Fernão Mendes Pinto

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Fernão Mendes Pinto (1510? - 1583) Peregrinação (1614) Burghard Baltrusch http://uvigo.academia.edu/BurghardBaltrusch

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Fernão Mendes Pinto (1510? - 1583)

Peregrinação (1614)

Burghard Baltrusch http://uvigo.academia.edu/BurghardBaltrusch

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Dados biográficos

→ Mercador, viajante e escritor português. Nasceu talvez em 1510 em Montemor-o-Velho, numa família de poucos recursos. → 1521: Veio para Lisboa para casa de um tio.→ 1526: Ao serviço de uma dama nobre, de quem fugiu apressadamente um ano e meio mais tarde. → 1528: Embarca numa nau que foi assaltada por corsários franceses, que deixaram os tripulantes, «nus e descalços», na praia de Melides.→ Depois de ter recebido os cuidados de uma senhora nobre de Santiago do Cacém, foi recolhido durante 4 anos, por Francisco de Faria. Depois foi moço de câmara de D. Jorge, Mestre de Santiago. → 1537: Partiu numa armada para a Índia, em busca de fortuna. → 1558: Regressou a Lisboa, constituiu família e retirou-se para uma quinta em Almada.→ 1569-1578: Redige, de memória e sem cultura livresca, o relato da sua aventura no ultramar, um dos melhores exemplos da literatura portuguesa de viagens. → Em 1583 foi-lhe concedida, por Filipe I, uma tença anual de «dois moios de trigo». Morreu em 8 de Julho deste ano.

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Peregrinação

→ Publicada em 1614, narra a sua vida aventurosa pelo Oriente (onde percorreu lugares como a Arábia, a China, o Japão, Etiópia, Índia, Tartária, Samatra, entre outros mais). → Vida caracterizada por condições muito diferentes: foi rico e pobre, escravo e mercador, agente de soberanos, embaixador, corsário e, até, jesuíta. → Fez descrições muito detalhadas da cultura dos povos, das línguas e das terras onde esteve.→ Terá sido dos primeiros europeus a desembarcar no Japão. Lá conheceu o missionário São Francisco Xavier, que lhe terá provocado uma forte impressão. → Entrou para a Companhia de Jesus, em Goa. Daí, partiu novamente em missão para o Japão, onde abandonou a ordem em circunstâncias pouco claras.

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→ Género: conjunto de memórias autobiográficas.

→ Confluem várias espécies de discurso: histórico, descritivo, oratório, dramático, poético, litúrgico e epistolar; predomina o narrativo e o autobiográfico, que conferem à obra um tom de verosimilhança.

→ Torna-se difícil distinguir o que é imaginação daquilo que é história.

→ Estilo tão concreto e tão cheio de vida que tudo parece natural e verídico.

→ Durante muito tempo, pensou-se que as peripécias narradas no livro não passariam de mentira, daí a troça popular: “Fernão, Mentes? Minto”.

→ Com a chegada de um conhecimento mais profundo do mundo oriental no século XX (cf. Cristóvão Aires e Venceslau de Morais) foi possível verificar a exactidão de muitas afirmações feitas por FMP acerca da China e do Japão.

→ Em 1947, Georges Le Gentil voltou a insistir num certo fundo de verdade da Peregrinação.

→ Porém, muitos diálogos moralizantes, cartas que transcreve, discursos de personagens, etc., são inventadas. Hiperbolizam-se, também, alguns números (cf. Peregrinação, cap. 192).

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→ FMP oferece uma sátira contundente ao modo como os Portugueses se relacionavam e comerciavam com os povos orientais

→ Também criticava a pouca ou nenhuma coerência que havia entre as suas acções e a sua condição de cristãos.

→ Porém, no capítulo primeiro indica 3 fins explícitos que o levaram a compor o livro e que não incluem a intenção crítica:

1. dar a conhecer aos filhos os seus trabalhos;

2. encorajar os desesperados e os que se vêem em dificuldades;

3. ter quem o ajude a dar graças a Deus.

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Capítulo 122: “Do mais que vimos até chegarmos onde El Rey dos Tártaros estava, e do que passamos com ele”

→ Cps. 121-123 indicam que Pinto sabia da existência do poderoso descendente de Chinggis Khan, Altan Khan (1507-1582) e que este tinha cercado a cidade de Beijing (Pequim) numa guerra entre 1550-53 contra o imperador Ming Jiajing (1522-1567).

→ Porém, as descrições do vestuário, da flora, dos hábitos e da língua não coincidem com a região e cultura mongóis.

→ O cenário imaginado serve, sobretudo, para reforçar a crítica à expansão colonial portuguesa, motivada pela cobiça, que é posta na boca do próprio Altan Khan.

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→ Caso singular na literatura portuguesa uma vez que

mostra respeito pela grandiosidade e riqueza das civilizações

que observou.

→ Descrições da China denotam uma admiração e um fascínio

pouco habituais nos relatos contemporâneos dos europeus

sobre o Oriente.

→ Pôs na boca de pessoas orientais palavras de desprezo pela

cobiça e pela ambição dos militares e mercadores ocidentais.

→ Representação do contacto cultural através de uma comparação mais objectiva entre as civilizações oriental e cristã, do que aquela em vigor no pensamento ocidental do seu tempo.

→ Valor crítico da obra revela-se na representação dos aventureiros portugueses à caça de riqueza e poder: motivados pela cobiça; adulam de forma infantil, supersticiosa ou hipócrita as apariências exteriores da religião cristã.

→ Contraste com o discurso oficialista e eufémico de João de Barros ou Luís de Camões.

→ O conteúdo crítico valeu-lhe a FMP uma recepção controversa na cultura portuguesa.

→ Hoje, o valor literário e histórico da obra de Fernão Mendes Pinto é consensual.

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Documentário de Nuno Neves para a inauguração do Museu do Oriente em Lisboa (2007)http://vimeo.com/2647142

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Documentário sobre a Peregrinação na série «Grandes Livros» da RTP

http://tv1.rtp.pt/programas-rtp/index.php?p_id=25025&e_id=2&c_id=8&dif=tv

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Pode ser visto em Youtube:

Parte 1: http://www.youtube.com/watch?v=j13OdLX0lewParte 2: http://www.youtube.com/watch?v=5knEZsr5y4cParte 3: http://www.youtube.com/watch?v=pA-Ag7oVhqkParte 4: http://www.youtube.com/watch?v=X11IZGTKYkkParte 5: http://www.youtube.com/watch?v=8Y8sgwaEW2Q

Pode ser descarregado aquí:

http://ebooksgratis.com.br/filmes-e-documentarios/documentarios-peregrinacao-fernao-mendes-pinto-serie-grandes-livros-episodio-ii/

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→ FMP mostra a realidade feia e vergonhosa da colonização portuguesa:

• afundando barcos indefesos para os roubar, • raptando noivas e violando mulheres, • chacinando e queimando povoações inteiras, • saqueando sarcófagos e templos, • servindo corsários muçulmanos apesar de repudiar a sua religião

e cultura.

→ Técnica narrativa engenhosa: Não faz as críticas em nome próprio mas coloca-as na boca de nativos.

→ Talvez algumas personagens sejam produto de ficção para não arranjar problemas?

→ Muitas frases apagadas ou corrigidas, p.ex. Aquelas que fizeram referência à Companhia de Jesus, uma das ordens mais activas no Oriente e com a qual FMP estava estreitamente relacionado. http://uvigo.academia.edu/BurghardBaltrusch

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→ Exaltação do ser humano no séc. XVI:

• ‘rei’ da criação; ‘dominador da Natureza’; • desafiava os próprios deuses; de nada tinha medo; • transformava-se automaticamente em herói.

→ Classicismo: Ignoram-se os aleijados, medrosos, fora da lei, etc.

→ Peregrinação: Não há apologia de virtudes morais ou de força física, mas traições e crimes de toda a espécie, narrados com grande cinismo.

→ Contraste em relação aos heróis nas obras de João de Barros de Camões.

→ Exemplo: 2 náufragos portugueses no Sião pedem «em joelhos e com as mãos levantadas» e «com muitas lágrimas» a uns barqueiros que os «não deixassem morrer ali!» (Peregrinação, cap. 37).

→ Autor não se vangloria mas apresenta-se como «pobre de mim» e um desses «pobres estrangeiros», designação com que a gente bondosa se refere aos portugueses da Peregrinação.

→ Anti-herói: Ser humano tem mais medo do que coragem; em vez de dominar a Natureza é por ela desfeiteado a cada passo; vencido os perigos, pouco mais pode fazer do que dar graças ao Deus que o salvou.

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Resumo das características da Peregrinação

→ Sátira/crítica • ao modo como os portugueses se relacionavam e comerciavam com os povos orientais;• à pouca coerência que havia entre as suas acções e a sua condição de cristãos.

→ Contraste: Conteúdo exótico vs. valor documentário.→ Experiência, sensibilidade e apetência pelo novo.→ Visualismo através do pormenor, da minúcia e da exactidão, da notação das cores e dos sons ("o Proust aventureiro", M. Torga).→ Sensacionalismo, através da apresentação do inédito.→ Emotividade, entusiasmo, medo, estúcia, piedade, violência e simpatia humana.→ Humildade ou arrogância, tópicos contraditórios e por vezes convergentes.→ Imaginação.→ Intenção crítica, política e social, através da analogia e dissemelhança, → apontando por vezes para um pensamento utópico.→ Humorismo, optimismo, esperança.→ Recepção vacilante da Pregrinação ao longo dos tempos: "guerreiro valente e brioso, paladino da Fé" vs. o pícaro e o "pobre diabo que não tem nem confessa ter outra ambição, senão a de ganhar alguns cruzados" (A. J. Saraiva).

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Comparação com a novela picaresca

António J. Saraiva demonstrou o parentesco entre a Peregrinação e a novela picaresca espanhola, cujos tópicos reune em boa parte: • a forma autobiográfica, • o carácter do protagonista que é mais bem um

anti-herói (pícaro) e uma vítima das condições de vida (pobre diabo),

• a contínua mudança de profissões e condições de vida (cuja representação dá lugar a excursos de crítica social),

• a sátira dos sistemas de poder e da ideologia social do seu tempo.

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Exotismo→ Atracção pelo pitoresco de usos e costumes estranhos, pelo mistério das suas lendas e tradições, pela beleza sociológica de determinado povo, época, continente, etc. → Com os Descobrimentos, o interesse por povos e regiões estranhas à cultura ocidental foi estimulado.→ O Oriente proporcionava esse gosto: as cidades, as gentes diversíssimas, o mistério, o colorido, o aparato dos templos, as cerimónias fúnebres, surgiam como um grande filme documentário em cores naturais. → O confronto com a alteridade servia, frequentemente, como forma de dirigir uma crítica, mais ou menos subtil, às instituições, valores e formas de vida daquele que com ela contactava. → O exotismo desenvolveu-se grandemente com os românticos, satisfazendo ao mesmo tempo os seus anseios de evasão e a exigência da verdade na pintura do ser humano e dos seus costumes:

• A evasão no espaço era uma das formas de expressão do conflito da alma romântica com a sociedade a que pertencia;

• As narrativas de navegadores e aventureiros sugeriam muitas vezes ideais de mundos paradisíacos, bárbaros ou primitivos, que respondiam a alguns dos anseios dos autores da época.

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Exotismo na Peregrinação

Séc. XVI: Conhecimento acerca do exótico mundo oriental limitava-se a notícias vagas oferecidas

• Pelas obras de João de Barros, Castanheda e Diogo do Couto, • No Tratado dos diversos caminhos, por onde a pimenta veio da Índia às nossas

partes (1563) do capitão e apóstolo das Molucas, António Galvão, • No Tratado em que se contam muito por extenso as cousas da China (1570) do

dominicano Fr. Gaspar da Cruz e• a algumas referências contidas em cartas de missionários jesuítas.

FMP como um dos mais acabados exemplos do exotismo em Portugal:

• Descreve bem os exteriores geográficos da Índia, China e Japão: terras, cidades, templos, palácios, choupanas, estuários e cursos de rios, enseadas, litorais lamacentos, florestas, campinas.

• Desenha com perfeição curiosos quadros de etnografia: leis, costumes tradicionais, moral, assistência, administração de justiça, impostos em vigor, guerras, festas, bodas, funerais, o comércio e outras actividades de trabalho.

• Não se olvida de, ou em curtas digressões ou em narrações de casos concretos, nos pintar o carácter dessas longínquas populações do Oriente: sua docilidade e crueldade, sua hospitalidade ou venalidade e interesse, sua religiosidade, etc.

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Fausto, Por este rio acima, 1984

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“Quando às vezes ponho diante dos olhos”

http://www.portaldofado.net/content/view/1465/67/

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Comparem o capítulo I da Peregrinação com a canção «Quando às vezes…» de Fausto, que fecha o seu disco conceptual:

CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia

Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas as me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que Passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Ìndia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos comfins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida. E tomando para princípio desta minha peregrinação o que passei neste Reino, digo que depois de ter vivido até à idade de dez ou doze anos na miséria e estreiteza da pobre casa de meu pai na vila de Montemor-o-Velho, um tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para melhor fortuna, me trouxe para a cidade de Lisboa e me pôs ao serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz ilustres, parecendo-lhe que pela valia tanto dela como deles poderia haver efeito o que ele pretendia para mim. Isto era no tempo em que na mesma cidade de Lisboa se quebraram os escudos pela morte de E1-Rei D. Manuel, de gloriosa memória, que foi em dia de Santa Luzia, aos treze dias do mês de Dezembro do ano de 1521, de que eu estou bem lembrado, e de outra coisa mais antiga deste reino me não lembro. A intenção deste meu tio não teve o sucesso que ele imaginava, antes o teve muito diferente, porque havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava ao serviço desta senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude.

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E indo eu assim tão desatinado com o grande medo que levava, que não sabia por onde ia, como quem vira a morte diante dos olhos e a cada passo cuidava que a tinha comigo, fui ter ao cais da pedra onde achei uma caravela de Alfama que ia com cavalos e fato de um fidalgo para Setúbal, onde naquele tempo estava E1-Rei D. João III, que santa glória haja com toda a corte, por causa da peste que então havia em muitos lugares do Reino: nesta caravela me embarquei eu, e ela partiu logo. Ao outro dia pela manhã, estando nós em frente de Sesimbra, nos atacou um corsário francês, o qual abalroando connosco, nos lançou dentro quinze ou vinte homens, os quais sem resistência ou reacção dos nossos, se assenhorearam do navio, e depois de o terem despojado de tudo quanto acharam nele, que valia mais de seis mil cruzados, o meteram no fundo; e a dezassete que escapámos com vida, atados de pés e mãos, nos meteram no seu navio com a intenção de nos venderem em Larache, para onde se dizia que iam carregados de armas que para negociar levavam aos mouros. E, trazendo-nos com esta determinação mais treze dias, banqueteados cada hora de muitos açoites, quis a sua boa fortuna que ao cabo deles, ao pôr do Sol, vissem um barco e seguindo-o aquela noite, guiados pela sua esteira, como velhos oficiais práticos naquela arte, a alcançaram antes de ser rendido o quarto da modorra, e dando-lhe três descargas de artilharia a abalroaram muito esforçadamente: e ainda q na defesa tivesse havido da parte dos nossos alguma resistência, isso não bastou para que os inimigos deixassem de entrar nela, com morte de seis portugueses e dez ou doze escravos.Era este navio uma formosa nau de um mercador de Vila do Conde, que se chamava Silvestre Godinho, que outros mercadores de Lisboa traziam fretada de S. Tomé, com grande carregamento de açúcares e escravaria, a qual os pobres roubados, que lamentavam sua desventura, calculavam que valesse quarenta mil cruzados. Logo que estes corsários se viram com presa tão rica, mudando o propósito que antes traziam, se fizeram a caminho de França e levaram consigo alguns dos nossos para serviço da mareação da nau que tinham tomado. E aos outros mandaram uma noite lançar na praia de Melides, nus e descalços e alguns com muitas chagas dos açoites que tinham levado, os quais desta maneira foram ao outro dia ter a Santiago de Cacém, no qual lugar todos foram muito bem providos do necessário pela gente da terra, e principalmente por uma senhora que aí estava, de nome D. Brites, filha do conde de Vilanova, mulher de Alonso Perez Pantoja, comendador e alcaide-mor da mesma vila.Depois que os feridos e os doentes foram convalescidos, cada um se foi para onde lhe pareceu que teria o remédio mais certo da vida, e o pobre de mim com outros seis ou sete tão desamparados como eu, fomos ter a Setúbal, onde me caiu em sorte mão de mim um fidalgo do Mestre de Santiago, de nome Francisco de Faria, o qual servi quatro anos, em satisfação dos quais me deu ao mesmo Mestre de Santiago, como seu moço de câmara, a quem servi um ano e meio. Mas porque o que então era costume dar-se nas casas dos príncipes me não bastasse para minha sustentação, determinei embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões, já disposto a toda a ventura, ou má ou boa, que me sucedesse.

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IQuando às vezes ponho diante dos olhos A lusitana viagem Medonha Que eu dobrei Os tormentos passadosE os fados que chorei Arde o corpo em oração Entre pecado e perdão Agonia o coração E arde o corpo Do cotovelo da terra À pestana do mundo Fui treze vezes cativo Dezassete vendido Mataram os mares Milhares Num gemido Ai de mim sou missionário Foge cofre Já sou corsário Marinheiro Voluntário Ai de mim Quando às vezes ponho diante dos olhos A fúria da onda tremenda Rasgada no vento O assombro Da fronha de um monstro Que horrenda Estampada no breu Ai meu Deus O aperto em que estou

Olha o cobre e o ouro Olha o bobo que eu sou Que se escapa o tesouro Que me dá a fraqueza Enriquece bandido A saudade do Tejo O inventário da presa Meu amor dá-me um beijo Afasta-o do sentido E lá vou eu desvalido

IIQuando às vezes ponho diante dos olhos Os trabalhos tremendos Os perigos que passei O Inferno maldito Infinito Que afrontei Vem à boca uma prece A alma inteira estremece Arde Grita Enlouquece E vem à boca Um amargo de morte arrefece-me o corpo Um grande medo Meu Deus Que estala no peito Só o meu coração respira Amores perfeitos Que eu nem conto em segredoQue eu risquei do enredoNum latino arremedo Que eu nem conto Quando às vezes ponho diante dos olhos Cobras Lagartos Mostrengos Horríveis sarnentos O delírio dos rios Das selvas ardentes Da febre a queimar A matar Terra à vista Atenção

Espia como mercador Eu cá sou benfeitor Assalta como ladrão Olha o rombo na quilha Olha a tua quadrilha Quem me dera estar longe Empunha o machado Ser um anjo ser monge Aguenta safado Sendo o mais enjeitado

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IIIDe Lisboa p’ rá Índia Da Tartária ao Sião Da China à EtiópiaDe Ormuz ao Japão P’ lo Cabo do Mundo Passei por um triz Da Ilha Maluca À Arábia Feliz São de todas as cores As paixões os ardores Na voragem do cio O amor aplacado Entre esteiras deitado No porão do navio Vai o sonho entornado Quando às vezes ponho diante dos olhos As guerras Assaltos e gritas O sangue a jorrar A alagar Os turcos Senhora bendita Lançados ao mar A afundar Tangendo panelas

P’ró diabo que os leve Infiéis tagarelas Filhos de Mafamede Ai da vossa cegueira Dispara O roqueiro No rescaldo da afronta Amordaça o escravo Rezo pela desconta És cruzado és um bravo Dos pecados sem conta

IV De Lisboa p’ rá Índia Da Tartária ao Sião Da China à EtiópiaDe Ormuz ao Japão P’ lo Cabo do Mundo Passei por um triz Da Ilha Maluca À Arábia Feliz São de todas as cores As paixões os ardores Na voragem do cio O amor aplacado Entre esteiras deitado No porão do navio Vai o sonho entornado Foi de fio a pavio P'ró diabo que os leve Infiéis tagarelas Filhos de Mafamede Ai da vossa cegueira Dispara o roqueiro Amordaça o escravo És cruzado és um bravo Espia como mercador

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Assalta como ladrão Olha o rombo na quilha Empunha o machado Olha a tua quadrilha Aguenta safado Dos pecados sem conta És o mais enjeitadoO aperto em que estás Olha o cobre e o ouro Que se escapa o tesouro Que te dá a fraqueza Enriquece bandido No rescaldo da afronta Ai quem te dera estar longe Ser um anjo ser monge Reza pela desconta Entre apupos e gritas De mãos alevantadas Treme o bom jesuíta Ai Jesus que embrulhada Em pouco mais de dois credos Dois mil mortos no chão

Vinte e três afogados Trinta e quatro perdidos Nus e ajoelhados Sem contar os aflitos Pelas pernas abaixo Vai o pobre de mim De Quedá a Samatra De Malaca a Pequim Fugindo a sete pés Quando estoira o convés Perde-se ouro o provento A prata fina a saúde Mas glória santa me ajude A dar graças a Deus Misericórdia infinita Pois eu não me lamento Se ao fim de tantos tormentos Escapei deles com vida O Senhor seja louvado Santos apostolados Viva eu entre os mortais Pois não mereci mais Por meus grandes pecados

Pelejando um milhão Soçobrados em sangue Estalam mil bofetadas No traseiro de um cafre Sobrevoa o milhafre Seis cabeças rachadas Muitas feridas e chagas Numa grande chacina Entre insultos e pragas Chovem panelas de urina

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Recepção da PeregrinaçãoO relato desta viagem teve um grande êxito no estrangeiro, como provam as múltiples traduções que se publicaram em vários países, poucas décadas após a morte do autor: 1620 em Castelhano, 1625 em Inglês, 1645 em Francês e 1671 em Alemão. Depois ainda há constância de mais cinco traduções espanholas, quatro francesas, três ingleseas e quatro holandesas só durante o século XVII.

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Nome de uma rua em Macau

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A Peregrinação em banda desenhada

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BIBLIOGRAFIA PEREGRINAÇÃO

Edições

Fernão Mendes Pinto and the Peregrinação: studies, restored Portuguese text, notes and indexes.

4 vols. Lisboa: Fundação Oriente / Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010.

Peregrinação. Ed. modernizada por M. Alberta Menéres. 2 vols. Lisboa 1971.

Peregrinaçam. Ed. diplomática. Lisboa: INCM 1983.

Peregrinação.(Transcr. Adolfo Casais Monteiro). Lisboa, INCM, 1983.

Selecção de Estudos

Catz, Rebecca 1978. A sátira social de Fernão Mendes Pinto. Lisboa: Prelo.

------ 1981. Fernão Mendes Pinto - Sátira e Anticruzada na Peregrinação. Lisboa: Biblioteca Breve.

Correia, João David Pinto 1979. Autobiografia e Aventura na Literatura de Viagens: A «Peregrinação» de Fernão Mendes Pinto. Lisboa: Comunicação.

Le Gentil, G. 1947. Les Portugais em Extrème Orient: Fernão Mendes Pinto un précurseur de l´ Exotisme au XVième siècle. Paris: Herman.

Macedo, Helder 1998. A poética da verdade d’Os Lusíadas. In: GIL, Fernando & MACEDO,

Helder. Viagens do olhar. Lisboa, Campo das Letras, 1998. p. 121-141.

Saraiva, António José 1971. Fernão Mendes Pinto. 2. ed. Lisboa, Publicações Europa-América,

1971.

------ 1995. "Fernão Mendes Pinto e o Romantismo Picaresco", in id.: Para uma História da Cultura em Portugal, vol. II., Lisboa: Gradiva, 91-108.

------ / Lopes, Óscar 161996. "Literatura de Viagens Ultramarinas", in História da Literatura Portuguesa, Porto: Porto Editora, 293-310.

http://en.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Mendes_Pinto (último acesso, 26/XI/2010)

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