Fernanda de Araujo Izidório -...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Fernanda de Araujo Izidrio
O conceito de nous produtivo em Aristteles
v.1
SO PAULO
2017
2
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
O conceito de nos produtivo em Aristteles
FERNANDA DE ARAUJO IZIDRIO
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Filosofia do
Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo, para a obteno
do ttulo de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Marco Antnio de vila Zingano.
SO PAULO
2017
3
4
A meus pais,
Maria Francisca e Jos Izidrio
5
, , ,
, , .
Plato, Repblica IV, 435 C 7-8
6
Agradecimentos
Ao Professor Marco Zingano por me servir de guia e inspirao desde o incio de meu
caminho tortuoso pela filosofia, pelas grandes oportunidades que me proporcionou, pela
pacincia e pela enorme confiana em meu trabalho;
FAPESP e ao CNPQ pelo financiamento que tornou possvel minha dedicao a essa
pesquisa;
Aos Professores Roberto Bolzani e Luiz Henrique Lopes pelas correes e sugestes
durante meu exame de qualificao assumo total responsabilidade pela persistncia dos
erros;
Ao Professor Marwan Rashed por supervisionar meu trabalho durante o estgio de
pesquisa realizado na Universit de Paris Sorbonne (Paris IV) e pela oportunidade de
apresentar a primeira verso deste trabalho em seminrio do Centre Leon Robin.
A meus colegas do Grupo de Estudos de Filosofia Antiga;
Aos Professores Jos Carlos Estvo, Carlos Eduardo de Oliveira, Daniel Lopes, Evan
Keeling, Riccardo Chiaradonna, Fernando Gazoni e Paulo Ferreira;
Ao Departamento de Filosofia, Marie Marcia Pedroso, Luciana Nbrega e Geni Ferreira
Lima;
A meus amigos Simone Seminara, Julia Maia, Gustavo Vilhena, Andr Scholz, Eduardo
Marinho, Sacha Kontic, Marina Franconeti, Ruben Dario, Ildefonso Junior, Martin
Barbosa, Ana Beatriz Carvalho, Hugo Tiburtino, Dioclzio Faustino.
A Bruno Rosa, meu irmo de alma;
A Karina Tanada, meu outro eu;
A meus pais, Maria Francisca e Jos Izidrio, a quem gostaria de dedicar o melhor
trabalho do mundo e no seria suficiente;
A Adam Crager, meu companheiro de vida, que me apoiou em cada momento deste
percurso e que nunca me deixar esquecer Aristteles;
minha av Antnia, a quem eu gostaria de ter lido este texto.
7
Resumo
O volume de literatura secundria sobre o conceito aristotlico de nos produtivo
proporcional brevidade e obscuridade com que ele apresentado no quinto captulo
do terceiro livro do De Anima. Esta dissertao visa investigar as razes que fazem
deste texto terreno frtil para as mais diversas interpretaes. Para tanto, este estudo parte
do comentrio analtico de DA III 4-5, destacando as possibilidades interpretativas de
cada passagem e as variantes textuais mais significativas. Procurou-se explorar outras
passagens do corpus aristotlico que podem ser utilizadas para elucidar o contedo desses
captulos, considerando as opes adotadas pelos principais comentadores antigos. Aps
mostrar que o texto comporta igualmente as leituras mais dspares, buscou-se evidenciar
como elementos extratextuais, tais como a filosofia e o mtodo exegtico predominante
no tempo de cada interprete podem ser identificados nas opes adotadas. Para tanto,
adotou-se a obra de Alexandre de Afrodsia como objeto de exposio e anlise, uma vez
que sua identificao do nos produtivo Causa Primeira de Met. XII 7-9 a mais
influente e polmica das exegeses deste conceito. Para tanto, foram apresentadas suas
principais teses e contrastadas com a base textual aristotlica, de modo pr em relevo as
caractersticas do mtodo do Exegeta.
8
Abstract
The amount of secondary literature on the Aristotelian concept of productive nous
is proportional to the briefness and obscurity of its presentation in the fifth chapter of the
Book Three of the De Anima. This thesis aims to investigate the reasons why this text
offers a fertile ground for the most varied interpretations. Therefore, this text begins with
an analytical commentary on DA III 4-5, highlighting the interpretative possibilities and
the most significant textual variants of each passage. We searched for other passages of
the Aristotelian corpus that could help us elucidate the content of these chapters,
considering the options adopted by the main ancient commentators. After showing how
the text equally accepts the most disparate readings, we tried to evidence how extra-
textual elements, such as the philosophy and exegetical method predominant in the time
of each interpreter can are present in the adopted options. For this, the work of Alexander
of Aphrodisias was adopted as object of exposition and analysis, since its identification
of the productive nous to the First Cause of Met. XII 7-9 is the most influential and
polemical exegesis of this concept. His main arguments were presented and contrasted
with the Aristotelian textual background, to highlight the characteristics of the Exegetes
methods.
9
Sumrio
Agradeo ....................................................................................................................... 6
Resumo ......................................................................................................................... 7
Abstract ......................................................................................................................... 8
1. Introduo ................................................................................................................... 11
1.1. O problema do nous poietikos ............................................................................. 12
1.2. Principais exegeses do conceito de nos produtivo............................................. 17
2. O texto de De Anima III 4-5 ................................................................................... 22
2.1 Texto grego ........................................................................................................... 22
2.2. Traduo .............................................................................................................. 24
2.3. Comentrio .......................................................................................................... 27
3. O conceito de intelecto agente na obra de Alexandre de Afrodsia............................ 77
3.1. Introduo ........................................................................................................... 77
3.2. Textos sobre a notica ......................................................................................... 79
3.3. Intelecto agente no De Anima de Alexandre ................................................... 80
3.5. Concluso ....................................................................................................... 117
4. Consideraes finais ............................................................................................. 119
5. Bibliografia ........................................................................................................... 121
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Abreviaturas
A Aristteles
Alex Alexandre de Afrodsia
DA De Anima de Aristteles ou de Alexandre
DI De Intellectu de Alexandre ou Philoponus
GA De Generatione Animalium de Aristteles
GC De Generatione et Corruptione de Aristteles
Top. Tpicos de Aristteles
Fis. - Fsica de Aristteles
Pr. An. Analticos Primeiros de Aristteles
An. Po. Analticos Posteriores de Aristteles
Met. Metafsica de Aristteles
MR De Memoria et Reminiscentia de Aristteles
DS De Sensu et Sensibilibus de Aristteles
11
1. Introduo
Aviso aos leitores que o texto apresentado nessa dissertao o resultado parcial
de uma pesquisa que se mostrou um projeto muito ambicioso, impossvel de ser concludo
em um Mestrado e que deve ser continuado durante o Doutorado. No entanto, creio que
presente estudo atende ao objetivo inicial de minha pesquisa: circunscrever o problema
do nos produtivo e apresentar algumas das razes de sua diversidade de interpretaes.
Como o leitor ir notar, algumas partes do texto de DA III 4-5 no foram objeto do
comentrio analtico e dois dos subcaptulos sobre Alexandre so ainda incipientes. Optei
por mant-los no corpo do texto mesmo assim, para permitir a perspectiva do resultado
almejado por esse projeto.
*
* *
Todo leitor ver-se- em apuros caso busque por uma explicao inequvoca do
conceito de nous poietikos na obra de Aristteles. Neste caso, buscar ajuda entre os mais
renomados interpretes no far mais do que aumentar sua perplexidade. Da Antiguidade
aos scholars contemporneos, as mais dspares exegeses foram propostas e continuam
no deixando de ser igualmente plausveis do ponto de vista textual. O nico texto
aristotlico em que a noo de um nous que tudo produz (ho nous twi panta poiein - o
termo nous poietikos sendo posteriormente cunhado por seus comentadores), De Anima
III 5, extremamente sinttico (consta de apenas 15 linhas da edio de Bekker) e baseado
em trs analogias (este nous como a tcnica, como a luz e como a cincia em atualidade)
que podem ser interpretadas de diversas maneiras, de modo que, alm de carecer de
clareza, o texto comporta diversas leituras. Devido importncia que o conceito de nous
goza na obra de Aristteles e ao fato de no ser evidente qual a natureza e a funo do
nous poietikos, os leitores buscaram usar esse conceito para preencher diversas lacunas
explicativas do restante do corpus aristotlico, o que fez com que se tornasse uma noo
crucial nas filosofias de origem aristotlicas, ainda que cada autor tenha lhe atribudo um
sentido diferente. Da antiguidade tardia Idade Mdia, ele servira tanto para justificar a
ao de Deus sobre o entendimento humano, quanto para explicar a imortalidade da alma.
12
Este trabalho no quer ser mais uma voz na multido dissonante de exegeses
plausveis de DA III 5. Creio que mais proveitoso ao leitor seja conhecer algumas das
razes por que este texto servira de matria-prima para tantos edifcios interpretativos, e,
porque cada interpretao como um artefato, um produto do entendimento, decidi
inspirar-me no mtodo aristotlico e estudar tambm as causas formal, eficiente e final
da exegese. Para tanto, partirei da anlise do texto de De Anima III 4-5 (incluindo o
captulo 4 devido ao fato de que quase toda interpretao do nous poietikos uma
explicao da relao entre esses dois captulos), discutindo tanto questes de
estabelecimento do texto grego, quanto as possibilidades de leitura de cada trecho luz
de outras passagens do corpus aristotlico. Em seguida, tomarei em considerao a mais
antiga, reputada e polmica interpretao do conceito, a de Alexandre de Afrodsia,
expondo seu uso do texto de DA III 5 e as relaes feitas por ele com o restante do corpus
(aspecto formal), analisando as principais caractersticas de seus mtodo exegtico e suas
influncias implcitas (aspecto eficiente), e procurando identificar qual seria a funo da
exegese tal como concebida por Alexandre, qual seu pblico alvo e a que escolas
filosficas visava opor a obra de Aristteles (aspecto final). Infelizmente, devido aos
limites de um trabalho de mestrado, no foi possvel incluir aqui o estudo detalhado de
outras interpretaes importantes; nem mesmo uma apresentao mais precisa e rica dos
aspectos eficiente e final da exegese de Alexandre, que exigiriam um estudo mais
aprofundado do panorama filosfico da Antiguidade Tardia e da histria do Aristotelismo
at esse perodo, o que no apenas me foi impossvel realizar por ocasio deste trabalho,
como, de um modo geral, o estado da pesquisa sobre este assunto ainda muito limitado.
Antes de nos lanarmos ao estudo proposto, convm uma breve considerao dos
principais pontos de debate a respeito do conceito de nous poietikos e de algumas suas
mais prestigiadas exegeses da antiguidade contemporaneidade.
1.1. O problema do nous poietikos
Da epistemologia tica, na biologia e na filosofia primeira, o conceito de nos
(intelecto, entendimento ou pensamento) apresentado como o que h de primeiro,
melhor e mais divino na natureza humana. Nos An. Post. II 19 e na EN VI, nous designa
a disposio (hexis) da parte racional da alma responsvel pela apreenso dos princpios
da cincia e da ao; das vidas terrenas, aquela dedicada ao exerccio do nous (thewria)
a mais prxima da vida de que Deus desfruta eternamente (Met. XII 7-9, EN X); e na
13
gerao dos animais, o nous a nica funo da alma que vem de fora da relao desta
com o corpo e por isso a mais divina delas (GA II 3). Isso deixa claro o status
privilegiado atribudo a este conceito na filosofia de A., e no sem razo que nos tratados
acima ele seja mencionado, ainda que de maneira breve e pouco clara, como coroamento
da teoria em questo.
de se esperar que um conceito de tamanha importncia seja objeto de um estudo
mais detido, em uma teoria que apresente sua natureza e seu funcionamento com maior
clareza, mas o texto em que A. se dedica a esse estudo, DA III 4-8, est longe atender a
essa expectativa. A poro do De Anima dedicada ao estudo do nous (DA III 4-8) de
modo geral bastante elptica, supondo teses discutidas em outras partes do corpus sem
uma referncia explcita1, apresenta aparentes incompatibilidades quando comparada a
outras passagens semelhantes do corpus2, e baseia a necessidade de certos mecanismos
psicolgicos em fundaes cuja prpria certeza parece escassa3. Mas sobretudo no
captulo 5 que o leitor encontra seu maior desafio.
Analogamente ao que se passa no caso da natureza e da tcnica, tambm na alma
no h apenas aquilo que em potncia todos itens de um determinado gnero, mas
tambm aquilo que produz (poiei) todos esses itens. Por isso, bem como h um nos que
vem a ser todos os objetos noticos, tambm h o que responsvel por produzir todos
estes.
Dado que, assim como na totalidade da natureza, h algo que
matria para cada gnero (i.e., o que em potncia todas aquelas
coisas), e outro que causa e produtivo, ao que cabe produzir todas
as coisas, similar tcnica em relao a sua matria, necessrio que
essas diferenas tambm existam na alma. E de fato existe um tal nos
ao qual cabe vir a ser todas as coisas, e um outro ao qual cabe produzir
todas as coisas, como uma espcie de disposio, tal como a luz; pois
de certa maneira a luz tambm faz das cores que so em potncia,
cores em atualidade. ARISTTELES, De Anima III 5, 43010-17.
1 Por exemplo, o argumento de 429b10-22 supe o esclarecimento a respeito de que coisas so diferentes
ou o mesmo que suas essncias, sobretudo objeto na investigao sobre a substncia em Met. VII-IX.
2 Como a afirmao de que o nous tem como objeto no apenas o simples e o verdadeiro, em DA III 6, e
que aparentemente conflita com a concepo de nous nos An. Post. 3 Como o fato de a necessidade de imagens para o pensamento (III 8) ser concluda do que parece ser a
suposio de que tudo que existe tem magnitude, o que contrrio um princpio fundamental da filosofia
de A.
14
O nos que vem a ser todas as coisas comumente identificado como aquele de
que trata DA III 4. Naquele captulo, inicia-se o estudo do nous como uma das partes da
alma, i.e., como um dos princpios em razo dos quais um ser natural dito vivo. Destes
princpios, o nos e a sensao (aisthesis) so as capacidades discriminativas (kritikai) ou
cognitivas da alma e devem ser apenas em potncia tais quais seus respectivos objetos, a
fim de que a objetividade de suas apreenses no seja comprometida. Portanto, dado que
o nos da alma receptivo de todas as coisas (ou melhor, receptivo das formas (eid) de
todas as coisas), no deve ser nenhuma delas em atualidade (en energeiai) antes de noen,
mas todas elas em potncia, sua atividade consistindo no ato de assimilao em que ele
vem a ser cada uma dessas coisas ou formas. Logo, parece inevitvel associar a este a
meno ao nous twi panta gignesthai feita no incio de DA III 5.
A inovao deste captulo est na introduo de um nos de carter produtivo.
Este no mencionado de modo explcito em DA III 4, nem no restante do tratado de
notica, onde o nos sempre considerado enquanto capacidade cognitiva receptiva de
seu objeto. Quanto s associaes feitas entre este e conceitos de outras partes do corpus,
tais como o nos divino ou o nos que vem de fora so apenas frutos da interpretao
com base na descrio feita em DA III 5, mas nenhuma dessas outras passagens faz
meno explcita a um nos que tudo produz.
O pargrafo inicial daquele captulo (citado na pgina anterior) indica que este
nos possui um papel causal sobre aquilo que em potncia (como a luz faz das cores em
potncia cores em atualidade), o que usualmente faz com que o leitor lhe atribua um papel
causal sobre o nos da alma, mas essa inferncia no unanimemente aceita4.
Mesmo os que lhe atribuem um papel causal sobre o nos da alma so divididos
por uma srie de outras questes a respeito dessa interao. Primeiramente, qual dos
gneros de causalidade tradicionalmente distintos por A. esse nos desempenha: formal,
eficiente ou final? O fato de ser dito produtivo faz com que possa ser mais facilmente
tomado como uma causa eficiente. Mas tambm pode ser considerado como formal, caso
ele cause a atividade notica ao se tornar objeto do nos da alma, e, em ltima instncia,
porque a causa eficiente e final podem ser reduzidas causa formal. Pode ainda ser final,
4 Caston (1999)
15
na medida em que a causa primeira de tudo o que existe e, por conseguinte, de tudo que
objeto do nos, causa final5.
Relacionada a essa primeira, a questo dessa causalidade ser direta ou indireta.
Caso seja causa formal da atividade notica, i.e., caso cause a nosis enquanto noton, ou
caso seja causa eficiente sem nenhum motor intermedirio, podemos dizer que a
causalidade direta. Caso seja causa eficiente via motores intermedirios ou causa final
dos nota, a relao causal indireta. As analogias entre esse nos, a tcnica e a luz, no
contribuem para resolver a questo.
A fim de determinar qual seria o papel do nous poietikos na notica humana, os
leitores buscam pelas lacunas explicativas do restante da notica que poderiam ser
supridas por essa noo. Entre elas, as mais frequentemente mencionadas so: (i) a causa
da primeira atualizao do nos da alma, fazendo com que este passe a se os nota em
atualidade e adquira a disposio de mobiliz-los quando bem quiser; (ii) o elemento
produtivo que vem a ser na alma quando da primeira atualizao e que a causa da
ativao posterior dos nota conforme a vontade; (iii) a causa da universalizao das
formas apreendidas em particulares, dado que o nos depende das imagens de origem
sensvel e que essas so particulares e no universais como devem ser os objetos a que o
nos se dedica; (iv) aquilo que faz com que as formas venham primeiramente a ser nos
indivduos do mundo, fazendo com que sejam em atualidade na matria que os possua
apenas em potncia e que possam, posteriormente, ser objetos do nos humano. Porm,
essas possibilidades no passam de frutos da especulao dos interpretes e, como
mostrarei no comentrio, nenhuma delas encontra maior apoio no texto de DA III 5 que
as demais.
A respeito dessa causalidade, h ainda a questo de se uma nica em relao a
todos os seres humanos ou se a funo notica de cada indivduo depende de um nous
poietikos particular. Se considerarmos o fato de que esse nos impassvel e eterno (ver
citao abaixo), no parece que ele possa diferir dos demais do ponto de vista formal e de
seu contedo, sendo ao menos um em logos. No entanto, o nos poietikos causa a
atualizao de diferentes nota na em diferentes pessoas, de modo que uma pessoa pode
noen coisas a outra jamais entreter, o que pode levar o leitor a pensar que este deva ser
diferente, ao menos em nmero.
5 Met. XII 7.
16
Os interpretes dividem-se no apenas quanto a funo do nous twi panta poiein,
mas sobretudo quanto a sua natureza, descrita da seguinte maneira na sequncia do
captulo:
E esse nos separvel, impassvel, e no misturado, sendo per se
atividade. Pois o que produz sempre mais venervel que o que
afetado, e o princpio, mais venervel que a matria. A cincia em
atualidade o mesmo que seu objeto; e a cincia em potncia
anterior temporalmente no indivduo, ainda que no seja
temporalmente anterior de um modo geral. Mas no o caso que noe
algumas vezes e outras, no noe. E somente tendo sido separado
que isso precisamente o que , pois apenas isso imortal e eterno.
Mas no nos lembramos porque esse impassvel, ao passo que o
nos passivo perecvel, e sem esse nada noe. ARISTTELES,
De Anima III 5, 43017-25.
Alguns interpretes tendem a identificar o nos objeto desta passagem a Deus, o
primeiro motor imvel tal como descrito em Met. XII 7-9, devido aos atributos comuns
entre suas naturezas. O primeiro motor tambm um nos per se em atividade, separado
da magnitude, impassvel, no misturado, eterno e imortal, sendo tambm ele um ser vivo.
Alm do mais, o primeiro motor tambm dito causa de todas as coisas, a causa primeira.
No entanto, o nos divino aristotlico no um demiurgo e, portanto, no causa
maneira de um arteso da forma vir a determinar a matria, ao passo que o nos de DA
III 5 anlogo tcnica. Essa leitura tambm bastante criticada pelo fato de que que,
para A., o nos divino no o nico que imortal e eterno, essa descrio tambm sendo
aplicada aos demais motores imveis das esferas celestes, de modo que para que o nos
poietikos seja o nico com tal descrio, o mbito a que a expresso se refere deve ser
mais restrito do que o universo tomado por inteiro.
O nos que vem a ser todas as coisas e o nos que produz todas as coisas so
distines na alma (en ti psykhi 43013), o que leva outros interpretes a tomarem
tambm o segundo como parte da natureza humana. Estes afirmam principalmente que o
nos twi panta poiein o aspecto produtivo da disposio adquirida pelo nos da alma
aps noen e que por isso este nos dito ser como uma espcie de disposio (430
15). Outro fator destacado por eles que tambm o nos de DA III 4 caracterizado como
impassvel, no misturado e separvel, de modo que o nos poietikos s diferiria em ser
per se em atividade porque o aspecto motor imvel da disposio. No entanto, tambm
17
essa leitura encontra dificuldades. Primeiro porque, se esse nos uma disposio, ele
adquirido e no eterno. Tambm porque o nos humano, mesmo quando de posse da
disposio, pode ora noen, ora no, e variar quanto ao objeto do pensamento, ao passo
que o nos de DA III 5 no tal que possa ora noen, ora no, mas noen eternamente,
uma vez que isso faz parte de sua substncia.
H os que defendam que o nos produtivo no seja mais que o prprio conjunto
das formas que servem de objeto ao nos humano, ou ao menos a mais primordiais delas
como os princpios ou as substncias primeiras. Isso deve-se sobretudo a meno do caso
da cincia em atualidade e sua prioridade em relao cincia em potncia, o que seria
anlogo a maneira como o nos produtivo primeiro em relao ao passivo. No entanto,
seria necessrio explicar como esse conjunto de formas e princpios constituem algo vivo,
pois o nos produtivo dito imortal e, portanto, deve ser algo que possui vida. Alm
disso, a passagem de 430a19-22 que contm a meno ao caso da cincia pode no ter
feito parte do texto original, mas inserida posteriormente, pois idntica s trs primeiras
linhas do captulo 7 e so muito mais claramente integradas ao contexto daquela passagem
do que ao presente.
Nessa rpida incurso pelos principais pontos de divergncia entre os interpretes
j possvel ter uma ideia de como o texto de DA III 5, devido ao seu carter sinttico e
ao uso de analogias abertas larga interpretao, serve de pretexto s mais diversas
leituras, mas no nos permite decidir por nenhuma delas sem dificuldade. O que faz,
ento, com que os exegetas prefiram uma delas s demais? O objetivo deste trabalho
mostrar que isso depende tanto das relaes estabelecidas entre este texto e outras
passagens do corpus - o que pode variar de acordo com a concepo que cada leitor possui
da unidade e sistematicidade da obra de A. -, como tambm de quais questes que o
exegeta prope ao texto responder, sejam elas dificuldades internas a doutrina de A. ou
mesmo nem sequer consideradas por esta, mas objeto de interesse do prprio leitor.
Uma breve enumerao das mais reputadas exegeses deste conceito nos permite
vislumbrar como as razes extratextuais contribuem para sua grande variedade.
1.2. Principais exegeses do conceito de nos produtivo
As dificuldades da notica aristotlica fizeram-se notar at mesmo entre os
discpulos diretos de A. Teofrasto (371-287 a.C), sucessor de A. frente do Liceu,
18
conhecido por tomar criticamente a obra de seu mestre, apontando-lhe as dificuldades e
acrescentando sua prpria contribuio ao assunto; sem abandonar aquela doutrina, mas
com vistas a dela produzir uma verso mais aperfeioada.6 O que temos de sua obra
bastante escasso, em comparao como a grande extenso da produo que lhe atribuda
por Digenes Larcio7, e no tocante notica, possumos apenas fragmentos de sua
Fsica e de seu De Anima, mencionados por Themistius, Alberto Magno e Prisciano
de Ldia. Eles consistem basicamente de uma srie de aporias a que levado o leitor do
DA de A. e pouco possvel entrever do que o prprio Teofrasto considera uma boa
soluo para elas. Entre as lacunas explicativas de DA III 4, ele questiona: De que maneira
o nos vem a ser seus objetos? Como algo incorpreo como o noton pode afetar algo
incorpreo como o nos? E, sobretudo, como o nos pode ser todos seres em potncia e
nenhum em atualidade sem que deixe de ser ele mesmo aps a assimilao do objeto?
Sua resposta prope que o nos seja um composto, como um aspecto potencial e um
produtivo. Aquilo que vem a ser todos os nota uma espcie de potencialidade
subjacente ao composto, de modo que a distino entre dois aspectos possvel apenas
conceitualmente8. Segundo Alberto Magno (Sobre a tica 2.4), a proposta de Teofrasto
que o nos produtivo que seja um agente universal que opera distines nos agentes
particulares, i.e., nos objetos do nos, tornando-os atualmente nota ao universaliz-los.
Desse modo, o nos atualizado sem ser afetado por nada outro que ele mesmo em um
diferente aspecto. Mesmo assim, no claro para Teofrasto, se esse aspecto motor
(kinon) inato (sumphus) ou vem a ser aps a gerao original. Caso seja inato, deveria
existir ou ser na alma sempre. Ento, por que a atividade do nos no constante? Caso
seja posterior e venha de fora, quando e como isso ocorre se no-gerado e imperecvel?
Essas so algumas das aporias destacadas, mas deixadas em aberto por Teofrasto. De
toda forma, o fato de que este aponta para algumas das principais dificuldades com que
nos deparamos at hoje, mesmo tendo conhecimento em primeira mo da doutrina do
nos intendida por A. e no tendo que lidar com os prejuzos ao longo da transmisso
textual, demonstra que a obscuridade deste texto no deve a uma diferena lingustica ou
a uma corrupo textual.
Teofrasto pode ter sido o primeiro a se pronunciar sobre a notica aristotlica, mas
na obra de Alexandre de Afrodsia (II-III sc. d.C) em que temos a primeira tentativa
6 Introduo edio das obras completas e artigo de K. Ierodiakonou Stanford Encyclopedia. 7 Nota a DL e s obras de Teofrasto al mencionadas. 8 Themistius
19
de compreender a doutrina do Estagirita como uma teoria completa. Se Teofrasto tomava
o texto de A. como parte de um projeto filosfico a ser corrigido e continuado por sua
contribuio prpria, o objetivo de Alexandre, de acordo com suas prprias palavras,
de simplesmente ser porta voz da filosofia de A., expondo-a da maneira mais claro
possvel, uma vez que a considera as palavras do Estagirita as mais prximas da verdade
dentre todas at ento expressas. Devido a seu objetivo puramente exegtico,
consideraremos a obra de Alexandre em seus detalhes mais adiante nesse trabalho. Mas,
por ora, basta-nos indicar que a principal marca de sua interpretao a identificao
entre o nos produtivo e o primeiro motor imvel de Met. XII. Isso lhe parece necessrio
porque este nos dito causa de todas as coisas e, segundo ele, aquilo que causa deve
ser no mais alto grau aquilo mesmo que produzido (tudo que bom, por exemplo, deve
ter sua causa no que supremamente (malista) bom) e no h algo noton superior a Deus,
que em atividade por sua prpria essncia. Sua leitura posiciona-se contra aqueles que
julgam encontrar em DA III 5 a concesso aristotlica imortalidade da alma humana,
uma vez que isso poderia parecer incongruente com o compromisso ao hilemorfismo
comprometer a sistematicidade da obra. Sua interpretao foi certamente a mais reputada
durante a Antiguidade Tardia e a Idade Mdia, e atraiu tanto admiradores (com grande
influncia entre os leitores rabes de A., tendo recebido de Averroes a alcunha de o
Exegeta), quanto crticos (dentre eles, Themistius e os neoplatnicos Philoponus e
Simplcio), que buscaram posicionar-se em relao a suas teses e adotaram seu
vocabulrio.
Themistius (aprox. 317 a 388 d.C) possuiu sua prpria escola em Constantinopla
(ao menos no perodo entre 345 e 355 d.C) e suas parfrases das obras de A. foram
provavelmente produzidas para o ensino. Apesar de ser usualmente classificado como
aristotlico, por suas parfrases buscarem ater-se letra do texto do Estagirita, no
possua ligao escolstica com nenhuma doutrina especfica e, ainda que em outros
textos oponha-se a posies de seus contemporneos neoplatnicos, na parfrase ao DA,
particularmente afeito a filosofia platnica, utilizando-se de referncia explcita ao
Timeu em suporte a sua leitura. A influncia da exegese de Alexandre sobre a sua
claramente sentida: por um lado, ele concorda com Alexandre em que o nos produtivo
a causa do vir a ser da disposio para pensar por si prprio no nos potencial e que isso
se d pela universalizao do contedo das imagens particulares advindas da percepo;
por outro, critica-o expressamente por sua identificao do nos produtivo a Deus, o que
20
seria interdito pela distino potencial-produtivo dever se dar na alma. Segundo ele, o
nos capaz de noen por si mesmo (DA III 4, 4297) justamente porque tem esses dois
aspectos. O produtivo a causa da forma ou perfeio vir a ser no potencial e ele mesmo
essa forma, na medida em que nada mais que o corpo de conhecimentos de que o nos
dispe quando pode pensar por si mesmo. Ele deve ser um nico para todos, uma vez que
no possui matria e o que diferencia indivduos de mesma essncia a ligao com
matrias diversas; deste modo, tambm o nos potencial deve ser um para todos, pois
tambm separado do corpo, ainda que lhe seja congnito. Se tambm separado e, por
conseguinte, imperecvel, o nos potencial deve ser outro que o nos pathetikos
(mencionado ao fim de DA III 5), que emoes (path), imagens e pensamento discursivo
(dianoia) que servem de matria para a produo do universal no nos potencial pelo nos
produtivo, e, por conseguinte, perece com o corpo. Logo, ao contrrio de Alexandre,
Themistius reconhece em DA III 4-5 a tese aristotlica da imortalidade da alma, na
medida em que o nos potencial, nem o nos produtivo pertencem alma humana e no
perecem com a dissoluo do composto; mais precisamente, reconhece o Eu (to egw) no
nos produtivo, uma vez que esse o que no se lembram quando separado do pathetikos.
O filsofo cristo de educao neoplatnica Joo Philoponus (aprox. 490 a 570
d.C), tambm conhecido como Joo o Gramtico (devido a sua ocupao como professor
de filologia em Alexandria), concorda com Themistius em que o nos produtivo deve ser
parte da natureza humana. Em seu nome, possumos dois textos diferentes sobre a notica
de A.: seu comentrio ao DA III 4-8 de A. (cuja autenticidade questionada) e o De
Intellectu (comentrio quela mesma poro do tratado de A., conservado apenas em
latim, traduo do sc. XIII feita por William de Moerbeke), texto que pode ter ocupado
originalmente o lugar do comentrio tradicionalmente atribudo ao autor. Apesar de
diferentes em estilo, quase no divergem em relao s principais teses da exegese.
Ambos admitem que o nos produtivo seja parte da alma, no como a parte ativa de um
composto com o nos material, mas sendo idntico ao potencial quando aperfeioado, o
nos que possui seus objetos (adquiridos via educao) e pode pens-los quando quiser.
O aperfeioamento do nos potencial deve dever-se a um nos que j em atividade,
porquanto na natureza tudo atualizado por algo que j o em atualidade; ex. o homem
gerado produzido por um homem em atualidade. Para os autores, esse nos
aperfeioador no uma entidade sobre humana e eternamente em atividade, mas aquele
do professor, tendo ele mesmo j sido potencial um dia. Essa concepo do nos
21
permitiria explicar sua caracterizao em DA III 5 sem identific-lo causa primeira: ele
produz todas as coisas por nada mais ser do que a atualizao das formas que o nos
potencial tinha em potncia, como um pintor que inscreve impresses em um quadro em
branco; ele em atividade por sua prpria substncia porque o conhecimento a atividade
do conhecedor e este age porque possui esse conhecimento; ele noe sempre, no porque
o nos individual noe sempre (uma vez que este noe ora sim, ora no), mas porque do
ponto de vista eternidade do gnero humano, sempre houve, h e haver algum nos em
atividade. Todavia, os dois textos divergem no tocante imortalidade da alma: para o
autor do comentrio ao DA, a alma humana como um todo imortal, ao passo que o nos
alm de imortal eterno (pelo motivo que acabamos de mencionar); j para o autor do
De Intellectu, apenas a nos ou a parte racional da alma imortal, as demais partes
perecendo com o corpo. Em ambos os textos, preciso observar que o autor possui
educao de base neoplatnica e est comprometido em apresentar a filosofia aristotlica
em maior acordo possvel com a doutrina de Plato, caracterstica dos comentrios
produzidos pelos neoplatnicos do perodo bizantino, dentre os quais se encontra
Philoponus.
Boa parte do desafio que enfrentamos ao ler Aristteles hoje deve-se diferena
lingustica em relao ao grego antigo. O fato de que, ao traduzirmos, limitamos bastante
as possibilidades interpretativas do texto evidncia disso. Mas a diversidade entre as
leituras do conceito de nos produtivo sugeridas por esses quatro comentadores de
Aristteles aplicando o termo a Teofrasto em sentido lato mostra como a dificuldade
de DA III 5 vai alm da barreira lingustica. mesmo anterior transmisso textual, visto
que mesmo Teofrasto destaca essas dificuldades. Porm, o modo como cada um deles
busca contornar essas dificuldades e oferecer uma interpretao definida difere e isso, em
parte, devido a suas circunstncias histrico-filosficas.
Por isso, este estudo do conceito de nos produtivo se ocupar no apenas do
estudo analtico do texto aristotlico em que esse conceito apresentado, mas tambm
em mostrar como a interpretao pode ser influenciada por fatores extrnsecos ao texto,
o que ser feito por meio da apresentao detalhada das teses de Alexandre de Afrodsia.
22
2. O texto de De Anima III 4-5
2.1 Texto grego
III 4
[42910] ,
, '
, . ,
[429a15] . ,
, ,
, . , ,
, , , ' [429a20]
( ) '
' , . (
)
[42925] ,
, , ' .
, ' ,
. ' [42930]
, .
[429b1] ,
, ' '
, ,
[429b5] , . '
' (
' ), ,
.
[429b10] ' , (
' , ' ' ),
, '
, . [429b15] ,
,
, . '
, [429b20] ,
23
. .
, .
[429b22] ' ,
, , , [429b25] (
, ), '
, ' ,
, , .
[429b30] , , '
, ' [430a1]
.
.
[430a5] (
) .
' ( ),
.
III 5
[43010] ' (
), , ,
,
[43015] , , ,
.
,
. ' [43020]
' ,
, ' ' . ' '
, ( , ,
[430a5] ) .
24
2.2. Traduo
III 4
[42910]A respeito da parte da alma com a qual a alma conhece e pensa - seja ela
separvel, ou no separvel quanto magnitude, mas apenas logicamente - preciso
investigar qual seu trao distintivo, e, ainda, como surge o pensar. Ento, se o pensar
for como o sentir, ele consistir em uma espcie de ser afetado pelo objeto inteligvel,
[42915] ou algo outro desse tipo. Ora, preciso que ele seja impassvel e, no entanto,
receptivo da forma, isto , que seja tal qual ela em potncia, porm sem s-la de fato; isto
, do mesmo modo que a sensibilidade para com objetos sensveis, o intelecto deve ser
para com os inteligveis. Ora, visto que pensa todas as coisas, necessrio que seja sem
mistura, como diz Anaxgoras, a fim de que domine, isto , a fim de que conhea:
[42920] pois a aparncia concorrente de uma forma [prpria] do intelecto impede e
bloqueia a forma estrangeira. Logo, ele no possui nenhuma natureza que lhe seja prpria,
alm desta, a saber, a de ser potencial. Ento, o chamado intelecto da alma quero dizer
o intelecto com o qual a alma pensa discursivamente e julga no em atualidade nenhum
dos seres existentes antes de pensar. Por isso, tambm no correto dizer que ele seja
misturado [42925] ao corpo; pois ele viria a ser uma certa qualidade, frio ou quente, ou
mesmo que fosse um rgo, como o caso da sensibilidade, mas no o do intelecto. E,
ento, esto corretos aqueles que dizem que a alma o lugar das formas, exceto que no
a alma por inteiro, mas apenas a parte intelectiva, nem a forma em atualidade, mas
[somente] em potncia. E que a impassibilidade [42930]da sensibilidade no
semelhante do intelecto evidente pela considerao dos rgos dos sentidos e da
atividade da sensao. Pois a sensao no pode perceber [429b1]aps um objeto sensvel
intenso, de modo que no pode perceber o som aps um som muito alto, nem ver ou sentir
cheiros aps cores ou cheiros fortes. Mas, quando pensa um inteligvel intenso, o intelecto
no menos capaz de pensar aqueles que so em menor grau; pelo contrrio, pensa-os
ainda melhor. [429b5]. Pois a parte sensitiva no existe sem o corpo, mas a intelectiva
separada. Alm disso, quando [o intelecto] vem a ser cada coisa dessa maneira, a saber,
do modo como aquele que conhece dito estar em atividade (o que ocorre quando pode
pr-se em atividade por si prprio), tambm nesse momento ele dito ser de certa forma
uma potencialidade; contudo, no de modo semelhante quele em que dito [potencial]
antes de aprender e descobrir. Porque nesse momento ele pode pensar a si mesmo.
25
[429b10] Uma vez que a magnitude outra coisa que o ser da magnitude, e a gua
outra coisa que o ser da gua (esse tambm sendo o caso de muitas outras coisas, mas
no de todas, pois no caso de algumas [o que elas so e o ser o que so] a mesma coisa),
com outra [parte da alma] ou com a mesma, mas de um modo diferente, que [a alma]
discrimina a carne e o ser da carne. Pois a carne no existe sem a matria, mas como
caso do nariz chato, um isto naquilo. [429b15] Ento, com a [parte] sensitiva [a alma]
discrimina o quente e o frio, pois a carne uma proporo destes. Mas com outra [parte
da alma] - seja ela separada [da sensitiva] ou seja para essa [a que conhece a carne] como
a linha curva est para ela mesma quando endireitada - que [a alma] discrimina aquilo em
que consiste ser carne. Novamente, no caso dos seres abstratos [i.e. abstraes
matemticas], o que reto como o chato do nariz; pois pertence ao que contnuo. Mas,
se aquilo em que consiste o ser reto diferente daquilo que reto, [429b20] a essncia
[do reto] outra: suponham, pois, que [essa essncia] seja dade! Ora, com uma [parte]
diferente ou com a mesma de uma maneira diferente que [a alma] discrimina [a essncia].
Portanto, de um modo geral, tal como so as coisas separadas da matria, tambm so as
[coisas] no caso do intelecto.
Algum poderia objetar: Como possvel haver pensamento, se o intelecto
simples, impassvel e no tem nada em comum com nenhuma outra coisa - precisamente
como diz Anaxgoras -, [e] se o pensar consiste em uma espcie de ser afetado? [429b25]
Pois parece que na medida em que partilham de algo em comum que algo age e um
outro afetado. E mais: Seria o intelecto ele mesmo inteligvel? Pois ou bem o intelecto
pertencer [tambm] aos outros inteligveis se no em virtude de outra coisa, mas de
si mesmo que inteligvel, e se o inteligvel um em forma -, ou bem possuir algo
misturado a ele, que o faz inteligvel precisamente da mesma maneira que [faz
inteligveis] as outras coisas. Ou o ser afetado em virtude de algo comum [429b30]
seria o que foi distinto anteriormente, que antes de pensar, de certa maneira, o intelecto
seria em potncia os objetos inteligveis, mas no seria nenhum deles em atualidade? Mas
em potncia [4301] desta maneira, a saber, precisamente como em uma tbula rasa que
no contm nada escrito atualmente; precisamente isso que se passa no caso do intelecto.
E ele tambm inteligvel do mesmo modo que os [outros] inteligveis. Isso porque, no
caso dos [inteligveis] sem matria, aquele que conhece o mesmo que aquele que
conhecido; pois a cincia teortica e aquilo que conhecido [4305] dessa maneira [i.e.
conhecido sem a matria] so o mesmo. Mas preciso investigar qual a causa do pensar
26
no ocorrer sempre. No entanto, naqueles que possuem matria, esto em potncia cada
um dos inteligveis. Assim, por um lado, o [ser] intelecto no pertencer a esses (i.e., os
que possuem matria), pois o intelecto a potncia imaterial de ser tal qual eles; mas, por
outro, ao intelecto pertencer o [ser] inteligvel.
III 5
[43010] Uma vez que, como no conjunto da natureza h algo que matria para cada
gnero (isto , o que em potncia todas aquelas coisas), e outro que causa e produtivo,
ao que cabe produzir todas as coisas, tal como o caso da tcnica em relao matria,
necessrio que essas diferenas tambm existam na alma. E de fato h um tal intelecto
ao qual cabe [43015] vir a ser todas as coisas, e um outro [intelecto tal] ao qual cabe
produzir todas as coisas, como uma espcie de disposio, tal como a luz; pois de certa
maneira a luz tambm faz das cores que so em potncia, cores em atualidade. E esse
intelecto separado, impassvel, e no misturado, sendo atualidade por natureza. Pois o
que produz sempre mais valioso que o que afetado, e o princpio mais valioso que a
matria. [43020] A cincia em atualidade o mesmo que seu objeto; e a cincia em
potncia anterior temporalmente no indivduo, ainda que no seja temporalmente
anterior de um modo geral. Mas no o caso que pensa algumas vezes e outras, no pensa.
E somente [enquanto] separado que isso [i.e. intelecto produtivo] precisamente o que
, pois apenas isso imortal e eterno. Mas no nos lembramos porque esse [intelecto
produtivo] impassvel, ao passo que o intelecto passivo [43025] perecvel, e sem esse
[intelecto] nada pensa.
27
2.3. Comentrio
429 10-11 - -. A
alma sujeito da funo de ginwskei te kai phronei na qual emprega uma de suas partes.
Em I 4, A. critica aqueles que dizem que a alma sujeito de funes como manthanein
e dianoeisthai o homem o sujeito dessas funes devido alma. possvel interpretar
essa diferena: seja como apropriada e indicativa de que essa parte da alma no
partilhada com o corpo (429 b5); seja como problemtica, dado que, em 429 a23, A.
chama de nous aquilo com que a alma novamente como sujeito dianoetai, no
podendo se tratar de uma diferena de modo de funcionamento. natural que a parte da
alma aqui designada seja identificada ao nous, dado que o presente perodo encerrado
pela questo como vem a ser o noen? E que essa capacidade ou funo da alma ser o
objeto da investigao deste e dos prximos trs captulos. No entanto, no raro que os
comentadores reconheam na meno a partes da alma a diviso em to alogon e to
logon ekhon - cara tica aristotlica (EE 1219b27-32,1220 a20; EN 1102 a27-28) -,
identificando esta ltima como a parte referida nessa passagem. Igualar nous a to
logon ekhon problemtico no contexto da tica, pois nous apenas uma das virtudes
dessa parte da alma, havendo ainda doxa, epistm, phronsis e sophia. No
entanto, no DA, nous e o verbo noein possuem um sentido mais amplo que o da tica:
em 427b8-11, no captulo imediatamente anterior a passagem estudada, phronsis,
epistheme, doxa (bem como seus contrrios incorretos) so ditos tipos de noein.
Ainda assim, no claro que a igualdade entre nous e to logon ekhon possa ser
estabelecida mesmo no DA. Em 432 a22-b7, A. problematiza a diviso da alma em parte,
sobretudo aquela entre to alogon e to logon ekhon, dado ser muitas vezes impossvel
enquadrar as dunamei da alma em apenas uma das partes: o caso da sensao e do
desejo que pertenceriam tanto parte racional quanto irracional. No DA, a partio
de acordo com as dunamei parece, portanto, a preferida; ainda que no seja propriamente
dita uma diviso, pois algumas das potncias da alma no existem sem as outras (413
b13-29; 433 a31-b5). Por fim, outra tendncia do leitor familiarizado com o vocabulrio
da tica identificar em phronei uma referncia ao uso prtico da razo, visto que
naquele tratado phronsis dita a virtude da parte to logon ekhon da alma, voltada
ao concernente ao que bom ou mal para o homem. (EN VI 5,1140b4-7, 25-28). Assim,
no estranho que os comentadores compreendam que ginwskei e Phronei marquem
desde o incio do estudo do nous a distino explicitada em III 10 (433 a14-15) entre
28
os aspectos terico e prtico, respectivamente, dessa capacidade da alma. No entanto,
plausvel que este no seja o uso intentado por A. nessa passagem. No captulo
imediatamente anterior, phronein usado em um sentido no tcnico e com a mesma
generalidade que vimos acima tambm ser atribuda a noein, equivalendo a pensar
(427 a19; b6-7). Como uma importante caracterstica da psicologia e epistemologia
aristotlicas reconhecer na aisthesis tambm uma capacidade para gnwsis, a
incluso de phronei pode ser tomada como a tentativa de indicar a peculiaridade do
nous enquanto capacidade cognitiva.
429 a11-12- As
variantes textuais dessa passagem no possuem impacto em seu sentido. De acordo com
Philoponus (autor do De Intellectu, 2, 15-27), essa passagem menciona a primeira de trs
questes relativas ao nous que sero objetos de investigao nesses captulos: alm de
buscar pela diferena dessa parte da alma - diferena em relao ao sentido, segundo ele
e pela explicao de como o noein vem a ser, A. estaria se comprometendo desde o
incio da investigao a responder se o nous separvel e de que modo. O fato de que
o nous seja dito khwristos em 429b5 e 430 a22 pode ser tomado como evidncia da
posio central que essa questo ocupa na investigao. No entanto, como veremos a
propsito da prxima nota, os nicos objetos do adjetivo verbal skepton so '
e e, portanto, apenas essas duas questes so
apresentadas como etapas mandatrias da investigao. Outra possibilidade tomar a
presente passagem como aposto de moriou em 429 a10. Tanto aquele termo quanto essa
passagem se encontram no genitivo e funcionam como referente de peri, constituindo
o objeto do qual se ocupar o estudo que se inicia; esse trecho, porm, no adiciona um
novo objeto da investigao, mas apenas especifica o aspecto da referida parte da alma
nos interessar particularmente a essa investigao. A articulao das partculas eite...
eite... apresenta duas alternativas igualmente possveis: ou bem a parte da alma em
questo separvel kata megethos ou no. Kata megethos contm ao menos duas
possibilidades interpretativas. Dado que a magnitude uma propriedade do corpreo e
que neste captulo o nous ser dito independente do corpo e separado (429b5), uma
tendncia seria identificar na passagem a questo sobre a incorporalidade do nous
anteriormente no tratado (413 b24-27); a possibilidade de independncia do corpo j
havia sido associada exclusivamente ao nous e tal questionamento no apareceu na
investigao de nenhuma das demais faculdades. No entanto, como veremos mais adiante,
29
h controvrsia sobre se a independncia do nous em relao ao corpo para seu
funcionamento implica que ele no se encontre em uma parte do corpo. Outra
possibilidade interpretar essa separabilidade no em relao ao corpo de um modo geral,
mas em relao s demais faculdades, caso essa parte da alma se encontre em uma parte
do corpo diferente daquela em que se encontram as demais. Essa interpretao parte da
semelhana dessa passagem com outras partes do tratado em que A. questiona se as partes
da alma (i.e., dunamei) so separadas kata topos ou apenas kata logon (413 b13-
16), de modo que a megethos deve ser tomado como equivalente a topos. O fato de
que o caso do nous tenha sido o nico deixado em suspenso na passagem em que essa
questo foi mencionada anteriormente seria evidncia de que se trata aqui da mesma
pergunta. Essa questo possui origem platnica (Timeu 69C-70A), o que explica em
parte a adeso de Plutarco a essa interpretao (REF). Simplicius aponta ainda para uma
outra possibilidade interpretativa: no caso daqueles que identificam na notica aristotlica
a distino de mais de um nous, seria plausvel ainda perguntar se esses nous so
separados em magnitude ou apenas conceitualmente. Em todo caso, a passagem supe
que essa parte da alma seja separada ao menos kata logon: pois se possvel estud-la
separadamente o que a finalidade mesma do presente estudo - porque ser separvel
(seja do corpo, das demais partes da alma ou dos demais nous) em conceito ou
definio, ainda que se mostre inseparvel de fato.
429 a12-13 - ' No h variantes textuais nessa passagem.
' e so os nicos complementos de skepteon
e, logo, os nicos enunciados como questes a que a investigao que se inicia deve
obrigatoriamente responder; no entanto, alguns comentadores adicionam a essas a
passagem de 429 a 11-12. pode ser interpretado de duas maneiras: (i) como
caracterstica distintiva de to noein ou (ii) como distino entre espcies internas ao
gnero to noein (cf. Cat. 1b 17-21, 3b1; DA 413b20; 421). possvel adotar (ii) caso
interpretemos que 429b10-22 responde a essa questo, na medida em que distingue tipos
de funes noticas correspondentes aos diferentes graus de abstrao do noeton essa
opo tambm possvel caso identifiquemos essa distino quela entre nous
theortikos e nous praktikos (432 a27ss) (cf. Alex DA 81, 5-13), mencionada na nota
de 429 a10-11; ou ainda caso relacionemos essa passagem com aquela que menciona o
nous twi panta ginesthai e o nous twi panta poiei como diforas na alma (430 a10-
17). No entanto, preciso notar que nas passagens que apresentam esse sentido, diafora
30
usada no plural e no no singular. Por sua vez, a interpretao (i) mais compatvel
com o uso no singular. Ao invs das diferenas dentro de um gnero, nesse sentido
corresponde caracterstica peculiar a uma determinada espcie que permite que
ela seja distinta das demais pertencentes ao mesmo gnero. Este o sentido atribudo ao
termo em passagem anloga de Pr. Anal. 32 a15-16: ,
, . Nesse caso,
preciso que tambm na passagem do DA essa seja concebida como pros as
outras espcies de que se diferencia, seja com respeito s demais partes da alma (de modo
que a comparao com a aisthesis em 429a13-b5 seria a resposta a esta questo) ou em
relao aos demais tipos de to noein que no o da alma (pois este o tipo de nous de
que se ocupa este captulo (429a 10; 22), mas h tambm ao menos um outro tipo de
nous, o divino. Cf. Met. XII 7-9).
429 a13 - As variantes textuais dessa passagem no
possuem impacto em seu sentido. Intrpretes divergem quanto a localizao da resposta
a essa questo. A candidata opo mais bvia a passagem 429b22-430 a2, pois a questo
reaparece sob a forma [ ] (429b24) e a analogia entre o nous e
uma tbula rasa oferecida como resposta (429b31-430 a2). No entanto, caso separao
do noeton da matria seja tomada como parte da causa do vir a ser do noein (de modo
parecido ao que se passa no caso da sensao em DA II 12), a resposta a essa questo
seria composta tambm de 429b10-22, 430 a2-9. Tambm o captulo seguinte (DA III 5)
pode ser interpretado como parte da resposta a essa questo, na medida em que parece
estabelecer certa relao causal entre o nous potencial e um nous responsvel por
trazer a nosis atualidade. Enfim, possvel ainda conceber que a resposta a esta
questo se estenda at o fim do captulo 8, visto que ento que se conclui a necessidade
de imagens para que o conhecimento notico seja possvel (432 a3-10). A meno a to
noein nessa passagem deixa claro que a parte da alma aqui considerada deve ser aquela
que tem por isso sua atividade, i.e., o nous. Cf. nota a 429 a10-11. Essa pergunta supe
que o noein referido aqui no eterno, mas vem a ser (ginetai), de modo que parece a
muitos interpretes que o nous a que este nous seja diverso do eterno e imperecvel
mencionado em 430 a23. No entanto, preciso lembrar que, em DA I 4, apesar da parte
da alma ser impassvel e eterna, sua atividade no o necessariamente (caso noein seja o
mesmo que dianoeisthai. Cf. 408b25-29; 42 a 22-24). Mesmo assim, o vocabulrio do vir
a ser no pode ser dito aplicar-se a atividade do nous em sentido estrito, ainda que seja
31
utilizado diversas vezes nessa investigao (Cf. 429b6; 430 a15). Pois se, assim como no
caso da aisthsis, no consiste em uma mudana no sentido estrito, dado que a
atualizao no implica a destruio da potncia (ao menos no caso do nous como
segunda potencialidade (429b5-9)) (4314-8; 41721-b28; 429b29-4302) (Cf. nota
429b5-7), o caso do nous encontra-se ainda mais distante de ser uma mudana, por no
envolver o corpo (429b5; Fs. 247 b1-2).
429 a13-14 - A partcula pode ser
interpretada tanto como marca do incio da investigao introduzida em 429 a10-13 e
parece, sobretudo, concernir a questo ' (429 a12-13) -, mas tambm,
considerando seu uso com , como de fato ou no fim das contas, referindo-se ao
fato de que essa similaridade entre to noein e to aisthanesthai vem sendo objeto de
investigao anteriormente (427 a19-20). Como no captulo anterior concluiu-se que
essas duas funes so diferentes (heteron) uma da outra (427b27), possvel que o leitor
tome a presente condicional como referindo-se a uma hiptese irreal. No entanto, nada
suporta essa leitura do ponto de vista gramatical: trata-se de uma condicional possvel,
como prtase no presente do indicativo e apdose no optativo presente; ao passo que a
construo irreal apresentaria prtase e apdose no imperfeito ou aoristo do indicativo.
Alm disso, o fato de que as funes so heterai no implica necessariamente que elas
no possuam nenhuma semelhana: a questo de sua semelhana se pe justamente
porque em ambas essas atividades a alma discrimina (krinei) e conhece (gnwrizei). O
que A. refuta naquela passagem a posio dos que tomam to noein como uma espcie
de to aisthanesthai, no o fato de que essas duas funes possuem traos em comum.
Porm, como veremos, mesmo sendo tomada como real, essa condicional pode ser
respondida de duas formas: positiva (ambos, nous e aisthesis, sendo receptivos da
formas de seus objetos, e - em algumas interpretaes partilhando, cada um a sua
medida, dos atributos da impassibilidade (42915), da no-mistura (429a18) e da
potencialidade (429 a24)) ou negativa (dado que o atributo da impassibilidade
enunciado logo aps ter sido dito que a condio da semelhana entre essas duas
faculdades seria ser um tipo de paskhein, dissemelhana que seria confirmada no caso
dos dois outros atributos). Por fim, preciso notar que, assim como na passagem anterior,
a pergunta aqui por to noein e to aisthanesthai, i.e, as atividades e no as faculdades
ou partes da alma responsvel por elas, assim como no ser a respeito do nous que se
32
menciona a possibilidade de ser um paskhein (429 a14-15), mas sobre a atividade dessa
parte da alma.
429 a14-15 - Os manuscritos
E e L possuem a variante oti em lugar de ti, mas isso tornaria a leitura impossvel.
Como dito na nota anterior, o uso do optativo presente nessa apdose faz da condicional
possvel e no irreal. Como parece estranho que to noein seja dito paskhein ti e que
na orao seguinte conclua-se que o nous deva ser apathes, possvel ler nessa ltima
orao a negao da possibilidade de que to noein seja semelhante a to aisthanesthai.
Neste caso, no considerada uma opo verdadeiramente diferente
de , mas equivalente a esta. No entanto, h ainda duas leituras
alternativas que no implicam a negao. A primeira considera como
diferente e no equivalente a . Essa leitura supe que a semelhana entre to
noein e to aisthanesthai no est em questo ela j suposta. A questo seria se to
noein uma espcie de paskhein ou se outra coisa semelhante. Como o nous dito
apaths o leitor se veria obrigado a aceitar que to noein outra coisa, cuja diferena
ser exposta na sequncia. A outra possibilidade, que no estressa considervel diferena
entre os dois termos da disjuno, baseia-se no uso do ti como sentido alienans: to
noein seria dito paskhein em um sentido enfraquecido do termo, de modo que a
diferena entre esse e o uso do prprio do termo seria grande o suficiente para afirmar
que este no de fato paskhein a qualificao do nous como apaths viria a
confirmar a sutileza deste uso. Dentre as diversas ocorrncias do tis alienans do DA,
destaca-se justamente a passagem de II 5 (416 b34-35) em que a aisthsis dita
alloiwsis tis. Naquele captulo, conclui-se que o termo alloiwsis inadequadamente
aplicado a aisthesis, dado que nesta a potncia no destruda com sua atualizao,
diferentemente do que ocorre nas alloiwsis comuns (417 a21 b16). No entanto, devido
carncia de um termo melhor, este teve de ser empregado (418 a1-3). Assim, na presente
passagem, possvel interpretar que to noein, assim como o aisthanesthai, no seja
propriamente dito paskhein, mas apenas em um sentido vago, o que seria compatvel
com dizer que o nous apaths no que concerne o sentido estrito do termo.
[Adicionar: Outra diferena em relao mudana comum que ambos, sensao e noein,
compartilham a recepo da forma separadamente da matria e no lhe servir, por sua
vez de matria, mas ter com essa em comum o fato de serem potencialmente tal como
aquilo de que so receptivos. ]
33
429 a15 - No h variantes textuais dessa passagem. O sujeito
oculto dessa orao deve ser a parte da alma referida em 429 a10. Apesar da proximidade
no texto, to noein no pode s-lo porque a funo e no no sujeito da funo. Este
sujeito deve ser o mesmo dito dektikon na sequncia, o que semanticamente associado
a ton noun em 429 a17. A partcula possui sobretudo valor inferencial,
apresentando a consequncia lgica de algo dito imediatamente antes, o que faz com que
essa passagem seja tomada como concluso da condicional apresentada em 429 a13-
15.Como parece estranho que do fato de to noein ser paskhein ti se conclua que o
nous deva ser apaths estranheza que ser explicitamente apontada mais adiante
nesse captulo (429 b22-25) , a inferncia parece supor que to noein no seja de fato
anlogo a to aisthanesthai pois, como vimos na nota anterior, ser paskhein ti
condicionado analogia entre essas duas funes. Essa premissa implcita pode ser
localizada em 427 a27-28. No entanto, a negao da analogia parece, por sua vez,
incoerente com o constante uso meno a essa semelhana no presente argumento:
importante notar que o verbo de necessidade dei liga-se no apenas ao infinitivo einai
dessa passagem, mas tambm a ekhein (42916), de modo que a apatheia do nous
to necessria quanto a similaridade entre a relao sensvel e a relao notica (429 a17-
18). Alm disso, como vimos na nota anterior, possvel considerar que essa inferncia
suponha no a desanalogia, mas certa semelhana entre essas funes o que dado
desde de o incio de DA III 3 -, sem que isso implique em contradio. Pois possvel
tanto tomar o ti de paskhein ti como alienans (de modo que o nous poderia ser dito
apathes no que concerne a afeco em sentido estrito, sem que isso impossibilite que
to noein seja afeco em um sentido enfraquecido), associar o noein no com
paskhein ti, mas com ti toiouton eteron (considerando haver uma real disjuno entre
esses termos). possvel compatibilizar a analogia entre as duas funes com a
apatheia do nous admitindo que essa qualidade tambm pertena ao sentido: to
aisthanesthai no uma afeco comum porque sua atualizao no implica a destruio
da potencialidade, mas seu aperfeioamento; assim, possvel dizer que a capacidade
sensvel em si no afetada na atualizao. Assim como o nous, o sentido (aisthterion)
dito resistir corrupo do corpo, apesar de ter sua funo prejudicada por essa
degenerao (DA I 4 (408b18-21). Isso porque ambos, nous e sentido, so dunameis
da alma e so imperecveis tanto quanto essa, mas seu funcionamento pertence ao
composto de alma e corpo. Logo, possvel que to noein seja anlogo a to
aisthanesthai tanto por serem paskhein ti quanto por suas capacidades serem
34
apaths, mesmo depois da atualizao. Em 42929-31, a parte sensitiva da alma de
fato dita possuir apatheia, mas de um tipo diferente da do nous. As possveis leituras
mencionadas at ento supem que apaths signifique incapaz de ser afetado (ao
menos no sentido prprio), o que diz respeito a uma capacidade do sujeito. Mas o termo
tambm pode referir-se condio atual do sujeito como no possuindo nenhuma
afeco ou forma atualmente, o que coerente com a descrio do nous algumas linhas
adiante como no possuindo nenhuma natureza que a de ser possvel (429 a21-22) e
no sendo nada em atividade antes de noein (429 a24). Como veremos, essa a
condio para que ele seja receptivo de seus objetos, do mesmo modo que a aisthesis
receptiva daqueles que lhe concernem, de modo que possvel manter a analogia tambm
neste caso. No entanto, a partcula pode estar sendo usada nessa passagem (bem como em
429 a18, 22) no com sentido conclusivo, mas enumerativo, anunciando caractersticas
do nous que so tomadas como pressupostas - provavelmente adotando-se a descrio
que Anaxgoras possui do nous, como veremos na nota a 429 a19 - e aqui comparadas
quelas resultantes da analogia entre to noein e to aisthanesthai: no presente caso,
apaths, um dos atributos do nous anaxagrico, pode estar sendo contraposto a
dektikon tou eidous, uma das caractersticas que o nous deve possuir caso seja anlogo
ao sentido.
429 a15-16 - No h
variantes textuais nessa passagem. Quer tomada como confirmao da condicional ou
apenas como uma explorao hipottica, essa passagem trata to noein como anlogo a
to aisthanesthai, pois a recepo de formas e a necessidade de ser semelhante a seus
objetos apenas em potncia so propriedades anteriormente atribudas ao sentido (424
a18-19; 418 a3-6). A maior parte dos tradutores reconhecem valor adversativo partcula
de nessa passagem, o que supe que ser apaths parea incongruente com ser
receptivo da forma, dificuldade que de fato apresentada ao final deste captulo (429 b22-
25). No entanto, possvel tambm atribuir-lhe valor copulativo, com a funo de
introduzir uma clusula explicativa da qualificao do nous como apaths: para que
to noein consista na recepo da forma por afeco ou algo semelhante, o nous no
deve possuir previamente nenhuma dessas afeces, i.e., formas, pois aquilo que
receptivo de algo no deve possu-lo em atualidade. Cf. 418b26-27. possvel ler este
kai no apenas como simples aditivo, mas tambm com sentido epexegtico, na medida
em que a receptividade tem sua causa no sujeito ser apenas em potncia tal qual aquilo
35
que capaz de receber (cf. 418 b26-27). Alm da proximidade textual, o fato do nous
ser descrito mais adiante como dunamei ta eid (429 a29), faz com que se identifique
eidos como o referente de toiouton e touto de modo que me touto possa ser
interpretado seja como meno diferena, no estado atual, entre o nous e o eidos de
que este receptivo, seja indicando que, mesmo no que diz respeito dunamis do
nous, ela no de identificar-se exatamente com o eidos, mas com algo similar a este
toiouton, um contedo mental. Outra possibilidade ainda que me touto refira-se ao
nous no ser per se uma forma em atualidade, mas apenas em potncia. Cf. 429 a 21,
24. Porm, ele dito eidos eidwn em 432 a2. No entanto, tambm possvel identificar
to noeton (42917) como referente de e . Apesar de to noeton
poder ser equiparado a eidos quando consideramos o objeto do nous apenas do ponto
de vista formal, essa equivalncia no necessria se o considerarmos enquanto
composto. O nous pode identificar-se a todas as coisas na medida que as pensa, mas
no de modo absoluto; ele assimila apenas a forma separada da matria: a pedra pode ser
objeto do nous, mas este no tem em potncia torna-se exatamente uma pedra,
composta de matria e forma, apenas o contedo formal do que a pedra (431 b28-29).
Assim, ao considerarmos to noeton como referente temos a possibilidade de toiouton
como a forma do indivduo composto (como toionde em Met. 1033 b19-24) e touto
como o indivduo composto.
429 a16-8 - , ,
. - As variantes textuais dessa passagem no possuem impacto em seu sentido.
Essa passagem define em que o quadro em que devemos compreender dektikon [...]me
touto: esse modo como o nous deve relacionar-se com seu objeto, semelhante aquele
como a parte sensitiva da alma relaciona-se com seus correlatos. Assim como o einai
(l.15), o infinitivo ekhein regido por dei, de modo que ambos, ser apaths e
possuir uma relao anloga para com seus objetos quela da sensao, podem ser lidos
como partes da concluso introduzida por ara. digno de nota que o anlogo do nous
aqui considerado no seja aisthsis ou aisthterion, mas to aisthtikon. Enquanto,
aisthsis dito tanto da dunamis quanto da atividade desta, e aisthterion designa
mais precisamente o rgo pelo qual a aisthesis exercida, to aisthetikon designa a
parte da alma a que pertence essa dunamis, o que acentua o fato de que o nous esteja
sendo tratado aqui como parte da alma a que pertence dunameis tais como ginwskein,
phronein, dianoeisthai e upolambanesthai. Cf. nota 429 a10-11.
36
429 a18 - , , i As variantes textuais dessa passagem
no possuem impacto em seu sentido. Apesar da conjuno epei (ou epeid nos MSS
C U X) tambm poder ter sentido temporal de aps, isso exigiria que o verbo noein
estivesse no aoristo. O uso do presente torna mais plausvel que ela seja tomada em
sentido causal, introduzindo uma das premissas das quais se infere que necessrio que
o nous seja amigs. Assim como em 429 a15, encontramos aqui a partcula ara
junto a um verbo de necessidade, anagk, o que faz com que ambas as ocorrncias
devam ser interpretadas da mesma maneira. Como vimos na nota correspondente quela
passagem, apesar de ara sinalizar sobretudo uma concluso baseada no que foi dito
imediatamente antes, controverso se possvel concluir a necessidade do nous ser
apathes com base na analogia entre to noein e to aisthanesthai, de modo que
plausvel que trate-se de uma concluso adiantada de premissas que esto para ser
apresentadas, ou que no possua valor inferencial, mas enumerativo das caractersticas
que nesse caso no seriam deduzidas, mas pressupostas na passagem. Por sua vez, na
presente passagem, amigs einai no pode ser concludo com necessidade
simplesmente do que foi dito anteriormente, pois ainda no foi apresentado o que se
entende aqui por mistura, nem de que modo isso estaria ligado a ser apaths e/ou
anlogo parte sensitiva da alma. , contudo, na sequncia que encontramos os elementos
que permitem essa inferncia: Segundo Anaxgoras, amigs einai uma condio
necessria para que o nous possa desempenhar sua funo porque a mistura impediria
o conhecimento do que outro. A premissa essencial da tese de Anaxgoras, e aqui
adotada para os fins do argumento, , i.e, o escopo da potncia do nous
no deve possuir nenhuma limitao. Portanto, o nous no pode estar entre as coisas
que possui mistura. preciso notar, no entanto, que o dado de que o nous panta noei
no explicado, mas tomado como pressuposto. Como veremos na nota seguinte, para
Anaxgoras, o nous o princpio ordenador do universo, a causa do movimento que
delimita a diferena entre os seres, e por isso sua funo, i.e., noein, exerce-se sobre
tudo. Em certa medida, essa descrio semelhante do nous divino de Met. XII 7-9;
no entanto, apesar de ser causa primeira do movimento, o deus aristotlico s possui a si
mesmo como objeto. Panta aparece aqui sem qualquer qualificao, o que pode levar o
leitor concluso de que esta parte da alma uma dunamis receptiva de todos os seres,
no importando se so indivduos, compostos de matria e forma, objetos sensveis ou
universais. Essa passagem pode at mesmo levar o leitor associar o nous aqui
apresentado com a noo de matria primeira (Met.1029 a10-21; tal como aquilo que
37
subjaz ao vir a ser dos quatro elementos em De Caelo a14-35). No entanto, outras
passagens mostram que panta no de fato sem qualificao: como vimos na nota a
429 a 15-16, o nous receptivo de eid em 430 a11, ele dito anlogo matria,
que dunamei panta em um determinado gnero e em DA III 8, feita uma
qualificao (denotada pelo uso de pws em 431b21) afirmao de que todos os seres
so na alma, pois (i) a aisthesis cabem os seres sensveis, recebidos enquanto formas
sensveis, e (ii) ao nous cabem os inteligveis e apenas suas formas separadas da matria
(Cf. nota 429b16-18) Logo, devemos compreender essa clusula como to panta twn
eidwn noei, ainda que na filosofia de Anaxgoras panta deva ser compreendido de fato
de modo absoluto. Contudo, mesmo com a qualificao, permanece a semelhana entre
esse nous e a noo de matria, o que leva os interpretes a identificarem-no com o
de DA III 5 (430 a14-15) sob o nome de nous hylikos. Por fim, os
interpretes se dividem sobre amigs ser ou no um atributo que o nous possui
enquanto anlogo aisthesis: se por um lado, a sequncia do texto mostrar que a
aisthesis tem o escopo de seus objetos mais limitado do que o nous, por ser exercida
por meio de rgos, por outro, com exceo do tato, cada sentido tomado isoladamente
receptivo de panta twn aisthetwn eidwn (DA 424 a17-19; 431 b21-432 a1) pertence a
seu gnero correlato (cor, som etc.), o que supe que cada sentido deva ser amigs em
seu gnero.
429 a19-20 - , , ' - No h
variantes textuais nessa passagem. A considerao da notica de Anaxgoras nos permite
especular sobre a funo dessa referncia e o que ela nos informa sobre o argumento
aristotlico. De acordo com seu Fragmento 12 e com o testemunho dos antigos
(Aristteles, DA 404 a25-27, Fs. 203 a30-34, 250 b25-26, 252 a11-12, 256 b24-27;
Simplcio, Fs. 27.2-23,164.23-25,156.13-157.4,176.34-177.6,300.27-301.1), para
Anaxgoras, o nous essencialmente a causa primeira do movimento que define e
delimita as coisas que existem. Ele narra que em um momento anterior, o universo era
constitudo de uma nica amalgama; essa mistura era formada dos elementos
homemeros, como carne, osso e medula, de tudo o que existe, existiu e existir; nesse
momento as coisas no eram delimitadas ou definidas. O nous a causa do movimento
que separou essa amlgama e delimitou as coisas tal qual elas existem; ele que governa
(kratei) o movimento do universo e ordena todas as coisas. Tudo o que existe nessa nova
ordem constitudo dos mesmos elementos os mesmos homemeros e diferenciam-
38
se apenas por cada um possuir em concentrao mais elevada os homemeros similares
a si mesmos por isso, se diz que tudo est em tudo ( Frag. 8),
i.e., todos compartilham da mesma mistura, com exceo do nous que no pertencia a
mistura e igualmente semelhante (ou melhor, igualmente diferente, de tudo o que existe)
Em duas passagens do DA (405b19-21; 429b22-24), A. menciona a concepo
anaxagrica de nous como apaths e no possuindo nada em comum com nada.
inevitvel que o leitor de Aristteles reconhea a similaridade dessa descrio com a do
primeiro motor em Met. XII 7-9 e Fs VIII 8. Em ambas o nous dito sem matria
ou magnitude e a causa primeira do movimento de todas as coisas (Fis. 267 b18-19; Met.
1074 a36) e, sobretudo, ambos possuem alcance ilimitado (Fis.267 b23-27; Met.1073 a3-
11). No entanto, se para Anaxgoras, o fato de ser amigs permite que o nous tenha
todas as coisas (panta) como seu objeto, este no o caso do nous divino aristotlico,
que s tem a si mesmo como objeto. Uma possvel explicao que, por sua natureza
consistir em ser um objeto intelectual em atualidade, ele no possa tratar-se de uma
dunamis receptiva de objetos intelectuais, dado que para ser receptivo de algo preciso
no o ser j em atualidade, como vimos na nota a 429 15-16 e veremos novamente em
429 a20-21. De fato, no caso do nous que objeto do presente estudo, Aristteles
mantm a associao anaxagrica entre amigs e panta noein, sem reter o papel na
causalidade universal (ao menos na presente passagem, pois esse papel parece caber em
certa medida ao nous to panta poie de DA III 5). De todo modo, a referncia a
Anaxgoras parece evidenciar um trao em comum entre o nous da alma e o nous
divino aristotlicos: ambos devem ser amigs para que consistam em potncias
ilimitadas (apeiron dunamis) em relao ao que alheio, uma ilimitada em relao aos
noeta de que receptiva, a outra ilimitada em relao aquilo de que causa final do
movimento. No entanto, isso no pode simplesmente significar que A. esteja atribuindo
ao divino a funo de kratein e ao humano a de gnwrizein, pois nessa passagem essas
funes so tomadas como equivalentes. possvel explicar essa equivalncia caso se
conceba o noein como abstrao ou universalizao de experincias de origem sensvel
com base na passagem de Segundos Analticos II 19 (100 a4-9) (cf. nota a 429 b5-7),
mas parece difcil compatibilizar essa atividade com o fato deste nous no ter outra
natureza que a potncia receptiva (429 a21-22). Como, para Anaxgoras, o nous
responsvel por kratein todos os corpos, essa referncia pode ajudar a esclarecer a que
se refere panta (429 a 18) no presente texto o que no impede porm que Aristteles
esteja interessado na no mistura com corpos na medida em que esses possuem formas.
39
Vale notar tambm que possvel que a referncia a Anaxgoras nessa passagem seja
anloga quela a tese de Empdocles e Demcrito em DA II 5: ambas as teses so citadas
em contextos em que se discute a necessidade da faculdade em questo no possua em
atualidade aquilo de que receptiva. No por acaso, visto que esses filsofos representam
lados opostos do debate a respeito da similaridade ou diferena que deve existir entre
aquilo que afetado e a causa da afeco (GC 323 b1ss; DA I 5). Ambas as perspectivas
so parcialmente aceitas e problematizadas por A., que prope como terceira via a
distino tese de que deve haver similaridade em potncia e diferena em atualidade (
Met. IX). A referncia a Anaxgoras parece enfatizar, portanto, que o nous esteja sendo
considerado como anlogo aisthesis nessa passagem.
429 a20-21 - O principal
ponto de divergncia na leitura dessa passagem a funo atribuda a to allotrion, que,
por ser um substantivo neutro, pode ser tomado seja como sujeito dos verbos kwluei e
antifrattei, quanto seu objeto. A referncia notica de Anaxgoras na linha anterior
pode inclinar o leitor a tom-lo como sujeito, pois, no fragmento de Anaxgoras, quando
misturado a algo outro e encontra-se sozinho que o nous impedido de desempenhar
bem sua funo ordenadora de tudo o que existe:
, '
(Frag. 12, 9-11. Cf. DA 430 22-23.). Nesse caso, difcil identificar qual seria o objeto
dos verbos dessa orao. possvel que se refiram funo de to panta noein (429 a18)
ou ao nous, subentendido como aquilo que paremfainomenon, mas este particpio
parece ser mais adequadamente tomado como acusativo absoluto do que como objeto.
Por sua vez, a leitura de paremfainomenon como acusativo absoluto refora a
possibilidade de que o sujeito dessa orao seja oculto e que to allotrion deva ser
tomado como objeto. Desse modo, possvel ler essa passagem como contendo uma
regra geral seja da prpria doutrina aristotlica, seja de outras doutrinas ou comumente
aceita , segundo a qual qualquer coisa que se manifeste conjuntamente
(paremfainomenon), impediria e bloquearia o que lhe outro (to allotrion); o que no caso
do nous deve ser compreendido como aquilo que paremfainesthai recepo do
eidos do que outro que o prprio nous. Essa leitura reforada pelo fato de
paremfainw ser utilizado no Timeu de Plato de modo muito semelhante: aquilo cuja
natureza consiste em ser receptivo () de diversas impresses (idea) deve ser ele
mesmo desprovido (amorphon) de todas essas impresses, pois caso fosse semelhante
40
qualquer das coisas que incorpora, no seria bem sucedido em assimilar seus contrrios
ou aquilo que lhes seja de natureza totalmente, sua prpria aparncia sendo manifesta
' , (50 E 1-4).
429 a21-22 - ' ' ,
O uso de wste em uma orao negativa (md) com infinitivo (einai) faz com que
essa passagem deva ser lida como clusula resultante da condio, expressa
anteriormente, de que o nous deva ser amigs. possvel interpretar autou physis
como uma referncia forma prpria (oikeion eidon) do nous. Na Fsica, a
physis (natureza) foi definida como um princpio e causa do movimento e do repouso,
naquilo que pertence, primeiramente, em virtude de si mesmo, e no de modo acidental
(192 b21-22), causalidade que deve ser de tipo formal, dado que algo s propriamente
dito ser aquilo que quando em atualidade. Ainda que a matria tambm seja dita
natureza, na medida em que um tipo de causa kaq auto do movimento, ela o apenas
enquanto potncia e no dita ser aquilo que causa que por homonmia (193b7-8). No
, ento, sem justificativa que o leitor da presente passagem possa entender physis no
apenas como um eidos prprio (oikeion) do nous, contrapondo-se a to allotrion
(l.20), mas tambm como implicando uma existncia em atualidade, a que se ope a
necessidade de ser apenas dunatos e levaria a concluir que o nous no deva possuir
natureza, ao menos no sentido estrito (Cf. 420 a16). No entanto, caso se tome essa
passagem como a afirmao de que o nous no possui natureza, ela parecer incoerente
com o fato do nous ser dito e eidos eidwn (432 a2). Alm disso, A. afirma que ser
apenas em dunamis no o mesmo que no existir (426 a20-26), e que essa dunamis,
mesmo sendo menos valiosa que sua prpria atualizao (430 a18-19), a marca
especfica daquela que a melhor de todas as almas . Como parece inadequado afirmar
daquilo que no possui natureza que mais valioso que aquilo que possui alguma, o leitor
levado a relativizar a negao nessa passagem. Outra dificuldade que a descrio do
nous como aquilo que no nenhum eidos em atualidade, mas receptivo de todos
eles, aproxima-o da noo de matria prima (Met. Z 3, 10297-26), estado do substrato
material desprovido de toda determinao formal. Mas se aquela o que menos pode ser
dito existir, isso implicaria que este nous seja desprovido de qualquer existncia
positiva qualquer existncia positiva; e ao receber a forma, a matria torna-se corpo e
deixa o estado potencial (Fs. 201 b6-15; Met. 1048 b16-34), ao passo que, como veremos
41
na sequncia, o nous (e sua recepo da forma) so incorpreos. Apesar de, nessa
passagem, ser usualmente tomado como equivalente a potencial (dunamei) sobretudo
devido as demais referncias ao nous como en dunamei tal qual as eid/ noeta
(429 a16, a29, b8, b30, b31. cf. 417 a26-28) -, dunatos no se refere necessariamente a
uma natureza ou potncia e em outras passagens do corpus indica o simples fato de algo
no ser impossvel (adunaton): nos Pr. Analticos por exemplo, dunatos usado
para indicar possibilidade lgica (34 a6ss); e, do mesmo modo, em Met. V, dunatos
pode significar trs coisas: o que no necessriamente falso, o que verdadeiro e o que
pode ser verdadeiro, nenhuma dessas alternativas envolvendo qualquer referncia a uma
dunamis (1019 b28-35). Assim, o fato de ser dunatos no indica necessariamente que
o nous j exista enquanto dunamis, mas que nada impede que essa venha a ser dadas
as condies necessrias, e. g., a existncia de imagens na alma. Vale notar que este
nous, que em potncia (dunamei) todas as coisas, ser explicitamente dito anlogo
matria, em DA III 5 (430 a10-15).
429 a22-24 - (
)
No h variantes textuais dessa passagem. Esta a ltima das trs passagens introduzidas
por ara nessa sequncia argumentativa (429 a15, 18) e natural que se atribua a essa
partcula aqui o mesmo sentido das demais ocorrncias, que pode ser ou bem inferencial
ou bem mera sucesso de ideias. Vale notar, no entanto, que, diferentemente daquelas,
esta no acompanhada de uma expresso de necessidade (dei ou anagk) seguida
de infinitivo, mas apresenta apenas o verbo no presente, o que pode ser interpretado como
uma diferena entre clusulas preceituais (que podem no apresentar teses
especificamente aristotlicas, mas uma srie de caractersticas atribudas ao nous pela
tradio) e um conceito aristotlico. Alm disso, o fato de ser possvel referir todas partes
dessa passagem a momentos anteriores do texto refora a possibilidade de que ara
possua valor inferencial aqui. nous ts psykhs explicita o nome da parte da alma a
respeito da qual foi dita concernir a presente investigao (429 a10-11) e que sujeito
das consideraes anteriores a essa passagem que deve ser apaths (429 a15) e
amigs (429 a18); assim como em 429 a10, a alma o sujeito das funes exercidas
por esse nous. Assim como ginwskei e phronei naquela passagem, dianoeisthai
e upolambanei dificultam a identificao desta parte da alma com o nous tal como
considerado em EN e An. Post.: se, na EN., O nous apenas uma das virtudes
42
dianoticas, havendo ainda epistheme, doxa, fronesis e sophia (EN VI 6), no DA
(427b 8-10), episthme, doxa e fronesis so tipos de hupolpsis, o que, de acordo
com a presente passagem, funo do nous ainda, se nos An. Post. nous o estado
(hexis) da alma