Favre - Biodiversidade Subjetiva

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  • alistas e expressionistas que escaparam da Europa nos anos 30 e encontraram trabalho na Califrnia, de que os filmes so uma arte para os olhos e o corpo inconsciente e no para o intelecto e o discurso verbal.

    Quando os filhos do Papai Sabe Tudo cresceram...

    Podemos ver, ento, como a Amrica do ps-guerra dos anos 50 ganhou a sua verso glamourosa internacional primeiro por esta automodelagem altamente cobiada por todos. Finalmente nos anos 60, a modelagem subjetiva da juventude aparece: o re-belde que no quer o estilo de vida dos seus pais para si, o modelo anterior que foi rigidamente modelado pelos valores e comportamentos da sociedade de consumo.

    Da arte moderna, da dana moderna, do modo de representar do Actors Stu-dio, da literatura beat para a cultura do rock, para o movimento hippie para o movimento psicodlico, rebelies estudantis de 68, para a contracultura, para o movimento feminista, para a cultura alternativa, foi um pulo. Entre os jovens outro modo de conceber o corpo e novas prticas do self comearam a ser desenhadas.

    Na onda destes movimentos, o crescimento rpido das prticas corporais tra-zidas pelos humanistas europeus para a Amrica tiveram um grande papel na desconstruo dos usos do self profundamente desvalorizada por esta ge-rao e a inveno de novos usos do corpo e seus modos de se relacionar, trabalhar, viver, ter sexo, conceber famlia e gnero, dinheiro, educao, raa, cultura, poltica e poder.

    Como os novos paradigmas voltaram para a Europa

    Impulsionada pela mesma f na mudana, na aventura e no desafio de si mes-mo at o fundo de si, esta nova cultura corporal ento modelada nos Estados Unidos se reexportou para a Europa. Ali ela encontrou sementes deixadas por Reich que j estavam produzindo frutos a partir das vrias tendncias educa-cionais, teraputicas, psicoteraputicas que estavam abertas, famintas, para se misturar com o modelo americano. Esta nova cultura proliferou rapidamente na forma de novas culturas e novos centros de crescimento pessoal. Nos anos 70, tanto na Europa como nos Estados Unidos, prticas e mtodos fossem exercidos atividades de grupo como manipulaes de corpo passaram por uma multiplicao espantosa. As pessoas ansiavam por mudana, mudando seus corpos. Elas se juntavam a grupos, buscavam terapias, desejavam se tornar terapeutas. Havia um ideal de criar um mundo parte, dito alternativo, que poderia influen-ciar o sistema de fora para dentro.

  • Enquanto isso, abaixo do Equador... Regina estava surfando a onda e, muitas vezes, quase se afogando

    No Brasil, desde os anos 60, o movimento tropicalista, artstico, musical e poltico, expressavam a urgncia para ns de espanar as tradies autoritrias, agrrias, positivista, catlica, militar e incorporar o novo crescimento indus-trial, reformatar nossos corpos e absorver a nova realidade mundial. E com a atmosfera sufocante das ditaduras latino-americanas, brasileiros se tornaram politicamente ou existencialmente exilados. Entre os ltimos eu me incluo. No incio dos anos 70, mergulhei na cultura do corpo que nessa poca flo-rescia principalmente na Inglaterra, em grande parte devida ao ambiente da Swinging London, solo frtil para o crescimento dos novos padres de com-portamento contemporneo.

    Em 75, j de volta a So Paulo, ajudei a dar incio ao curso de psicoterapia corporal no Sedes Sapientiae, um instituto educacional de psicoterapias de mente aberta.

    Nos anos 80 muitos grupos j poderiam ser vistos organizando educao pro-fissional em psicoterapia corporal em torno de alguns lderes internacionais e no final dos anos 80, muitas pessoas j tinham se organizado, institucio-nalmente dependentes de escolas de terapia internacionais que se tinham tornado, infelizmente, empresas, dentro do estilo neo-capitalista, para a trans-misso do conhecimento reichiano e neo-reichiano.

    Teorias e vidas no Brasil: condies especficas

    No comeo essas idias e prticas fizeram sentido no Brasil de um modo muito peculiar, diferente daquilo que aconteceu na Europa e nos Estados Unidos. Num primeiro momento, elas se juntaram s foras que culturalmente comba-tiam os efeitos destrutivos da ditadura nas vidas das pessoas.

    bem conhecido como a psicanlise, um certo tipo de psicanlise militante, que era altamente desenvolvida tanto no Brasil como na Argentina, desempe-nhou um papel importante como aliada nesta cultura de resistncia poltica. Ento, era completamente natural que certos divs generosos no Brasil abra-assem a causa e gestassem o ento chamado movimento reichiano recm-nascido. Assim, fica tambm evidente que, dada a esta afinidade, o reichismo que mais teve afinidade conosco foi o da Anlise do Carter que foi conside-rado na sua poca, anos 30, um avano poltico e metodolgico, em relao s idias de Freud. Portanto, o primeiro grande esforo assimilativo no campo psicoteraputico brasileiro corporal dos anos 70 foi a construo de uma base psicanaltica para sua prtica e encontrar um lugar para noes tais como id, ego, superego, inconsciente e transferncia.

    Entretanto o corpo em toda a sua fora e maravilha permanecia intocado teoricamente, para a minha insatisfao. Entendi naquele momento da minha trajetria que havia uma resposta meto-dolgica e terica para o capitalismo industrial, e seus efeitos nas subjetivi-

  • dades corporificadas, e uma outra, bem diferente, para o capitalismo mundial integrado, termo cunhado pelo filsofo e militante Guattari, com o qual me encontrei no final dos anos 70.

    Baixou sobre mim uma clareza de que a Anlise do Carter e a Funo do Or-gasmo, venerada pelo ambiente reichiano brasileiro ia de encontro s necessi-dades das formaes subjetivas produzidas no capitalismo durante seu estado de industrializao e que a represso da energia sexual e seu subseqente reinvestimento nas atividades do trabalho era um assunto da sociedade indus-trial de modelo patriarcal e seu modelo baseado nesta maneira de produo. Neste sentido, a convulso orgstica reichiana, base do seu paradigma de sade se identificaria com revoluo, num modelo baseado num conceito de classes sociais. E ento me dei conta que esse tempo tinha acabado. A moder-nidade estava dando lugar para a ps-modernidade, o fordismo para o ps-fordismo.

    Como Toni Negri discrimina ps-moderno de moderno

    No seu artigo Em direo a uma definio ontolgica de multido de 2002, o qual edito aqui, Toni Negri diferencia os dois conceitos, ps-moderno e mo-derno.

    Pessoa uma idia moderna e multido uma idia ps-modernaMultido um todo de singularidades. O pensamento da modernidade opera de dois lados: por um lado ele abs-trai a multiplicidade de singularidades e unifica no conceito de povo, por outro lado, dissolve o todo das singularidades que forma o todo da multido numa massa de indivduos. A multido sempre produtiva e sempre em movimento, se constitui e cons-titui a sociedade produtiva, cooperao social geral para a produo. O conceito de multido deve ser encarado diferentemente do conceito de classe operria. O conceito de classe operria limita a viso de produo uma vez que essen-cialmente s inclui trabalhadores industriais. No conceito de multido, a noo de explorao ser definida como explorao (e boicote) da cooperao entre singularidades, no entre indi-vduos, explorao de redes que compem o todo.A multido um conceito de potncia que produz por cooperaoEsse poder no apenas deseja expandir, mas acima de tudo deseja tomar cor-po (isto significa moldar a si mesmo sempre em novos modos de funcionar em conexes presentes Regina Favre, 2007)A liberdade e a alegria bem como a crise e a fadiga na sua mudana com-preendem dentro de si tanto continuidade quanto descontinuidade, sstoles e distoles, pulsos de descomposio e recomposio de singularidades. A multido um agente social ativo, uma multiplicidade que age, no uma unidade como o povo, que ns vemos como algo organizado. de fato um agente ativo de auto-organizao.Trabalho cooperativo vivo uma revoluo real, ontolgica, produtiva e poltica ps de cabea para baixo todos os parmetros de bom governo e destruiu a idia moderna de uma comunidade que serviria para a acumulao capitalstica (mas agora apenas interconexes processuais para aes criati-vas em direo a realidades que ainda no existem, Regina Favre, 2007).

  • Os dispositivos para produo da subjetividade que encontram na mul-tido uma figura comum apresentam-se como uma prxis coletiva, sempre atividade renovada e constitutiva de ser, contra o conceito de povo.As origens do discurso da multido so encontradas na interpretao sub-versiva do pensamento de Spinoza. Nunca seria suficiente insistir na importn-cia da pressuposio spinozista quando ele lida com este tema. Antes de tudo o tema inteiramente spinozista o tema do corpo, particularmente do poder do corpo. Nunca poderemos saber aquilo de que um corpo capaz. Ento multido o nome da multido de corpos. Lidamos com esta definio quando insistimos que multido potncia. Entretanto, o corpo vem antes na genealogia e na tendncia tanto das fases como no resultado do processo de constituio de multido. Ns devemos reconsiderar esta discusso do ponto de vista do corpo, da con-stituio do corpo. Uma vez que definimos os nomes da multido contra o conceito de povo tendo em mente que a multido um todo de singularidades, ns podemos traduzir este nome (multido) na perspectiva do corpo e clarear o agenciamento da multido de corpos. Quando consideramos corpos, no apenas percebemos que estamos cara a cara com a multido de corpos, mas percebe-mos que cada corpo uma multido, interceptando a multido, cruzando a multido com a multido, corpos se tornam misturados, hbridos, transfor-mados, mestios. Eles so como ondas do mar, em perene movimento e transformao recproca. A metafsica da individualidade ou da pessoa constitui uma mistificao pssima da multido de corpos. No h possibilidade de um corpo estar sozinho. Isso no pode nem ser imaginado. Quando um homem definido como um indivduo, quando ele considerado como uma fonte autnoma de direito e propriedade ele se torna sozinha. Mas o si no existe fora de uma relao com o outro. A metafsica da individualidade quando confrontada com o corpo nega a mul-tido que constitui o corpo para negar a multido de corpos. Do ponto de vista do corpo existe apenas relao e processo. O corpo trabalho vivo, portanto, expresso e cooperao, portanto construo material de mundo e histria. Ns falamos de multido como o nome do poder (potncia) e a genealogia e tendncia, crise e transformao, portanto esta discusso no final leva metamorfose dos corpos. A multido a multido dos corpos. Ela expressa poder no apenas como um todo, mas tambm como singularidade. Cada perodo da histria do desenvolvimento humano (do trabalho, do poder, das necessidades e da vontade de mudar) inclui metamorfoses singulares de corpos. Isto uma viso Darwinista no melhor sentido da palavra: como produto de uma viso heracliteana, portanto as causas da metamorfose que investem a multido como um todo e singularidade como multido no so nada mais do que lutas e movimentos e desejos de trans-formao.

    Novas teorias e prticas do corpo so necessrias depois da virada ps-moderna

    O capitalismo industrial, depois de 68, finalmente quebrou as suas fronteiras nacionais e comeou a operar com o modelo do capitalismo multinacional.A narrativa familiar, como pano de fundo das nossas vidas, se tornou ape-

  • nas uma pequena parte da narrativa histrico-mundial e, nesse sentido, a histria cultural e social ganhou grande importncia na hermenutica da subjetividade. E com esta nova conjuno de interesses de mercado e de grandes corpora-es, agora fundidas internacionalmente, a falta passa a ser central.

    A estratgia capitalstica do poder no era mais repressiva, mas ao con-trrio, comeava a agir com outra estratgia: a captura do desejo e a estimulao da perptua falta de algo que iria nos preencher e nos comple-tar como algum. Nesta nova forma de capitalismo passamos a desejar ser quem no somos e no ter o que no temos, como era antes no capitalismo industrial. Neste sentido, as imagens e a mdia desempenham o papel principal.

    Assim, no incio dos anos 80, com a ajuda da filosofia da imanncia, desenvol-vida por Deleuze e Guattari, e mais tarde aprofundada por Toni Negri, como vi-mos acima, que era muito ativa politicamente e teoricamente no Brasil daquele tempo, comecei a ver pela primeira a dinmica da produo da subjetividade.

    Na velocidade do capitalismo contemporneo, com a ajuda destas vises, pude imaginar como esses corpos e seus mundos se formavam e reformavam a eles mesmos continuamente seguindo regras coletivas muito precisas. Estes filsofos se referiam a isso como produo social de modos de subjetivao, que de fato eram desenvolvidas pelo mercado em modos selecionados de tomar forma pelo interjogo de poderes, valores e interesses comerciais. Mas eu continuei sentindo, mais do que nunca, com grande frustrao, a necessidade de um conceito de corpo como um processo biolgico e de uma prtica que fosse conectada com o processo de produo de corpo como parte do processo de viver nossas vidas no mundo.

    Uma nova cena no Brasil: menos Estado, mais responsabilidade civil

    Com as primeiras eleies presidenciais em 85, depois dos longos 25 anos de ditadura, se tornou necessrio contribuir no nosso campo profissional com a noo de cidadania que nos ajudaria a nos colocar no olho do furaco dos novos eventos. Tornou-se necessrio tomar posio e agir sobre os nossos ambientes fsicos e humanos, mundialmente e localmente, particularmente em nosso pas onde estes assuntos se apresentavam como uma paisagem to penosa de desigual-dades e injustias sociais. Ao mesmo tempo, o tema ecologia comeou a se impor na sociedade global. Guattari escreveu As Trs Ecologias em 1980 e Caosmose em 1992, onde essa responsabilidade imanente e este poder se tornam evidentes.

    De 85 a 92, uma nova posio se coloca para mim. Aps ler o recentemente publicado Anatomia Emocional, em 85, eu descobri Stanley Keleman e seu conceito de processo formativo. Sua leitura funcionou para mim como um satori. Com ele, pude finalmente ter um conceito visual do corpo como um processo que se estendia dos incios da biosfera deste planeta, como produ-tor e produzido por processos fsicos e sociais, canalizando e secretando a si

  • mesmo como uma fora protoplasmtica lquida continuamente atravs de foras evolutivas genticas em cada vida em particular, gerando e sustentando ambientes fsicos e sociais como resposta a sua necessidade inata conectiva e formativa. Pude ver a a total consonncia com o conceito de imanncia de Spinoza, central para Deleuze e Guattari e, mais tarde, para Toni Negri para seus agen-ciamentos filosficos.

    Embora esta viso contribusse muito para a compreenso das concepes do novo ps-individual, ps-moderno, a filosofia psmoderna continuava a usar ferramentas da filosofia continental quase inteiramente ignorando a herana darwinista, que ao longo do sculo 20 deu luz biologia molecular, s neurocincias contemporneas e uma nova noo da anatomia evolutiva, a partir do que, o terrvel problema corpo e mente na filosofia oci-dental pde finalmente ser resolvido, tambm dando evidncia cientfica para a impossibilidade do fechamento subjetivo na individualidade.

    Todo o meu movimento em direo a Keleman, um verdadeiro pensador darwi-nista contemplativo ocidental, veio da insatisfao com a viso moderna rei-chiana acima descrita do corpo, e principalmente veio do meu profundo de-sapontamento com a praticabilidade das idias de Deleuze tais como o corpo sem rgos e o conceito de inao de Varella que o levou a se perder em concepes do budismo tibetano. Alis, uma mancada imperdovel para um cientista da sua inovatividade.

    Deleuze e Guattari dizem, em O que Filosofia, de 1992, que os ingleses so exatamente nmades, que eles caminham no plano de imanncia como num cho mtil e mvel, um campo de experincia radical, um mundo em ar-quiplago onde eles se sentem felizes de acampar de ilha em ilha no oceano... sim, Darwin!

    Foi muito feliz a minha escolha de Keleman. Imediatamente e apaixonada-mente, comecei a cuidar da traduo de seus livros, a escrever para ele e, finalmente, em 1992, comecei a freqentar seus workshops em Berkeley. Naquele exato momento, sonhei com a perda de uma criana na multido e a concepo do feto de um corpo velho personificado por Kazuo Ono, que aparece deitado numa posio fetal dentro de uma banheira cheia de barro.A iluso infantil da individualidade estava indo embora dando lugar a um corpo recentemente concebido, feito de multiplicidades e devires.

    Finalmente eu pude me identificar com um modelo de clinicar, pesquisar e ensinar, bem como com uma filosofia do corpo que me permitia pensar e agir eticamente como parte.

    As vises formativas de Keleman e sua metodologia

    De uma maneira muito similar aos filsofos de esprito imanente, tradio fun-dante tambm na filosofia americana, Keleman diz na sua linguagem cient-fica contemplativa, que vivemos dentro de um oceano orgnico, uma manta viva chamada biosfera e que como sistemas vivos, ns, organismos, fazemos a mesma coisa que a biosfera como um todo. Ns nos estendemos, ns nos

  • encolhemos, ns formamos suborganizaes. Este o modo pelo qual ns cultivamos conexes com o mundo e formamos tambm conexes internas de subsistemas do self. Somos mteis e pulsteis, mas a evoluo nos dotou deste sistema cortical voluntrio cujo esforo mobiliza o pulso do corpo para fazer crescer mais conexes sinpticas. A vida quer sempre mais. Assim, no apenas em situaes reais que requerem de ns que aprendamos qualquer coisa, ns tambm podemos exercitar, uma prtica de si, como exerccio para a vida e para o trabalho.

    Keleman diz que se ns usamos este esforo voluntrio, ns necessariamente criaremos uma cadeia comportamental, o que significa acumulao de uma massa crtica de axnios fazendo uma memria anatmica e isso experien-ciado como aquilo que chamamos de subjetividade.

    Eu, em consonncia com todas as consideraes prvias, prefiro chamar de sentido de si em vez de subjetividade, mantendo a palavra subjetividade para significar produo social de sentidos e no um evento natural.

    Com esta prtica, ele ensina que aprendemos a diferenciar e maturar nossa corporificao herdada atravs do fortalecimento e da formao de conexes sinpticas. Isso intensifica e vivifica, ele diz, nossa experincia de estar em casa conosco mesmos. Uma idia bastante heiddeggeriana. Aes voluntrias repetidas, como pedaos de comportamento anatmicos, produzem tipos excitatrios que so a fase inicial da formao de novas cone-xes neurais. Isso o que considero o poder natural que temos de incenti-var a biodiversidade subjetiva. neste sentido que eu considero a teoria de Keleman e a sua prtica totalmente til politicamente, embora ele discorde frontalmente. Este poder baseado na habilidade de formar conexes internas somticas fortalecendo um continuo feedback de contato intra-organsmico com dife-rentes intensidades e amplitudes. Essa a fonte primria para organizarmos a experincia como uma forma somtica.

    Ele afirma que o esforo voluntrio cortical-muscular estimula o crescimento de axnios e estes axnios vo formar uma estrutura conectiva, as sinapses. Elas conectam a parede do corpo com o crtex. Isso como crebro e ms-culos trabalham juntos: fazendo diferenciaes em formas particulares. Na medida em que ns seguramos uma forma, uma expresso, ns fazemos um frame (enquadramento, recorte, fotograma...) muscular distinto, um en-grossamento ou afinamento da parede do corpo, com seu pulso excitatrio nico e conseqentemente com sua expresso nica, sua conexo nica ao ambiente, sua nica experincia, que significa que ns morfamos (morph), como ele diz, como uma biodiversidade subjetiva, como eu digo. Isso a sua diferena de qualquer outro autor neste tipo de busca. Ele apre-senta uma prtica altamente factvel: o mtodo formativo. Assimilvel por qualquer tipo de grupo, seu trabalho nos seus seminrios e livros teorizar e ajudar atravs de exerccios e trabalho clnico, leitores e participantes a jun-tarem e darem estabilidade aos pulsos de excitao e cultivar um mundo pes-soal, um soma pessoal em crescimento, com seus prprios valores e sentidos que sustenta e matura uma vida adulta.

    O seu mtodo formativo consiste num protocolo de cinco passos que imita o processo formativo na natureza:

  • 1. Reconhecer um padro somtico e fazer um modelo muscular a partir dele. 2. Intensificar o padro muscular em incrementos distintos, pausando entre as formas. 3. Desorganizar o padro muscular pausando a cada mudana. 4. Dar uma borda de firmeza para criar um limite e conter o pulso. 5. Fazer com as formas distintas um contnuo de comportamentos para ativi-dades pessoais e sociais.

    Keleman em 1985 diz: Quando algum usa o esforo cortical muscular volun-trio para fazer distines na sua forma somtica, esta pessoa reorganiza a estrutura fazendo mais camadas internas e mais conexes internas. Quando os padres motis ganham estabilidade e durao o organismo experimenta alguma coisa nova tomando forma dentro de si.

    Para Keleman, estar corporalmente presente a tarefa mais urgente do soma. Diz ele, sentimos uma urgncia de transcender nossa forma herdada.Eu diria que ns encaramos todo o tempo problemas formativos e tentamos encontrar uma soluo, isto , organizar uma formatao do self que seja fun-cionalmente nica, nossa. E isso requer esforo volitivo sobre o soma.

    Ele pensa que ns devemos engajar a ns mesmos no dilema de aprender da parte herdada de ns mesmos. O mix do no-aprendido com o apren-dido compem a forma pessoal. Atravs da volio o crtex aprende como influenciar a intensidade de uma excitao, uma urgncia. Ele afirma que a frmula para a presena corporal forma, intensidade e durao. Formar dar durao a respostas que ns produzimos ao acaso numa dada situao vivida. Como acontece na evoluo, eu diria. Keleman chama a isso de to-mar sua vida ao prprio cargo. Ns devemos nos cultivar atravs do mtodo formativo para voluntariamente poder alterar a forma emocional (relacional) do corpo. Eu chamo a isso cultivar singularidades.

    O crtex influencia as respostas corporais. Atravs deste processo, crebro e corpo formam um sujeito-objeto, uma relao eu e voc. O crebro e o corpo tecem um self pessoal a partir do corpo herdado, um corpo que no existia antes. As conseqncias disso so imensas, uma vez que tornam o corpo e seu comportamento uma entidade pessoal.

    Keleman usa o conhecido neurocientista Gerald Edelman e suas idias de reen-trada neural em que descreve este processo como aquele em que o crebro mapeia as aes do corpo e ento faz cotas neurais nesses mapas. Ento os mapas conversam entre si e compartilham informao. Este o modo que, para ele, o crebro estabiliza aes musculares.

    E Keleman, alargando suas prprias idias, diz que quando h um novo com-portamento, um novo padro de ao, o crebro tem que fazer muitos novos mapas neurais. Assim, no mtodo de corpar ele usa esse processo neural de reentrada inato para estabilizar novos comportamentos. A reentrada pode ser volitiva na medida em que tentamos repetir uma ao no-volitiva medida que o processo ocorre a nvel neural. A reentrada neural ento estimula a or-ganizao neuromuscular e cria estrutura. Isso a base da prtica: atividade volitiva, atravs de micromovimentos, intensificando reentrada. Deste modo podemos participar na formao de um self somtico segundo Keleman. Isso

  • criao, isso poder-potncia, como diria Toni Negri com Spinoza, potenza conectiva.

    Keleman descreve como se segue, editado a partir de notas que eu tenho de seus workshops: Quando ns observamos os padres musculares de uma outra pessoa, nosso crebro rapidamente organiza padres motores neurais similares em nosso prprio corpo. Ele considera essa especularidade como um saber somtico direto das intenes da outra pessoa em relao ao. Eu acrescentaria que o corpo como um reflexo, contrai e expande instanta-neamente face a qualquer objeto, situao, qualidade, qualquer coisa, como efeito da ateno, imitando-o para saber em si mesmo o que aquilo. Isso percepo e ao mesmo tempo uma espcie de fagocitao de formas. E, ento, atravs da repetio dos padres motores, essa resposta se torna nossa.Esse modo de ver nos coloca na tessitura coletiva de redes de todo tipo.

    Vou citar uma outra comunicao pessoal de Keleman: A habilidade cortical de alterar forma possvel atravs de funes de retar-damento, de variao e de localizao. Isto uma descoberta maravilhosa que d toda a base e sua praticabilidade. O frame uma inibio de uma ao e uma diminuio dessa inibio e isso performado pelo endurecimen-to e desendurecimento do corpo. O endurecimento organiza uma membrana neuromuscular que cria um dentro particular e um fora para o corpo. O frame um campo de ao celular emocional e cognitivo. um sitio somtico, uma certa quantidade de memrias somticas daquilo que aconteceu. Eles juntam excitao organsmica e ento deixam inchar. A forma incuba e intensifica a excitao, alterando e estabilizando estrutura. Deste modo o crtex brinca com o corpo e forma uma presena corporal.Diz ainda Keleman que posturas e gestos so organizaes anatmicas m-teis que inibem ou facilitam intensidades excitatrias todo o tempo. A volio cortical transforma comportamento automtico em comportamento apren-dido e regulvel. Os cinco passos podem favorecer diferenciaes futuras atravs do uso de micromovimentos.

    Os micromovimentos do corpo sobre si mesmo e no o movimento repetem o padro e criam estabilidade atravs da organizao de pequenos fotogramas. Eles so pequenos pacotes de contrao que compartimentalizam excitao.Keleman diz: Eles no emudecem a excitao, mas a redistribuem. Eles to-mam tempo em organizar fotogramas e juntar e dispers-los no corpo e no crtex. O mtodo de repetir pequenas contraes musculares d durao ao frame e distino.. Considero isso como uma artesania sobre o comporta-mento que nos permite fazer crescer sempre biodiversidade subjetiva e dife-rentes possibilidades de criar redes, sejam fsicas, psquicas, emocionais ou cognitivas.

    Na prtica ele instrui o aluno ou cliente para dizer a si mesmo como ele est corporalmente presente numa dada situao. Fazer uma coisa ou postura e contar a histria. Exageram-se posturas e encontram-se o tema da ao. Dizer como se voc estivesse dizendo para si mesmo como voc agiu. Falar sobre estes movimentos enquanto voc est formando a postura. Falar como seu corpo mudou, falar sobre aquilo pelo qual seu corpo passou para chegar a ficar presente.(Edio de um conjunto de idias de Keleman a partir de comunicaes pessoais de Keleman, de seus livros, de muitos workshops, de muitas conversas por e-mail, muitos trabalhos pessoais, e papers no publicados de seus seminrios, Regina Favre 2007).

  • Como conceitos formativos nos ajudam a entender o como da captura capitalstica, nessa cultura global de imagens, e como lidar com isto atravs do mtodo formativo

    Atravs destes anos, assimilei profundamente, atravs de Keleman, que h um oceano protoplasmtico formativo, uma multido molecular canalizada por crebro e corpo a partir dos quais indivduos se formam a si mesmos fazendo membranas particulares temporrias de si mesmos, a partir de regras univer-sais, biolgicas, formativas. Eu pensei imediatamente que esta viso de uma realidade ocenica poderia ser estendida realidade contempornea, que pode ser considerada, tal como se tornou visvel hoje, como campo comum planetrio de corpos e modos de mold-los em suas conexes com outros corpos e processos sociais. Cada corpo uma multido sempre canalizando em relao a outros corpos. A idia de singularidade estava a.

    Mas a viso de Keleman to similar e to diferente ao mesmo tempo da con-cepo imanente. Sua concepo ainda personolgica, resultado das suas razes heiddegerianas e democrticas. Ele filosoficamente e cientificamente ps-moderno, mas politicamente moderno.

    O Reflexo do Susto: entre o excessivo e aquilo que pode ser assimilado

    O tempo, lento e natural, at no muito mais de 150 anos atrs, anterior inveno das estradas de ferro, da fotografia e do cinema, antes da intensifi-cao do comrcio e da comunicao que hoje so globais e em tempo real costumava dar s pessoas o sentimento de estabilidade identitria.Hoje, para angstia da maior parte das pessoas, ns no nos percebemos mais como um ego entre outros egos estveis. A biologia, tambm, com o aumento de possibilidades de observao, teoriza-o e publicao, comeou a permitir nos vssemos como realidades pr-indi-viduais, altamente conectivas tanto molecularmente quanto sinapticamente. A velocidade das mudanas sociais e comportamentais, experienciadas con-stantemente e aprendidas pelos meios de comunicao de massa, tambm criam em ns uma auto-imagem muito instvel, de ser nada mais do que agregados de comportamentos socialmente produzidos. A velocidade vertiginosa dessas mudanas sociais permeia tudo e desencadeia nos corpos coletivamente o reflexo do susto tal como descrito por Keleman no seu artigo O Reflexo do Susto em seu site www.centerpress.com que reproduzo aqui:

    O reflexo do susto uma resposta organsmica para lidar com situaes de emergncia ou de ameaa ou de desafio de fora ou dentro da pessoa. Isso um processo complexo que comea com respostas espontneas simples a agresses e envolve uma predisposio em direo a formas mais complexas dependendo do tempo, da durao e da intensidade do desconhecido. Esta resposta destina-se a ser temporria. Quando o perigo passa, o organismo volta ao normal. Entretanto esta mesma resposta pode se tornar um estado ha-bitual de tal modo que sua organizao permanece medida que nos movemos

  • de um evento para o outro. Torna-se um padro somtico contnuo. Muitas pessoas esto sempre num estado de tenso moderado contra perigos que elas no conseguem plenamente articular. A palavra distress descreve este estado contnuo e susto o estado temporrio, diferenciando-os.

    O reflexo do susto comea com uma posio investigativa, seguida por asser-o, desagrado, raiva, irritao e, finalmente, submisso e colapso. Cada est-gio dessa intensificao baseado na capacidade do organismo de suspender a pulsao, criar segmentao e recrutar mais e mais camadas de si na sua resposta que envolve: mudana na musculatura e postura; mudana no diafragma; engrossamento ou afinamento da parede do corpo; aumento nas separaes entre as bolsas; mudanas nas relaes do corpo com a linha gravitacional; alterao de sentimentos, emoes e pensamentos. A resposta do susto costuma ser progressiva e se mostra ao longo de um contnuo. Entretanto ela no mecnica nem tem a sua continuidade de uma maneira invarivel ou seqencial. Cada pessoa tem um padro nico de susto, de distress, que caracterizado pelo nmero, durao, tempo, fonte e severi-dade da ameaa colocada tanto fsica como emocionalmente ao organismo. Em algumas situaes, a pessoa pode pular vrios estgios e ir imediatamente para uma resposta extrema. Esses padres somticos so processos de profunda autopercepo e um modo de sentir e conhecer o mundo. Eles afetam todos os tecidos, msculos, rgos e clulas, bem como pensamentos e sentimentos. Eles so mais do que mecni-cos, eles so uma forma de inteligncia, um contnuo de auto-regulao. Esses padres so um fenmeno de camadas e tubos que afetam o organismo como um todo. Eles so intrnsecos e envolvem estados musculares da ponta dos ps ao alto da cabea. Msculos e rgos no esto apenas contrados, eles esto organizados em uma configurao. Esta organizao se torna o modo pelo qual reconhecemos o mundo bem como a ns mesmos e, por outro lado, se torna o modo pelo qual o mundo nos reconhece. (Keleman, 2007)

    Em direo a uma viso formativa radical: usando Keleman alm de Keleman

    As vises formativas de Keleman nos apresentam um modelo do soma como lugar, um lugar vivo, uma arquitetura evolutiva viva na biosfera e na sociedade, como ele ainda diz (como se a sociedade fosse uma realidade monoltica), com a possibilidade muito mais rica do que qualquer outro organismo vivo, de con-tnua autoconstruo com elementos moleculares aquilo que trocado com os ambientes, sejam eles elementos, comportamentos ou imagens. Do alerta ao terror, ele se espalha globalmente, de uma maneira nunca vista, como um vrus, atravs da rede de comunicao, sobretudo de imagens sejam notcias ou modelos de comportamento que agora nos envolvem a todos. Mas como aprendemos com Keleman, para estabilizar a experincia com o corpo, aquilo que foi vivido tem que ser passvel de ser assimilado. Este o modo como o soma humano gera seu futuro: com tecidos, formas, camadas e comportamentos de conexo com eventos presentes.

  • Cada camada do soma requer tempo formativo e ambientes confiveis para formar a si mesmo no devir e operar sobre a criao de diferenciaes que nos conectam funcionalmente com os ambientes da rede global, dos quais ns somos parte tanto localmente como de uma maneira geral.

    Fast forms: o empobrecimento da biodiversidade subjetiva

    As formas embriogenticas, as formas constitucionais, as formas do desen-volvimento, as formas de autoproteo, de ataque, de emoes, matrizes de gestos e aes. Tudo emerge da profundidade do oceano formativo e dispara no momento certo a partir da sabedoria ancestral do soma. Estas formas, en-tretanto, j emergem num mundo global, ps-moderno, capitalista, regulado pelo interjogo de poderes e valores que as capturam e canalizam para dentro de redes de sentido imediatamente, moldando-as e modelando-as. Cada nova forma biolgica que emerge a cada momento, na continuidade de cada corpo humano imediatamente ameaada por foras de excluso e imediatamente encontra sua disposio formas pr-fabricadas, testadas pela seleo do mercado, manipuladas por pesquisas de opinio e suportadas por tecnologias criadas pelas mentes mais brilhantes. Essas formas todas esto em volta de ns, preenchendo todo o espao na nossa percepo, se oferecendo para produzir em ns a iluso de incluso neste mundo. Elas so as fast forms, elementos para serem usados na construo de novos modos de existir, que ns somos forados a agregar diante da desagregao sbita e contnua de modos de ser e de existir. Isso produzido pelo efeito de fragmentao do reflexo do susto como uma resposta biolgica velocidade excessiva e ameaa vertiginosa de excluso gerada pelo capitalismo global.Essas ameaas so intensificadas pelas imagens continuamente bombardea-das pela indstria de comunicao de massa. Imagens de incluso, prestgio, segurana e felicidade lado a lado com imagens de excluso, privao, violn-cia, perda de propriedade e existncia social, para no mencionar perda da vida que constantemente nos aterroriza.

    O tempo instantneo do mundo global no nos d tempo de formar vidas pessoais e nos catapulta em direo s solues fceis oferecidas pelas fast forms. Elas todas esto venda. So objetos e servios de todo tipo que, na verdade, so bordas subjetivas modos de morar, vestir, relacionar, pen-sar, imaginar, amar, desejar, funcionar, produzir, gerar histrias de vida. Estes modelos de existncia tm a caracterstica de serem facilmente assimilveis. Como fast food, eles so fast form. Elas, aparentemente nos poupam es-foro, tempo e angstia de compor nossos prprios menus de ser e viver no mundo a partir da digesto necessria dos acontecimentos. As fast forms vm junto com uma operao poderosa de marketing que nos faz acreditar que consumi-las e nos identificar com elas essencial para configurar nosso territrio que continuamente se desmancha na velocidade da informao e dos novos acontecimentos. Esse , aparentemente, o nico modo de pertencer rede planetria e evitar o risco fsico ou social de morte, dada desconexo com os processos de continuidade da vida. Ns tambm somos bens e nossas vidas so diretamente traduzidas em valor econmico, quer queiramos ou no. E ns, nessa fico, somos simultaneamente produ-tores, espectadores e consumidores.

  • O alto nvel de ateno mobilizado pelas tcnicas de comunicao alimenta o nosso potencial de identificao com as fast forms, as quais, por sua vez, ali-mentam o funcionamento dessa mquina modeladora de sentidos nos corpos, o que se tornou uma das principais foras do capitalismo contemporneo. Essas fast forms, entretanto, tm a caracterstica confirmar a nossa falta de auto-referncia e o nosso desamparo, nos tornando dependentes do seu con-sumo em busca de um alvio prometido em relao constante angstia exis-tencial. A menos que ns possamos reverter a situao.

    Chamando de volta e aplicando a matriz do pensamento formativo

    Mas para produzir uma operao realmente individuante, necessitamos primei-ro aplicar o conceito de corpo kelemaniano e como o processo de produo de corpo acontece, de tal modo que ns possamos contemplar atravs de que interjogo de foras biolgicas e sociais um corpo modela o seu prprio processo formativo. H mais de dez anos, Keleman me escreveu uma nota pessoal que agora eu edito: o processo vivo tem total investimento na continuao da corporifica-o mesmo. Por esta razo, ele est em constante dilogo consigo mesmo e este dilogo sempre sobre o que fazer a respeito da sua situao imediata. O corpo fala atravs de sensaes, sentimentos, motilidades. Entretanto, ele necessita falar de volta consigo mesmo de tal modo que ele possa influenciar o seu comportamento. Assim, o corpo tem o poder de influenciar a si mesmo, moldando a si mesmo em aes, inibindo a si mesmo ou agindo em relao a si mesmo. Ele faz isso atravs de um elegante sistema de feedback a que chamamos crebro. O corpo organiza a si mesmo para falar consigo mesmo, secretando para si mesmo um rgo que capaz de receber de volta seus pa-dres de ao e falar consigo mesmo a respeito deles. O que significa que h sempre uma relao do corpo com ele mesmo, mediada pelo crebro.

    Esta relao ocorre como o modo pelo qual o corpo regula seu prprio metabo-lismo, seus movimentos e motilidades, o modo pelo qual ele altera e regula as formas e suas expresses. Isso revela que o assunto principal do corpo no apenas sobreviver, mas sobreviver atravs de uma relao consigo mesmo. (Keleman, 1996, e-mail pessoal)

    Evidentemente, a vida e a evoluo no nos deram esta herana maravilhosa porque ns somos especiais individualmente, mas porque esta herana nos permite fortalecer a fora e a diversidade dessa mesma herana em ns e no pool da vida. Entretanto, j sabemos que o capitalismo contemporneo e a violncia inerente ao seu funcionamento agem contra isso, tentando cons-tantemente capturar este poder da vida e torn-lo consumidor de imagens, das fast forms, perversamente exercendo a ameaa de excluso com sua dinmica concentracionista, levando eliminao das diferenas, conduzindo homogeneizao e consequentemente ao enfraquecimento do pool das subjetividades.

  • O mtodo cartogrfico e o mtodo do corpar

    Cartografar essas paisagens sociais mutantes, das quais ns somos parte tanto global quanto localmente, de acordo com os ensinamentos de Guattari, signi-fica descrev-los em detalhe, acompanhar suas mutaes e a velocidade dos fluxos que os cortam e reconhecer as genealogias do corpar, em cada ecologia e as espcies de fast forms infectam esses ambientes, enfraquecendo sua potncia formativa. E, ento, descobrir possibilidades e estratgias de apro-priao para trabalharmos sobre elas.

    Aplicando o mtodo dos 5 passos dentro da lgica formativa kelemaniana, o grande segredo da evoluo escondido dentro de ns para proteger a vida con-tra o roubo do que nos permite continuar produzindo diversidade, se revela. E com a ajuda desse mtodo, identificamos as fast forms que nos capturaram (1 passo), reconhecemos sua anatomia, seus limites, suas foras e tendncias (passo 2) para ento intensific-las e desintensific-las em pequenos incremen-tos (passo 3). Deste modo emergir da profundeza formativa do organismo um novo contorno subjetivo tratando a despotencializao formativa gerada pelo o reflexo do susto que deu lugar para que as fast forms nos parasitem.

    Vemos ento, como atravs dos mencionados micromovimentos das superf-cies, seremos capazes de sermos surpreendidos por novas formas, mais conec-tivas e eficazes, fragmentos das fast forms, suas recombinaes e mutaes (passo 4). Ento, podemos estabilizar as diferenciaes e testar sua funciona-lidade em novas paisagens de sentidos e conexes (passo 5), repetindo-as, estabilizando-as, aprendendo.

    Uma clnica ou educao que lida com a subjetividade somtica hoje tem que ser compreendida como uma micropoltica. Micropoltica um modo de sus-tentar territrios de criao. a ao de pequenos grupos que resistem acele-rao e demandas da sociedade do espetculo e, ao contrrio, constituem a si mesmos em zonas de lentificao do tecido social. Eles so modos de influen-ciar o domnio social, no impondo formas alternativas de funcionamento, mas atravs da influncia lenta e contnua de um modo formativo de operar e produzir realidade. Menos mais.

    A assimilao do modelo de Keleman

    Desde o primeiro momento, fui cuidadosa para absorver o pensamento for-mativo de uma maneira ativa, no como um dogma ou um produto de rpida revenda. Depois de muitas experincias de configurao da transmisso, sucessos, fra-cassos e recomeos, refinei a idia de Anatomia Emocional de Stanley Kele-man e entendi que ela necessitava ser compreendida simultaneamente como uma filosofia, uma biologia, uma pedagogia, uma tica, uma clnica, uma esttica, um possvel aliado das micropolticas de resistncia contra a captura da indstria dos comportamentos. Esta compreenso multidimensional me levou a conceber um mtodo de transmisso transversal e multidimensional tambm.

  • Desde o incio da minha prtica clnica como terapeuta corporal em meados dos anos 70, senti que a linguagem escrita dos livros e artigos no era sufi-ciente para refletir e transmitir a noo de corpo como forma, ao, emoo, sentimento, inteligncia e ligao. H uma oralidade e uma performaticidade que inerente ao corpo. Assim, logo que as primeiras grandes cmeras de vdeo apareceram, as grandes Panasonics, eu decidi comprar uma e comecei a fazer experimentos de gravao.

    Levei anos para sair do formato documentrio e chegar forma interativa e inclusiva do uso da cmera em situao de grupo. Como participante do ambiente de Keleman de gravao e edio, e tendo sido algumas vezes escolhida como a estrela dos seus vdeos, isso foi funda-mental para essa lenta mudana. Mais eu compreendia a ao capitalstica de captura atravs das imagens, mais se tornou claro para mim que este trabalho educacional e clnico que centraliza sua ao na forma dos corpos tambm deveria elaborar modos que so, de fato, micropolticas para trabalhar com imagens, fragmentando-as, multiplicando-as, criando novas possibilidades combinatrias de interagir com elas e incorpor-las. Apenas promovendo esta espcie de prtica coletiva de apropriao e dessacralizao da imagem, poderamos enfrentar o poder ps-pessoal das fast forms.

    A plena dedicao transmisso do paradigma da Anatomia Emocional

    Desde 2002, a Anatomia Emocional se tornou o centro do meu ensino e pes-quisa. Isso aconteceu ao mesmo tempo em que eu mudei o meu trabalho de clnica e ensino para um novo espao, sem parceiros nem colegas. Comigo, s pes-quisadores, colaboradores e estudantes.

    Esta transmisso desenvolvida por mim mesma e, presentemente, por colabo-radores, configura-se hoje como uma leitura viva que acontece semanalmente em diferentes grupos por quatro ou cinco semestres. Como professora, ajo como leitora, comentadora, intrprete, diretora, esca-ladora lenta das linhas do livro com o grupo, numa atmosfera de ensaio per-manente. Os grupos so compostos de pessoas que j tm sua prpria experincia, nas suas vidas e profisses. Terapeutas corporais de diferentes tradies, mdicos, psiclogos, bailarinos, fisioterapeutas, atores, artistas, assistentes sociais, con-sultores, jornalistas, professores.

    A transmisso formativa constitui a si mesma em um evento. uma experin-cia corporificada numa produo de camadas de corpos e vnculos fortemente tecidas, conhecimento formativo, somtico e conceitual, linhas narrativas, gravaes permanentes em vdeo, assistir vdeo o tempo todo, exerccios lin-gsticos da linguagem formativa, posturao de si mesmo, experincia dos 5 passos, desenhos de somagramas, cartografias dos conceitos e situaes vivas, conversaes sobre histria social, poltica, biologia, modos de subjetivao, histrias e descries de pessoas funcionando em suas vidas e mundos.

  • Maurizio Lazzarato, em 2005, num artigo que se chama Ver e Ser Visto: uma micropoltica da imagem, disponvel no www.16beavergroup.org:A construo de um dispositivo no simplesmente uma pr-condio tecno-lgica do projeto. Novos mtodos de produo da imagem requerem que ns vejamos novos aspectos da realidade visvel e novos aspectos da realidade visvel no podem ser percebidos e entrar no nosso horizonte de sentidos se no h novos meios de estabelec-los. Essas duas coisas esto estritamente interligadas. Na nossa sociedade, os dispositivos tecnolgicos so concebidos e comercia-lizados como meios de comunicao. A plataforma Timescapes (experimento descrito no artigo) no foi concebida e fabricada como um simples instru-mento para transmisso de informao, imagem e som entre a situao A e a situao B. As relaes sociais, estticas e polticas entre diferentes situaes ou indivduos no so dadas previamente por referncias fixas e imutveis, mas esto em formao, num contnuo processo de mudana e devir. As rela-es no so transmitidas, mas so construdas e criadas no e atravs do dis-positivo tecnolgico.

    O ambiente da transmisso da Anatomia Emocional, especialmente construdo para esta finalidade, como uma pequena mquina. Ela feita da conexo de elementos heterogneos: o livro de AE, o aparelho de TV onde as gravaes da aula anterior esto sempre rodando como camadas de memria, controle re-moto para tornar disponvel a qualquer momento still, slow backwards, quadro a quadro, a gravao de novas imagens dentro de imagens, um cmera profis-sional sempre l como parte do grupo, um telo, um retroprojetor que com sua luz cria ambientes expressionistas, uma projeo ampliada das transparncias de imagens da Anatomia Emocional, de biologia molecular, de neurocincia, nos dando uma imagem da nossa pequenez dentro deste imenso processo, a corporificao delas, um imenso quadro branco para cartografias, cadeiras dobrveis, um cho claro e paredes claras onde toda ao se torna visvel, uma grande janela que reflete dentro da sala e fora da sala, fotogramas do mundo de fora do qual ns somos parte, aparecendo continuamente nas gravaes. O espao onde as pessoas se exercitam na corporificao das leituras, das con-versaes, na imitao das prprias formas e dos outros em diferentes estados, nas diferentes formas de conexo enquanto fazemos coisas simples e a parede muitas vezes coberta com fotos do grupo, momentos e aes. Fazer, gravar, olhar, parar, recortar, gravar novos experimentos sobre uma imagem, uma seqncia de imagens, uma expresso, fazendo crescer novas linhas de fazer, gravar, falar, uma mo, um comportamento, uma atmosfera, um episdio, uma interveno formativa feita por mim e infinitamente assim por diante.

    Mais e mais eu me dou conta de que este agenciamento reproduz e ao mesmo tempo desconstri o oceano de imagens no qual ns estamos mergulhados enquanto ao mesmo tempo oferece a cada um os instrumentos para corporifi-car, corpar, uma palavra do vocabulrio kelemaniano, a si mesmo em tempo real e com constante feedback e produo de camadas.

    Estou feliz com esta funcionalidade e beleza.

    Cada grupo tem o seu reprter, sempre um estudante mais velho, que est num diferente papel para fazer o resumo de cada aula, elaborando fichas que acompanham os arquivos de vdeo de cada grupo. Cada grupo chega a pro-duzir perto de 250 horas de gravao ao longo do trabalho que tem o livro Anatomia Emocional como fio condutor.

  • Os membros do grupo tm acesso a seus prprios registros para estudar e in-cluir esta influncia em suas prprias prticas especficas, multiplicando efeitos imediatos e tendo a oportunidade de se tornarem pesquisadores do material, dos conceitos, das imagens. Construindo uma metfora agrcola de que Keleman tanto gosta, este um ambiente diferente onde variedades de sementes kelemanianas so selecio-nadas e hibridadas e cultivadas. Respondendo a condies diferentes e a pro-blemas formativos diferentes.