundo Nonato. Quando ele tava pra nascer, em cima da hora mesmo, a me dele morreu. A sorte que os mdico daquela poca era bem melhor que os de hoje... No puro, um mdico enfiou a faca na barriga da mulher morta e tirou o menino de l. Vivo! Depois desse milagre virou costume: qualquer um que nasce de parto assim mais difi-cultoso pega o nome do Santo. Foi o que sucedeu comigo. Raimundo Nonato. eu!

    Entre eles, desce do nibus nosso protagonis-ta Raimundo Nonato. Tem o olhar perdido. Na mo, um pedacinho de papel, um tquete de bagagem.Nonato espera pacientemente na fila enquan-to o atendente entrega a bagagem para os outros passageiros. Finalmente, o rapaz tira de dentro do bagageiro do nibus uma velha ma-linha, amarrada com barbante, e, fazendo cara

  • 45

    de nojo, confere o tquete e entrega a malinha para Nonato. Nonato no faz caso ao atenden-te, apanha sua malinha e sai.Nonato atravessa o corredor lotado da rodovi-ria. Muitos mendigos esto ali, se preparando para dormir.Nonato pra em frente a uma lanchonete ven-do algumas pessoas que jantam l dentro.Nonato pra em frente a um pipoqueiro e ob-serva as pipocas atrs do vidro.

    3. EXTERIORES DE METRPOLE - NOITE

    Raimundo Nonato vaga a esmo pelas ruas de uma grande metrpole, andando da rodoviria at seu centro histrico, passando por viadutos, tneis, arranha-cus, e tropeando em mendi-gos que dormem nas ruas. Sobre estas imagens, a primeira parte dos crdi-tos iniciais do filme.

    Nota: Nesta seqncia aparecem somente os nomes dos atores. Os crditos iniciais sero completados pouco mais frente, numa outra seqncia filmada especialmente para isso.

  • 46

    4. EXT. BOTECO - NOITE

    Depois de muito caminhar, Nonato se depara com um boteco onde se encontram alguns pou-cos homens, bebendo. Nonato entra.

    5. INT. BOTECO - NOITE

    Nonato se aproxima do balco, apia a malinha no cho e senta-se numa banqueta.O dono do bar, Zulmiro, um homem de aparen-tes 50 anos, se aproxima de Nonato e pergunta:

    ZULMIROVai o qu?

    NONATOUm... Copo dgua, por favor.

    O homem faz cara de m vontade, mas mes-mo assim abre a torneira e enche um copo com gua.Nonato toma um gole e observa o boteco ao seu redor. Sobre o balco uma vitrininha de sal-gadinhos, com dentro uma lingia frita e duas coxinhas, com aparncia terrvel. Nonato olha para os salgadinhos, faz uma cara faminta e pergunta para o dono do bar:

  • 47

    NONATOPode me dar estas coxinhas, por favor?

    Nonato come com voracidade as coxinhas e ador-mece com a cabea apoiada sobre o balco.

    FADE OUT:FADE IN:

    6. INT. BOTECO - NOITE

    Os ltimos freqentadores do boteco, bbados, saem pela porta, acompanhados por Zulmiro. Zulmiro fecha duas das trs portas de metal que do para o exterior e voltando-se para Nonato, ainda adormentado, bate as mos e fala:

    ZULMIROTou fechando, d licena?

    Nonato acorda espantado, pega a malinha e, cambaleante, se dirige para a porta de sada.

    NONATOClaro, desculpa.

    Mas Zulmiro o intercepta, bem antes que che-gue perto da soleira da porta:

  • 48

    ZULMIRONo t esquecendo nada, no?

    NONATOAh, sim, desculpe.

    ZULMIRO trs real.

    Nonato faz cara de pena, pe as mos no bol-so procurando alguma coisa mas no encontra nada. Ento fala, embaraado:

    NONATONo tenho dinheiro, no senhor.

    ZULMIROIhhh, j vi tudo.

    NONATO que eu tava com fome.

    ZULMIROSei... Mas como faz, ento? Sim, porque de graa, no d.

    O dono do boteco aproxima-se ento do bal-co, apanha um grande porrete, e com ele em punho passa a falar com Nonato.

  • 49

    ZULMIRONo t aqui pr sustent vagabundo.

    NONATOEu podia faz alguma coisa.

    ZULMIROO que c sabe faz?

    NONATONis faz de tudo um pouco...

    Zulmiro pensa um pouco.

    ZULMIROTem uns prato a pr lav... C lava?

    NONATOT bom.

    ZULMIROVamo l, ento. V te mostr a cozinha.

    Zulmiro acompanha Nonato at a entrada da cozinha e abre a cortininha de um passa-prato:

    ZULMIRO essa a a cozinha.

  • 50

    NONATO (baixinho)Vixe. Mas que catinga da porra...

    ZULMIROQue foi?

    NONATONo nada, no... que eu v demor a noite toda para limpar tudo isso a. E o senhor t indo, n...

    ZULMIRONo... eu no vou longe no. Durmo aqui em cima.

    NONATO que eu no quero atrapalhar, eu volto amanh...

    ZULMIRONo seja por isso. Voc lava tudo, e de-pois de acabar, tudo bem: dorme ali na-quele quartinho.

    Zulmiro aponta, com o porrete, uma portinha no fundo da cozinha.

    Nonato no esconde sua surpresa e estampa no rosto um sorriso de satisfao:

  • 51

    NONATOPode?

    Zulmiro percebe o sorriso nos lbios de Nonato e se aproveita:

    ZULMIROPode. Mas o seguinte, querido: s os pratos no d. pouco. Dupla de salgadi-nho, e mais a hospedagem... Voc vai ter que lavar os prato e o cho da cozinha.

    NONATOT justo.

    Zulmiro se encaminha para a sada e antes de abrir a porta basculante, fala:

    ZULMIROMas olha l, t de olho, hem! Primeira barulhada, deso.

    NONATONo, sossegado, vai, boa noite.

    ZULMIROComo teu nome?

    NONATORaimundo Nonato.

  • 52

    ZULMIROZulmiro.

    Ele cumprimenta Nonato e sai pela porta, fe-chando-a atrs de si, com estrondo. Ouvimos o som da porta sendo trancada, por fora.

    7. INT. COZINHA DO BOTECO NOITE

    Nota: Esta cena foi cortada, para acelerar o ritmo inicial do filme. Deste modo, a conexo entre a cena anterior e a seguinte no se deu mais, como planejramos no roteiro, entre a fala de Nonato (tu ferro) e o som do ferrolho da priso se abrindo, mas entre o som da porta do boteco sendo fechada por Zulmiro e o som do ferrolho da priso sendo aberto pelo carcereiro.

    Nonato entra na cozinha: um cmodo estreito e escuro. Trata-se de um lugar deplorvel. O fo-go, a gs, daqueles industriais, mas extrema-mente velho, enferrujado e preto de sujeira. As panelas so incrivelmente amassadas e enegre-cidas pela fuligem. Por todos os lados, pratos, talheres e copos sujos.Mesmo assim com felicidade no rosto que No-nato olha para aquela cozinha suja:

  • NONATOCaralho, o cara chega na cidade sem nem merda no c pr cag e j arran-ja comida e casa pr dormi. Raimundo Nonato, tu ferro...

    8. INT. CORREDORES DA PENITENCIRIA - DIA

    Uma pesada grade de ferro se abre e deixa entrar Raimundo Nonato, acompanhado por um carcereiro.

    Eles atravessam lentamente o comprido corre-dor da priso.

  • NONATO (V.O.)Raimundo Nonato era aaaaaaannntes, quando eu cheguei na cidade. Aqui na cana tem que ter outro nome. Raimun-do Nonato no vai funcionar aqui. Eu vou ter que arrumar um nome mais de cadeia mesmo.

    Raimundo Nonato e o carcereiro passam em frente a uma srie de portas, por onde apa-recem, amontoados, rostos de prisioneiros. Os prisioneiros olham curiosos e um pouco agres-sivos para Nonato, enquanto este devolve os olhares, estarrecido.

  • NONATO (V.O.)Nada de Al, Pedrinho, Chico, Jnior, es-ses nome de escoteiro. Nome de bandido Gatilho, Catorze, U, Mo Santa. No-nato, o..., o.... Cozinheiro! No, depois da merda que eu fiz, tem que ser um nome mais de hme do cangao. Nona-to... o Canivete. Nonato Canivete. eu.

    O carcereiro segura Raimundo Nonato pelo brao e faz com que pare. O homem escolhe uma chave do molho que tem na cintura e abre a grade da cela.

  • 57

    VAGNO CARCEREIROEntra.

    O carcereiro comea a fechar a porta, e fala, irnico:

    VAGNO CARCEREIRODepois eu volto pra mostrar como fun-ciona a hidromasssagem, viu?

    Nonato praticamente jogado para o interior da cela. A porta se fecha, com enorme estron-do, atrs dele.

    9. INT. COZINHA DO BOTECO NOITE

    Nota: Esta cena foi cortada, por motivos de rit-mo narrativo.

    Nonato abre a porta do quartinho e v, dentro do cmodo pouco maior que um armrio, por entre vassouras e baldes, um pequeno colcho. Atrs de Nonato, a cozinha do boteco, j dife-rente de como a vramos anteriormente: os co-pos, pratos e utenslios esto lavados e secos, enquanto as panelas, embora amassadas, bri-lham de limpas.

  • 58

    Nonato entra, tira os sapatos, apaga a luz e se deixa cair sobre o colcho. Um rato atraves-sa o cmodo, perto da parede, e se esconde num canto.

    10. INT. CELA - DIA

    Raimundo Nonato olha para a cela onde acaba de ser recluso. Num espao reduzido amonto-am-se oito homens. Muitos sentados no cho mesmo, enquanto trs, privilegiados, ocupam as camas sobrepostas de um treliche.Alm de alojar oito homens onde deveriam estar trs, a cela ainda tem um ocupante (ou ser visitante): um gato. Que caminha por ali, aparentemente sem dono. Os homens no do muita confiana para Nonato. Tratam-no como mais um intruso, mais um para ocupar o espao escasso. Nonato d um passo, mas l do alto do terceiro beliche um negro corpu-lento, Buji, o interpela:

    BUJIO sapato, parmalat.

    NONATOQu?

  • BUJITira o sapato, porra. Tua me no te deu educao no?

    Nonato tira o sapato e procura um espao onde alojar-se, mas a cela parece totalmente ocupa-da, os homens no deixam nenhum espao para um novo habitante. Nenhum espao, vrgula: bem ao lado da latrina (latrina licena poti-ca, na verdade trata-se de um buraco no cho e uma garrafa de plstico com uma cordinha pra tapar o tal buraco quando fora de uso), um bom metro quadrado avana, vazio. ali que acaba por instalar-se Raimundo Nonato.

  • 11. INT. CELA CREPUSCULO

    Nota: Esta a nica cena prevista em roteiro que no conseguimos filmar. Foi substituda por uma vista do ptio da penitenciria de noite.

    O sol se pe, atravs das grades.

    12. INT. CELA NOITE

    Nota: Esta cena foi cortada, para diminuir a durao do filme.

  • 62

    Cai a noite e chega o jantar.

    Os prisioneiros se animam e vo receber a rao do grupo. Alguns vasilhames so passados para fora da cela e cheios de comida so colocados em um armrio improvisado. Arroz, feijo e al-guns pedaos de algo que parece ser um primo distante do frango.Os homens fazem fila. Nonato, como recm-che-gado, naturalmente o ltimo dela, mas tam-bm ele recebe sua poro de alimento, se que se pode chamar de alimento aquela gororoba.Nonato, ao ver a parte que lhe cabe, faz uma cara de nojo. Mas, olhando para os homens em volta, percebe que nenhum deles rejeita a comida. Pelo contrrio, esto todos muito silenciosos e devoram sofregamente a rao que lhes cabe.Nonato, com cara de fazer o qu?, come tambm sua rao, esvaziando completamente o prato.

    13. INT. CELA - NOITE

    Os prisioneiros dormem. Nonato no. Gira-se para o lado e se depara com Seqestro, um dos prisioneiros, que olha fixamente para ele. No-nato muda de posio, ficando numa posio esquisita: com a bunda virada para a parede.

  • 64

    14. INT. COZINHA DO BOTECO - DIA

    Nonato dorme, no quartinho atrs do boteco. Dorme numa posio esquisita, pois a cama muito pequena e no lhe permite alongar-se nela. A posio em que dorme lembra aquela adotada na cela, na cena anterior.Sob a cama, um rato vasculha os sapatos de Nonato. Ouvem-se fortes batidas na portinho-la do quarto.

    ZULMIRO (V.O.) faxina!

    Nonato abre os olhos, um pouco assustado. Mas logo se recupera do sono e responde:

    NONATOPronto, pronto.

    Nonato se levanta. Sai pela porta do quartinho e se depara com o dono do boteco, na entrada da cozinha. Ele est com o porrete na mo, mas olha satisfeito para a cozinha limpa.

    ZULMIROAt que ficou decente, essa cozinha. E cozinhar, c sabe?

  • 65

    NONATOAlguma coisinha, um arrumadinho as-sim, eu me viro...

    ZULMIROVou abrir o bar. Vai adiantando o ser-vio, fazendo uma massa de pastel a. Sabe fazer pastel?

    NONATONo.

    ZULMIROQuer aprender?

    NONATOQuero.

    ZULMIROLava as mo, tira essas coisa da mesa e pega um quilo mais ou menos de fari-nha l no armrio que eu j volto.

    NONATOT bom.

    Segue-se uma seqncia de vrios planos em que se detalha a preparao dos pastis. Nes-te momento, Nonato descobre, maravilhado, possuir um talento at ento desconhecido: ele tem mo boa para a cozinha.

  • 70

    Sobre estas imagens, a segunda parte dos crdi-tos inicias do filme.

    Nota: Sobre estas imagens, aparecem os nomes da equipe tcnica. Trata-se de algo incomum, a diviso dos crditos de um filme em duas partes. O efeito que se queria obter o de um novo comeo para o filme, que coincidisse com o novo comeo que a vida de Nonato est conhecendo naquele momento em que descobre seu talento.

    Nonato pega um pouco de farinha e coloca so-bre a mesa, formando um pequeno monte. Faz uma cavidade no pice do montinho e ali colo-ca um pouco de gua. Mistura a gua com a fa-rinha, acrescenta um pouco de azeite e cacha-a, e salga a mistura. Nonato abre a geladeira e procura um pouco de carne moda. Encontra. Encontra tambm, no armrio, algumas cebolas, corta-as em fatias finas e coloca numa panela com azeite. Junta a carne e deixa cozinhando.Durante algum tempo remexe na cozinha at encontrar um rolo de madeira. Este rolo meio quebrado, mas ainda serve para o que foi pro-jetado. Com ele, estica e amassa seguidamente a mistura, at que a consistncia fique certa.Estica a massa sobre a mesa e a corta em pe-daos quadrados. A este ponto a carne j ficou pronta e ele prepara os pastis.

  • Numa grande frigideira cheia de um azeite enegrecido Nonato joga os pastis, que chiam ao contato com a gordura quente.Zulmiro experimenta um dos pastis feitos por Nonato. Com cara satisfeita, acena positiva-mente para o neocozinheiro.

    ZULMIROAt que t mais ou menos, este pastel. Voc pode ficar por aqui, ajudando na cozinha. Se quiser.

    NONATOPode?

    ZULMIROPode. E dorme no quartinho.

    NONATOE, desculpa, quanto que eu ganho?

    ZULMIRONo entendi. Ganhar? Voc t pensando o qu, na cidade no assim no...

    NONATOCom sua licena? Olhe, comi ontem, lim-pei ontem: t quites. Agora, cozinhar hoje, tem que ver salrio, isso tudo.

    71

  • ZULMIROPorra, o cara mal chegou da roa, qu salrio, benefcio e o caralho a quatro.

    NONATONo, que...

    ZULMIROFodido, cagado, olha o fedor do cara, fedido...

    NONATO que o senhor no viu o quarto...

    ZULMIROCala a boca! D licena? Quem t falan-do? Eu! Eu, que tenho onde dormir! E quem t ouvindo? Voc, que no tem onde cair morto! Seguinte: te dou comi-da e casa. Rango e teto. Quer, quer. No quer, rua.

    NONATOEnto, fico.

    ZULMIROComo mesmo teu nome?

    NONATORaimundo Nonato.

    73

  • 75

    ZULMIRONonato, vai fritando a os pastis que vou atender os fregueses.

    Zulmiro sai da cozinha. Nonato joga mais pas-tis na frigideira e a cmera fecha neles.

    15. INT. COZINHA DO BOTECO - NOITE

    Sem corte, a cmera abre a partir dos pastis fritando e enquadra Nonato, trabalhando, aca-bando de preparar coxinhas.A cozinha encontra-se no mesmo estado em que a conhecramos, ou seja, lamentvel (e limpa), mas Nonato parece um pouco mudado. Move-se com extrema desenvoltura no espa-o reduzido, encontrando rapidamente tudo o que precisa. Outra novidade, que estabelece que algum tempo passou desde a cena anterior, que Nonato agora veste um quepe branco. claramente o cozinheiro do lugar. De fato, est suando em bicas, pelo visto j faz tempo que est ali, cozinhando.Nonato tira os pastis da frigideira e joga den-tro dela algumas coxinhas cruas. Pela porta en-tra Zulmiro, vestido bem melhor de quando o vramos pela primeira vez. Ele est afobado:

  • 76

    ZULMIRONonato, as coxinhas. To prontas, como que t, j to prontas?

    NONATOTo saindo, to saindo!

    ZULMIROApressa, porra, que o povo t enchendo o saco!

    E Zulmiro volta para o bar, de onde ouvimos um barulho intenso.Nonato tira da panela de fritura uma boa quantidade de coxinhas e coloca-as sobre uma peneira de metal, para que percam um pouco do leo. Em seguida, coloca as coxinhas numa bandeja de alumnio e sai da cozinha.

    16. INT. BOTECO - NOITE

    Nonato se aproxima do balco do bar. O bo-teco, embora seja o mesmo que vramos nas cenas anteriores, sofreu uma radical mudan-a: est lotado de pessoas. E de pessoas mui-to diferentes entre si. Alm dos costumeiros freqentadores, gente pobre das vizinhanas da rodoviria (operrios, prostitutas, desem-pregados), encontram-se agora entre os clien-

  • 77

    tes gente um pouco rara por aquelas bandas: estudantes, intelectuais. Alguns engravatados at parecem polticos...Zulmiro se aproxima de Nonato e apanha me-tade das coxinhas que este trouxe na bandeja de alumnio.Zulmiro sai servindo as coxinhas pelas mesas cheias enquanto Nonato coloca as restantes na vitrininha do balco.Ao balco esto sentadas diversas pessoas, em banquetas de madeira. Entra pela porta uma mulher daquelas que chamam a ateno pela aparncia. Ela uma mulher jovem, de pouco mais de vinte anos, rosto e corpo rechonchudos mas agradveis ao olhar. Est coberta com um vestido curtssimo e muito decotado, vermelho, e seu rosto est bastante maquiado.Ela senta na frente do Nonato, enquanto ele agora est lavando os copos naquele utenslio tpico de boteco, de plstico, onde o copo sujo inserido dentro de uma escova em movimen-tos ritmados, e de l sai lavado. Ela puxa papo:

    RIAQue vero de bosta, n?

    Nonato sorri sem graa e, desconfortvel, passa a lavar os copos mais rpido, pondo e tirando copos de dentro do utenslio com a escova. ria v que o papo no flui.

  • 79

    RIAEssa coxinha, t boa?

    NONATOT boa sim, fiz hoje.

    RIAJoga uma na minha.

    NONATOComo faz?

    RIAMe d uma, hme.

    Nonato a serve. Ela morde a coxinha, e fala:

    RIAPorra, que puta coxinha! Foi voc mes-mo que fez?

    NONATOEu sim senhora.

    RIAIh, olha o cara, me chamando de senho-ra. Prazer, ria.

    Nonato limpa a mo no avental e cumprimen-ta ria.

  • 80

    NONATORaimundo Nonato.

    RIANo lembro de voc aqui antes.

    NONATO que faz um ms, mais ou menos, que eu t no bar.

    RIAEsse boteco mudou, viu. Antes s dava mosca e bbado. Agora, tem mosca, b-bado e coxinha. D outra?

    Nonato pega outra coxinha, entrega para ria e volta a lavar mais copos no utenslio de cozinha.

    RIAPuta, essa coxinha t de com gozando. Olha, Raimundo Nonato, se eu soubesse cozinhar assim, tava noutra vida. Com certeza.

    NONATOA senhora no sabe cozinhar nada?

    RIAUmas besteirinhas, s. Ovo, queijo quen-te, ch...

  • 81

    NONATOIh, no d pr cas, ento.

    RIAFoda-se. No sei cozinh, mas eu adoo-ooro comida. Outro dia vi na televiso, no programa daquela loira do papagaio....

    NONATOO louro, n?

    RIAEsse. Vi no programa da mulher um macarro que a minha cara. Vai to-mate, vai alcaparra, aliche, s coisa boa. C no faz aqui no? Faz um dia, conversa com o dono aqui pra ele ser-vir. Olha, ia juntar de amiga minha pra comer isso, ia sim.

    Ela come o ltimo pedao da coxinha, e conclui, meio mastigando, meio falando junto, a boca mostrando a comida sendo mastigada, a fala saindo enrolada:

    RIAChama macarro a putanesca.

    NONATOPuta vesga?

  • RIAQue puta vesga o qu... PutaNESCA. italiano, no tem nada a ver com puta, no. italiano, chique pr caralho!

    Zulmiro interrompe a conversa, salvando Nonato:

    ZULMIRONonato, deixa de convers. Faz mais co-xinha que t faltando.

    NONATOSua licena, vou ter que voltar pra cozinha.

  • 83

    E falando baixo:

    NONATOOlha, v faz umas coxinha bem fresqui-nha. Eu trago duas pra senhora.

    Nonato se retira em direo da cozinha en-quanto ria o acompanha com o olhar.

    17. EXT. BOTECO NOITE

    Nota: Esta cena foi cortada, por motivos de rit-mo. Perdeu-se um pouco a idia, fortemente pre-sente no roteiro, de que Nonato vivia trancado no boteco, mas ganhou-se agilidade narrativa.

    Zulmiro est fechando a ltima das portas do bar, trancando, como de costume, Nonato l dentro. Mas, antes que ele feche completamen-te a porta, Nonato aparece no vo e fala:

    NONATOPode dar uma volta, seu Zulmiro? Pode?

    ZULMIROT bom. Mas, volta logo que eu t que-rendo dormi.

  • 84

    NONATOClaro, magina, claro, s uma voltinha, seu Zulmiro.

    Nonato sai andando, mas Zulmiro pensa um pouco e o detm:

    ZULMIROEi, Nonato, sabe de uma coisa? Fica com a chave e na volta tranca tudo direiti-nho. E juzo, heim.

    Zulmiro fecha a porta e estende a chave para Nonato. Nonato apanha a chave e agradece.

    NONATOObrigado, Seu Zulmiro.

    Nonato sai andando pela rua desolada.

    18. EXT. RUA DE PROSTITUIO NOITE

    Nota: Esta cena foi cortada para diminuir a du-rao do filme e aumentar o ritmo narrativo.

    Nonato caminha pelas ruas. Um nibus passa fa-zendo um grande barulho. No passam muitos

  • 85

    carros, o que certamente se deve ao avanado da hora. Quase todas as portas esto fechadas e pouqussimas pessoas andam por ali.Perto de uma esquina Nonato enxerga, ao lon-ge, um grupo de mulheres. Pelo comportamen-to e pela hora evidente tratar-se de prostitu-tas. Nonato continua sua caminhada e ao pas-sar por elas, ria o reconhece.

    RIA, voc!?

    Nonato reage de maneira um pouco violenta, mas logo a reconhece.

    NONATOQue tem?

    RIA, voc aquele um que trabalha l no boteco, o que faz a coxinha, n no?

    NONATOO da coxinha, eu.

    RIAEscuta, c fez aquele macarro que eu te pedi?

  • NONATOO da Nesca? Fiz no. Seu Zulmiro meio que embaou.

    RIAEmbaou meu putanesca. Mas coxinha servia; uma coxinha agora, fim do expe-diente, ia cair bem.

    NONATOBo, aqui no tem. Mas tem l no bar, quer?

  • 88

    19. INT. COZINHA DO BOTECO - NOITE

    Na cozinha do boteco encontra-se ria, comple-tamente nua. Ela est procurando alguma coisa na geladeira e seu corpo iluminado unicamen-te pela plida luz que escapa de dentro da ge-ladeira. Revira as prateleiras e compartimentos dentro de eletrodomstico, e demonstra sentir o frio que escapa pela porta aberta.Finalmente, encontra o que estava procurando: numa pequena bacia esto algumas coxinhas, as poucas que sobraram.ria comea a com-las com apetite. Mas algo ainda est faltando: ela recomea a procura.Num armrio finalmente encontra o que pro-cura: pimenta. Mas ao apanhar o vidrinho ver-melho esbarra numa panela que cai no cho, fazendo um grande barulho.Do andar de cima ouve-se o movimento de pas-sos e a voz de Zulmiro:

    ZULMIRO (O.S.)Quem t a?

    Da portinhola do fundo da cozinha aparece Nonato, vestindo somente uma cueca, e grita para o alto:

    NONATO Seu Zulmiro, eu. Desculpe.

  • E, cochichando, fala para ria:

    NONATOria, entra aqui...

    ria apanha mais umas coxinhas do prato e as leva consigo para dentro do quartinho de No-nato. A porta do quartinho se fecha, atrs dela.

    20. INT. CELA DIA

    Nota: As cenas 20, 21 e 22 foram amalgama-das numa s cena, e o que se narrava atravs da imagem foi rapidamente contado pela

  • 91

    voice over de Nonato. Tal reduo deveu-se a questes de ritmo.

    A porta da cela se abre e entramos na cela jun-to com a comida e o ajudante que a carrega. Nonato est varrendo o cho. Um dos detentos se levanta para apanhar a rao da cela. Come-a a distribuio e percebe-se que o cardpio bife com arroz.O arroz medonho, amarelo e com pequenos pontos escuros, e o bife no vai alm, parecen-do bem pouco convidativo. Sobre estas imagens de comida, o letreiro: TERA-FEIRA.

    21. INT. CELA - DIA

    Nonato est limpando o banheiro quando a porta da cela se abre e o ajudante distribui a comida. V-se com clareza o cardpio do dia: picadinho de carne com arroz. Sobre estas ima-gens de comida, o letreiro: QUARTA-FEIRA.

    22. INT. CELA - DIA

    Nonato est varrendo um canto, a porta da cela se abre e o ajudante distribui a comida: carne moda com arroz. Sobre estas imagens, o letrei-ro: QUINTA-FEIRA.

  • 93

    Nonato come seu prato com sofreguido, como todos os demais na cela.

    NONATO (V.O.)Hoje, carne moda. Ontem foi picadinho de carne e antes de ontem, bife. Quer dizer, aproveitar bem aproveitadim a carne trs dias seguido eles sabe. coi-sa de quem vive o dia a dia da cozinha. Que nem o peixe.

    A cmera se detm na comida, detalhando as texturas. No meio do arroz, alguns bichos.

    NONATO (V.O.)Peixe de dia de sexta, que t certo: o dia que chega no mercado os peixe fres-co. Agora, bicho, no: bicho to-do di-a.

    Mas uma voz interrompe os pensamentos de Nonato: dois detentos conversam:

    BOQUENGAEsta comida t uma merda.

    GUENTAQuer que eu chame o garom proc reclamar?

  • 95

    BOQUENGAO garom no d, n, mas podia trazer de volta aquele outro l que foi pro de Piraquara; lembra aquele de cabelo ruim que cozinhava pra ns?

    GUENTAAquele j Elvis; foi pro saco.

    VALTOEra um filha da puta.

    BOQUENGAMas cozinhava.

    Nonato, que no pudera evitar ouvir a conversa dos dois, ousa interromp-la:

    NONATOSabia que se ponhar um alecrim e pi-menta do reino, melhora?

    Nonato no percebe, mas todos os detentos pa-ram de comer e olham para ele.

    BUJIVoc sabe como faz pra cozinhar?

    NONATOSei. Trabalhava com isso.

  • 96

    BUJISe ns arranjar isso que voc quer, esses troo e a pimenta, voc cozinha?

    NONATOCozinho, u. Mas e fogo?

    BUJITem o brasinha que o outro l usava, cad o brasinha?

    E Buji olha para um dos detentos no beliche de baixo. Este, depressa, responde:

    LINOT seguro. Eu guardei, sabia que era bom de guardar isso.

    BUJIFirmeza, Lino. Amanh dia do qu, dia de servirem o qu?

    E Nonato, sentindo-se mais seguro:

    NONATONo carece de saber. Me arranja um pouco de alho, cebola, alecrim pode ser seco, azeite pra reforgar, queijo ralado sempre bom, sal e pimenta do reino. Isso a e com o que tiv e ns d jeito.

  • 97

    E Buji, com jeito de chefe, fazendo carinho no gato que vimos perambulando pela cela algu-mas cenas atrs:

    BUJI, Lino, aquele na cozinha que voc co-nhece, fala com ele. Arranja esses troo: sal, pimenta, alegrinho...

    NONATOAlecrim.

    BUJIEnto: arranja alecrim e pimenta pro... como mesmo teu nome?

    NONATONonato Canivete.

    Ao ouvir o apelido, todos os detentos caem na gargalhada.

    BUJILino, arranja pro Nonato esse Alecrim, que amanh eu quero comer bem.

    E voltando-se para o Guenta:

    BUJIGuenta? Tu faxina de novo.

  • 98

    GUENTA (baixinho)Porra!

    E completa as ordens, dirigindo-se a Nonato:

    BUJIE voc cozinha.

    E Buji d por encerrada a conversa, voltando a concentrar-se no prato de comida. Nonato sor-ri, satisfeito.Planos dos detentos, um a um, comendo:

    NONATO (V.O.) bom explicar umas coisa de poder aqui nesse xadrez. Esses dois que eu tava con-versando o Guenta e o Boquenga. O Guenta era o faxina, da cheguei, pron-to, virei eu o faxina. O Boquenga no faz nada, nem tomar banho toma. S d palpite. Do lado deles, no canto, tem esse a, quieto, o Seqestro. O nome diz tudo, n? No d papo pra ningum, ento deixa ele quieto. Esse com cara de quem comeu e no gostou o Magro. Coitado, o Magro era mula. No xin-go no; que ele era daqueles que leva tchico na barriga, engole os bagulho pra no pegarem. Fez tanto isso que pe-gou dor de estmago, e veve engolin-

  • do aquelas pastilha branca de azia. Que ele compra do Lino, esse a. O Lino o correria do xadrez; o cara que arranja as coisas pro resto da rapaziada. E cobra, n. Esse fumando e pensando na merda que a vida o Valto. Laranja, ele. Deu merda, ele levanta o dedo e diz: fui eu. E, bom, esse nego suado o dono do laranja, e do xadrez todo.

    Close de Buji enquanto come. A imagem se torna muito lenta. Vemos Buji que engole e mastiga sua comida, enquanto ouvimos os co-mentrios de Nonato:

  • 100

    NONATO (V.O.)Manda nos outros porque faz umas coi-sas que nem sendo bem cruel mesmo a pessoa faz. Buji, o nome dele. Tem celular, tem visita de mulher - e no s a dele no. um sujeito do poder, percebe? Ele sabe convencer as pessoa do que quer, bem dizendo. por causa disso que o xadrez aqui tem poucas pes-soa, enquanto os de l tem pra mais de trinta. Buji. Beliche de cima.

    Enquanto ouvimos a descrio de Nonato, a c-mera vai se aproximando lentamente da boca de Buji, at detalhar seus dentes, mastigando.

    23. INT. BOTECO - NOITE

    Uma indistinta grade metlica, com uma luz azul atrs dela. Lentamente a imagem foca e percebemos tratar-se de um daqueles aparelhos mata-moscas. Uma mosca penetra no interior do aparelho e fulminada por uma fasca. A c-mera se afasta do aparelho e percebemos estar no interior do boteco, cheio de gente. A cmera passeia por entre os freqentadores at aproxi-mar-se de um homem de uns 50 anos, sentado sozinho a uma mesa, tomando uma cerveja e comendo uma coxinha. Trata-se de Giovanni.

  • 101

    NONATO (V.O.)J esse a na mesa o seu Jovani. Ah, esse sim, merecia o beliche de cima, e at uma lanterna pra faze palavra cru-zada quando apaga as luz.

    Nota: Esta voice over foi reescrita aps a mon-tagem, e desenvolveu-se mais a birra de Nonato com os mdicos. Ela ficou assim: Agora, aqui no bar do seu Zulmiro, quem t mandando a minha coxinha. Tem uns mdico que diz que no pode, que fritura. Diz que entope as veia e os caralho... Esses cara mdico ou encanador? Pergunta pro seu Jovani se fritura ruim? Seu Jovani entende tudo de cozinha, moo. Parece at que primeiro inventaro a comida, e depois perguntaro assim e agora, que que a gente faz com isso? e ento inventaro o seu Jovani, pra orientar... Oi ele a. Seu Jovani! Ah, esse sim merecia o beliche de cima, e at uma lanterna pra faze palavra cruzada quando apaga as luz.

    No balco do boteco aparece Nonato, trazen-do comida da cozinha: coxinhas, pastis, outros petiscos. Ele sai de trs do balco e leva uma coxinha pra mesa ao lado da mesa onde est Giovanni. Quando Nonato passa por ele, Gio-vanni puxa papo com Nonato.

  • GIOVANNIVoc que cozinha aqui?

    NONATOSou eu sim senhor.

    GIOVANNIGozado isso, porque eu tenho um res-taurante aqui na rea, o Boccaccio...

    NONATOBocacho?!?

    GIOVANNIBo-Cca-Ccio...! Cozinha internacional e ambiente familiar. E conheo todo

  • mundo, mas todo mundo daqui. E nun-ca te vi.

    NONATOAh, porque eu acabei de chegar do interior...

    Giovanni olha para Nonato com desdm, enquan-to acaba de comer a coxinha. Lentamente limpa a boca, toma um gole de cerveja e continua:

    GIOVANNIE voc aprendeu a cozinhar l no Cear, ?

  • NONATONo sou do Cear no... E quem me en-sinou a coxinha foi o seu Zulmiro. Quer falar com o seu Zulmiro?

    GIOVANNINo. No quero nada com o Zulmiro. Agora, se ele te ensinou a fazer esta co-xinha, voc tem mo boa, porque a que ele faz fica uma merda. Uma merda.

    Nonato no responde.

    GIOVANNICatso, essa coxinha me abriu o apetite. No tem nada a que no seja fritura, qui-tute, essas coisas que engordam pacas?

    NONATOTem! Ovo colorido.

    GIOVANNINem pensar. Ento deixa, como em casa.

    Nonato pensa um pouco e lembra-se de algo:

    NONATOTem a carne de panela que eu fiz pro al-moo. Acho que sobrou um prato, quer? S pegar l dentro. Trago com batata.

    104

  • Foi cozinhado junto, umas batata bo-nita, corada.

    GIOVANNITraz, ento.

    Nonato vai para a cozinha. Giovanni abre o jor-nal e l notcia sobre uma rebelio na cadeia.Nonato retorna trazendo consigo um prato: carne de panela com batatas coradas, um prato caprichado. Coloca-o na frente de Giovanni e fica esperando que ele experimente.Giovanni come uma garfada, faz um ar surpre-so e pergunta:

  • 106

    GIOVANNIHummm, o que voc ps aqui? alecrim?

    Nonato sorri, um pouco envergonhado, mas orgulhoso:

    NONATOUm pouquinho, pus sim. Carne, n. Fica gostoso. Seu Zulmiro nem percebeu.

    GIOVANNIQue carne que ? Msculo?

    NONATO msculo, sim. Fiquei um tempo ba-tendo antes de ponhar na panela.

    Giovanni d mais uma garfada na carne e con-tinua, com a boca meio cheia:

    GIOVANNIC precisava trabalhar com algum que te ensinasse, algum que entenda de co-zinha... Escuta, quer trabalhar pra mim?

    NONATO (desinteressado)Ih, tem que ver; tou muito bem aqui, seu Zulmiro me paga um bom salrio, benefcio...

  • 107

    GIOVANNIBenefcio? Benefcio mandar o Zulmiro tomar no cu. (No corte final, a cena foi interrompida aqui. Percebemos que o resto era absolutamente dispensvel...)Venha trabalhar comigo. T precisan-do de um ajudante l na cozinha. Voc ia me dar uma mo boa. Restaurante Boccaccio. Cozinha internacional e am-biente familiar.

    NONATOSei no. Seu Zulmiro paga a moradia tam-bm, sabe? Uma casa boa..., TV colorida...

    GIOVANNINem o Zulmiro mora bem, quanto mais voc. Conheo... Eu te pago um salrio decente, voc arranja um lugar melhor para morar. Mas se no quiser, tudo bem.

    NONATOO senhor d isso tudo mesmo?

    GIOVANNISe eu t falando...

    NONATOEnto t aceito. Raimundo Nonato, s suas ordens!

  • 108

    GIOVANNIGiovanni, seu criado.

    NONATOPrazer, seu Jovani.

    GIOVANNIGi-o-vanni, paraba, Gi- o-va-nni... Giii.

    FUSO:

    24. INT. CELA - DIA

    Nonato liga um fogareiro eltrico. Detalhe da resistncia acendendo-se.Nonato coloca sobre a resistncia uma panela baixa e joga azeite de dend dentro dela. Em seguida, frita alho e cebola no azeite. Valto se aproxima, para lavar as mos:

    VALTO do Alecrim, qual a bia de hoje?

    Nonato levanta o pano que cobre um recipien-te numa bancada ao lado da pia. Subjetiva de Nonato: a panela est cheia de um lquido ama-relo, gosmento, com peles de galinha boiando.

    NONATOCozido de galinha, Valto. J tinham me avisado l da cozinha. Mas voc vai ver uma coisa...

  • 109

    Nonato retira de dentro do recipiente alguns pedaos aproveitveis de frango, desprezando as peles. Em seguida, lava os pedaos de frango sob a torneira da pia, retirando completamente o tempero. Na panela onde est fritando o alho e a cebola, Nonato acrescenta o frango, um tablete de cal-do de frango, um pouco de gua, o suco de um limo, e deixa refogando.Numa frigideira negra de to suja, Nonato co-loca o resto do azeite de dend, mais alho e ce-bola, e joga um pouco de farinha de mandioca, que vai ficando dourada. Coloca tambm um pouco de coentro sobre a farofa.Num recipiente cheio de arroz, Nonato despeja o contedo de uma garrafinha: leite de coco, l-se no rtulo. Por ltimo, sobre o frango, coloca coentro e amendoim, e comenta, um tanto quanto miste-rioso, como se para si mesmo:

    NONATOCamaro num tem, mas j d pra en-ganar...

    A este Valto, que acompanhara toda a opera-o, no se contm e pergunta:

    VALTOQue que isso, Alecrim?

  • 110

    Nonato, a partir de agora, na cadeia passa a ser chamado de Alecrim.

    NONATOXinxim de galinha... Com arroz de leite de coco.

    E gritando para os outros:

    NONATOA, pessoal, a bia t pronta.

    25. INT. CELA DIA

    Nota: Esta cena e a seguinte foram cortadas, principalmente pelo fato de termos cortado, mais frente, uma cena em que Nonato se vin-gava do gato de maneira mais cruel.

    A mesma cela, algum tempo depois. Todos es-to fora, com exceo de Nonato, que est ti-rando um cochilo, esperando a hora do jantar.Nonato despertado de seu torpor por um ba-rulho de panela. Olha para os lados do fogarei-ro e percebe um gato, comendo restos numa das panelas em que preparara o xinxim.

  • Nonato se levanta furioso, pega o gato com as mos, aproxima-se de uma das janelas da cela e o joga furiosamente para fora, atravs da grade.

    26. EXT. PRISO DIA

    Nota: Cena cortada.

    A parede externa da priso est repleta de pa-nos, camisas e toalhas penduradas. Atravs da grade de uma das celas, passa o gato que fora atirado por Nonato.

  • 27. INT. COZINHA DO RESTAURANTE - DIA

    Giovanni e Nonato entram em cena descendo uma escada. Nonato veste uma roupa branca com um quepe, tambm branco, um uniforme de assistente de cozinha. Giovanni abre os bra-os e exclama, orgulhoso:

    GIOVANNIEnto, Nonato. ISSO uma cozinha.

    Acompanhamos o gesto de Giovanni e vemos uma cozinha no muito grande mas bastante agradvel: trata-se da cozinha do restauran-

  • 113

    te Boccaccio, de propriedade de Giovanni. As paredes so de azulejos brancos, um tanto en-cardidos mas razoavelmente limpos. Um fogo industrial ao centro, uma grande coifa sobre o fogo, e muitas panelas, armrios, pias. Uma cozinha decente, em resumo. Ao fogo esto dois homens cozinhando (o primeiro cozinheiro, Francesco, e seu assisten-te) e, mais ao fundo, numa pia, uma mulher lava loua.

    FRANCESCOGiovanni, dobbiamo parlare del mascar-pone. finito.

    GIOVANNILo facciamo dopo, Francesco.

    Giovanni apresenta ento Nonato:

    GIOVANNINonato, esse o Francesco, o primeiro-cozinheiro. Depois de mim, ele quem manda na cozinha.

    E voltando-se para os outros:

    GIOVANNIPessoal, este aqui o Nonato, o novo ajudante.

  • 114

    Os outros funcionrios olham um pouco ressa-biados para Nonato. Ningum diz nada.

    Nota: A cena, a partir deste ponto, foi cortada. Por questes de ritmo e durao do filme, passa-se diretamente cena seguinte, na can-tina. Perderam-se uma excelente descrio do carter de Giovanni e algumas falas timas, mas ganhou-se, inegavelmente, uma maior agilidade narrativa.

    Giovanni passa a apresentar a cozinha para No-nato e faz graa, apontando para uma panela:

    GIOVANNIIsso aqui o que , Nonato?

    NONATOQue isso, seu Jovani.

    GIOVANNI, o que que isso?

    NONATOPanela.

    GIOVANNICerto. O mnimo voc sabe. panela. E isso?

  • 115

    Giovanni aponta para uma escumadeira, pen-durada na coifa.

    NONATOQu isso, seu Jovani.

    GIOVANNIIsso uma esCUmadeira. Cu, no esPU-madeira como dizem por a.

    Giovanni aponta ento para um presunto cru, sobre o balco. Nonato pensa:

    NONATOParece carne de sol, mas no , t certo?

    GIOVANNINo charque, ento, o que ?

    NONATOEnto pernil!

    GIOVANNI (um pouco irritado)No, isso aqui presunto cru. Nunca viu presunto cru?

    NONATOPresunto cru, ? Ento se ponhar isso na panela, d no presunto aquele outro?

  • 116

    GIOVANNI(um pouco mais irritado ainda)

    Voc s comeu farinha na vida, ?

    NONATOAh, ento isso se come?

    Giovanni perde a pacincia:

    GIOVANNIMas, caraio, se est aqui na cozinha, vou fazer o que com isso? Roupa? Vou cos-turar uma fatia assim na outra, e em se-guida uso um queijo para completar o modelito... caraio!

    Os outros funcionrios do restaurante olham de soslaio para a cena, divertindo-se com a situ-ao e com o embarao de Nonato.

    GIOVANNI (quase gritando)Pensa, Nonato, pensa seno no vai dar. Esquece esse Nonato que veio da casa do caralho num pau-de-arara. Esquece a tapera que voc tinha, esquece a Maria Bonita, esquece. Agora voc est em ou-tra, e se no se ligar nas coisas, ah, no vai dar, t me ouvindo?

  • 117

    NONATOTou, nem precisa falar alto assim, que eu t pertinho.

    Giovanni percebe que exagerara na dose e ten-ta se acalmar.

    GIOVANNIMas se prestar bem ateno no que eu falo, se prestar bem ateno, pode ser que um dia esse severino saia do seu cor-po e voc vire um rapaz esperto, caraio.

    NONATOT bom.

    GIOVANNIOlha, pronto, vamos com calma. Voc ob-via mente no nasceu sabendo, certo, acon-tece. Eu mesmo tive que aprender. Vou te ensinar as coisas aos poucos, t bom?

    NONATOT bom.

    GIOVANNIAos poucos vou te ensinando os tru-ques, as tcnicas, os macetes. Sabe um

  • 118

    macete bom? Mulher adora homem que cozinha.

    NONATO?

    GIOVANNI se . A mulher quando come um tro-o gostoso, repara: ela naturalmente vai abrindo as pernas. um troo in-voluntrio. E isso elas fazem aqui, no restaurante; imagine em casa. um ovo frito, e um boquete. Um macarro-zinho ao alho e leo, uma xoxota. Se voc fizer uma paella, eita, rola at o bo tozinho cheiroso.

    NONATOBotozinho cheiroso?

    GIOVANNIElas liberam o cuzinho, Nonato. E com um vinhozinho na cabea, ento, imagi-na... Vem c.

    Giovanni atravessa a cozinha e l no fundo, longe da entrada e dos foges, abre uma porta e entra.

  • 28. INT. ADEGA - DIA

    Giovanni mostra uma pequena adega cheia de garrafas de vinho para Nonato.

    GIOVANNIAqui, Nonato, aqui aonde a gente guarda as garrafas de vinho.

    NONATOTudo deitada?

    GIOVANNITudo deitada. Porque eu entendo de vi-nho, sabe? Voc se deu bem; veio tra-

  • 120

    balhar com quem entende de vinho. Primeiro, t vendo? Olha a distncia do fogo. Percebe? O vinho tem que ficar numa temperatura amena, fresquinho, gostoso. Clima de montanha. L na Pa-raba tem montanha?

    NONATONo tem no senhor.

    GIOVANNIPuta, c t fudido, ento. Aqui faz um frio do caralho, no inverno. Pode ir se preparando. Mas, olha, as garrafas dei-tadas, sabe por qu?

    NONATOPr caber mais garrafa na parede?

    GIOVANNI pra rolha no ressecar, baiano. Da, quando voc vai sacar a rolha, ela est inteirinha.

    Giovanni olha orgulhoso para a adega:

    GIOVANNIAqui tem bastante vinho italiano. J foi mais barato, mas ainda d pra vender por uns quarenta paus, sem assustar muito.

  • NONATOQuarenta conto?

    GIOVANNIs vezes o cara vem aqui querendo co-mer uma menina, pede um vinho, deixa ela meio tonta, e crau. Ah, e tem esse aqui. Olha esse aqui.

    Giovanni apanha uma garrafa muito empoei-rada, colocada um pouco parte das outras, e mostra para Nonato.

    GIOVANNIEsse especial. Italiano tambm, bvio.

  • 122

    Olha o rtulo: Sassicaia. O Sassicaia eles chamam de super-toscano. feito de uva cabernet-sauvignon e umas outras uvas da Frana, mas um dos vinhos mais fu-didos do mundo, melhor at que aque-les que os prprios franceses fazem.

    NONATOOs franceses...

    GIOVANNI, os franceses, aquele povo que adora uma putaria... Esta garrafa eu ganhei do meu pai. Que Deus o guarde.

    NONATO (fazendo o pelo-sinal)Pra sempre seja louvado.

    GIOVANNITou guardando pra eu tomar quando completar sessenta primaveras.

    NONATOE quantos anos, desculpa perguntar, quantos anos falta?

    GIOVANNIFalta ainda seis anos. Tenho 54.

  • NONATOSeis anos? E no vai perder o gs at l?

    GIOVANNIAputaquepariu. Olha, ainda bem que voc vai ficar na cozinha, e no com os clientes. Ma vaffanculo...

    Giovanni sai da adega e sobe a escada, blasfe-mando furiosamente. Nonato d um sorriso, pega a garrafa de vinho, sacode para sentir o gs e imita Giovanni:

    NONATONonato, voc se deu bem... Afancuo.

  • 29. INT. CELA - DIA

    Hora do jantar na cadeia. Os prisioneiros da cela de Nonato (ou melhor, de Buji) comem, com sorrisos satisfeitos.A cmera enquadra Buji, o xerife da cela, de-vorando, com satisfao, uma coxa de galinha. Buji olha para seus camaradas e percebe No-nato, sentado no cho, perto do fogareiro.Buji chama Lino, com um aceno, que rapida-mente responde ao apelo do chefe e se apro-xima. Buji cochicha alguma coisa no ouvido dele. Lino se aproxima de um rapaz magro, ocupante do beliche de baixo, e fala com ele em voz baixa.

  • O rapaz faz uma cara de desapontamento, mas se apressa em obedecer ao que lhe fora ordena-do: comea a recolher suas coisas, desocupando o beliche. Buji observa a cena, satisfeito, pa-litando os dentes. Magro acaba de recolher seus pertences, se levanta e olha para Buji:

    BUJIAlecrim!

    NONATOEu!

    BUJIO beliche do Magro teu.

  • 126

    NONATOQu?

    BUJIO beliche de baixo teu!

    Nonato leva um tempo para entender o que lhe diz Buji. Est evidentemente surpreso pelo que lhe disse o chefe, mas olha com medo para Magro, o rebaixado, imaginando o que este poder lhe fazer, em represlia. o prprio Magro a esclarecer a situao, aproximando-se de Nonato com suas coisas e sua cara submissa.Nonato junta suas coisas do cho de cimento e se muda para o beliche.

    29A INT. COZINHA DO RESTAURANTE NOITE

    Nota: Esta cena foi escrita na noite que ante-cedeu sua filmagem. Trata-se de um caso nico no processo em que foi feito o filme. Custou-nos horas de trabalho (como os atores no a tinham ensaiado, o processo foi um pouquinho mais lento do que o normal), mas acabou sendo cortada, pois ficara muito longa e desacelerava demais o ritmo narrativo.

  • 127

    Nonato est limpando o fogo, num dos lados, enquanto Francesco, o primeiro cozinheiro, co-zinha algo no outro lado do fogo. Francesco no parece muito contente com o que faz. A um certo ponto abre a panela que tem sua frente, olha l dentro, tem um acesso de vmi-to e sai da cozinha, em direo ao fundo, pro-curando, evidentemente, um banheiro.Nonato abre a panela e olha l dentro uma ln-gua de boi, cozinhando.

    NONATOAh, mas uma lngua. Cara frouxo...

    Tira a lngua da panela e a coloca sobre a t-bua de cortar. Com habilidade, tira a pele da lngua e comea a cort-la em fatias. Frances-co volta do banheiro e surpreende Nonato en-quanto trabalha.

    FRANCESCOMa che cazzo fai, Nonato.

    NONATOEu, eu, tava preparando a lngua, apren-di a fazer l no Nordeste... Tava queren-do ajudar...

    FRANCESCOEu odeio lngua, Nonato. Odeio. No posso nem ver essa porcaria na minha

  • 128

    frente. E o Giovanni me pediu para fa-zer uma pra ele.

    NONATODeixa que eu preparo, ento. Deixa comigo.

    FRANCESCOObrigado, Nonato.

    Francesco d mais uma olhada para a lngua na tbua de cortar e sai, novamente, atrs do banheiro.Nonato corta a lngua em fatias e experimenta.

    NONATO (para si mesmo)T sem gosto.

    Nonato pega um potinho e vai at a geladeira. Tira de dentro dela um ovo cozido e alguns fils de enxovas. Vai at o armarinho no fundo da cozinha e pega algumas alcaparras. No balco pega um pedao de po e algumas ervas de co-zinha. Despeja tudo sobre uma tbua e, com o auxlio de uma meia-lua, pica tudo. Joga azeite de oliva e experimenta o molho. Despeja o mo-lho sobre as lnguas. Francesco volta do banhei-ro e senta-se mesinha da cozinha.

    NONATOQu experiment, Francesco.

  • 129

    FRANCESCOPer carit...

    Entra Giovanni na cozinha.

    GIOVANNIFrancesco, hai fatto la lingua che ti ho chiesto.

    FRANCESCO l, Giovanni. Mi ha aiutato Nonato. Io non riesco a mangiare lingua.

    Giovanni experimenta uma fatia. Nonato o imita.

    GIOVANNIPorra t bom. Bravo, Nonato. Frances-co... Cozinheiro precisa experimentar de tudo, cazzo. Seno, como vai saber preparar de tudo? Experimentar pra ver se t bom, essas coisas? Cozinheiro no pode ter preconceito. V pr casa, vai.

    Francesco se despede. Giovanni come mais um pedao da lngua.

    GIOVANNIE esse molho toscano, foi o Francesco quem ensinou?

  • NONATONo foi no, seo Jovani. Peguei umas coisas por a e misturei. Ficou bom?

    GIOVANNICazzo!

    Giovanni olha espantado para Nonato e acena positivamente com a cabea, enquanto come mais uma fatia de lngua.

    30. EXT. FACHADA DO RESTAURANTE - NOITE

    Pela porta do restaurante Boccaccio sai Nonato.

  • 131

    31. EXT. ARREDORES DO RESTAURANTE - NOITE

    Nonato caminha a esmo pelas ruas dos arredo-res. Passa por alguns personagens soturnos.

    32. EXT. RUA DE PROSTITUIO - NOITE

    Nonato acaba encontrando um grupo de pros-titutas. Entre elas, ria.

    RIASe no o das coxinhas

    NONATOOi, c t boa, como t?

    RIAAh, vou indo, vou levando...

    Uma colega de ria faz uma piada:

    RITALevando no rabo...

    RIA (desconversando)Outro dia fui l no bar, no te achei. No t mais no bar?

  • NONATOT. Quer dizer, no: agora tou traba-lhando na cozinha de um restaurante aqui perto, o Bocacho.

    RIAConheo. A coxinha l no boteco voltou a ser o que era, uma bosta, sabia?

    NONATO? No sabia.

    RIAE voc? Saiu l do quartinho, ento.

  • 135

    NONATO, sa, sa sim. Agora tou aqui perto, numa pensozinha. L praqueles lados, perto do restaurante.

    RIASei. E, l no seu quarto, tem o que comer?

    ria sorri, insinuante.

    NONATOi, no tem, mas a gente pode pedir uma pizza da padaria, boa...

    RIANo, Nonato, mas voc mesmo muito inocente...

    ria engancha seu brao no de Nonato.

    RIAVamos l; l eu te dou de comer, viu? Inocente, que bonitinho...

    Eles andam de mo dada. Ouvimos os dois dize-rem, ao longe:

    NONATOC t cheirosa, ria.

  • 136

    RIABrigado, Nonato. E se antes a gente passasse no restaurante? Tou meio com fome mesmo, e j que no caminho...

    33. INT. COZINHA DO RESTAURANTE - NOITE

    ria est sentada a uma mesinha, num canto da cozinha. Ela est acabando de comer um riso-to, esquentado por Nonato dentre as sobras do dia. Ela come com apetite. Nonato est ao lado dela, vendo-a comer. Nonato observa as pernas de ria que se abrem um pouquinho.

    ria termina, pega um guardanapo e limpa a boca. Nonato se aproxima dela e tenta beij-la na boca. ria se afasta, com nojo.

    RIANonato, no beijo ningum na boca, sabe? Nunca.

    NONATONo pode?

    RIANo pode. No beijo ningum na boca! Fao tudo, tudo, menos beijo na boca. No tico. tica. Tudo, menos beijo na boca.

  • 140

    NONATOSim senhora.

    34. INT. CORREDORES DA PENITENCIRIA - DIA

    No corredor da penitenciria vemos o vai e vem de presos e carcereiros.

    35. INT. CELA - DIA

    dia, mas Nonato est dormindo, em seu beliche (de baixo). A cmera aproxima-se de seu rosto e vemos, passeando em sua cara, algumas formigas.Uma das formigas acaba entrando no nariz de No-nato, que acorda assustado. Nonato se senta na beira do beliche, desesperado, e comea a procu-rar, com um dedo, a formiga dentro de seu nariz.Nonato se demora bastante na tarefa, mas con-segue apanhar o inseto. Nisto, percebe que um companheiro de cela o observava.Nonato fica meio sem-graa e fala para o outro:

    NONATOEssas formigas, bicho chato.

    LINOAh, costuma. Se entr na boca, c masti-ga e engole.

  • Magro, que ouvira os comentrios, intervm:

    MAGROL na Colmbia, manja a Colmbia?

    NONATOClaro, porra.

    MAGROEnto. Sabe o que eles comem? Formi-ga. Que nem essa. Quando eu ia l pe-gar coca, experimentei.

    LINOPorra, que misria.

  • 143

    MAGRONo... at bom. uma formiga grande, como uma tanajura. Vende em barraca na rua. Eles comem bem torradinho,fica bom.

    LINOEita, povo sem costume.

    A conversa esmorece. Nonato fica um tempo olhando para as muitas formigas que passeiam pelo beliche e tem uma idia:

    NONATOSabe uma coisa? Olha minha idia. Segu-ra. Ns podia fazer a mesma coisa com essas formiga a. Fritava bem com alho, cebola, metia uma salsinha e pronto: um troo pra beliscar antes da comida.

    LINOE....

    MAGROVoc no manja de faz formiga.

    NONATOManjo de faz tudo, Magro.

    LINOSei no...

  • 144

    NONATOVerdade, vai por mim, vai ficar gostoso. No pode ter preconceito na cozinha. J pisei com a rapaziada antes? No, porra. tudo portena, coisa que faz bem pro indivduo. E formiga faz bem pras vista.

    MAGROAcho que eles no vo gost, no.

    NONATOVambora, rapais. Me ajuda a cat elas. Vai ter banquete colombiano hoje noite..

    36. INT. COZINHA DO RESTAURANTE DIA

    Nota: No corte final, esta cena foi movida para logo depois da cena 29.

    Na cozinha do restaurante esto Giovanni e No-nato, alm de Francesco e os ajudantes. Nonato usa um chapu de cozinheiro, sinal de que foi promovido. Os ajudantes esto almoando, na mesinha da cozinha.Giovanni est preparando um macarro, para ele prprio e os funcionrios comerem antes

  • da abertura do restaurante, e conforme vai es-perando o ponto certo da massa, ele vai expli-cando algumas coisas pra Nonato. Nonato est acabando de picar alho.

    GIOVANNIA gua ferveu? Pronto: pe um pouco de sal - no me pe azeite, que coisa de macarro vagabundo - e coloca o es-paguete. Da, s esperar ficar pronto.

    NONATOE como sabe quando ficou pronto?

  • GIOVANNIAh, tem que ter vivncia, tem que ter ex-perincia na cozinha, sereno no ombro, entende? Cozinhar uma arte, como pintar, como cantar. ter conhecimen-to pra misturar as coisas, saber que isso vai ficar gostoso se colocar aquilo, saber quanto tempo precisa pra ficar assado, sem perder o gosto dos ingre-dientes, muita coisa. Cozinhar arte, e o nosso ateli aqui, na cozinha. Sen-do que os temperos so as nossas tintas. Voc pode at pensar num prato gosto-so na rua, no nibus, mas vai fazer aqui. o ateli.

  • 147

    Giovanni faz uma pausa e se perde.

    GIOVANNIPuta que o pariu... O que eu tava falan-do mesmo... Ah, o ponto do macarro. Ento, para saber do ponto, ou tem ex-perincia, ou ento s provando.

    Giovanni pe uma colher de pau na panela e pesca um espaguete. Morde e olha o detalhe do macarro. Mostra-o para Nonato.

    GIOVANNIOlha. C morde bem retinho e olha den-tro do espaguete. Esse no t no ponto ainda, mas quando tiver no ponto, no meinho dele tem que ficar um pouqui-nho mais claro que o resto, mas s no meinho. esse o ponto. Al Dente. E tem que desligar o fogo nesta hora e tirar o macarro da gua, voando, seno passa.

    NONATOE o alho, pe agora?

    GIOVANNINo, no ainda. Se voc refoga o alho muito antes, ele fica douradinho, mas amarga um pouco, sabe? J me fodi mui-to refogando alho. Parece fcil, mas no

  • 148

    . Ento eu deixo pra refogar s um tico antes do macarro ficar pronto. Quando a coisa simples, a que mora o perigo.

    NONATOPorque tem mais chance de dar no errado.

    GIOVANNIPorque voc acha que mole, e no . Cozinhar simples como... como, como um quadro do Picasso, sabe?

    Nonato faz cara de quem no entendeu nada. Giovanni continua.

    GIOVANNISimples, mas intenso. Quer ver um exem-plo de arte com ingredientes simples?

    NONATOQuero.

    Giovanni chama Francesco:

    GIOVANNIFrancesco, finisci qui.

    Giovanni vai para o outro lado da cozinha en-quanto Francesco se aproxima do fogo. Nona-to o espera e fala baixo, provocando-o:

  • NONATOFinichiqui.

    FRANCESCOStronzo!

    GIOVANNIAbre a geladeira ali. Pega a goiabada Casco. Pega tambm aquele queijo ali, esse dentro do plstico. Isso, esse mesmo.

    Nonato faz o que lhe manda Giovanni e apanha da geladeira os ingredientes. Mas olha para o queijo e sentencia:

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    NONATOT estragado, . Cheio de bolor.

    GIOVANNINo, no, assim mesmo. Queijo gor-gon-zo-la. Um dos queijos mais antigos que tem. embolorado mesmo, um te-so. Toma, experimenta.

    Nonato come um pedao do queijo.

    NONATOParece manteiga estragada.

    Giovanni vai preparando o prato que est ex-plicando.

    GIOVANNITeu rabo que parece. Agora, olha que coisa. Sabe o Romeu e Julieta? Ento: tira o queijo Minas, pe Gorgonzola. Anita e Garibaldi, chama. Eu que inventei.

    NONATOHmmmm, gostoso.

    GIOVANNIE sabe o que melhor? Um Romeu e Ju-lieta eu posso servir no meu restaurante?

  • No! Porque sobremesa de boteco, e eu tenho requinte. Sou um artista. Mas, pondo o Gorgonzola fica requintado, eu posso servir, e ainda cobro oito paus por isso. Uma fatia de Goiabada, e um teco de gorgonzola: oito paus. arte, catso. Quanto tem de tinta num quadro? Cem reais? Eles vendem por milhes de dla-res. Mesma coisa com a comida. arte, como um Picasso.

    Nonato olha para o Giovanni. Olha para o pra-to sendo orgulhosamente arrumado pelo seu patro, e timidamente sugere uma pergunta:

  • NONATOPode perguntar uma coisa?

    GIOVANNIPode.

    NONATOA tinta. A que horas que a gente pe a tinta nisso? Um tico antes de servir s?

    Nota: A parte final desta cena foi cortada, por motivos de ritmo. Mas para ganhar ritmo, per-deu-se aqui uma idia interessante: Nonato in-venta um jeito novo de fazer o Anita e Garibaldi, jeito que ser, ao final do filme, copiado por

  • Giovanni de maneira traioeira. At hoje no tenho certeza se acertei ao ordenar este corte.

    Giovanni olha desolado para Nonato e se afas-ta, irritado, sem dignar-se a responder. Nonato fica com o prato de Anita e Garibaldi na mo. Aproxima-se do balco de temperos, apia o prato e pega um frasco com mel da prateleira. Com uma colherinha, faz um desenho no prato usando o mel como tinta, embelezando a so-bremesa. Enquanto versa o mel, Nonato fala:

    NONATOARTE... Pode ser arte, mas fedido pr caralho...

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